Textos
Textos
Textos
Em Casa-grande & senzala, obra publicada em 1933, Gilberto Freyre oferece um novo modelo para a
sociedade multirracial brasileira, invertendo o antigo pessimismo. O “cadinho1 das raças” aparecia como
uma versão otimista do mito das três raças: “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na
alma quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e/ou do negro”, o
que tornava a mestiçagem uma questão de ordem geral.
Era assim que o cruzamento de raças passava a singularizar a nação nesse processo que leva a
miscigenação entre diferentes grupos sociais a se transformar num modelo de sociabilidade. A novidade
do seu argumento estava em destacar a intimidade do lar, suavizar a vida dura do eito 2 e fazer de tudo
material de exaltação: enfim uma “boa escravidão”, como se essa não fosse uma contradição em seus
termos.
Em resumo, a proposta do livro era repisar, sob novo ângulo, a ideia de uma sociedade misturada e
pioneira em função da ausência de segregação e de uma miscigenação extremada e feliz. Gilberto Freyre
executou a façanha analítica de dar caráter positivo ao mestiço — atribuindo a ele não o atraso do país, e
sim sua grande vantagem de futuro.
(Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling. Brasil: uma biografia, 2015. Adaptado.)
1 cadinho: recipiente em material refratário, geralmente de barro, ferro ou platina, utilizado para as reações químicas em altas temperaturas.
Texto 2
“Machado de Assis era um homem negro. O racismo o retratou como branco”. Essas são as primeiras
frases da campanha feita pela Faculdade Zumbi do Palmares, de São Paulo, em parceria com a agência
de publicidade Grey. A ação, lançada em abril — no mês do Dia Mundial do Livro —, tem como
propósito ressaltar a identidade negra de um dos maiores escritores brasileiros e fundador da Academia
Brasileira de Letras.
Com o título “Machado de Assis Real”, o projeto incentiva que as pessoas participem de um abaixo-
assinado para que as editoras parem de publicar livros com fotos nas quais ele aparece embranquecido e
substitua a fotografia distorcida por uma em que o autor apareça com cor e traços físicos negros.
No manifesto da iniciativa, a universidade ainda afirma que “o racismo escondeu quem ele era por
séculos. Sua foto oficial, reproduzida até hoje, muda a cor da sua pele, distorce seus traços e rejeita sua
verdadeira origem” e diz que “já passou da hora de esse erro ser corrigido”.
Luiz Maurício Azevedo, editor-executivo da editora Figura de Linguagem e pós-doutor em Literatura
Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ressalta que “popularmente,
pessoas negras estão ligadas à força física e à animalização, não a seu potencial intelectual. Quando
estes indivíduos ganham projeção por seu talento na literatura, por exemplo, criam-se mecanismos para
manter os negros no lugar de subcategoria. Por isso, transformam uma pessoa negra em branca, porque
socialmente negras e negros ‘não podem ter’ o status de autor. E a história valeu-se da frágil
documentação da época para reforçar a imagem de um Machado de Assis não negro. O Brasil promove
a hierarquia das raças por ter suprimido aquilo que era entendido como diferente”. E acrescenta: “Este
país vive em conflito, não vivemos em harmonia como prega a democracia racial. Houve e ainda há
derramamento de sangue”.
(Iarema Soares. “Campanha de universidade recria foto de Machado de Assis para retratá-lo negro”. https://gauchazh.clicrbs.com.br, 01.05.2019. Adaptado.)
Texto 3
“Quanto mais acentuados os traços faciais que evidenciam a origem negra-africana, maior é o impacto
do racismo sobre as pessoas. Assim, socialmente, quanto mais clara a pessoa negra, maiores chances de
êxito na vida ela terá, o que não significa que ela também não seja vítima de racismo”. A explicação
dada por Renata Aparecida Felinto dos Santos, professora adjunta de Teoria da Arte e de Cultura
Africana e Afro-Brasileira na Universidade Regional do Cariri (CE), é o início da compreensão sobre o
que é colorismo. Esse conceito é relativamente recente. Foi cunhado em 1982 pela escritora Alice
Walker, no ensaio “If the present looks like the past, what does the future look like?” (em português,
“Se o presente parece o passado, com o que parece o futuro?”).
Presidente do Conselho Municipal de Política e Cultura de Londrina (PR) e especialista em
comunicação popular e comunitária, Luiza Braga esclarece que o colorismo se trata de algo muito ligado
à estética: “A aceitação de uma pessoa negra pela sociedade é julgada pelos traços mais finos, os cabelos
mais lisos. Isso não tira a negritude de quem é mais claro. Esse indivíduo tem a consciência de que é
discriminado por ser negro, mas que não sofre tanto quanto o negro de pele escura.” Já a advogada
Elisama Santos, que hoje atua como escritora e educadora parental, afirma que “A sociedade quer
embranquecer o negro. Se perceber que a pele mais clara permite uma adequação ao padrão
eurocêntrico, haverá uma força para que os cabelos sejam alisados, para que se use uma maquiagem que
‘disfarce’ os traços negros. É uma pressão que as pessoas muitas vezes nem percebem, pois está
incrustada na convivência”. É importante destacar que, quanto mais clara for a pessoa negra, a mais
privilégios ela terá acesso, mas sempre será uma pessoa negra.
(Raquel Drehmer. “Entenda o que é e como funciona o colorismo”. https://mdemulher.abril.com.br, 08.05.2019. Adaptado.)
ANÁLISE DA PROPOSTA
Como nos exames anteriores, a prova de redação do vestibular da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa
de São Paulo requisitou a elaboração de um texto dissertativo-argumentativo sobre um assunto de interesse
social. Este ano, a redação deveria tratar do “Legado da escravidão no Brasil: entre o racismo e a democracia
racial”.
O Texto 1, trecho de um livro da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz e da historiadora e cientista política
Heloisa Starling, apresenta uma leitura crítica sobre a obra “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre. Para as
autoras, Freyre teria criado a visão de uma sociedade miscigenada feliz e sem segregação (uma democracia
racial, poderíamos dizer), o que redundaria em uma contraditória “boa escravidão”. O Texto 2, uma notícia, trata
de uma campanha da Faculdade Zumbi dos Palmares, de São Paulo, que ressalta a identidade negra do escritor
Machado de Assis, já que ele, a partir de sua projeção na vida cultural, teria sido transformado em uma pessoa
branca como maneira de manter os negros apartados do reconhecimento social. O Texto 3, uma reportagem,
aborda o conceito de colorismo, segundo o qual quanto mais uma pessoa tem traços que evidenciem sua origem
negra-africana, mais ela é objeto de preconceitos, ainda que estes atinjam todas as pessoas negras.
ENCAMINHAMENTOS POSSÍVEIS
Há dois aspectos importantes no tema proposto. Em primeiro lugar, cabe salientar que o recorte definido pela
banca para tratar do preconceito racial é o legado da escravidão. Assim, seria importante retomar a formação
histórica do país, fortemente marcada pelo fenômeno da escravização de pessoas negras, para desenvolver a
argumentação. Em segundo lugar, a discussão deveria se dar em torno da contraposição entre “racismo” e
“democracia racial”, ou seja, a tese de que o país seria um exemplo de convivência igualitária entre brancos e
negros, por exemplo. Trata-se, assim, de discutir até que ponto a miscigenação que marcou a formação da
população brasileira poderia ter impedido ou “suavizado” de alguma forma o preconceito racial contra as
pessoas negras no país ou se, pelo contrário, a afirmação de uma “democracia” seria uma forma de negar o
legado da escravidão e as diversas situações violentas e injustas vivenciadas pelos descendentes de pessoas
escravizadas.
Ao abordar o tema, era possível tratar, entre outros, dos seguintes aspectos:
A partir do Texto 1, discutir a tese da “democracia racial”. Seguindo as autoras, pode-se comentar que a obra de
Gilberto Freyre teria reforçado essa narrativa (ou esse mito) ao criar uma visão de certa forma positiva do
fenômeno da escravidão;
Com base na campanha apresentada no Texto 2, era possível ver, no apontado branqueamento da imagem de
Machado de Assis, uma evidência de preconceito, já que se reforçaria o racismo presente na associação entre
potencial intelectual socialmente valorizado e pessoas brancas;
O conceito de colorismo, apresentado no Texto 3, poderia ser usado para combater a tese da democracia racial,
já que, de acordo com ele, a miscigenação ou a variedade de cores de pele não impedem a ocorrência do
racismo, e sim cria diferentes níveis e camadas de preconceito, atingindo todas as pessoas negras, mas
especialmente aquelas com menos características próximas às de pessoas brancas (cor da pele, tipo de cabelo
ou traços, por exemplo).
Estabelecer associações entre o preconceito hoje existente e o legado da escravidão. Entre os elementos
históricos a se destacar, seria interessante mencionar que o país foi o último do ocidente a abolir a escravidão e
que a abolição não envolveu esforços para criação de condições igualitárias para os libertos e seus
descendentes, o que perpetuou o legado de exploração, criando um racismo estrutural;
Comentar que o fenômeno da miscigenação pode ser considerado como algo peculiar do Brasil,
em comparação, por exemplo, aos EUA, analisando traços diferenciais do legado da nossa
escravidão – o que não necessariamente impede a presença de preconceito racial.