Caros,
Seguem algumas pontuações ao nosso planejamento estratégico que não se encontram explicitadas neste.
Na última década uma série de mudanças radicais vem acelerando seu desenvolvimento na esfera internacional, com grande impacto nas esferas tecnológica e militar. Tais transformações estão reordenando as relações de poder em escala global, e sua compreensão é determinante para que a esquerda mantenha a capacidade de formular políticas que consigam responder de fato a esta conjuntura tão dinâmica. O entendimento deste cenário também auxiliará sobremaneira em um entendimento mais amplo sobre o conflito em que o país foi enredado desde 2012 ao menos.
Em uma conjuntura tão complexa o texto abaixo é tão somente uma tentativa de realizar uma aproximação que auxilie na criação de políticas mais efetivas para lidar com um contexto de relações de poder extremamente complexo e conflituoso.
Abaixo apresentamos algumas questões para serem refletidas:
Notas ao planejamento estratégico
1- Mudança profunda nas relações internacionais. O realinhamento produzido pela compreensão do establishment norte-americano, a partir de 2011, em relação ao desafio lançado a sua hegemonia, por parte da Rússia (Leste Europeu), e sobretudo pela China (mar do sul da China/Ásia), vem provocando um reposicionamento mundial nas alianças políticas, comerciais e militares. Mudanças deste nível são eventos rupturas marcantes, tais como a queda dos impérios da Europa central em 1918, o início da Guerra Fria em 1947, e em 1989 com a prevalência hegemônica dos EUA. São episódios raros, de colossal magnitude, e possuem profundas implicações em variadas dimensões que perpassam a existência dos povos, tais como política, econômica, social e tecnológica.
No caso do Brasil, a conjunção de uma “elite” subjugada, com uma herança de introspecção dentro das próprias fronteiras nacionais, resultaram em um amplo processo de alienação, em que existe pouco conhecimento sobre toda a mecânica das relações internacionais, provocando uma visão bastante superficial de fenômenos com grande impacto local, como a disputa pela hegemonia mundial em curso. Em que pese a excelência do Itamarati na condução de negociações e tratados, muito da contenda entre os grandes atores globais envolve as denominadas covert actions: espionagem, sabotagem, assassinatos, emprego de forças especiais, e uso de operações de influência com o fito de desestabilizar os competidores. Na história brasileira recente: o suicídio de Vargas em 1954, o golpe militar de 1964 e o golpe contra o governo Dilma em 2016 são apenas algumas ocorrências com mais visibilidade do emprego deste tipo de medida.
No tocante a esquerda nacional acresça-se a este contexto de alheamento sobre certas dimensões das relações de poder a relativa inexperiência histórica no exercício da condução do governo nacional. Vale lembrar que o Labour Party britânico, fundado em 1899, exerceu o poder pela primeira vez em 1924 e o SPD alemão, fundado em 1875, chegou ao poder central em 1918. Embora no período da Guerra Fria ambos os partidos tenham operado o Estado de maneira sofisticada, em um contexto sensível e complexo, nem sempre foi assim. Em ambas as primeiras passagens no governo, estes partidos de trabalhadores cometeram variados erros, alguns destes por desconhecimento do funcionamento do núcleo duro do aparato do poder e suas complexidades. Afinal, o controle das forças armadas, das instituições de segurança nacional e da diplomacia, para além de conhecimento teórico, exige prática histórica. Interessante notar que em ambos os casos, mesmo sob condução socialdemocrata, tais países permaneceram na OTAN, e alinhados com a política de defesa dos EUA. O mesmo aconteceu com a França do Partido Socialista ou com os países nórdicos. Neste sentido, uma outra constatação importante é que as nações herdam conflitos por recursos naturais, disputas de fronteiras, inseguranças históricas derivadas de um passado conflitivo e de sua localização no mundo. Por conseguinte, assim como os indivíduos têm que lidar com a existência pautada pelas vantagens e desvantagens do ambiente onde nasceram, seja um casebre no sertão ou uma mansão de luxo, as nações lidam com contextos geopolíticos que as prendem em determinados cursos de ação, difíceis, ou muitas vezes impossíveis, de serem rompidos.
Por esta somatória de fatores, bem como por parte da sociedade se encontrar “calejada” pelas contínuas intervenções dos EUA na América Latina, tende-se a um olhar simplista de antagonismo aos norte-americanos e simpatia para com Rússia e China. Todavia, todos são igualmente imperialistas, empregando as mesmas armas que sua contraparte estadunidense, em suas respectivas zonas de influência. No caso chinês existe ainda um etnocentrismo de origem milenar, refletido até mesmo na denominação do país, cujo nome original como “Zhōngguó” é traduzido como “Reino do Meio”. Leia-se “meio” como o exercício da mediação entre a terra e os céus. Este olhar permeado pela crença em uma prevalência cultural e racial pode ser encontrado nos textos de Xi Jinping, propagandeando o “sonho chinês”, em que o internacionalismo dos trabalhadores ou a luta contra a superexploração capitalista não existem mais nem como saudação a bandeira maoísta. A ordem global planejada pela China é centralizada sobretudo nos interesses quase exclusivos dos chineses, e ordenada de maneira hierarquizada por um Estado conduzido por uma tecnocracia com acentuado viés totalitário. Ou seja, uma ordem mundial neste contexto poderá ser ainda pior que a atual. Vale lembrar que disputar a hegemonia é completamente diferente de ocupar a posição de hegemon.
Evidentemente, a política bem exercida sabe operar contando com os tempos em que os processos ocorrem. De tal modo, um mundo com maior multilateralismo é fundamental para que o Brasil prospecte novos espaços para dar vazão as suas exportações, e ajude igualmente a promover as demais economias da América do Sul. Mas tão importante quanto identificar as oportunidades é conhecer as ameaças. A longo prazo, um governo de esquerda, democrático e popular, deve atuar para evitar que a hegemonia dos EUA seja simplesmente substituída pela Chinesa. A conquista de uma maior capacidade de autodeterminação brasileira necessita de uma maior distribuição de poder entre os atores globais. Ou seja, a obtenção desta meta é acentuadamente distinta de tão somente efetuar a substituição de um senhor por outro. Infelizmente ainda persiste uma herança de pensamento colonial, difícil de ser rompida, que sempre precisa de uma referência internacional como contraponto ao modelo norte-americano. Nesta busca pelo novo “farol dos povos”, o problema consiste na análise superficial do comportamento e pensamento chinês (ou russo). Para tratar o assunto com seriedade vale a leitura dos textos produzidos para consumo interno por seus principais dirigentes, são bastante elucidativos.
Retomando o fluxo da narrativa, mais do que uma questão de longo prazo, as implicações deste embate colossal entre potências já vêm ocorrendo no país, para efeitos práticos, desde 2010. Resgatando o início do governo petista em 2002, existiu uma relativa condescendência do governo Bush, e início do governo Obama, para com a agenda do governo Lula. Em que pese a pouca simpatia norte-americana por políticas como a conformação da Unasul ou a participação brasileira nos Brics, via-se o país como uma fonte de estabilidade regional, em um contexto em que os EUA estavam completamente engajados na manutenção/ampliação de suas fontes de energia no Oriente Médio. No governo Dilma, contudo, e de forma quase abrupta, a realidade se tornou completamente diferente. Em que pese a relativa indiferença histórica estadunidense quanto ao desenvolvimento da América do Sul, a perda da hegemonia na região para outro ator externo tem um significado completamente diferente. Qualquer potência global, para sê-lo, tem por obrigação controlar os países próximos, o que no caso dos EUA se traduz pela prevalência absoluta no continente americano. Fora a dimensão ambiental, o Brasil como maior país da América do Sul, enquanto permanece como “aliado”, possui um papel de limitada relevância para as estratégias globais norte-americanas. No entanto, passa a ser uma ameaça existencial a partir do momento que se posicione firmemente com qualquer bloco de potências euroasiáticas.
Com uma elite estadunidense ameaçada e aturdida pelo “inesperado” desafio chinês, escolhas objetivando promover a multilateralidade por parte do Estado brasileiro, possivelmente receberam uma avaliação completamente diferente por parte do governo democrata de Obama se comparadas ao governo Bush. Eventos como a política de partilha do pré-sal, a recusa na visita aos EUA com honras de Estado, o novo Banco de Desenvolvimento dos Brics, e principalmente, a escolha do caça sueco no programa FX, cujo sistema embarcado pauta a indústria de defesa, provavelmente foram avaliados como posicionamentos inaceitáveis nesta nova realidade, e como um perigo visceral. As potências em decadência tendem a um comportamento errático e esquizofrênico, justamente pela profunda insegurança com que são tomadas na medida em que os espaços que estavam habituadas a ocupar começam a encolher.
Sob este contexto, para além de uma ampla gama de indícios tais como os repetidos contatos de Temer com a representação norte-americana, ou a estreita cooperação dos operadores da Lava-jato com a justiça dos EUA, e o próprio FBI, é possível inferir que o país tenha sido palco de uma operação de deception (inexiste tradução apropriada) de grande envergadura por parte das agências de inteligência dos EUA, a partir do final de 2012. Este tipo de ação geralmente envolve medidas de influência e operações psicológicas. Como se busca movimentar milhões de pessoas, são plantadas desinformações, ruídos, informações parciais, em um dado lapso temporal, mediante múltiplas fontes. Essa conjunção de ações é conhecida no âmbito da comunidade de inteligência como orquestração, visto polvilhar paulatinamente pequenas narrativas, aparentemente desconexas, mas igualmente pertencentes a um amplo script. Vale pontuar que esta técnica possibilita alcançar um dos pré-requisitos para operações psicológicas de sucesso, fazer com que o público alvo avalie que chegou as próprias conclusões, sem perceber que foi completamente induzido. Outra questão basilar ao sucesso é a escolha da temática deste tipo de medida, que tem como regra questões onde exista a predisposição social “em acreditar”. Neste sentido, a corrupção é item basilar, ao se considerar a origem patrimonialista das diversas sociedades. Como lidam com a dimensão cognitiva humana, evidentemente não se trata de uma ciência exata, em que se tenham métricas precisas. Por conseguinte, este tipo de operação segue atuando sobre as subjetividades e o inconsciente coletivo até que até que algum evento na realidade sirva como “gatilho” deflagrador de eventos de massa, como no caso dos “vinte centavos”. Claro que o resultado final é difícil de controlar, e muitas vezes tende no longo prazo a gerar o afeito oposto do almejado. Os Estados Unidos, por seu imenso poder, e pequena história como potência global, tendem a incorrer em equívocos recorrentes nesta esfera.
Uma das plataformas privilegiadas neste tipo de ação foram justamente as redes sociais, que seriam posteriormente, e paradoxalmente, utilizadas pela Rússia contra a própria sociedade norte-americana nas eleições de 2016. São também estas redes que estão contribuindo para aproximar o conflito global, e torna-lo local, em países como o Brasil. Então, para entender as ameaças postas pelo novo contexto geopolítico, é igualmente fundamental o entendimento do papel reservado as novas tecnologias da informação e comunicação. É justamente esta arena digital um dos palcos centrais das disputas entre as potências globais.
2- Convergência tecnológica. Imiscuída nas disputas travadas entre as grandes potências se tem um salto qualitativo na integração do papel da informação na mediação das relações humanas. Ferramentas como Google, Youtube, Whatsapp, Facebook, Instagram, Apple, Baidu, Alibaba e Tencent dentre outras, permeiam as cada vez mais as dimensões econômicas e sociais.
Para além de retirarem da soberania do Estado nacional o seu conteúdo de dados coletados, visto que este é armazenado em território norte-americano (ou chinês), sua lógica de funcionamento na maioria das empresas, privilegiava completamente a desinformação. Empresas como o Google sobrevivem vendendo publicidade hiperseguimentada, em que todas as predileções de um indivíduo são detectadas, a partir de seu rastro online minuciosamente guardado, e utilizadas para promover vendas de produtos. Para isso, primeiramente, a empresa precisa que o “cliente” permaneça o maior tempo possível online, vez que transforma este tempo em anúncios, e lucro, obtendo novos rastros, o que realimenta infinitamente o ciclo. Para criar elevadas taxas de permanência, a promoção de conteúdo fantástico, espetaculoso, ou polêmico é a pedra angular. Um texto ou vídeo sobre terraplanismo, por exemplo, tenderá a ter muito mais repercussão do que qualquer narrativa científica sobre as rotações da terra. Como consequência desta lógica ordenadora, os algoritmos destas empresas foram promovendo paulatinamente a direita extremista, e seus conteúdos que evocam a idade-média. Todavia, cabe ressaltar que não existe inevitabilidade tecnológica. Foi uma escolha antes de tudo econômica, de cunho neoliberal, realizada por empresas que estão centralmente preocupadas em auferir ganhos de capital, em detrimento dos efeitos que causam nas diversas sociedades.
Outra dimensão de uso deste poder informacional envolve a projeção e estimativa de futuro comportamental. Desde meados dos anos setenta do século XX já existiam pesquisas comprovando a capacidade de reformatar as subjetividades dos indivíduos, existindo teóricos que defendiam seu emprego amplo, e até mesmo iniciativas da principal agência de espionagem norte-americana, a CIA, com o projeto MKUltra. Com vistas ao aprimoramento social, ou a vitória na guerra fria, o exercício de tal capacidade gerou uma forte reação da sociedade norte-americana balizada pelo Congresso, que limitou a pesquisa sobre o tema e seu emprego, dentro das fronteiras nacionais. Com o advento das novas tecnologias, e de toda uma dimensão informacional pouco normatizada, não somente pesquisas sobre a capacidade de moldar comportamentos foram retomadas, gerando comprovação científica sobre este fato, como as empresas tecnológicas passaram a empregar tais recursos em seu modelo de negócios.
Desta maneira, todo este histórico de navegação, comunicação e likes recolhidos sistematicamente permitem o estabelecimento de “pontos de entrada” para uma profunda análise comportamental dos indivíduos. Mais do que simples conteúdo, são as informações involuntárias o eixo fundamental da composição de perfis. As escolhas exercitadas, a quantidade de informações disponibilizada, as comunidades de que se participa, o mencionado e o ocultado, possibilitam a identificação de padrões de personalidade com elevado grau de precisão. Por conseguinte, mais do que aproveitar predileções, tem-se as condições perfeitas para influenciar atitudes e criar novos valores. A lógica não envolve identificar lacunas e aproximar fornecedor e cliente. Neste capitalismo hipercompetitivo, a força motriz destas empresas é acessar a subjetividade dos sujeitos, muitas vezes em uma esfera prévia ao pensamento, da capacidade formulatória, ainda na dimensão do instinto, e criar demandas.
Evidentemente, este nível de poder sobre as pessoas jamais ficará restrito a esfera comercial. Aliás, um equívoco analítico recorrente envolve o esquecimento de que as empresas digitais existem dentro das fronteiras nacionais, onde são obrigadas a colaborar com as necessidades de seus respectivos Estados. Nesta acepção, para além de promover produtos e criar novas necessidades, empresas como o Facebook forneceram dados para organizações especializadas em operações psicológicas. A Cambridge Analytica, por exemplo, conseguiu contribuir decisivamente para mudar o curso do Brexit britânico e das eleições nos EUA em 2016. Para a vitória de Trump, operaram com uma base de dados de oitenta e cinco milhões de cidadãos, com mais de quinhentos pontos de entrada sobre cada indivíduo. Ou seja, em certo sentido, conheciam mais medos, crenças e anseios destas pessoas do que as próprias. Com o denominado microtargeting entregaram propaganda extremamente personalizada, com a confecção de milhares de abordagens diferentes.
A Cambridge Analytica foi originada do SCL Group britânico (Strategic Communication Laboratories), que operava com ações de influência sobre países de terceiro mundo desde 1990. O modelo de operações psicológicas dos anglo-saxões prevê a utilização de um grande número de empresas privadas, que funcionam como um buffer para suas agências de inteligência. Uma vez que a empresa, mesmo atuando nas sombras, seja identificada, permite ao Estado controlador utilizar a negação plausível. No contexto dos países pertencentes ao tratado de espionagem de comunicações dos cinco olhos, ou Five eyes - Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos - é recorrente a transferência de funcionários públicos das agências de inteligência e forças especiais para a academia, ou a iniciativa privada, que prestam serviços em empresas atuando em diferentes locais do globo, quase sempre balizadas por seus países de origem.
De posse de todo este arcabouço de instrumentos privilegiados para intervenções sobre as subjetividades humanas, bem como o vínculo histórico com as agências de inteligência estatais, o poder destas organizações e dos Estados onde funcionam aumentará ainda mais com a convergência tecnológica em andamento. Tecnologias por si mesmas profundamente inovadoras e disruptivas como a telefonia celular 5G, o Big Data, a inteligência artificial, a computação quântica, e a internet das coisas, dentre outras, estão cada vez mais evoluindo de maneira conexa. Seus desdobramentos são avassaladores, e difíceis até mesmo de acompanhar, e, portanto, ainda mais desafiadores para se prever. Desta conjunção tecnológica, em um contexto de disputa multipolar, advirão consequências diversas, tais como as novas redes globais, a eventual balcanização da internet, a ubiquidade da informação, os veículos autônomos, a conquista do espaço próximo e a robotização do campo de batalha.
As operações de informação (ou guerras hibridas se forem os russos) terão capacidade não somente de mudar percepções e compreensão da realidade de amplos setores sociais, que fornecerão informação involuntária sobre seus hábitos a cada segundo, como também poderão permitir ações cinéticas na realidade. A exemplo das sabotagens cibernéticas de Israel e Estados Unidos sobre as centrifugas do programa nuclear iraniano, usinas ou fabricas poderão ter seus processos produtivos solapados, sistemas elétricos poderão ser danificados, e até mesmo carros ou aviões poderão ter seu uso adulterado, tornando-se armas, vez que seus controles sejam assumidos por terceiros. Para além das ações indiretas, existe uma corrida entre as potências por aviões, navios e submarinos, dentre uma imensa miríade de armas autônomas e articuladas. Operando integradas em rede, com uma única consciência situacional, a velocidade com que o algoritmo seleciona e engaja um alvo, bem como reposiciona suas forças de acordo com as mudanças do adversário, tornarão obrigatório o emprego destes recursos por todas as nações relevantes em termos militares. Está em curso a denominada “guerra de algoritmos”, em que o software que conseguir ser mais rápido ao aplicar a inteligência artificial no conflito, mesmo que um milissegundo, tem maior potencial para promover a vitória. Forças militares no mundo inteiro, como EUA e China estão repensando suas doutrinas de defesa nacional, bem como estão sendo remodeladas a luz da revolução em andamento, integrando armas autônomas, como o exército britânico, ou a marinha norte-americana.
Esta corrida, mais do que entre instituições militares, se dá entre parques tecnológicos nacionais, o que coloca em questão inclusive a capacidade dos Estados e suas forças armadas mobilizarem amplamente as universidades e empresas. O cerne da equação envolve o constante desenvolvimento de softwares, mais do que a criação de novos hardwares. Como os atores privados se tornaram gigantescos, os Estados não conseguem mais serem efetivos na competição em curso, se tentarem controlar diretamente todo o processo de pesquisa. A estratégia adotada nos EUA, por exemplo, envolve a criação de empresas de capital de risco, a exemplo da InQtel, pertencente a CIA, que atua financiando e promovendo a integração de tecnologias promissoras de uso dual, sob o viés de inteligência e defesa. Um exemplo ilustrativo desta lógica foi o da empresa Keyhole, financiada pela CIA, que criou um aplicativo de georreferenciamento, e posteriormente o vendeu para o Google, vindo este produto a se tornar o Google Earth e Google Maps. De súbito, o sistema de inteligência norte-americano passou a ter bilhões de pessoas atuando como colaboradores no processo de identificação de itens cartográficos. Ou seja, os cidadãos fornecem informações sobre áreas estratégicas, empresas de defesa ou posições militares em suas nações para uma empresa estadunidense, que por sua vez as coloca disponíveis para o estado deste país.
Cabe pontuar que esta conjunção entre mudanças geopolíticas profundas e revolução nos assuntos militares exerce, e vem exercendo, grande impacto nas forças de defesa brasileiras, e consequentemente no seu posicionamento político. Para além de correrem enorme risco de se tornarem acentuadamente defasadas, em que pese os enormes investimentos realizados no decorrer dos governos Lula e Dilma, passaram a cada vez mais ver os acontecimentos políticos internos sob a óptica da disputa global.
Para além daqueles setores movidos pelos clássicos interesses fisiológicos, criaturas encontradas em todo o espectro político e institucional brasileiro, em maior ou menor proporção, existem militares nacionalistas comprometidos com o que avaliam como melhor para o país. A questão é que seu método de análise é muitas vezes comprometido pelo positivismo comtiano, pela herança da lógica da guerra fria, por um conhecimento demasiado superficial do pensamento socialdemocrata, e sobretudo, pela aplicação de uma análise geopolítica derivada destes fundamentos equivocados. Por outro lado, conforme esta narrativa tenta corroborar, a centro-esquerda e esquerda conhecem pouco da ciência militar, superficialmente de seu pensamento, e sua própria visão geopolítica permanece presa no horizonte da ameaça imediata, os Estados Unidos, desconsiderando, ou relevando quase completamente as vilanias dos demais atores globais. Para além disso, a herança filosófica rousseauniana encara o homem de maneira demasiado positiva, conforme corrobora o sucesso do golpe de 2016. A princípio não foi surpreendente o posicionamento de empresários e militares contra o governo?
O maior desafio é que cada um deste atores, como é via de regra no comportamento humano, tende a projetar sobre o outro as obviedades contidas em sua própria forma de pensar, aprisionados em sua estrutura de conceitos e análise. Ironicamente, os setores radicalmente mais nacionalistas da sociedade brasileira, a esquerda e centro-esquerda, tornarem-se aos olhos dos militares seus principais adversários.
Para que se entenda esta contradição cabe juntar as camadas geopolítica e informacional sobre o pensamento militar e de defesa nacional.
3- Militares brasileiros e geopolítica. Mais do que os conflitos cisplatinos pelo domínio da Bacia do prata, desde os ataques de piratas buscando pau Brasil até as invasões francesas e holandesas, sempre existiu por parte do pensamento de defesa nacional a preocupação com uma eventual ocupação de porções do litoral ou da bacia do Amazonas por potências europeias. Esta apreensão determinou uma relação privilegiada para com os Ingleses durante a fase final do período colonial, e durante parcela significativa do império. Até mesmo uma jurisdição própria os ingleses tiveram assegurado em terra brasileiras, dado o seu status informal de garantidores da navegação e comércio marítimo. Posteriormente, os norte-americanos foram ocupando paulatinamente este papel, assumindo-o explicitamente durante a Segunda Guerra Mundial. Interessante notar que o continente Africano, sem um patrono de fato, foi quase inteiramente vitimado, enfrentando sua derradeira ocupação imperialista com a Itália invadindo a Etiópia em 1935. Se o mesmo fenômeno não voltou a acontecer nas Américas, não foi por mero acaso. As potências europeias sempre trataram com muito respeito a jovem nação norte-americana. Eventos como o bloqueio naval imposto pela Inglaterra, Alemanha e Itália a Venezuela de dezembro de 1902 a fevereiro de 1903 para cobrança de dívidas somente aconteceram porque os norte-americanos, a época, consideravam a doutrina Monroe válida tão somente para ocupações territoriais. Ante a promessa dos europeus de não realizarem qualquer tipo de invasão terrestre os EUA aquiesceram, mas em pouco tempo sequer o bloqueio foi permitido pelo governo estadunidense, que posicionou sua marinha na região, exigindo uma solução negociada, e a retirada das potências europeias. Em decorrência desta crise o corolário Roosevelt foi apresentado na mensagem de 1904 do Presidente ao Congresso dos EUA . Nela, o país se mostrava disposto a tomar militarmente nações do continente Americano que estivessem em crise devido a sua dívida externa. Tudo para evitar a presença de outras potências na região.
De fato, desde a Segunda Guerra Mundial a influência genérica da política norte-americana para o continente transbordou para a dimensão das relações pessoais na esfera das Forças Armadas brasileiras, e posteriormente das policias. Cursos na Escola das Américas e outras corporações, revista militar publicada em português, manobras conjuntas, doações de equipamentos gerando interoperabilidade (e dependência) se tornaram eventos cotidianos, que criam e aprimoram relações institucionais e pessoais, gerando em parcela das forças brasileiras uma incapacidade de perceber as diferenças de interesses do Brasil para com os EUA. O mesmo se dá em instituições policiais, cujos diversos contatos com o FBI, o DEA ou a CIA são recorrentes. Esta corrente de posicionamento derivada da quase total identidade com os “irmãos do norte” poderia ser denominada como setor castelista dentro destas corporações.
Por outro lado, como mencionado, igualmente existem nacionalistas nestas corporações, que aspiram a vivência independente do país, e sua existência autônoma. Mas, em sua maioria são atores pragmáticos, que avaliam existir uma enorme dependência por parte da defesa brasileira para com as forças armadas norte-americanas, particularmente a sua marinha. Tais setores tornaram notórias as suas perspectivas de independência sob Vargas, Geisel, Lula e Dilma, se tornando visíveis sempre que as condições geopolíticas permitiram. Todavia, dado o seu mencionado pragmatismo mesclado ao igualmente citado déficit analítico, não hesitaram em recuar subitamente quando as disputas internacionais se esgarçaram, e a margem de manobra para com os Estados Unidos encolheu. A questão não se relaciona somente ao receio de um conflito. Primeiramente, perceberão como aventureiros qualquer governo que entre em conflito aberto com a maior potência militar e informacional da história sem qualquer tipo de preparação consequente. E como desdobramento imediato refletirão sobre a ausência de redes de aliança que protejam o país de outros atores. Esta percepção se acentua ainda mais ante o panorama de revolução nos assuntos militares, e as decorrentes limitações das forças brasileiras, se consideradas as dimensões do tamanho do país, os recursos de que dispõe, e sobretudo, a arquitetura institucional anacrônica. Tais setores são denominados neste texto como os nacionalistas.
Sob a égide do acima exposto é possível pressupor que a partir do momento em que o governo estadunidense começou a confundir as ações do governo brasileiro buscando potencializar a multilateralidade, como uma escolha pela China e Rússia, a visão dos militares de ambas as correntes se modificou. Os castelistas, como simples correia de transmissão, tiveram mudança quase imediata, passando a antagonizar o governo de então. Os nacionalistas, por sua vez, provavelmente foram objeto de ações de influência com o fito de arquitetar a percepção de que o governo estaria desprestigiando as Forças Armadas, e fazendo explicitamente uma escolha geopolítica, sem estar preparado para as suas enormes consequências.
Neste contexto de fornecer explicações e motivos, entram em ação as operações de informação, que seria a última camada explicativa desta tessitura.
4- Guerra hibrida. Neste panorama de disputa global com alguns arsenais com armas atômicas, um conflito clássico nos moldes da primeira ou segunda guerras mundiais teria consequências devastadoras para todos os envolvidos, se tornando, portanto, quase uma impossibilidade. Por outro lado, em um mundo interconectado, em que dados são coletados e transmitidos de maneira cada vez mais ubíqua, os grandes atores globais criaram conceitos para maximizar suas vantagens, utilizando de maneira privilegiada a esfera do poder informacional. Enquanto norte-americanos buscaram exercer a hegemonia, economizando o emprego de forças cinéticas a partir da dominação informacional, seus adversários procuraram explorar assimetrias, levando o conflito para dimensões onde a supremacia da potência hegemônica não fosse tão absoluta. As redes se tornaram um dos instrumentos privilegiados desta conjuntura, atualmente denominada como conflito em área cinzenta, não paz, ou guerra hibrida. Presentemente se tem um quadro de acentuada disputa, e mudança na correlação de forças.
Os EUA, como criadores da internet, estabeleceram desde o início de sua popularização uma doutrina de operações de informação, para potencializar sua ascendente prevalência nesta esfera. Em meados da década de noventa do século passado, no apogeu do seu protagonismo, consolidaram a arquitetura global de informações a sua imagem e semelhança. Como herança desta primazia, presentemente ainda controlam os principais pontos de fluxo de dados, possuem a esmagadora maioria dos servidores que controlam os domínios da rede, proveem grande parte do conteúdo, tornaram o inglês a língua franca, suas empresas ainda são quase hegemônicas e os dados gerados pela maioria dos indivíduos e máquinas, embora coletados em escala global, são armazenados predominantemente sob a tutela do país.
Como benefício adicional, os EUA lideram diversas alianças globais de agências de espionagem cibernética. Conformado entre 1946 e 1948, o grupo mais exclusivo e antigo, e com mais compartilhamento de informações, é o mencionado Cinco Olhos (Five Eyes), composto por países anglo-saxões – Grã-Bretanha (CGHQ), Estados Unidos(NSA), Canadá(CSE), Austrália(ASD) e Nova Zelândia(GCSB). Para além dos membros plenos, essa aliança conta ainda com a participação das agências de sinais de países terceiros, que seriam Alemanha(BND), Japão(DIH), Noruega, Dinamarca, Itália, Irlanda(CIS), Coreia do Sul, Filipinas e Turquia. Outras duas alianças internacionais são as denominadas Sigint Seniors Europa e Sigint Seniors Pacifico. Ambas as redes são lideradas também pela NSA norte-americana e possuem 17 nações participantes ao todo. Compõem o Sigint Europa todas as agências de sinais dos Five Eyes, mais suas contrapartes da Bélgica, Dinamarca(FE), França(DGSE), Alemanha(BND), Itália, Holanda(JSCU), Noruega(NIS), Espanha e Suécia(FRA). Por sua vez, o Sigint Pacífico tem origem mais recente, em 2005, e possui como membros igualmente os Five Eyes, bem como Coreia do Sul, Singapura, Tailândia e, mais recentemente, em 2013, França e Índia.
Em que pese a hegemonia norte-americana e de seus aliados sobre o campo informacional, com amplo domínio das camadas centrais que compõem a Internet, computadores, softwares e telefonia, essa liderança não é mais incontestável. Potências como China(CMC) e Rússia(Spetssviaz), secundadas por Irã e Coreia do Norte, vêm atuando abertamente para minar a hegemonia dos EUA com o emprego de operações de informação. Todas essas nações têm igualmente como marco comum a atuação também defensiva, com o desenvolvimento de camadas de segurança separando seu ambiente de rede doméstico do restante da internet.
A título de exemplo, o caso da Rússia é emblemático. Não somente desenvolve medidas defensivas clássicas, como também está estabelecendo uma internet autônoma e um sistema de registros de domínio de rede próprio, que poderia substituir rapidamente o atual, cuja maior parte da estrutura está em território norte-americano. Ou seja, caso os EUA removam os endereços de sites e serviços russos da rede mundial sob seu controle, estes rapidamente começariam a operar com sua própria rede nacional, minimizando o caos que poderia ser resultante de uma medida desta magnitude. Aqui vale mencionar que não se investem recursos desse vulto em um projeto como este sem que exista uma leitura sombria sobre a evolução dos conflitos cibernéticos em médio prazo. Herdeira das capacidades militares soviéticas, mas frágil economicamente, a principal política russa tem sido a de, a partir de seus sofisticados serviços secretos, usar o ambiente informacional como meio de coleta de informações (espionagem) e também como instrumento para sabotagens e operações psicológicas em eventos como a guerra com a Geórgia em 2008, o conflito da Ucrânia entre 2014 e 2020 ou mesmo as eleições presidenciais norte-americanas em 2016, e posteriormente, as eleições em 2020.
A dimensão do poder informacional para os russos ainda é disputada primariamente na esfera das medidas militares e políticas, influindo ou sabotando adversários, o que receberia a denominação doutrinária por parte de seus adversários de Guerra Híbrida. Como deficiência chave ainda teriam pouco controle do conjunto da rede ou dos aplicativos empregados nesta, uma vez que estão longe de ter uma economia forte para se tornarem um competidor tecnológico de primeira grandeza.
Paralelamente, a China se diferencia da Rússia e das demais potências de médio e pequeno porte acima citadas quanto à dimensão do desafio à potência dominante, bem como pelas armas empregadas. Ainda no início da década de 90 do século passado, impactados ante a superioridade norte-americana durante a Guerra do Golfo, o Estado adotou o conceito de Guerra Irrestrita como estratégia de disputa. Sob este viés, os chineses consideraram a tecnologia da informação como profundamente revolucionária por permear todas as demais tecnologias. Segundo sua leitura, essa ampla proliferação informacional teria a capacidade de modificar as relações sociais, alterando a dimensão em que são travados os conflitos humanos. Para os estrategistas chineses, “esse tipo de guerra significa que todos os meios estarão prontos, que a informação será onipresente e o campo de batalha estará em todo lugar” (Qiao Liang; Wang Xiangsui. Unrestricted Warfare). Seguindo essa lógica a China utilizou a década de 90 e início do novo milênio para tomar medidas defensivas, como o Projeto Escudo Dourado, ao mesmo tempo em que explorava os pontos de fragilidade dos EUA conjugando ações econômicas, informacionais, sabotagens tecnológicas e espionagem de patentes e segredos comerciais em ampla escala, a serviço da construção de uma poderosa economia, sobretudo no segmento de comunicações e de tecnologia da informação.
Uma vez bem-sucedidos, já como segunda economia do mundo, os chineses entraram em uma etapa de disputa aberta em diversas esferas para com a supremacia norte-americana, transformando-se em potência desafiante. Iniciativas bilionárias como a Rota da Seda Digital objetivam construir uma infraestrutura tecno informacional alternativa para a rede mundial sob liderança chinesa. Para além disso, uma das principais esferas de disputa envolve, justamente, o controle da internet móvel, o que se traduz na disputa pela hegemonia tecnológica das redes 5G.
Como se pode inferir, o Brasil não participa de nenhuma rede de alianças de Inteligência de sinais, no ocidente ou oriente, tão pouco possui agência especializada no tema, e seu aparato de inteligência ainda remonta a guerra fria, sendo considerado de segunda-classe. Na medida em que os EUA hipoteticamente tenham iniciado operações de informação no país para desgastar o governo Dilma, o Estado brasileiro teria poucos instrumentos institucionais para identificar rapidamente a origem de tais ações. Este tipo de ação, no caso norte-americano, normalmente conduzida pela CIA, com apoio da NSA e países da Otan, rapidamente conseguiria o apoio dos militares castelistas e de setores da segurança. Igualmente contaria com o apoio dos “liberais”, que desde a Aliança Liberal de 1930 com Afonso Pena, passando por Lacerda em 1954/64 e chegando na Faria Lima de 2016 estão permanentemente à procura de um atalho para chegarem ao poder. Para além da temática “corrupção”, tema privilegiado de tais operações, agregaram várias outras temáticas de cunho sexista, conspiratório, sobre condições cognitivas. Com o foco nos militares nacionalistas, aplicaram doses de um forte viés de advertência sobre o governo estar fazendo uma escolha geopolítica. Isso se traduziu na esfera mais ampla por alertas reiterados sobre o perigoso foro de São Paulo, bolivarianismo, chavismo, médicos cubanos, aquisições de empresas por chineses, dentre vários outros.
Conclusões pontuais
A esquerda e centro-esquerda governante não conseguiram reagir com todo o potencial que teriam a seu serviço, justamente por serem vitimadas no decorrer de anos por um conjunto de operações que desconheciam quase completamente. Não se sabiam técnicas, propósitos e tão pouco motivações.
Em que pese a substancial interseção de agenda programática comum entre os setores nacionalistas das Forças Armadas e os objetivos de defesa do campo democrático-popular, tais atores tornaram-se subitamente grandes adversários, em um hiato de tempo diminuto. Como este texto tenta evidenciar, uma das explicações envolve o baixo conhecimento recíproco. Neste sentido, ainda, a compreensão de cada uma das partes sobre a outra é profundamente limitada.
No tocante a esquerda brasileira, ao desconhecer parte da mecânica das relações de poder globais, da evolução tecnológica e do pensamento militar nacionalista será difícil reunificar o país de maneira a que se tenha estabilidade para o governar. Ao igualmente desconhecer, quase perpetuamente, o modus operandi das agências de espionagem das grandes potências, os governos do campo popular democrático serão recorrentemente atacados, permanecendo eternamente na defensiva, mesmo quando se mantem no poder, como se deu no governo Lula.
Cabe a construção de políticas que permitam enfrentar adequadamente esta realidade, e o primeiro desafio é tentar compreendê-la adequadamente.
Desafios de formulação
A análise acima descrita expressa tão somente uma visão de limitado espectro sobre deficiências atuais que o Partido dos Trabalhadores possui em termos programáticos e de formulação política. Evidentemente, o processo golpista sobre o governo Dilma foi muito mais complexo do que os aspectos abordados, e envolve diversas dimensões, como a econômica e cultural, não tratadas aqui, visto não ser este o propósito do texto.
Postas estas considerações consideramos como tarefa primordial da Fundação Perseu Abramo ajudar a preparar o conjunto do Partido dos Trabalhadores, bem como os setores democráticos e progressistas, com uma política que permita enfrentar diretamente os atores internacionais que venham a intervir no país novamente, e que não se restringirão aos EUA, ao que tudo indica. Como se pode concluir, como sinal dos tempos, o emprego de desinformação, operações psicológicas, espionagem e sabotagem tende a se ampliar exponencialmente. É um fenômeno que se tornou permanente. Tal qual o fluxo da água, o caminho do conflito busca os territórios onde o adversário é mais frágil, ou onde suas vantagens não são tão esmagadoras. Ante as limitações nucleares postas no enfrentamento aberto, a exploração assimétrica de conflitos mediante guerras hibridas ou irrestritas e operações de informação serão cada vez mais recorrentes.
Como é difícil enfrentar um conflito, mesmo que de terceiros, somente permanecendo na defensiva, é primordial que um governo democrático-popular prepare a sociedade e o Estado nacional para lidar com tais desafios. Neste sentido, cabe a FPA ajudar desde já na construção de políticas que permitam um salto de qualidade nestas questões. Para isso minimamente três aspectos devem ser considerados.
Primeiro. Construir amplamente um modelo mental que permita a percepção deste conjunto de eventos, travados no campo do conflito entre potências internacionais a partir das tecnologias digitais, mas sobre território físico e cognitivo brasileiro. Quando do golpe de 2016, cujos primeiros movimentos se iniciaram em 2012, alertas reiterados foram emitidos, alcançando ministros de governo, secretários de Estado, parlamentares e dirigentes nacionais. Vale lembrar que não se tratou de uma quartelada clássica, de ocupação militar. Existiam ainda forças dentro de algumas das esferas do Estado e dos movimentos sociais que poderiam ter atuado de maneira efetiva na disputa pela narrativa, e na contraposição de setores que atuavam sabotando dentro das instituições federais. O fato de a esquerda brasileira ter obtido a prevalência em esfera mundial na disputa de versões sobre o golpe, sobre o governo Temer, a prisão do Lula e o governo Bolsonaro é expressão deste potencial. O cerne da questão sobre a quase passividade do governo envolvia a ausência de compreensão plena sobre o contexto global, as reais motivações dos atores, e sobretudo, quanto aos métodos empregados e como responder a estes. Em uma pequena analogia histórica, foi tal como quando os astecas se depararam com os espanhóis, envoltos em armaduras, com canhões, mastins e corcéis de batalha. Embora os habitantes das américas fossem milhões, e os espanhóis centenas, os astecas simplesmente não conseguiam compreender o que eram, queriam, e o seus propósitos. Em que pese a superioridade tecnológica espanhola, de posse dessa compreensão teriam expulsado Hernán Cortés e companhia, afinal eram milhões, bastava terem se adequado ao novo tipo de guerra trazida pelo invasor. Mas, o fato é que não entenderam.
O aspecto central, é que passados quase dez anos do início deste processo as questões aqui tratadas ainda parecem quase fantasiosas, exigindo o emprego constante de lastros para sustentar o seu debate. No contexto de 2012 então, os governos petistas sequer imaginavam a dimensão da espionagem que a nação sofria, e tão pouco compreendiam como esta dimensão das relações entre potências funcionava. Em conjunção com a predisposição em um olhar rousseauniano sobre a natureza humana, sobretudo quanto a natureza da “elite” brasileira, tornavam completamente inverossímil informações que davam conta de ao menos parte da dimensão e a magnitude do que se passava. Para que qualquer governo de centro-esquerda tenha chance de sobreviver em um panorama tão tumultuado na esfera internacional e nacional é, portanto, tarefa primordial disseminar uma leitura de realidade com maior aproximação sobre estes desafios, e as tarefas para enfrentá-los.
Segundo. É fundamental incorporar no programa político a estratégia nacional de defesa por parte do Partido dos Trabalhadores, e de maneira ainda mais explícita a busca pela autonomia brasileira na esfera internacional. Em primeiro lugar, cabe observar que todos os programas que vem recompondo as capacidades das Forças Armadas brasileiras foram lastreados a partir do estabelecimento do Programa Nacional de Defesa em 2005, e da Política Nacional da Indústria de Defesa – PNID, em 2005, tendo sua origem estratégica, conceitual e operacional nos governos Lula e Dilma. Submarino nuclear e convencionais, caça Griphen NG, avião de transporte KC 390, o míssil tático de cruzeiro AV-TM 300 e o foguete guiado SS-40, articulados com o projeto de sistema lançador Astros 2020, o blindado de transporte Guarani, dentre vários outros armamentos avançados que vem sendo produzidos nacionalmente. Todavia, não existe clareza no conjunto da sociedade, e mesmo dentro das Forças Armadas, que tais iniciativas foram provenientes de uma concepção de independência nacional e luta pela soberania. Não existe porque não foi escrito ou narrado a exaustão, e porque não foi incorporado no discurso político cotidiano. Neste sentido é fundamental que o programa partidário explicite categoricamente a política internacional de não alinhamento e da busca pela prevalência da multilateralidade, assim como a política de edificação de Forças Armadas, providas de técnicas e tecnologias adequadas a defesa nacional, bem como garantidoras afetivas de patrimônios nacionais como o pré-sal. É necessário publicizar que o país se equipará adequadamente com o propósito prioritário de se defender das potências imperialistas, que saquearam e saqueiam o planeta, e não para oprimir ou ameaçar os povos irmão latino-americanos. Cabe ressaltar que, em que pese o grande impulso dado pelas políticas de defesa nacional nos governos democrático-populares petistas, com o presente processo de ruptura tecnológica em curso, com desenvolvimento de armamentos autônomos, e uso intensivo de inteligência artificial, as forças de defesa brasileiras correm o risco de, novamente, contarem com equipamentos obsoletos, bem como doutrina ultrapassada.
Embora parte dos militares brasileiros, ao ocuparem milhares de cargos comissionados do governo federal, reproduzam um discurso de excelência profissional a disposição da sociedade, esta narrativa está bastante distante da realidade, e essa contradição deve ser explicitada. Conquanto o orçamento de defesa seja um percentual pequeno do PIB, o Brasil é atualmente o décimo primeiro (11º) orçamento militar do mundo. Isso em uma região sem conflitos com vizinhos. Ou seja, as ameaças são estratégicas e tendem a ser difusas para o cidadão comum, dificultando o apoio a grandes aportes do erário. Do total recebido, estima-se em cerca de 5% o valor reservado à pesquisa na dotação orçamentária das Forças Armadas, em um contexto de acelerada corrida tecnológica entre os grandes atores mundiais. Atualmente, cerca de 80% dos gastos são com pessoal. Por mais que em anos futuros seja aumentado o financiamento da área, o que não se configura como simples no contexto brasileiro, essa proporção gasta atualmente deve ser radicalmente alterada ao longo dos próximos anos. Um piso de 20% a 30% de recursos para pesquisa e aquisições tecnológicas nacionais seria o mínimo a ser alcançado até a próxima década, sob o risco de, ao longo do tempo, a estrutura de defesa cair quase na irrelevância, em termos de capacidade de dissuasão. Para isso, a exemplo da reestruturação britânica em curso, o orçamento poderá chegar aos 2% do PIB, mas será necessário diminuir o tamanho do efetivo, e as benesses acumuladas, de maneira a dispor de recursos para investimento tecnológico massivo. Neste sentido algumas medidas podem ser pensadas, tais como: a)Investimento nos clusters tecnológicos nacionais e centros de pesquisa estatais, com financiamento de projetos de uso dual, a exemplo do Darpa, que criou o Personalized Assistant that Learns (PAL) (2016) com o objetivo de produzir um assistente virtual que compreenda comunicações por voz e que aprenda com a experiência, assessorando seu operador militar. No ambiente castrense, esse produto recebeu a denominação de Battle Command 10. Paralelamente, o Departamento de Defesa dos EUA (DoD) encorajou o emprego do software em smartphones, com a criação da Siri Inc, que em 2010 foi comprada pela Apple, que integrou a funcionalidade em sua linha de iphones e ipads; b)Relevância estratégica das ciberforças, com ampliação massiva dos efetivos, recrutados preferencialmente junto às universidades e empresas, bem como política de aquisição tecnológica de origem brasileira. Igualmente importante seria a criação de uma agência ou instituição voltada para a inteligência de sinais, com o foco em suporte na tomada de decisões e não no conflito; c)Mudança no horizonte estratégico da política e estratégia nacional de defesa, repensando propósitos, número dos efetivos, composição, qualificação necessária, bem como novos projetos tecnológicos de médio e longo prazo que considerem o impacto da revolução promovida pela incorporação de IA na dimensão militar, bem como o contexto global de conflitos velados. Um norteador como balizador de longo prazo seria a plena incorporação das táticas assimétricas de negação de área e acesso (AD/A2).
Terceiro. Os governos democrático-populares brasileiros foram prováveis vítimas de ações de outras potências, sobretudo a norte-americana, em conjunção com os tradicionais aliados no meio empresarial, juntamente com os castelistas das forças armadas, ao menos em três ocasiões antes mencionadas. A campanha de acusações contra Getúlio Vargas, que culminaram em seu suicídio em 1954; a preparação do golpe e o próprio golpe militar de 1964, e o conjunto de operações de influência que resultaram no golpe sobre o governo Dilma, em 2016. É necessário aprender com a história, afinal um Partido como o dos Trabalhadores tem uma imensa responsabilidade para com o conjunto da sociedade brasileira. A luz destes eventos recentes, faz-se necessário compreender que inexoravelmente se terá que lidar novamente com variados adversários externos e internos. Ao estabelecer políticas que busquem a autonomia tecnológica e inserção internacional soberana, que potencializem o crescimento econômico e distribuição de renda, e a integração solidária com a América do Sul, necessariamente grandes interesses se sentirão ameaçados. Os espaços políticos e econômicos de certa maneira são finitos. A partir do momento em que um país do porte do Brasil ocupa a dimensão que naturalmente lhe cabe entre as demais nações, o poder é deslocado. Os atores internacionais e seus acólitos locais sempre atuarão buscando desestabilizar os governos populares. E, diferentemente do que se espera de uma oposição em uma democracia, irão atuar espionando, sabotando, e sobretudo, desinformando, com o óbice de criar o caos, operando em maior ou menor escala para tornar o país ingovernável. Como o passado demonstra, as operações de informação, guerras irrestritas ou guerra hibridas, ocorreram, estão ocorrendo e irão ocorrer novamente, ainda mais neste contexto de rivalidade global. O campo democrático-popular tem que apresentar política e estratégia para responder a realidade que irá encontrar. Em uma equação, quando não se alteram os parâmetros, os resultados tendem a serem os mesmos.
Propostas:
Criação de um NAPP de Inteligência e Defesa para a construção política e programática
Realização de cursos e seminários sobre guerra hibrida, operações de informação, disputa tecnológica, inteligência artificial, dentre outros.
Construção de uma estrutura narrativa que permita questionar de maneira imediata a alocação de recursos por parte das Forças Armadas, bem como suas prioridades estratégicas.
Construção de uma estrutura narrativa que questione a efetividade da defesa cibernética brasileira, e sua capacidade de reação as ações de espionagem, sabotagem e desinformação de outras potências;
Construção de uma política que estabeleça punições para as empresas digitais que promovam em seus algoritmos a desinformação, bem como compartilhem entre aplicativos informações coletadas de seus usuários.
Explicitação da posição de independência nacional, em que o país deverá se posicionar em defesa da multilateralidade internacional, não se perfilando a qualquer bloco de potências.
Dentre outras...
Para maior aprofundamento:
Vladimir Brito. Poder informacional e desinformação. 2015.