A iluso das relaes raciais

No sculo XVIII, Antonil percebeu algo interessante numa sociedade dividida entre senhores e escravos, e escreveu: O Brasil um inferno para os negros, um purgatrio para os brancos e um paraso para os mulatos Caso se queira ter uma compreenso mais profunda e original das relaes raciais que existem no Brasil, ser necessrio tomar essa expresso nos seus sentidos velados, considerando todas as suas implicaes morais e polticas. Digo que a frase de Antonil tem um sentido sociolgico e simblico profundo porque, no contexto das teorias raciais do momento, ela no mnimo contraditria. Teoria racista no eram contra o negro, o amarelo ou o ndio, genericamente falando, discriminados como inferior ao branco e tambm eram vistos como donos de poucas qualidades, o problema maior dessas doutrinas, o horror que declaravam, era contra a mistura ou miscigenao das raas. Diziam elas, que havia uma ordem natural que graduava, escalonava e hierarquizava as raas humanas, o branco se situava no alto da escala, o branco da Europa Ocidental assumindo posio de liderana na criao animal e humana do planeta. Saber por tinham esse horror miscigenao conduzir a curiosidade intelectual para um dos pontos que distinguem e esclarecem o racismo Europia ou Americana e o nosso conhecido dissimulado e disseminado racismo brasileira. O Conde de Gobineau, Segundo ele, a mistura de raas era inevitvel, levaria a raa humana a graus sempre maiores de dsgeneralizao, fsica e intelectual. possvel dividir as raas de acordo com trs critrios: o intelecto, as propenses animais e as manifestaes morais. No realiza um exerccio de dizer que a raa branca era superior em tudo. H muita inteligncia nos preconceitos e nos autoritarismos, ousou com confiana mesmo para quem estava impregnado de uma ideologia autoritria de sua prpria superioridade, na previso de que o Brasil levaria menos de 200 anos para se acabar como povo! Porque ele via com seus prprios olhos, e escrevia a seus amigos, o quanto a nossa sociedade permitia a mistura de raas. A miscigenao que o certificavam do nosso fim como povo e como processo biolgico. No era a existncia de raas diferentes, desde que essas raas ficassem no seu lugar e naturalmente no se misturassem. Ele no se colocou contra a hierarquia que governava, conforme supunha, a diversidade humana no que diz respeito aos seus traos biolgicos, mas foi contrrio ao contato social ntimo entre elas. E conforme sabe (mas no expressa) todo racista implica

a idia de miscigenao, j que a ele importa contato ntimo entre pessoas que so vistas como pertencendo a espcies diferentes. Dai a palavra mulato que vem de mulo, o animal icapaz de reproduzir-se, pois o resultado de um cruzamento de dois tipos genticos diferentes. Mas, no seu horror ao mulatismo e contato ntimo e amoroso entre os tipos humanos, Gobineau no estava s. Outros tericos importantes, como Buckle, Couty e Agassiz, tambm exprimiram esse medo da mistura e trataram a nossa populao como um todo potencialmente degenerado de hbridos incapazes de criarem alguma coisa forte ou positiva. Nesse contexto, vale citar um trecho escrito por Agassiz, sobre a nossa sociedade: Qualquer um que duvida dos males dessa mistura de raas, e se inclina, por malentendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as separam, venha ao Brasil. No poder negar a deteriorao decorrente do amlgama de raas, mais geral aqui do que qualquer outro pas do mundo, que vai apagando as melhores qualidades do branco, do negro e do ndio, deixando um tipo indefinido, hbrido, deficiente em energia fsica e mental. Fecha com Gobineau, postulando um futuro terrvel para o Brasil. No havia descoberto o valor positivo do mulatismo nem a capacidade brasileira de recuperar e trabalhar o ambguo como dado positivo, na glorificao da mulata e do mestio como sntese perfeita do melhor que pode existir no negro, branco e no ndio. Antonil no fala de branco, negro e mulato numa equao biolgica. Constri uma associao social ou normal, relaciona o branco com o purgatrio, o negro com o inferno e o mulato com o paraso. Estabelece um tringulo para o entendimento da sociedade brasileira, significativo e importante. O Brasil no um pas dual onde se opera somente com uma lgica do preto ou branco... No caso de nossa sociedade, a dificuldade parece ser de aplicar esse dualismo de carter exclusivo, oposio que determina a incluso de um termo e excluso do outro, como comum no racismo americano, que ns brasileiros consideramos brutal no nosso caso tudo se passa conforme Antonil intuiu; Entre o preto e o branco temos um conjunto infinito e variado de categorias intermedirias em que o mulato representa uma unificao perfeita. Antonil foi um jesuta as equaciona a trs espaos sagrados, crticos na cosmologia catlica romana: o paraso, inferno e o purgatrio. A correlao aqui igualmente perfeita. Se o mulato ser intermedirio e ambguo, categoria que existe de fato e de direito na ideologia social da sociedade e se legitima precisamente por instituir o intermedirio e a sntese dos opostos como algo positivo, sua associao com Paraso nos ajuda a entender a genial sensibilidade de Antonil para os valores mais profundos da nossa sociedade. Ele percebeu o valor positivo que associamos ao intermedirio, situado entre extremos que permite sua associao e a negao de tendncias e caractersticas contrarias.

No Brasil no ficamos com uma classificao racial, preto ou branco, que aconteceu em outros pases, com o norte-americana, eram prdigos em descobrir pores nfimas daquilo que a lei chamava de sangue negro de pessoas de cor branca, que passavam a ser consideradas pretas, UM tipo de preconceito racial que considera bsicas as origens das pessoas, e no somente a marca do tipo racial, como ocorre no caso brasileiro. Numa sociedade igualitria e protestante, como os Estados Unidos, o intermedirio representa tudo que deve ser excludo da realidade social. Mostrava o pecado e o perigo da intimidade entre camadas sociais que deveriam permanecer diferenciadas. O mulato essa possibilidade que, nesses sistemas, definida como imoralidade. Porqu? Primeiro, pela existncia da tradio igualitria, que no universo social anglo-saxo era muito mais forte que em Portugal ou no Brasil. E com isso veio a prtica de equacionar todos como iguais perante as leis. Ali tambm que variantes radicais do protestantismo como o puritanismo e o calvinismo ganharam amplo terreno. Isso tudo conduziu a um individualismo radical possessivo, no dizer de um terico dessas questes, o cientista poltico C. B. Macpherson. Tal ideologia social nega as relaes sociais e, com isso, a presena das redes imperativas de amizade e de parentesco que sustentavam a chamada moral tradicional; ou seja: aquela moralidade que afirma a importncia do todo (ou da sociedade) sobre o indivduo. Dentro dela, a pessoa importante porque pertence a uma famlia e tem compadres e amigos. a relao que ajuda a defini-la como ser humano e como entidade social significativa. O indivduo no possuidor (ou englobado) por sua famlia ou patres. Ao contrrio, dono de si mesmo e pode, em consequncia, dispor de sua fora de trabalho individualmente num mercado de homens livres, mercado esse que desvincula moralmente quem oferece de quem faz o trabalho. Pois bem, todos esses fatores tornavam difcil a convivncia da escravido com essa ideologia que, no caso dos Estados Unidos, dominante. certamente isso que explica a localizao geogrfica da economia escravocrata nos Estados do Sul. De fato, at o advento da Guerra Civil, os Estados Unidos so como se fossem duas sociedades distintas em poltica, economia e, sobretudo, ideologia e valores. H um Norte igualitrio e individualista, que no pode admitir a escravido; e um Sul hierarquizado, aristocrtico e relacional, onde existe uma sociedade cheia de nuances, parecido nisso tudo com o Brasil. A diferena que, nos Estados Unidos, o Sul perdeu e o Norte estabeleceu por todo o pas sua hegemonia moral e poltica. A contradio gerada pelo negro livre numa sociedade que pregava uma igualdade de todos com todos foi o preconceito racial radical,

sustentado no somente por costumes e atitudes veladas e muitas vezes secretas de brancos ou de mulatos, mas por uma srie de leis que explicitamente impediam a competio econmica de negros e brancos como iguais num mercado de trabalhadores livres. Tudo isso nos conduz a algumas correlaes interessantes que permitem elucidar o caso do racismo brasileira e do nosso famoso tringulo racial. que primeiramente devemos ressaltar como as sociedades igualitrias engendraram formas de preconceito muito claras, porque sua ideologia negava o intermedirio, a gradao e a relao entre grupos que deveriam permanecer separados, embora pudessem ser considerados teoricamente iguais. Tal fato no existiu na sociedade brasileira e at hoje tem dbil aceitao social. Realmente, estou convencido de que a sociedade brasileira ainda no se viu como sistema altamente hierarquizado, onde a posio de negros, ndios e brancos est ainda tragicamente de acordo com a hierarquia das raas. Numa sociedade onde no h igualdade entre as pessoas, o preconceito velado forma muito mais eficiente de discriminar pessoas de cor, desde que elas fiquem no seu lugar e saibam qual ele. Finalmente, ao lado disso, temos um tringulo racial que impede uma viso histrica e social da nossa formao como sociedade. O fato contundente de nossa histria que somos um pas feito por portugueses brancos e aristocrticos, uma sociedade hierarquizada e que foi formada dentro de um quadro rgido de valores discriminatrios. Os portugueses j tinham uma legislao discriminatria contra judeus, mouros e negros, muito antes de terem chegado ao Brasil; e quando aqui chegaram apenas ampliaram essas formas de preconceito. A mistura de raas foi um modo de esconder a profunda injustia social contra negros, ndios e mulatos, pois, situando no biolgico uma questo profundamente social, econmica e poltica. De fato, mais fcil dizer que o Brasil foi formado por um tringulo de raas, o que nos conduz ao mito da democracia racial, do que assumir que somos uma sociedade hierarquizada, que opera por meio de gradaes e que, por isso mesmo, pode admitir, entre o branco superior e o negro pobre e inferior, uma srie de critrios de classificao. Assim, podemos situar as pessoas pela cor da pele ou pelo dinheiro. Pelo poder que detm ou pela feira de seus rostos. Pelos seus pais e nome de famlia, ou por sua conta bancria. As possibilidades so ilimitadas, e isso apenas nos diz de um sistema com enorme e at agora inabalvel confiana no credo segundo o qual, dentro dele, cada um sabe muito bem o seu lugar. claro que

podemos ter uma democracia racial no Brasil. Esta fundada numa positividade jurdica que assegure a todos os brasileiros o direito bsico de toda a igualdade: o direito de ser igual perante a lei! Enquanto isso no for descoberto, ficaremos sempre usando a nossa mulataria e os nossos mestios como modo de falar de um processo social marcado pela desigualdade, como se tudo pudesse ser transcrito no plano do biolgico e do racial. Na nossa ideologia nacional, temos um mito de trs raas formadoras. No se pode negar o mito. Mas o que se pode indicar que o mito precisamente isso: uma forma sutil de esconder uma sociedade que ainda no se sabe hierarquizada e dividida entre mltiplas possibilidades de classificao. Assim, o racismo brasileira, paradoxalmente, torna a injustia algo tolervel, e a diferena , uma questo de tempo e amor. Eis, numa cpsula, o segredo da fbula das trs raas...