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Darwin, Engels e a teoria da evolução (2023)

Neste ensaio discute-se as contribuições científicas de Charles Darwin e a relação com a dialética materialista que marca o conhecimento científico do século XIX. Para tanto, são analisadas as obras Darwin e cotejadas algumas de suas contribuições com as pesquisas acadêmicas recentes acerca da evolução das espécies. Conclui-se, a partir dessa análise, a intrínseca relação da dialética materialista com o conhecimento científico desenvolvido nos últimos séculos.

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BOLETIM DE CONJUNTURA BOCA Ano V | Volume 14 | Nº 41 | Boa Vista | 2023 http://www.ioles.com.br/boca ISSN: 2675-1488 https://doi.org/10.5281/zenodo.7894112 BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023 43 www.ioles.com.br/boca DARWIN, ENGELS E A TEORIA DA EVOLUÇÃO Michel Goulart da Silva1 Resumo Neste ensaio discute-se as contribuições científicas de Charles Darwin e a relação com a dialética materialista que marca o conhecimento científico do século XIX. Para tanto, são analisadas as obras Darwin e cotejadas algumas de suas contribuições com as pesquisas acadêmicas recentes acerca da evolução das espécies. Conclui-se, a partir dessa análise, a intrínseca relação da dialética materialista com o conhecimento científico desenvolvido nos últimos séculos. Palavras Chave: Darwin; Dialética; Engels; Evolução. Abstract This essay discusses Charles Darwin's scientific contributions and their relationship with the materialist dialectic that marks scientific knowledge in the 19th century. To this end, Darwin's works are analyzed and some of his contributions are compared with recent academic research on the evolution of species. It is concluded, from this analysis, the intrinsic relationship of the materialist dialectic with the scientific knowledge developed in the last centuries. Keywords: Darwin; Dialectic; Engels; Evolution. INTRODUÇÃO Em um texto clássico, Friedrich Engels se referiu à evolução humana como a “transformação do macaco em homem”. Muitos dos primeiros críticos da teoria da evolução polemizavam justamente em torno dessa “origem simiesca” do homem, que precisou ser provada contra as crenças da época. O alemão Ernst Haeckel, teórico da evolução, afirmou em polêmica contra as interpretações religiosas: “a maravilhosa ‘alma do homem’ seria, segundo se afirma, uma ‘substância’ completamente especial, e muitos são os que consideram como impossível que se tenha desenvolvido historicamente a partir da ‘alma símia’” (HAECKEL, 1989, p. 21). Outro defensor da teoria da evolução, Thomas Huxley, escrevendo em defesa de A origem das espécies, de Charles Darwin, afirmou pouco depois da publicação do livro: [...] os religiosos, leigos e eclesiásticos condenaram-no com uma zombaria moderada que até parece caridosa; os fanáticos condenam-no com invectivas ignorantes; os conservadores o consideram um livro decididamente perigoso, e até pessoas cultas citam autores antiquados para mostrar que seu autor não é melhor do que um homem macaco (HUXLEY, 2006, p. 21). Passado o século XIX, os teóricos da evolução sofreram as mais diferentes críticas, grande parte em decorrência de interpretações errôneas de suas hipóteses, embora suas descobertas tenham sido, de forma geral, não apenas comprovadas como aprofundadas pelas ciências biológicas. Pode-se afirmar que 1 Técnico em Assuntos Educacionais do Instituto Federal Catarinense (IFC). Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected] BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023 44 www.ioles.com.br/boca [...] a teoria da evolução revolucionou nossa maneira de ver o mundo natural. Antes de Darwin, o enfoque dominante entre os cientistas era o de que as espécies eram imutáveis, tendo sido criadas por Deus para funções específicas na natureza. Alguns aceitavam a ideia da evolução, mas de forma mística, dirigida por forças vitais que davam lugar à intervenção decisiva do Ser Supremo. Darwin rompeu com essa visão idealista (WOODS; GRANT, 2007, p. 364). Embora as teses acerca da evolução humana defendidas por Darwin tenham sido aceitas desde suas primeiras exposições públicas, em especial por meio da obra A origem das espécies, originalmente publicada em 1859, as causas e os mecanismos da evolução, cujos fundamentos estão na seleção natural, demoraram a ser aceitos. Esse debate foi solucionado a favor de Darwin apenas por volta da década de 1940. Sabe-se que a falta de popularidade da teoria da evolução no século XIX [...] deve-se principalmente à negação da existência de um progresso geral inerente ao funcionamento da evolução. A seleção natural é uma teoria de adaptação local a meios ambientes cambiantes. Não propõe princípios aperfeiçoantes, não garante melhoria geral; em suma, não fornece motivos para uma aprovação geral num clima político que favorecia a ideia do progresso como inato à natureza (GOULD, 1999, p. 36). Se o principal fundamento das teses darwinistas precisou de quase um século para mostrar sua validade, há elementos importantes na obra de Darwin ainda hoje pouco explorados. Um desses temas parece ter sido pouco percebido até mesmo por autores marxistas, embora seja um ponto de contato entre as duas teorias: o trabalho e sua relação com o processo de evolução. Essa questão foi apontada mais recentemente por John Bellamy Foster. Marx e Engels, segundo Foster (2005, p. 284): [...] viam a relação humana com a terra em termos co-evolucionário – uma perspectiva crucial para uma compreensão ecológica, visto que ela nos permite reconhecer que os seres humanos transformam o seu meio ambiente não inteiramente conforme a sua escolha, mas com base em condições dadas pela história natural. Contudo, quando se discute a relação da evolução humana com o trabalho, as pesquisas limitamse à observação da sequência de diferentes ferramentas utilizadas pelos hominídeos ao longo de sua história, dos metais utilizados ou da descoberta e o uso do fogo para diferentes funções. Entretanto, apesar do contexto ideológico conservador e da pouca maturidade das pesquisas arqueológicas na época de Darwin, suas análises traçavam a divisão a divisão “entre as forças completamente internas aos organismos – que determinavam a variação entre indivíduos em uma população – e as externas – forças autônomas moldando os ambientes nos quais os organismos, por acidente, estavam” (LEWONTIN; LEVINS, 2022, p. 47-8). Nesse sentido, Darwin afirmava a respeito da vida em sociedade e do uso de ferramentas: BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023 45 www.ioles.com.br/boca [...] a escassa força e velocidade que o homem possui, a sua penúria de meios naturais, etc., são mais do que contrabalançados, em primeiro lugar, pelos poderes intelectivos, com os quais providenciou os meios, os instrumentos, etc., enquanto se encontrava ainda num estado de barbárie, e, em segundo lugar, pelas suas qualidades sociais que o levaram a prestar ajuda aos seus companheiros ou deles recebê-la (DARWIN, 1974, p. 81). O ser humano, portanto, diferencia-se dos demais animais pela capacidade de adaptar-se a diferentes contextos, intervindo coletivamente na natureza e construindo ferramentas que possibilitem a ele mediar suas relações com o meio. Por outro lado, quanto à relação entre o trabalho humano e a adaptação local, em especial referência à forma ereta de caminhar, Darwin afirma: Tão logo um antigo membro da grande série dos primatas foi induzido a viver menos nas árvores por causa de uma mudança na sua maneira de providenciar os meios para viver ou por força de alguma alteração nas condições ambientais, a sua maneira habitual de proceder deve ter-se modificado: e assim deve ter-se transformado mais especificamente em quadrúmano ou bípede (DARWIN, 1974, p. 67). Ou seja, a especial ênfase dada nos textos de Engels à mudança de postura, em sua inter-relação com as formas de trabalho, possivelmente foi influenciada pelas elaborações do próprio Darwin. Essa 46 influência pode ser percebida quando afirma Engels (1985, p. 22-23): A nova concepção da Natureza ficava, assim, configurada em suas linhas gerais: tudo aquilo que se considera rígido, se havia tornado flexível; tudo quanto era fixo, foi posto em movimento; tudo quanto era tido por eterno, tornou-se transitório; ficara comprovado que toda a Natureza se movia num eterno fluxo e permanente circulação. Mesmo o conceito de divisão de trabalho, fundamental nas elaborações marxistas, pode ter sua relação aproximada à obra de Darwin. Este afirma que [...] os homens primitivos praticavam uma divisão do trabalho; cada homem não produzia os próprios instrumentos de pedra ou os rústicos utensílios, mas parece que alguns se dedicavam a este trabalho, recebendo sem dúvida em troca produtos da caça (DARWIN, 1974, p. 65). Dialogando com o pensamento de Darwin, pode-se afirmar, a partir do referencial marxistas, que o trabalho está diretamente associado ao metabolismo entre o ser humano e o meio natural. Fala-se em trabalho humano apenas quando uma determinada atividade modifica os materiais naturais e altera sua forma original. O trabalho é o processo que realiza a mediação entre o ambiente e o homem, quando este põe em ação as forças de que seu corpo está dotado – braços, pernas, cabeça, mãos –, transformando em produtos os elementos disponíveis na natureza, suprindo assim suas necessidades, não importando “se elas se originam do estômago ou da fantasia” (MARX, 1985, p. 45). BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023 www.ioles.com.br/boca O trabalho, entendido como ação deliberada sobre o meio e mediado pelas funções cerebrais e pela capacidade de abstração e formulação de conceitos, nada tem a ver com as atividades que realizam outros animais, como as abelhas ou as formigas. O homem, ao atuar “sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza” (MARX, 1985, p. 149). O trabalho não é ação realizada sobre o meio de forma instintiva ou mecânica, mas processo complexo de aprendizagem, no qual o ser humano, além de repetir ações e processos, como os outros animais, desenvolve técnicas e tecnologia que lhe são úteis. O ser humano se diferencia dos demais animais ao criar suas próprias ferramentas e sua ação não se limita a modificar os materiais que encontra disponíveis na natureza: No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e, portanto, idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade (MARX, 1985, p. 149-50). Um traço marcante de diferentes sociedades humanas, principalmente aquelas estudas por Friedrich Engels e Karl Marx, foi uma divisão do trabalho, que se deu em sociedades pré-escravistas em função de características fisiológicas, como gênero, idade, força física etc. Contudo, à medida que as relações de trabalho se diversificaram e a técnica e a tecnologia se tornaram mais complexas, essas primeiras formas de divisão foram substituídas pela divisão entre “divisão entre trabalho material e [trabalho] espiritual” (MARX; ENGELS, 2007, p. 35). Passava a haver, quanto à função imediata do indivíduo no meio social, a aparência de um trabalho realizado pela mente e outro pelas mãos. Nas palavras de Manacorda (1991, p. 67): [...] a divisão do trabalho condiciona a divisão da sociedade em classes e, com ela, a divisão do homem; e como esta se torna verdadeiramente tal apenas quando se apresenta como divisão do trabalho manual e trabalho mental, assim as duas dimensões do homem dividido, cada uma das quais unilateral, são essencialmente as do trabalhador manual, operário e do intelectual. A divisão do trabalho limitou cada indivíduo a esferas profissionais particulares e exclusivas; na relação mais imediata com a esfera da produção, cada indivíduo está limitado a classes ou profissões específicas, podendo ser escravo, senhor, servo, caçador, operário, burguês, professor, administrador etc. Por outro lado, o trabalho e seus produtos passaram a ser, qualitativa e quantitativamente, distribuídos de forma desigual, formando estratos sociais responsáveis pela administração e pela segurança. Nesse sentido, entende-se que “as condições sob as quais determinadas forças de produção podem ser utilizadas são as condições da dominação de uma determinada classe da sociedade, cujo poder social, BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023 47 www.ioles.com.br/boca derivado de sua riqueza, tem sua expressão prático-idealista na forma de Estado existente em cada caso” (MARX; ENGELS, 2007, p. 42). ENGELS E O MACACO Embora mais conhecido como um dos pioneiros do materialismo histórico, Engels dedicou parte de sua vida intelectual ao estudo das chamadas Ciências Naturais. No texto intitulado Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem, publicado postumamente, Engels afirma que o trabalho é “condição básica e fundamental de toda a vida humana”, sendo possível afirmar que, em certo sentido, “o trabalho criou o próprio homem” (ENGELS, 1986, p. 269). Segundo John Bellamy Foster, o consenso da comunidade científica, até o início do século XX, era radicalmente oposto ao tipo de explicação oferecida por Engels. Enfatizava-se o desenvolvimento do cérebro como o ímpeto subjacente à evolução humana, nutrindo-se a expectativa de que os “elos que faltavam” entre os primatas e os seres humanos, quando fossem descobertos, mostrariam um cérebro num nível intermediário de desenvolvimento. Contudo 48 [...] estas expectativas foram a pique com a descoberta, a partir do início da década de 1920, do gênero Australopithecus, que remontava a até quatro milhões de anos. O cérebro do Australopithecus era apenas levemente maior e em geral a relação cérebro-corpo era a mesma de um macaco. Não obstante, os australopitecos eram claramente espécies hominídeas, de postura ereta, já exibindo mãos (e pés) desenvolvidas e fabricando artefatos (FOSTER, 2005, p. 282). Engels analisa em seu ensaio as transformações na relação entre a humanidade e o restante da natureza e de que forma sua intervenção sobre o meio ambiente influenciou a formação da própria sociedade. Engels afirma que o trabalho e a fabricação de diferentes instrumentos favoreceram a “transformação do macaco em homem”, um processo lento que inclui, entre outros elementos, o desenvolvimento de certas características físicas, como a mão, a fala e o próprio cérebro. Para Engels, o fato de um grupo de macacos, há alguns milhões de anos, ter deixado de necessitar das mãos para caminhar, passando a adotar cada vez mais uma posição ereta e deixando as mãos livres para executar as mais variadas funções, foi o “passo decisivo para a transição do macaco em homem”. Antes as mãos eram usadas apenas em tarefas como “recolher e sustentar alimentos (...) construir ninhos nas árvores (...) construir telhados entre os ramos (...) empunhar garrotes, com os quais se defendem de seus inimigos, ou para os bombardear com frutos e pedras” (ENGELS, 1986, p. 26970). Quando desceram das árvores e fizeram uso da postura ereta, nossos ancestrais adaptaram as mãos a novas tarefas. Embora nesse período de transição a mão cumprisse funções bastante simples, ela BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023 www.ioles.com.br/boca adquiriu ao longo do tempo mais destreza e habilidade, transmitindo de geração em geração essa flexibilidade adquirida. Para Engels, a mão é produto do trabalho. No longo processo decorrido de humanização a mão se adaptou a novas funções, “pela transmissão hereditária do aperfeiçoamento especial assim adquirido pelos ossos” e “pela aplicação sempre renovada dessas habilidades transmitidas a funções novas e cada vez mais complexas” (ENGELS, 1986, p. 270). Também, além da questão da hereditariedade, Engels dialoga com Darwin quando corrobora a lei de “correlação de crescimento”, segundo a qual “certas formas das diferentes partes dos seres orgânicos sempre estão ligadas a determinadas formas de outras partes, que aparentemente não tem nenhuma relação com a primeira” (ENGELS, 1986, p. 271). Dessa forma, a mão seria beneficiada, de alguma forma, pelo que beneficia todo o corpo, ou seja, “o aperfeiçoamento gradual da mão do homem e a adaptação concomitante dos pés ao andar em posição ereta exercem indubitavelmente, em virtude da referida correlação, certas influências sobre outras partes” (ENGELS, 1986, p. 271). Engels também destaca a fala como característica essencial da evolução do homem, na medida em que os humanos vivem coletivamente, se comunicam e comunicam o que aprendem e observam, levando à necessidade de desenvolver uma linguagem articulada, que pudesse expressar ideias, conceitos, signos etc. Em função do progressivo domínio da natureza e do desenvolvimento de novas técnicas, o homem aos poucos foi descobrindo nos objetos propriedades que até então não conhecia, ao passo que [...] o desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os casos de ajuda mútua e de atividade conjunta, e ao mostrar assim as vantagens dessa atividade conjunta para cada indivíduo, tinha que contribuir forçosamente para agrupar ainda mais os membros da sociedade (ENGELS, 1986, p. 271). Isso explicaria o surgimento da linguagem, no processo em que o organismo sofreria várias modificações: [...] a laringe pouco desenvolvida do macaco foi-se transformando, lenta mas firmemente, mediante modulações que produziam por sua vez modulações mais perfeitas, enquanto os órgãos da boca aprendiam pouco a pouco a pronunciar um som articulado após o outro (ENGELS, 1986, p. 271). Segundo Engels, o trabalho e a palavra articulada “foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano” (ENGELS, BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023 49 www.ioles.com.br/boca 1986, p. 272). Com o desenvolvimento do cérebro, desenvolvem-se também os sentidos, que são os instrumentos de contato mais imediato com o meio. Para Engels (1986, p. 272): [...] da mesma forma que o desenvolvimento gradual da linguagem está necessariamente acompanhado do correspondente aperfeiçoamento do órgão do ouvido, assim também o desenvolvimento geral do cérebro está ligado ao aperfeiçoamento de todos os órgãos dos sentidos. Esse desenvolvimento – do trabalho, da linguagem, da capacidade de abstração, dos sentidos –, “em grau diverso e em diferentes sentidos entre diferentes povos e as diferentes épocas”, segundo Engels (1986, p. 272), foi o fator determinante para que o homem e a própria sociedade também se desenvolvessem. ENGELS E O HOMO ERECTUS Sabe-se hoje, em função das pesquisas arqueológicas desenvolvidas ao longo do século XX, que o Homo erectus, que viveu há cerca de 2 milhões de anos, é o ancestral mais antigo do Homo sapiens, o humano moderno: O Homo erectus foi a primeira espécie humana a utilizar o fogo; a primeira a incluir a caça como parte significativa de sua subsistência; a primeira capaz de correr como os humanos modernos o fazem; a primeira a fabricar instrumentos de pedra de acordo com um padrão definido; a primeira a estender seus domínios para além da África (LEAKEY, 1997, p. 13). Sabe-se do grande número de espécies que evoluíram a partir de ancestrais comuns ao macaco, todas bípedes embora com fortes características simiescas: cérebro pequeno, dentes molares grandes, maxilares protuberantes e um modo de subsistência semelhante ao do macaco. Pouco se sabe de como viveram, como morreram, e mesmo quantas foram exatamente essas diferentes espécies. Mas sabe-se que, entre 2 e 7 milhões de anos atrás, grande quantidade de espécies de macacos bípedes evoluiu, sofrendo variações em sua constituição biológica e adaptando-se a diferentes condições ambientais, e que essas espécies se assemelhavam com os humanos em alguns aspectos, como o modo de andar. Como a sinalizar a origem do gênero Homo ou de espécies com ele assemelhadas, “em meio a essa proliferação de espécies humanas houve uma, entre 3 e 2 milhões de anos atrás, que desenvolveu um cérebro significativamente maior” (LEAKEY, 1997, p. 14). Esses ancestrais humanos começaram a produzir suas primeiras ferramentas, batendo duas pedras uma contra a outra, o que propiciou a eles, entre outras coisas, o acesso a alimentos até então inacessíveis. “Os primeiros conjuntos de artefatos BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023 50 www.ioles.com.br/boca encontrados têm 2,5 milhões de anos de idade; eles incluem, além de lascas, implementos maiores tais como cutelos, raspadores e várias pedras poliédricas” (LEAKEY, 1997, p. 46). O processo de evolução humana também é percebido na alimentação, como foi destacado por Engels, que relacionava a fabricação de ferramentas próprias para a realização da caça e da pesca com a passagem de uma alimentação essencialmente vegetariana para uma alimentação mista. Essas novas características da alimentação teriam oferecido ao organismo importantes ingredientes para seu metabolismo, influência manifestada principalmente no cérebro, “que recebeu assim em quantidade muito maior do que antes as substâncias necessárias à sua alimentação e desenvolvimento” (ENGELS, 1986, p. 274). Esses novos hábitos alimentares demandaram o uso do fogo, que auxiliava no processo de digestão pelo cozimento dos alimentos, e a domesticação de animais, aumentando as reservas de carne. Sabe-se, a partir das descobertas arqueológicas posteriores a Engels, que o aumento do cérebro e as mudanças nos dentes estão relacionados à passagem para a alimentação mista. Partindo da compreensão de que a carne é uma fonte concentrada de calorias, entende-se que “somente pela adição de uma proporção significativa de carne à sua dieta poderia o Homo primitivo ter ‘custeado’ a construção de um cérebro maior em tamanho” (LEAKEY, 1997, p. 62). Além disso, o acréscimo de carne à dieta humana provocou mudanças na forma de organização da sociedade, nas formas de divisão do trabalho, de uso de ferramentas etc. O homem teve um grande número de antepassados, alguns distantes, outros mais próximos, não tendo evoluído de forma linear. Partindo de Darwin, evolução significa adaptação local, que, no caso do homem, não se dá apenas pela modificação biológica com descendências, mas tem no trabalho um mecanismo que permite diminuir as consequências negativas das intempéries do meio ou suprir necessidades vitais, como comer ou se proteger do frio. Para Darwin [...] as alterações nas condições de vida têm a mais relevada importância como causa de variabilidade, e porque estas condições atuam diretamente sobre o organismo, e porque atuando indiretamente afetam o sistema reprodutor. Não é provável que a variabilidade seja, em todas as circunstâncias, uma resultante inerente e necessária destas transformações. (...) Pode-se atribuir uma relativa influência à ação definida das condições de vida, mas não sabemos em que proporções esta influência se exerce. Pode-se considerar como causa, mesmo até como razão considerável, o aumento do uso ou não das partes. O resultado final, se se consideram todas estas influências, torna-se amplamente complexo (DARWIN, 2002, p. 48-9). Houve várias outras espécies, como as australopitecíneas, contemporâneas aos ancestrais humanos, que compartilhavam características hoje presentes no Homo sapiens, do que se depreende que a “família” humana, entre “primos” e “irmãos”, é grande e diversa. Também se sabe que o Homo BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023 51 www.ioles.com.br/boca sapiens não é a última parada da evolução humana, nem um hominídeo perfeito e acabado que deve se perpetuar com essa constituição biológica. Ora, sabe-se que [...] as “sequências” evolutivas não são degraus de uma escada, mas sim a reconstrução em retrospecto de uma trilha labiríntica, ramo por ramo, da base do arbusto à linhagem, sobrevivendo agora no topo. (...) O Homo sapiens não é produto de uma escada que desde o início sobe diretamente em direção ao nosso estado atual. Constituímos tão-somente a ramificação sobrevivente de um arbusto outrora exuberante (GOULD, 1999, p. 54-5). Considerando a existência de espécies contemporâneas dos ancestrais humanos, pode-se pensar que Engels se equivocou ao defender a hipótese de que o homem haveria surgido a partir de um único grupo de macacos. Essa visão linear da evolução das espécies, deduzida do texto de Engels, se confirmada, possivelmente deve-se à influência de teorias pré-darwinistas, como as teses de Lamarck. Contudo, no conjunto do texto de Engels evidencia-se o método materialista e dialético, havendo uma íntima relação entre sua obra e o melhor da teoria da evolução do século. Portanto, desse conjunto de colaborações depreende-se que [...] a evolução normalmente se processa por meio de uma “especiação” – uma ramificação de uma linhagem a partir do tronco parental – e não por uma mudança constante e vagarosa desses grandes troncos. Episódios repetidos de especiação produzem um arbusto (GOULD, 1999, p. 54). Essa compreensão expressa por Darwin encontra sua relação com o pensamento dialético. Em suas formulações, “as espécies persistem porque estão adaptadas às condições de seu meio. As espécies mudam, porque ocorrem mudanças nelas mesmas que levam à seleção natural de indivíduos melhor dotados para as mudanças do meio e eventualmente à criação de novas espécies” (NOVACK, 2006, p. 69). Nesse sentido, observa-se nas elaborações de Darwin uma das principais características da dialética moderna, ou seja, a relação entre quantidade e qualidade. Compreende-se que “a seleção natural de Darwin, que leva à criação de várias espécies de plantas e animais, não é outra coisa senão a acumulação de mudanças quantitativas, produzindo como resultado novas qualidades, novas espécies” (TROTSKY, 2015, p. 107). Portanto, ao apresentar uma formulação que sistematiza o conhecimento científico de seu contexto, o próprio Darwin se aproxima do materialismo dialético. Pode-se afirmar: [...] o ponto de vista dialético (ou evolucionista), consequentemente o mais apropriado, inevitavelmente conduz ao materialismo: o mundo orgânico emergiu do inorgânico, a consciência é uma capacidade dos organismos vivos dependentes de órgãos que se originaram através da evolução. Em outras palavras, a “alma” da evolução (da dialética) conduz, em última análise, à matéria. O ponto de vista evolucionista levado a uma conclusão lógica não deixa espaço nem para o idealismo nem para o dualismo, nem para outras espécies de ecletismo (TROTSKY, 2015, p. 86). BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023 52 www.ioles.com.br/boca O Homo erectus não surgiu numa explosão biológica, mas é produto de um longo processo de evolução. É um arbusto, não um degrau de escada, onde as espécies dele oriundas apresentam outras especiações e assim sucessivamente. Segundo Darwin (2002, p. 60): [...] as variedades um pouco mais acentuadas, um pouco mais constantes, conduzem a outras variedades mais pronunciadas e mais persistentes ainda; estas últimas conduzem à subespécie, e por fim à espécie. A passagem de um grau de diferença a outro pode, em muitos casos, resultar simplesmente da natureza do organismo e das diferentes condições físicas a que tem estado muito tempo exposto. Porém a passagem de um grau de diferença para outro, quando se trata de caracteres de adaptação mais importantes, pode atribuir-se seguramente à ação coletora da seleção natural, que explicarei mais adiante, e os efeitos do aumento de uso e não-uso das partes. Pode-se dizer então que uma variedade grandemente pronunciada é o início de uma espécie. Em seu ensaio, Engels não se preocupa em definir um grupo de hominídeos e sua localização espacial e temporal, mas expõe o processo de evolução humana em sua relação com o trabalho. Embora seu texto remonte a uma única origem humana, procura defender a hipótese de que foi o trabalho – que, neste caso, apontamos como o responsável pelas diversas especiações – o fator que diferenciou a adaptação humana da adaptação de outros animais. Se todos os ancestrais humanos e seus contemporâneos, de diferentes regiões e épocas, têm características próprias, é óbvio que isso se deu em função das diferentes formas que essas espécies encontraram para se adaptar ao meio em que viviam, produzindo, certamente, diferentes formas de trabalho, utilizando diferentes instrumentos. Portanto, retomando Engels, percebe-se que não é apenas em função de uma determinação biológica que o homem se transforma, mas também pela sua intervenção, pelo trabalho, sobre a natureza. Em seu contato com o meio ambiente, o ser humano aprendeu a dominá-lo, desenvolvendo habilidades como a caça, a pesca, a agricultura e a tecelagem. O trabalho humano desenvolveu, além de uma grande diversidade de técnicas e ferramentas, diferentes formas de organização das sociedades. Por meio da cooperação entre as mãos, os órgãos da linguagem e o cérebro se produziram as artes e a política, a cerâmica e as navegações, o direito e as religiões, a escravidão e o capitalismo. Segundo Engels, “frente a todas essas criações, que se manifestavam em primeiro lugar como produtos do cérebro e pareciam dominar as sociedades humanas, as produções mais modestas, fruto do trabalho da mão, ficaram relegadas a segundo plano” (ENGELS, 1986, p. 275). Nesse sentido, o grande progresso técnico pelo qual passou a humanidade foi atribuído ao desenvolvimento e à atividade do cérebro. “Foi assim que, com o transcurso do tempo, surgiu essa concepção idealista do mundo que dominou o cérebro dos homens (...) e continua ainda a dominá-lo” (ENGELS, 1986, p. 275). BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023 53 www.ioles.com.br/boca CONSIDERAÇÕES FINAIS O ensaio de Engels, ao dialogar com as principais conquistas do conhecimento científico do período, consegue demonstrar a importância da obra de Darwin. Com isso, não se quer filiar forçosamente Darwin do marxismo, mas destacar seu papel como um “dialético inconsciente”, para usa as palavras de Trotsky (2011, p. 125). Segundo Stephen Jay Gould, “a importância do ensaio de Engels está não nas suas conclusões substanciais, mas sim na sua aguçada análise política do motivo pelo qual a ciência ocidental se achava tão apegada à asserção a priori da primazia cerebral” (GOULD, 1999, p. 210). O argumento de Gould aponta para a importância da posição de Engels de crítica à separação entre a mão e a mente, a prática e a abstração, tanto na sociedade como nas ciências. Por outro lado, segundo Foster (2005, p. 284): [...] boa parte da teoria antropológica moderna retornou à visão materialista co-evolucionária da qual Engels foi o pioneiro no século XIX. Desde o princípio o segredo, não só do desenvolvimento da sociedade humana mas também da “transição do macaco para o homem”, estava no trabalho. 54 Um dos méritos de Engels, apesar dos limites investigações científicas de sua época, passa por aproximar o materialismo dialético do principal do conhecimento e do método científico. Com isso, combate no terreno ideológico e da luta de classes as compreensões metafísicas e idealistas do trabalho. Na sociedade em que Engels viveu, como na nossa, o trabalho com as mãos é considerado um ato de aviltamento do ser humano, cabendo sua realização a seres “inferiores”. O trabalho realizado “pela cabeça” ganha papel de grandiosidade, sendo muitas vezes sequer considerado trabalho, apesar de depender do cérebro, ou seja, de um órgão. Esquece-se, assim, que não há trabalho puramente cerebral ou puramente manual e que a prática é uma parte constitutiva do aprendizado. Essa compreensão deve-se em grande medida à obra de Darwin, que apontou para a relevância da relação dialética entre o desenvolvimento dos organismos vivos e o meio em que vivem, demonstrando a dinâmica das mudanças das espécies. Com isso, ainda que sem se colocar como marxista, Darwin demonstra não apenas um possível uso do materialismo dialético, mas a relação intrínseca deste com o conhecimento científico moderno. Nesse sentido, ao analisar as dinâmicas biológicas em sua relação com a sociedade e o meio em que os organismos vivem, Darwin não apenas apresentou um exemplo claro da transformação de quantidade em qualidade como da compreensão materialista da realidade. BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023 www.ioles.com.br/boca REFERÊNCIAS DARWIN, C. A origem das espécies e a seleção natural. Curitiba: Editora Hemus, 2002. 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BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023 55 www.ioles.com.br/boca BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) Ano V | Volume 14 | Nº 41| Boa Vista |2023 http://www.ioles.com.br/boca Editor chefe: 56 Elói Martins Senhoras Conselho Editorial Antonio Ozai da Silva, Universidade Estadual de Maringá Vitor Stuart Gabriel de Pieri, Universidade do Estado do Rio de Janeiro Charles Pennaforte, Universidade Federal de Pelotas Elói Martins Senhoras, Universidade Federal de Roraima Julio Burdman, Universidad de Buenos Aires, Argentina Patrícia Nasser de Carvalho, Universidade Federal de Minas Gerais Conselho Científico Claudete de Castro Silva Vitte, Universidade Estadual de Campinas Fabiano de Araújo Moreira, Universidade de São Paulo Flávia Carolina de Resende Fagundes, Universidade Feevale Hudson do Vale de Oliveira, Instituto Federal de Roraima Laodicéia Amorim Weersma, Universidade de Fortaleza Marcos Antônio Fávaro Martins, Universidade Paulista Marcos Leandro Mondardo, Universidade Federal da Grande Dourados Reinaldo Miranda de Sá Teles, Universidade de São Paulo Rozane Pereira Ignácio, Universidade Estadual de Roraima BOLETIM DE CONJUNTURA (BOCA) ano V, vol. 14, n. 41, Boa Vista, 2023