Notas Sobre o Racismo À Brasileira - Roberto Da Matta
Notas Sobre o Racismo À Brasileira - Roberto Da Matta
Notas Sobre o Racismo À Brasileira - Roberto Da Matta
1 Neste contexto, vale acentuar que considero importante a distino entre nao - ou Estado-Nacional - e sociedade como duas distintas e at mesmo
contraditrias de coletividade. De modo breve, a nao uma coletividade fundada na idia de soberania, de territorialidade e de leis explcitas. Sua unidade
especial bsica o indivduo - o cidado -, que nela dotado de autonomia, liberdade, igualdade poltica e jurdica e responsabilidade. J a sociedade dispensa o
territrio, tem leis implcitas - geralmente conceituadas como mandamentos, tabus, pecados ou normas normais indiscutveis e dadas pelos deuses e heris
civilizadores - e sua unidade fundamental a famlia, o cl, a aldeia ou um elo social. Uma sociedade pode estar em guerra com sua nao, como parece fazer
prova, hoje, o caso de Uganda e Burundi. Normalmente, nao e sociedade esto em conflito, pois os ideais nacionais nem sempre so realizados pela sociedade
nas suas prticas. Nesse sentido, o caso do Brasil interessante, porque fomos uma nao que adotou princpios igualitrios, mas tnhamos uma sociedade
hierarquizada, constituda que era por nobres, cidado livres e escravos. Para maiores consideraes sobre esse ponto, veja -se Da Matta, Conto de mentirosos:
Sete ensaios de antropologia brasileira, Rio de Janeiro, Rocco, 1993.
2.Cf . Roberto Da Matta, Relativizando: Uma introduo antropologia social, Rio de Janeiro,Rocco.
Um dos mais lcidos estudiosos de sistemas raciais, o socilogo Oracy Nogueira, fala de um
contraste entre um "preconceito de marca", tpico do Brasil, e de um "preconceito de origem",
vigente nos Estados Unidos. Outros, como o historiador social norte-americano Carl Degler ,
elaborara a distino explicitando historicamente o "mulato" como uma vlvula de escape; ou,
em termos de minha interpretao, afirmando que, no caso brasileiro, o mulato era um lugar
social reconhecido e marcado e no algo vazio de sentido como acontece nos Estados Unidos.
O problema bsico porm - problema sem o qual a questo racial no pode ser entendida --,
jaz no estilo cultural por meio do qual as duas sociedades elaboram, constroem e lidam com as
suas diferenas. Desse modo no se nega a presena de "mestios", nem nos Estados Unidos,
nem na frica do Sul. Tampouco se nega a presena de iniqidade no caso brasileiro, que foi e
tem sido igualmente injusto e violento para com os "diferentes ", sobre tudo os negros. Mas se
salienta que a mestiagem percebida de modo diverso nessas sociedades. E mais: que
compreender o modo pelo qual cada sistema ordena suas percepes sociais um fato social
fundamental para construo de medidas orientadas para a implementao de mais
oportunidade e mais igualdade para todas as minorias.
No caso do Brasil, a idia de hierarquia tem duas caractersticas:
1. Ela atua por meio de uma lgica complementar que, embora limite a ascenso dos
"diferentes", no os dispensa como tal. Ou seja : a complementaridade se exprime em uma
ideologia segundo a qual negros, brancos e ndios formam um tringulo racial e se
complementam. Assim, no h Brasil sem negros ndios ou brancos. Quer dizer, se o sistema
admite que o branco o elemento superior, essa superioridade no simples nem linear, como
no caso americano. Pois, no caso brasileiro, admite-se tambm que o branco no superior
em tudo. Na ideologia racial brasileira, brancos, negros e ndios so desiguais, mais
complementares.
Curioso acentuar que a fbula exclua outras etnias, como se os libaneses, os japoneses, os
italianos, entre outros, que, do ponto de vista de uma "historia emprica"do Brasil, tambm
contriburam para a formao da nossa sociedade, no existissem socialmente.
Com isso, o negro complementa o branco e vice- versa, havendo entre eles um elo
ideologicamente reconhecido: uma relao fundada no controle e na explorao,mas tambm
na ideologia compensatria de que o negro possui qualidades ausentes dos brancos e no fato
de que um necessrio para o outro. No por acaso que a grande regio popular brasileira, a
Umbanda, integre no seu panteo como figuras poderosas, personagens como os Pretos
Velhos, os Z Pelintras e os caboclos, respectivamente negros e ndios.
2. Esse estilo de relacionamento racial fundado na incluso promove o reconhecimento da
graduao, o que origina um clculo complexo da determinao tnica do Brasil.
Provavelmente pelos fatos de que a experincia com o escravo foi universal, permeando todos
os grupos sociais; que os negros formavam uma quase maioria da populao, gerando uma
inevitvel conscincia de que todos se ligavam pela cor da pele e de que saamos
gradualmente do regime de trabalho escravo, transformando o escravo em cliente e em subcidado, o racismo brasileira tende a se manifestar de modo implcito, dando ou tirando
negritude ou indianidade ou estrangeirice de qual quer pessoa.
Em uma palavra, tara-se, como j indicativa Oracy Nogueira, de um sistema de preconceito no
qual o contexto determinante. Assim, se fulano deixa de atuar de acordo com esse cdigo
implcito, ele poder ser "enegrecido" ou "acaboclado". Desse modo, um pessoa pode ser alvo
de muitas classificaes raciais, que gera uma notvel insegurana classificatria, insegurana
que, ao lado da importncia da casa como entidade social bsica, engendrou uma enorme
intimidade entre grupos etnicamente diversos.
Tudo isso, provavelmente, inibiu a segregao espacial dos grupos sociais por meio do critrio
racial ou da origem nacional, como o caso dos Estados Unidos. Houve tambm a inibio da
2. Ressaltar o fato de que a idia de que temos uma "democracia racial" algo respeitvel.
Quanto mais ou seja, porque, apesar do nosso tenebroso passando escravocrata, samos do
escravismo com um sistema de preconceito, certo, mas sem as famosas " Leis Jim Crow "
americanas, que implementavam e, pior que isso, legitimavam o racismo, por meio da
segregao no campo legal.
No se trata - convm enfatizar para evitar mal entendidos - de utilizar a expresso no seu
sentido mistificador, mas de resgat-la como um patrimnio que seja capaz de fazer com que o
Brasil - nao, honrando com seu comprometimento igualitrio, possa resgatar a sua imensa
divida com esses negros que tiveram o mais passado fardo na construo do Brasil sociedade.