a escolha dos tres
a escolha dos tres
a escolha dos tres
STEPHEN KING
Tradução de
ROSA AMORIM
A Don Grant, que arriscou com estes romances, um a um.
ARGUMENTO
O MARINHEIRO
Dum-a-chum? Dad-a-cham?
O pistoleiro levantou-se a cambalear. A coisa rasgou-lhe as calças
de ganga a escorrer água, rasgou-lhe uma bota cujo couro velho esta-
va amolecido mas era rijo como ferro e arrancou um pedaço de carne
ao fundo da perna de Roland.
Ele sacou da arma com a mão direita e só se apercebeu de que
faltavam dois dos dedos necessários para executar aquela operação
assassina quando o revólver bateu na areia.
O monstro tentou avidamente apanhá-la com a tenaz.
— Não, sacana! — resmungou Roland, e deu-lhe um pontapé.
Foi como pontapear um bloco de rocha... que mordia. Arrancou a bi-
queira da bota direita de Roland, arrancou-lhe a maior parte do dedo
grande, arrancou-lhe a bota do pé.
O pistoleiro baixou-se, pegou no revólver, deixou-o cair, disse
um palavrão e finalmente lá conseguiu. Aquilo que em tempos fora
uma coisa tão fácil que nem sequer se pensava nisso transformara-se
subitamente num truque semelhante a malabarismos.
A criatura estava agachada em cima da bota do pistoleiro, a rasgá-
-la enquanto fazia as suas perguntas distorcidas. Uma onda veio re-
bentar na praia e a espuma coalhada na crista tinha um ar pálido
e mortiço à luz velada da meia-lua. A lagostosidade deixou de traba-
lhar na bota e ergueu as tenazes naquela pose de pugilista.
Roland sacou da arma com a mão esquerda e premiu o gatilho
três vezes. Clique, clique, clique.
Pelo menos agora já sabia o estado dos cartuchos nas suas câmaras.
Guardou a arma esquerda no coldre. Para guardar a direita teve
de virar o cano para baixo com a mão esquerda e depois deixá-la cair
no seu lugar. O sangue deixou peganhentas as coronhas gastas de
sândalo, salpicou o coldre e as calças de ganga velhas a que estava
preso o coldre por uma faixa. Jorrava dos cepos onde costumavam
estar os dedos.
O pé direito mutilado continuava demasiado dormente para que
sentisse dor, mas a mão direita era toda ela um ardor lancinante. Os
fantasmas de dedos talentosos e muito treinados que já estavam em
decomposição nos sucos digestivos das entranhas daquela coisa grita-
vam que ainda ali estavam, que estavam a arder.
A ESCOLHA DOS TRÊS 15
dos seixos lhe morderam a carne viva ensanguentada, mas tirou a pe-
dra do chão e ergueu-a, com os lábios arrepanhados.
Dad-a, começou a monstruosidade, cujas garras baixaram e se
abriram quando a onda rebentou e o seu som recuou, e o pistoleiro
arremessou-lhe a pedra com toda a força que tinha.
Ouviu-se um barulho crepitante quando as costas segmentadas
da criatura se partiram. Ela agitava-se loucamente debaixo da pedra,
com a cauda a levantar-se até meio e a bater no chão, a levantar e a
bater. As suas interrogações tornaram-se exclamações zumbidas de
dor. As pinças abriam-se e fechavam-se no ar. A bocarra em forma
de bico mordia grumos de areia e seixos.
E no entanto, quando rebentou outra onda, tentou levantar no-
vamente as pinças e, ao fazê-lo, o pistoleiro pisou-lhe a cabeça com
a bota que lhe restava. Ouviu-se um som como de muitos galhos se-
cos a partirem-se. Surgiu um fluido espesso debaixo do tacão da bota
de Roland, salpicado em duas direções. Parecia negro. A coisa arque-
jou as costas e contorceu-se freneticamente. O pistoleiro fincou a bo-
ta com mais força.
Veio uma onda.
As tenazes da monstruosidade ergueram-se dois centímetros...
quatro... estremeceram e caíram, abrindo-se e fechando-se com um
tremor.
O pistoleiro descalçou a bota. O bico serrilhado da coisa, que lhe
separara dois dedos da mão e um do pé do seu corpo vivo, abriu-se
e fechou-se devagar. Uma das antenas jazia na areia, partida. A outra
tremia sem sentido.
O pistoleiro tornou a pisar. E outra vez.
Afastou a pedra com um pontapé acompanhado de um grunhido
de esforço e deslocou-se ao longo do lado direito do corpo do mons-
tro, batendo metodicamente com a bota esquerda, a esmagar-lhe
a carapaça, a espremer-lhe as entranhas pálidas para a areia cinzento-
-escura. Estava morto, mas queria fazer daquilo o que lhe apetecia;
nunca na sua vida longa e estranha tinha sido magoado de modo tão
fundamental e tudo aquilo fora tão inesperado.
Continuou até ver a ponta de um dos seus dedos na mistela
amarga da coisa morta, viu debaixo da unha o pó branco do gólgota
A ESCOLHA DOS TRÊS 17
onde ele e o homem de negro tinham tido a sua longa conversa, e de-
pois desviou os olhos e vomitou.
Recuou em direção à água como um bêbedo, segurando a mão
ferida junto à camisa, e de vez em quando olhava para trás para se as-
segurar de que a coisa não continuava viva, como uma vespa obstina-
da em que se bate vezes sem conta, mas que continua a estrebuchar,
atordoada, mas não morta; para se assegurar de que não o seguia,
com as suas interrogações alienígenas na sua voz fatalmente desespe-
rante.
Quando chegou a meio caminho da praia deixou-se ficar balou-
çando, a olhar para o sítio onde estivera, recordando. Ao que parecia,
adormecera, logo abaixo da linha da maré alta. Agarrou na bolsa e na
bota desfeita.
À luz glabra da lua, viu outras criaturas do mesmo género, e na ce-
sura entre uma onda e a seguinte ouviu as suas vozes interrogativas.
Recuou um passo de cada vez, retirou-se até chegar ao limiar relva-
do da praia. Aí chegado, sentou-se e fez tudo aquilo que sabia fazer:
polvilhou os cepos dos dedos com o resto do tabaco para estancar
o sangue, polvilhou-os com uma camada grossa, apesar da nova picada
(o dedo grande do pé que tinha em falta juntou-se ao coro), e depois
deixou-se ficar simplesmente sentado, a suar ao frio, a pensar em infe-
ções, a pensar como havia de viver neste mundo sem dois dedos da
mão direita (no que dizia respeito às armas, as duas mãos tinham sido
iguais, mas a direita imperara em tudo o resto), a pensar se a coisa teria
algum veneno na mordedura que pudesse já estar a exercer nele o seu
efeito, a pensar se a manhã alguma vez chegaria.
O P RISIO N E I RO
C APÍTUL O 1
A PORTA
Quando acordou o mar estava escuro, mas havia uma luz débil
no céu a oriente. A manhã vinha a caminho. Sentou-se e quase foi
vencido pelas vagas de tonturas.
Inclinou a cabeça para a frente e esperou.
Quando as tonturas passaram, olhou para a mão. Estava infetada,
sem dúvida, um revelador inchaço vermelho que se espalhava pela
palma acima até ao pulso. Parava aí, mas conseguia já ver os começos
débeis de outras linhas vermelhas, que acabariam por conduzir ao co-
ração e matá-lo. Sentia-se quente, febril.
Preciso de um remédio, pensou. Mas aqui não há remédios.
Teria então chegado tão longe para morrer? Não morreria. E se
morresse apesar da sua determinação, morreria a caminho da Torre.
Mas que extraordinário que tu és, pistoleiro!, ouvia na sua cabeça o ho-
mem de negro dizer com uma risadinha. Que indomável! Que romântico
na tua estúpida obsessão!
— Vai-te foder — resmungou, e bebeu. Também não restava
muita água. Tinha um mar inteiro à sua frente, que de muito lhe ser-
via; água, água por todo o lado, mas nem uma gota para beber. Dei-
xá-lo.
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