a escolha dos tres

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A ESCOLHA DOS TRÊS

STEPHEN KING

A ESCOLHA DOS TRÊS

Tradução de
ROSA AMORIM
A Don Grant, que arriscou com estes romances, um a um.
ARGUMENTO

A Escolha dos Três é o segundo volume de uma longa história inti-


tulada A Torre Negra, um conto inspirado, e até certo ponto dele de-
pendente, pelo poema narrativo «Childe Roland to the Dark Tower
Came» de Robert Browning (que, por sua vez, tem a sua dívida para
com O Rei Lear).
O primeiro tomo, O Pistoleiro, conta como Roland, o último pis-
toleiro de um mundo que «avançou», alcançou finalmente o homem
de negro... um feiticeiro que perseguiu durante muito tempo — não
sabemos ainda exatamente quanto. O homem de negro é afinal um
sujeito chamado Walter, que falsamente disse ser amigo do pai de
Roland nos tempos anteriores ao avanço do mundo.
O alvo de Roland não é esta criatura semi-humana, mas sim
a Torre Negra; o homem de negro — e, mais concretamente, aquilo
que o homem de negro sabe — é o primeiro passo no caminho que
o conduz a esse lugar misterioso.
Quem é exatamente Roland? Como era o seu mundo antes de
«avançar»? O que é a Torre e por que razão ele a procura? Temos
apenas respostas fragmentárias. Roland é pistoleiro, uma espécie de
cavaleiro, um dos encarregados de preservar um mundo que Roland
recorda como «cheio de amor e luz», de impedir que ele avance.
Sabemos que Roland foi obrigado a submeter-se a uma precoce
prova de maioridade depois de descobrir que a mãe se tornara amante
de Marten, um feiticeiro muito mais forte que Walter (que, sem que
o pai de Roland o saiba, é aliado de Marten); sabemos que Marten
planeara a descoberta de Roland, na expectativa de que este falhasse
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e fosse «enviado para Ocidente»; sabemos que Roland triunfa no


teste.
Que mais sabemos? Que o mundo do pistoleiro não é completa-
mente diferente do nosso. Sobreviveram coisas como bombas de gasoli-
na e certas canções («Hey Jude», por exemplo, ou os versos burlescos
«Feijão, feijão, é música de alto grito...»), assim como costumes e rituais
estranhamente semelhante aos da nossa visão romantizada do Oeste
americano.
E existe um umbigo que de alguma maneira faz a ligação entre
o nosso mundo e o do pistoleiro. No apeadeiro de estrada de diligên-
cias há muito abandonada, num grande deserto estéril, Roland co-
nhece um rapaz chamado Jake que morreu no nosso mundo. Um ra-
paz que, na verdade, foi empurrado da esquina de uma rua pelo
ubíquo (e iníquo) homem de negro. A última coisa de que Jake, que
ia a caminho da escola com a sacola numa mão e a lancheira na ou-
tra, se lembra do seu mundo — do nosso mundo — é de ser esmaga-
do pelos pneus de um Cadillac... e de morrer.
Antes de alcançar o homem de negro, Jake morre novamente...
desta feita porque o pistoleiro, confrontado com a segunda escolha
mais agonizante da sua vida, opta por sacrificar este filho simbólico.
Perante a escolha entre a Torre e a criança, possivelmente entre
a condenação e a salvação, Roland escolhe a Torre.
«Então vá», diz-lhe Jake antes de mergulhar no abismo. «Há mais
mundos além deste.»
O confronto final entre Roland e Walter decorre num gólgota
poeirento de ossos em decomposição. O homem de negro expõe
o futuro de Roland com um baralho de cartas de tarô. Estas cartas,
que mostram um homem designado Prisioneiro, uma mulher chama-
da Senhora das Sombras e uma forma mais obscura que é simples-
mente a Morte («Mas não a tua, pistoleiro», diz-lhe o homem de ne-
gro) são profecias que se tornam a matéria deste tomo... e o segundo
passo de Roland no longo e árduo caminho em direção à Torre Negra.
O Pistoleiro termina com Roland sentado na praia do mar Ociden-
tal, a contemplar o pôr do sol. O homem de negro está morto, o ca-
minho futuro do pistoleiro é pouco claro; A Escolha dos Três começa
nessa mesma praia, passadas menos de sete horas.
PRÓLOGO

O MARINHEIRO

O pistoleiro acordou de um sonho confuso que parecia consistir


numa única imagem: a do Marinheiro do baralho de tarô com que
o homem de negro anunciara (ou pretendera anunciar) o lastimoso
futuro do pistoleiro.
Ele afoga-se, pistoleiro, estava o homem de negro a dizer, e ninguém
lhe lança a corda. O rapaz, o Jake.
Mas aquilo não era um pesadelo. Era um sonho bom. Era bom
porque era ele quem se afogava, o que significava que ele não era
o Roland mas o Jake, e encontrou nisso alívio, porque seria bem me-
lhor afogar-se como Jake do que viver como ele próprio, um homem
que, por um sonho frio, traíra uma criança que confiara nele.
Está bem, ótimo, eu afogo-me, pensou ele, enquanto escutava o bra-
mido áspero do mar. Deixá-lo que me afogue. Mas aquele som não era
o da imensidão profunda; era o ranger da água com o pescoço cheio
de pedras. Seria ele o Marinheiro? Se era, porque estava terra firme
tão perto? Com efeito, não estava ele em terra? Era como se...
Uma água gelada ensopou-lhe as botas e subiu-lhe pelas pernas
até ao sexo. Foi então que os seus olhos se abriram de repente, mas
aquilo que o arrancou ao seu sonho não foram os testículos enregela-
dos, que subitamente encolheram até ao que parecia ser o tamanho
de nozes, nem sequer o horror à sua direita, mas pensar nas suas ar-
mas... as armas e, mais importante ainda, os cartuchos. As armas mo-
lhadas podiam ser rapidamente desmontadas, esfregadas para secar,
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oleadas, esfregadas de novo, oleadas outra vez e montadas; os cartu-


chos molhados, à semelhança dos fósforos molhados, podiam ou
não ser usados novamente.
O horror era uma coisa rastejante que devia ter sido arremessada
por uma onda anterior. Arrastava laboriosamente pela areia um cor-
po molhado e reluzente. Tinha cerca de um metro e vinte de compri-
mento e encontrava-se a uns quatro metros para a direita. Olhava
Roland com os seus olhos pretos e sombrios assentes em antenas.
O seu bico comprido e serrilhado descaiu, abrindo-se, e começou
a produzir um som que estranhamente se assemelhava à fala humana:
perguntas lamuriosas, até mesmo desesperadas, numa língua estranha.
Did-a-chique? Dum-a-chum? Dad-a-cham? Ded-a-cheque?
O pistoleiro já tinha visto lagostas. Aquilo não era uma lagosta,
se bem que de tudo o que ele já vira, as lagostas eram a única coisa
com que aquela criatura se parecia, ainda que vagamente. Não parecia
ter medo nenhum dele. O pistoleiro não sabia se era perigosa ou não.
Não se importava com a sua própria confusão mental — a sua inca-
pacidade temporária para se lembrar de onde estava ou de como ti-
nha ali chegado, se tinha efetivamente apanhado o homem de negro
ou se não passara tudo de um sonho. A única coisa que sabia era que
tinha de sair da água antes de afogar os cartuchos.
Ouviu o bramido áspero e crescente da água e desviou os olhos
da criatura (ela parara e segurava no ar as pinças com que se estivera
a arrastar, lembrando absurdamente um pugilista na sua postura ini-
cial, que, como lhes ensinara Cort, se chamava Postura de Honra) pa-
ra a onda que se aproximava com o seu coalho de espuma.
Ela ouve a onda, pensou o pistoleiro. Seja lá o que for, tem ouvidos.
Tentou levantar-se, mas as pernas, insensíveis de tão dormentes, ce-
deram sob o seu peso.
Continuo a sonhar, pensou ele, mas, mesmo no seu atual estado de
confusão, tratava-se de uma crença tentadora de mais para ser de fac-
to credível. Tentou levantar-se de novo, quase conseguiu, mas tornou
a cair. A onda estava a rebentar. Uma vez mais, não havia tempo. Ti-
nha de se resignar a deslocar-se de maneira bastante idêntica à da
criatura que se encontrava à sua direita: enterrava as duas mãos e ar-
rastava o rabo pela praia de seixos, afastando-se da onda.
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Não avançou o suficiente para evitar por completo a onda, mas


afastou-se o bastante para o que tinha em mente. A onda enterrou-
-lhe apenas as botas. Chegou-lhe quase aos joelhos e depois recuou.
Talvez a primeira não chegasse tão longe como pensei. Talvez...
Havia uma meia-lua no céu. Estava encoberta por uma calota de
névoa, mas emanava luz suficiente para que ele visse que os coldres
estavam demasiado escuros. Pelo menos as armas tinham-se molha-
do. Era impossível dizer com que gravidade, ou se os cartuchos que
estavam nos tambores ou os que se encontravam nos cintos cruzados
das armas também se tinham molhado. Antes de o verificar, tinha de
se afastar da água. Tinha de...
Dod-a-choque?
Ouviu-se agora muito mais perto. Na sua pressa por causa da
água esquecera-se da criatura que ela tinha trazido. Olhou em redor
e viu que se encontrava agora a apenas um metro e vinte de distância.
Tinha as tenazes enterradas na areia da praia, pontuada por seixos
e conchas, e arrastava o corpo. Erguia o corpo carnudo e serrilhado,
o que por momentos a fazia parecer um escorpião, mas Roland não
via nenhum espigão na extremidade do corpo.
Mais um bramido áspero, este bem mais sonoro. A criatura pa-
rou imediatamente e levantou de novo as tenazes na sua peculiar ver-
são da Postura de Honra.
Aquela onda era maior. Roland começou de novo a arrastar-se
encosta acima e, quando estendeu as mãos, a criatura de tenazes des-
locou-se a uma velocidade que os seus movimentos anteriores não
faziam sequer imaginar.
O pistoleiro sentiu um forte ardor na mão direita, mas agora não
havia tempo para pensar nisso. Impelindo-se com os calcanhares das
botas ensopadas, agarrou-se com as mãos e lá se conseguiu afastar da
onda.
Did-a-chique?, perguntou aquela monstruosidade com a sua voz la-
mentosa de Não me ajudas? Não vês que estou desesperado? E
Roland viu os cepos do primeiro e do segundo dedos da sua mão
direita desaparecerem no bico serrilhado da criatura. Ela investiu de
novo e Roland ergueu a mão direita ensanguentada mesmo a tempo
de salvar os restantes dois dedos.
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Dum-a-chum? Dad-a-cham?
O pistoleiro levantou-se a cambalear. A coisa rasgou-lhe as calças
de ganga a escorrer água, rasgou-lhe uma bota cujo couro velho esta-
va amolecido mas era rijo como ferro e arrancou um pedaço de carne
ao fundo da perna de Roland.
Ele sacou da arma com a mão direita e só se apercebeu de que
faltavam dois dos dedos necessários para executar aquela operação
assassina quando o revólver bateu na areia.
O monstro tentou avidamente apanhá-la com a tenaz.
— Não, sacana! — resmungou Roland, e deu-lhe um pontapé.
Foi como pontapear um bloco de rocha... que mordia. Arrancou a bi-
queira da bota direita de Roland, arrancou-lhe a maior parte do dedo
grande, arrancou-lhe a bota do pé.
O pistoleiro baixou-se, pegou no revólver, deixou-o cair, disse
um palavrão e finalmente lá conseguiu. Aquilo que em tempos fora
uma coisa tão fácil que nem sequer se pensava nisso transformara-se
subitamente num truque semelhante a malabarismos.
A criatura estava agachada em cima da bota do pistoleiro, a rasgá-
-la enquanto fazia as suas perguntas distorcidas. Uma onda veio re-
bentar na praia e a espuma coalhada na crista tinha um ar pálido
e mortiço à luz velada da meia-lua. A lagostosidade deixou de traba-
lhar na bota e ergueu as tenazes naquela pose de pugilista.
Roland sacou da arma com a mão esquerda e premiu o gatilho
três vezes. Clique, clique, clique.
Pelo menos agora já sabia o estado dos cartuchos nas suas câmaras.
Guardou a arma esquerda no coldre. Para guardar a direita teve
de virar o cano para baixo com a mão esquerda e depois deixá-la cair
no seu lugar. O sangue deixou peganhentas as coronhas gastas de
sândalo, salpicou o coldre e as calças de ganga velhas a que estava
preso o coldre por uma faixa. Jorrava dos cepos onde costumavam
estar os dedos.
O pé direito mutilado continuava demasiado dormente para que
sentisse dor, mas a mão direita era toda ela um ardor lancinante. Os
fantasmas de dedos talentosos e muito treinados que já estavam em
decomposição nos sucos digestivos das entranhas daquela coisa grita-
vam que ainda ali estavam, que estavam a arder.
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Antevejo problemas graves, pensou vagamente o pistoleiro.


A onda recuou. A monstruosidade baixou as garras, rasgou um
buraco de fresco na bota do pistoleiro, mas depois decidiu que o seu
dono tinha sido bem mais saboroso do que aquele bocado de pele
que, por alguma razão, largara.
Dud-a-chum?, perguntou, e apressou-se em direção a ele com uma
velocidade assustadora. O pistoleiro pôs-se em retirada mal sentindo
as pernas, e apercebeu-se de que aquela criatura devia possuir alguma
inteligência; aproximara-se dele com cautela, vinda porventura de
longe na areia, sem saber bem o que ele era ou do que seria capaz. Se
a onda não o tivesse acordado, aquela coisa ter-lhe-ia desfeito a cara
enquanto ele continuava bem mergulhado no seu sonho. Agora deci-
dira que ele era não só saboroso como também vulnerável; uma pre-
sa fácil.
Estava quase em cima dele; uma coisa de um metro e vinte de
comprimento e trinta centímetros de altura, uma criatura que podia
muito bem pesar trinta quilos e que era uma carnívora tão inveterada
como David, o falcão que tivera em criança — mas sem sombra da
lealdade deste.
O tacão esquerdo do pistoleiro bateu numa pedra saliente da
areia e ele desequilibrou-se e esteve quase a cair.
Dod-a-choque?, perguntou a coisa, aparentemente solícita, e esprei-
tou para o pistoleiro com os seus olhos ondulantes ao cimo das ante-
nas, ao mesmo tempo que esticava as garras... e depois veio uma on-
da e as garras tornaram a erguer-se na Posição de Honra. Mas agora
agitavam-se muitíssimo ao de leve e o pistoleiro percebeu que rea-
giam ao som da onda, e este — pelo menos para a coisa — esmore-
cia agora um pouco.
Ele recuou por cima da pedra, depois baixou-se quando a onda
rebentou na praia de seixos com fragor. Tinha a cabeça a centímetros
da face insetiforme da criatura. Uma das tenazes poderia facilmente
ter-lhe ceifado os olhos, mas as garras trementes, tão semelhantes
a punhos cerrados, continuavam erguidas de ambos os lados do bico
como que de papagaio.
O pistoleiro estendeu o braço para a pedra por cima da qual qua-
se caíra. Era grande, estava meio enterrada na areia, e a sua mão di-
reita mutilada gritou quando grãos de poeira e as arestas mais afiadas
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dos seixos lhe morderam a carne viva ensanguentada, mas tirou a pe-
dra do chão e ergueu-a, com os lábios arrepanhados.
Dad-a, começou a monstruosidade, cujas garras baixaram e se
abriram quando a onda rebentou e o seu som recuou, e o pistoleiro
arremessou-lhe a pedra com toda a força que tinha.
Ouviu-se um barulho crepitante quando as costas segmentadas
da criatura se partiram. Ela agitava-se loucamente debaixo da pedra,
com a cauda a levantar-se até meio e a bater no chão, a levantar e a
bater. As suas interrogações tornaram-se exclamações zumbidas de
dor. As pinças abriam-se e fechavam-se no ar. A bocarra em forma
de bico mordia grumos de areia e seixos.
E no entanto, quando rebentou outra onda, tentou levantar no-
vamente as pinças e, ao fazê-lo, o pistoleiro pisou-lhe a cabeça com
a bota que lhe restava. Ouviu-se um som como de muitos galhos se-
cos a partirem-se. Surgiu um fluido espesso debaixo do tacão da bota
de Roland, salpicado em duas direções. Parecia negro. A coisa arque-
jou as costas e contorceu-se freneticamente. O pistoleiro fincou a bo-
ta com mais força.
Veio uma onda.
As tenazes da monstruosidade ergueram-se dois centímetros...
quatro... estremeceram e caíram, abrindo-se e fechando-se com um
tremor.
O pistoleiro descalçou a bota. O bico serrilhado da coisa, que lhe
separara dois dedos da mão e um do pé do seu corpo vivo, abriu-se
e fechou-se devagar. Uma das antenas jazia na areia, partida. A outra
tremia sem sentido.
O pistoleiro tornou a pisar. E outra vez.
Afastou a pedra com um pontapé acompanhado de um grunhido
de esforço e deslocou-se ao longo do lado direito do corpo do mons-
tro, batendo metodicamente com a bota esquerda, a esmagar-lhe
a carapaça, a espremer-lhe as entranhas pálidas para a areia cinzento-
-escura. Estava morto, mas queria fazer daquilo o que lhe apetecia;
nunca na sua vida longa e estranha tinha sido magoado de modo tão
fundamental e tudo aquilo fora tão inesperado.
Continuou até ver a ponta de um dos seus dedos na mistela
amarga da coisa morta, viu debaixo da unha o pó branco do gólgota
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onde ele e o homem de negro tinham tido a sua longa conversa, e de-
pois desviou os olhos e vomitou.
Recuou em direção à água como um bêbedo, segurando a mão
ferida junto à camisa, e de vez em quando olhava para trás para se as-
segurar de que a coisa não continuava viva, como uma vespa obstina-
da em que se bate vezes sem conta, mas que continua a estrebuchar,
atordoada, mas não morta; para se assegurar de que não o seguia,
com as suas interrogações alienígenas na sua voz fatalmente desespe-
rante.
Quando chegou a meio caminho da praia deixou-se ficar balou-
çando, a olhar para o sítio onde estivera, recordando. Ao que parecia,
adormecera, logo abaixo da linha da maré alta. Agarrou na bolsa e na
bota desfeita.
À luz glabra da lua, viu outras criaturas do mesmo género, e na ce-
sura entre uma onda e a seguinte ouviu as suas vozes interrogativas.
Recuou um passo de cada vez, retirou-se até chegar ao limiar relva-
do da praia. Aí chegado, sentou-se e fez tudo aquilo que sabia fazer:
polvilhou os cepos dos dedos com o resto do tabaco para estancar
o sangue, polvilhou-os com uma camada grossa, apesar da nova picada
(o dedo grande do pé que tinha em falta juntou-se ao coro), e depois
deixou-se ficar simplesmente sentado, a suar ao frio, a pensar em infe-
ções, a pensar como havia de viver neste mundo sem dois dedos da
mão direita (no que dizia respeito às armas, as duas mãos tinham sido
iguais, mas a direita imperara em tudo o resto), a pensar se a coisa teria
algum veneno na mordedura que pudesse já estar a exercer nele o seu
efeito, a pensar se a manhã alguma vez chegaria.
O P RISIO N E I RO
C APÍTUL O 1

A PORTA

Três. É este o número do teu fado.


Três?
Sim, o três é místico. O três encontra-se no coração do mantra.
Quais três?
O primeiro tem cabelo escuro. Encontra-se à beira do roubo e do homicídio.
Foi infestado por um demónio. O nome do demónio é HEROÍNA.
Que demónio é esse? Não o conheço, nem sequer das canções
infantis.
Tentou falar, mas ficara sem voz, a voz do oráculo, a Estrela-Galdéria,
a Puta dos Ventos, tinham-se sumido as duas; viu uma carta revolver-se de ne-
nhum sítio para sítio nenhum, virando-se e revirando-se na ociosa escuridão. Ne-
la, um babuíno sorria do ombro de um jovem de cabelo escuro; os seus dedos, in-
quietantemente humanos, enterravam-se de tal maneira no pescoço do jovem que
as pontas tinham desaparecido na carne. Ao olhar com mais atenção, o pistoleiro
viu que o babuíno segurava um chicote numa das mãos que agarravam, estrangu-
ladoras. A face do jovem afligido parecia contorcer-se num terror mudo.
O Prisioneiro, murmurou em tom de cumplicidade o homem de
negro (que em tempos fora um homem em quem o pistoleiro confia-
ra, um homem chamado Walter). Ele é um bocadinho inquietante, não é?
Um bocadinho inquietante... um bocadinho inquietante... um bocadinho...
22 STEPHEN KING

O pistoleiro acordou de repente, acenando a alguma coisa com


a mão mutilada, certo de que não tardaria a que uma daquelas coisas
monstruosas de carapaça do mar Ocidental lhe caísse em cima, a in-
quirir desesperadamente na sua língua estrangeira enquanto lhe arran-
cava o rosto do crânio.
Em vez disso, uma ave marinha, atraída pelo brilho do sol da ma-
nhã nos botões da sua camisa, deu meia-volta e foi-se embora com
uma grasnadela assustada.
Roland sentou-se.
A sua mão pulsava miserável e interminavelmente. O mesmo
acontecia com o pé direito. Tanto os dedos da mão como do pé con-
tinuavam a insistir que ali estavam. A parte de baixo da sua camisa ti-
nha desaparecido; aquilo que sobrava lembrava um colete esfarrapa-
do. Tinha usado um pedaço para enfaixar a mão, e o outro para
enfaixar o pé.
Vão-se embora, disse ele às partes do seu corpo em falta. Vocês
agora são fantasmas. Vão-se embora.
Ajudou um bocadinho. Não muito, mas um bocadinho. Eram
fantasmas, isso eram, mas vivazes.
O pistoleiro comeu carne seca. A sua boca pouco a queria, o es-
tômago menos ainda, mas insistiu. Uma vez dentro do seu corpo,
sentiu-se um pouco mais forte. Contudo, pouco sobrava; estava qua-
se em apuros.
No entanto, havia coisas para fazer.
Levantou-se desequilibrado e olhou à volta. Os pássaros desciam
em voo e mergulhavam, mas o mundo parecia pertencer somente a si
e a eles. Os monstros tinham desaparecido. Talvez fossem notívagos;
talvez dependessem das marés. Naquele momento, não parecia fazer
qualquer diferença.
O mar era enorme, juntava-se ao horizonte num ponto azul ene-
voado impossível de determinar. Por um longo momento, o pistolei-
ro esqueceu a sua agonia naquela contemplação. Nunca vira tal volu-
me de água. Ouvira falar nas histórias infantis, claro, até lhe tinham
A ESCOLHA DOS TRÊS 23

garantido os professores — alguns, pelo menos — que existia, mas


vê-la de facto, esta imensidade, este espanto de água depois de anos
de terra árida, era difícil de aceitar... era até difícil de ver.
Ficou a olhá-la durante muito tempo, extasiado, obrigando-se a ver,
esquecendo temporariamente a sua dor naquele espanto.
Mas era manhã, e ainda havia coisas para fazer.
Apalpou a queixada no bolso traseiro, com o cuidado de tatear
com a palma da mão direita, pois não queria que os cepos dos dedos
a encontrassem se ainda ali estivesse, o que transformaria os intermi-
náveis soluços da mão em gritos.
Estava.
Muito bem.
Adiante.
Desafivelou desastradamente os cintos das armas e estendeu-os
numa rocha soalheira. Retirou as armas, fez girar as câmaras e remo-
veu delas os cartuchos inúteis. Deitou-os fora. Um pássaro foi atraí-
do pelo brilho luminoso projetado por um deles, apanhou-o com
o bico, depois deixou-o cair e voou dali para fora.
As armas tinham de ser cuidadas, deviam tê-lo sido antes daquilo,
mas dado que qualquer arma neste mundo ou em qualquer outro não
passava de um taco sem as munições, pousou os cintos das armas no
colo antes de fazer o que quer que fosse e passou cuidadosamente
a mão esquerda pelo couro.
Cada um deles estava húmido desde a fivela até ao ponto onde os
cintos se cruzavam nas ancas; daí em diante pareciam secos. Retirou
cuidadosamente os cartuchos um a um das partes secas dos cintos.
A mão direita não deixava de tentar fazer o seu trabalho, insistia em
esquecer a mutilação apesar da dor e ele deu por si a levá-la vezes
sem conta até ao colo, como um cão demasiado estúpido ou indomá-
vel para se curar. Na sua dor distraída, esteve quase a golpeá-la por
uma ou duas vezes.
Antevejo problemas graves, pensou de novo.
Pôs os cartuchos, na expectativa de que ainda estivessem bons,
num monte desanimadoramente pequeno. Vinte. Desses, uns quan-
tos haviam seguramente de falhar. Não podia depender de nenhum
deles. Retirou o resto e pô-los noutro monte. Trinta e sete.
24 STEPHEN KING

Bom, de qualquer maneira não estavas muito munido, pensou,


mas reconhecia a diferença entre cinquenta e sete cartuchos e o que
poderiam ser vinte. Ou dez. Ou cinco. Ou um. Ou nenhum.
Pôs os cartuchos duvidosos num segundo monte.
Ainda tinha a bolsa. Pelo menos uma coisa boa. Pousou-a no co-
lo para em seguida desmontar lentamente as armas e executar o ritual
da limpeza. Quando terminou, tinham passado duas horas e a dor era
tão intensa que o deixava tonto; o pensamento consciente tornou-se
difícil. Queria dormir. Nunca na vida o desejara tanto. Mas ao serviço
do dever nunca havia uma razão aceitável para a recusa.
— Cort — disse ele com uma voz que não reconheceu, e soltou
uma gargalhada seca.
Devagar, muito devagar, tornou a montar os revólveres e carre-
gou-os com os cartuchos que presumia secos. Uma vez concluída
a tarefa, segurou aquele concebido para a mão esquerda, engatilhou-
-o... e depois tornou a baixar lentamente o gatilho. Queria saber, sim.
Queria saber se quando premisse o gatilho se ouviria uma explosão
satisfatória ou apenas mais um daqueles cliques. Mas um clique não
significaria coisa nenhuma e uma explosão serviria apenas para redu-
zir vinte para dezanove... ou nove... ou três... ou zero.
Rasgou mais um pedaço da camisa, pôs nele os restantes cartu-
chos — aqueles que tinham sido molhados — e atou-o, usando
a mão esquerda e os dentes. Meteu-os na bolsa.
Dorme, exigia-lhe o seu corpo. Dorme, agora tens de dormir, antes do
escuro, não há mais nada, estás estafado...
Levantou-se a cambalear e olhou para um lado e para o outro da
praia deserta. Era da cor de uma peça de roupa interior que há muito
não fosse lavada, salpicada por conchas marinhas destituídas de cor.
Aqui e ali, assomavam grandes rochas da areia de grão grosseiro, co-
bertas por guano, cujas camadas mais antigas eram amarelas como
dentes velhos e as mais recentes eram manchas brancas.
A linha da maré alta era marcada por kelp seco. Viu pedaços da
sua bota direita e dos odres perto dessa linha. Pensou que era quase
um milagre os odres não terem sido arrastados para o mar pelas
grandes ondas. Com passo lento, um coxear delicado, dirigiu-se para
A ESCOLHA DOS TRÊS 25

onde eles estavam. Pegou num e abanou-o junto ao ouvido. O outro


estava vazio. Este ainda tinha um pouco de água. A maior parte das
pessoas não saberia ver a diferença entre eles, mas o pistoleiro co-
nhecia cada um deles tão bem como uma mãe conhece os seus gé-
meos verdadeiros. Viajava há muito, muito tempo com aqueles
odres. A água agitou-se no seu interior. Era bom — um presente.
Quer a criatura que o atacara quer qualquer uma das outras poderia
ter rasgado aquele odre ou o outro com uma dentada ou um golpe de
tenaz, mas nenhuma o fizera e a maré poupara-os. Da criatura não
havia sinal, embora tivessem os dois ido parar acima da linha da ma-
ré. Talvez outros predadores a tivessem levado; talvez os da sua espé-
cie lhe tivessem dado um funeral no mar, como sucedia com os inle-
fantes, umas criaturas gigantescas de que ouvira falar nas histórias
infantis e de que se dizia que enterravam os seus mortos.
Levantou o odre com o cotovelo esquerdo, bebeu profundamen-
te e sentiu que recuperava algumas forças. Claro que a bota direita es-
tava destruída... mas depois sentiu uma réstia de esperança. A sola
estava intacta — arranhada mas intacta — e talvez fosse possível cor-
tar a outra bota de maneira que ficassem semelhantes, fazer alguma
coisa que durasse pelo menos algum tempo...
Foi tomado por fraqueza. Debateu-se, mas os joelhos fraqueja-
ram e sentou-se, estupidamente mordendo a língua.
Não vais perder os sentidos, disse para consigo com determinação.
Aqui não, pode aqui vir esta noite outra coisa daquelas e acaba contigo.
Assim, levantou-se e amarrou o odre vazio à cintura, mas andara
apenas vinte metros de volta ao lugar onde deixara as armas e a bolsa
quando tornou a cair, meio desmaiado. Ali ficou durante um bocado,
com uma bochecha colada à areia, a aresta de uma concha cravada na
linha do maxilar, quase o suficiente para fazer sangue. Lá conseguiu
beber do odre e depois regressou ao lugar onde acordara. Havia uma
árvore-de-josué vinte metros encosta acima — estava definhada, mas
pelo menos daria alguma sombra.
Para Roland, os vinte metros mais pareciam vinte quilómetros.
Apesar disso, empurrou esforçadamente aquilo que restava dos
seus bens até àquela pequena poça de sombra. Deitou-se com a cabeça
na erva, caindo imediatamente naquilo que poderia ser sono, incons-
ciência ou morte. Olhou para o céu e tentou estimar as horas. Não
26 STEPHEN KING

era meio-dia, mas a dimensão da poça de sombra onde estava a des-


cansar dizia que o meio-dia estava perto. Aguentou-se mais um mo-
mento, virou o braço direito e levou-o para junto dos olhos, à procu-
ra das linhas vermelhas reveladoras de infeção, de algum veneno
a penetrar com regularidade até ao centro do seu corpo.
Tinha a palma da mão de um vermelho mortiço. Não era bom
sinal.
Bato punhetas com a esquerda, pensou ele, pelo menos isso.
Foi então tomado pelas trevas e dormiu as dezasseis horas que se
seguiram, com o som do mar Ocidental a bater incessantemente nos
seus ouvidos sonhadores.

Quando acordou o mar estava escuro, mas havia uma luz débil
no céu a oriente. A manhã vinha a caminho. Sentou-se e quase foi
vencido pelas vagas de tonturas.
Inclinou a cabeça para a frente e esperou.
Quando as tonturas passaram, olhou para a mão. Estava infetada,
sem dúvida, um revelador inchaço vermelho que se espalhava pela
palma acima até ao pulso. Parava aí, mas conseguia já ver os começos
débeis de outras linhas vermelhas, que acabariam por conduzir ao co-
ração e matá-lo. Sentia-se quente, febril.
Preciso de um remédio, pensou. Mas aqui não há remédios.
Teria então chegado tão longe para morrer? Não morreria. E se
morresse apesar da sua determinação, morreria a caminho da Torre.
Mas que extraordinário que tu és, pistoleiro!, ouvia na sua cabeça o ho-
mem de negro dizer com uma risadinha. Que indomável! Que romântico
na tua estúpida obsessão!
— Vai-te foder — resmungou, e bebeu. Também não restava
muita água. Tinha um mar inteiro à sua frente, que de muito lhe ser-
via; água, água por todo o lado, mas nem uma gota para beber. Dei-
xá-lo.
A ESCOLHA DOS TRÊS 27

Afivelou os cintos das armas, atou-os — este processo era tão


demorado que ainda não terminara quando a primeira luz fraca da
aurora se intensificara no prólogo do dia propriamente dito — e de-
pois tentou sentar-se. Só se convenceu de que era capaz quando
o fez.
Segurando-se à árvore-de-josué com a mão esquerda, prendeu
o odre ainda não bem vazio com o braço direito e lançou-o ao om-
bro. Seguiu-se a bolsa. Quando se endireitou, foi tomado novamente
por uma fraqueza e baixou a cabeça, à espera, pronto.
A fraqueza passou.
Com passos vacilantes, em ziguezague, de homem nas últimas fa-
ses da embriaguez ambulatória, o pistoleiro fez o caminho de regres-
so até à praia. Ficou de pé a olhar um oceano negro como vinho de
amora e depois tirou o resto da carne seca da bolsa. Comeu metade
e, desta vez, tanto a boca como o estômago a aceitaram com um
pouco mais de vontade. Virou-se e comeu a outra metade enquanto
observava o Sol a erguer-se sobre as montanhas onde Jake morrera
— parecendo a princípio agarrar-se aos dentes cruéis e desarboriza-
dos daqueles picos, depois erguendo-se acima deles.
Roland tinha o rosto virado para o sol, fechou os olhos e sorriu.
Comeu o resto da carne seca.
Pensou: Muito bem. Agora sou um homem sem comida, com
dois dedos a menos da mão e um do pé do que aqueles com que nas-
ci; sou um pistoleiro com cartuchos que podem não disparar; estou a
adoecer por causa da mordidela de um monstro e não tenho remé-
dios; tenho água para um dia, com sorte; talvez seja capaz de andar
vinte quilómetros se for até aos meus limites. Sou, em suma, um ho-
mem à beira de tudo.
Que caminho deveria tomar? Tinha vindo de leste; não podia se-
guir para oeste sem os poderes de um santo ou de um salvador. Res-
tava-lhe portanto o norte ou o sul.
Norte.
Era a resposta que lhe dava o coração. Não havia nela qualquer
interrogação.
Norte.
O pistoleiro começou a caminhar.

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