Peoxeira e Macumba
Peoxeira e Macumba
Peoxeira e Macumba
&
Macumba
Por
Pablo Amaral rebello
4
Não foi um bom dia de negócios para João dos Mistérios. A presença
dos homens do coronel Olho de Cobra deixou os moradores inibidos.
Nenhum deles queria demonstrar possuir mais do que o esperado, uma vez
que os soldados tinham olhos de rapina e não se importavam em cobrar uma
pequena taxa da população pela “proteção” que ofereciam. Também não
tinham pressa em ir embora. Com as caminhonetes carregadas, partiram em
bando para o bordel, onde se revezavam para satisfazer as suas vontades
nefastas. Duas sentinelas permaneciam do lado de fora do estabelecimento,
vigiando a rua de mau humor, enquanto esperavam a vez de se divertirem.
Para não perder a viagem, João dos Mistérios seguiu suas visitas
domiciliares aos doentes do vilarejo. Era algo que fazia rotineiramente.
Avaliar a saúde e oferecer conselhos e remédios caseiros para aliviar as dores
alheias o tornavam uma pessoa querida pela comunidade. Não era médico
nem nunca chegou a estudar medicina, mas aprendeu com o avô a identificar
os males causados ao corpo por vírus, bactérias ou vícios, bem como os
efeitos positivos que a administração de certas poções de ervas e infusões de
raízes aos enfermos provocava.
Os doentes também falavam de suas mãos mágicas, embora João dos
Mistérios não admitisse que o chamassem de curandeiro. Era um homem que
não gostava de chamar a atenção, até porque não era nenhum santo. Após a
última consulta, a luz diurna se extinguia entre as nuvens no horizonte e a
maioria dos moradores já estava em casa, pois o bar, a única fonte de
diversão local, fechara para reformas após todas as emoções fortes do dia.
João dos Mistérios escolheu esse horário para entrar num beco e bater na
porta de trás da casa de paredes azuis.
Demorou um minuto para alguém atender. Ao ser aberta, revelou uma
mulher esbelta, de trinta e poucos anos e olhos de pantera vestida somente
com um roupão vermelho, iluminada por uma vela, que carregava com uma
das mãos. Ela olhou o negro na soleira da porta de cima abaixo e ofereceu um
sorriso malicioso.
– João dos Mistérios – cumprimentou com voz de veludo. – O que
posso fazer por você a essa hora?
– Madame Fátima, gostaria de fazer negócios, mas parece que seu
marido não está em casa – respondeu João, mostrando os dentes em um belo
sorriso.
– Pois é, ele precisou sair às pressas para levar uma mensagem lá para
os lados de Riacho Doce. Você deve ter visto a confusão que aprontaram no
Bar do Mineiro, não? – lamentou a mulher.
– Sim, sim. Um negócio dos diabos. Você soube que fim levou o Tião
Peixeira?
– Pelo que ouvi do meu marido, o delegado Carrapato levou o corpo
para o deserto. Uma cova rasa. Disse que o bandido não merecia mais do que
isso.
– Você não concorda?
– Nunca se importaram muito com minha opinião dentro desta casa –
disse Fátima, dando de ombros. – Posso ajudá-lo com algo mais, meu caro
João?
Ao dizer isso, ela encostou-se no batente da porta e a alça do roupão
se abriu um pouco, revelando o contorno de um seio nu. Os olhos dela
brilhavam no escuro. O sorriso de João dos Mistérios se alargou.
– A madame é muito atenciosa, mas talvez seja melhor eu partir. O
que as pessoas diriam se me vissem conversando com a senhorita sem seu
marido em casa?
Fátima desceu um degrau e puxou João dos Mistérios pelos ombros.
– Deixe que falem – sussurrou em seu ouvido, passando a mão por
suas costas musculosas e mordendo levemente o lóbulo da orelha. – Se o
traste do meu marido pode se divertir com as piranhas que encontra na
estrada, não é justo que eu faça o mesmo com um garanhão como você?
Fátima não esperou por uma resposta. Beijou João dos Mistérios, que
respondeu com a intensidade dos homens solteiros, apossando-se da mulher
com mãos firmes e seguras. Quando a levantou pelas nádegas, a moça acabou
derrubando a vela, que caiu no chão arenoso e se apagou enquanto os
amantes mergulhavam na escuridão sem nenhum pudor.
Quando deu por si, percebeu que estava deitado de barriga para baixo
com o rosto enfiado na areia negra. Seu corpo formigava de forma estranha,
como se tivesse acabado de se reintegrar no vazio para onde a consciência de
Tião Peixeira fora lançada. Lentamente, levantou-se, procurando identificar
que lugar era aquele. Dava para ouvir as ondas quebrando na arrebentação.
Ao olhar para a frente, enxergou um mar preto feito piche que se estendia até
o infinito, uma vez que não havia estrelas no céu nem uma linha que definisse
o horizonte distante.
A escuridão cobria aquele mundo abandonado por Deus. De pé, Tião
Peixeira percebeu então que estava nu, embora isso não o tenha abalado ou
incomodado nem por um momento. Também notou que carregava algo na
mão fechada. Ao abri-la, arregalou os olhos perante o brilho de um pequeno
círculo metálico prateado, parecido com a lua cheia. Ele segurou a esfera
entre o indicador e o dedão, estupefato com sua beleza radiante enquanto
analisava os dois lados: um deles apresentava um rosto muito semelhante ao
dele próprio; o outro, uma coroa. Era uma moeda.
De repente, o som de um choro próximo chamou sua atenção. Ele
guardou a moeda na mão fechada, pressionando-a contra o peito, enquanto
buscava a origem do ruído carregado pelo vento. Logo percebeu um garoto
nu a remexer a areia desesperadamente, como se procurasse alguma coisa.
Aproximou-se dele, curioso.
– Moleque, o que houve? O que está procurando? – indagou.
A criança, porém, parecia não o escutar. Apenas chorava mais alto e
fazia buracos em diferentes pontos da areia negra, alheia aos questionamentos
do estranho. Pouco acostumado a ser ignorado, Tião Peixeira puxou o garoto
pelo braço.
– Eu te fiz uma pergunta, moleque – ralhou.
O garoto engoliu o choro por um minuto, tentando a todo custo se
livrar do homem que o segurava, como se não pudesse parar o que estava
fazendo.
– Me solta, tio – suplicou. – Tenha pena de mim. Preciso encontrar
minha moeda antes que ele volte ou nunca mais verei minha mãe.
Tião Peixeira apertou com mais força a moeda prateada que
carregava.
– Quem levou sua mãe, guri? – quis saber, confuso.
O menino apontou com a mão livre para o mar negro, cujas ondas
arrebentavam como trovões a poucos metros de distância.
– O barqueiro – respondeu. – Aquele que nos leva para a Terra
Prometida!
A resposta abalou profundamente Tião Peixeira, que soltou a criança
antes de perceber o que estava fazendo. Por sua vez, o menino se jogou com
desespero na areia, voltando a escavá-la e chorar como se não houvesse
amanhã. E talvez não houvesse, ao menos, naquele lugar obscuro.
Àquela altura, os olhos de Tião Peixeira estavam mais acostumados à
escuridão e ele conseguia distinguir outras sombras espalhadas perto da linha
de arrebentação chorando e remexendo a areia com gestos mecânicos e
previsíveis. Também notou uma fila indiana de vultos que seguia com passos
lentos mais acima na praia, até um píer distante, no fim do qual um barco
parecia flutuar ao sabor das marés. Tião Peixeira não pensou duas vezes e
começou a andar naquela direção.
Diferentemente, contudo, dos homens e das mulheres que seguiam
arrastando os pés, com as costas envergadas e o olhar perdido, Tião Peixeira
seguia em frente com passos rápidos e postura decidida. Percebeu, com certa
apreensão, o quanto era diferente de todos os outros que via por ali. Era como
se aquelas pessoas não tivessem mais nada pelo que lutar. Muitas nem
protegiam as próprias moedas, opacas e corroídas de ferrugem, carregando-as
com displicência entre dedos moles, como se fossem apenas sombras de
pessoas que se foram.
Tião Peixeira passou ao largo da fila, seguindo para o píer feito de
madeira velha, cheio de buracos perigosos e tábuas suspeitas. No fim dele,
uma figura encapuzada com o rosto encoberto por sombras segurava um
enorme cajado com uma das mãos enquanto cobrava a passagem dos
passageiros com a outra. Toda moeda recolhida era depositada num saco
escuro preso na cintura do barqueiro, cada homem ou mulher que tentava
entrar sem pagar era empurrado sem misericórdia para dentro do mar e
ninguém reclamava de nada. Pelo menos, até Tião Peixeira alcançar o
começo da fila e se meter na frente do homem encapuzado, interrompendo o
fluxo de passageiros.
Se o barqueiro ficou surpreso, era impossível saber, embora ele tenha
levantado o rosto coberto de sombras para o homem que o encarava com
fúria escaldante.
– Para onde está levando essas pessoas? – exigiu saber.
O barqueiro não disse nada. Só virou levemente o pescoço para trás,
na direção do mar, e de volta para Tião Peixeira. Mesmo daquela distância
era impossível enxergar o rosto escondido pelo manto. Era como se o vazio
do espaço o contemplasse, o que deixaria qualquer um abalado, até um cara
durão como ele.
– Meus pais – continuou Tião Peixeira, tentando decifrar um enigma.
– Foi para lá que você os levou?
O barqueiro o encarou, deixando o silêncio se alongar entre os dois.
Tião Peixeira trincou os dentes.
– E Maria Estrela? – continuou, com a voz falhando por um breve
momento, fazendo-o engolir em seco. – Ela também está lá?
O barqueiro permaneceu impassível. A vontade de Tião Peixeira era
de arrebentar os dentes daquela criatura pedante, mesmo pressentindo que
não seria saudável tocá-la. Assim, fez a última pergunta que guardava:
– Você pode me levar até eles?
Ao ouvir isso, o barqueiro estendeu o braço e abriu a mão, com a
palma voltada para cima, num gesto que falava por si mesmo. Tião Peixeira
se lembrou da moeda prateada que trazia no punho fechado. Ele abriu os
dedos devagar, com cuidado para não a derrubar, e contemplou o seu
esplendor. Em seguida, virou-se para a figura sombria que permanecia parada
à espera de uma decisão e fechou a mão com força, afastando-a do espectro
maldito.
– Isso ainda não acabou – rosnou para o barqueiro.
Após dizer tais palavras, seguiu com passos pesados pelo mesmo
caminho por onde viera.
4
Devido ao corpo debilitado, não restavam muitas opções a Tião
Peixeira além de aceitar a hospitalidade e os cuidados que lhe eram
oferecidos. Mesmo que passasse os dias a resmungar, procurava ajudar como
podia nas tarefas do dia a dia e observava seu anfitrião com um misto de
curiosidade e respeito. Por sua vez, João dos Mistérios estava impressionado
com a rápida recuperação do enfermo, como demonstrou ao trocar as
bandagens sujas de pus no quinto dia após o resgate:
– Seus ferimentos estão cicatrizando muito bem – comentou. – Se
continuar assim, em uma semana ninguém poderá dizer que levou um tiro,
quanto mais 27!
– Já lhe disse que não posso morrer – queixou-se Tião Peixeira,
sorumbático.
João dos Mistérios o encarou, sem dizer nada, o que deixou o outro
inquieto.
– Onde estão minhas peixeiras? – quis saber. – Vou precisar delas
quando for embora e não as vi em lugar nenhum desde que acordei.
– Elas não estavam com você quando o enterraram – respondeu João
dos Mistérios. – Imagino que um dos homens que atirou em você as tenha
levado.
Tião Peixeira bufou de raiva.
– Esse vai ser o primeiro cabra que vou visitar quando sair desta casa
– ameaçou. – Para ensinar a ele com quantos paus se faz uma canoa. Marque
minhas palavras: vou mostrar a ele o que é bom para a tosse...
João dos Mistérios não insistiu na conversa. Sabia que, se desse
corda, Tião Peixeira falaria pelos cotovelos a tarde inteira. No entanto, ficava
cada vez mais curioso a respeito do paciente, como revelavam as poucas
perguntas que lhe fazia, às quais o doente respondia com afrontas e bravatas,
arisco a qualquer tentativa de aproximação. Tudo que queria era ir embora
dali. Mesmo sem dizer nada, mostrava-se incomodado com os rituais
realizados por seu anfitrião.
Na manhã do oitavo dia, encontrou João dos Mistérios parado diante
do galinheiro, com o olhar perdido no horizonte.
– João Macumba – chamou. – Está tudo bem, homem?
O negro não respondeu. Permanecia imóvel, de costas para o enfermo,
com as galinhas ciscando próximas a seus pés, alheias aos dramas humanos.
Tião Peixeira franziu a testa.
– João? – chamou numa voz mais baixa.
Nenhuma resposta. Usando um pedaço de pau como bengala, Tião
Peixeira mancou até chegar ao lado do negro. Ao observar seu rosto, um
arrepio percorreu sua espinha. Ele parecia um zumbi, com a boca escancarada
e os olhos abertos a revelarem apenas a esclera, as pupilas procurando refúgio
atrás das pálpebras que não se fechavam. O corpo também tremia de forma
sútil.
Tião Peixeira temeu que o anfitrião estivesse tendo um derrame ou
algo parecido. No entanto, bastou encostar em seu braço para a vida retornar
ao rosto de João dos Mistérios. Suas pupilas baixaram, sua boca se fechou e
ele olhou ao redor, confuso, como se tivesse acabado de acordar de um longo
sonho.
– O que aconteceu?
– Eu é que pergunto – rebateu Tião Peixeira. – Você é que estava
plantado aqui que nem uma árvore, como se estivesse em outro planeta. Está
tudo bem?
João dos Mistérios piscou três vezes e levou à mão a cabeça.
– Os espíritos estão inquietos...
Tião Peixeira deu um passo para trás. Não por medo, pois não era
homem de temer fantasmas ou demônios, mas por respeito. Afinal, sabia que
João dos Mistérios era um bruxo. E, pelo que havia observado, um bruxo
poderoso.
– O que eles disseram? – inquiriu, timidamente.
João dos Mistérios não respondeu. Apenas respirou fundo e
contemplou o horizonte distante, como se as respostas que procurava
estivessem em outro lugar. Enfim, virou-se para Tião Peixeira e o olhou dos
pés à cabeça.
– Você precisa de roupas novas – constatou.
Tião Peixeira usava as calças e a camisa ensanguentadas com as quais
fora encontrado. Nada mais que farrapos, que mal se sustentavam sobre o
corpo magro e maltratado.
– Posso arranjar roupas quando tiver condições de ir embora –
argumentou. – Não preciso da sua caridade.
João dos Mistérios não lhe deu atenção, indo até o pequeno estábulo
onde a égua branca descansava em sua baia. Tião Peixeira mancou atrás dele.
– O que está fazendo?
João dos Mistérios estava selando a égua.
– Vou dar um pulo em Água Parada – respondeu. – Tem comida no
fogão e água fresca no jarro. Volto amanhã ou depois.
– Espere – pediu Tião Peixeira enquanto o outro subia no cavalo – Me
leve com você! Ficar parado está me deixando louco!
João dos Mistérios ofereceu um pequeno sorriso ao enfermo.
– Nossa jornada começa quando eu voltar – respondeu.
Antes que Tião Peixeira pudesse protestar, João dos Mistérios bateu
nas ancas da égua e balançou as rédeas, pondo-a num galope apressado e
veloz que levantou poeira ao partir. A poeira fez o enfermo tossir e quase
perder o equilíbrio, mas ele se manteve de pé graças à bengala improvisada
– O que você quer dizer com nossa jornada? – berrou o mais alto que
pôde.
Só que era tarde demais, João dos Mistérios estava fora de alcance,
longe demais para escutar os xingamentos que se seguiram.
1
Tudo que Verônica Mota queria era ver o mundo se reerguer das cinzas,
motivo pelo qual decidiu criar o jornal Edição Extraordinária, de publicação
eventual. Ela acreditava que o periódico ajudaria a reforçar os laços
comunitários, que voltavam a adquirir importância com o fim das constantes
lutas entre os senhores de terra e o estabelecimento de novos territórios,
soberanos dentro de limites previamente demarcados, conquanto
permanecessem sem nomes. As dificuldades para levar o projeto adiante,
porém, não eram poucas.
– O que você quer dizer com a prensa quebrou? – exigiu Verônica ao
entrar no parque gráfico do jornal. – Todos os seiscentos exemplares
impressos já foram vendidos e tenho mensageiros lá fora pedindo por mais.
Pela primeira vez em mais de dez anos as pessoas querem saber das notícias e
vocês vem me dizer que não temos como atender à demanda? Mestre Silas,
não acredito que logo o senhor vai me deixar na mão.
Um homem de costas encurvadas se virou para Verônica. Ele era
pequeno, com longas suíças brancas e um par de óculos de aros dourados e
lentes que deixavam seus olhos enormes, como um personagem de desenho
animado. Mestre Silas trabalhava no parque gráfico com o neto, Guto, um
jovem robusto de vinte e poucos anos vestido num macacão todo manchado e
com as mãos sujas de graxa. Os dois procuravam arrumar a prensa mecânica,
capaz de imprimir até 250 páginas por hora, quando em funcionamento, mas
pareciam não estar levando a melhor naquela batalha inglória.
Mestre Silas fez uma mesura, sem se deixar afetar pelo mau humor da
patroa.
– Minha cara Verônica, lamento por esse pequeno infortúnio, mas devo
lembrá-la que estamos, literalmente, trabalhando com uma peça de museu –
disse, apontando calmamente, para a máquina, que ainda contava com uma
placa metálica pregada na coluna principal identificando sua procedência
original. – Trata-se de uma máquina que estava inativa havia pelo menos dois
séculos. Precisamos adaptá-la às nossas necessidades, e isso não se faz da
noite para o dia. Já temos uma avaliação geral e pedimos que o ferreiro
produza algumas peças essenciais que sejam mais resistentes e adequadas às
nossas necessidades. Isso não deve ser um problema com todo o lucro que
temos tido com o lançamento do jornal, certo?
– Deixe que dos custos me preocupo eu, mestre Silas – retorquiu
Verônica. – O que preciso de vocês são jornais prontos para a venda! Não me
diga que nosso estoque acabou, porque papel não nos falta! Quantos
exemplares temos à disposição?
Mestre Silas se virou para o neto, que limpou a garganta antes de
responder:
– Exatamente 242 exemplares, madame. Teríamos mais se a prensa
principal não tivesse se partido em três pedaços...
Verônica trincou os dentes.
– Uma situação da qual já estamos cuidando, minha senhora –
apressou-se em dizer mestre Silas.
As palavras do funcionário pareciam não tranquilizar a patroa, que o
fuzilava com os olhos, claramente se contendo para não perder a cabeça.
– É uma tiragem pequena, mas que deve atender à demanda por ora –
concedeu Verônica. – No entanto, a novidade está correndo lá fora, senhores.
Temos recebido pedidos de cidades até do território do general Peregrino,
para vocês terem uma ideia da importância desse trabalho. O público está
sedento por notícias, e não há mais ninguém capaz de levá-las até eles além
de nós, entenderam? Quanto tempo até consertarem a máquina?
Mestres Silas e Guto trocaram um olhar constrangido, mas não tiveram
tempo de responder, já que a porta do parque gráfico se abriu para dar
passagem a um rapaz bem apessoado, de cabelos penteados e olhos escuros,
com uma gravata borboleta a lhe enfeitar o pescoço e suspensórios a
segurarem as calças sociais. Era o secretário Enzo.
– Madame Mota – chamou o rapaz numa voz grave. – sua presença é
requisitada na redação...
Verônica se virou para o recém-chegado como uma cascavel pronta
para atacar.
– Não está vendo que estou ocupada, Enzo? Tenho um problema sério
para resolver por aqui. Se o Leandro quer outro adiantamento para tomar
umas no bar, diga a ele que...
– Desculpe, madame Mota – interrompeu o secretário, claramente sem
graça. – mas quem gostaria de vê-la é o fazendeiro Bastiano Mota.
– Oh! – comentou Verônica, surpresa, endireitando as costas e olhando
ao redor, como se procurasse lembrar o que fazia ali. – Avise meu pai que
estou a caminho, Enzo.
O secretário assentiu com uma mesura e deixou o parque gráfico.
– Quanto a vocês – retomou Verônica, virando-se para mestre Silas e
Guto. – deem um jeito nessa bagunça o quanto antes, entenderam? Temos um
jornal para colocar na rua!
2
Bastiano aguardava no escritório particular de Verônica, parado de
frente para a janela, de onde observava o movimento na avenida principal de
Riacho Doce. Com aproximadamente 7 mil habitantes, a cidade tinha um
cenário comercial próspero e agitado, como as ruas cheias de pedestres,
cavalos e carroças deixavam evidente. O fazendeiro notou um grupo de
mensageiros reunidos na esquina. Eram tipos de aparência rebelde e
desalinhada, visual típico de quem se arriscava a viajar sozinho pelas
perigosas estradas, assombradas por ladrões e animais selvagens. Um deles
carregava um revólver enferrujado na cintura, provavelmente para impor
respeito, visto que dificilmente estaria carregado. Sobravam armas, faltavam
balas, a não ser para os senhores de terra, cujos arsenais pareciam estar
sempre bem abastecidos. Sinais dos tempos sombrios em que viviam.
De repente, a porta do escritório se abriu, tirando Bastiano de seus
devaneios vespertinos. O fazendeiro se virou para encarar a jovem de cabelos
vermelhos encaracolados e rosto sardento que adentrou o recinto. Ela usava
botas longas, calça jeans justa, camisa social branca, e tinha uma cara de
poucos amigos que devia assustar os funcionários, mas não surtia nenhum
efeito sobre ele. Bastiano trincou os dentes, contendo a raiva no peito.
– Pai – disse Verônica a título de cumprimento.
Bastiano indicou a entrada com a cabeça.
– Feche a porta – ordenou.
Verônica cerrou os punhos e, por um momento, pareceu prestes a
protestar. No entanto, acabou obedecendo, talvez por não querer que os
funcionários vissem o que viria a seguir. Provavelmente, por um reflexo
arraigado desde a mais tenra infância. Bastiano ainda era uma figura paterna
poderosa para a jovem jornalista.
– A que devo essa visita inesperada? – quis saber Verônica, dando a
volta na mesa até chegar ao seu lugar.
Por sua vez, Bastiano se aproximou, abriu o jornal que vinha torcendo
entre os dedos e o jogou sobre a mesa como uma acusação.
– O que diabos é isso? – apontou para a manchete principal.
Verônica não se intimidou.
– Aparentemente, é o que está vendendo o jornal – respondeu.
Bastiano levantou o indicador, como um pedido de cautela.
– Não se faça de engraçadinha comigo, filha – começou. – Para os seus
funcionários, você pode bancar a fodona, mas comigo, não. Será que não
percebe o vespeiro em que está mexendo?
– Só estou levando as notícias para o povo – defendeu-se Verônica.
– Retratando os soldados do coronel Olho de Cobra como covardes
incompetentes? – enfureceu-se Bastiano. – Ou ao levantar dúvidas sobre as
afirmações feitas pelos militares a respeito desse tal Tião Peixeira?
– É a verdade – rebateu Verônica. – Leandro Fuentes pode ser um
beberrão inveterado, mas não é de inventar fatos. Faz questão de colocar tudo
preto no branco. Se algumas mentiras ficam evidentes no processo, a culpa
não é dele.
Bastiano deu um murro na mesa, fazendo a filha se calar.
– Não foi isso que combinamos, filha! Você me prometeu que faria a
coisa certa, que publicaria um jornal para unir a comunidade, e não esse
folhetim ridículo. Quer dizer, olha para essa manchete! A quem você quer
agradar com essas histórias de cavaleiros solitários e militares malvados?
Verônica se levantou, encarando o pai, olhos nos olhos.
– Não estou aqui para agradar a ninguém – respondeu. – Nem a você
nem ao coronel Olho de Cobra! Estou aqui para trabalhar, para mostrar o que
está acontecendo lá fora, no que restou deste mundo maldito, que homens
como você e o coronel Olho de Cobra arruinaram. Quero levar informações
relevantes que ajudem a tirar esse povo miserável da ignorância em que estão
afundados. É isso o que estou fazendo aqui e, se por acaso o incomodo de
alguma forma, dane-se! Sou dona do meu próprio nariz e não vou aceitar
censura nem de você nem de ninguém.
Bastiano recuou, assustado com as palavras enérgicas da filha.
Percebeu um fogo em seu olhar que nunca vira antes. Queria discutir,
explicar seu ponto de vista, colocar um pouco de bom senso na cabeça dela,
mas percebeu que suas palavras não fariam a menor diferença naquele
momento. Ele, todavia, não era homem de se render facilmente.
– Fale o que quiser sobre mim, mas tome cuidado com o coronel Olho
de Cobra – recomendou. – Ele pode ser menos compreensivo do que eu.
Verônica voltou a se sentar, inabalada.
– Caso tenha terminado, peço licença que ainda tenho muito trabalho a
fazer e poucos funcionários para me ajudar, ok?
Bastiano cerrou os punhos e trincou os dentes. Sua vontade era dar uns
bons tapas no traseiro da filha, para lhe dar uma lição, mas isso era algo que
não estava mais ao seu alcance. Verônica era uma adulta independente, dona
do próprio nariz, como ela bem dissera. Ainda assim, ela não sabia onde
estava se metendo. O fazendeiro engoliu a fúria que ameaçava consumi-lo.
– Só lembre o que lhe falei, filha – pediu, mais humilde. – Não ache
que posso protegê-la contra o coronel Olho de Cobra, porque não posso. Não
sou tão poderoso assim. Tome mais cuidado com as palavras que imprime
nesse jornal. É tudo que lhe peço.
Debruçada sobre um documento, Verônica parecia não dar atenção ao
pai.
– Não deixe a porta bater ao sair, sim?
Foi a gota d’água. Bastiano voltou a pôr o chapéu e saiu do escritório
batendo o pé. Nem se preocupou em fechar a porta.
3
Verônica assistiu à partida do pai em silêncio, com um misto de alívio e
preocupação. Em seguida, levantou-se e fechou a porta do escritório. Não
precisava de funcionários curiosos querendo saber o que haviam discutido.
Só então percebeu o tanto que suas mãos tremiam e deu o melhor de si para
se controlar. A verdade era que tinha medo, por saber que o pai estava certo e
que o coronel Olho de Cobra não era um homem conhecido por perdoar
quem falava mal dele ou dos seus. No entanto, se ninguém fizesse nada, ele
continuaria a explorar o povo e prosperar como o tirano que era e isso ela não
estava disposta a aceitar.
A jornalista caminhou até a janela e viu o pai partir em sua carruagem
vermelha. De volta à fazenda, certamente. Verônica respirou fundo, pensando
na loucura de tudo aquilo. Desde a publicação do jornal, recebeu reclamações
de padres e cidadãos preocupados, mas o pai era o primeiro a deixá-la aflita.
Achou que todos considerariam seus esforços uma piada, já que a civilização
regredira tecnologicamente mais de duzentos anos, como as máquinas de
escrever da redação e a prensa pré-histórica do parque gráfico deixariam
claro para qualquer um com olhos para ver o absurdo da situação. Ainda
assim, lá estava ela, com um jornal toscamente publicado causando
repercussões por todo o território.
Com certo orgulho, Verônica percebeu o interesse dos mensageiros
quando Guto – de mãos limpas, para variar um pouco – os abordou com a
última leva de exemplares para venda. Moedas trocaram de mão, jornais
foram devidamente embalados para viagem e cavaleiros partiram apressados,
de volta a cidades e vilarejos de onde vieram, carregando informações frescas
na bagagem. O sonho da jornalista virava realidade. Tudo que ela precisava
fazer era dar continuidade àquela história.
Distraída, Verônica não percebeu a chegada do homem de preto até ele
descer do cavalo diante do jornal. Só então ela deu uma boa olhada no sujeito
e em seu corcel negro, um animal de porte vigoroso e belo, muito diferente
dos cavalos magros e sujos que caminhavam pela rua. O rosto dele se
encontrava oculto por um chapéu de aba reta, preto como o restante de suas
indumentárias, embora fosse possível notar detalhes prateados na costura do
terno de um tecido vistoso e aspecto oleoso. Ele trazia uma espada de cabo
prateado na cintura e usava luvas de couro com buracos para os dedos
respirarem. Todos pareciam prestar atenção a seus movimentos, enquanto
prendia o cavalo na baia e se dirigia à entrada do jornal.
Os olhos de Verônica se abriram por inteiro. Aquele estranho veio bater
na sua porta. Imediatamente, a jornalista abriu um armário e se pôs a girar o
dial de um pequeno cofre. Ela errou o segredo na primeira tentativa e
precisou fazer tudo de novo. Os segundos passavam como relâmpagos em
sua cabeça. Podia apenas imaginar a identidade do homem de preto, mas
sabia que não tinha muito tempo. Enfim, abriu a porta do cofre e tirou um
revólver de dentro dele, assim como um punhado de balas – a única
segurança que tinha contra os infortúnios do mundo.
Já podia ouvir os passos do visitante na redação e as tentativas do
secretário Enzo de afastá-lo do escritório da patroa. Ele não teria sucesso,
Verônica sabia. Ela checou o tambor da arma, percebeu que estava carregado
e o fechou com um clique, guardando o restante das balas no bolso. Então,
retornou para ao seu lugar e aguardou com a arma apontada para a porta.
Quando ela se abriu, Verônica engatilhou o revólver e apontou para o rosto
do recém-chegado, que entrou sem pedir licença.
– Pode ir parando aí mesmo, camarada – ordenou, com voz imponente.
O homem de preto obedeceu, pousando a mão direita sobre o cabo
prateado da espada. O secretário Enzo se adiantou por trás dele e disse:
– Desculpe, madame, eu tentei detê-lo, mas ele não me deu ouvidos.
– Está tudo bem, Enzo – garantiu Verônica, sem tirar os olhos do
homem de preto. – Pode deixar que tomo conta de tudo agora. Se puder nos
dar um pouco de privacidade...
O secretário assentiu, fechando a porta do escritório ao sair. Verônica
aproveitou para dar uma boa olhada no visitante inesperado. Tratava-se de
um homem de traços finos, com um bigode bem desenhado a cair pela lateral
dos lábios, que ofereciam um sorriso amistoso e divertido, como se a arma
apontada para si fosse um convite a um flerte mais aberto. Apesar das
sombras que cobriam seu rosto, era possível notar seus olhos castanhos e
melancólicos, que fitavam a jornalista com interesse e uma curiosidade
incômoda, como se a estivesse despindo na imaginação.
– Deixe-me adivinhar – começou Verônica. – Você é um dos homens
do coronel Olho de Cobra, certo?
O homem de preto riu baixinho, como se tivesse acabado de ouvir uma
boa piada. Ao sorrir, procurava esconder os dentes, meio tortos.
– Um convidado, na verdade – respondeu. – Estou apenas de passagem
por essas terras. O bom coronel me ofereceu sua hospitalidade e, em troca,
tenho feito uns servicinhos para ele.
O homem de preto tirou a mão do cabo da espada e a meteu dentro do
colete.
– Opa, opa, opa – alertou Verônica, levantando-se da cadeira, com a
arma apontada para o rosto do desconhecido. – Sem movimentos bruscos,
colega, a menos que queira um buraco na testa para ventilar as ideias...
O homem de preto tirou vagarosamente a mão de dentro do colete para
revelar um envelope. Verônica soltou a respiração, curiosa.
– O que é isso?
O homem de preto esticou o braço, na intenção de lhe entregar a
encomenda.
– Um convite do coronel para a senhorita – detalhou.
Verônica arrancou o papel das mãos do desconhecido sem deixar de
apontar a arma para ele. O homem de preto voltou a sorrir, de boca fechada, e
levantou as mãos, em sinal de rendição. A jornalista abriu o envelope com a
mão livre e tirou a carta, lendo-a com dificuldade enquanto vigiava o
estranho o melhor que podia.
– Acho que já pode guardar a arma agora – sugeriu o homem de preto.
Verônica baixou o revólver.
– Um jantar? – perguntou. – O coronel quer me convidar para jantar?
O homem de preto baixou as mãos e puxou uma cadeira para se sentar.
– É o que parece, não é? Ele ficou muito impressionado com a matéria
que a senhorita publicou. Aquela sobre o Tião Peixeira. Também fiquei. Seu
jornalista leva jeito com as palavras...
– Obrigada – agradeceu Verônica, voltando a se sentar. – É o nosso
trabalho.
– Então estou certo ao imaginar que ele esteve em Água Parada e
entrevistou todas aquelas pessoas?
– Foi necessário para a matéria – respondeu Verônica.
O homem de preto apoiou os cotovelos no joelho, aproximando-se da
mesa.
– Nesse caso, será que eu poderia dar uma palavrinha com ele?
Verônica entrelaçou os dedos.
– Você pode conversar comigo – respondeu. – Acompanhei Leandro na
viagem e em boa parte das apurações. Posso tirar quaisquer dúvidas que o
senhor tiver.
O homem de preto voltou a observá-la, com interesse.
– Você sempre acompanha seus funcionários em reportagens como
essa? Parece trabalhoso e ineficiente, se me permite a observação.
Verônica o olhou de lado.
– Foi um caso excepcional – explicou. – Como pode ver, acabei de
abrir este jornal e ainda estou no processo de conhecer meus funcionários.
Leandro é o único que trabalhou, em sua vida passada, como jornalista por
aqui. Achei de bom tom acompanhá-lo para ficar a par de suas técnicas de
reportagem e de tudo que ele pode ensinar aos demais funcionários. Tenha
certeza de que foi uma viagem bastante produtiva. Leandro é um jornalista
excepcional.
O homem de preto assentiu, alisando o bigode de modo inconsciente.
– Entendo – concordou. – Mas, diga-me, senhorita, você ou seu
jornalista chegaram a ver o corpo do Tião Peixeira? Ou o lugar onde ele foi
enterrado?
Verônica levantou uma sobrancelha, começando a desconfiar dos
motivos por trás daquela série de perguntas.
– O bandido foi enterrado pelos homens do coronel numa vala sem
marcação – detalhou. – como seu chefe deve saber muito bem...
O homem de preto riu, esticando a coluna, como se não estivesse
realmente interessado no assunto.
– Como disse antes, sou apenas um convidado do bom coronel –
lembrou. – Desculpe incomodá-la com minhas dúvidas. Foi só o jeito que seu
jornalista falou desse Tião Peixeira na matéria. Parece que era um sujeito
bem impressionante, do tipo que eu gostaria de ver com os próprios olhos, se
tivesse chance – deu uma pausa. – Ou garantir que estivesse morto, se fosse
meu inimigo – outra pausa. – Mas já ocupei muito do seu tempo. Tenho
certeza de que a senhorita é uma mulher ocupada. Vou deixá-la em paz.
O homem de preto se levantou e Verônica fez o mesmo.
– Espere um minuto – pediu. – Quem é o senhor, afinal?
O homem de preto abriu a porta do escritório e sorriu para a jornalista,
tocando a aba do chapéu numa despedida educada.
– Pode me chamar de Ed – respondeu. – Ed Tempestade!
Capítulo 4
Estrada para a perdição
1
Não teve jeito. João dos Mistérios bem que tentou, mas nada do que dissera
foi capaz de impedir Tião Peixeira de reunir os poucos pertences numa trouxa
e sair mancando porta afora. Desde que leu a notícia sobre a própria morte, o
enfermo decidiu reaver as armas que compunham seu nome diretamente da
delegacia em Miradouro, para onde haviam sido levadas. Ele parecia não
ligar para o fato de que sua vida ainda estar por um fio ou de não ter um
plano nem o equipamento necessário para realizar tal objetivo.
João dos Mistérios suspirou e, após dar comida aos animais e soltá-los,
arrumou tudo que tinha numa mochila e voltou a montar em Lucinda. Olhou
uma última vez para o casebre onde morou durante tantos anos. Era provável
que demorasse um bom tempo antes de retornar para casa. Se é que voltaria.
Em seguida, trotou sem pressa até o cabeça-dura que avançava
vagarosamente pela estrada de terra. Ao perceber a presença do outro, Tião
Peixeira perguntou, irritado:
– O que acha que está fazendo?
– Você não está em condições de viajar sozinho – respondeu João dos
Mistérios.
Tião Peixeira parou, apoiado em sua bengala improvisada, e bufou de
raiva.
– Olha, João Macumba, fico muito agradecido pela atenção. De
verdade. Mas já estou bem melhor agora e posso seguir meu caminho sozinho
a partir daqui, entendeu? Não preciso mais da sua ajuda.
João dos Mistérios se debruçou sobre a sela, encarando o caminho
adiante.
– Como pretende chegar até Miradouro?
Tião Peixeira encaixou a bengala debaixo do braço e voltou a mancar.
– Andando – bradou.
João dos Mistérios se endireitou e bateu levemente nas ancas de
Lucinda, que seguiu o enfermo em trote lento.
– É um longo caminho – opinou. – Mais de um dia de viagem, com
certeza. Isso se você souber para onde está indo, é claro.
Tião Peixeira parou novamente.
– Para que lado fica Miradouro? – perguntou a contragosto.
João dos Mistérios apontou vagamente para o oeste. Tião Peixeira
resmungou qualquer coisa e começou a mancar naquela direção.
– Você poderia arrumar peixeiras novas em Água Parada – sugeriu
João dos Mistérios após um hiato na conversa. – Eu empresto o dinheiro...
– Não preciso de peixeiras novas – respondeu Tião com seu mau humor
habitual. – Preciso das minhas peixeiras, que aqueles canalhas roubaram!
João dos Mistérios não insistiu, mas ficou curioso.
– O que suas peixeiras têm de tão especial, afinal?
– São uma herança de família – respondeu Tião num tom mais ameno e
reservado. – Elas são tudo o que sobrou da minha antiga vida.
João dos Mistérios puxou as rédeas de Lucinda, parando por um
momento. Tião Peixeira seguiu em frente, com a mesma determinação de
antes. Um vento frio atravessou o sertão e relâmpagos caíram das nuvens
negras em montanhas distantes, como faziam com uma frequência cada vez
maior naqueles dias escuros. João dos Mistérios voltou a se aproximar do
enfermo, que bufou de raiva ao perceber a companhia insistente do bruxo.
– Por que não me abandona de uma vez? – quis saber Tião Peixeira. –
Não quero sua ajuda, não preciso dela. Tenho tudo de que preciso bem aqui –
bateu no próprio peito. – Você não encontrará nada me seguindo além de
uma morte violenta. Marque minhas palavras, João Macumba: Não há nada
na minha frente além de corpos mutilados e um rio de sangue. É isso o que
quer?
João dos Mistérios deixou as palavras morrerem na esteira do vento
antes de oferecer uma resposta:
– Você pode não querer minha companhia, Tião Peixeira, mas a terá
mesmo assim. Não porque seja minha vontade ajudá-lo ou ser seu amigo,
mas porque nossos destinos estão ligados de uma forma que ainda não
entendo e que os espíritos se negam a revelar. Sei muito bem que está numa
trilha de vingança e que não deixará nada ficar em seu caminho. Não
pretendo detê-lo. Acho que não tenho esse direito. Mas, se puder orientá-lo,
acredito que eu possa evitar que voltem a enterrá-lo vivo numa vala sem
nome no meio do sertão. E então, o que me diz?
Tião Peixeira mancou taciturno por mais um minuto antes de parar
subitamente.
– Acho que, se vai ser assim, você podia ao menos me dar uma carona
nesse seu cavalo – respondeu.
João dos Mistérios sorriu ao desmontar do animal.
– É uma égua, na verdade – corrigiu. – O nome dela é Lucinda.
Tião Peixeira assentiu, encarando o bruxo com desconfiança.
– Você não está tentando me passar a perna, né? Isso não é um plano
seu para me levar de volta para aquele barraco fedorento?
– De jeito nenhum – garantiu João dos Mistérios. – A não ser que
você queira buscar mais mantimentos. Na pressa com que saímos, acho que
só trouxe comida e água para os próximos dois dias, no máximo.
Tião Peixeira deu de ombros, subindo com dificuldades no lombo de
Lucinda e se ajeitando na sela.
– Podemos recarregar nosso estoque em Miradouro – raciocinou. –
Afinal, a cidade fica a pouco mais de um dia de distância, não é mesmo?
João dos Mistérios assentiu, pegando as rédeas de Lucinda e
caminhando ao lado do animal, que o seguiu em trote lento.
– No ritmo atual? Por aí – respondeu. – Com sorte, também
encontraremos alguma outra montaria por lá, o que facilitará nossas andanças
pelo sertão.
Tião Peixeira fez uma careta.
– Até onde você pretende me seguir, João Macumba?
– Até o fim da nossa história, Tião Peixeira – respondeu o outro, com
um sorriso malicioso. – Até o fim da nossa história...
Um trovão ecoou a distância, como se selasse um contrato invisível
entre os dois indivíduos, que seguiam pelo caminho em silêncio enquanto
nuvens escuras se acumulavam nos céus.
2
Naqueles tempos, os viajantes evitavam as estradas de asfalto que
levavam às grandes ruínas de antigamente por dois motivos. Primeiro, porque
eram as rotas mais utilizadas pelos senhores de terras, que ainda tinham
veículos motorizados capazes de cruzá-las em velocidades prodigiosas, e um
dos esportes favoritos dos poderosos era atropelar viajantes desamparados
com suas máquinas de guerra – faziam apostas e tudo o mais. Segundo, por
conta dos garimpeiros, que vigiavam tais estradas na esperança de
conquistarem tesouros indizíveis. Eram predadores da pior espécie, sempre
em busca de vítimas fracas e indefesas, as quais pudessem depenar sem
provocar alarde. Isso sem mencionar que muitos apreciavam carne humana,
cozinhada a fogo lento, de preferência com a vítima ainda viva, a fim de
saborearem seus gritos enquanto distribuíam os melhores cortes entre si.
João dos Mistérios evitava tais estradas e os garimpeiros sempre que
possível, seguindo por trilhas intricadas no meio do sertão e das cadeias
montanhosas que o cercavam. No entanto, costumava fazer isso sozinho, com
uma égua veloz entre as pernas e por caminhos que percorria frequentemente.
Miradouro não era uma cidade tão próxima. Devia fazer pelo menos dois
anos desde sua última visita àquelas bandas, e lembrava que ficava próxima
de duas das grandes ruínas mais famosas da região. Lugares perigosos e
traiçoeiros, onde todo cuidado era pouco.
– Olhe! – apontou Tião Peixeira para um ponto adiante. – Urubus!
João dos Mistérios concordou. Já havia visto as aves circulando o céu,
abaixo das nuvens escuras, mas ainda não localizara o ponto de origem do
interesse delas. De onde estavam, enxergou um grupo das aves de rapina que
se alimentava da carcaça de algum animal no meio do mato baixo. Estava
longe para conseguir identificá-lo. Contudo, uma parte protuberante que
apontava para cima enquanto um urubu puxava com o bico pedaços de carne
de sua lateral lembrava demais um braço humano para ser ignorada.
– Tem alguma arma na bagagem? – quis saber Tião Peixeira.
– Nada além de uma faca – respondeu João dos Mistérios.
– Diabos, homem! – reclamou Tião. – Como é que você sobrevive
aqui fora?
– Usando a criatividade – sorriu João.
Os dois sabiam que estavam caminhando para uma armadilha. A
ravina adiante era o lugar perfeito para uma arapuca e dar a volta na
montanha estava fora de questão, mesmo porque vinham sendo seguidos
havia algum tempo. Os inimigos procuravam se esconder atrás de pedras
grandes ou árvores esqueléticas, mas não eram exatamente mestres dos
disfarces.
– Contei quatro deles atrás da gente – comentou Tião Peixeira
apoderando-se da faca guardada numa das bolsas da égua.
– Não precisamos matá-los – sussurrou João dos Mistérios.
– É pouco provável que isso não seja necessário – argumentou Tião.
– Deixe comigo – insistiu João. – Dou um jeito neles...
Tião Peixeira escondeu a faca na bainha da camisa.
– Tudo bem, João Macumba – concordou em voz baixa. – Mas, se a
sua “criatividade” falhar, será minha vez de tomar uma atitude, ok?
João dos Mistérios assentiu. Os dois estavam bem próximos da
entrada da ravina. Os garimpeiros que os seguiam nem se escondiam mais,
pulando para fora dos esconderijos com metralhadoras fora de uso, machetes,
tacapes, martelos, correntes e outros objetos perigosos em mãos. Eram seres
hediondos, vestidos com trapos e placas metálicas que usavam como
armaduras improvisadas. Traziam os olhos protegidos por lentes escuras e
mostravam os dentes afiados de tubarão em sorrisos famintos. A pele deles
era amarelada, exibindo pústulas e tumores preocupantes, como bombas de
carne prestes a explodir.
– Eles cortaram a nossa retaguarda – alertou Tião Peixeira.
– Diga-me algo que eu não saiba – retorquiu João dos Mistérios, sem
se virar.
Conseguia ouvir perfeitamente bem as risadinhas histéricas e as
provocações dos homens que os seguiam. Assim como podia ver as sombras
que se moviam na ravina. De repente, outros quatro garimpeiros se revelaram
entre as pedras, acabando de fechar o cerco aos dois viajantes. O maior deles
era um sujeito de músculos sólidos e unhas compridas como garras, que
sorriu e abriu os braços, exibindo o peito nu e a tatuagem que anunciava seu
nome: Maioral.
– Ssssaudaçõesss viajantessss – cumprimentou no dialeto arrastado
característico dos garimpeiros. – Vejo que me trazzzem muitosss
tesssourosss....
– Tesssoursossss – repetiram os demais garimpeiros, agitados e
animados com o butim em que cravavam os olhos. Inclusive, dois deles
pulavam parados em seus lugares e um terceiro passava a língua entre os
lábios.
– Seja lá o que você for fazer – cochichou Tião Peixeira, entredentes.
– recomendo que faça logo!
João dos Mistérios olhou ao redor. Um dos garimpeiros bateu um
facão contra o outro, produzindo um som metálico ameaçador. Os demais
riram, animando-se. Outro garimpeiro girou uma corrente no ar. Cada um
deles trazia uma arma diferente. Todos carregavam maldade no olhar. João
dos Mistérios se virou de volta para o líder do bando.
– Então, você se acha o Maioral, não é mesmo? – provocou.
– Uuuuh – fizeram os garimpeiros, surpresos com o desafio na voz da
vítima.
O brutamontes, com unhas compridas, não se abalou, flexionando
ambos os braços para mostrar o tamanho dos bíceps, tatuados com arames
farpados e caveiras flamejantes.
– Sssaca ssssó essssasss belezzzzinhassss – comentou, beijando um
dos muques com um sorriso. – Adoro usssá-lasss para quebrar osssosss de
viajantesss abussssadosss...
João dos Mistérios soltou uma gargalhada longa e ruidosa, que deixou
todo mundo confuso, até Tião Peixeira, que não conseguia entender quais
eram as intenções do parceiro. O Maioral se irritou.
– Qual é a graçççça?
– Desculpe – respondeu João dos Mistérios, retomando a compostura.
– mas esse seu papinho de vendedor não me assusta nem um pouco.
O Maioral avançou, de punhos cerrados, como se tivesse perdido a
paciência e estivesse pronto para cumprir a promessa de esmagar ossos.
– Pare onde está – ordenou João dos Mistérios, alterando radicalmente
o tom de voz, que teve todo o humor substituído por uma autoridade
indiscutível. – Dê mais um passo e garanto que cairá morto na minha frente.
Os garimpeiros pararam de rir imediatamente e o líder deles se deteve
no meio do caminho. O Maioral franziu o cenho, desconfiado, mas
permaneceu parado onde estava. João dos Mistérios o encarava,
completamente sério, sem demonstrar nada além de uma determinação
inabalável.
– Isssso é alguma brincadeira? – perguntou o Maioral, procurando
esconder o nervosismo, embora os demais garimpeiros o manifestassem
roendo unhas ou puxando os cabelos, sem saber o que estavam presenciando.
– De maneira alguma – garantiu João dos Mistérios. – Dê um passo à
frente e você morre, e o mesmo acontecerá com seus miquinhos adestrados.
Cada um de vocês sofrerá uma morte terrível e lenta, pior do que qualquer
uma que provocaram em suas vidinhas patéticas e miseráveis, entenderam?
Farei o sangue de vocês ferver. Farei com que seus olhos saltem para fora das
cavidades oculares e sejam devorados por besouros. Farei com que seus
membros viris apodreçam até despencarem por entre as pernas. E farei tudo
isso com um sorriso no rosto, para que vocês aprendam a não mexer com os
viajantes na estrada.
O Maioral deu um passo para trás. João dos Mistérios quis sorrir, mas
se segurou. Sabia que precisava manter a credibilidade do blefe para que o
truque funcionasse. Garimpeiros eram supersticiosos e covardes por natureza.
Além disso, odiavam magia ou qualquer um relacionado com ela.
– Quem é voccccê? – quis saber o Maioral, sem a confiança de antes.
Era a pergunta que João dos Mistérios esperava. Ele se virou
calmamente para Tião Peixeira, que assistia a tudo de cima de Lucinda, meio
abismado, como os homens ao redor. Discretamente, juntou as mãos nas
costas numa posição relaxada e retirou algo do bolso, que escondeu entre os
dedos.
– Eles querem saber quem eu sou – apontou.
Tião Peixeira limpou a garganta, levantando-se na sela.
– Prestem atenção, cambada de idiotas – bradou em alto e bom som. –
pois vocês estão na frente do primeiro e único João Macumba, o feiticeiro
que trouxe Tião Peixeira de volta dos mortos para pintar esse sertão de
vermelho – anunciou.
O Maioral fez uma careta, como se não comprasse tal conversa. Não
importava. Ele havia se distraído, e isso era tudo o que João dos Mistérios
queria. Com um movimento rápido, bateu uma das mãos contra a outra,
produzindo uma explosão de luz e som que pegou todos de surpresa. Os
garimpeiros se afastaram, instintivamente. Quando a visão deles clareou,
João dos Mistérios os encarava com a mais pura raiva, com fogo subindo das
palmas das mãos abertas.
– Desapareçam daqui, canalhas – ordenou com voz de trovão. – Antes
que eu decida fazer tapete com o couro de vocês!
Ele não precisou falar duas vezes. O Maioral tropeçou, caiu de bunda
no chão, antes de se virar e correr como se o Diabo estivesse em seu encalço.
Os demais garimpeiros seguiram seu exemplo, retornando para os buracos de
onde haviam saído. Muitos deixaram até as armas para trás, abalados como
estavam pela demonstração de poder. João dos Mistérios bateu as mãos
contra as calças, fazendo o fogo se extinguir rapidamente. Então, notou o
olhar que Tião Peixeira lhe dirigia.
– Maluco, como é que você fez isso?
João dos Mistérios sorriu, limpando o pouco de querosene e pólvora
que ainda tinha nas mãos.
– Truques de salão – respondeu, humilde. – Como disse antes, não
precisamos matá-los...
Tião Peixeira soltou uma gargalhada sonora, que ecoou estrondosa
entre as pedras da ravina.
– João Macumba, você é um cabra arretado mesmo, e vai ter que me
ensinar a usar dessa tal criatividade uma hora dessas – elogiou.
3
Os dois viajantes escolheram um trecho isolado da ravina para
passarem a noite. Tião Peixeira desceu de Lucinda sem grandes dificuldades
e já não mancava tanto quanto antes. A recuperação do enfermo era notável.
João dos Mistérios nunca vira nada igual, o que o intrigava profundamente,
conquanto não o demonstrasse ao acender a fogueira com pedaços de madeira
recolhidos pelo caminho. Uma coruja pousou numa pedra próxima e ululou
três vezes, fazendo-se presente no silêncio da noite escura.
Após terminarem de montar o acampamento, os homens se sentaram
ao redor da fogueira. João dos Mistérios ofereceu um pedaço de carne-seca
para o companheiro de viagem, que a aceitou com um grunhido de satisfação.
Pegou outro pedaço para si mesmo e começou a mastigá-lo, com os olhos a
se perderem na dança hipnotizante das chamas que lambiam com avidez a
madeira seca, provocando estalos e faíscas de vez em quando. Tião Peixeira
parecia menos interessado no fogo, não obstante mantivesse os ouvidos
atentos a qualquer barulho suspeito. Lucinda relinchou uma vez, antes de
dobrar as patas e se recolher para dormir.
– Este não é um lugar seguro – comentou Tião Peixeira ao terminar o
pobre jantar, desatarraxando a tampa do cantil para lavar o gosto salgado da
boca. – Sugiro dormirmos em turnos. Duas horas para cada. Assim não
seremos pegos de surpresa por salteadores noturnos.
João dos Mistérios assentiu, buscando um apoio para a cabeça
enquanto se deitava na terra seca.
– Não estou com sono – avisou.
Tião Peixeira pegou um pedaço de pau, tirou a faca da bainha
improvisada e começou a afiar o graveto.
– Nem eu – acrescentou.
João dos Mistérios encarou o companheiro de viagem com
curiosidade.
– O que você tem contra o coronel Olho de Cobra? – perguntou,
afinal.
Tião Peixeira levantou os olhos da estaca que estava fazendo e deu de
ombros.
– Além do fato de ele ter abrigado uma serpente? Nada...
– Só que agora todo mundo acha que você está atrás dele – apontou
João dos Mistérios. – Foi o que o jornal deu a entender.
Tião Peixeira voltou a se concentrar no trabalho que tinha em mãos.
– Não dou a mínima para o que os outros acham – disse, arrancando
uma lasca mais grossa da madeira. – Se o coronel Olho de Cobra se colocar
no meu caminho, vou mata-lo, como fiz com todos os outros.
João dos Mistérios assentiu, sem tirar os olhos do colega.
– Alguns diriam que o coronel Olho de Cobra não é um adversário
qualquer.
Tião Peixeira manteve a cabeça baixa.
– Ele não me mete medo.
João dos Mistérios tirou o cachimbo da bolsa e encheu o bocal com
fumo fresco.
– O que você sabe sobre ele?
Tião Peixeira repuxou o lábio para trás antes de responder.
– Só o que dizem por aí: que vendeu um dos olhos para o Diabo e que
é por isso que sempre sabe quando tem alguém atrás dele.
João dos Mistérios usou uma brasa para acender o cachimbo.
– Você acredita nessa história?
Outra lasca de madeira saltou da ponta da faca.
– Tanto quanto as pessoas acreditam que eu estava atrás dele –
respondeu Tião Peixeira, levantando o olhar mais uma vez. – Histórias
podem ser apenas histórias, mas, pela minha experiência, todas escondem um
fundo de verdade...
João dos Mistérios assentiu, voltando a se sentar, interessado.
– Quem é a pessoa que você persegue, Tião Peixeira?
O rosto do companheiro de viagem se fechou.
– Isso é problema meu – desconversou, arrancando uma lasca grande
demais da estaca e a deformando no processo.
João dos Mistérios deu um trago no cachimbo, insatisfeito.
– Ainda não confia em mim, Tião Peixeira?
O companheiro de viagem suspirou, deixando de lado a estaca que
fazia.
– Não é uma questão de confiança – respondeu. – Só acho melhor não
falar de determinadas coisas. Às vezes, é melhor deixar o passado como está:
morto e enterrado, compreende?
João dos Mistérios assentiu, dando outro trago no cachimbo.
– Só que seu passado não está morto e enterrado, certo? – insistiu. –
Pelo contrário. Parece que seu adversário, seja quem for, fez uma aliança com
o coronel Olho de Cobra, o único inimigo capaz de lhe dizer quando você
está por perto e, dessa forma, retardar uma vez mais sua justa vingança.
Porque essa não é a primeira dança de vocês, correto? Não é a primeira vez
que você tenta fazê-lo pagar por seus pecados, não é mesmo?
Nisso, Tião Peixeira cravou a faca num toco de madeira e se levantou,
furioso.
– Cuidado com a língua, João Macumba – avisou, de punhos
cerrados. – Você está caminhando em terreno perigoso.
João dos Mistérios tragou o cachimbo mais uma vez, sem se
intimidar.
– Aceite um conselho, Tião Peixeira, e controle esse seu
temperamento explosivo. Não é de mim que está com raiva, não é mesmo?
As mãos de Tião Peixeira se abriram enquanto ele dava as costas para
o companheiro de viagem.
– Não – respondeu a contragosto. – Não é.
A brasa no cachimbo de João dos Mistérios brilhou, alaranjada.
– Então de quem estamos falando afinal?
Tião Peixeira respirava pesado. João dos Mistérios não o apressou.
– O nome dele é Ed Tempestade – revelou.
O nome não era nem um pouco familiar a João dos Mistérios.
– E o que esse homem fez contra você?
Tião Peixeira se virou de volta para o companheiro de viagem, com os
olhos a brilharem, marejados de raiva.
– Tem certeza de que quer saber?
João dos Mistérios deixou o cachimbo de lado.
– Olha, Tião Peixeira, você sabe que estou do seu lado – argumentou.
– Não tenho nada contra esse tal Ed Tempestade, nunca nem ouvi falar do
homem, mas conheço o coronel Olho de Cobra. Mais importante do que isso,
sou invisível para ele por motivos que não vem ao caso. Logo, posso ajudá-lo
a alcançar seu inimigo de uma vez por todas. Só que, para fazer isso, preciso
saber de quem estamos atrás.
Tião Peixeira voltou a se sentar em seu lugar, um pouco mais calmo.
– Você consegue mesmo passar pelas defesas do coronel Olho de
Cobra?
João dos Mistérios pegou de volta seu cachimbo e assentiu uma vez.
– Agora, conte-me a história da sua inimizade com esse tal Ed
Tempestade...
Capítulo 5
A Roda da Fortuna
1
Dez anos antes (fim da Grande Guerra)
2
Tião Ventania buscou consolo na solidão, um território com fronteiras
bem definidas no qual ninguém podia atingi-lo. Contudo, quando se faz parte
de um circo, solidão é algo difícil de conquistar, como batidas insistentes na
porta do seu quarto deixavam mais do que claro.
– Tião? Está tudo bem, querido? – chamou uma doce voz feminina.
Ele enterrou a cabeça embaixo do travesseiro, desejando afundar
naquela suave escuridão. As batidas na porta continuaram.
– Tião, você não pode ficar no quarto o dia inteiro. É seu dia de
alimentar e dar banho nos animais – bradou a mesma voz, dessa vez sem a
doçura de antes.
O menino espiou a sombra por debaixo da porta. Sabia que a mãe não
iria embora até conseguir o que queria, mas ainda não estava disposto a
entregar os pontos. A sombra do outro lado mudou o peso de um pé para o
outro.
– Sei que ela partiu seu coração, querido – disse a voz num tom quase
confidencial. – Partiu o coração de todos nós, que a vimos crescer e se tornar
uma mulher tão bonita. Mas o circo nunca foi a casa dela. Você sabe disso.
Lágrimas afloraram nos olhos de Tião Ventania, que tentou segurá-
las, embora elas caíssem assim mesmo, rebeldes.
– Não estou pedindo para esquecê-la – continuou a voz da mãe. – Mas
estamos todos passando por tempos difíceis e não podemos nos dar ao luxo
de nos separar. Não agora. Seu pai... – fez uma breve pausa. – Precisamos da
sua ajuda, Tião. Por favor, não dê as costas para nós.
O adolescente se sentou na cama, esfregando os olhos com as pontas
dos dedos.
– Me dê cinco minutos para me arrumar – pediu, afinal.
A sombra por debaixo da porta pareceu ficar subitamente mais leve.
– Combinado – respondeu a voz com alegria. – Direi a Espirro que
está a caminho. Não se atrase, ok?
4
A sorte, porém, não estava do lado de Tião Ventania, e, por volta das
duas da tarde, o tempo começou a virar. A princípio, apareceram nuvens
escuras na linha do horizonte. Nada muito preocupante. Mas, à medida que a
tarde avançava, aquela escuridão se adensava e um vento frio, pouco
característico para aquela época do ano, começava a correr por entre trailers e
barracas do circo, soltando lonas presas com desleixo por trabalhadores
preguiçosos e levando pelo menos o guarda-chuva de um palhaço desavisado.
Após dar banho nos seis cachorros dançarinos, nos três cavalos
adestrados e na estrela maior do circo, o bode equilibrista, Tião Ventania deu
ração para todos eles e partiu para ajudar os amigos a reforçarem os cabos de
sustentação da tenda principal. Todos pareciam ocupados com alguma tarefa
por ali. Everaldo, o homem mais forte do Brasil, entrou na tenda carregando
um poste de madeira no ombro, sendo auxiliado pelos palhaços Tapioca,
Lorotinha e Espirro, que, como de costume, mais atrapalhavam do que
ajudavam. As malabaristas Ametista e Ruby traziam cordas extras para
garantir a estabilidade das lonas. Margot, a mulher barbada, usava de sua
força prodigiosa para enterrar estacas na terra rachada. Até o doutor Zaran
procurava ajudar, a despeito de suas desculpas habituais para não pegar
nenhum trabalho pesado.
– Parece que o tempo virou – comentou o motociclista Labareda
Jones, famoso por suas incríveis manobras no globo da morte.
Tião Ventania olhou para o alto. As nuvens avançavam no formato de
dedos negros e finos, estendendo seus tentáculos pelo céu azul como uma
doença contagiosa. Um trovão ecoou na distância, fazendo-o suspirou.
– Nem me fale – lamentou. – Apostei com a Margot que não choveria
hoje...
Labareda Jones fez uma pausa para fumar.
– E eu pensando que você fosse um rapaz esperto... – comentou,
acendendo o cigarro. – Aliás, sinto muito por Estrela – continuou. – Sei
quanto gostava dela.
Um nó se formou na garganta de Tião Ventania, que ainda não se
sentia à vontade para tocar naquele assunto, mesmo com Labareda Jones, a
quem tanto admirava pela coragem e pela popularidade.
– Parece que os porcos pintaram por aqui mais cedo – disse, mudando
de assunto. – Também ouvi umas conversas de que este não é um lugar muito
bom para nós. Você deu uma volta por aí para ajudar na divulgação do circo.
O que achou?
Labareda Jones tragou longamente o cigarro e deu de ombros.
– Não existem mais pontos bons, Ventania – respondeu. – Nem
mesmo aqui, no interior, longe de bombardeios e tiroteios que arrasaram as
grandes cidades. Todos estão com medo e qualquer fagulha é o suficiente
para provocar um estouro. Quer a minha opinião? Teremos sorte se aparecer
alguém para o espetáculo desta noite. Não que faça diferença, com o mundo
caindo aos pedaços do jeito que está.
Tião Ventania parou o que estava fazendo para encarar o amigo mais
velho. Labareda Jones era um jovem de vinte e poucos anos, com a vitalidade
de um touro e a sagacidade dos bem-aventurados. Era difícil encontrá-lo de
mau humor ou triste. No entanto, naquele dia, parecia cansado e inseguro,
não obstante procurasse disfarçar tais sentimentos como todos no circo
ultimamente – uma tarefa hercúlea, dados os horrores que presenciaram e as
dificuldades que todos enfrentaram nos últimos meses. Ainda assim,
Labareda Jones tinha presença de espírito suficiente para sorrir diante das
adversidades.
– De todo modo, talvez você ganhe a aposta. Acho que nem vai
chover de verdade, talvez só uns pinguinhos de nada – minimizou, apontando
para o céu. – Embora eu nunca tenha visto nuvens assim antes. Elas estão
esquisitas, não acha?
Tião Ventania as analisou.
– Parecem mais escuras que o normal, não é mesmo?
Labareda Jones assentiu.
– Como poças de piche – opinou.
– Tião Ventania! – chamou uma voz autoritária.
O adolescente se endireitou imediatamente e foi seguido por Labareda
Jones, que escondeu a mão com o cigarro atrás das costas após reconhecer a
voz de quem chamava o amigo. Violeta Serena não gostava de encontrar o
motociclista fumando próximo ao filho, pois o considerava um mau exemplo.
– Mãe – respondeu Tião Ventania, por puro reflexo.
– Seu pai gostaria de treinar antes do espetáculo desta noite – avisou.
– Ele o aguarda no picadeiro.
– Estou a caminho – concordou Tião Ventania, juntando suas coisas.
– Nos vemos após o espetáculo, Labareda!
O motociclista sorriu.
– Talvez sim, talvez não, garoto – respondeu. – Tenho um
compromisso daqui a pouco. Cuidado para não virar queijo suíço – brincou,
percebendo que a mãe do garoto ainda o encarava. Levantou a mão livre em
um cumprimento. – Olá, Violeta!
– Se está fumando, vá para o seu trailer, Labareda Jones – respondeu
a trapezista, abrindo a lona para a passagem do filho. – A última coisa que
queremos ver hoje é o circo pegar fogo, não é mesmo?
Labareda Jones dispensou o cigarro e pisou em cima dele, para
garantir que se apagasse por completo.
– A senhora que manda, dona Violeta!
Tião Ventania sempre ficava admirado como todos obedeciam a sua
mãe sem questionar. Violeta Serena era uma mulher pequena, de 1,60 metro,
mas o que lhe faltava em altura sobrava em beleza, graciosidade e autoridade.
Ela podia estar metida num maiô roxo brilhante e numa meia-calça arrastão
que não perdia um décimo da majestade. Claro que o fato de fazer piruetas no
trapézio sem ter uma rede de proteção embaixo também contribuía para isso.
O adolescente parou ao lado da mãe.
– Só estávamos conversando – afirmou. – A senhora sabe que não
fumo.
Violeta encarou o filho, com seus hipnotizantes olhos azuis.
– Que idade você acha que tenho para ficar me chamando de senhora?
– disse antes que o filho se pronunciasse, levantando o indicador. – Não
precisa responder. Conheço muito bem essa sua língua afiada. Agora, entre
de uma vez que seu pai está esperando. E fale para ele que já alcanço vocês.
Preciso só checar como estão o restante das coisas aqui fora, ok?
Tião Ventana adentrou a tenda. O circo estava praticamente todo
montado, com as arquibancadas recebendo os últimos ajustes por parte de
Mario, Sérgio e Sabrina, que cuidavam respectivamente da barraca de doces,
da carrocinha de cachorro-quente e da bilheteria. Everaldo estava encostado
numa pilastra, dando um gole de um cantil prateado após ter concluído o
trabalho principal. Ele piscou para Tião Ventania.
– Lá vai o garoto mais bravo que conheço!
O rapaz sorriu em resposta. Os palhaços Tapioca, Lorotinha e Espirro
treinavam esquetes na entrada do picadeiro com o uso de lenços coloridos e
muitos balões. Tião Ventania driblou o trio animado, antes que acabasse
enrolado numa de suas piadas. Alguém acendeu os holofotes naquele
momento, jogando luzes fortes sobre o picadeiro e a enorme roda de madeira
erguida no meio dele. Ele parou ao vê-la. Mesmo com toda a sua experiência,
tal visão ainda o fazia tremer nas bases.
Por sorte, o pai estava de costas para ele, já todo paramentado com a
fantasia negra e vermelha, chapéu escuro e a longa capa preta que dava
fluidez aos seus movimentos. Rubens Falcão era um homem alto, de porte
atlético, e com educação de um verdadeiro cavalheiro, capaz de se
transformar num demônio com um par de facas na mão. As coisas que fazia
com tais lâminas provocavam arrepios na pele e arrancavam suspiros de
admiração. Tião Ventania adentrou o picadeiro, onde o pai organizava os
punhais numa mesa alta e redonda.
– Estou aqui, pai – anunciou Tião Ventania.
Rubens Falcão se virou, distraído. Ele era dono de um rosto quadrado,
enfeitado por um cavanhaque bem aparado e olhos quase sempre
semicerrados, como se soubesse mais do que todos ou estivesse entediado.
Sorriu ao ver o filho.
– Meu pequeno Sebastião – cumprimentou, fazendo questão de usar o
nome de batismo do adolescente antes de retomar a organização dos punhais.
– Pronto para o número desta noite? Ou precisa de um gole de cachaça para
criar coragem?
– Eu aceitaria um copinho, sim.
– E sua mãe arrancaria meu couro se eu cedesse às suas vontades –
concluiu o pai, tirando o último punhal do estojo e o alinhando junto aos
demais companheiros.
Tião Ventania soltou um muxoxo.
– Você não se cansa de me provocar desse jeito?
Rubens Falcão voltou a se virar para o filho.
– Não quando tenho uma plateia tão receptiva – respondeu com um
sorriso que o menino não correspondeu. O pai baixou a cabeça. – Escute,
filho, queria me desculpar por ontem à noite. Eu disse coisas que não
pretendia e...
– Está tudo no passado agora – interrompeu o garoto, com uma
seriedade que não correspondia à sua idade. Ele não queria ter aquele papo de
novo e se virou para a enorme roda de madeira. – Sei que esse geralmente é o
papel da mãe, mas você me ajuda a assumir minha posição?
Rubens Falcão mantinha o sorriso no rosto, como uma máscara
necessária para esconder o que realmente sentia.
– Claro, filho – respondeu numa voz suave, se bem que os olhos
gritassem a vontade de não varrer aquele assunto para debaixo do tapete. –
Você sabe que não precisa fazer isso se não quiser, certo? Não é como se
fôssemos nos apresentar para a realeza, afinal.
Tião Ventania balançou a cabeça.
– A roda da fortuna é uma das principais atrações do circo –
argumentou. – O público ficaria frustrado se a deixássemos de fora do
espetáculo. Além disso, eu nunca faltei a uma apresentação e não farei isso
agora.
Os dois pararam diante da imensa roda, que apresentava buracos
característicos, com pequenas lascas de madeira penduradas aqui e ali. Ela
também tinha bases acompanhadas de tiras de couro saindo da superfície em
pontos específicos. Rubens Falcão deu uma volta na roda, colocando-a em
uma posição adequada para o filho.
– Nesse caso, suba, mestre Tião Ventania – convidou numa voz mais
animada. – Vamos prepará-lo para o show.
Tião Ventania subiu no degrau, encostando as costas na madeira e
agarrando as bases que ficavam em lados opostos da roda. O rapaz aproveitou
para fechar os olhos e respirar fundo enquanto o pai usava as tiras de couro,
que funcionavam como cintos, para prender seu pé direito na primeira
posição.
– Você sabe que só faço essas perguntas por conta dos seus nervos –
justificou. – Sei como essa pode ser uma experiência ruim quando você não
está completamente concentrado...
– Estou concentrado – protestou Tião Ventania enquanto o pai
prendia o pé esquerdo na segunda posição.
– Tudo bem, filho, tudo bem – desculpou-se Rubens, apertando bem a
tira sobre a canela do adolescente antes de acertar o buraco para fechá-la em
definitivo. – Não precisamos discutir, ok?
– Nós dois sabemos que o mais importante aqui é que você esteja
focado – argumentou Tião Ventania, enquanto o pai ajustava a tira de couro
na cintura do garoto. – Só preciso ficar parado e me controlar para não
vomitar, certo?
Rubens Falcão apertou a tira de couro mais do que o necessário e Tião
Ventania fez uma careta.
– Desculpe – sorriu. – Apertado demais?
Tião Ventania ofereceu um sorriso amarelo. Nesse instante, Violeta
Serena adentrou o picadeiro e parou no meio dele com as mãos na cintura.
– Vocês não esperaram por mim?
Rubens Falcão se virou para a mulher e saiu do caminho com uma
mesura.
– Só nos adiantamos um pouco – justificou. – Por favor, faça as
honras...
Violeta Serena se voltou para a arquibancada, onde os demais
integrantes do circo se acomodavam para assistir ao ensaio. Era uma parte do
trabalho que todos adoravam acompanhar.
– Então vou deixar você fazendo sala, querido – recitou as frases
decoradas. – Parece que estamos com a casa cheia hoje.
Os dois se cruzaram no meio do picadeiro, com Rubens Falcão
assumindo a dianteira para tirar o chapéu num cumprimento ao público,
entregue ao personagem que interpretava, ao passo que a mulher seguia para
tratar das necessidades do filho. Os olhos da mãe se encontraram com os de
Tião Ventania distantes da atenção da plateia, que acompanhava atentamente
os movimentos do arremessador de facas.
– Está tudo bem? – perguntou Violeta, apertando a tira da mão
esquerda.
Tião Ventania não conseguia mentir para a mãe.
– Mais ou menos – confessou.
Rubens Falcão dava início à apresentação.
– Vida ou morte, senhoras e senhores – dizia com uma empolgação
que, se não fosse genuína, estava muito próxima do produto verdadeiro. – É
isso que a roda da fortuna oferece e é isso que vocês testemunharão aqui hoje.
E, para verem como não estou brincando, é meu próprio filho que se ofereceu
como cobaia para essa perigosa demonstração de coragem, destreza e
assombro – apontou.
Violeta Serena continuava a apertar as tiras que prendiam Tião
Ventania à roda.
– São seus nervos incomodando de novo?
Tião Ventania assentiu uma vez.
– Você prefere não se apresentar hoje? Sabe que não há mal nenhum
nisso. Ninguém aqui vai julgá-lo.
Tião Ventania balançou a cabeça negativamente. Rubens Falcão
continuava com o discurso, embalado pela atenção que a plateia lhe dedicava.
– Amigos, amigas, não vim aqui hoje para sacrificar meu filho – dizia
com sinceridade. – Só que Deus me deu um menino corajoso, que confia no
pai com todo o coração e sabe que sou incapaz de errar um arremesso. É isto
que quero mostrar para vocês hoje: minha mestria na arte de arremessar
facas.
Violeta Serena passou a mão carinhosamente no rosto do filho.
– Deve haver algo que eu possa fazer para deixá-lo mais à vontade...
Tião Ventania sorriu, com uma ideia surgindo de repente.
– Acho que tem algo que você pode fazer...
Rubens Falcão caminhava para a mesa dos punhais sem tirar os olhos
da plateia.
– Só que, para provar minha mestria a vocês, não basta atirar facas de
longa distância nem pedir à minha mulher que faça a roda girar para dar um
pouco de emoção. É preciso algo mais.
Violeta Serena conhecia aquele sorriso nos lábios do filho.
– O que você tem em mente?
O menino piscou três vezes.
– Deixe-me fazer que nem ele – sugeriu.
Lá na frente, Rubens Falcão pegava um pedaço de pano escuro da
mesa e o mostrava para o público de modo teatral.
– É por isso, senhoras e senhores, que farei a apresentação de hoje
vendado!
Violeta Serena sorriu ao finalmente compreender a ideia do filho, mas
ele concluiu mesmo assim:
– Tampe meus olhos.
5
– Eu te amo – sussurrou a mãe ao terminar de amarrar a venda no
filho.
Tião Ventania sorriu. Violeta Serena sempre dizia a mesma coisa
antes de cada apresentação. Palavras reconfortantes, que acalentavam e
acalmavam o coração agitado do rapaz para o ato seguinte. Apesar da
escuridão, ainda era capaz de sentir a presença da mãe, parada na borda da
roda da fortuna, pronta para desempenhar sua parte no espetáculo em
desenvolvimento. Rubens Falcão continuava a falar com o público:
– Agora, caros amigos, antes de darmos início ao show, tenho um
pedido muito importante a fazer – avisou. – Como todos vocês devem
imaginar, uma proeza dessa magnitude exige uma intensa concentração. Por
isso, peço encarecidamente que façam o mais absoluto silêncio durante a
apresentação, pois a menor distração pode provocar um ferimento mortal no
meu querido filho, Tião Ventania, que já está pronto para a ação. Uma salva
de palmas para ele, senhoras e senhores!
Os funcionários do circo obedeceram alegremente, batendo os pés nas
arquibancadas e soltando assobios para compensar a falta de uma plateia mais
robusta. Alguns ainda gritavam palavras de incentivo:
– Mostra para a gente como é que se faz, Ventania!
– Eita, moleque corajoso da peste!
– Tião! Tião! Tião!
O rapaz sorriu e fez sinal de joia com as mãos amarradas. Podia
imaginar cada um dos amigos na arquibancada, sorrindo para ele e batendo
palmas, como se fosse sua primeira vez na roda da fortuna. Rubens Falcão
esperou a manifestação acabar para dar prosseguimento à apresentação:
– Agora, preciso do auxílio de alguém da plateia para colocar esta
venda...
Tião Ventania parou de prestar atenção às palavras do pai e voltou a
segurar os suportes para as mãos. Sentia os músculos enrijecerem em
antecipação ao turbilhão de emoções que logo o assaltaria. Era sempre assim.
Cada apresentação correspondia a um jorro de adrenalina, e mesmo tendo
participado daquele ato centenas de vezes, cada performance era como a
primeira vez. Concentrou-se.
O show estava prestes a começar.
– Senhoras e senhores – bradava Rubens Falcão, presumivelmente já
com os olhos cobertos por uma venda. –, preparem-se! Está na hora da roda
da fortuna começar a girar. Que nossa sorte gire com ela!
Tião Ventania respirou fundo. Quando o silêncio no picadeiro era
completo, sua mãe deu o primeiro giro na roda. A primeira volta era sempre
um pouco lenta, enquanto o mecanismo saía da posição de repouso,
provocando estalos sequenciados à medida que a esfera rodava. Violeta
Serena colocou um pouco mais de força na segunda volta. Os estalos ficaram
mais rápidos. A roda ganhava velocidade. Por fim, a trapezista deu o último
impulso, colocando força para que a roda não parasse tão cedo. Caso não
estivesse vendado, esse era o momento em que o mundo viraria um carrossel
de cores e luzes enquanto a cabeça de Tião Ventania subia e descia num
ritmo nauseante.
Era preciso ter estômago forte para aguentar tantas voltas sem deixar
o almoço escapar pela boca num refluxo involuntário. Mas Tião Ventania
guardava um segredo: ele deixava de prestar atenção ao mundo para se focar
na sequência de estalos que a roda produzia ao girar. Ele os contava um a um,
esperando por um estalo mais forte que os outros. O público não percebia o
truque, nem mesmo os outros funcionários do circo, que presenciavam a
apresentação diariamente. De repente, lá estava ele, e, um átimo de segundo
depois, um impacto arrancava lascas de madeira ao lado do seu pé esquerdo.
A roda girava, o estalo se repetia e um segundo punhal se cravava ao lado do
seu pulso direito. Mais uma volta, um terceiro estalo, e o som distinto de um
punhal balançando ao morder a madeira a menos de dez centímetros do seu
ouvido esquerdo.
Funcionava como uma máquina bem azeitada. Os estalos
diferenciados davam o sinal sonoro para o arremessador, que lançava os
punhais no mesmo ponto, mas sempre num alvo diferente, uma vez que a
roda se mantinha em movimento. Tudo dependia do treinamento de Rubens
Falcão e do afinamento do mecanismo, que não podia falhar uma vez sequer
para não provocar um acidente. Somente o pai e Tião Ventania tinham acesso
à roda da fortuna e sempre conferiam se estava tudo em ordem antes de cada
apresentação.
Após os três primeiros lançamentos, o arremessador fazia uma pausa
para pegar os outros três punhais dispostos na mesa. A roda girava mais três
vezes antes de entrar na posição para os próximos arremessos. Tião Ventania
seguia contando os estalos, no aguardo dos últimos três impactos, que dariam
fim a mais uma volta na roda da fortuna, quando estalos muito mais fortes e
rápidos do que poderia imaginar quebraram sua concentração. Alguém na
plateia gritou.
Tião Ventania abriu os olhos de uma vez, mas tudo continuou escuro.
Por um momento, o rapaz esqueceu que estava vendado. A roda continuava a
girar enquanto o caos se espalhava ao redor. Uma vez quebrado, o silêncio foi
substituído por uma cacofonia de sons indistinguíveis e perturbadores.
Aqueles estalos ensurdecedores continuaram, os gritos de desespero se
multiplicaram e vozes desconhecidas urravam um monte de palavras sem
sentido.
– O que está acontecendo? – quis saber Tião Ventania, com a cabeça
subindo e descendo, ao mesmo tempo que a roda continuava a girar. – Mãe,
você está aí?
Nenhuma resposta. Tião Ventania começava a ficar tonto. O coração
parecia que ia sair pela boca. Ele respirava numa velocidade angustiante,
preso como estava a um mecanismo que não pararia até cumprir sua função,
cego para o que ocorria ao redor. De repente, um grito claro de dor.
– Ele tem uma faca – bradou uma voz desconhecida.
A roda da fortuna continuava a girar. Um trovão ecoou dentro do
picadeiro.
– Nããããããoooooo!
Tião Ventania sentiu um nó na garganta e uma bola de gelo se
manifestou dentro da barriga. Era a voz de sua mãe. A roda da fortuna
continuava a girar, embora não com a mesma velocidade de antes.
– Acabe com a vadia também – ordenou outra voz desconhecida.
Dois trovões seguidos. Gritos de desespero. A roda da fortuna girava
cada vez mais devagar.
– Mãe? – chamou Tião Ventanias, com os lábios tremendo. – Mãe,
você está aí? Por favor, fale comigo, mãe – continuou numa voz mais alta e
chorosa.
Os estalos da roda da fortuna ficavam cada vez mais espaçados. Tião
Ventania continuava no escuro, atormentado por todos os sons preocupantes
que o cercavam. Os gritos foram substituídos por choros e súplicas. Vozes
desconhecidas davam ordens e se espalhavam pelo picadeiro. Então, o som
de passos apressados.
– Aonde pensa que vai?
Uma série de estrondos sequenciados seguidos de um grito agudo,
que, por sua vez, deu lugar a um choro doído e desesperado. A roda da
fortuna parava finalmente de rodar, deixando Tião Ventania de cabeça para
baixo.
– Todo mundo de bruços no chão – ordenou uma voz grave e
desconhecida. – Mãos na cabeça! Ou vocês querem terminar que nem seus
amigos aqui?
Mais choros e súplicas. Por baixo da venda, Tião Ventania também
chorava, embora não fizesse ideia do tamanho da tragédia que o assolava.
– O que está acontecendo? – ele perguntou, bem alto. – Alguém pode
me dizer o que está acontecendo?
– Alguém tira a venda daquele moleque, fazendo o favor – ordenou
uma das vozes desconhecidas. – Olha só o estrago que esses desgraçados nos
forçaram a fazer...
Tião Ventania parou de falar. Seus lábios tremiam enquanto passos
pesados seguiam em sua direção. Uma mão áspera tirou a venda de seus
olhos e ele se viu frente a frente com o rosto de um homem que nunca vira
antes, com uma longa cicatriz passando pelo olho esquerdo, esbranquiçado. O
olho direito, negro como a noite, o fitava com curiosidade.
– Você vai me dar trabalho, piá? – quis saber o desconhecido,
enfezado.
Tião Ventania balançou a cabeça numa negativa, o que pareceu
agradar ao estranho, que girou a roda de modo a colocar o adolescente de pé.
– É bom mesmo – recomendou. – Olha só o que acontece com quem
nos dá trabalho – concluiu, saindo da frente dele.
A princípio, os olhos de Tião Ventania não registraram o que viram.
Não só por conta dos desconhecidos armados com metralhadoras, fuzis e
revólveres que cercavam o picadeiro, mas devido a todo o horror do cenário
que se apresentava. Percebeu que uma pilastra estava suja de sangue. Por que
uma das pilastras estava suja de sangue? Talvez ele não quisesse ver, talvez
sua mente fugisse da verdade. Margot estava esparramada na arquibancada,
com os olhos abertos como os de uma coruja, e rosas vermelhas a brotarem
do vestido que era inteiramente verde quando a apresentação começou. Tião
Ventania desviou o olhar, sem deixar que o significado de tal visão se
revelasse, mas o que viu a seguir foi muito pior. O gigante Everaldo, o
homem mais forte do Brasil, estava caído no chão, olhando diretamente para
o adolescente com o olho bom. O outro havia desaparecido junto com todo o
lado esquerdo de sua cabeça.
– Oh meu Deus! – balbuciou Tião Ventania ao perceber o que via.
Os outros colegas do circo, pessoas que considerava como se fossem
sua própria família, estavam deitados no chão, mãos na cabeça, vigiados de
perto pelos homens armados. Só que não estavam todos ali. Tião Ventania
olhou para o lado. O palhaço Lorotinha se encontrava caído, com o rosto
mergulhado numa poça de sangue que aumentava gradualmente. Não era ele
que o jovem procurava. Olhou para o outro lado. Um careca de rosto
enfezado o encarou de volta, procurando deter um sangramento no ombro
com um pano sujo. Aquilo não parecia um ferimento provocado por uma
bala, e sim por um punhal.
Só então Tião Ventania olhou para a frente, para o que estava diante
de seus olhos o tempo todo, mas que ele se negava a admitir. Lá estava seu
pai, pela primeira vez de olhos abertos, encarando o chão com um ar de
surpresa. Rubens Falcão estava de bruços, braços e pernas torcidos em
posições estranhas, a capa negra manchada de vermelho por um único rombo
na altura do coração. Ao lado dele, caída como uma bailarina, de barriga para
cima e com o rosto voltado para os trapézios que tanto amava, estava a sua
mãe. Com um tiro no peito e outro na testa. Imóvel. Morta.
– NÃÃÃÃÃOOOOOOOOO!
Ele nem sentiu o tapa que o fez cuspir sangue e ver estrelas. O homem
da cicatriz o agarrou pela bochecha, voltando a encará-lo cheio de ódio.
– O que eu te disse sobre me dar trabalho, piá? – rosnou.
Tião Ventania não respondeu, não entendia o que estava acontecendo.
Só sabia que, mesmo sem levar um tiro, também tinha um rombo enorme
aperto no peito, uma dor como nunca imaginou que pudesse existir. Ele
chorava como uma criança abandonada no mundo, sem ligar para quem visse
seu sofrimento e incapaz de deter aquela onda de tristeza, que ameaçava
afogá-lo. O homem da cicatriz não gostou disso e se preparou para lhe dar
outro tapa.
– Toro – chamou alguém atrás do homem da cicatriz, que se deteve
no último instante. –, deixe o garoto comigo. Vá cuidar daquela nossa outra
tarefa, sim?
O homem da cicatriz se afastou.
– O senhor é quem manda, chefe – concordou a contragosto.
Tião Ventania não conseguia tirar os olhos dos pais mortos, como se
esperasse que a qualquer momento eles se levantassem e dissessem que era
tudo uma brincadeira. Mas conteve o choro. Havia algo errado naquele
cenário, algo fora do lugar, que seu inconsciente procurava localizar a todo
custo. Um homem vestido de preto, em roupas caras, com o rosto coberto por
um chapéu escuro e pela cabeça baixa, se aproximou propositalmente
devagar. Algo em seus movimentos fez o adolescente se calar. Uma
familiaridade.
– Aposto que você está se perguntando como ninguém viu esse acerto
de contas chegando...
Tião Ventania sentiu uma pontada no coração. Aquela voz... Ele
conhecia aquela voz. O homem de preto levantou o rosto, revelando um
sorriso torto e bigode ralo como de um rato, além de olhos castanhos,
malignos e ressentidos. O queixo de Tião Ventania desabou.
– Ed Chuvisco?
O homem de preto balançou a cabeça numa negativa.
– O garoto chamado Ed Chuvisco morreu – anunciou. – Hoje sou
conhecido como Ed Tempestade, um nome que tenho certeza de que você
não esquecerá jamais!
6
Por um momento, Tião Ventania sentiu como se nada daquilo fosse
real. A presença de Ed Chuvisco, seu amigo mais antigo, num cenário terrível
como aquele não fazia nenhum sentido. Fazia dois anos que não se viam,
desde que Ed Chuvisco decidira pegar a estrada e deixar o circo para trás.
Não foi uma separação amistosa, mas Tião Ventania nunca pensou que o
amigo fosse virar a casaca daquela maneira. Devia ser um engano, era a única
explicação possível.
O homem de preto parou diante do adolescente imobilizado e tirou
um dos punhais preso à roda da fortuna, analisando o fio da lâmina com a
ponta dos dedos.
– Lamento que seus pais tenham reagido – comentou, como se
estivessem numa mesa de bar. – Não queria matá-los. Não ainda, pelo
menos...
De repente, a dor de Tião Ventania desapareceu, sendo substituída por
uma raiva quente e explosiva. Era algo na postura do velho amigo, na falta de
culpa com que descrevia seus atos malignos e despropositados.
– Nós abrigamos você, alimentamos você, cuidamos de você. –
acusou Tião Ventania. – Nós lhe demos uma casa, pelo amor de Deus!
– E sempre me trataram como um inferior – interrompeu Ed
Tempestade, como gostava de ser chamado agora. –, como um empregado,
que recebia as piores tarefas e precisava se contentar com os restos que
jogavam no meu prato.
– Você tinha um lugar na mesa como todos os outros – protestou Tião
Ventania. – Nunca lhe demos restos!
Ed Tempestade fez um gesto como se descartasse tal opinião.
– É uma figura de linguagem, Ventania – explicou. – O fato é que
nunca fui um de vocês e nunca esqueci o modo como abandonaram meu pai,
quando ele mais precisou.
– Seu pai foi preso por latrocínio, Chuvisco – lembrou Tião Ventania.
Imediatamente, o homem de preto acertou um tapa na cara do jovem
imobilizado, que o fez ficar zonzo. Quando voltou a abrir os olhos, um dedo
ameaçador estava levantado diante de seus olhos.
– Já lhe disse que meu nome agora é Ed Tempestade – alertou. – E
meu pai fez o que precisava fazer para sobreviver. Todos sabem que aquele
velho estava armado e preparado para atirar. Foi legítima defesa.
Tião Ventania lambeu o sangue dos lábios, deixando o gosto metálico
se espalhar pelo céu da boca.
– De todo modo, ele acabou na prisão – lembrou. – Não havia nada
que pudéssemos fazer para ajudá-lo. Você o visitou depois disso, sabe que
não tínhamos escolha além de partir, antes que a polícia decidisse prender o
restante de nós. Não pudemos fazer nada para salvar o velho Faustus, mas
meu pai prometeu cuidar de você. É assim que nos paga por todos os anos
que viveu conosco? Eu o considerava um irmão, Chuvisco – dessa vez, Ed
Tempestade não lhe deu um tapa para corrigir o erro. Apesar de sério, algo
em seus olhos mostrava que tais palavras o deixaram abalado. Tião Ventania
continuou. – Por que fez isso? Por que matou meus pais?
Ed Tempestade deu as costas para Tião Ventania, com a cabeça
encolhida entre os ombros, como se estivesse guardando algum segredo.
– Tudo isso é culpa sua, Ventania – acusou. – As coisas podiam ser
diferentes, se você não insistisse em tirar tudo de mim.
Tião Ventania franziu o cenho.
– Do que está falando?
Ed Tempestade se virou de volta para ele, furioso.
– Não se faça de desentendido – bradou. – Você sabe muito bem do
que estou falando, seu maldito traidor!
Só então a ficha de Tião Ventania caiu.
– Isso é sobre Maria Estrela? – perguntou, indignado.
Como resposta, Ed Tempestade cravou o punhal que ainda carregava
na mão direita de Tião Ventania, que berrou diante da dor aguda do golpe
inesperado.
– Não ouse falar o nome dela como se não fosse nada – rosnou. –
Você tinha tudo, Ventania! Tudo! Uma família que o amava, um papel na
principal atração do circo, colegas que o admiravam, a minha lealdade...
Ed Tempestade fez uma pausa, como se a confissão lhe doesse na
alma. Tião Ventania trincava os dentes enquanto lágrimas escapavam pelas
bochechas, descontroladas. A dor que sentia era imensurável.
– Você sabia dos meus sentimentos por aquela garota – continuou Ed
Tempestade. – Por que teve que se meter entre a gente? Por que tirou até isso
de mim? Por quê, Ventania? Por quê?
Tião Ventania encarou Ed Tempestade e deixou o ódio que sentia se
transformar em escárnio.
– Porque ela me amava – respondeu, orgulhoso. – E porque você era
um frouxo!
Ed Tempestade trincou os dentes. Furioso, arrancou outro punhal da
roda da fortuna e o cravou na mão esquerda de Tião Ventania, que berrou
mais alto do que antes. Em seguida, o homem de preto aproximou o rosto do
ouvido do rapaz imobilizado.
– Quem é o frouxo agora? – sussurrou.
Tião Ventania não respondeu. Compreendia que qualquer bravata só
lhe traria mais dor. Além disso, não estava em condições de reagir, com o
corpo amarrado daquele jeito. Ed Tempestade se afastou, deu uma risada e
três tapinhas leves no rosto do antigo amigo.
– Mas tudo isso são águas passadas – continuou. – E acho que ainda
posso perdoá-lo, se me disser onde ela está – revelou.
Ed Tempestade parou, olhando-o de soslaio, com um sorriso
convencido no rosto, como se já tivesse vencido o jogo. A isso Tião Ventania
não pôde fazer outra coisa além de gargalhar, o que deixou o homem de preto
visivelmente confuso.
– Do que está rindo? – quis saber, mas o outro apenas gargalhou mais
alto. – Acabei de matar a sua família, desgraçado! Diga qual é a graça disso?
Tião Ventania voltou a se controlar.
– É que você chegou tarde demais, idiota – respondeu, rebelde. –
Maria Estrela não está mais entre nós. Ela morreu!
O choque no rosto de Ed Tempestade fez Tião Ventania abrir um
largo sorriso.
– Mentira! – acusou o homem de preto. – Isso não pode ser verdade.
Você é um maldito mentiroso, Ventania! Um mentiroso!
Tião Ventania apenas continuou a sorrir. Furioso, Ed Tempestade deu
as costas para ele, pegou um punhal na mesa redonda de Rubens e se dirigiu
até onde seus homens mantinham os demais integrantes do circo como
reféns. Ao perceber o que ele faria, o sorriso de Tião Ventania desapareceu.
– Espere um minuto, Chuvisco – pediu.
– É Ed Tempestade – berrou o homem de preto, apontando o punhal
para o rapaz imobilizado. – Está na hora de você aprender quanto as coisas
mudaram, Ventania.
Andando em frente aos reféns deitados no chão, Ed Tempestade dava
voltas como um leão enquanto escolhia alguém.
– Vejo muitos rostos novos por aqui. O circo mudou um bocado desde
que fui embora, não é mesmo? – disse, parando em frente a um dos palhaços
e se agachando na frente dele. – Mas vejo também que o fiel Espirro não
abandonou a trupe. Ele sempre foi um cãozinho leal, não concorda,
Ventania?
– Você não tem que fazer isso, cara – suplicou Tião Ventania. – Seu
problema é comigo, não com eles. Deixe o pessoal em paz. Pelo amor de
Deus! Faço o que você quiser, mas deixe-os em paz!
Ed Tempestade sorria ao agarrar tufos azuis de cabelo do palhaço e o
fazer levantar a cabeça. A maquiagem de Espirro estava toda borrada por
conta das lágrimas e ele não cheirava tão bem. Ed Tempestade fez uma
careta.
– Oh não! – disse, fazendo teatro. – Parece que alguém borrou as
calças.
– Por favor, patrão – chorou Espirro. – Sou só um pobre palhaço,
nunca fiz mal a ninguém. Deixe-me de fora disso, por favor...
Ed Tempestade parou com as brincadeiras e encostou o punhal no
pescoço do palhaço, que se calou imediatamente.
– Você sabe o que quero saber, Espirro – a voz fria como gelo. –
Onde ela está?
Espirro levantou os olhos para Tião Ventania, que balançava a cabeça
de um lado para o outro. O palhaço voltou a baixar os olhos, envergonhado.
– Ela partiu, patrão – respondeu. – Fugiu, como tantos outros.
Ed Tempestade encarou Tião Ventania, triunfante, antes de continuar
o interrogatório:
– Há quanto tempo?
– Dois dias – respondeu Espirro. – Não, três! Três dias, patrão. Antes
de virmos para cá. Fugiu no meio da noite, sem avisar ninguém. Juro por
Deus, patrão. Isso é tudo que sei.
Ed Tempestade passou a mão na cabeça do palhaço como faria a um
cachorro.
– Acredito em você, Espirro.
Então, sem aviso, rasgou a garganta do pobre homem com o punhal.
– Mas meu amigo Ventania precisa aprender uma lição.
Espirro levou a mão ao pescoço, procurando conter o sangue que
jorrava pela jugular, como uma fonte aberta. A expressão de surpresa e dor
no rosto do palhaço seria cômica se também não fosse trágica.
– Nãããooo! – berrou Tião Ventania, impotente. – Seu monstro! Seu
maldito monstro!
Ed Tempestade sorria. Ele limpou o punhal nas costas do palhaço e o
entregou casualmente a um dos homens armados, que o auxiliavam. Nisso o
sujeito com a cicatriz retornou com um galão vermelho em mãos.
– Ora, vejo que achou a gasolina, Toro – comentou Ed Tempestade.
– Já encharquei os trailers, a bilheteria e a lona lá fora – relatou.
– Então continue o serviço com as arquibancadas – recomendou.
O homem da cicatriz assentiu, desatarraxou a tampa do galão e
começou a jogar o líquido inflamável em lugares que nunca mais contariam
com uma plateia. Tião Ventania assistia a tudo sem poder fazer nada.
– E quanto a eles, chefia? – quis saber outro homem, indicando os
reféns.
Ed Tempestade deu de ombros.
– Matem todos – ordenou. – Menos o idiota na roda da fortuna.
– O senhor é quem manda – concordou o homem que perguntou,
dando um tiro na nuca de Sabrina, a simpática bilheteira que sonhava em ser
trapezista.
Tião Ventania gritava protestos, mas ninguém lhe dava atenção.
Pistolas cantaram suas canções de morte e, um a um, todos os integrantes do
circo morreram, tendo os corpos abandonados no chão como pacotes de
pipoca amassados após o espetáculo. Os homens armados fizeram o trabalho
nefasto e deixaram a tenda, um após o outro. Menos Ed Tempestade, que
permaneceu no centro do picadeiro até não sobrar mais ninguém dentro do
circo além dele e Tião Ventania.
Os dois inimigos se encararam em silêncio.
– Como se sente sabendo que sua namoradinha será minha em menos
de uma semana? – provocou Ed Tempestade.
Tião Ventania não respondeu, apenas o fuzilou com o olhar. Ed
Tempestade sorriu, tirou uma caixa de fósforos do bolso e acendeu um palito.
– Você tinha tudo, Ventania, e vou lhe deixar sem nada – afirmou o
homem de preto, jogando o fósforo acesso na arquibancada, que
imediatamente se acendeu enquanto o fogo se alastrava de um lado ao outro
do circo. – Pense nisso enquanto seu mundo queima, maldito!
7
Da fogueira sobravam quase só brasas avermelhadas, que Tião
Peixeira fitava com um olhar vidrado, perdido em algum lugar do passado.
No rosto, mantinha uma expressão dura como pedra. João dos Mistérios o
observava atentamente, sem interromper o silêncio que se apoderava do
companheiro de viagem. Sabia como era difícil lidar com sentimentos
enterrados havia tantos anos. Recontar uma história era como a reviver, e isso
não devia ser uma tarefa fácil para o colega, que se aproximava
inexoravelmente de uma conclusão.
– Após o incêndio, acordei soterrado pelas cinzas da minha antiga
existência – recomeçou Tião Peixeira. – O circo não existia mais. Meus pais e
todos que davam vida para aquele sonho não existiam mais. O próprio céu
estava coberto por nuvens escuras e tempestuosas, como se o sol também
tivesse me abandonado após assistir aos horrores que se passaram por ali.
Ainda assim, no meio de toda a destruição, encontrei um baú quase intacto. O
meu baú. Dentro dele, o par de peixeiras que meus pais me deram de presente
no meu último aniversário como Tião Ventania. O peso delas parecia certo
nas minhas mãos. Vi meu rosto ao fitar a prata imaculada daquelas lâminas.
Não era o mesmo rosto de Tião Ventania. Não era o rosto de um menino, e
sim de um homem com uma missão. A partir de então, passei a me chamar
Tião Peixeira e a perseguir os bastardos que me transformaram no que sou
hoje.
Tião Peixeira se calou novamente. A história de sua origem chegava
ao fim. João dos Mistérios assentiu e coçou o queixo, curioso.
– Como você sobreviveu ao incêndio?
A pergunta pareceu trazer Tião Peixeira de volta ao presente. Ele
piscou várias vezes, como se buscasse compreender o sentido das palavras
que lhe eram ditas, e então deu de ombros.
– O ódio me manteve vivo – resumiu.
João dos Mistérios assentiu mais uma vez. Não era aquela a resposta
que esperava, mas achou melhor não forçar a amizade. Sabia que o outro
havia se aberto mais do que pretendia e respeitava sua dor. Se queria guardar
um ou dois segredos, não seria o bruxo quem levantaria objeções.
– Então você passou os últimos dez anos perseguindo esse tal Ed
Tempestade?
Foi a vez de Tião Peixeira assentir.
– Ele e todos que estiveram lá aquele dia – contou. – Toro, Caboclo,
Pequeno Índio, Cabeludo, Oreia Seca, Bola Oito, Rato Branco e Zé Porreta.
Despachei todos eles também, menos o Ed Tempestade. Esse puto é mais
escorregadio que cobra ensaboada. Mas, com sua ajuda, dessa vez ele não me
escapa.
João dos Mistérios pegou uma nova leva de galhos e os jogou sobre
os restos da fogueira, avivando o fogo na noite escura. O bruxo parecia
refletir sobre a história contada por Tião Peixeira.
– Mas primeiro você quer recuperar suas peixeiras em Miradouro,
certo?
Tião Peixeira cruzou os braços para se proteger do frio, e assentiu
uma vez.
– Não vou a lugar nenhum sem elas.
João dos Mistérios fez um barulho com a garganta, compreendendo o
caso.
– Posso perguntar como pretende fazer isso?
A sombra de um sorriso passou pelos lábios de Tião Peixeira.
– Pensei que podíamos usar um pouco da sua criatividade.
Capítulo 6
O Ninho da Serpente
1
A noite se aproximava, precedida pela queda na claridade do dia, fazendo
com que os feirantes desmontassem suas barracas e os mendigos buscassem
abrigo em caixas de papelão e outros lugares abandonados. Um vento frio
cruzou a rua principal de Riacho Doce, passando por Verônica Mota e
Leandro Fuentes com a rapidez de trombadinhas experientes. Os dois
pareciam ser os únicos seres vivos na rua aguardando transporte, parados em
frente à sede do Edição Extraordinária. Verônica mantinha os olhos fixos na
avenida deserta, já Leandro, desatarraxava a tampa de um cantil prateado
para dar um gole vigoroso no que guardava lá dentro.
– Não exagere na dose – recomendou Verônica, sem se virar. –
Preciso de você inteiro esta noite.
Leandro limpou os lábios com as costas da mão.
– Verônica, mi corazón, como chefe, você pode me pedir muita coisa
– argumentou. – Mas não me peça que encare o demônio sóbrio – concluiu,
com mais um gole no cantil.
Verônica olhou de soslaio para o repórter.
– É isso que você acha que o coronel é? – provocou. – Um demônio?
Leandro atarraxou a tampa de volta ao cantil e o guardou no bolso
interno do paletó barato. Tratava-se de um rapaz franzino, de cabelos louros
cacheados, nariz longo e barba rala, que usava roupas velhas e fedia a
cachaça. Não era nem de longe amedrontador, e as pessoas costumavam
subestimá-lo, o que facilitava seu trabalho como repórter.
– Eu poderia deixá-la ir sozinha, sabes? – brincou. – Você não me
paga o suficiente para arriscar a vida dessa maneira.
Verônica sorriu, com os braços cruzados, e olhou fixamente, mais
uma vez, para a avenida deserta.
– Como se você fosse perder uma oportunidade dessas...
Leandro suspirou, percebendo que perdera o argumento.
– Você deve achar que sou um tonto, no?
A isso Verônica concedeu uma risada.
– Somos jornalistas, meu bem – respondeu. – Precisamos de muito
mais inteligência para nos tornarmos tolos.
Ambos riram da piada, mas Verônica logo se calou, voltando a ficar
séria.
– Ouviu isso?
Leandro parou de rir imediatamente. O vento soprava inclemente pela
rua, carregando em sua esteira um som distinto e monótono, de tempos que
haviam ficado para trás e dos quais restavam apenas resquícios distantes.
– Um motor – reconheceu Leandro. – Parece que el coronel Olho de
Cobra quer nos oferecer uma recepção de realeza.
Verônica colocou a mão instintivamente sobre o cabo do revólver,
que levava mais para mostrar do que qualquer outra coisa.
– Se ele acha que vai me impressionar com ninharias está muito
enganado.
De repente, um monstro negro de metal entrou na avenida principal
fazendo uma curva fechada. Os faróis brilhavam como o par de olhos de uma
fera ancestral, cegando e paralisando os dois jornalistas que se encontravam
em seu caminho. O motor rugia com a potência de mil cavalos e a irritação de
dez anos de manutenção ininterruptas. Leandro se aproximou da chefe.
– Bom, estou impressionado – sussurrou.
O enorme jipe parou em frente ao jornal, o motor ronronava
ameaçadoramente.
– Então me faça o favor de ficar quieto – ordenou Verônica. – Deixe
que eu me encarrego de conduzir os negócios, ok?
A porta do jipe se abriu e um homem de pele acobreada, com os
cabelos penteados para trás com gel e um bigode caindo da ponte do nariz e
contornando os lábios superiores, saiu de dentro do veículo. Ele se vestia
como um garçom dos velhos tempos, num smoking preto, com gravata
borboleta e luvas brancas. Era um sujeito grande e parrudo, que gostava de
estufar o peito para se mostrar superior.
– Madame Verônica?
Verônica deu um passo adiante.
– Eu mesma – respondeu. – E você seria?
– Pode me chamar de James, a seu dispor – ele olhou para Leandro e
franziu o cenho. – E esse seria?
– Meu acompanhante – esclareceu Verônica, colocando a mão por
trás do funcionário, de modo a incluí-lo na conversa. – Leandro Fuentes, o
melhor jornalista do Edição Extraordinária.
Leandro sorriu, exibindo os dentes amarelos. James se mostrou
reticente.
– O patrão me deu ordens para buscar apenas a senhorita...
– Bom, seu patrão mandou um convite oficial para meu jornal –
argumentou Verônica. – Logo, estou levando alguém para registrar nosso
encontro. Tenho certeza de que o coronel ficará muito feliz de aparecer em
nossas páginas em lugar de destaque, não concorda? Ou teremos um
problema aqui?
James abriu a porta de passageiros do jipe, rendido.
– Problema nenhum, madame. Só terei que comunicar a sede para
colocarem um prato a mais na mesa. Só isso.
2
O jipe partiu a uma velocidade assombrosa bem a tempo do
crepúsculo, quando o sol tingia as nuvens de uma vermelhidão sanguínea
antes de o mundo mergulhar em trevas sombrias. Vanessa e Leandro seguiam
tensos no banco de trás, com os cintos apertados e os corações ameaçando
pular para fora do peito. Na direção, James engatou outra marcha ao mesmo
tempo que comentava assuntos aleatórios, respondendo às próprias perguntas
que fazia, num monólogo sem começo, meio ou qualquer fim visível.
Logo o veículo deixou as ruas esburacadas de terra de Riacho Doce e
passou para o asfalto das estradas proibidas, seguindo mais rápido em direção
ao seu destino, além das montanhas. De cavalo, eles provavelmente levariam
umas quatro ou cinco horas para chegar até o lar do coronel Olho de Cobra.
James afirmou que estariam às portas da mansão em exatos 45 minutos.
Verônica observou o velocímetro, que passava dos 180 quilômetros por hora.
O motorista tinha o pé pesado e não mostrava a menor intenção de
desacelerar.
Leandro tirou o cantil do bolso e deu um longo gole. Verônica pegou
o recipiente da mão do funcionário e também se serviu da bebida amarga.
Precisava de alguma coisa para controlar os nervos. Percebeu, então, os olhos
de James pelo retrovisor que a observava com um prazer sádico, como se
gostasse de provocar medo nos passageiros. Foi o suficiente para Verônica
esquecer onde estava e relaxar um pouco. Tudo fazia parte do teatro do
coronel Olho de Cobra.
As nuvens adquiriam um tom arroxeado à medida que a noite se
aproximava. Verônica olhou a paisagem inóspita pela janela: quilômetros de
terra seca e rachada, com poucas árvores e tufos de mato seco a intervalos
espaçados. Ao longe, era possível ver as sombras de torres tortas e quebradas,
ruínas de uma cidade sem nome, esquecida no meio do sertão. Ela se
encontrava perdida em pensamentos sobre o mundo que ficou para trás
quando Leandro fez uma pergunta:
– Que claridade é aquela mais adiante?
Verônica olhou para a frente. Além das montanhas, era possível notar
um halo, como se milhares de fogueiras estivessem acesas. Mas o fogo não
seria capaz de iluminar o horizonte daquela maneira, constante e equilibrada.
A claridade era produzida por alguma fonte artificial.
– As plantações – esclareceu James, prestativo. – O patrão mandou
plantar todo tipo de vegetais ao redor do castelo. É de lá que saem frutas,
cereais e legumes vendidos em todo o território. Também temos criações de
bois, vacas, porcos, galinhas e avestruzes, além de viveiros de atum, salmão...
– As luzes, hombre – interrompeu Leandro. – De onde vêm as luzes?
James deu uma olhadinha para trás.
– De holofotes de alta potência – esclareceu, como se não fosse nada.
Leandro piscou várias vezes e se virou para Verônica, que parecia não
estar surpresa com a revelação. O repórter de origem argentina não estava a
par de todas as histórias da região desde que chegara ali seis meses antes,
após fugir de uma tribo de canibais que devorou seus amigos e familiares.
– O coronel Olho de Cobra tem um dos últimos geradores de energia
zero em atividade – resumiu. – Não é forte o bastante para abastecer um
estado, mas é o suficiente para fornecer energia elétrica para a fazenda dele
pelos próximos oitocentos ou novecentos anos, mais ou menos, certo, James?
O motorista sorriu, mostrando os dentes brancos.
– Vejo que a madame fez o dever de casa – respondeu. – O patrão é
um homem rico e bondoso, capaz de muitos milagres, como vocês dois logo
poderão testemunhar.
James voltou a vangloriar os feitos do patrão, dizendo como ele
conseguira salvar a população de um fim iminente após a Grande Guerra,
protegendo o povo de ataques vindos tanto do Norte quanto do Sul. Verônica
e Leandro já não prestavam mais atenção ao motorista. O jipe voltou a passar
por terras habitadas, com favelas crescendo às margens da pista principal,
com caveiras a enfeitarem galhos de árvores secas como decorações de Natal,
um aviso aos estranhos para manterem distância, mesmo que as pessoas nas
ruas parecessem mortas de fome. Não era preciso pensar muito para descobrir
quem morava ali. As plantações precisavam de trabalhadores, afinal.
O jipe subiu a estrada até um platô distante das favelas, de onde era
possível enxergar a terra adiante. Mesmo sabendo o que esperar, Verônica se
viu prendendo a respiração no peito. Diante deles, encontravam-se as terras
particulares do coronel Olho de Cobra. Postes com mais de dez metros de
altura iluminavam um mar verde de árvores e diferentes plantas até onde a
vista conseguia alcançar. Era possível ainda distinguir um amplo lago de
águas escuras, nos quais operavam moinhos e do qual saíam canos para
alimentar a enorme plantação. No centro de tudo, no topo de um morro, havia
um enorme castelo, cheio de janelas iluminadas e chaminés que expeliam
uma fumaça escura e impenetrável, a reinar absoluto em meio ao paraíso
artificial criado ao seu redor.
– É de tirar o fôlego, não é mesmo? – comentou James, satisfeito. –
Como eu disse a vocês, o patrão é um homem capaz de realizar muuuuuitos
milagres.
3
Verônica conhecia as histórias das plantações e do paraíso terrestre que
o coronel Olho de Cobra erguera no meio do sertão. Ela não seria uma boa
jornalista se não soubesse tais coisas, de conhecimento popular. O que muitas
pessoas não sabiam e que ela estava parcialmente a par era o preço pela
conquista de tais coisas, todo o sangue derramado para desviar regatos e
cursos de rios para o estabelecimento de um lago artificial, todas as mentiras
criadas para escravizar pobres sertanejos que cuidariam das enormes
plantações. Eram histórias que ela não podia contar, se quisesse continuar
respirando. Ao menos, não de forma direta.
Ainda assim, o conhecimento empírico de algo era muito diferente do
prático, e estar nas terras particulares do coronel Olho de Cobra era uma
experiência que mexia com os brios investigativos da editora. Verônica
buscava gravar tudo que seus olhos viam através das janelas do jipe: os
trabalhadores rurais de costas encurvadas voltando em longas filas indianas
ou em carroças precárias aos seus casebres distantes, os jagunços de óculos
escuros e palitos nos dentes que os vigiavam montados em alazões e com
fuzis pendurados nos ombros, crianças sujas e remelentas que mendigavam
favores na beira da estrada... Esse era o preço pago pela criação do “paraíso”.
O jipe diminuiu de velocidade ao aproximar das enormes muralhas que
dividiam o reino do coronel Olho de Cobra. Paredes com aproximadamente
seis metros de altura, de pedras grandes e robustas, com torres de vigias
estabelecidas em intervalos de mais ou menos 30 metros de distância. Era
uma obra monumental, ainda distante da conclusão, como indicava a
presença de andaimes e trabalhadores que deslocavam os grandes blocos de
pedra em carrinhos por rampas íngremes e perigosas. Verônica imaginou que
aquilo deveria fazer parte dos sonhos faraônicos do coronel, uma fortaleza
inexpugnável no meio do sertão.
James seguia com sua cantilena de elogios aos esforços do coronel para
trazer paz àquela terra arrasada. Para seu crédito, parecia realmente acreditar
no que dizia. Era um servo leal, não havia dúvida disso. Na base da grande
muralha, desceu o vidro e conversou com uma sentinela, que o deixou passar
à área interna da fortaleza. O jipe subiu a estrada margeada pelas plantações
até o grande castelo prostrado no topo do morro, onde mais capangas de
óculos escuros e ternos negros aguardavam. Verônica percebeu um setor de
abastecimento em que se acumulavam caminhões, jipes e outros veículos.
– O que eu disse a vocês? – comentou James, estacionando o jipe em
frente à entrada principal. – Quarenta e cinco minutos, sem tirar nem pôr. Sou
ou não sou um bom motorista?
A porta de passageiro se abriu pelo lado de fora. Verônica e Leandro
trocaram um olhar antes de descerem do carro. Haviam chegado ao destino.
Estavam em território desconhecido, portanto precisavam agir com cautela.
Tudo isso estava contido num único olhar. Verônica desceu primeiro.
– Madame Verônica... – cumprimentou um dos engravatados cujo rosto
estava coberto por escamas e rachaduras esbranquiçadas devido a um caso
seriíssimo de ictiose. Por incrível que pareça, essa não era a única
característica medonha do indivíduo, que também exibia pupilas escarlates,
além de sobrancelhas e cabelos branquíssimos. A editora o reconheceu
imediatamente. Era o homem conhecido como Berne, o Dragão Albino, chefe
de segurança do coronel Olho de Cobra. – O patrão a aguarda no jardim de
inverno – continuou, solícito. – Se a senhorita e seu acompanhante puderem
me acompanhar...
O homem não fez menção de tocá-la e manteve uma distância
respeitosa, o que Verônica considerou oportuno, dado o aspecto terrível do
sujeito. Apenas abriu caminho e apontou para os portões da residência, que
foram imediatamente abertos por dois valetes, adolescentes vestidos como
gente grande em busca de aprovação.
– Abandone toda a esperança aqueles que aqui entrarem – sussurrou
Leandro no ouvido de Verônica.
A editora não disse nada, mas lançou um olhar fulminante ao repórter.
Não era hora para brincadeiras. O sorriso de Leandro desapareceu e ele
assentiu, captando o recado de olhos baixos.
– Fizeram boa viagem? – quis saber Berne, puxando papo.
– Não temos do que reclamar – respondeu Verônica, entrando na
mansão.
O hall de entrada era impressionante, lembrando igrejas medievais,
com longos vitrais, espaço interno amplo e pé-direito alto. Candelabros
ricamente ornamentados com cristais ofereciam uma iluminação lúgubre e
soturna. As paredes eram decoradas com quadros de cores pesadas e motivos
religiosos, todos pintados de forma realista de modo a exaltar a figura
humana. Um quadro em especial captou a atenção de Verônica: uma mulher
sendo presenteada com uma maçã por uma serpente que mantinha o corpo
bulboso e escorregadio escondido nas sombras, destacada pelo brilho sinistro
em seus olhos amarelados, acesos como faróis.
– O patrão mandou preparar dois quartos para vocês, caso queiram
passar a noite conosco – continuou Berne, guiando os convidados rumo ao
corredor principal. – Se preferirem ficar no mesmo quarto, isso também pode
ser arranjado.
– Obrigado pela gentileza, mas isso não será necessário – respondeu
Verônica, com firmeza. – Gostaríamos de retornar para Riacho Doce após o
jantar.
Berne seguia na frente dos dois, sem olhar para trás.
– Tem certeza? Viajar à noite pode ser perigoso.
Verônica teve a impressão de que o subalterno tentava provocá-la.
– Se o coronel não puder nos fornecer transporte, voltaremos a pé –
definiu.
Berne deu uma olhadinha para trás, com os lábios repuxados num
sorriso horrível.
– O que for melhor para vocês – concedeu.
Os três subiram uma escada e seguiram por um corredor longo com
muitas portas e bastante amplo, embora mal-iluminado e opressivo. As
paredes rubras pareciam sugar a luminosidade das lâmpadas amarelas
dispostas em lustres rebuscados, de modo que até os contornos dourados que
contornavam os tetos e as portas perdiam o brilho e a vitalidade. Eles pararam
na frente de uma porta branca no fim do corredor, onde outros dois valetes
aguardavam como sentinelas do castelo. Berne se virou para os convidados.
– O patrão aguarda atrás dessas portas – anunciou. – Mas receio que,
para vê-lo, terei que pedir que deixem suas armas na entrada. Por uma
questão de segurança, como tenho certeza de que entendem.
Verônica assentiu. Aquilo era esperado, mesmo que não lhe trouxesse
tranquilidade. O revólver pesou em sua mão quando o tirou do coldre e o
estendeu pacificamente para Berne, que o pegou sem cerimônias com as
mãos enluvadas. Então, ele virou-se para Leandro.
– E o cavalheiro, não carrega nenhuma arma?
Leandro tirou um caderninho e uma caneta de dentro do paletó.
– Somente essas, parceiro – respondeu. –Sou daqueles que acreditam
que a caneta é mais poderosa do que a espada, entendés?
O rosto do homem se torceu de forma grotesca em um sorriso sem
humor.
– Essas você pode levar – concedeu, entregando o revólver de
Verônica a um dos valetes ao seu lado.
– É bom cuidar bem dela – alertou a jornalista apontando para a arma
com o queixo, de olho no adolescente que a segurava. – Se estiver faltando
uma só bala quando formos embora, não vou hesitar em poupar pólvora para
descobrir onde ela foi parar, entendeu?
O valete assentiu, assustado. A escassez de munição fazia com que
balas tivessem peso de ouro no mercado negro.
– Não se preocupe com isso – interveio Berne. – Vocês são
convidados do coronel e, como tais, serão tratados com todo o respeito que a
tradição exige. Pelas leis da hospitalidade, garanto que estão seguros aqui.
Agora, se pudermos prosseguir... – continuou, girando a maçaneta da porta. –
Acredito que o coronel gostaria de trocar umas palavrinhas com você.
4
Deslumbramento, fascinação e encanto: não havia outro modo de
descrever as sensações de Verônica ao adentrar o jardim de inverno do
coronel Olho de Cobra. A editora até esqueceu de onde estava, tamanha a
surpresa diante de tanta beleza. Sentia-se como uma personagem que acabara
de adentrar numa pintura clássica, daquelas que decoravam as paredes de
museus importantes nos velhos tempos. Estátuas de mármore branco
representando Adão e Eva, com folhas de parreiras a cobrirem suas
vergonhas, davam as boas-vindas aos visitantes em poses dramáticas, típicas
das tragédias gregas, com os braços levantados unidos por um toque dos
indicadores a formarem um arco natural. Mais à frente, havia uma cascata
artificial, com água cristalina a borbulhar alegremente numa piscina artificial
que se ramificava em vários braços sinuosos a simularem rios pelo elegante
jardim. Colunas brancas e redondas se levantavam em pontos estratégicos,
elevando-se até as plataformas superiores e as grandes abóbadas, de ferro
trançado em desenhos complexos e elegantes. Tudo isso sem falar da
vegetação exuberante que transformava o ambiente numa pequena floresta
tropical, repleta de flores delicadas e aromas cítricos, com direito a animais
raros, como uma família de micos-leões-dourados, que observavam os
jornalistas com curiosidade do alto de um jacarandá, ou um par de formosos
pavões, que ciscavam numa trilha de folhas secas com as belas caudas
recolhidas a se arrastarem pelo chão.
– O patrão os aguarda no fim da trilha – indicou Berne, arrancando
Verônica e Leandro do estado contemplativo em que se encontravam. –
Sintam-se à vontade para provar os frutos que encontrarem pelo caminho.
Mas tomem cuidado, pois a relva também esconde seus segredos.
Então, sem mais uma palavra, Berne fechou a porta e deixou os
jornalistas sozinhos no jardim de inverno.
– O que acha que ele quis dizer com isso? – quis saber Leandro.
Verônica ergueu os ombros.
– Quem se importa? Só fico feliz de ele não ter que nos acompanhar.
Aquela cara de lagarto me dá calafrios.
– Não fale tão alto – recomendou Leandro num sussurro. – Vai que
ele escuta?
Verônica sorriu.
– Está com medo que ele corte suas orelhas para usar num colar?
Segundo boatos, Berne colecionava partes dos inimigos e vítimas que
matava. As más línguas diziam que ele tinha todo um guarda-roupa de peles
humanas, brincos de dentes e olhos cristalizados, além dos famosos colares
de ossos e orelhas com os quais costumava sair para caçar. Verônica sabia
que nada daquilo era verdade, embora muitos considerassem selvagens os
métodos utilizados pelo Dragão Albino para conseguir o que queria,
especialmente em interrogatórios.
– Só quero acabar logo com isso e ir para casa – desabafou Leandro.
– Tem razão – concordou Verônica. – Venha! Vamos encontrar a
serpente no meio desse jardim.
Os dois adentraram a trilha, ladeada por uma mata densa e
exuberante. Orquídeas cresciam em troncos próximos, semiocultos por
roseiras cheias de espinhos, cujas belezas naturais pareciam competir pela
atenção dos visitantes. Um beija-flor azul passou velozmente pelos
jornalistas, parando um segundo em frente a eles antes de seguir para dentro
da mata, que se agitava cheia de vida. Além dos passarinhos, era possível
ouvir grilos, sapos e outros bichos que nenhum dos dois conseguia
reconhecer. Ao atravessarem uma pequena ponte, viram carpas laranjas e
vermelhas nadando dentro do rio artificial.
Logo a beleza de tudo aquilo começou a incomodar Verônica. Aquela
floresta era algo do velho mundo, que havia ficado para trás, graças à
selvageria dos homens. Sua existência servia tanto como promessa de um
futuro mais equilibrado quanto como uma afronta à realidade, na qual as
florestas foram substituídas por desertos e a civilização definhava embaixo de
nuvens negras com acesso a parcos recursos naturais, que ficavam mais
escassos a cada dia. Aquele jardim não era um lugar natural, do mesmo modo
que a mente que o projetou não pertencia a um homem comum.
Verônica refletia sobre tudo aquilo quando a trilha se abriu para uma
pequena clareira, no centro da qual crescia uma macieira repleta de frutos
vermelhos e suculentos. Os dois jornalistas pararam onde estavam.
– A árvore da sabedoria – indicou Leandro. – Parece que o pequeno
Jardim do Éden del jefe está completo.
Verônica deu um passo adiante.
– Ainda falta um pequeno detalhe – opinou.
Leandro franziu o cenho.
– O que está fazendo? – perguntou, inseguro.
Verônica não respondeu. Ela caminhou devagar até a macieira e
contemplou os frutos que pendiam de seus galhos. Podia brincar de Eva e
provar de um deles, mas essa não era sua intenção. Ela observava as sombras
por trás das verdes folhas, em busca de algo oculto, que poderia passar
despercebido numa primeira olhada. Logo foi recompensada. Enroscada num
galho, em anéis pretos e vermelhos interconectados, encontrava-se uma cobra
a observá-la com pequeninos olhos negros e a língua sibilante entrando e
saindo da boca fechada.
– Não fui eu que as coloquei aí, sabia?
A interrupção inesperada fez Verônica dar um pulo para trás, com as
costas eretas. Ela se virou na direção da voz. Numa lateral da clareira, uma
escada de pedras levava a um pequeno platô, onde um homem estava
sentado, de pernas cruzadas, numa cadeira branca de espaldar alto,
semelhante a um trono. Ele usava botas amarronzadas, calças sociais e um
paletó dourados, com manchas escuras e uma textura brilhante que
lembravam escamas, uma camisa de um laranja bem vivo, que não conseguia
esconder a barriga protuberante, dedos cheios de anéis a exibirem pequenos
rubis e safiras, além de um chapéu branco de caubói. Seu rosto era o de um
velho, com rugas e pés de galinha que denunciavam a passagem do tempo,
bem como uma papada embaixo do queixo quadrado. Um dos olhos se
encontrava coberto por um tapa-olho discreto, o outro era verde e incisivo,
além de se encontrar fixo como uma mira laser em Verônica, estudando-a
com a frieza dos répteis.
– Soltei um par de cobras corais neste jardim quando ele ficou pronto
– continuou o homem, pegando uma bebida na mesinha disposta do lado da
cadeira, como se tudo aquilo fosse corriqueiro para ele. – Elas escolheram os
galhos dessa macieira como moradia por conta própria, o que não deixa de
ser apropriado, não concorda?
Verônica procurou sorrir sem demonstrar o nervosismo que sentia.
– Coronel Olho de Cobra – cumprimentou, profissionalmente. –,
desculpe, não o vi aí quando cheguei. O senhor me pegou de surpresa.
O homem deu um gole de passarinho no drinque, e o deixou de lado,
levantando-se.
– Gosto de vir aqui meditar – explicou. – É o único lugar onde
encontro um pouco de paz nesse hospício.
Ele sorriu de forma amistosa e acolhedora ao aproximar dos visitantes
com passos lentos e despreocupados, de quem não tem pressa para chegar
onde quer. A primeira coisa que Verônica notou foi que era ao menos um
palmo mais alta que o coronel Olho de Cobra.
– É um belo jardim – concordou Verônica. – Achei que não
existissem mais lugares assim no mundo em que vivemos.
O coronel Olho de Cobra parou em frente a ela.
– Faço o que posso para manter viva a faísca dos velhos tempos –
comentou. – Mas onde estão meus modos? É um prazer conhecer a senhorita
– continuou, pegando a mão de Verônica e plantando um beijo nas costas
dela, como se fosse o personagem de algum romance do século XIX.
– O prazer é todo meu – respondeu Verônica, educadamente.
Nisso Leandro alcançou os dois e o coronel Olho de Cobra se virou
para ele. O jornalista abriu um largo sorriso e esticou a mão para
cumprimentar o anfitrião.
– Leandro Fuentes, ao seu dispor, senhor – cumprimentou.
O coronel Olho de Cobra observou a mão estendida com um sorriso
fino, mas manteve as próprias mãos unidas atrás de si. Ele se virou para
Verônica.
– Esse é o colunista social que trouxe para registrar o nosso encontro?
Leandro recolheu a mão, embaraçado.
– Ele é repórter investigativo, na verdade – detalhou Verônica. –
Ainda não temos uma coluna social, visto as dificuldades que temos tido só
para colocar o jornal em circulação, como tenho certeza de que o senhor está
a par.
O coronel Olho de Cobra voltou a encarar Leandro, dessa vez, sem
sorrir.
– É para isso que veio aqui? – quis saber, inquisitivo. – Para me
investigar?
Leandro engoliu em seco, olhando para Verônica em busca de
socorro.
– De forma alguma, senhor – garantiu a editora. – Ele está aqui
apenas para registrar nosso encontro e tomar notas, caso o coronel nos
presenteie com alguma novidade digna de uma matéria exclusiva para o
jornal.
O Coronel Olho de Cobra voltou a sorrir.
– Então, acertei! – comemorou, exultante. – Ele está hoje no papel de
colunista social. Agora, imagino que estejam com fome, não? Acompanhem-
me. Pedi que servissem o jantar na plataforma superior do jardim. Podemos
continuar nossa conversa lá em cima, entre taças de vinho e As quatro
estações de Vivaldi. O que acham?
5
A plataforma superior do jardim de inverno ficava acima das copas
das árvores, a uma altura de dez metros do solo, com um piso gradeado que
permitia a passagem da luz, tão necessária às plantas, embora não fosse ideal
para pequenos objetos, como chaves, que poderiam escorregar por entre os
vãos e se perder na mata abaixo. Era preciso ter cuidado com os pertences ali
em cima. Para compensar, a vista das plantações e das montanhas além delas
era fabulosa, com as luzes dos holofotes refletindo nas águas negras do lago
artificial em ondulações luminosas.
A mesa estava posta sobre um tablado metálico mais robusto, para o
conforto dos convidados, especialmente aqueles que tinham medo de altura,
como parecia ser o caso de Leandro. Pizzas de suor se formavam nas axilas
do pobre jornalista, que evitava olhar para baixo a todo custo. A mesa era
redonda e grande para os três, deixando muitos espaços vazios que foram
rapidamente sendo preenchidos por pratos de todos os tipos e sabores
imagináveis. Os criados trabalhavam como autômatos, em silêncio e
eficientemente, servindo taças de vinho ou ajeitando talhares sobre a toalha
escura. Havia até um empregado exclusivamente responsável por virar o
disco na vitrola. Sem contar os seguranças armados parados em cantos
estratégicos, talvez devido a toda a prataria na mesa. As facas pareciam bem
afiadas.
– Não se acanhem – aconselhou o coronel, indicando o festim. –
Sirvam-se!
Leandro atendeu ao pedido prontamente, enchendo o prato de bifes,
pedaços de galinha, vitela, bacon, purê de batata, feijão e o que mais visse
pela frente. Verônica foi mais comedida, servindo-se de salada ao molho
caesar e filé de frango. Na verdade, quase não tinha fome e sentia um mal-
estar ao ver tanta comida preparada somente para três pessoas. O desperdício
era algo que não lhe passava despercebido, mas saiba que tudo fazia parte do
teatro do coronel Olho de Cobra. Seus lábios sorriam, cheios de simpatia,
porém seu único olho a observava de forma clínica, como se quisesse
descobrir seus pensamentos mais secretos.
– Obrigada pelo convite – agradeceu Verônica, cortando a salada e
determinada a manter algum controle sobre a conversa. – Mas não teremos a
companhia de mais ninguém? Seu filho, talvez? Ou o rapaz que mandou
entregar o convite. Como era mesmo o nome dele?
– Ed Tempestade – respondeu o coronel, torcendo o lábio, como se
algo o incomodasse enquanto um criado o servia. – E não, eles não
participarão do jantar. O único filho que me sobrou não me acompanha nas
refeições desde que a mãe morreu, cinco anos atrás, como se eu fosse o
culpado pelo câncer dela. Já meu convidado, não posso afirmar que Ed
Tempestade seja exatamente um amigo.
– Não? – insistiu Verônica, percebendo uma falha na armadura do
velho.
O coronel a encarou com o olho bom e ofereceu um sorriso mais
ameno.
– Acolhi o rapaz como um favor a um aliado – resumiu. – Não estava
a par dos problemas dele ou de seu... temperamento, digamos. Isso me causou
algumas dores de cabeça, mas está tudo resolvido agora. Acredito que ele irá
embora em breve. Logo poderemos esquecer que um dia esteve aqui. Marque
minhas palavras.
Verônica se virou para Leandro, que se ocupava em devorar uma coxa
de galinha com as mãos, esquecido dos modos à mesa. Ela fez um barulho
com a garganta, para chamar a atenção do funcionário. O jornalista entendeu
o recado, limpou-se rapidamente com um guardanapo de linho e tirou o
bloquinho de anotações e a caneta do bolso interno do paletó. O coronel Olho
de Cobra deu uma risadinha.
– Eu não estava falando literalmente, você sabe.
Verônica sorriu educadamente para ele.
– Achei uma boa deixa para começarmos a entrevista – explicou.
O coronel Olho de Cobra parou com o garfo a meio caminho da boca
e olhou de um jeito engraçado para a editora.
– Será que não podemos simplesmente jantar, como pessoas normais?
– questionou. – Depois teremos tempo para uma bateria de perguntas e
respostas que vocês, jornalistas, adoram.
Verônica mastigou um bocado de alface, assentindo.
– Só estou querendo esclarecer as coisas – garantiu. – Afinal, você
nos chamou porque gostaria de ser entrevistado para o jornal, não é mesmo?
O coronel deu uma boa gargalhada, como se houvesse algo de cômico
na pergunta da editora. Verônica olhou para os seguranças armados, que
permaneciam parados como estátuas em seus lugares. Ela só queria entender
o que estava fazendo ali.
– Minha cara, na verdade, só a convidei até aqui hoje por respeito ao
seu pai, a quem tenho na mais alta conta, e para lhe perguntar que loucura a
senhorita acha que está fazendo?
Pronto! Haviam chegado ao cerne da discussão.
– Se o senhor não gostou da nossa primeira manchete... – começou
Verônica.
– Não estou falando de nenhuma manchete – interrompeu o coronel,
voltando a cortar a carne no prato e olhando de soslaio para o segurança atrás
dele. Verônica sentiu um calafrio. Aquilo podia ser um sinal. – Estou
perguntando sobre essa ideia de lançar um jornal nos dias de hoje – continuou
o coronel. – Quem você acha que vai se interessar por isso?
– Ora, nossa primeira edição esgotou – defendeu-se a jornalista,
procurando manter a calma.
– Porque as pessoas adoram uma novidade – opinou o coronel,
enchendo a boca de carne de porco. – Mas, diga-me, Verônica, como você
pretende manter um público quase inteiramente analfabeto interessado no seu
trabalho? Nosso povo é ignorante, como você bem sabe, e está contente indo
à igreja aos domingos. Deixe que os padres forneçam as informações de que
essa gente tanto precisa, ok?
– Coronel, o senhor bem sabe que temos ao menos algumas centenas
de famílias abastadas e letradas para quem notícias do território são sempre
bem-vindas – rebateu Verônica, muito séria. – Além disso, acredito que o
jornal servirá como um meio para unir nossa comunidade, a fim de nos
organizarmos e fazermos o que for necessário para sair do estado de barbárie
a que fomos submetidos nos últimos dez anos. O povo pode viver na
ignorância hoje, mas não há motivos para que continuem nessa mesma
situação degradante amanhã.
O coronel lançou um olhar fulminante para a convidada.
– Por acaso, está insinuando que não tenho feito um bom trabalho ao
cuidar do meu povo?
Verônica engoliu a comida com dificuldade. Percebeu que caminhava
sobre gelo muito fino, sabia que o coronel era capaz de matar adversários por
simples caprichos e não queria engrossar as estatísticas. Também viu um dos
seguranças levar a mão para dentro do paletó, talvez preparado para sacar
uma arma ao menor sinal do chefe. Precisava tomar cuidado com as palavras,
caso não quisesse que aquela fosse sua última refeição. Sorriu, simpática.
– Estou apenas sugerindo que posso ajudá-lo a fazer esse trabalho,
senhor – argumentou, muito calmamente. – Não estou aqui como inimiga. Sei
como tem se esforçado para resgatar o orgulho do nosso povo, incentivando o
comércio, oferecendo diversão com campeonatos de futebol e nos protegendo
dos bandidos espalhados pelo sertão. Mas não acha que está na hora de dar
um passo adiante? Levar um pouco de educação ao povo? Saúde?
O coronel levantou uma sobrancelha, parecendo analisar a questão,
enquanto destrinchava outra fatia do leitão cozido e a colocava no prato. O
segurança atrás dele permanecia imóvel, com a mão escondida dentro do
paletó. Verônica deu um gole no vinho, para disfarçar o nervosismo, mas o
gosto de uvas amargas não caiu bem em seu estômago ansioso.
– Para quê? – indagou o coronel. – Você já deu uma boa olhada no
mundo lá fora? Olhe no meu olho e me diga que realmente acredita que a
humanidade pode se recuperar do estrago causado pela Grande Guerra.
– Por que não? – insistiu Verônica. – Veja o que o senhor fez aqui.
Esse castelo que construiu, o lago que formou no vale lá embaixo, as
plantações que cultivou para garantir nossa subsistência, esse próprio jardim
maravilhoso sobre o qual estamos jantando! Será que não percebe os milagres
que é capaz de realizar?
O coronel estufou o peito, mas não sorriu. Em vez disso, olhou
discretamente para trás e balançou a cabeça negativamente. Na mesma hora,
o segurança tirou a mão de dentro do paletó, vazia, para alívio dos jornalistas,
e retornou à posição inicial, fingindo ser uma estátua novamente. Então,
Verônica percebeu que vencera o debate. Tudo que precisou fazer foi apelar
para a vaidade do anfitrião. Ele cortou um pedaço de carne e a levou a boca,
pensativo, dando continuidade ao teatro.
– Nem mesmo eu sou capaz de afastar essas malditas nuvens escuras
do céu – resmungou, como se não estivesse convencido. – Talvez você não
tenha percebido, mas elas se tornam mais espessas a cada dia que passa. A
luz solar fica cada vez mais escassa. Tudo isso dificulta nossa sobrevivência,
dificulta o sucesso de nossas lavouras. E você me pede que dê esperança ao
povo?
– Novamente, coronel, por que não? – insistiu. – Meu pai é fazendeiro
e tem passado por dificuldades maiores que o senhor. Perdemos diversas
plantações no último semestre, devido à falta de iluminação adequada.
Infelizmente, não temos energia elétrica ou lâmpadas de alta potência, como
o senhor. No ano que vem, provavelmente só conseguiremos produzir
batatas. Mas nem por isso desistimos, porque precisamos acreditar no futuro.
Sem esperança no amanhã, o que nos resta?
– O presente – respondeu o coronel, automaticamente, com ar
melancólico.
– E não há hora melhor para agir do que agora – continuou Verônica,
sem dar tempo para o anfitrião retorquir. – Pense comigo. Já conseguimos
montar uma sociedade relativamente estável depois de tudo por que
passamos, e isso não é pouca coisa. Com algumas aulas práticas, podemos
retomar parte do conhecimento que perdemos quando o mundo veio abaixo.
Imagine poder levar eletricidade para o restante da população, os avanços de
que não seríamos capazes! Para isso, precisamos nos unir, deixar nossas
diferenças de lado e trabalhar para que o futuro seja mais iluminado do que
este nosso presente sombrio.
O coronel já não comia mais, encarando a convidada com o olho
semicerrado. Mantinha uma expressão neutra. Era impossível saber o que
estava pensando. Verônica se calou. Havia exposto os problemas que tanto a
incomodavam da melhor maneira que pôde, agora restava aguardar a resposta
do homem do outro lado da mesa.
– Esperança – considerou o coronel, passando a mão no queixo, como
se degustasse o som que tal palavra fazia ao ser dita em voz alta. – Sim,
acredito que a senhorita tenha razão – concedeu e sorriu. – Posso ver que
puxou ao seu pai. O velho Bastiano sempre teve ideias ousadas.
Verônica enrubesceu contra a vontade, pois não era invulnerável a
elogios.
– Sabe, seu velho salvou minha vida uma vez – comentou o coronel,
mais leve.
– É mesmo? – incentivou Verônica. Ela já havia ouvido aquela
história milhares de vezes, mas nunca pelo ponto de vista do homem à sua
frente.
O coronel assentiu, entrelaçando os dedos, com os cotovelos na mesa.
– Lembro como se fosse ontem – começou. – Foi logo após o fim da
Grande Guerra, quando o êxodo urbano deu início a uma série de conflitos
pelo interior, antes que as fronteiras do meu território fossem demarcadas. As
pessoas ainda se apegavam aos nomes dos velhos estados e cidades. Eram
dias confusos, cheios de inimigos e desespero. Aconteceu numa de nossas
visitas às ruínas daquela cidade ao sul, não lembro mais o nome dela, só que
acreditávamos que ela ainda tinha recursos importantes para a nossa
sobrevivência. Fiquei de encontrar com o grupo do seu pai por lá, mas acabei
emboscado por um bando de pistoleiros atrás da minha cabeça. Um rival que
já se foi havia colocado um prêmio nela. Se não fosse pela chegada
providencial do seu pai, provavelmente eu não estaria aqui hoje, aproveitando
esse delicioso banquete em tão formosa companhia.
Verônica atendeu às expectativas do coronel com um sorriso educado.
A versão que ela conhecia era um pouco diferente. O pai contou que o
coronel deu especificações do local e horas exatos onde deveriam se
encontrar, inclusive do caminho que deveria tomar para chegar até ali, o que
o colocou atrás do bando de pistoleiros. Sua chegada não foi apenas
providencial, e sim planejada, como se seu anfitrião soubesse de antemão
como seria o desenrolar daquela tarde sangrenta. Não era uma lembrança que
mencionava à toa. Ele queria lembrar a jornalista do que os boatos diziam
sobre sua pessoa, de que podia ver o futuro e, justamente por isso, ninguém
conseguia surpreendê-lo. Era algo a se pensar, em especial dada a rapidez
com que a editora convenceu o homem a aceitar seu ponto de vista na mesa
de jantar.
– Direi ao meu pai que o senhor manda lembranças – agradeceu
Verônica.
– Peça que ele me visite qualquer hora dessas – acrescentou o coronel.
– É sempre um prazer receber visitas de bons amigos.
– Direi, sim, senhor – concordou Verônica, debruçando sobre a mesa.
– Agora, se não se importa, pode me dizer o que tem em mente? O que fará
para dar esperança de volta ao povo?
O coronel se virou para Leandro, que, esquecido em seu canto,
devorava o que encontrava pela frente.
– Acho bom seu colunista social voltar a tomar notas – recomendou. –
Porque decidi conceder aquela entrevista exclusiva que me pediu.
6
Passava da meia-noite quando James deixou os jornalistas de volta no
jornal. Tanto Verônica quanto Leandro estavam exaustos após a curta viagem
e o falatório interminável do motorista, sem falar no jantar tenso do qual
participaram e escaparam com uma história para contar. Ambos respiraram
aliviados quando o jipe negro desapareceu numa curva, com o barulho do
motor se distanciando cada vez mais. Leandro aproveitou para sacar o cantil
prateado e dar um bom gole na bebida amarga que carregava sempre consigo.
– Rapaz, que noite! – resumiu o repórter. – Sabe, cheguei a ficar
preocupado no começo, com todos aqueles guardas armados e o coronel
perguntando o que lhe havia passado na cabeça para criar um jornal. Juro por
Deus! Achei que ele fosse nos matar ali mesmo.
Verônica tamborilava os dedos no cabo do revólver, devolvido com
todas as balas no tambor, ainda de olho na curva pela qual o jipe desapareceu,
pensativa.
– Você também teve a impressão de que ele nos convidou até lá para
acabar com nosso jornal?
Leandro parou ao lado da chefe.
– Por um momento, sim – admitiu. – Acho que ele ficou incomodado
com nossa primeira manchete.
– Com certeza ficou – assentiu Verônica. – Ele conhece o poder da
informação e da palavra escrita, sabe como um jornal pode ser perigoso. Seria
melhor para ele cortar o mal pela raiz, nos esmagar antes que nos tornemos
um problema.
– Mas você conseguiu fazê-lo mudar de ideia – apontou Leandro.
– Sim – concordou Verônica, desconfiada. – Só que aquilo não me
pareceu muito natural.
Os dois ficaram em silêncio na rua deserta. Era tarde, a cidade estava
um breu só e até os lobos dormiam, talvez por não terem lua para a qual
uivar.
– Está tudo bem, chefe?
Verônica bufou de raiva.
– Aquele maldito está escondendo alguma coisa – respondeu, furiosa.
– Não sei exatamente o que é, mas imagino que não deva ser nada bom. Não
depois de todas as abobrinhas que ele nos enfiou goela abaixo para colocar no
jornal.
– Também achei as promessas dele meio furadas.
– Porque ele quer nos usar – detalhou Verônica. – Ou melhor, quer
usar nosso jornal para colocar em andamento a agenda política dele, como se
eu fosse cega para não perceber o que ele fez.
– Prefere abortar a matéria? – sugeriu Leandro.
– De jeito nenhum – respondeu a chefe. – Não queremos esse
desgraçado como inimigo no momento. Ele é poderoso demais – disse,
fazendo uma pausa, pensativa. – Por enquanto, vamos fazer o jogo dele,
deixá-lo pensar que somos os fantoches que ele deseja.
– E enquanto isso?
– Não é você o repórter investigativo? – questionou Verônica. –
Vamos investigar esse puto, descobrir o que está escondendo e, assim que
tivermos os podres dele, jogar as notícias aos quatro ventos.
Capítulo 7
Miradouro
1
Upiara esquentou o café e, apesar de morar sozinho, colocou a mesa para
três. Sonhou com o Grande Espírito naquela noite, que lhe trazia notícias de
visitantes vindo do sul. Dois deles: um velho conhecido e um estranho, que
caminhava sempre acompanhado por um exército de condenados – as almas
de todos os homens que matou. O índio verteu o café na garrafa térmica e a
tampou, de modo a conservar o calor. Amanhecia do lado de fora, como
indicava uma claridade azulada. O sol brilhava através das nuvens, como um
fantasma luminoso a passar por trás de águas turvas, mas fazia frio, como era
cada vez mais comum, independente da época do ano.
O índio jogou uma manta escura com desenhos pictóricos sobre os
trajes para se esquentar, serviu-se de uma xícara de café e se sentou na
mureta em frente à loja de conveniência na qual morava, com olhos fixos no
horizonte. Deixou a escopeta com a qual costumava receber os clientes dentro
de casa. Não queria parecer ameaçador, ao menos, naquela manhã. Logo o
dia começou a ficar mais claro e Upiara viu duas sombras bruxuleantes se
aproximarem pelo sul, uma em cima de um cavalo e outra, bem mais baixa, a
acompanhando a pé. O índio deu um gole no café, colocou-o sobre a mureta e
se levantou.
João dos Mistérios chegou montado em Lucinda, que seguia em trote
lento. Apesar de não se verem havia anos, o bruxo parecia o mesmo de
sempre, com os cabelos brancos arrepiados, olhos alaranjados sempre atentos
e a sombra de um sorriso nos lábios que aludia a uma inteligência matreira e
perigosa. Ao lado dele, caminhava um homem baixo, atarracado, de cabelos
pretos e rebeldes, olhos azuis, barba por fazer e uma carranca de quem não
aprendeu a sorrir. Upiara aproveitou a distância para estudar melhor o
estranho, que caminhava com um par de chinelos e roupas brancas, sujas de
poeira, com uma trouxa a tiracolo. Ele mancava levemente ao andar, mas não
parecia machucado. O sujeito fazia o índio se lembrar de uma onça à espreita,
capaz de se mover como um relâmpago em caso de provocação.
– Upiara – cumprimentou João dos Mistérios, quando os dois
viajantes já estavam a poucos metros da loja de conveniência.
– João dos Mistérios... – respondeu o índio, virando-se para o segundo
viajante. – Vejo que trouxe um amigo.
– Tião Peixeira, Upiara. Upiara, Tião Peixeira – apresentou João dos
Mistérios. – Este é o pajé de quem lhe falei.
Tião Peixeira resmungou qualquer coisa e assentiu para o índio,
olhando para a loja além dele.
– Tem um banheiro que eu possa usar? – quis saber.
Upiara apontou para uma casinha na parte de trás do estabelecimento.
– Gradecido – disse Tião Peixeira, rumando para lá.
Upiara esperou ele se afastar antes de se virar de volta para João dos
Mistérios.
– Seu garoto tem uma aura vermelha como o inferno – comentou,
casualmente.
João dos Mistérios desmontou de Lucinda, dando tapinhas amistosos
no pescoço da égua, que bufou, sedenta.
– O inferno não é nada comparado ao que esse garoto passou –
respondeu. – Imagino que possamos contar com sua discrição e
hospitalidade, certo?
– O café está servido lá dentro e tenho alfafa e água no cocho para a
égua também – indicou Upiara. – Só gostaria de saber no que você está
metido desta vez, meu amigo. Nada de bom pode vir daquele rapaz –
apontou. – Ele está numa trilha de morte e destruição, seu destino é negro
como a boca do abismo mais profundo. Você sabe disso, não sabe?
João dos Mistérios assentiu, sério, como se medisse as palavras a
serem ditas a seguir, o que exatamente poderia revelar a um amigo. Upiara
esperou, estudando as feições do bruxo com interesse.
– O garoto busca vingança contra um protegido do coronel Olho de
Cobra – revelou, decidindo jogar limpo com o índio.
Upiara se virou, olhando a porta fechada do banheirinho distante.
– Então você acredita que seu destino possa estar ligado ao dele?
João dos Mistérios não respondeu. Não era preciso.
– Viemos a Miradouro buscar algo que pertence a ele – continuou,
desviando o assunto. – Duas peixeiras tomadas pelo delegado Gregor
Carrapato após um confronto em Água Parada. Talvez tenha ouvido algo a
respeito?
Upiara abriu os braços para a terra deserta ao redor. Sua loja de
conveniência ficava afastada da cidade, onde não era incomodado pelos
homens da lei ou por suas taxas abusivas. Normalmente, negociava com os
viajantes que por ali passavam em busca de mantimentos, roupas e utensílios
domésticos. Só que pouca gente usava aquela rota e menos ainda se dispunha
a negociar com um índio, graças a preconceitos arraigados. No entanto,
dependendo do cliente, Upiara podia fornecer coisas que nenhum outro
comerciante tinha, como armas e munições em condições de uso. Ele era um
dos únicos agentes fora da rede oficial do coronel Olho de Cobra com acesso
a um arsenal decente, embora esse fosse um segredo conhecido por poucos.
– Fora mensageiros apressados, vocês são os primeiros clientes que
aparecem em uma quinzena – contou.
João dos Mistérios sorriu e tirou um calhamaço amassado de papel de
dentro da sacola que carregava e o estendeu ao amigo. Upiara franziu o
cenho, lendo as palavras que aquelas páginas guardavam com curiosidade.
– Parece que alguém decidiu ressuscitar um pedacinho dos velhos
tempos – disse João dos Mistérios.
Upiara tirou os olhos do jornal, guardando-o debaixo dos braços.
– Tenho peixeiras lá dentro – indicou. – O que essas peixeiras têm de
especial para que vocês se arrisquem a invadir uma delegacia com uma
guarnição fortemente armada do coronel Olho de Cobra?
– Valor afetivo – respondeu João dos Mistérios, entregando uma lista
rabiscada num papel amassado para o índio. – E esses são os itens que vou
precisar para recuperá-las.
Upiara deu uma lida rápida na lista e sorriu.
– Acredito que você poderia recuperar as tais peixeiras com metade
desses itens.
João dos Mistérios deu de ombros.
– Mas aí a gente perderia a chance de virar manchete de jornal, não
concorda?
E deu uma piscadela para o índio, que riu mostrando os dentes.
2
Miradouro era um importante entreposto comercial localizado entre
duas grandes ruínas e uma das principais rotas entre os territórios do coronel
Olho de Cobra e aquele que pertencia ao general Peregrino. Era uma cidade
de muitos bares e casas de jogos de azar, com um dos maiores índices de
homicídios da região, graças à presença constante de garimpeiros e
mensageiros de regiões diferentes a caminho de outros lugares. Exatamente
por isso contava com uma força policial robusta, fortemente armada, e que no
momento estava desfalcada devido à morte de alguns militares em um
conflito recente em Água Parada, dos quais todos falavam nos últimos dias.
Eram tempos difíceis para o delegado Gregor Carrapato. O número de
assaltos e tentativa de roubos aumentara de forma considerável após a
publicação do Edição Extraordinária, como se os marginais vissem nas
notícias motivos para comemoração e para afrontar as forças da lei. Como se
não bastassem os relatórios acumulados em sua mesa e os presos que lotavam
suas celas, ainda precisava lidar com os imprevistos do dia a dia, como ter a
sala invadida por dois soldados escoltando um adolescente mirrado algemado
com um padre na cola do trio.
O delegado se esforçou para levantar seus 120 quilos da cadeira. Era
um homem gordo, que gostava de comer e aproveitar as coisas boas da vida
sem nenhum pudor. Equilibrou-se sobre as botas apertadas enquanto seus
homens sentavam o adolescente numa cadeira e o mandavam ficar quieto.
– Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui?
O padre enxergou na pergunta a deixa para tomar a frente do grupo.
– Pegamos esse marginal depredando a propriedade do Senhor,
delegado – acusou, apontando para o adolescente e lançando perdigotos pelo
ar. – E não é a primeira vez! É a terceira que o encontramos pichando
blasfêmias nas paredes da igreja! Ele é um servo sem vergonha de Satã,
condenado a queimar eternamente no inferno!
O delegado encarou o garoto, que ostentava um belo olho roxo e uma
expressão de cachorro acuado pego no flagra ao praticar alguma estripulia.
– Como é seu nome, guri?
O jovem levantou a cabeça raspada.
– Doninha, senhor – respondeu. – Dos Patos Punks da Cordilheira.
O delegado segurou uma risada.
– Patos Punks da Cordilheira – repetiu. – Deve ser uma gangue nova,
não me lembro de prender nenhum de vocês antes.
– Os outros são mais rápidos do que eu, senhor – lamentou Doninha.
– Tenho a perna torta, defeito de nascença. Ruim para correr.
– São os pés tortos do capeta, delegado – retomou o padre, ficando
vermelho do pescoço para cima. – Estou lhe dizendo que esse moleque é
mancomunado com o demo! Sabe o que ele escreveu nas paredes da igreja?
– O quê? – quis saber o delegado, mordendo a isca.
– “Deus é uma mentira!” – lembrou o padre, fazendo o sinal da cruz,
como se ao repetir tais palavras colocasse sua alma imortal em jogo. – Como
se recusar a existência do Nosso Senhor não fosse o pior dos pecados! E ele
ainda teve a pachorra de discutir comigo, me chamando de velho ignorante.
Veja só! Logo eu, um servo tão leal do Senhor, sendo chamado de velho
ignorante por um traste como este!
O delegado se virou de volta para o adolescente.
– O que você disse para ele?
Doninha deu de ombros.
– Só o aconselhei a ler um livro do Darwin – explicou. – Um pouco
de ciência não faz mal a ninguém.
– É por conta dos seus cientistas que o mundo se encontra do jeito que
está hoje – acusou o padre. – Dizer que os homens evoluíram dos macacos,
como se não passássemos de meros animais, chafurdando na lama junto aos
porcos. Deus já dizia: o orgulho provocará a queda do homem! E foi isso que
aconteceu. Mas, graças a Ele, alguns de nós sobreviveram para repovoar o
planeta e educar nossas crianças da maneira correta.
Percebendo que aquele sermão iria longe, o delegado resolveu
interromper:
– Bom, se estiver tudo ok com o senhor, padre, posso pedir a meus
homens que o acompanhem de volta à paróquia e fazer com que obriguem
nosso caro Doninha aqui a limpar as blasfêmias que pichou em suas paredes.
Que tal?
Todos os olhares se voltaram para o padre, que se movia de um lado
para outro com a boca e os olhos bem abertos.
– Mas é muito pouco – reclamou quando enfim recuperou a voz. – Ele
tem que pagar pelo que fez! Negar o nome do Nosso Senhor é um pecado
mortal! Ele precisa entender que, se não mudar, vai queimar no fogo do
inferno!
O delegado coçou a cabeça.
– Padre, não posso mandar o garoto para o inferno – argumentou. –
Isso está fora da nossa jurisdição.
– Mas você poderia prendê-lo – apontou o padre. – Colocá-lo atrás
das grades, junto dos ímpios e dos condenados, onde é seu lugar!
– Também não posso fazer isso, padre – lamentou o delegado.
– Por que não?
O delegado se virou para o rapaz.
– Quantos anos você tem, guri?
– Dezesseis – respondeu Doninha. – Quinze e meio, na verdade. Faço
aniversário mês que vem.
O delegado bateu na mesa.
– Está aí seu motivo, padre.
– Mas assim ele não vai aprender nenhuma lição – insistiu o religioso.
– O senhor precisa ser mais duro com ele. Preciso lembrá-lo que sua mulher
frequenta nossa paróquia? Você quer que ela leia as blasfêmias que esse
rascunho do capeta rabisca em nossas paredes toda semana?
O delegado suspirou, cansado.
– Tudo bem, você venceu – concordou. – Vou colocá-lo numa cela
com outros bandidos por uma noite. Para ver se ele fica mais esperto.
Os olhos do adolescente se abriram, preocupados.
– Sabia que o senhor veria a luz – alegrou-se o padre. – Esse moleque
não presta. Não precisa tomar muitos cuidados com ele. Pode colocá-lo com
assassinos e estupradores, a escória da Terra, que Nosso Senhor se
encarregará de castigá-lo devidamente. Talvez até colocá-lo no caminho
correto da salvação.
– Claro, padre, claro – o delegado fez um sinal para que os soldados
levassem o rapaz para a cela de número cinco, que não guardava nenhum
criminoso perigoso, só dois ladrões de galinha, um estelionatário e um velho
bêbado. – Meus homens cuidarão de tudo. Deixe-me acompanhá-lo até a
saída.
O padre ainda perdeu tempo com mil agradecimentos, promessas de
manter o delegado e seus familiares em suas rezas diárias e pedidos para que
desse um exemplo aos jovens indo à igreja no domingo seguinte. O delegado
fez o melhor que pôde para dispensar o religioso insistente sem parecer
grosseiro. Uma tarefa difícil, porém necessária. A última coisa de que
precisava no momento era problemas com a igreja. Quando finalmente
conseguiu se livrar dele, afundou de volta na cadeira e enterrou a cabeça entre
as mãos, exausto. Três batidas na porta. O delegado se sentou direito e
suspirou, procurando conter o nervosismo.
– Entre – ordenou com a voz um pouco mais irritada do que
pretendia.
Um soldado de expressão cansada abriu a porta.
– O que foi agora, Martinho?
– Senhor, odeio incomodá-lo de novo com este assunto, mas tem um
preto velho aí fora que...
– Já lhe disse para dispensar esse mendigo – irritou-se o delegado. –
Você já é o terceiro soldado que entra aqui com esse papo! Quantas vezes
preciso repetir?
– Desculpe, senhor, mas ele é insistente – lamentou o soldado.
– Apenas o mande embora, está bem?
O soldado teve pressa em assentir.
– Claro, senhor. Deixe comigo, senhor.
O delegado balançou a cabeça de um lado para o outro e encarou o
soldado, que permanecia parado com a porta aberta, como se o assunto não
estivesse encerrado.
– Mais alguma coisa, soldado?
– Bom, sim, senhor – respondeu Martinho, sem graça. – Tem outra
pessoa querendo falar com o senhor.
O delegado esfregou os olhos.
– Se for mais um padre...
– É um mensageiro, senhor – revelou o soldado.
As palavras serviram como um balde de água fria na cabeça do
delegado.
– Mensageiro? – repetiu. – De onde?
O soldado demorou a responder:
– Do Ninho da Serpente, senhor.
Por um momento, os dois apenas se olharam, sem dizer nada. Então, o
rosto do delegado se fechou.
– E o que você está fazendo parado aí? – rosnou. – Não o deixe
esperando. Mande-o entrar de uma vez!
– Claro, senhor – concordou o soldado, nervoso. – É para já, senhor.
Em seguida, ele fechou a porta e se foi. O delegado arrumou os
cabelos com as mãos gordas, sentindo um frio desconfortável no estômago.
Um mensageiro do Ninho da Serpente era algo raro de ver e era o segundo
que recebia em menos de um mês. Não sabia o que ele queria, mas
desconfiava que não trazia boas notícias.
3
Mensageiros costumavam ser homens duros, truculentos e espertos
como raposas. Precisavam ser assim, visto as distâncias que percorriam
sozinhos para levar recados, produtos ou sentenças. Ganhavam bem pelo
trabalho que realizavam, embora a maioria gastasse tudo em bebidas, jogos e
mulheres fáceis. Muitos levavam fama de bandidos, não se contentando
apenas com o soldo que recebiam por missão realizada. O homem que
adentrou a sala do delegado Gregor Carrapato não só agregava tais
qualidades da categoria como demandava um tratamento diferenciado, pois
trabalhava diretamente para o coronel Olho de Cobra.
O delegado abriu um largo sorriso, indicando uma cadeira ao
visitante.
– Boa tarde, amigo – cumprimentou. – Por favor, sinta-se à vontade.
Sua viagem deve ter sido longa, certo? Gostaria de um copo d’água? Uma
cachaça?
O sujeito de cabelos longos e pretos como piche parou no meio da
sala, contemplando a parede atrás do delegado, onde havia duas peixeiras
cruzadas por trás de uma proteção de vidro. Ele apontou para elas.
– Bonito troféu – elogiou.
O sorriso do delegado diminuiu visivelmente. O homem de roupas
escuras e empoeiradas permaneceu parado no meio da sala. Ele era diferente
de outros mensageiros, com um rosto de traços finos, nariz avantajado e uma
pele morena e lisa, como se nunca tivesse levado um soco da vida.
– O que posso fazer por você? – quis saber o delegado, cortando o
papo-furado.
O mensageiro deu de ombros e se sentou na cadeira que lhe foi
oferecida.
– Trago notícias do grande chefe – contou. – Ele recebeu o relatório
sobre Água Parada que o senhor enviou.
O delegado engoliu em seco.
– E o que ele achou?
O mensageiro semicerrou os olhos.
– Sabe, minha garganta está um pouco seca – disse, desviando da
pergunta. – Acho que vou aceitar aquele copo d’água agora.
O delegado o encarou, furioso, mas o homem apenas sorriu de volta
para ele, como se fossem bons amigos. Contra a vontade, o delegado tirou
uma garrafa térmica de dentro da gaveta e serviu o visitante. O mensageiro
pegou o copo, levantou-o num brinde silencioso e virou o líquido em três
longos goles.
– Aaaah – alegrou-se ao terminar a bebida. – Se incomoda em me
servir outro desses? Foi uma longa viagem afinal.
O tom jocoso não passou despercebido ao delegado, que atendeu ao
pedido do visitante mesmo assim. Não era educado ou inteligente contrariar
um mensageiro do coronel Olho de Cobra.
– Boa, a sua água – elogiou ao esvaziar o segundo copo. – Diferente
da do resto da cidade, que tem um gosto terroso e metálico, de encanamentos
malcuidados e enferrujados. Um homem da sua estatura faz bem em gastar
um pouco a mais por uma água de qualidade como essa.
– O coronel o mandou até aqui para falarmos da minha água? –
questionou o delegado, perdendo a paciência.
O mensageiro percebeu que forçava a barra e se calou. Em seguida,
retirou um jornal de dentro da mochila e o jogou sobre a mesa. A manchete
da morte de Tião Peixeira voltada para cima. O delegado manteve o rosto
impassível.
– O que significa isso?
– É o que o coronel Olho de Cobra gostaria que você respondesse.
Uma gota de suor desceu pela lateral do rosto do delegado.
– Posso explicar...
– Você já teve essa chance – cortou o mensageiro. – Devo dizer que o
coronel não ficou nada impressionado com o relatório que encaminhou a ele.
– Eu não tinha como saber o que aquele jornalista iria escrever –
defendeu-se.
– O coronel pede que arrume suas coisas e deixe a delegacia num
prazo de dez dias, quando seu substituto deve chegar – anunciou o
mensageiro.
O delegado abriu a boca, mas não disse nada. As palavras lhe
faltavam. Cumprida a missão, o mensageiro se levantou e colocou o chapéu.
– Obrigado pela água – disse antes de sair.
A porta se fechou e o delegado ficou sozinho, ainda em choque por
ter sido demitido de forma tão inesperada do posto que ocupava havia anos.
Então, percebeu o jornal abandonado sobre a mesa e, num acesso de fúria,
começou a rasgá-lo ferozmente, jogando pedaços de papel para cima. Ouviu
três batidas na porta.
– O que diabos foi agora? – urrou, vermelho de raiva.
A porta se abriu lentamente para revelar um negro de cabelos brancos,
costas encurvadas e magro, roupas coloridas, um colar brilhante cheio de
espelhos e um cajado com pedras de vidro vermelhas, verdes e amarelas. O
delegado encarou o homem maltrapilho como se tentasse traduzir o que ele
fazia ali. O desconhecido se aproveitou da confusão mental do militar para
entrar na sala e fechar a porta atrás de si.
– Delegado, preciso dar uma palavrinha com o senhor – anunciou o
negro.
– Ora, seu preto abusado – reagiu o delegado, levantando-se com
dificuldade e uma súbita dor de cabeça. – Achei que já o haviam mandado
embora a essa altura!
– Seus homens tentaram – admitiu o visitante, mudando o peso de um
pé para o outro, o colar cheio de espelhos a brilhar enquanto fazia isso. –,
mas eu não poderia ir embora sem avisá-lo: sua vida corre perigo.
O delegado franziu o cenho. O negro continuava a mudar o peso de
um pé para o outro, como se não pudesse conter a ansiedade que sentia. Ele
também batia no cajado de forma rítmica, com as pedrinhas vermelhas,
verdes a amarelas a dançarem na ponta do objeto num carrossel hipnotizante.
A dor de cabeça do delegado aumentou.
– Do que diabos você está falando, homem? – perguntou, apoiando-se
na mesa.
O negro o olhou de lado.
– Estã tudo bem, delegado? – quis saber. – O senhor parece um pouco
enjoado.
O delegado se virou para responder ao velho, mas foi ofuscado por
uma luz refletida no colar do maltrapilho. As batidas no cajado seguiam
continuamente: tap, tap, tap, como as voltas de um carrossel. Vermelho,
verde e amarelo. O delegado se sentia tonto. Tap. Tap. Tap. Vermelho, verde
e amarelo. Tap. Tap. Tap.
– É melhor o senhor se sentar, delegado – disse uma voz distante,
desconhecida. – E preste atenção no que vou lhe dizer...
O delegado tentava prestar atenção às palavras, mas sentia o mundo
escurecer ao seu redor, abatido por um sono que lhe suplicava para baixar as
pálpebras e deixar todas as preocupações para trás.
5
Os soldados apontavam as armas para a entrada da delegacia. Alguns
deles, com cicatrizes ainda visíveis do último combate, tremiam. Outros
apenas buscavam entender o que estava acontecendo. Quando deixou o
escritório, o delegado Gregor Carrapato sentiu a pressão entrar em queda
livre ao se dar conta de que não estava tendo um pesadelo. Uma aparição
realmente o aguardava, solitária, no pátio diante da delegacia. Era um homem
em vestes de cangaceiro, esfarrapadas, cheias de furos e sujas de sangue. O
rosto estav coberto por sombras devido ao chapéu em formato de meia lua
que usava. Mesmo assim, conseguiu enxergar o par de olhos azuis que o
fuzilava com uma raiva que nem a morte podia deter.
– É ele – sussurrou, apoiando-se em Martinho para não cair. O
soldado fraquejou, mas conseguiu aguentar o peso do chefe. – É o Tião
Peixeira.
O sujeito atarracado se enfureceu diante do delegado. O vento uivou
por trás dele, levantando a poeira na rua, enquanto um relâmpago distante
projetou sua sombra sobre os soldados que o vigiavam.
– Não adianta se esconder, cabra safado! – berrou, autoritário. – Você
tomou o que era meu e deve pagar por isso. Voltei para pegar minhas
peixeiras de volta.
Os soldados permaneciam de prontidão, à espera de uma ordem. O
delegado se virou para eles, como se fosse um bando de palermas.
– O que estão esperando? – quis saber. – Atirem!
Imediatamente, uma dezena de armas engatilhadas disparou, cuspindo
fogo e espalhando o cheiro de pólvora queimada pelo ar. O cangaceiro não se
moveu um milímetro sequer. Os soldados continuaram a atirar, sem
misericórdia, até esvaziarem os tambores dos revólveres. No meio da nuvem
de fumaça que se formou, Tião Peixeira os encarava como se fossem insetos
a serem esmagados.
– Isso é o melhor que podem fazer?
Os homens recuaram, assustados. Nunca haviam visto nada igual. O
delegado Gregor Carrapato lembrou que também estava armado e sacou o
revólver, apontando-o para o homem parado na entrada.
– Já o matei uma vez, filho de rapariga – afirmou.– Não me importo
de matar duas.
Calmamente, ele mirou a cabeça do inimigo e disparou. Tião Peixeira
permaneceu de pé, incólume. Um novo tiro e o morto insistia em o encarar,
de peito estufado. Mais três tiros seguidos. Nenhum efeito. As balas não o
atingiam.
– Um fantasma – anunciou um dos soldados, fazendo o sinal da cruz.
– É uma assombração que voltou para se vingar de nós.
O medo começou a se espalhar pela guarnição, e o delegado não
estava em condições de impedi-lo. No entanto, nem todos os soldados eram
covardes supersticiosos. Muitos deles se consideravam guerreiros e
matadores profissionais. Um deles, um sujeito conhecido como Bronco,
sacou uma faca e pulou a bancada, estalando o pescoço pronto para a briga.
– Vamos ver se esse fantasma sangra!
Tião Peixeira se manteve imóvel no seu lugar até que Bronco atacou.
Só então se esquivou do golpe, rápido como um relâmpago, pegando o
inimigo pelo pulso com uma das mãos e aplicando um golpe na parte de trás
do cotovelo com a outra, produzindo uma fratura exposta e um grito intenso
de dor. O gigante Bronco foi ao chão e Tião Peixeira se virou para o restante
da guarnição.
– Alguém mais quer brincar?
Imediatamente, metade da guarnição largou as armas e deu no pé,
enquanto a outra metade saltou a bancada para encarar o inimigo. Gregor
Carrapato, que ainda tinha pesadelos com o confronto em Água Parada, não
ficou para assistir ao resultado da confusão. Ele retornou ao escritório e
trancou a porta, olhando ofegante ao redor. O negro que o avisara do perigo
havia desaparecido, como se nunca houvesse estado ali, mas as peixeiras
continuavam penduradas na parede, brilhantes como nunca.
Tiros e gritos vinham do lado de fora, assim como o som de vidraças
estilhaçadas e cadeiras quebradas. Era um caos conhecido e nem um pouco
bem-vindo. O delegado caminhou até a parede e retirou as peixeiras do local
de descanso. Segurou uma em cada mão e reparou mais uma vez nos cabos
de madrepérola requintados e na prata da qual as lâminas eram feitas. Quem
mandava fazer algo assim? Definitivamente, não eram armas comuns.
Estava assim, perdido em devaneios, quando um corpo atravessou a
porta fechada e despencou inconsciente contra o sofá. Era Jão, um dos seus
soldados mais experientes e o último dos guerreiros a cair naquela briga
insana que tomou a delegacia de assalto. Tião Peixeira adentrou o escritório,
com o chapéu pendurado sobre os ombros, de modo que o rosto se
encontrava bem visível e eliminava qualquer dúvida a respeito de sua
identidade. O delegado se colocou imediatamente em posição defensiva. O
invasor torceu o pescoço e levantou uma sobrancelha.
– Tem certeza de que quer me enfrentar?
O delegado ficou parado por um momento. Não queria lutar, pois
sabia que não tinha chances, ainda mais contra um espírito vingativo vindo
do além. O medo o fez se ajoelhar, de cabeça baixa, e oferecer as peixeiras
em mãos abertas para o inimigo.
– Eu não sabia o que estava fazendo – chorou. – Estávamos apenas
cumprindo ordens. Não fazíamos ideia com quem estávamos mexendo.
Tião Peixeira não disse nada. Pegou as armas, uma de cada vez, e
colocou a ponta de uma delas debaixo do queixo do delegado. O pensamento
de que teria a garganta cortada fez com que o militar sujasse as calças. Mas
Tião Peixeira apenas levantou seu rosto, para que pudesse encará-lo.
– Quero que preste muita atenção ao que vou lhe dizer – pediu. – Eu
poderia matá-lo aqui e agora, mas um verme como você não vale meu
esforço. Por isso, quero que se lembre de uma coisa – ele se aproximou,
ficando na mesma altura do delegado derrotado. – Sua vida me pertence –
anunciou. – E um dia vou voltar para cobrá-la. Entendeu?
Lágrimas escapavam dos olhos do delegado, que concordou em
silêncio. Tião Peixeira voltou a se levantar.
– Ótimo – disse. – Agora suma daqui antes que eu mude de ideia.
Ele não precisou falar duas vezes. O delegado disparou para fora do
escritório, passando pelos soldados feridos espalhados pelo caminho, até que
tomou as ruas. Ele não deixaria de correr tão cedo.
6
João dos Mistérios descascava uma mexerica debaixo de uma árvore
tétrica no topo de um morro, onde aguardava com Lucinda. Dali se tinha uma
boa visão das ruas emaranhadas de Miradouro, com os letreiros de seus
muitos bares, pousadas e casas de jogo de azar competindo por atenção,
assim como a nuvem negra e grossa de fumaça que se levantava de um dos
principais prédios. Um incêndio descontrolado consumia a delegacia local,
fazendo com que uma multidão de curiosos se reunisse ao redor do fogo
enquanto os mais corajosos procuravam apagá-lo com baldes de areia, haja
vista que água era um bem precioso demais para ser gasto em tal tarefa.
Saindo da cidade, apareceu um cavaleiro, que tomou a estrada do
morro em alta velocidade. João dos Mistérios não parecia preocupado. Ele
amontoou as cascas de mexerica no banco, separou um cacho da fruta e
guardou o resto na bolsa. Depois, pegou um gomo suculento e o levou à boca,
mastigando mecanicamente. Cuspiu o caroço no terreno arenoso e se serviu
de um novo gomo. Já estava indo para o terceiro quando o cavaleiro, enfim, o
alcançou, fazendo o cavalo empinar ao parar com um relincho. João dos
Mistérios levantou os olhos para ele. Tião Peixeira sorriu para o amigo,
faceiro, com suas armas prediletas de volta nas bainhas que lhe pertenciam.
Ele desmontou do animal num salto.
– Não acredito que saiu tudo conforme o plano – comentou, animado.
– Confesso que fiquei meio ressabiado quando vi aquele monte de armas
apontadas na minha direção. Cheguei a pensar que estivesse encrencado.
Como foi que você substituiu a munição de todos os soldados por balas de
festim?
João dos Mistérios limpou os lábios com as costas da mão e sorriu.
– Vejo que pegou suas peixeiras de volta – apontou.
– E arranjei um cavalo também – acrescentou Tião Peixeira, dando
tapinhas no pescoço do animal. – O melhor que encontrei no celeiro deles.
Vou chamá-lo de Furacão. O que acha?
– É um bom nome – opinou João dos Mistérios. – Você cumpriu o
que prometeu?
Tião Peixeira revirou os olhos e suspirou.
– Dei minha palavra, não dei? Claro que tirei todos os soldados de lá e
soltei os presos antes de tocar fogo na delegacia.
– E o delegado? – insistiu João dos Mistérios.
Tião Peixeira mostrou-se contrariado.
– Deixei vivo – respondeu.
João dos Mistérios assentiu, servindo-se do último gomo da mexerica.
– E disse a ele o que lhe pedi?
– Cada palavra – confirmou Tião Peixeira. – Olha, não é como se eu
fosse um matador inconsequente, certo? Aquele canalha pode ter tentado me
matar, mas não é dele que estou atrás. Você sabe disso.
João dos Mistérios se levantou, batendo a poeira das calças.
– Logo, meu caro, você aprenderá as vantagens de deixar um inimigo
vivo.
Tião Peixeira se agachou ao lado do amigo, assistindo o incêndio ao
longe.
– Por quê? – quis saber. – O que faremos agora?
João dos Mistérios cruzou os braços, de olho nos viajantes que
deixavam a cidade apressados, especialmente os mensageiros.
– Agora vou ensiná-lo a caçar.
Capítulo 8
Visita noturna
1
Como chefe de segurança, Berne era o único com permissão para adentrar o
jardim de inverno quando o coronel Olho de Cobra se refugiava lá, a fim de
meditar ou ler um livro, após cumprir todas as obrigações diárias. Não era um
direito que usasse com frequência. Na verdade, evitava incomodar o chefe
sempre que possível, até porque tinha autonomia para resolver a maioria dos
problemas que os subalternos insistiam em levar para instâncias superiores e
o fazia de modo eficiente e discreto, sem que ninguém além dos envolvidos
precisasse saber do que havia acontecido. Talvez por isso fosse um
funcionário tão estimado.
Aquela, todavia, não era uma noite como as outras. A chegada
inesperada de um mensageiro com as piores notícias possíveis o convenceu
de usar a prerrogativa para interromper o descanso do seu senhor. Pelo modo
apressado como caminhava, qualquer um perceberia que Berne não estava em
seu perfeito juízo. Andava rápido e piscava demais, como se estivesse
abalado com o que ouvira havia pouco. Normalmente, o coronel Olho de
Cobra previa qualquer catástrofe com dias de antecedência. Mesmo crises
menores, de fácil resolução, chegavam aos seus ouvidos antes de qualquer
mensageiro. Mas não naquela noite, o que indicava algo de errado no ar.
– Berne – cumprimentou o coronel, sem tirar os olhos do livro que
tinha em mãos, sentado em seu lugar predileto do jardim. Seu tom era calmo
e ponderado, mas um fio de irritação se insinuava por trás do cumprimento,
como um aviso de cautela para o ouvinte. – Imagino que não veio
interromper minha leitura por conta das excentricidades do nosso atual
hóspede, certo?
Berne se ajoelhou diante do coronel e baixou a cabeça,
respeitosamente, como se fosse um cavaleiro da távola redonda.
– Peço perdão por incomodar seu descanso, senhor – disse em voz
alta e clara. – Mas acabo de receber um mensageiro que traz más notícias de
Miradouro.
O coronel Olho de Cobra virou uma página do livro, inabalado.
– Ora, nós já esperávamos que o delegado Carrapato não fosse aceitar
a demissão de bom grado – considerou. – Seja lá o que aquele incompetente
tenha aprontado, tenho certeza de que podemos conversar sobre isso amanhã,
não?
Berne levantou levemente a cabeça.
– Puseram fogo na delegacia, senhor – anunciou, sem meias palavras.
O coronel Olho de Cobra, então, fez algo que o chefe da segurança,
em todos os seus anos de serviço, nunca havia visto antes. Ele levantou o
rosto, com o olho esverdeado bem aberto, numa demonstração claríssima de
espanto.
– Carrapato? – quis saber o coronel, recuperando rapidamente a
máscara implacável pela qual era tão conhecido.
– Não, senhor – negou Berne, voltando a baixar a cabeça e engolindo
em seco. A próxima parte seria difícil de revelar. – O mensageiro disse que
um morto é responsável pelo incêndio, senhor.
– Quem? – exigiu o coronel, fechando o livro com força.
– Tião Peixeira, senhor – respondeu Berne.
Novamente o coronel demonstrou surpresa, como se nada daquilo
fosse esperado. Havia algo errado no território e ele não sabia o que era.
Logo cerrou os punhos e rilhou os dentes, dominado por uma fúria que nunca
demonstrara antes. Todos achavam que ele tivesse sangue frio como as
cobras. Berne acabava de descobrir que isso não era inteiramente verdade.
– Onde está Ed Tempestade?
– Não sei dizer, senhor – respondeu Berne. – Aquele bastardo não
presta contas a ninguém.
– Pois trate de encontrá-lo imediatamente – ordenou o coronel. –
Quero dar uma palavrinha com ele e esse mensageiro no meu escritório daqui
a meia hora. Vou só dar um pulo no quarto, para me arrumar.
Berne assentiu. Pelos seus anos de experiência, sabia que a
necessidade do coronel Olho de Cobra de passar no quarto antes da audiência
requisitada não se dava por simples vaidade, pois também sabia do cofre
escondido por trás de uma parede falsa no armário, embora seu conteúdo lhe
fosse desconhecido. No entanto, desconfiava que era lá que o coronel
guardava seu maior segredo, o método pelo qual adivinhava o futuro, onde
seus inimigos se encontravam e o que fazer para eliminá-los.
– Sim, senhor – respondeu, levantando-se. – Agora mesmo, senhor.
Partiu em passos rápidos sem dizer mais nada, completamente
desperto e consciente do seu dever. Era hora de se preparar. Tinha certeza de
que aquele incêndio criminoso não ficaria impune. O coronel Olho de Cobra
se preparava para a guerra.
2
Em poucos minutos, o castelo inteiro estava em estado de alerta,
mesmo que ninguém soubesse direito o que estava acontecendo. Berne
tomava medidas preventivas para garantir a segurança do reino, trocando
palavras rápidas com tenentes em posições estratégicas e acionando os
serviços dos mensageiros, que chegavam ao seu gabinete, sonolentos ou meio
bêbados, curiosos para saber o que era tão importante a ponto de não poder
esperar o dia seguinte. O chefe da segurança não lhes revelava nada, somente
entregava ordens e os despachava, sem tirar os olhos do relógio, atento ao
tempo que lhe sobrava antes da reunião no escritório do coronel Olho de
Cobra.
De repente, um negro alto de cabelos trançados e olhos escuros
entrou no gabinete todo paramentado, de coturnos cuidadosamente
amarrados, calças escuras cheias de bolsos, pistola presa à cintura juntamente
com cassetete, spray de pimenta e uma Taser, uma camiseta preta sem
estampa bem justa, destacando o torso bem-definido, duas armas menores
presas em coldres próximos às axilas, luvas, e um fuzil de assalto atravessado
nas costas. Era um soldado pronto para a guerra. Ele bateu os pés juntos e
prestou continência.
– Mandou me chamar, senhor?
Berne acabava de assinar algumas ordens de serviço e indicou uma
cadeira.
– À vontade, tenente. Isso só vai levar um segundo.
O negro ficou de pé, com os braços nas costas, em posição de
descanso. Berne entregou os papéis para um valete, que partiu apressado, e se
virou de volta para o oficial, que aguardava com uma expressão neutra.
Komodo era seu nome de guerra e ele era o segundo em comando no castelo.
– Temos encrenca a caminho – anunciou Berne, indo direto ao ponto.
– Tenho uma reunião com o coronel Olho de Cobra daqui a poucos minutos e
desconfio que terei que me ausentar por alguns dias. Estou convocando
nossas forças em campo para garantir a segurança do castelo e o nomeando
como chefe de segurança interino. Preciso que você tome conta do forte por
uns dias. Estamos entendidos?
O rosto de Komodo normalmente era uma máscara impassível, mas
mesmo ele não conseguiu esconder a surpresa diante da notícia. Um valete
parou atrás do soldado, ofegante e com expressão agoniada.
– Será uma honra cuidar do castelo na sua ausência, senhor –
respondeu, agradecido. – Devemos esperar alguma encrenca?
– Provavelmente não – admitiu Berne. – Acredito que tudo se
resolverá em poucos dias, mas nunca se sabe. Só um segundo – ele se virou
para o jovem que aguardava na porta do gabinete. – E então, encontrou Ed
Tempestade?
Ao perceber que a palavra era dirigida a ele, o valete esticou as costas,
deixando-a totalmente ereta, e assentiu como um cachorrinho assustado.
Berne torceu os lábios.
– E cadê ele?
O jovem engoliu em seco.
– E-e-e-ele não quis deixar o quarto, senhor – revelou.
– Como? – quis saber Berne, num tom pouco amigável.
O valete encolheu a cabeça entre os ombros.
– O hóspede se negou a deixar o quarto – disparou a falar. –
Reclamou que está muito tarde para reuniões e que não queria ser
incomodado. Ele não estava sozinho, senhor. Tentei argumentar que era o
coronel quem o chamava, mas ele não me deu atenção. Discutia com alguém
lá dentro e começou a quebrar coisas. E-e-e-eu fiquei sem saber o que fazer e
vim lhe informar o ocorrido, senhor.
Berne soltou um suspiro, cansado.
– Quer que eu dê um jeito nisso? – sugeriu Komodo.
Berne olhou para o relógio, irritado.
– Não, você já terá as mãos cheias pelos próximos dias – considerou.
– Deixe que eu mesmo converso com nosso simpático hóspede.
3
Havia uma mulher chorando encolhida no meio do corredor. Berne
sentiu o sangue esquentar nas veias, mas se conteve. Ele se aproximou
devagar. A pobre moça usava um uniforme de empregada parcialmente
rasgado e buscava cobrir a nudez segurando pedaços de pano sobre os seios.
Um hematoma se apresentou roxo em seu ombro esquerdo. O rosto estava
escondido por baixo dos cabelos emaranhados. O chefe de segurança se
agachou ao seu lado.
– Ei – chamou em voz baixa. –, tudo bem com você?
A moça espiou o recém-chegado e se assustou por um momento,
reação com a qual Berne estava acostumado. Graças à sua condição
duplamente miserável, de albino e portador de ictiose severa, não venceria
nenhum concurso de beleza nesta vida. Ainda assim, esforçava-se para
mostrar aos outros que também era um ser humano e que nem todos
precisavam temê-lo, em especial aqueles mais próximos a ele.
– Ruth? – perguntou, reconhecendo o rosto da serviçal. – É você?
O lado direito do rosto da mulher estava bastante inchado. Lágrimas
escorriam por suas bochechas. Ela tremia de medo. Berne não a tocou. Sabia
que o toque de um homem, ainda mais um homem com o aspecto dele, não
seria bem-vindo no momento.
– Só fui levar o jantar dele – explicou a moça. – Ele não me deixou ir
embora. Disse que me achou bonitinha, parecida com alguém que conhecera.
Fiz tudo que ele queria, até que bateram na porta e ele perdeu a paciência...
Nesse instante, a moça desatou a chorar e buscou refúgio no peito de
Berne, que a abraçou com cuidado, embora ardesse de raiva por dentro.
– Shhh, vai ficar tudo bem, Ruth – consolava a moça. – Vai ficar tudo
bem – nisso viu um valete passar. – Você! – chamou, autoritário. – Leve essa
mulher a um médico. Acorde um, se necessário. Garanta que ela tenha o
tratamento adequado ou ficarei sabendo, entendeu?
O valete concordou, apressado, e Berne deixou a moça com ele,
seguindo pelo corredor até uma porta aberta, com flores caídas no chão entre
os destroços de um vaso quebrado. Lá de dentro vinham os refrãos repetidos
de um rock raivoso, presos num loop infinito de um disco arranhado. Berne
parou na passagem aberta. Não carregava armas. Raramente precisava de
uma, mas sabia que não era aconselhável abordar o hóspede despreparado. Ed
Tempestade era um homem perigoso, matador da pior estirpe, homem
completamente desprezível. Os destroços se amontoavam no hall de entrada
do quarto, espelhos partidos, portas de armário quebradas, garrafas
estilhaçadas... O ar cheirava a uísque barato. A habitação se encontrava
imersa na escuridão, mas Berne acreditou ver um vulto sentado na beira da
cama.
– Ed Tempestade? – chamou, procurando manter a voz calma.
O vulto no escuro não se moveu.
– Ele voltou, não é? – quis saber uma voz amarga lá dentro. – Por que
outro motivo o coronel viria me incomodar a essa hora da noite?
Berne entrou no hall de entrada e testou o interruptor. Nenhuma luz se
acendeu.
– Sua presença é requisitada no escritório do coronel – recitou
friamente. – Você será informado do motivo da reunião no momento
adequado. O que aconteceu aqui?
A voz no escuro não respondeu de imediato. Berne deu mais um
passo adiante. De repente, uma luz diminuta se acendeu no centro do recinto.
O chefe de segurança parou. Era um isqueiro. O hóspede acendia um cigarro,
sentado na beirada da cama, vestido apenas com uma calça de couro preta e a
expressão de poucos amigos nos lábios. O fogo logo se apagou, mas não
antes que Berne visse as cicatrizes que preenchiam boa parte do peito magro
e cabeludo de Ed Tempestade.
– Ela tropeçou – respondeu, como se não fosse uma pergunta
interessante.
Berne cerrou os punhos. O desdém na voz do hóspede foi a gota
d’água. Por um momento, ele esqueceu quem era ou onde estava e avançou,
fechando as mãos sobre o pescoço de Ed Tempestade levantando-o da cama
com a força fornecida pela adrenalina e o pressionando contra a parede,
furioso.
– Você viu o que fez com aquela pobre garota? – rosnou. – Seu
monstro insensível e intratável! Vou lhe ensinar uma lição!
Ed Tempestade não tentou escapar das mãos que o sufocavam. Em
vez de reagir, partiu para o contra-ataque. Com as palmas das mãos abertas,
acertou ambos os ouvidos de Berne, com força. O chefe de segurança o
soltou, tonto, buscando recuperar o equilíbrio. Ed Tempestade ainda não
estava satisfeito e acertou um golpe com o joelho entre as pernas de Berne,
fazendo-o desabar no chão.
Massageando o pescoço, Ed Tempestade caminhou até uma cômoda,
na qual um abajur ainda estava milagrosamente intacto, e acendeu a luz.
Berne procurava recuperar o fôlego, afastando-se do hóspede com a mão
direita a massagear a genitália dolorida. Os dois se encararam na
semiescuridão com um ódio profundo e venenoso.
– Você vem me chamar de monstro? – questionou Ed Tempestade,
pegando uma camisa preta abandonada sobre a cama desarrumada. – Logo
você, o Dragão Albino? Eu pediria que se olhasse no espelho, se não tivesse
quebrado o meu ainda há pouco.
Berne se levantou, com a cabeça zunindo e uma dor intensa nas partes
baixas.
– Não sou eu quem estupra mulheres indefesas – defendeu-se.
Ed Tempestade fechava os botões da camisa, sem pressa.
– Aquela vagabunda? Não foi estupro. Nunca precisei estuprar
ninguém ou pagar para ter uma mulher ao meu lado, como deve ser o seu
caso. De que outro modo uma aberração como você conseguiria molhar o
biscoito?
Berne passou a mão pelo terno, um pouco amassado após a
escaramuça.
– E devo acreditar que ela simplesmente tropeçou?
Os ombros de Ed Tempestade caíram e ele expirou longamente.
– Qual é, cara? – disse, pegando um paletó sobre uma mesa tombada
de lado. – Perdi a cabeça por alguns minutos, como qualquer um que der uma
olhada nesse quarto pode perceber. A moça ficou no caminho, ela deu azar. O
que mais posso dizer? Não é como se eu estivesse orgulhoso do que fiz, está
legal?
Berne ajeitou a gravata, engolindo a raiva.
– Monstro! – repetiu, entredentes.
Ed Tempestade se virou para o chefe de segurança, esticando a mão
direita até ela sair pela manga do paletó.
– Não fui eu quem ganhou o apelido de Dragão Albino por cuspir
fogo na cara de um prisioneiro – respondeu, atrevido. – Sim, escutei as
histórias – continuou diante do silêncio do chefe de segurança, enquanto
voltava a sentar na beira da cama para calçar os sapatos. – de como você
costumava carregar uma garrafinha de querosene e um isqueiro para os
interrogatórios. Só para casos de emergência, como gostava de dizer, não é
mesmo? E todos eles cantavam como passarinhos. Devia ser lindo...
Berne cruzou os braços.
– Terminou de se arrumar?
Ed Tempestade se levantou, ajeitando o paletó.
– Pelo menos não escondo o que sou – disse, ao passar pelo chefe de
segurança. – Agora, onde raios será essa maldita reunião?
4
O fogo crepitava na lareira, com labaredas a dançarem agitadas sobre
a lenha seca. Faíscas subiam enquanto o coronel Olho de Cobra reordenava
os tocos em chamas com uma tenaz de metal, parecendo uma enorme sombra
delineada pela iluminação direta do fogo. O mensageiro aguardava atrás dele,
sentado numa cadeira baixa, sem encosto, ainda vestido com os trajes
empoeirados da viagem. Berne permanecia de pé, com os braços cruzados,
ao lado da lareira. Ed Tempestade sentava-se de maneira desleixada numa
poltrona, carregando a expressão de tédio, como se nada daquilo realmente o
interessasse.
O coronel se virou de volta para o visitante, contemplando a ponta
alaranjada da tenaz. Os olhos escuros do mensageiro se fixaram naquela
imagem, cheios de temor.
– Qual seu nome, rapaz? – quis saber o coronel.
– Amir, senhor – respondeu prontamente o mensageiro. – Amir Salek.
O coronel caminhou em volta da cadeira do visitante.
– Amir Salek – repetiu, como se experimentasse o sabor do nome na
boca. – Nome estranho para um mensageiro...
– Venho de uma família libanesa, senhor – explicou Amir. –
Trabalhei como diplomata por muitos anos antes da Grande Guerra. Sempre
gostei de viajar e conhecer gente nova. A profissão de mensageiro pode ter
seus riscos, mas estou acostumado a eles. Sei me virar.
O coronel parou ao lado de Amir, colocando a mão sobre o ombro do
funcionário. Na outra, ainda carregava a tenaz com a ponta incandescente. O
mensageiro evitava olhar diretamente para o chefe.
– Você me parece um rapaz inteligente, Amir – considerou. – Deve
imaginar que não gosto de receber más notícias, não é mesmo?
O mensageiro engoliu em seco. Os olhos fixos na ponta brilhante da
tenaz.
– Quando as recebe com atraso? Com certeza – procurou justificar. –
Mas deixei Miradouro naquela mesma tarde e vim para cá o mais rápido que
pude. Sabia que o senhor gostaria de ter notícias do incidente quanto antes.
– É mesmo? – incentivou o coronel. – E por que eu gostaria de saber
disso quanto antes, Amir?
O mensageiro levantou a cabeça, olhando diretamente para o chefe
pela primeira vez. Era um rapaz bonito, de pele morena, nariz avantajado e
olhos escuros, com cabelos pretos e longos a esconderem parcialmente suas
feições.
– Para dar uma resposta à altura – respondeu, sem hesitar.
O coronel o encarou, com o olho bom semicerrado. Em seguida,
agachou-se ao lado do funcionário e levantou a tenaz com a ponta
incandescente entre os dois. Amir ficou tenso, mas não desviou o olhar. O
olho esverdeado do coronel se fixava nele sem revelar absolutamente nada,
como se fosse capaz de desnudar sua alma. Ficaram assim por um momento
que pareceu longo demais. Então, o coronel se afastou, entregando a tenaz
nas mãos de Berne e se sentando numa poltrona vermelha de espaldar alto.
– Pois bem, Amir – disse, com as pontas dos dedos se tocando numa
posição reflexiva. – Conte-me o que aconteceu.
O mensageiro desatou a falar, começando pelos três dias que levou
para chegar de Miradouro até ali. Desculpou-se pela demora, afirmando que
faria o percurso mais rapidamente, caso tivesse um veículo adequado no
lugar de um cavalo velho e cansado. Em seguida, partiu para a história em si.
Como era do conhecimento do coronel, Amir fora a Miradouro entregar a
notícia da demissão do delegado Gregor Carrapato após a divulgação do
fiasco em Água Parada. Havia acabado de cumprir a missão e pediu um trago
num bar, do outro lado da rua, quando uma balbúrdia chamou sua atenção.
Um cangaceiro em roupas ensanguentadas bradava desafios a plenos pulmões
para que todos pudessem ouvir. Imediatamente, curiosos se amontoaram nas
janelas do bar – entre eles, Amir – para assistir ao que estava acontecendo.
Dentro da delegacia, viram um pelotão de soldados com armas engatilhadas e
apontadas para o baderneiro. Os clientes perceberam o que estava prestes a
ocorrer e, como bons cidadãos, iniciaram uma rodada de apostas.
Amir afirmou que não conseguira escutar o que o cangaceiro gritava
na rua graças à algazarra no bar, mas que todos se calaram quando os
soldados abriram fogo. Foram dezenas de tiros num único alvo, porém, para
surpresa de todos, o cangaceiro permaneceu de pé, como se balas não
pudessem matá-lo. Por um minuto, o mensageiro acreditou que estivesse
diante de um fantasma, até um soldado munido de uma faca atacá-lo e levar
uma surra, que deu início a uma briga generalizada na delegacia. Segundo
Amir, o cangaceiro era rápido e implacável, quebrando braços, pernas e
queixos com a velocidade de uma cascavel enquanto avançava delegacia
adentro, sem parar para descansar ou respirar. Os soldados feridos
começaram a deixar o local, junto daqueles covardes demais para encarar o
invasor, e tudo ficou no mais completo silêncio por vários minutos, até que o
delegado saiu correndo lá de dentro e desceu a rua sem olhar para trás.
Amir saiu do bar, acreditando que o pior havia passado, e chegou a
olhar o caminho que o delegado havia percorrido. Como muitos outros, o
mensageiro esperava pela chegada da cavalaria. Sabia que um insulto
daqueles nunca passaria impune pelo coronel Olho de Cobra. Mas ninguém
apareceu. Em seguida, assistiu à debandada de prisioneiros da delegacia.
Amir conseguiu parar um deles na saída, um velho bêbado, que lhe contou o
nome de seu inesperado salvador.
– Ele disse que o sujeito se chamava Tião Peixeira – revelou.
Ed Tempestade saltou da poltrona como uma mola.
– Eu lhe disse – acusou. – Eu lhe disse que balas e facas não são
suficientes para acabar com a existência daquele desgraçado! O maldito se
recusa a permanecer morto!
– Tempestade! – repreendeu o coronel Olho de Cobra, encarando o
hóspede com uma frieza glacial.
Ed Tempestade entendeu o recado, voltando ao seu lugar sem dizer
mais uma palavra e com o rosto carrancudo fechado numa expressão
assombrada. O coronel virou-se de volta para Amir.
– Continue – incentivou.
O mensageiro, todavia, não tinha muito mais a relatar. Após soltar os
presos, Tião Peixeira arrastou alguns soldados inconscientes para fora da
delegacia e tocou fogo no lugar, fugindo num cavalo roubado no estábulo.
Ninguém mais o viu depois disso, e, percebendo que algo estava errado, Amir
julgou melhor deixar a cidade o quanto antes, para informar o coronel acerca
do ocorrido. Vários mensageiros deixaram a cidade naquela tarde com
destinos incertos. Ao menos três deles seguiram para Riacho Doce. Outros
foram para pontos mais distantes do território, como Café Amargo, Peixe
Morto, Ventos Uivantes e Boi Bravo.
– Isso é tudo que sei, senhor – concluiu Amir, de cabeça baixa. – Peço
que perdoe minha ignorância por não saber mais do que isso, mas juro ter
feito meu melhor para conseguir o máximo de informações com o pouco
tempo que tive antes que a notícia do incêndio começasse a se espalhar.
Aceitarei de bom grado qualquer punição que vossa senhoria julgar adequada
pela minha demora.
O mensageiro se prostrou diante do coronel, com as costas esticadas e
o rosto voltado para o chão, como se o adorasse igual a uma divindade.
– Levante-se, mensageiro – ordenou o coronel. – Você fez bem em vir
direto à minha presença, mesmo que carregasse apenas más notícias na
bagagem. Admiro sua coragem por tal feito. Garantirei que, pela manhã,
alguém lhe entregue uma recompensa por seus serviços assim como suas
novas ordens. Agora vá. Deixe-me sozinho com meus conselheiros, pois
ainda tenho negócios a tratar com eles.
Amir se levantou, fazendo mil reverências de agradecimento, e deixou
o gabinete com passos rápidos, aliviado por não ter sofrido nenhum dano
físico. Nem todos os mensageiros tinham aquela sorte. Os três esperaram até
que o mensageiro tivesse deixado o recinto, então Ed Tempestade voltou a se
levantar, nervoso.
– Eu lhe disse que ele não estava morto, não disse? – repetiu. – Já vi
Tião Peixeira ser queimado, afogado, enforcado e baleado mais de dez vezes.
Eu mesmo acabei com a raça dele uma vez e, ainda assim, o bastardo
retornou para me perseguir. Ele não vai parar até que tenha a cabeça cortada e
o corpo carbonizado. É preciso transformá-lo em pó, entenderam? Pó!
– Tempestade – voltou a repreender o coronel Olho de Cobra. –,
lembre-se que é um convidado aqui e trate de agir como tal.
– Ou o quê? – desafiou Ed Tempestade, insolente. – Os outros podem
ter medo do senhor, mas nós dois sabemos que suas ameaças não valem nada
no meu caso, certo?
– Não é bem assim – irritou-se o coronel, levantando-se para encarar
o hóspede. Berne se aproximou por trás dele, com punhos cerrados. – Prometi
a seu mestre que o protegeria dos ataques desse Tião Peixeira, é verdade, mas
ele também me deu carta branca para tratar você como bem entendesse
enquanto estiver debaixo do meu teto.
O sorriso de Ed Tempestade morreu lentamente.
– Então, quer dizer que...
– Que se você não se comportar a partir de agora, mando alguém
cortar suas bolas para fazer um chaveiro – ameaçou o coronel. – Estamos
entendidos?
Ed Tempestade assentiu, voltando a se sentar.
– Ótimo – agradeceu o coronel, retornando ao seu lugar. – Isso é tudo
por hoje. Pode voltar para os seus aposentos.
– Mas e o...
– Acho que fui bem claro, Tempestade – interrompeu o coronel, sério.
– Sim, senhor – concordou o hóspede, voltando a se levantar, sem
graça. – Boa noite, senhor.
O coronel suspirou irritado quando o hóspede enfim partiu.
– Quanto tempo ainda precisarei suportar a presença desse idiota? –
reclamou.
Mesmo que compartilhasse do sentimento do patrão, Berne
permaneceu em silêncio. Sabia que não era hora de falar. O coronel Olho de
Cobra virou-se para ele, voltando a adotar uma expressão reflexiva.
– Esse Tião Peixeira está se provando um problema maior do que
antecipamos – considerou. – Precisaremos tomar uma atitude mais drástica
para dar um jeito nele.
– Tenho um pelotão com nossos melhores homens preparado para
cuidar do problema, senhor – informou Berne, prestativo. – Sabemos onde
ele se encontra?
O coronel torceu os lábios e fez que não com a cabeça.
– Ele não está sozinho – revelou. – Alguém esconde seus movimentos
de mim.
Berne piscou três vezes.
– Não sabia que isso era possível, senhor.
O coronel rilhou os dentes.
– Precisamos descobrir a identidade do aliado desse psicopata –
orientou. – Não teremos paz enquanto os dois estiverem soltos por aí.
Coloque um prêmio na cabeça de Tião Peixeira e quem quer que esteja com
ele. Cem coroas de ouro, o suficiente para deixar todo matador com sede de
sangue daqui até o fim do mundo.
– Será feito, senhor – concordou Berne. – E quanto à situação em
Miradouro?
O coronel voltou a entrelaçar os dedos, com os indicadores e
polegares se apoiando, uns contra os outros.
– Não podemos deixar as coisas como estão. Você ouviu o mesmo
que eu. Vários mensageiros deixaram a cidade após o ocorrido e pelo menos
três deles seguiram para Riacho Doce, o que significa que nossos amigos
jornalistas já devem estar a par do caso. Não podemos permitir que a notícia
se espalhe mais. Precisamos de uma demonstração de força que desencoraje
qualquer um a me desafiar.
– Um incêndio no jornal? – sugeriu Berne. – Posso fazer com que
pareça acidental...
– Não – descartou o coronel. – Verônica não é idiota, ela saberia que
fui eu e Bastiano pode ser um simplório, mas ainda é um dos meus aliados
mais próximos e o segundo homem mais poderoso da região, diferente do
Caranguejo Manco e do Pastor Teixeira. Os dois têm criticado abertamente
minha administração. Vou precisar lidar com eles quando essa crise acabar.
Aliás, como vai a construção do muro?
– De vento em popa, senhor – informou Berne, alegre por ter boas
notícias nesse sentido. – Temos equipes trabalhando em três turnos, dia e
noite, sem parar. Já temos 60% do muro construído e acreditamos que ele
estará completo até o fim do ano.
– Bom, muito bom – animou-se o coronel, pensativo. – Quando o
muro estiver completo, todos os outros problemas ficarão para trás. Mal
posso esperar para ver o dia em que essas paredes ficarão prontas.
– E nesse meio-tempo?
– Quero cem dos nossos melhores soldados em Miradouro –
determinou. – Quero a cidade em estado de sítio. Ninguém entra ou sai de lá
sem autorização. Toque de recolher a partir das oito da noite. Também quero
que todos os prisioneiros libertos sejam recapturados e enforcados em praça
pública, para que o povo veja o que acontece com quem desafia meu poder.
– Será feito como deseja, senhor – concordou Berne. – Mais alguma
coisa?
O coronel respirou fundo.
– O que sabemos sobre o ex-delegado de Miradouro?
Berne puxou a informação da memória.
– Gregor Carrapato? Um parasita preguiçoso, como a própria alcunha
indica. Policial corrupto contente em arrancar dinheiro de prostitutas e
comerciantes locais em troca de proteção. Temos indícios de que também
estava na folha de pagamento de Dentes Dourados, um salafrário com
domínio sobre dois terços das casas de jogos de azar da cidade.
– Vida pessoal?
– Duas ex-mulheres, um filho com cada. Paga pensão a contragosto e
não visitou as crianças nos últimos cinco anos. Atualmente, está casado com
a filha de Sergei Cesário, uma perua de peitos fartos e gostos caros.
O coronel assentiu, o olho semicerrado a fitar Berne com a frieza dos
répteis.
– Parece a descrição de alguém de quem não sentiremos muita falta,
certo?
Capítulo 9
Missão Extraordinária
1
Um solavanco fez a carruagem dar um pulo e lançou seu único passageiro no
vão entre os bancos, arrancando-o violentamente de um sono conturbado e
precário.
– Hijo de la puta madre! – xingou Leandro Fuentes recorrendo à
língua materna num momento de exasperação.
Naturalmente, não houve resposta. A carruagem tremia de modo
característico ao seguir pela estrada de terra. O cocheiro nem sequer diminuiu
de velocidade. O jornalista se levantou, ajeitando o chapéu na cabeça e se
sentando no banco. Puxou um pouco a cortina e viu que ainda era noite lá
fora. Sentia-se um pouco grogue devido à falta de sono e de distrações
disponíveis. Fazia quase dois dias desde que partira de Riacho Doce numa
carruagem expressa rumo a Miradouro.
Os cocheiros paravam em estábulos pelo caminho apenas para
substituir os cavalos e trocar de lugar com profissionais descansados. Essas
paradas duravam mais ou menos uma hora, tempo suficiente para ir ao
banheiro e fazer uma refeição rápida, mas longe de fornecer o descanso
necessário para uma viagem agradável. A culpa era de Verônica, é claro. Ela
queria que Leandro chegasse a Miradouro o mais rápido possível e não
poupava esforços para ter suas vontades atendidas, como a bolsinha com
cinquenta peças de prata que o rapaz carregava no bolso interno do paletó
deixava bem claro.
– São para as despesas da viagem – justificou Verônica. – Não me
gaste esse dinheiro com bebidas, entendeu? Traga os recibos com todos os
gastos eventuais, fora as propinas de praxe para informantes, desde que não
ultrapassem cinco peças de prata. E me volte com o troco ou vá procurar
emprego em outro lugar!
Rememorar as palavras da chefe deixou Leandro de mau humor. Não
gostava de ser tratado como se fosse um moleque ou não compreendesse as
responsabilidades que lhe eram impostas. O jornalista tirou o cantil prateado
do bolso e desatarraxou a tampa, levando-o à boca, sem o efeito esperado.
Esquecera que havia secado a pequena garrafa antes de tentar dormir.
Derrotado, voltou a guardar o recipiente, sonhando com uma bebida para
aquecer as tripas. Viajava só com as roupas do corpo, pois não teve tempo
nem mesmo de preparar uma mala.
Leandro abriu a janela da carruagem, tremendo com o vento frio que
adentrou o cubículo, e colocou a cabeça para fora. O cocheiro chicoteava o
lombo dos cavalos com uma das mãos e segurava as rédeas com a outra.
– Falta muito? – berrou Leandro.
O homem se virou para ele, com o rosto escondido por trás do chapéu,
um par de óculos reflexivos e a echarpe que lhe cobria a boca e o pescoço.
Àquela hora da madrugada e em meio ao cansaço do passageiro, parecia um
extraterrestre.
– O que disse?
– Para Miradouro – detalhou Leandro. – Falta muito?
O cocheiro assentiu, mostrando que o compreendera em meio ao
vento frio.
– Duas horas e meia – respondeu. – Três, no máximo. Vou deixá-lo
no Plaza, perto do centro.
Leandro sorriu e colocou a cabeça para dentro da carruagem,
fechando a janela em seguida. Era óbvio que o cocheiro queria conversar,
estendendo a conversa daquela maneira, como se o passageiro não soubesse
para onde estava indo. Devia estar se sentindo sozinho lá em cima. No
entanto, fazia muito frio para ficar de papo-furado e o jornalista continuava
com sono. Assim, espichou-se, esticando as pernas até o assento da frente,
puxou o chapéu sobre os olhos e voltou a dormir. Ou o mais próximo disso
que a viagem permitia.
2
Quando despertou, a carruagem seguia num ritmo bem mais lento,
cadenciado, e era possível ouvir vozes do lado de fora. Leandro afastou a
cortina da janela e foi recebido por uma claridade acinzentada, típica daquela
hora da manhã. Pessoas caminhavam apressadas pelas calçadas ou
observavam o movimento da rua pelas janelas de casa. O comércio parecia
estar todo fechado. Ao passar por uma igreja, o jornalista viu um padre
enfurecido ordenando aos coroinhas que apagassem uma pichação na parede.
Uma frase que dizia “Eles querem que você acredite em Deus porque assim é
mais fácil te f...”. A última palavra estava quase inteiramente apagada, mas
Leandro conseguia imaginar seu significado com facilidade.
Miradouro. O fedor do lixo acumulado em terrenos baldios e do
esgoto correndo a céu aberto lhe dava as boas-vindas. Leandro deixou a
fragrância putrefata penetrar as narinas com um sorriso satisfeito no rosto.
Era o cheiro da civilização, erguendo-se da lama, pronta para encarar
qualquer encrenca. Pivetes corriam ao lado da carruagem, oferecendo
serviços, passando rasteiras nos concorrentes e tomando seus lugares como se
nada tivesse acontecido. Todos loucos para verem o brilho das moedas do
estrangeiro que adentrava a cidade como rei. Outros tipos mais soturnos e
desconfiados também acompanhavam o movimento da carruagem de mesas
de bar ou encostados em muros, à toa, provavelmente com facas escondidas
por baixo das roupas baratas.
Leandro trazia um revólver enferrujado na cintura, uma arma fora de
uso e sem munição que não lhe parecia muito ameaçadora, mas devia fazer
com que ao menos uma parte dos bandidos mantivesse a distância. Era uma
estratégia comum, muito utilizada em Riacho Doce e que surtia o efeito
esperado. Afinal, ninguém queria levar um tiro de graça. A carruagem fez
uma curva e parou na frente de um prédio de dois pavimentos, com um
portão de ferro pesado e muros com espinhos para manter visitas indesejadas
do lado de fora. Estava diante do Plaza, o hotel mais luxuoso de Miradouro.
Não era uma visão muito impressionante.
Os pivetes se reuniram ao redor da carruagem e pareceram
decepcionados quando seu ocupante, enfim, se revelou.
– Não sabia que mendigos andavam de carruagem – provocou um
deles, fazendo todos os outros rirem.
Leandro ajeitou o chapéu amassado na cabeça e desceu para a rua
empoeirada. Usava um terno surrado e uma calça velha, com remendos nos
joelhos e nos fundilhos, além de um par de sapatos que pareciam ter sido
roubados de um morto. Ele se virou para o cocheiro.
– Obrigado pela carona.
O homem na boleia tocou a aba do chapéu antes de agitar as rédeas,
colocando os cavalos para andar. Os pivetes também aproveitaram para se
dispersar, embora dois deles insistissem em oferecer serviços nos quais o
viajante não parecia interessado. Leandro parou diante do portão de ferro
trancado e bateu palmas três vezes. Uma senhora gorda, de vestido azul
florido e uma verruga enorme em cima dos lábios, abriu a porta do hotel e
olhou feio para ele.
– Lamento, mas não damos esmolas – anunciou.
Ela estava prestes a fechar a porta quando Leandro gritou:
– Sou um viajante! Quero me hospedar com vocês!
A mulher parou, olhando-o de cima a baixo, desconfiada.
– Cobro 25 peças de cobre por noite – definiu. – Pagamento adiantado
ou não temos conversa.
Leandro tirou duas moedas de prata da bolsinha que carregava dentro
do paletó e as ergueu no ar, para que a dona do hotel pudesse ver.
– Servem duas peças de prata?
Mesmo a distância, deu para notar o brilho no olhar da mulher, que
desceu as escadas da entrada e chegou até o portão fechado, com uma
expressão curiosa, estudando o jornalista com novos olhos. Ela estendeu a
mão pelas grades.
– Deixe-me dar uma olhada nisso – pediu.
Leandro depositou uma moeda na mão da gorda, que a mordeu com
força na frente do visitante. Seja lá que teste fosse aquele, a mulher ficou feliz
com o resultado, visto que um sorriso se abriu em seu rosto de lua e ela
destrancou o portão. A moeda desapareceu rapidamente entre as dobras do
vestido dela.
– Desculpe-me os maus modos – disse, abrindo a passagem para o
viajante. – Normalmente, não sou tão desconfiada, mas passamos por tempos
difíceis em Miradouro. O senhor ouviu falar no ataque à delegacia?
– É por isso que estou aqui, minha senhora – anunciou Leandro, tirando
o chapéu num cumprimento modesto. – Vim descobrir o que aconteceu.
A mulher parecia cada vez mais espantada.
– O senhor é um dos homens do coronel Olho de Cobra, por acaso?
– Sou só um pobre jornalista sul-americano em busca de informação –
revelou. – Leandro Fuentes, à sua disposição – concluiu, dando um beijo na
mão da gorda, que ficou toda envaidecida.
– Pode me chamar de Dolores – apresentou-se, passando a mão pelo
braço do jornalista. – Quanto tempo pretende ficar conosco? Aliás, pode me
passar aquela outra moeda para sua primeira noite?
– Está na mão, Dolores – concordou Leandro, estendendo a moeda para
ela, que a arrebatou e a fez desaparecer como uma mágica profissional. – Se
dependesse de mim, ficaria uma temporada, mas provavelmente só uns três
ou quatro dias mesmo. Tempo suficiente para apurar o incêndio na delegacia.
Os dois subiram pela escada da entrada do hotel, que contava com duas
carrancas para recepcionar os hóspedes e algumas samambaias de plástico,
além de pinturas de praias e dias ensolarados. Leandro notou infiltrações no
teto e rachaduras nas paredes esverdeadas. Dolores seguia dizendo como se
sentia honrada por receber um membro legítimo da imprensa enquanto
colocava três chaves unidas por uma argola sobre o balcão.
– Esta é para a suíte – explicou, apontando para a chave menor. – Esta é
a da porta da frente – seguiu apontando para uma chave escura – e esta é para
o portão de ferro lá fora – concluiu, pondo o dedo sobre a chave maior. – É
importante mantê-lo sempre trancado. Sem polícia nas ruas, os bandidos
estão fazendo a festa. Todo cuidado é pouco. Posso servi-lo em mais alguma
coisa?
Leandro coçou o pescoço.
– Um banho cairia bem...
Dolores assentiu.
– Temos uma banheira na suíte. Posso pedir a um dos meus meninos
para esquentar a água e levar até lá, mas receio que isso custará uma peça de
prata extra. O senhor entende, dado o preço da água esses dias. Eu mesmo
tenho tomado apenas um banho por semana e mantenho a higiene com lenços
úmidos e perfume.
Leandro tirou uma peça de prata e a pôs sobre o balcão. Dolores sorriu.
O hóspede nem viu a moeda desaparecer dessa vez. Ela ficava cada vez
melhor com aquele truque. O jornalista apoiou o cotovelo no balcão.
– Mais uma coisa – continuou, olhando para o movimento na rua lá
fora. – Como deve ter dado para perceber, cheguei aqui apenas com as roupas
do corpo e gostaria de comprar um terno novo, mas não notei nenhuma loja
aberta quando entrei na cidade.
Dolores riu como uma menininha.
– Não precisa se preocupar, querido – garantiu. – Conheço o melhor
alfaiate da cidade. Pedirei a outro dos meus meninos que o chame enquanto o
senhor descansa em seu quarto. Deve ter sido uma viagem cansativa, não é
mesmo?
Leandro riu, satisfeito. Podia se acostumar a ser tratado assim.
3
Leandro se admirou no espelho. De banho tomado, metido num terno
branco com calças novas e sapatos de um preto brilhante, parecia outro
homem. Ainda assim, faltava algum detalhe. Ele se virou para o velho
Armando, o alfaiate de óculos de leitura e fitas métricas penduradas no
ombro que o auxiliava.
– Chapéu?
Armando assentiu e estalou os dedos. Um dos garotos trouxe uma
mala enorme, colocou-a sobre a cama e abriu.
– Se me permite, senhor, sugiro uma cartola – disse, tirando-a de
dentro da mala. – Deixe os chapéus de caubóis para a gente comum. Um
homem distinto como o senhor merece o melhor que a moda pode oferecer.
– No lo sé – considerou Leandro, virando a cartola na mão e a
colocando na cabeça. – Parece-me um tanto exagerado, no?
– É porque não lhe mostrei a bengala que a acompanha – destacou
Armando, apresentando uma peça de madeira de nogueira com um cabo de
vidro imitando um diamante. – E ela ainda conta com uma vantagem especial
– detalhou, desatarraxando a ponta para revelar uma lâmina embutida. –
Desse modo, o senhor poderá se defender de qualquer malfeitor que se atreva
a lhe fazer mal.
O jornalista pegou a arma e a encaixou de volta na bainha de madeira,
transformando-a novamente numa bengala.
– O senhor certamente conhece seu ofício – elogiou. – Ficarei com a
cartola e a bengala, além dessas belas roupas. Quanto lhe devo?
– Sete peças de prata, senhor – respondeu Armando, prontamente.
Leandro retirou oito peças da bolsa que carregava e entregou ao
homem.
– Uma peça de prata extra para o seu ajudante – arrematou.
Armando fez cara de surpresa, mas sumiu com as moedas tão
rapidamente quanto Dolores, talvez por medo de que o cliente se
arrependesse do gesto altruísta ou percebesse que o velho lhe passara a perna
no preço das roupas. Leandro não deu a menor bola, ainda admirando o
próprio reflexo no espelho.
– O senhor precisa de mais alguma coisa? – perguntou Armando,
esperançoso.
Leandro ajeitou o terno e deu um peteleco na cartola, virando-se para
o alfaiate.
– Adoraria ter tempo para papear e aproveitar a hospitalidade de uma
cidade tão atenciosa – argumentou. – Mas o tempo não para e tenho uma
missão a cumprir. Não preciso de mais nada além de direções para a
delegacia. É hora de correr atrás das notícias, meu velho. É hora de fazer um
jornal.
4
Da delegacia não sobrou muita coisa para contar a história. O fogo
afetou as fundações de tal modo que o teto inteiro veio abaixo. As colunas
negras de fuligem e paredes semidestruídas eram tudo que restava do antigo
prédio, além do cheiro de borracha queimada e enxofre, que o vento
distribuía igualitariamente pelas ruas adjacentes. Leandro tirou o caderno e a
caneta do bolso interno do paletó e passou a fazer algumas anotações, sem
notar a aproximação de um garoto maltrapilho.
– Moço, o que o senhor está fazendo? – quis saber o rapaz.
Leandro levantou o rosto e, com uma olhadela rápida, registrou a
presença do garoto, um adolescente de pele morena, cabeça raspada,
hematomas leves no rosto e um pé torto, virado num ângulo esquisito.
Percebeu a curiosidade genuína no rosto do menino e concluiu, aliviado, que
não era uma ameaça.
– Jornalismo – respondeu, terminando de rabiscar uma frase. – Vim
fazer uma matéria sobre o incêndio na delegacia e o impacto que isso teve en
la ciudad.
Leandro não esperava nenhuma reação em especial do garoto. Talvez
um dar de ombros e alguma tirada maldosa, como era comum a adolescentes
daquela idade, mas certamente não o reconhecimento que recebeu.
– O senhor trabalha no Edição Extraordinária? – quis saber o garoto,
interessado. – Por acaso não seria o repórter Leandro Fuentes, responsável
pela matéria sobre a morte de Tião Peixeira?
Leandro parou imediatamente de escrever e piscou várias vezes,
confuso. Era a primeira vez que se encontrava com um fã do seu trabalho.
– Você leu a matéria? – perguntou, abismado.
O rapaz assentiu.
– Minha mãe me ensinou a ler e escrever antes de morrer. Que Deus a
tenha! – revelou, como se fosse um mistério um garoto como ele não ser
analfabeto. – Também trabalhei como faxineiro na casa de um senhor que
tinha uma biblioteca enorme, na qual ele nunca entrava. Como o salário era
pouco, eu complementava a renda pegando alguns livros emprestados. Ainda
guardo alguns comigo. Ele nunca sentiu falta.
Leandro observava o garoto, fascinado, e desconfiando de que tivesse
acabado de apresentar seu currículo, visto a expectativa evidente em suas
expressões.
– Como se chama, chico?
– Carlitos, senhor, mas os amigos me chamam de Doninha.
– Sei – disse Leandro. – Faz parte de alguma gangue?
O garoto abriu a boca, mas se deteve, provavelmente pensando em
contar uma mentira. Em seguida, baixou a cabeça.
– Sim, senhor – respondeu. – Faço parte dos Patos Punks da
Cordilheira.
Leandro levantou a sobrancelha.
– Que Cordilheira?
– A dos Andes, senhor – esclareceu Doninha. – Escutamos de um
viajante, uma vez, que o sol ainda brilha por lá e que as montanhas escondem
selvas secretas, cheias de bichos, árvores frutíferas e cachoeiras com águas
cristalinas. Às vezes, sonho com esses lugares. Tenho até juntado um
dinheiro, para ver se um dia consigo me mudar para lá. Parece um lugar
melhor para viver, não acha?
– Parece as invenções de um viajante cansado, chico. Sem querer
desmerecer seus sonhos, mas as cordilheiras devem estar tão geladas quanto
o polo norte e as florestas certamente estão assombradas por feras e índios
famintos.
– O senhor tem um sotaque engraçado!
– Garoto, não sou seu pai. Pare de me chamar de senhor, ok?
Doninha assentiu, ressentido.
– Desculpe.
Leandro suspirou.
– Escute, quer um trabalho?
Doninha prendeu a respiração.
– Está falando sério?
Leandro estendeu o caderninho e a caneta para ele, que os pegou
como se fossem algo sagrado, cheio de admiração, antes de se voltar
novamente para o jornalista.
– O que é isso?
– Tu espada y tu escudo – respondeu Leandro. – São seus novos
instrumentos de trabalho. Você não disse que sabe ler e escrever? Então,
prove. Ajude-me a fazer esta matéria que lhe arrumo uma peça de prata no
fim do dia. O que acha?
– O senhor vai me ensinar a ser um jornalista?
– Vamos ver como se sai como estagiário primeiro, certo? Pronto para
sua primeira missão?
Doninha abriu o caderninho e se preparou para anotar alguma coisa.
– É só dizer, senhor!
– Ótimo – concordou Leandro, encarando o novo funcionário de olhos
semicerrados. – Então me encontre um bom estabelecimento para
almoçarmos, porque não há como trabalhar direito de barriga vazia.
6
Como Doninha bem sabia, a Mona Lisa que Leandro procurava não
era nenhuma pintura renascentista de valor incalculável na parede de um
museu, e sim uma moça de pele cor de chocolate, corpo de violão e seios
arrebitados que as más línguas diziam ser uma loucura na cama. Ela era
provavelmente a garota de programa mais famosa do território do coronel
Olho de Cobra, dona da atenção de homens que cruzavam centenas de
quilômetros para visitá-la e do ciúme de milhares de esposas e mulheres que
a invejavam – figura singular da cosmologia local, que certamente merecia a
alcunha de obra de arte, uma vez que vivia para e pelo o prazer.
Mona Lisa morava sozinha numa casa afastada do centro, onde
atendia seus clientes com auxílio de dois leões de chácara para espantar
curiosos e visitantes indesejados. Garota esperta, nunca precisou de cafetão
para agenciá-la, conseguindo clientes pelas habilidades na cama e pela
capacidade de fazê-los esvaziar os bolsos com um sorriso no rosto. Sua fama
se fez no boca a boca, e logo todos os ricos e poderosos da região ficaram
interessados em conhecê-la. Dizia a lenda que ela era capaz de enlouquecer
os homens e que mais de um perdeu tudo tentando conquistar seu coração.
Leandro sabia de tudo isso quando bateu em sua porta, inclusive que
não era o tipo de cliente aceito entre aquelas paredes. Mas não cairia sem
luta. Mona Lisa não se deixou enganar por suas roupas novas, aparência
limpa ou mesmo pelas dez peças de prata oferecidas para passar a tarde com
ela. O jornalista precisou usar sua melhor prosa, apelando para a vaidade da
moça e a capacidade que ele tinha como escritor de imortalizá-la com
palavras em poemas e histórias em sua homenagem a serem passadas de uma
geração a outra. Algo no discurso dele fez a moça pensar duas vezes e aceitar
a proposta. Pelo dobro do preço, que Leandro pagou alegremente. A Doninha
coube esperar o interlúdio amoroso na varanda, junto dos dois leões de
chácara, que jogavam dominó para passar o tempo.
Adolescente irascível, o rapaz logo perdeu a paciência com a espera e
demonstrava ansiedade ao chutar pedras pela rua, mas nem isso era o
suficiente para distraí-lo. Frustrado, sentou-se num balanço e tirou o
caderninho que vinha carregando no bolso. Imaginou que aprenderia mais
sobre jornalismo lendo as anotações de Leandro do que o seguindo em
peregrinações sem sentido. No entanto, por mais que espremesse os olhos,
era praticamente impossível decifrar os garranchos do jornalista. Não havia
jeito: não poderia fazer nada além de assistir ao tempo passar. Por volta das
quatro da tarde, quando o fantasma do sol já avançava em sua descida rumo
ao horizonte, a porta da casa se abriu.
Doninha pulou fora do balanço. Um sorridente e desalinhado Leandro
ressurgia com as roupas amassadas, camisa com botões nas casas erradas, os
cabelos arrepiados e o terno enrolado nas mãos junto da bengala. Na porta,
encontrava-se a morena de olhos verdes de quem todos falavam, coberta
apenas com um lençol branco, que não escondia muita coisa, e a cartola
perdida do jornalista.
– Adorei nossa tarde juntos, meu poeta – disse a moça, soprando um
beijo para o cliente. – Não deixe de me mandar seus escritos, viu?
– Mi corazón – respondeu Leandro, todo meloso. – Farei mil versos
em vossa homenagem. Escreverei livros de fazer inveja a Borges, García
Márquez e Machado de Assis juntos. Tenha certeza, cariño mío, que nossa
tarde será imortalizada e cantada até o fim dos tempos. Isso eu juro a você.
A morena deu uma risadinha, piscou para o amante e fechou a porta
sem mais cerimônias. Leandro ficou ali, parado, a observar o verniz da
madeira como se fosse um quadro. Os leões de chácara não lhe deram a
menor atenção. Aquela devia ser uma situação comum por ali. Doninha se
adiantou até parar ao lado do jornalista.
– E então? – perguntou, tirando Leandro de seu torpor.
– Se eu morresse agora, morreria feliz – comentou o jornalista,
avoado.
– Quer dizer que podemos continuar com nossas lições de jornalismo?
– insistiu Doninha.
Leandro se endireitou, talvez percebendo pela primeira vez quanto
parecia um tolo, com as roupas todas desarrumadas. Logo se pôs a colocar os
botões nas casas certas da camisa.
– E quando paramos? – quis saber, saindo da varanda. – Não vai me
dizer que ficou à toa esse tempo todo?
Doninha mancava atrás do jornalista.
– Você me mandou esperar – acusou, ofendido. – O que queria que eu
fizesse?
Após arrumar a camisa, Leandro começou a trabalhar no terno, que
estava virado ao contrário.
– Ora, meu caro Carlitos, chá de cadeira é uma das principais
constantes na vida de um jornalista, principalmente quando se entrevista
autoridades, que tentam nos vencer pelo cansaço, como se la mierda deles
não fedesse que nem a nossa. Por isso é importante aprender algumas
técnicas para aproveitar esse tempo relativamente perdido. Peguemos nossa
breve visita à bela Mona Lisa, qué mujer!, como exemplo. Por que não tomou
a iniciativa e entrevistou os dois leões de chácara dela?
– O que aqueles dois paspalhos poderiam saber do incêndio? –
protestou Doninha. – Eles passam o dia todo jogando dominó. Se juntar os
dois não dá um neurônio. E quanto a você, que ficou só lá no bem-bom com a
dona Mona Lisa?
Leandro parou de caminhar, terminando de colocar o terno, e levantou
o indicador, como um pedido para que o aprendiz prestasse atenção.
– Ora, não me venha com acusações, pois nunca abandonei a missão,
chico – respondeu. – Posso ter aproveitado umas poucas horas para satisfazer
a minha libido, é bem verdade, mas também descobri que o delegado
Carrapato deixou a cidade pela saída leste em uma carroça lotada de
tranqueiras na noite do incêndio.
Doninha piscou várias vezes, com o queixo caído.
– Como descobriu isso?
Leandro sorriu, enigmático.
– Quando se chega ao meu grau de excelência, meu caro, é como se
as notícias caíssem no meu colo. Algumas vezes, literalmente. É por isso que
sou um profissional e você, meu aprendiz. Agora, não estou vendo você
anotar nada disso.
Doninha tirou o caderninho e a caneta do bolso, voltando a rabiscar as
páginas com a diligência habitual.
– O que mais a moça lhe disse? – quis saber.
– Além da fuga do nosso delegado, você quer dizer? Isso só já daria
um belo lead para a matéria. Mas fiquei sabendo também que ele deixou a
mulher para trás. Uma tal Rosalinda Cesário, que mora numa mansão na
Travessa dos Apaixonados e deve se mudar de lá, para voltar à casa do pai,
na semana que vem.
Doninha bateu com a caneta no caderninho.
– Imagino que devemos prestar uma visita a essa senhora, não?
– Com toda a certeza – concordou Leandro. – Será nossa primeira
missão amanhã.
Doninha não acreditava em seus ouvidos.
– Mas porque não fazemos isso agora? Não são nem cinco da tarde
ainda.
– Carlitos, Carlitos, Carlitos – cantarolou Leandro, de bom humor. –
Jornalismo não é só bater ponto e entrevistar as pessoas certas, sabia? É
preciso viver, conhecer as pessoas, caminhar pela cidade e sentir a
informação correndo por nossas veias. O bom jornalista nunca apressa a
notícia. Ele a estuda, desenvolve, cuida dela e a acalenta. Tudo isso antes de
colocar uma palavra no papel. Então, por que toda essa pressa?
Doninha torceu o nariz, pouco convencido.
– Nesse caso, para onde vamos agora?
Leandro tirou a bolsa com as peças de prata de dentro do terno,
mostrando que estava bem mais leve e vazia do que quando chegou à cidade.
– Preciso recuperar os custos que tive com minha pré-avaliação da
pauta – explicou. – Espero que você saiba onde ficam as melhores mesas de
pôquer de Miradouro.
7
Doninha levou o jornalista ao Cabeça da Onça, um bar de reputação
duvidosa com uma clientela que abarcava maus elementos e os chamados
cidadãos de bem, que buscavam esquecimento no fundo de um copo de
cachaça. Por ficar próximo à delegacia incendiada, o bar era considerado um
terreno neutro pelos bandidos, uma vez que muitos policiais também o
frequentavam, tanto que Doninha estacou ao ver um rosto conhecido numa
mesa de pôquer. Era o soldado Martinho, que jogava cartas com velhos
conhecidos ainda com o uniforme do regimento e que era o homem que
trancara o adolescente atrás das grades.
Para horror de Doninha, o soldado levantou uma sobrancelha ao vê-
lo.
– Oxe, veja só quem temos por aqui hoje – comentou Martinho,
virando-se para um colega. – Diz aí, Valdemar, aquele ali não é o moleque
que andava infernizando o padre Olegário antes de a delegacia pegar fogo?
O soldado Valdemar se virou e sorriu ao ver o adolescente assustado.
– Mas é o próprio pestinha – confirmou. – E sabe do que mais,
Martinho, ouvi dizer que ele pichou a igreja novamente.
Martinho se levantou da cadeira.
– Esses pivetes nunca aprendem...
Nisso Leandro se interpôs entre Doninha e os soldados.
– Senhores, acredito que estejam enganados – afirmou. – Embora
Carlitos possa ter cometido erros no passado, hoje ele trabalha para mim e
tem demonstrado ser um profissional exemplar.
Os soldados se entreolharam, desconfiados, de mão na cintura,
próximas aos revólveres que carregavam. Pelo olhar embriagado e as bebidas
distribuídas na mesa, dava para perceber que os dois estavam ali havia algum
tempo.
– E quem é você? – quis saber Martinho, indo direto ao ponto.
– Leandro Fuentes, repórter do Edição Extraordinária – apresentou-
se, entregando cartões para ambos. – Estou produzindo uma matéria sobre o
incêndio da delegacia e o impacto que isso teve para a comunidade local. Se
for possível, adoraria conversar com os senhores sobre o que aconteceu
aquele dia.
Martinho e Valdemar recuaram.
– Acho que é melhor o senhor procurar o delegado – disse um deles.
– Somos só soldados rasos – justificou o outro.
– Não temos nada muito interessante para falar.
– Estava de folga naquele dia.
– E eu saí mais cedo.
Leandro assentiu, dando de ombros.
– Bom, agradeço aos senhores pela atenção e peço desculpas por
atrapalhar o jogo de vocês. Prometo não incomodar mais.
Os soldados voltaram para a mesa de pôquer, sem se importarem mais
com a presença de Doninha. Leandro se abaixou e cochichou para o aprendiz:
– Está vendo? Nem sempre procurar policiais é a melhor fonte de
informação para uma matéria. Alguns podem até passar umas dicas quentes,
mas a maioria não vai abrir a boca, principalmente para um jornalista que mal
conhecem, como eu. Agora, vamos atrás de uma mesa que tenho um encontro
com a dona sorte.
Faltou, no entanto, avisar a dona sorte sobre o tal encontro. As peças
de prata de Leandro começaram a se esvair no minuto em que ele se sentou
na mesa, que já contava com outros três jogadores mal-encarados. As cartas
também não ajudavam. Números inúteis dançavam entre seus dedos enquanto
reis, rainhas e ases davam as caras em duplas e trios nas mãos dos oponentes.
O volume da fortuna do jornalista diminuía a olhos vistos com o passar das
horas.
Doninha se aproximou do jornalista.
– Não é melhor deixar a mesa enquanto ainda lhe sobra alguma
dignidade, senhor? – cochichou.
– Bobagem – desconsiderou Leandro. – É preciso perder um pouco
para que se possa ganhar um monte. Aguarde e verá. Sinto que minha sorte
está prestes a mudar.
– Bom, nesse caso, será que pode me pagar aquela peça de prata
prometida pelos serviços que lhe prestei hoje?
Os dois discutiam os pormenores do pôquer e de pagamentos quando
um homem esbaforido entrou aos berros no bar:
– Os soldados estão chegando! Os soldados estão chegando!
O pianista imediatamente parou de tocar e todos os jogos sofreram
com pausas forçadas. Além do burburinho que se levantava das mesas, os
clientes do bar começaram a ouvir algo mais, como as pessoas que corriam
nas ruas lá fora, levando a notícia adiante, e um barulho distante, mecânico,
que todos conheciam muito bem. Jogadores recolheram seus ganhos e alguns
deles escaparam sorrateiramente, com medo do que estava por vir. Uma
tensão geral deixou todos com os nervos à flor da pele. Os clientes se
levantaram e se dirigiram para a rua, como se essa fosse a atitude esperada.
Doninha puxou Leandro pela mão.
– O que está acontecendo? – quis saber.
O jornalista encarou o adolescente com uma preocupação que não
tinha demonstrado até então.
– São os homens do coronel Olho de Cobra – respondeu, num tom
baixo. – Acho que eles finalmente chegaram à cidade.
Uma multidão se formou naturalmente pelas calçadas, nas portas de
bares e restaurantes, com pessoas amontoadas umas ao lado das outras, sem
se atreverem a colocar os pés na rua. Leandro percebeu que os moradores das
proximidades fechavam as janelas e trancavam as portas. Ninguém era bobo.
Todos ouviam o barulho das máquinas que se aproximavam, distantes. Elas
soavam como o rosnado de uma fera primordial, que aumentava conforme a
besta faminta se aproximava das vítimas indefesas. O jornalista passou o
braço sobre o ombro de Doninha, puxando-o para junto de si. O adolescente
tremia, assustado.
– Vai ficar tudo bem – mentiu.
Num instante, o primeiro par de faróis cortou a escuridão do início da
noite enquanto o motor do caminhão rugia, soltando uma fumaça escura no
céu. Atrás deles, vinham outros veículos: camburões blindados com
metralhadoras em torres móveis no topo e jipes grandes e pesados. Os
automóveis levantavam poeira na medida em que estacionavam no
descampado em frente à delegacia destruída. Soldados vestidos todos de
preto com fuzis, escopetas e metralhadoras desciam das feras metálicas e
tomavam posições estratégicas pelas ruas adjacentes. Quando preciso,
berravam ordens para os locais, afugentando-os ou os conduzindo para onde
queriam.
Leandro e Doninha seguiam o fluxo, agarrados um ao outro, com
medo de levarem um tiro acidental caso tentassem fugir. Fazia muito tempo
que nenhum deles via uma aglomeração de militares como aquela. Então, um
homem grande de coturnos com biqueiras de aço, calças militares e uma
camiseta preta com uma pequena caveira no peitoral direito tomou a frente do
grupo. Sua pele era branca e rachada como a terra do sertão, lembrando as
escamas de um lagarto branco. Seus olhos eram dois pontos vermelhos a
esquadrinharem a multidão. Leandro conhecia aquele homem e engoliu em
seco ao vê-lo. Berne, o Dragão Albino, acabava de chegar a Miradouro.
Ele levou um megafone até a altura da boca.
– Povo de Miradouro – anunciou, em alto e bom som, conquistando a
atenção de todos. –, em nome do coronel Olho de Cobra e da segurança de
seu território, eu, major Berne, declaro estado de sítio nesta cidade a partir de
hoje!
A multidão recebeu a notícia no mais completo silêncio, todos muito
conscientes das armas que os soldados empunhavam e apontavam
ocasionalmente para alguém suspeito. Leandro não ouvia uma respiração
sequer ao redor.
– A partir de agora, todo e qualquer cidadão que for pego circulando
pelas ruas após as oito da noite será detido para averiguação – continuou
Berne, em tom autoritário. – Entradas e saídas da cidade serão rigorosamente
vigiadas, e todos devem se identificar nos postos oficiais que estão sendo
montados nas passagens. Estamos aqui para garantir a segurança de todo
cidadão de bem e não toleraremos qualquer tipo de crime, que serão punidos
com o máximo rigor da lei. Inclusive, daremos início na noite de hoje à
construção de forcas coletivas aqui mesmo, na praça principal da cidade,
onde vamos pendurar todos os bandidos que estavam presos e conseguiram
escapar na confusão criada por inimigos do território.
Doninha apertou a mão de Leandro com força.
– Daremos trinta peças de cobre por cada criminoso capturado –
completou Berne.
Foi o que bastou para que a confusão se instaurasse. Dois tipos
suspeitos tentaram fugir, um correndo pela rua e o outro partindo em
disparada por um beco, mas os soldados estavam preparados. Gatilhos foram
apertados. Duas balas acertaram as costas de um fugitivo e o outro ganhou
uma na nuca. Ambos estavam mortos quando chegaram ao chão. Menos dois
para a forca. A multidão se movimentava, nervosa e assustada. Leandro e
Doninha se abraçavam, até que um soldado se meteu entre os dois e agarrou o
adolescente pela barriga. Era Martinho.
– Tenho um criminoso para a forca aqui comigo – gritou, levantando
o garoto, que se debatia como podia. – Eu mesmo o coloquei atrás das grades
antes de colocarem fogo na delegacia.
– Não – protestou Leandro, procurando se desvencilhar da multidão. –
Ele é só um garoto. Não façam isso.
De repente alguém desferiu um soco no rosto do jornalista, lançando-
o para trás. Era o soldado Valdemar, que lhe sorria como uma hiena e falava
palavras sem sentido antes de acertar seu rosto novamente. O mundo
escurecia ao redor, as luzes se apagavam e a esperança chegava ao fim...
Capítulo 10
Demonstração de força
1
BAM! BAM! BAM! BAM! BAM!
Aquela noite foi impossível dormir em razão do bater incessante dos
martelos, que atravessou a madrugada e entrou firme pela manhã seguinte,
uma sinfonia fúnebre que cobria a cidade com o terror dos velhos tempos.
Berne mandou uma cápsula de anfetamina para dentro, de modo a se manter
alerta, concentrado na difícil tarefa de caçar bandidos. Uma prisão provisória
montada num estábulo vazio já contava com quase dez infratores com hora
marcada com a forca. Todos, porém, eram peixe pequeno. Ainda não havia
sinal de Tião Peixeira ou de seu misterioso cúmplice, um negro de costas
encurvadas, cabelos brancos, roupas coloridas e um cajado esquisito.
BAM! BAM! BAM! BAM! BAM!
Cinco soldados de Miradouro passavam os detalhes de ambos os
marginais para o sargento Malhado, que produzia o retrato falado a ser usado
nos cartazes de “Procurados”, que logo seriam espalhados pelas ruas da
cidade e levados para outros pontos do território do coronel Olho de Cobra.
Berne pegou o desenho assim que ficou pronto e deu uma boa olhada na cara
dos inimigos antes de mostrar a imagem para os cinco soldados.
– Estes são os homens que atacaram a delegacia?
Os cinco soldados assentiram, todos ao mesmo tempo, como se
tivessem coreografado o movimento.
– O negro era baixo, parecido com uma tartaruga, com pernas e
braços longos.
– Já o Tião Peixeira era um cabra alto, forte e com olhos de matador.
Berne devolveu o desenho ao sargento Malhado.
– E qual era mesmo o nome do negro? Como ele se identificou para
vocês?
Os cinco soldados se entreolharam.
– Macumba – respondeu um deles. – Ele disse que se chamava João
Macumba.
BAM! BAM! BAM! BAM! BAM!
Berne se virou para o sargento Malhado.
– Você ouviu os homens. Mande o desenho para nossos rapazes do
departamento de comunicação, com os nomes da dupla em caixa-alta assim
como a recompensa pela cabeça deles: cem peças de ouro. Não esqueça de
incluir os crimes cometidos pelos dois e uma descrição por escrito de suas
fisionomias. Quero os cartazes distribuídos pela cidade até o meio-dia,
entendeu?
O sargento Malhado se levantou e prestou continência. Berne o
dispensou juntamente com os demais soldados. Aquilo cuidava de uma parte
de suas obrigações, mas ainda havia muito trabalho pela frente. Ele
despachava ordens de uma tenda militar levantada em poucos minutos em
frente à delegacia destruída – um recado para qualquer criminoso de que a
ordem seria restabelecida na marra, como a construção dos dois cadafalsos
em ambos os lados da tenda deixava bem claro.
BAM! BAM! BAM! BAM! BAM!
Nesse momento, entrou na tenda um homem todo de preto, com os
braços tatuados dos ombros aos dedos, com desenhos intrincados e sinistros e
um rosto marcado por um nariz de papagaio meio torto e cabelos arrepiados
cor de cobre. Berne levantou os olhos dos papéis em sua mesa. O homem
prestou continência.
– Tenente Lucas Guará – cumprimentou. – O que tem para mim?
O homem de preto se aproximou parando diante da mesa.
– Garantimos a segurança do perímetro externo da cidade, senhor –
informou. – Montamos postos de vigilância em cada entrada e saída de
Miradouro. Pegamos alguns suspeitos tentando escapar na escuridão, mas já
mandamos todos para averiguação na cadeia provisória. Temos a
identificação positiva de ao menos um deles, um ladrão de cavalos conhecido
da região.
Berne assentiu.
– Mais um bandido para a forca – determinou. – E o resto da cidade?
Como tem encarado nossa ocupação?
Lucas juntou as mãos na frente do corpo, mudando o peso de um pé
para o outro, mais à vontade.
– Como previmos, há medo e desconfiança nas ruas – afirmou o
tenente. – Mas a população tem nos recebido de braços abertos. Conseguimos
alojamentos para a maior parte de nossos homens e recebemos propostas de
seis restaurantes para alimentar a tropa a um custo baixo. Pedirei a um dos
homens que traga a papelada daqui a pouco, para que o senhor possa avaliá-
la. No entanto, o mais importante é que o comércio voltou a abrir e os
criminosos estão entocados, com medo de dar as caras nas ruas. Acredito que
não tenhamos problemas daqui em diante, senhor.
BAM! BAM! BAM! BAM! BAM!
Berne olhou para o lado, sentindo um princípio de dor de cabeça. Os
martelos não paravam de cantar do lado de fora da tenda. Ossos do ofício.
– E quanto a pistas do paradeiro de Tião Peixeira e João Macumba? –
quis saber.
Lucas se remexeu, como se a pergunta o incomodasse.
– Temos relatos de que os dois foram vistos, juntos, no topo de um
morro ao norte daqui, no dia do incidente, senhor – contou. – Eles
permaneceram lá pelo restante daquele dia. Ninguém teve coragem de
abordá-los. Os dois desapareceram em algum momento da noite e não foram
vistos desde então.
Berne segurou o queixo, pensativo.
– Isso não nos dá muito com o que trabalhar, certo?
– Não, senhor. Receio que não.
BAM! BAM! BAM! BAM! BAM!
Os dois ficaram em silêncio por um momento.
– Ok, tenente – concluiu Berne. – Mande algum dos homens me
trazer a papelada dos restaurantes. Vamos ver quanto poderemos economizar
por aqui.
Lucas prestou continência mais uma vez e estava prestes a deixar a
tenda quando pareceu se lembrar de algum outro assunto e se virou de volta.
– Senhor? – chamou.
Berne levantou os olhos para ele.
– Sim?
Lucas se aprumou, meio sem graça.
– Tem um homem lá fora querendo dar uma palavrinha com o senhor
– revelou. – Ele passou a noite inteira importunando a guarnição. Algo sobre
uma prisão irregular. Também diz ter informações que podem lhe interessar,
mas não conseguimos arrancar nada dele. Ele diz que só vai revelar o que
tiver para o senhor. Pode não ser nada. Pode ser só mais um maluco, mas
achei que o senhor gostaria de saber.
BAM! BAM! BAM! BAM! BAM!
Berne trincou os dentes, sentindo a anfetamina bater.
– Esse homem, por acaso, tem um nome?
Lucas assentiu.
– O nome dele é Leandro Fuentes, senhor – revelou. – Ele diz que é
jornalista.
3
Por volta do meio-dia, o major Berne estava elétrico, ainda que com
uma dor de cabeça insistente que se recusava a ir embora. Parte disso se devia
a todos os apelos e súplicas que recebeu pela vida de prisioneiros
condenados. Eram mães, pais, amigos e colegas de trabalho implorando para
que ladrões, estupradores e assassinos escapassem da forca. Alegações de
provas insuficientes, prisões errôneas e acusações injustas não faltavam.
Nada que fizesse o major mudar de ideia. Nem a aparição do padre
responsável pela prisão de Doninha foi capaz de comovê-lo.
– Nunca quis a forca para o garoto – argumentou o religioso. – Só
queria dar um susto nele para ver se criava um pouco de juízo. Ele é jovem,
sua alma ainda pode ser salva.
Berne prometeu pensar no caso. Uma promessa vazia. Mesmo que a
prisão de Doninha fosse irregular, o major não podia recuar. Tinha ordens a
cumprir e não podia facilitar para ninguém. Ele trincou os dentes ao chegar à
Travessa dos Apaixonados e parar na frente da casa de dois pavimentos, que
contava com um jardim enfeitado com plantas de plástico. Coqueiros,
samambaias e até flamingos de mentira evocavam tempos mais felizes. Dois
homens armados faziam vigia na frente da casa. Eles prestaram continência
ao verem o major se aproximar.
– Ela está lá dentro? – quis saber Berne.
Os dois soldados assentiram ao mesmo tempo.
– E ainda se recusa a falar?
– A moça alega que o pai dela controla a região e não temos o direito
de ficar aqui – respondeu um dos soldados. – Ela apresentou documentos,
inclusive – continuou, sem graça. – Por isso mandamos chamá-lo...
O rosto de Berne revelava seu mau humor com a situação, o que, por
sua vez, deixava os soldados desconfortáveis. Ninguém gostava de atrapalhar
o chefe com problemas inúteis, não obstante fosse um caso de hierarquia.
Eles não podiam tocar um dedo em Rosalinda Cesário para que ela
confessasse o que quisessem, não enquanto ela fosse filha de Sergei Cesário,
o preguiçoso senhor de terras responsável por Miradouro que nem se
dignificou a ir à cidade em seu momento de maior necessidade.
– Vocês fizeram a coisa certa – concedeu Berne. – Onde ela está?
Os soldados deram orientação. Ao entrar na casa, Berne notou as
caixas cheias de prataria encostadas num canto, as estantes vazias e as
cômodas nuas. Fez uma anotação mental e subiu para o segundo andar, ao
quarto do casal, de onde vinha a voz indignada de uma mulher a discursar
sobre as injustiças vigentes. Protegido pelas sombras, Berne deu uma espiada
no quarto. Havia uma negrinha em vestes de empregada de pé, no meio do
recinto, escutando as reclamações da patroa com a paciência dos submissos.
Berne deu uma boa olhada em Rosalinda, sentada de frente para um
espelho e pintando os lábios de vermelho. O que mais chamava a atenção em
seu rosto era o nariz perfeito, empinado como uma bandeira, abrindo espaço
para olhos verdes sensuais e dominadores. Mesmo sem sair de casa, ela se
arrumava como se estivesse a caminho de uma festa, com um corselete de
couro a destacar o busto avantajado e calças justas parecendo a segunda pele
de uma onça. Não era uma combinação muito elegante, mas nada indicava
que Rosalinda fosse uma moça muito instruída.
– Quem eles pensam que são? – reclamou a mulher, largando o batom
para retocar as sombras em cima dos olhos. – Me colocando em prisão
domiciliar, veja só! Como se eu fosse uma bandida. Isso não vai ficar assim,
Salete. Mas não vai mesmo. Meu pai vai ficar sabendo de tudo e terá uma
palavrinha com o coronel Olho de Cobra, aí quero ver esses soldadinhos de
merda se ajoelharem na minha frente e pedirem perdão pelo modo como me
trataram.
Berne considerou que havia ouvido o suficiente. Saindo das sombras,
entrou no quarto com passos leves, sem ser notado por nenhuma das duas.
– Pode reclamar diretamente comigo, senhorita – anunciou.
Pelo espelho, Berne notou o susto que Rosalinda levou ao vê-lo, mas
foi Salete quem gritou. A negrinha se virou para ele e não se conteve. Era
uma reação natural, à qual estava acostumado, especialmente vinda de
mulheres com os nervos à flor da pele. Em tais ocasiões, sabia que o melhor a
fazer era se manter sério. Seu sorriso costumava assustar ainda mais as
pessoas que acabavam de conhecê-lo.
– Sou o major Berne – apresentou-se, como se nada tivesse
acontecido. – Braço direito do coronel Olho de Cobra e responsável pela
intervenção em Miradouro. Receio que haja um engano. Meus homens não a
colocaram em prisão domiciliar: apenas a mantiveram aqui para a sua
segurança e para que estivesse em casa quando eu chegasse. Temos muito o
que conversar...
Rosalinda se levantou, procurando disfarçar o medo ao ajeitar os
cabelos louros. Ela era mais alta do que parecia, com pernas longas e finas. A
mulher se forçou a sorrir. Salete ainda tremia, próxima à cama, sem conseguir
tirar os olhos assustados de Berne e de sua pele cheia de placas e manchas
estranhas.
– Major Berne – cumprimentou com uma voz doce, muito diferente
da que usava antes. – Que surpresa! Não o esperava tão cedo.
Berne olhou para as malas acomodadas perto da porta.
– Preparando-se para alguma viagem, senhorita?
Rosalinda ainda sorria, com os cantos dos lábios repuxados demais,
como se não conseguisse esconder o nojo que sentia.
– Fui abandonada pelo meu marido, como o senhor bem sabe –
respondeu ela, fazendo um sinal para a empregada, que saiu do quarto,
apressada. – E nunca gostei muito de Miradouro. Pretendo voltar para a casa
de meu pai.
Berne assentiu, com as mãos nas costas, sem conseguir ignorar a
maneira vidrada com que a mulher o encarava.
– Caso esteja se perguntando, sou um albino com ictiose severa –
informou. – É isso que faz minha pele parecer escamas de cobra. Como a
doença não tem cura, também deixei as unhas crescerem como garras. Se
Deus me deu uma máscara que não posso tirar, é melhor usá-la com orgulho,
não concorda?
– Desculpe – disse Rosalinda se aproximando dele, timidamente. –
Claro que já ouvi falar no senhor. O Dragão Albino é famoso por essas
bandas. Só nunca esperei encontrá-lo assim, frente a frente.
Só então Berne notou que não era medo o que via nos olhos de
Rosalinda. Era alguma outra coisa. Fascínio, talvez – situação à qual não
estava nem um pouco acostumado. Ele estendeu o braço para ela, que recuou
um passo, insegura.
– Pode tocar – concedeu. – Não sou contagioso.
Por um momento, pareceu que Rosalinda fosse recusar o convite, mas
então ela se aproximou com as unhas pintadas de vermelho e pegou a mão
dele com gentileza. Berne deixou a mulher passar os dedos pelas costas do
braço, mal sentindo o toque por causa da pele seca, dura e cheia de
rachaduras. Era sua maldição pessoal, a barreira que o impedia de perceber o
mundo com mais intensidade. Sua pele era como uma armadura natural, que
o isolava e protegia de tudo, até das coisas belas do mundo.
Rosalinda levantou o rosto para ele.
– Isso dói? – quis saber.
Berne balançou a cabeça.
– Podemos falar do seu marido agora?
O brilho desapareceu dos olhos de Rosalinda, que recolheu as mãos,
fazendo Berne quase se arrepender da escolha de palavras que fez. Era raro
sentir o toque de uma mulher, quanto mais de uma tão bonita quanto aquela,
mas a ocasião não permitia o estabelecimento de intimidades. Precisava
cumprir sua missão.
– O que vocês querem com meu marido? – perguntou ela, de costas.
Berne relaxou um pouco e indicou uma poltrona ao lado da cama.
– Você se incomoda?
Rosalinda o olhou de soslaio e balançou a cabeça, recuando até a
cadeira em que estava sentada antes da chegada do major.
– Fique à vontade.
Berne se sentou, cruzando as pernas e descansando as mãos nos
braços da poltrona. Ele olhou ao redor e notou um cinzeiro na cabeceira da
cama com um cemitério de guimbas, enterradas em montes de cinza. Dirigiu
o olhar novamente para Rosalinda e percebeu que seus dedos tremiam
levemente. Ela sabia que aquela não era uma visita social.
– Pelo que ouvimos dizer, Carrapato deixou a cidade com bastante
pressa após o incêndio na delegacia – contou, levantando os olhos para ela.
Rosalinda engoliu o sorriso como se fosse algo amargo, remexeu os
dedos, nervosa, e tirou um maço de cigarros de uma gaveta.
– Vocês querem saber para onde ele foi?
– O coronel Olho de Cobra gostaria de saber – corrigiu Berne.
Rosalinda assentiu, puxando um cigarro do maço com os lábios
carnudos.
– Meu marido não é nenhum idiota, senhor Berne – respondeu a
mulher, decidindo deixar a conversa fiada de lado enquanto procurava um
isqueiro na bolsa. – Ele sabia que seria um homem morto se ficasse na cidade
após o incêndio. Acredita mesmo que ele me revelaria para onde estava indo,
sabendo que um de vocês bateria na minha porta justamente atrás dessa
informação?
– Por que não foi com ele?
Rosalinda fez uma careta e se segurou para não rir, abrindo as mãos
num gesto de inocência.
– Eu não fiz nada de errado – defendeu-se. – Devia me tornar uma
fugitiva só porque aquele gordo idiota meteu o pé na jaca?
– Achei que tivesse dito que ele não era idiota – apontou Berne.
– Ele era meu marido – respondeu Rosalinda, acendendo o cigarro. –
Só eu posso chamá-lo de idiota.
O rosto de Berne se contorceu num sorriso involuntário.
– Mas certamente a senhorita o amava, não?
Rosalinda soltou a fumaça com um suspiro.
– Ele me comprava coisas bonitas – respondeu, indiferente. – E tinha
uma posição importante na comunidade. Como uma moça de família, preciso
manter certo status. É importante manter as aparências. Mas, amor, não.
Acho que nunca amei meu marido, se posso ser sincera com o senhor.
Berne descruzou as pernas e se inclinou para a frente.
– Mas ele a amava, não é verdade?
Rosalinda encarou o major de olhos semicerrados, estufou o peito e
sorriu.
– Você não amaria? – provocou.
Berne acusou o golpe baixo. Ela era sensual, mas ele não estava ali
para joguinhos.
– Ele deve ter lhe prometido alguma coisa – supôs. – Nenhum homem
em sã consciência deixaria seu maior tesouro para trás.
Rosalinda baixou a cabeça, enrubescendo, mordendo os lábios, e
então assentiu.
– Ele prometeu mandar notícias – revelou. – Quando a poeira
baixasse. Daqui a um ou dois anos. tempo suficiente para que vocês percam o
interesse nele.
Berne precisava lhe dar crédito. Ela parecia sincera. O major se
levantou.
– Entendo – comentou. – Só que não vamos deixar esse assunto
quieto. A senhorita entende isso, não é mesmo?
Rosalinda assentiu, com uma expressão neutra. Berne tirou um
isqueiro metálico do bolso. Um Zippo. Ele o abriu, com um clique audível, e
riscou a roleta, produzindo uma chama longa e viva.
– A senhorita disse que meu apelido é famoso por essas bandas, não é
mesmo? – continuou. – Imagino que também saiba o motivo pelo qual me
chamam de Dragão Albino, certo?
Pela primeira vez, Rosalinda pareceu verdadeiramente assustada.
– Meu pai... – começou.
Berne, porém, cortou a chama do Zippo com um movimento brusco,
fazendo com que Rosalinda também se calasse. Ele voltou a sorrir seu sorriso
hediondo.
– Não se preocupe – disse, com voz mais compreensiva. – Eu não
seria capaz de queimar um rosto tão bonito quanto o seu. Não sou um
monstro.
Rosalinda não disse nada, mas uma lágrima lhe percorreu a face
esquerda, manchando a maquiagem. Berne caminhou pelo quarto,
admirando-o.
– Mas esta casa e todas as coisas dentro dela, isso eu poderia queimar
sem pensar duas vezes – continuou.
– Não – protestou Rosalinda, colocando-se de joelhos diante do
major. – Por favor, não queime minhas coisas. É tudo que tenho.
Berne se agachou diante da mulher, como um predador.
– Então conte o que quero saber.
4
Era aquela hora do dia em que as nuvens se tingiam de vermelho no
oeste.Os martelos estavam calados, para o alívio de uns e a angústia de
outros. Uma pequena multidão se reunia no descampado diante da antiga
delegacia, onde dois cadafalsos de sete metros de altura cada um foram
construídos e delicadamente enfeitados com grossas cordas de cânhamo que
terminavam em laços redondos e vazios. Os marceneiros ainda se deram ao
trabalho de construir um pequeno palanque, na frente do qual foram postas
três filas de cadeiras, para autoridades e personalidades mais importantes de
Miradouro. Um cordão de isolamento e guardas armados separavam a área do
restante do público.
Para a ocasião, o major Berne se vestiu com algumas de suas
melhores roupas, como um colete militar cheio de medalhas e condecorações
que não valiam nada. Eram apenas parte da fantasia que usava quando o
coronel Olho de Cobra precisava que fosse à guerra, assim como seu posto de
major. Ordem e hierarquia tranquilizavam as pessoas, faziam-nas pensar que
tudo aquilo contava com um motivo claro e consistente, a despeito de talvez
não serem muito espertas para compreender todas as implicações das ações
em andamento. Deixavam que as autoridades se preocupassem com tais
pequenos detalhes: eram somente testemunhas das forças do Estado.
Berne passou os olhos pelo público. Parecia que a cidade inteira fora
ao evento. Notou olhares de nojo e repulsa na multidão, com os quais já
estava acostumado, e deteve o olhar em famílias reunidas, mães com bebês
de colo e crianças remelentas na barra da saia, assim como em ambulantes,
que aproveitavam o movimento para vender pipoca e cervejas de
procedências duvidosas. Eles o chamavam de monstro pelas costas, mas se
empurravam em busca dos melhores lugares para assistir às mortes de um
bando de criminosos, como se não tivessem parte no espetáculo hediondo em
andamento.
O tenente Lucas Guará se aproximou com passos decididos.
– Os prisioneiros estão a caminho, senhor – informou, após uma
rápida continência de rotina.
Berne acabava de calçar um par de luvas brancas.
– Ótimo – respondeu. – Peça ao sargento Malhado que me encontre
após a conclusão dos serviços e separe dois dos nossos melhores homens para
uma missão especial. Quero-os de prontidão. Partiremos amanhã, antes do
nascer do sol.
O tenente levantou uma sobrancelha.
– Sabemos onde o delegado se escondeu? – sussurrou.
Berne assentiu levemente, com um sorriso discreto.
– Cuidarei disso agora mesmo, senhor – garantiu o tenente, que partiu
do mesmo modo como chegou após uma segunda continência.
O major Berne se voltou para o público outra vez. A maioria das
pessoas mais importantes da cidade já se encontrava por ali, inclusive
Rosalinda Cesário, que usava um par de óculos escuros gigantesco e parecia
muito entretida em um bate-papo com o padre Olegário para olhar na direção
dele. Berne reconheceu os rostos de três donos de restaurante, se bem que não
lembrasse seus nomes, bem como de dois médicos e um representante de
Dentes de Ouro, o homem que controlava as principais casas de jogos de azar
de Miradouro. Entre os convidados, também viu Mona Lisa, a garota de
programa mais famosa da região, acompanhada de dois leões de chácara de
aparência nada amistosa. Tudo parecia um grande circo ou festa a fantasia,
com os figurões aproveitando o momento para fazer contatos e exibir as
roupas caras que só tiravam do armário em ocasiões especiais.
O som de um caminhão se aproximando fez com que as conversas
baixassem para um burburinho ansioso. O major Berne aproveitou o
momento para assumir o lugar no palanque. Os carrascos com as identidades
ocultas por trás de máscaras de couro e uniformes pretos também subiram os
cadafalsos como os espectros da morte que representavam. O público se
calou por inteiro, estabelecendo uma tensão absurda ao ambiente que não se
encontrava lá antes. Dava para ouvir um bebê chorando, solitário, em meio à
multidão, assim como tosses breves e um ou outro sussurro. O motor do
caminhão se encarregava de quebrar o resto do silêncio que sobrava. Todos
sabiam o que o ronco nervoso da máquina anunciava: os condenados se
aproximavam.
O caminhão levou um tempo para atravessar a multidão, que hesitava
em perder o lugar ao abrir caminho para ele, mas finalmente parou próximo a
um dos cadafalsos. Soldados armados pularam da caçamba, abriram-na e
ordenaram que os prisioneiros descessem em fila indiana. Não dava para vê-
los num primeiro momento, graças ao toldo que cobria a carroceria do
caminhão. No entanto, o público podia escutar as correntes, com os elos
batendo uns contra os outros enquanto os criminosos se movimentavam.
Outro burburinho atravessou a multidão. Aquele era o show ao qual haviam
ido assistir: os últimos passos de diversos homens.
Uma ave negra pousou sobre um poste e grasnou, agourenta. De
súbito, os condenados apareceram: descalços, em roupas brancas, de linho
cru, com mãos algemadas e pernas acorrentadas uns aos outros, para que
ninguém fugisse na última hora. Um a um, desceram do caminhão com a
ajuda dos soldados, uma vez que um saco cobria suas cabeças de modo a
esconder suas identidades e proteger o público das caretas mortuárias que
fariam ao dançarem na forca. No entanto, havia um prisioneiro que era
impossível deixar de reconhecer, apesar da estratégia dos organizadores do
evento, não só pelo seu aspecto mirrado, como pelo pé torto que o impedia de
caminhar direito.
Carlitos Doninha foi o último a descer do caminhão, e uma mulher na
multidão abriu um berreiro ao vê-lo daquele jeito. Não podia ser a mãe do
garoto. Berne sabia que ele era órfão, sem nenhum outro parente próximo.
Talvez fosse só uma desconhecida, triste com a situação do menino, como
algumas outras mulheres na multidão. Até Rosalinda levou a mão ao coração
ao perceber que o último prisioneiro não passava de um adolescente. Berne
trocou o peso de uma perna para a outra, incomodado com a situação.
– Estes que estão diante de vocês hoje são criminosos da pior espécie
– anunciou sem deixar a voz fraquejar, atraindo a atenção da multidão. –
Trata-se de homens que cometeram crimes como homicídios, latrocínios,
estupros e atentados violentos ao pudor. São homens incapazes de viver em
sociedade, muitos deles reincidentes em seus crimes e nem um pouco
arrependidos das famílias que destruíram pelo caminho. Soltos, voltariam a
fazer o que sabem: aterrorizar a população.
Uma voz feminina se manifestou em meio aos espectadores.
– Até mesmo o garotinho lá na ponta?
O major Berne preferiu ignorar a pergunta, apontando para os homens
que eram distribuídos sobre os cadafalsos enquanto os carrascos prendiam os
laços das cordas em seus pescoços e soltavam os grilhões de seus pés. As
mãos permaneciam algemadas.
– Foram homens como eles que puseram fogo na delegacia desta
cidade – acusou Berne, elevando o tom de voz de modo a não admitir
críticas. – Foram homens como eles que aterrorizaram e roubaram o que
puderam da população nos últimos dias. Homens que não respeitam a lei.
Homens que acreditam ter direitos acima do cidadão comum. Homens que
mataram outros homens. Homens que mataram mulheres. Homens que
mataram crianças. Homens que renegaram a existência do próprio Deus,
Nosso Senhor e Salvador.
O major Berne não deixou de notar como o padre Olegário baixou a
cabeça ao ouvir tais palavras. O religioso sabia muito bem a quem ele se
referia com a última frase. Ninguém mais reclamou da presença de Doninha
entre os condenados, mas muitos balançavam a cabeça em sinal de censura a
tal crime. O recado era claro: aquelas pessoas podiam até tolerar estupros e
assassinatos, mas não perdoavam quem ofendesse seu deus. Berne trocou o
peso dos pés, mais confiante.
– São homens assim que vocês querem ver soltos na rua?
– Não! – bradou a multidão em uníssono.
– Canalhas! – empolgou-se um bêbado, jogando uma garrafa vazia,
que acertou o ombro de um dos condenados. – Queimem no fogo do inferno!
A atitude encontrou eco entre outros espectadores, que jogaram
tomates, alfaces e ovos podres contra os prisioneiros, que não podiam reagir.
Os xingamentos lançados contra eles variavam de bandidos e salafrários até
coisas mais criativas como chupa-rola, resto de bosta e até mesmo satanista
invertido, fosse lá o que isso quisesse dizer. Após o público extravasar a
tensão, o major Berne levantou uma das mãos, pedindo silêncio. Demorou
um pouco, e precisou de uma ajudinha dos soldados distribuídos pelo chão,
até que todos se calassem. Berne se debruçou sobre o palanque.
– Senhoras e senhores, muitos de vocês não me conhecem nem nunca
me viram antes – recomeçou. – Trabalho para o coronel Olho de Cobra, um
homem honesto e preocupado com a população, que só deseja ver a
humanidade se reerguer do buraco onde a Grande Guerra nos jogou. E é o
que ele tem feito nos últimos dez anos. Todos aqui somos testemunhas disso,
somos súditos desse homem que nos arrancou da lama e afastou o mal de
nossas terras. É por isso que não podemos admitir que o que aconteceu nesta
cidade se repita. É por isso que não podemos deixar que homens como esses
caminhem livremente, sem prestar contas a ninguém e sem medo dos homens
da lei. É por isso que teremos hoje nosso primeiro enforcamento coletivo.
Ao fim de tal anúncio, a multidão explodiu numa salva de palmas
animada. O major Berne sorriu, mesmo sabendo que tal gesto não seria
compreendido pela maioria dos presentes, mas não conseguiu evitar. Havia
cumprido seu papel como mestre de cerimônia, portanto, podia retornar para
ao seu lugar e apreciar o restante do show.
– Deixo vocês agora com o padre Olegário, que dirá algumas palavras
e prestará extrema unção aos condenados – concluiu.
Ao descer do palanque, cruzou com o padre Olegário, que estendeu a
mão para um cumprimento rápido, ao qual Berne atendeu de bom grado.
– Ainda dá tempo de salvar o garoto – disse o padre. – Basta uma
palavra sua.
– Não sou eu quem vai carregar essa cruz – respondeu o major,
sorridente.
Em seguida, acenou para o povo, que ainda o ovacionava, e caminhou
até o lugar reservado para ele. Berne se sentou e assistiu enquanto o padre
Olegário assumia o palanque como se fosse um púlpito, com a face
entristecida e culpada por motivos que a maioria ali desconhecia. Ele
conhecia muito bem os pecados do padre e era o único capaz de oferecer o
perdão que o religioso procurava. Berne encarou o garoto com o saco na
cabeça e a corda no pescoço, notando a umidade amarelada que se expandia
na parte da frente da calça dele. Bastava uma palavra sua para que seus
homens o soltassem, mas se manteve em silêncio.
5
No momento adequado, após o fim dos discursos, os carrascos
assumiram seus lugares, um no fim de cada cadafalso. Doze homens se
encontravam distribuídos entre eles, todos com as cordas no pescoço. Alguns
procuravam falar, protestar talvez, ou apenas emitir as últimas palavras, mas
o som saía abafado pelo saco que lhes cobria a cabeça. Os carrascos não lhe
deram oportunidade de serem compreendidos. Passada a hora das cerimônias,
os dois homens puxaram a manivela ao mesmo tempo.
O tampo sobre o qual os doze homens se mantinham equilibrados se
abriu. Eles caíram dentro dos buracos como bolas de sinuca, numa queda de
dois metros e meio, antes de as cordas se esticarem por completo. Os mais
pesados tiveram os pescoços quebrados com o impacto e ficaram
completamente imóveis após um tremor momentâneo. Foi o caso de quatro
condenados. Os demais não tiveram a mesma sorte e sufocavam, lançando as
pernas para todos os lados, em busca de um apoio, qualquer coisa que
pudessem usar para afrouxar o nó nos pescoços.
A multidão vibrava, assistindo à morte lenta daqueles homens
embaixo do cadafalso, que consistia numa bancada de madeira equilibrada
por troncos estrategicamente posicionados como colunas de modo a não
esconder o espetáculo do público. Muitos gritavam xingamentos e maldições.
Frutas podres e garrafas voavam sobre os condenados, que continuavam a
dançar em busca de ar. Morriam lentamente, como moscas na superfície de
um refrigerante. Os movimentos cessavam devagar, com espasmos regulares
e a liberação de intestinos, que adicionava odores pouco agradáveis ao
público, principalmente a quem se encontrava mais próximo dos enforcados.
O último a morrer foi o menor e mais magro dos prisioneiros, que
estava numa das pontas do cadafalso. Carlitos Doninha levou mais de dez
agoniantes minutos para bater as botas e Berne não tirou os olhos dele por um
segundo sequer.
6
1
Uma a uma, as peças das armas caíram no fundo do poço seco atrás da casa.
Tião Peixeira desmontou cada pistola, rifle e revólver carregado pelos
homens do major Berne, não poupando nem mesmo a munição, que valia um
bom dinheiro e faria os olhos de comerciantes brilharem, caso decidisse levá-
las consigo. Concluído o serviço, voltou a fechar a boca do poço com
pedaços apodrecidos de madeira, contornou a casa e, ao passar pelo quarto
dos fundos, ouviu a voz de João dos Mistérios recitar alguma língua estranha
e misteriosa. Se fechasse os olhos, podia quase ver o amigo a fazer
pictogramas e espalhar pó pelo corpo do inimigo vencido, que ele próprio
ajudara a deitar na cama de casal. Tião Peixeira balançou a cabeça, buscando
se livrar de tais pensamentos, e se sentou em um banco ao lado da residência,
de frente para a Planície dos Mortos. Não lhe restava nada a fazer além de
esperar.
Quando João dos Mistérios deixou a casa já era noite alta e o frio
começava a se espalhar pela montanha. Um trovão ecoou na distância. Tião
Peixeira notou que o amigo estava abatido, com as mãos tremendo e o
equilíbrio abalado, e se adiantou para ajudá-lo, antes que o bruxo desabasse
sobre o próprio peso.
– Opa! – disse, ao abraçá-lo ao fraquejar. – Vamos lá agora. Um pé
depois do outro, sem pressa. Um pé depois do outro.
João dos Mistérios obedecia como uma criança, a balbuciar palavras
sem sentido. Tião Peixeira o conduziu até o banco, onde o amigo se sentou,
esgotado. Ele respirava com dificuldade e, ao pegar seu pulso, percebeu que o
coração bombeava o sangue de forma inconstante. Seja lá o que tivesse
acabado de fazer, obviamente o preço fora alto. João dos Mistérios estava
esgotado.
– Vai ficar tudo bem, meu amigo – garantiu Tião Peixeira. – Dê-me só
um minuto para acender uma fogueira e vamos esquentar esses ossos, ok?
João dos Mistérios fechou os olhos e assentiu, cansado. Tião Peixeira
se encarregou de montar a fogueira com uma pilha de madeira, deixada para
apodrecer na lateral da casa, e a recheou com galhos secos. O fogo pegou
facilmente e se levantou alto, rumo aos céus escuros. Logo a vida voltava à
face de João dos Mistérios, que esticou as mãos de modo a aproveitar melhor
o calor. Tião Peixeira se sentou do lado contrário da fogueira, observando o
amigo, ressabiado.
– Isso que você fez hoje foi diferente dos outros truques. – disse,
quebrando o silêncio. – Foi... mais sério, não foi?
João dos Mistérios levantou os olhos cansados, esfregando as mãos
diante do fogo, e assentiu uma única vez.
– Para chegar até Ed Tempestade e ao coronel Olho de Cobra –
respondeu, pausando para respirar. – precisamos de algo mais forte que
truques de salão.
Tião Peixeira olhou para a casa escura e abandonada, que se antes do
sol se pôr parecia mal-assombrada, depois lembrava uma passagem para os
mundos inferiores. Pensou nos mortos e no homem que descansava dentro
dela, ainda que descansar talvez não fosse a palavra exata.
– Como é que ele está? – quis saber.
João dos Mistérios também contemplou a casa, com olhos sérios.
– No limiar entre a vida e a morte – respondeu. – Onde precisamos que
esteja para o que vem a seguir.
Tião Peixeira concordou.
– Quanto tempo para seu feitiço fazer efeito?
João dos Mistérios deu de ombros.
– De três a dez dias. Vamos ter que esperar para ver.
Um galho seco estalou ao queimar na fogueira e Tião Peixeira se
levantou, inquieto. João dos Mistérios o acompanhou com os olhos, atento.
– O que o aflige, meu amigo?
Tião Peixeira virou-se para ele, sem conseguir esconder o nervosismo.
– Não sei – admitiu. – Talvez seja só este lugar sinistro, mas você
nunca se pergunta se não estamos indo longe demais? Ou melhor, se você
não está indo longe demais? Tenho minha vingança, é o que me leva adiante
e não vou parar antes de acabar com a raça de Ed Tempestade. Mas e você?
Por que continua ao meu lado?
João dos Mistérios observou o amigo em silêncio, completamente
imóvel, com o brilho das chamas a cintilar em seus olhos alaranjados. Era
uma conversa que já haviam tido antes e da qual o bruxo se esquivara com
explicações rasteiras e pouco convincentes. No entanto, a postura de Tião
Peixeira indicava que ele não se contentaria com uma resposta simplista
dessa vez. Era hora de terem uma conversa. João dos Mistérios suspirou,
vencido.
– Muito bem – concordou. – Acho que você tem o direito de ouvir
minha história. Por favor, sente-se, pois o que tenho a lhe contar teve início
muito tempo atrás. Antes que eu ou você tivéssemos vindo a este mundo, na
verdade. Tudo começou com o meu avô e com a missão que recebeu das
mãos de certo coronel Sucuri.
2
Cinquenta anos antes
O céu ainda era azul, o sol ainda brilhava entre as nuvens brancas e as
árvores ainda se levantavam altas e verdes, principalmente nas faixas
litorâneas do Nordeste e nas fazendas dos homens poderosos daquela época.
O velho Lineu descansava à sombra de um jacarandá, com o corpo empapado
de suor graças ao calor abrasador que não dava trégua. De tempos em
tempos, espiava a peneira camuflada com folhas a pender sobre a armadilha
rústica que armou na madrugada. A tarde avançava, preguiçosa, sem ligar
para o caçador entediado.
Lineu desatarraxou a tampa do cantil e deu um longo gole na água,
bastante morna àquela altura. Não ligou. Estava acostumado a ficar de tocaia
por longos períodos de tempo. A solidão não o incomodava e podia ficar
imóvel por horas a fio, concentrado somente nos barulhos da mata e no que
eles lhe contavam. Sabia que o farfalhar na copa de uma árvore próxima não
era produzido pelo vento, e sim por um macaco em busca de frutas apetitosas
para matar a fome. Distinguia o canto dos sabiás, dos bem-te-vis e das
codornas. Fazia careta diante do grasnar das araras, sempre tão barulhentas. O
remexer no capim era um rato do campo, que avançava devagar, com muitas
paradas, com medo de atrair a atenção de algum predador.
Aqueles eram sons que Lineu conhecia bem e que o ajudavam a
passar o tempo. Ele os acompanhava de olhos fechados, num estado de
vigília sonolenta, com um pé no mundo dos vivos e outro no dos sonhos.
Braços e pernas formigavam de forma relaxante, mergulhados num transe
que poderia ser quebrado a qualquer momento. O vento soprava pela mata
fechada, agitando as folhas, fazendo as cigarras se calarem. Os grilos pararam
de cantar em seguida. Lineu abriu os olhos. Algo se aproximava. Ficou no
mais completo silêncio, atento, até que ouviu o estalo da armadilha.
No mesmo instante, saltou do lugar onde descansava e ouviu o
guincho da criatura que caçava. A peneira perdia suas folhas enquanto algo
debaixo de suas linhas de prata lutava para escapar. Lineu contava com
poucos segundos para agir. Se fosse lento demais, a presa escaparia e
espalharia pragas por plantações de toda a região, para demonstrar seu
desagrado, e o caçador perderia não só sua recompensa, mas também sua
reputação e provavelmente a vida. O coronel Sucuri não era conhecido por
perdoar erros alheios, talvez por isso o coração tenha lhe subido à boca
quando viu a borda da peneira se levantar ameaçadoramente acima do chão.
Lineu caiu sobre ela como uma onça, prendendo-a firmemente no solo
com ambas as mãos. Respirava, ofegante, à espera de uma reação. A peneira
não se mexeu. Era possível que a presa tivesse escapado. Ele não tinha como
dizer, por isso aguardou, sem relaxar por um segundo sequer. Podia ser um
truque, ele sabia, um desafio para que o caçador espiasse o que havia
capturado – se é que havia algo dentro da armadilha. Bastava levantar um
pouquinho a borda para descobrir a verdade, só o suficiente para que a presa
encontrasse a fresta que aguardava para escapar. Lineu permaneceu imóvel.
Um minuto se passou, depois outro e mais outro. A peneira não se
mexia. O caçador começava a duvidar de si mesmo quando algo se
manifestou abaixo dela, uma força furiosa que procurava escapar da prisão.
Lineu segurou a peneira com força, sorrindo pela primeira vez aquele dia.
Continuava tão bom quanto fora na juventude, afinal.
– Não adianta espernear – avisou, colocando todo o peso do corpo
sobre a peneira enquanto tirava a garrafa vazia que trazia amarrada ao cinto. –
Eu te peguei, seu lazarento!
A coisa abaixo da peneira parou de lutar e começou a chorar.
“Sacanagem”, reclamou uma voz fina e estridente dentro da mente de
Lineu. “Como sabia do meu vício por sangue de virgem no mel com limão?”
Lineu demorou a responder. Segurava a garrafa vazia com uma das
mãos e uma rolha com a outra, apoiando o peso do corpo sobre a peneira.
Sabia que seu próximo movimento seria essencial para o sucesso da
empreitada e não podia se deixar distrair.
– Espero que tenha se esbaldado – disse, começando a se levantar. –
Essa é uma iguaria que, se depender de mim, você não verá mais por muitos e
muitos anos.
Ele podia sentir a criatura furiosa embaixo da peneira, aguardando o
momento ideal. Lineu respirou fundo e levantou minimamente a armadilha,
só uma pequena fresta. Foi o suficiente. A presa se lançou para fora com a
força de um furacão, entrando pela boca da garrafa antes de se dar conta do
que estava acontecendo. O recipiente de vidro quase pulou da mão do
caçador, tamanha a força da presa que o adentrou, e fez com que ele perdesse
o equilíbrio, caindo sobre os próprios fundilhos sem muita classe. Não havia
tempo para se levantar. A boca da garrafa ainda estava aberta, e os chumaços
de algodão embebidos em álcool em seu interior conteriam o novo prisioneiro
apenas por alguns segundos. Sem demora, Lineu tampou a abertura com a
rolha, empurrando-a com força pelo pescoço de vidro até se encontrar
firmemente presa.
Pronto! O trabalho estava completo.
Lineu deixou a garrafa de pé no chão e se levantou, batendo a poeira
das roupas. Sua presa se agitava dentro do calabouço de paredes
transparentes, lançando mil xingamentos contra o pérfido caçador. Era
impossível compreender sequer uma palavra pronunciada por aquela criatura
em seu acesso de fúria. Recomposto, Lineu pegou a garrafa que dançava pelo
chão e espiou o que ela guardava.
– Engraçado – comentou. – Podia jurar que era um saci quem andava
aprontando por essas bandas.
Dentro da garrafa, escondia-se uma criatura feita de fogo e fumaça,
com olhinhos vermelhos cheios de ódio e chifres retorcidos de carvão
fumegante. Ela mostrou os dentes negros, afiados como agulhas, e sibilou
que nem uma cobra.
“Feiticeiro miserável”, reclamou a criatura com seu modo telepático
peculiar. “A não ser que me solte agora, acabarei com toda a sua família
quando sair desta garrafa!”
Não era uma ameaça leviana. Lineu sabia muito bem. Demônios
como aqueles viviam fora do espaço-tempo conhecido pelos humanos e
podiam explorar tanto eventos do passado quanto do futuro. Por isso era
perigoso dar ouvidos a eles. Mesmo assim, o caçador não se assustou e
chegou até a sorrir.
– Nesse caso, eu lhe desejo boa sorte, uma vez que coloquei um
feitiço de ocultamento sobre os membros da minha família justamente para
não ser ameaçado por tipinhos como você.
O demônio se desfez numa nuvem de fumaça que circulou o interior
da garrafa antes de bater com força contra o vidro que o mantinha preso.
“O que quer de mim, desgraçado?”, bradou o demônio, soltando fogo
pela boca. “Mulheres? Fortuna? Poder? Posso lhe dar tudo isso, se prometer
me soltar!”
Lineu não deu atenção, guardando a garrafa dentro de uma bolsa de
trabalho.
– Seu destino não pertence a mim, pequeno demônio – avisou. – O
que acha de irmos conhecer seu novo dono?
3
O coronel Sucuri aguardava na biblioteca de sua enorme mansão. Em
roupas simples e velhas, Lineu adentrou o recinto com a bolsa de trabalho
atravessada no peito. Ficava admirado com aquelas estantes cheias de livros,
com títulos sugestivos e lombadas coloridas, mas duvidava de que seu
empregador tivesse lido ao menos um por cento do acervo e imaginava que,
como outros homens ricos, colecionasse livros só para impressionar as
visitas.
Com os cabelos louros puxados para trás, metido num terno branco
com gravata vermelha, o coronel Sucuri tomava lição do filho, que quebrava
a cabeça para compreender equações matemáticas. O menino estava
debruçado sobre um caderno, que rabiscava com expressão de dúvida,
enquanto o pai espiava os avanços do pequeno como uma árvore atrás dele,
projetando uma sombra sobre o filho e o corrigindo com uma voz fria e
severa.
Lineu parou a uma distância respeitável dos dois, sentindo-se um
intruso naquela cena de família. Fez um barulho com a garganta, de modo a
ser notado. O coronel Sucuri levantou os olhos para ele, com o rosto
completamente neutro. O menino fez o mesmo, sem disfarçar a expressão de
nojo ao ver um homem de cor naquele templo de sabedoria. O fruto nunca
caía distante da árvore. O coronel Sucuri se endireitou, oferecendo um sorriso
educado.
– Mestre Lineu – cumprimentou. –, o senhor voltou antes do que eu
esperava. Completou sua missão?
Lineu assentiu, olhando para o garoto.
– Se quiser, posso aguardar o senhor lá fora – argumentou. – Não
tenho pressa.
O coronel contornou a mesa.
– Bobagem – descartou. – Temos um negócio a concluir. Espero que
tenha provas do seu êxito. Sabe que não pago profissionais que me aparecem
por aqui de mãos vazias, certo?
Lineu apertou a alça da bolsa de trabalho. Continuava desconfortável,
a olhar do coronel para o garoto, que o encarava com o mais puro asco. O
menino largou lápis e caderno e avançou para se unir aos dois. Lineu deu as
costas para ele.
– Estou com a prova bem aqui – sussurrou para o coronel, batendo de
leve na lateral da bolsa. –Só não acho recomendável concluirmos o negócio
na frente do garoto.
O coronel Sucuri riu do conselho. Nisso o menino alcançou os dois e
o pai esticou o braço, de modo a abrigar a cria debaixo da asa. Era um garoto
grande, que poderia ser considerado bonito por seus pares, graças ao cabelo
louro e aos olhos verdes. Só que a Lineu ele não enganava. Não havia
inocência no rosto do adolescente, apenas um ar de superioridade que podia
facilmente ser transformado em maldade.
– Não se preocupe com meu filho – respondeu o coronel. – Um dia,
ele herdará tudo que tenho e já está com doze anos. É quase um homem.
Gosto que ele me acompanhe durante compromissos profissionais como este.
Lineu continuava reticente.
– Ainda assim, o que temos para conversar é de caráter sigiloso, não
concorda?
O garoto se enfezou.
– Esse preto pensa que sou idiota, pai – reclamou. – Você deveria
mandar açoitá-lo para ele aprender o lugar dele!
Lineu deu um passo para trás e o coronel Sucuri riu, nervoso.
– Ora, meu filho, isso não é jeito de tratar as visitas – respondeu. –
Por que não termina a lição de matemática enquanto converso com mestre
Lineu?
– Mas pai...
– O que foi que eu disse? – cortou o coronel, incisivo.
Por um momento, o garoto ficou apenas parado ali, sem acreditar na
reprimenda, mas logo fechou a cara, cerrou os punhos e marchou de volta
para a mesa de estudos. O coronel Sucuri se virou de volta para Lineu.
– Peço perdão pelo meu filho – recomeçou. – Ele pode ser um
moleque impertinente e ofensivo quando quer. Você sabe como os jovens
gostam de chocar os mais velhos. Sem contar que tem começado a questionar
minha autoridade. Adolescentes, certo?
O coronel Sucuri riu, como se isso aliviasse a situação. Lineu
permanecia sério. Não achava piadas sobre escravidão nada engraçadas nem
estava disposto a perdoar o suposto erro do adolescente, porém, estava ali
para fazer negócios com um homem branco e rico que nunca seria capaz de
compreender sua indignação. Decidiu partir diretamente para o assunto que o
levou até a presença daquele homem desagradável.
– Você me pediu que descobrisse o que vinha prejudicando suas
plantações de café nos últimos meses – lembrou, objetivo. – Na época, eu lhe
disse que a causa não era natural e você riu. Pediu provas e me prometeu uma
boa quantia por elas. Lembra quanto foi?
O coronel Sucuri cruzou os braços.
– Cinquenta mil – respondeu. – Mas ainda não vi nenhuma prova.
Lineu voltou a olhar para o menino, que fingia se concentrar na lição
de matemática, embora continuasse a acompanhar atentamente a conversa
dos dois.
– Tem certeza de que quer fazer isso aqui?
O coronel Sucuri suspirou.
– Sou um homem ocupado, mestre Lineu, e o senhor sabe que sou um
pouco cético sobre sua fama de feiticeiro. Você quer o dinheiro que lhe
prometi? Então vá em frente! Faça-me acreditar na magia.
Lineu deu de ombros.
– Bom, depois não diga que não lhe avisei...
Então, com gestos simples e metódicos, Lineu desfez o laço que
mantinha a bolsa fechada e a abriu, retirando lá de dentro uma garrafa de cor
acinzentada que estendeu de modo respeitoso para seu empregador. O
coronel Sucuri recebeu o recipiente com o cenho franzido. Os olhos dele se
concentraram na substância que se revolvia em seu interior, até perceberem
que não se tratava de um líquido ou gás, e sim de um ser vivo de formas
inconstantes e voláteis. Seu rosto foi preenchido pelo mais genuíno espanto.
– O que, em nome de Deus, é isso? – quis saber.
Lineu colocou as mãos nas costas antes de responder como um
professor.
– É a causa da praga que levou sua lavoura. Um demoniozinho feito
de fogo e fumaça, que gosta de aprontar traquinagens e passar trotes em
humanos desavisados como o senhor, que não acreditam em magia.
O coronel Sucuri permanecia com os olhos presos à garrafa.
– Posso escutar a voz dele na minha cabeça – relatou, assustado.
Lineu arrancou a garrafa das mãos dele.
– Como eu lhe disse, o safado é travesso, mas só pode se comunicar
pelo contato direto com o receptáculo que o prende. No caso, esta garrafa.
Aqui – continuou, enrolando um pedaço de pano ao redor do vidro. – Desse
modo o cretino cala a boca.
O coronel Sucuri pegou a garrafa, tomando cuidado para não encostar
no vidro, e riu como uma criança, de olho no monstrinho que se debatia no
interior da prisão.
– Isso é incrível – comentou. – Um demônio de verdade!
– Foi para isso que me contratou – lembrou Lineu. – Agora, se me der
ouvidos, preciso lhe dar alguns alertas.
Algo no tom de voz de Lineu chamou a atenção do coronel, que
colocou a garrafa com cuidado sobre uma estante próxima e se virou para
ouvi-lo. Continuava fascinado pela descoberta, mas retomara a pose de
homem de negócios.
– Desculpe, garanto que será pago regiamente, de acordo com o
prometido. Não estou com seu dinheiro aqui, como pode ver, mas pedirei a
um dos meus homens que o busque no escritório. Não deve levar mais do que
meia hora.
Lineu assentiu, olhando diretamente para o coronel.
– O demônio na garrafa – indicou. – Ele vê o tempo de maneira
diferente de nós dois. Para ele, passado e futuro são a mesma coisa, de modo
que pode descobrir segredos seus que nunca disse a ninguém, bem como
fazer previsões certeiras de eventos vindouros. Está me acompanhando?
O coronel Sucuri concordou, atento.
– Não dê atenção ao que ele diz – recomendou Lineu. – Suas palavras
podem ser doces e tentadoras, mas garanto que o levarão inevitavelmente à
ruína física, financeira ou psicológica. Esse é o jogo dele, que é muito bom
no que faz. O cretino também é imortal, o que significa que nunca ficará
satisfeito enquanto não puder ver você ou seus descendentes arruinados por
tê-lo aprisionado dessa forma. Libertá-lo não é uma opção viável.
– Então o que devo fazer com ele?
– Se eu fosse você, enterraria o maldito o mais fundo que pudesse e
esqueceria sua existência.
O coronel Sucuri refletiu sobre as palavras de Lineu.
– E se alguém o descobrisse por acaso?
– O demônio usaria essa pessoa para tentar se libertar e voltaria para
se vingar do senhor – respondeu Lineu. – Talvez também arruinasse a vida de
quem quer que esbarrasse com ele. Como lhe disse, esses bastardinhos
costumam ser bastante vingativos. Se for melhor para o senhor, coloque-o em
um cofre, um lugar seguro, ao qual só o senhor tenha acesso, pois a guarda
dele é de sua responsabilidade agora.
O coronel Sucuri colocou as mãos na cintura e suspirou.
– Parece que investir em magia não foi um bom negócio, afinal...
Lineu voltou a fechar a bolsa e percebeu que o menino estava de olho
nele. Provavelmente escutou cada palavra que disse ao pai dele. O caçador
quase podia ver as engrenagens girando na cabeça do adolescente, mas deu
de ombros, pois fizera o que podia para avisar ao seu empregador. Nada
daquilo era problema seu.
– Dizem que demônios engarrafados trazem sorte para seus donos –
concluiu. – Desde que eles sejam fortes o suficiente para não darem ouvidos
aos pequenos diabos. Pense nele como um investimento, trate-o com cuidado,
não comente sobre sua existência com ninguém e boa sorte.
O coronel Sucuri sorriu e estendeu a mão para Lineu, que a apertou
com vigor.
– Obrigado pelos seus serviços – agradeceu. – Se puder esperar na
copa, pedirei a um dos meus homens que leve seu pagamento até lá, ok?
Lineu agradeceu a atenção, virou-se para ir embora e deu uma última
olhada no garoto atrás da mesa, que agora parecia realmente concentrado na
lição de casa. O caçador lhe deu as costas e partiu.
4
5
Dezoito anos antes
6
No dia seguinte, João descobriu que não havia a quem recorrer.
Quando chegou ao endereço do avô, deu de cara com um bando de curiosos
que dificultavam a passagem pela rua. Forçou caminho entre os estranhos até
descobrir o motivo de tanto interesse: as ruínas do que um dia antes era a casa
de mestre Lineu. Não restava quase nada para contar história. Um incêndio,
diziam as pessoas ao redor. O fogo consumiu a residência e tudo que se
encontrava dentro dela durante a noite. Fios de fumaça se levantavam das
cinzas que sobraram.
João assistiu àquilo em estado de choque. Estava sujo, com fome e
medo. Tudo que desejava era correr para os braços do avô e ouvir da boca
dele que tudo ficaria bem. Mesmo que fosse mentira. Uma boa mentira lhe
faria bem, se ajudasse a preencher o vazio que sentia no peito. Ele olhou ao
redor, em busca de algum sinal do avô, algo que lhe desse um pouco de
esperança – afinal, bens materiais podiam ser substituídos, pessoas, não. No
entanto, sentiu o mundo se despedaçar ao seu redor quando percebeu a
presença de um cadáver coberto por um lençol ao lado das ruínas.
Com passos lentos e temerosos, João se aproximou do corpo. Nenhum
pensamento passava por sua cabeça. Ele tinha os olhos fixos na mão
carbonizada que escapava da cobertura do lençol e que lembrava uma aranha
grande e gorda, com os dedos retorcidos a fazerem as vezes das patas. João
sentiu um nó na garganta. Perder os pais e o avô na mesma noite era um
golpe do qual imaginava que não pudesse se recuperar. Um menino de dez
anos sozinho no mundo. Mas ele precisava saber, precisava ter certeza de que
era o avô debaixo daquele lençol.
Ele se abaixou para dar uma espiada quando dedos com unhas
pintadas de laranja se fecharam sobre seu braço.
– O que pensa que está fazendo, menino?
João recuou, assustado, mas a mão prendia seu braço. Poderia tentar
escapar, mas se virou e percebeu quem o segurava. Um rosto conhecido. Era
uma mulher negra, mais velha, com os cabelos presos num coque e olhos
escuros, doces e amáveis como uma noite de verão. Era a mulher que o
trouxera ao mundo: mãe Camila. Dava para ver que ela também o
reconhecera.
– João? – perguntou, preocupada, olhando ao redor. – O que está
fazendo aqui sozinho? Onde estão seus pais?
– Mortos – respondeu João, sem papas na língua.
O menino queria contar mais. Sentia as palavras na ponta da língua,
mas elas não ultrapassavam o nó em sua garganta. Ao perceber a gravidade
da situação, mãe Camila passou o braço sobre os ombros do menino,
puxando-o para baixo da sua asa.
– Vamos conversar em outro lugar – sugeriu. – Onde possamos ter um
pouco de privacidade.
João assoou o nariz e concordou, seguindo a mulher de cabeça baixa.
Os dois foram até uma padaria, onde mãe Camila pagou um café da manhã
reforçado para o menino, com direito a misto quente, pães de queijo e suco de
laranja. Em voz baixa, João contou sobre a invasão à sua casa, a morte do pai
e a perseguição que ele e a mãe sofreram, antes dela se sacrificar para que o
filho conseguisse escapar. Mãe Camila escutou com atenção, esforçando-se
para não chorar. Quando o menino se calou, ela segurou sua mão e olhou em
seus olhos.
– Uma coisa muito ruim aconteceu com seu avô e seus pais –
anunciou a senhora de ancas largas e rosto bondoso. – Você entende que nada
será como antes, certo?
O menino assentiu, com o rosto sério.
– Os homens do coronel Olho de Cobra mataram todo mundo –
constatou.
Mãe Camila ficou impressionada com a resposta direta. O garoto não
chorava, como poderia ser esperado de uma criança que perdera tudo de
forma tão trágica. Ela notou que a infância daquele menino havia chegado ao
fim e, portanto, não poderia tratá-lo como faria a outras crianças da mesma
idade.
– Eles estavam atrás da sua família – considerou mãe Camila. –
Ninguém sabe exatamente por quê. Talvez por algo que seu avô fez no
passado.
– Um mistério – acrescentou João.
Mãe Camila assentiu, passando a mão na cabeça do menino. Por um
momento, ela se lembrou do próprio filho, que crescera e partira para a
cidade grande, onde ganhava a vida aos trancos e barrancos, sempre mandndo
notícias para a mulher que o havia criado – um bom menino que um dia ela
encontrou na rua e adotou como se fosse seu, dando-lhe a chance de
sobreviver num mundo cruel. Agora, o destino lhe apresentava um caso
semelhante, e, mesmo que ela já não fosse uma jovem, não podia dar as
costas para ele.
– Isso mesmo – concordou. – Por isso, a partir de hoje, você será
chamado de João dos Mistérios – definiu, fazendo uma pausa. – E virá morar
comigo, na minha casa, está entendendo?
João refletiu sobre o caso e assentiu uma vez.
– Até quando usarei esse nome?
Mãe Camila passou afetuosamente a mão pelo rosto do menino.
Imaginou que ele fosse perguntar se precisava chamá-la de mãe, mas aquele
não era um garoto comum, como indicavam seus cabelos naturalmente
brancos.
– Até alguém especial lhe dar um novo nome – respondeu,
oferecendo-lhe a mão. – Agora venha, porque temos um longo caminho a
fazer de volta para casa e muita coisa para descobrir, não é mesmo?
7
– Demorou mais alguns anos até que o espírito do meu avô aparecesse
para mim em sonhos e me desse as últimas peças desse quebra-cabeça –
revelou João dos Mistérios, cansado, a remexer as brasas com um pedaço de
pau. – Ele diz que é por isso que a verdade, por mais desagradável que seja,
sempre costuma ressurgir. Os mortos não guardam segredos.
Tião Peixeira refletiu sobre a longa história do amigo, percebendo as
similaridades que ela partilhava com a sua própria jornada, não obstante os
dois não pudessem ser mais diferentes um do outro.
– Os homens que mataram seus pais...
João dos Mistérios balançou a cabeça.
– Nunca cheguei a pegar a identidade deles – afirmou. – Não me
juntei a você nesse caminho por vingança.
Tião Peixeira levantou uma sobrancelha.
– Então por quê?
João dos Mistérios deu de ombros.
– Carma – respondeu, seriamente. – O coronel Olho de Cobra
praticou um grande mal à minha família no passado e o Universo está me
dando a chance de ajustar a balança, mas não desejo a morte dele, mesmo que
minhas mãos, como as suas, estejam sujas de sangue.
Tião Peixeira coçou a cabeça, confuso.
– Você é um cara difícil de entender.
O amigo sorriu, como se aquilo fosse um elogio.
– Não à toa me chamam de João dos Mistérios.
– João Macumba – corrigiu Tião Peixeira. – Se o destino nos uniu,
devo ser a pessoa especial da profecia que você estava esperando.
– Que profecia? – quis saber João dos Mistérios, deixando a seriedade
de lado.
– De mãe Camila, é claro – respondeu Tião Peixeira.
– Aquelas foram palavras ditas para tranquilizar uma criança que
havia acabado de ficar órfã – diminuiu João dos Mistérios. – Você acha
mesmo que ela se referia a você? Que eu deveria aceitar meu novo nome de
um rascunho de cangaceiro branquelo?
Tião Peixeira bateu com as mãos nas coxas e expeliu o ar pelas
narinas, irritado.
– Seu novo nome é João Macumba – repetiu. – Aceita que dói menos!
João dos Mistérios deu risada. Dava para ver que aquela era uma
discussão que renderia horrores, caso continuasse a não dar ouvidos ao
amigo, como pretendia fazer.
Capítulo 12
Os cegos do castelo
1
Ed Tempestade soube que estava encrencado no momento em que abriu os
olhos. Primeiro porque não se encontrava mais em seu quarto, e sim num
corredor escuro, iluminado por tochas, com cadáveres e prisioneiros
próximos da morte acorrentados às paredes. Em segundo lugar, porque não
era mais um homem adulto e voltava a habitar o corpo de um adolescente
assustado, com medo da própria sombra. Não se tratava de um simples
pesadelo. Aquilo era, ao mesmo tempo, um chamado e uma lembrança de
contratos não cumpridos.
Um chicote ecoou distante, seguido de um grito da mais pura agonia.
Ed Tempestade se levantou, procurando uma sombra para se esconder.
Correntes se arrastavam pelos corredores próximos. Lamentos, gemidos e
súplicas reverberavam pelas paredes, vindos de profundezas desconhecidas
através de poços escuros ou por frestas de calabouços invisíveis. Passos
pesados e movimentos de carcereiros brutos e insensíveis também chegavam
a seus ouvidos. A umidade e o calor beiravam as raias do insuportável.
Ed Tempestade avançava devagar pelo labirinto, espiando os túneis
adjacentes com cuidado para não ser visto e procurando fazer o mínimo de
barulho possível. Não queria que os humanoides com bolas de fogo no lugar
dos olhos o encontrassem. Havia milhares deles circulando pelos corredores,
recolhendo prisioneiros e os carregando para destinos incertos, mas
certamente terríveis. Eles não diziam nada, uma vez que não tinham bocas,
como se uma borracha as tivesse apagado deixando uma superfície lisa em
seus rostos inumanos. Suas orelhas longas e pontudas pareciam projetadas
para captar os menores sons, de modo a garantir que os condenados não lhes
escapassem.
Quando sentia a aproximação daquelas criaturas bizarras, Ed
Tempestade se escondia entre os cadáveres em abundância, permanecia
imóvel e não se atrevia nem mesmo a respirar. Por duas vezes, os
humanoides pararam no meio do corredor, com as costas encurvadas,
farejando o ar pestilento e movimentando as cabeças de forma errática, como
se estivessem à procura de algo fora de lugar. Um deles chegou inclusive a
cutucar Ed Tempestade, com seus longos dedos cinzentos, antes de ser
puxado por um colega aparentemente mais velho e experiente, que o fez
seguir em frente usando os braços longos como patas ao avançar rumo a uma
seção diferente do labirinto.
Usando trapos roubados de cadáveres, Ed Tempestade avançou por
caminhos incertos, em busca de uma saída que parecia não existir. Algumas
passagens levavam a grandes salões, repletos de estátuas inumanas e
assustadoras de seres que não deveriam existir. Além dos humanoides com
olhos de fogo, figuras encapuzadas podiam ser vistas nesses salões,
invariavelmente realizando rituais bizarros ou murmurando preces em línguas
estranhas. Se ao menos Ed Tempestade conseguisse colocar as mãos num
daqueles roupões roxos... Estava assim, perdido em pensamentos, quando
uma voz se manifestou dentro de sua cabeça: “Ed Tempestade, você me
decepcionou...”
Imediatamente, caiu de joelhos no chão, olhando ao redor, assustado.
Tinha sido encontrado, e não por um escravo qualquer, mas pelo próprio
senhor daquele reino subterrâneo. Olhou para trás e viu uma fumaça cinzenta
e volumosa dobrar a esquina, como se fosse o tentáculo de um polvo,
avançando lentamente em sua direção. Ele se levantou e começou a correr.
“Aonde pensa que vai? Não há escapatória para os trapaceiros.”
Como se para provar as palavras da voz misteriosa, Ed Tempestade
percebeu tarde demais que havia entrado num corredor sem saída. Ele se
virou, pressionando as costas contra a parede ao mesmo tempo que a criatura
de fumaça se aproximava sem pressa.
– Ainda posso dar um jeito – argumentou. – Você sabe que ele virá
atrás de mim. Ele sempre vem. Dessa vez vou cortar a cabeça dele para
garantir que o maldito não retorne para nos atormentar. Dou minha palavra.
O ser de fumaça se avolumava no corredor fechado, lembrando algo
sólido e mortal, se bem que sua pele imaterial se revolvesse sem parar em
formas líquidas e passageiras.
“Faz dez anos que ouço a mesma promessa, mas Tião Peixeira
continua respirando. Você testa minha paciência, Ed Tempestade.”
A fumaça se aproximou do rosto de Ed Tempestade, que bateu a
cabeça na parede tentando se afastar dela. O cheiro de enxofre penetrava suas
narinas.
– Por favor – suplicou. – Aquele homem é teimoso para morrer, você
sabe disso. Não fiz todo o resto que prometi?
A fumaça pairava a centímetros de seu rosto.
“E quanto a Maria Estrela?”
Ed Tempestade piscou várias vezes.
– Aquilo foi traição – lembrou, com desgosto.
Batidas distantes fizeram a fumaça recuar um palmo, como se olhasse
para trás.
“Parece que precisam do seu rabo inútil lá em cima. Vou lhe dar uma
última chance para provar seu valor, Ed Tempestade. Se tiver sucesso, nosso
negócio estará concluído e deixarei que siga seu caminho. Se falhar, não o
protegerei mais, e pode aguardar uma eternidade perdido nesses túneis como
um de meus escravos sem mente.”
Ed Tempestade respirou fundo.
– Dê-me o que preciso – concordou.
A fumaça avançou, penetrando suas narinas e sua boca, enchendo
seus pulmões de gases tóxicos e enxofre. Ed Tempestade teve um acesso de
tosse violento. Ao abrir os olhos, estava de volta a seu próprio corpo, num
quarto mal-iluminado, cheio de garrafas vazias e coberto por uma névoa de
álcool. Sentia-se tonto, de ressaca e cansado da vida miserável que levava.
No entanto, não podia se dar ao luxo de ficar deprimido. Batidas na porta
exigiam sua atenção.
– Ed Tempestade? – chamou alguém do lado de fora. – Está aí
dentro?
Aquela voz lhe era familiar, mas demorou um momento para
conseguir identificá-la. Komodo, o negro que substituíra Berne como chefe
de segurança do coronel Olho de Cobra, um sujeito grande e aterrador, outro
idiota com o qual Ed Tempestade estava cansado de lidar. Ele pegou uma
garrafa pela metade na cabeceira da cama e deu um longo gole antes de
responder:
– O que foi agora? Será que não posso ter uma noite de sossego que
seja?
– Peço perdão pelo inconveniente – continuou Komodo. – Mas o
coronel Olho de Cobra requer sua presença imediata no escritório.
Ed Tempestade colocou uma calça e se levantou, esfregando os olhos.
Caminhou até a porta, abriu-a e encarou Komodo, que se apresentava em
seus tradicionais trajes militares, como de costume. Ed Tempestade puxou o
zíper da braguilha.
– É bom que seja importante – rosnou. – Estou cansado de ser
incomodado por tipos como você.
Komodo o encarou, de olhos semicerrados, e ofereceu um pequeno
sorriso, de quem sabia das coisas.
– Oh, acredito que você logo me agradecerá por tê-lo acordado –
garantiu.
Ed Tempestade virou o pescoço, desconfiado.
– É mesmo? Por que? O que aconteceu?
Komodo colocou as mãos nas costas, parecendo bem relaxado.
– Já ouviu falar dos Ratos do Deserto?
Ed Tempestade pegou uma camisa amassada e a colocou sobre o peito
nu, fechando os botões um por um.
– Não são aqueles mercenários que atuam nas praias tóxicas? Sempre
achei o nome do grupo apropriado, para um bando de psicopatas capazes de
matar as próprias mães por uns trocados. Bom, por que estamos falando sobre
esses canalhas?
– Porque esses canalhas estão nos esperando no escritório do coronel
– explicou Komodo. – Eles vieram até aqui reclamar uma recompensa.
Os olhos de Ed Tempestade se abriram, em sinal de alerta.
– Precisamos de você para identificar se a cabeça que eles trouxeram
pertence mesmo ao vilão Tião Peixeira.
2
A expressão de surpresa ficou impressa nos olhos azuis e opacos do
morto. A pele se encontrava levemente acinzentada. A boca escancarada
exibia uma língua roxa, miúda e ressecada, e estava sem dois dentes,
provavelmente arrancados na luta com seus executores. O nariz era grosso e
parecia ter sido quebrado mais de uma vez, mas a cabeça dentro da caixa
guardava uma semelhança magnífica com o retrato falado do bandido
conhecido como Tião Peixeira.
O coronel Olho de Cobra contemplava a cabeça, iluminada pelo fogo
que queimava na lareira, com uma expressão meditativa.
– E então? – quis saber um dos homens que aguardavam a avaliação
do coronel. – Podemos conversar sobre aquelas cem peças de ouro?
O coronel Olho de Cobra levantou os olhos para seus visitantes, três
representantes do grupo mercenário Ratos do Deserto. O líder se chamava
Crânio e exibia um longo moicano que se mantinha ereto como a crina de um
cavalo graças a algum cosmético especial, quebrando um pouco a ilusão de
durão que procurava ostentar. Apesar do nome, Crânio parecia não ser muito
brilhante. Os olhos pequenos eram próximos demais um do outro e os lábios
leporinos indicavam uma infância difícil, a despeito de o colar de escalpos
que trazia no pescoço falar por si próprio.
Racha Coco vinha atrás dele, com os dedões enfiados nos bolsos da
calça jeans apertada e o queixo levantado, de forma arrogante. Mesmo
desarmado era considerado um cara perigoso, talvez a maior ameaça do
grupo. Sua fama vinha de esmagar as cabeças dos inimigos usando as
próprias mãos. Moreno, de careca raspada e o corpo de um fisiculturista,
Racha Coco seguia Crânio como uma sombra, agindo como os músculos do
líder magrelo. Na retaguarda vinha Fuinha, um homenzinho de cabelos
longos, bigode espetado e olhar assustado. Tinha como vantagem sua
aparência de covarde e o fato de ser traiçoeiro como o chocalho de uma
cascavel. Sua rapidez e habilidade com uma faca na mão sempre surpreendia
os inimigos. Sem contar suas mentiras, que podiam ser mais afiadas que um
punhal.
Juntos, os três mercenários contavam com mais de cinquenta mortes
confirmadas no currículo e a fama de serem matadores implacáveis. Nada
disso impressionava o coronel Olho de Cobra, que encarava o trio ansioso
com pura indiferença. Talvez achasse que a presença dos três seguranças
armados no escritório o protegesse de qualquer tentativa fútil por parte dos
mercenários de atacá-lo. Além disso, estavam no centro de sua fortaleza. Se
qualquer coisa lhe acontecesse, o trio de matadores não escaparia vivo dali.
– Tudo em seu devido tempo – respondeu o coronel. – Primeiro, eu
gostaria de saber como nosso caro Tião Peixeira perdeu a cabeça, se não se
importar.
Os lábios leporinos de Crânio se repuxaram para trás na imitação de
um sorriso.
– Eu mesmo a cortei com um machado – relatou, orgulhoso.
– Acho que ele quer saber como o encontramos, Crânio – apontou
Fuinha.
O líder dos Ratos do Deserto lançou um olhar furioso para o colega.
– Eu já ia chegar a essa parte – afirmou, voltando-se para o coronel. –
Arrancamos o paradeiro de Tião Peixeira e João Macumba de um índio, que
os abrigou por uma noite nos arredores de Cascata Seca. Ficamos sabendo
que os dois estavam se armando antes de virem para cá, fazer uma visita ao
senhor e nos adiantamos um pouco. Armamos uma armadilha na Garganta
dos Desesperados, onde esmagamos o tal João Macumba como um inseto,
derrubando uma pedra em cima dele, e perdemos quatro homens antes de
conseguir derrubar o Tião Peixeira.
– O patife me fez suar – reclamou Racha Coco com a voz rouca.
– De todo modo, o cartaz não especificava em que condições os
procurados deveriam ser entregues ao senhor – continuou Crânio, retomando
a narrativa. – Guardamos os restos do negro numa caixa que ficou lá
embaixo, mas não sobrou muita coisa para identificá-lo. Tivemos mais sorte
com o Tião Peixeira. Espero que a cabeça dele seja o suficiente para
comprovar sua identidade. Deixamos o resto do corpo para os cães selvagens
do sertão. Agora, sobre aquelas cem peças de ouro?
O coronel Olho de Cobra atiçou as brasas na lareira com um dos
ferros enfiados dentro do fogo. Havia quatro hastes metálicas com cabos de
borracha mergulhadas nas chamas.
– Você quer me convencer de que seu grupo venceu, sozinho, o
homem que pôs fogo na delegacia de Miradouro e matou oito pessoas antes
disso em Água Parada?
Crânio apontou para a caixa na mesinha de centro, irritado.
– Isso não é prova suficiente? E já lhe disse que perdi quatro homens
no combate. Queríamos matá-lo na avalanche que provocamos com algumas
bananas de dinamite, mas não demos tanta sorte.
– Ele cortou meu braço – lembrou Racha Coco, exibindo o curativo
tosco que trazia no bíceps direito.
O coronel Olho de Cobra sorriu, enigmático.
– Não duvido da palavra dos senhores – afirmou. – Mas cem peças de
ouro é muito dinheiro. Tenho certeza de que entendem minha necessidade de
uma segunda opinião antes de pagá-los pelo serviço prestado, não é mesmo?
Crânio se virou para os colegas, que deram de ombro. O líder dos
Ratos do Deserto deu um passo adiante, levantando uma sobrancelha.
– Uma segunda opinião? – perguntou, sem entender.
O coronel Olho de Cobra suspirou.
– Sobre a identidade do morto – esclareceu.
Crânio concordou.
– Isso é mesmo necessário?
De repente, a porta do escritório se abriu com violência. Ed
Tempestade adentrou o recinto, marchando em suas tradicionais roupas
negras, já sem o brilho de outrora por estarem sujas e amassadas. Komodo
seguia atrás dele, com passos apressados.
– Onde está a cabeça? – quis saber Ed Tempestade.
O coronel Olho de Cobra colocou uma das mãos no bolso e apontou
com a outra para o recém-chegado.
– Aí está meu especialista – disse, casualmente. – Venha até aqui, Ed.
Seu amigo Tião Peixeira o aguarda dentro desta caixa.
Ed Tempestade atravessou o escritório, empurrando Fuinha para fora
do caminho e olhando feio para os outros dois Ratos do Deserto. Ele parou
diante da caixa deixada na mesinha de centro e olhou longamente para dentro
dela. Todos ficaram em silêncio, de olho nas reações do matador – ou na falta
delas. Ele mantinha o rosto fechado numa carranca, sem mover um músculo
sequer, com olhos fixos na cabeça decepada. Ed Tempestade respirou fundo
uma vez e cerrou os punhos.
– E então? – incentivou o coronel Olho de Cobra. – É ele?
Ed Tempestade levantou a cabeça para o anfitrião, mas não
respondeu. Virou-se e caminhou na direção de Crânio, invadindo o espaço
pessoal do líder dos Ratos do Deserto até que os rostos dos dois se
encontrassem a poucos centímetros de distância. Os olhos do homem de preto
relampejavam e fizeram com que Crânio se afastasse deles,
involuntariamente.
– Deixe-me adivinhar – começou Ed Tempestade, colocando a mão
gentilmente na nuca do homem à sua frente e mudando de tom. – Foi você
quem teve a ideia idiota de vir até aqui, no meio da noite, numa tentativa
estúpida de roubar o ouro do coronel Olho de Cobra, certo?
Crânio tentou se livrar do braço que segurava sua cabeça, mas os
dedos de Ed Tempestade se recusavam a largar o couro cabeludo dele.
– Não sei do que está falando – defendeu-se o líder dos Ratos do
Deserto. – Isso é jeito de tratar visitas? Quem você pensa que é? Me larga!
Racha Coco deu um passo à frente, de punhos cerrados.
Imediatamente, os seguranças apontaram as armas para ele, que recuou no
mesmo instante. Ed Tempestade puxou os cabelos de Crânio para trás e
apontou o indicador para o rosto dele, exigindo sua atenção.
– Meu nome é Ed Tempestade – respondeu. – Cresci ao lado de Tião
Peixeira e quer saber uma coisa engraçada? Ele não tinha cabelos cacheados
nem mesmo castanhos, como a cabeça do pobre-coitado dentro daquela
caixa. Só que ninguém mencionou isso nos cartazes de procurados
espalhados por aí, não é mesmo? Afinal, ele atacou aquela delegacia de
chapéu.
Os olhos de Crânio se moviam de um lado para outro em busca de
opções.
– Eu posso explicar...
Ed Tempestade, todavia, não estava disposto a ouvir explicações,
como a cabeçada que deu na cara do líder dos Ratos do Deserto deixou bem
claro. Crânio deu dois passos para trás, com sangue escorrendo pelo nariz.
Nisso Racha Coco agiu por puro instinto, esquecendo-se das armas apontadas
em sua direção e partindo como um trator para cima de Ed Tempestade. O
coronel Olho de Cobra fez um sinal para que os homens não atirassem,
interessado no resultado daquela briga. Racha Coco tentou acertar o homem
de preto com um soco no rosto, mas não conseguiu. Ed Tempestade se
desviou do golpe com facilidade, acertando uma cotovelada na garganta do
inimigo. Foi o que bastou para tirá-lo de combate.
– Ele quebrou beu dariz – reclamava Crânio, com ambas as mãos a
tentarem parar o sangramento. – O baldito quebrou beu dariz!
Fuinha apareceu por trás de Ed Tempestade, passando um garrote
pelo pescoço dele. O mercenário traiçoeiro dera um jeito de esconder a arma
na revista antes de entrar no escritório do coronel Olho de Cobra e,
obviamente, sabia como usá-la. Ed Tempestade mal teve tempo de pôr dois
dedos entre o arame e o pescoço antes de o laço se fechar para sufocá-lo.
– Fica quieto, peste – ordenou Fuinha, apertando o nó. – Isso vai te
ensinar a não se meter com os Ratos do Deserto!
Ed Tempestade não conseguia responder. Pontos negros dançavam
diante de seus olhos. Ele precisava reagir rápido, caso contrário desmaiaria
em poucos minutos. Usando as forças que lhe restavam, o homem de preto
dobrou os joelhos e usou o próprio corpo como alavanca para lançar o
inimigo de costas contra uma cadeira, que se fez em pedaços ao receber o
impacto do corpo de Fuinha. Dois mercenários estavam fora de jogo. Faltava
um.
Livre do garrote, Ed Tempestade procurava recuperar o fôlego
quando um soco o acertou no queixo.
– Vou acabar com sua raça, seu berda – berrou Crânio, partindo para
o ataque.
Para a surpresa do líder dos Ratos do Deserto, no entanto, Ed
Tempestade pegou o segundo soco no ar, imobilizando o punho cerrado com
dedos que pareciam feitos de ferro que logo começaram a comprimir a mão
imobilizada como um torno. Crânio gemeu de dor, levando um dos joelhos ao
chão. O homem de preto continuou a apertar até ouvir o estalo nítido de ossos
quebrando. O mercenário gritou de dor, de joelhos e encolhido diante do
inimigo.
– Pare – suplicou Crânio. – Por favor, eu me rendo.
Com a mão livre, Ed Tempestade limpou os lábios, levemente
ensanguentados, mas não largou o mercenário nem diminuiu a pressão sobre
seu punho. Um fogo invisível parecia queimar dentro de seus olhos
castanhos.
– Tião Peixeira devora homens como você no café da manhã – disse
com a voz rascante. – E quer saber outra coisa engraçada? Eu também.
Em seguida, Ed Tempestade fechou a mão sobre a traqueia de Crânio
e o levantou com um braço só, usando o peso do mercenário para sufocá-lo.
– Já chega, Ed – ordenou o coronel Olho de Cobra, finalmente
decidindo interferir na briga.
Ed Tempestade se virou para o anfitrião, com o rosto tomado pela
fúria selvagem rapidamente retomando a racionalidade de seus períodos de
calma. Largou Crânio, que despencou como um saco de bosta, tossindo e
massageando o pescoço. O homem de preto cuspiu na lateral do rosto do
mercenário antes de se afastar.
– Ele é todo seu – afirmou para o coronel.
Crânio olhou ao redor. Tanto Racha Coco quanto Fuinha se
recuperavam da surra, mas não demonstravam nenhum espírito de luta. O
líder dos Ratos do Deserto se voltou para o coronel Olho de Cobra, que
continuava a remexer a fogueira com um daqueles ferros enterrados na brasa.
– É verdade, Crânio? – perguntou numa voz calma e ponderada. –
Você mentiu para mim?
O líder dos Ratos do Deserto se apressou em responder:
– Dão, senhor – negou. – Quer dizer, pode ser que eu e beus hobens
tenhabos dos enganado, bas realbente achabos que aquele doido era o Tião
Peixeira. O senhor precisa acreditar em dós.
O coronel Olho de Cobra retirou o ferro de dentro do fogo, admirando
a letra M incandescente na ponta do instrumento, erguido no ar para que
todos pudessem dar uma boa olhada nela em seu esplendor alaranjado.
– Oh, mas acredito em vocês – afirmou o coronel. – Nenhum dos três
me parece tão corajoso a ponto de entrar na minha casa para contar uma
mentira deslavada dessas, como se eu fosse uma puta que vocês pretendiam
comer de graça.
Crânio se colocou de joelhos, entrelaçando os dedos numa súplica
desesperada.
– Cobetebos um erro, senhor – admitiu. – Probeto que trarebos a
cabeça do verdadeiro Tião Peixeira se dos deixar ir embora.
O coronel Olho de Cobra assentiu, parado em frente ao mercenário
suplicante.
– Ed Tempestade?
O homem de preto deu uma chave de braço em Crânio, imobilizando-
o enquanto puxava seu moicano para trás, deixando a testa bem exposta.
– Isso é o que acontece com quem mente para a gente – sussurrou
para o outro.
O coronel Olho de Cobra baixou o ferro com a ponta incandescente.
– Segure-o firme agora – recomendou.
Crânio começou a se debater.
– Dão – reclamou. – Pelo abor de Deus, dão! Dão! Dão!
O coronel Olho de Cobra não lhe deu ouvidos e pressionou a ponta do
ferro incandescente contra a testa do líder dos Ratos do Deserto, que berrou
de dor com todas as forças que lhe sobravam. Racha Coco e Fuinha
observaram a cena assustados, cercados por Komodo e outros soldados
armados. O cheiro de carne queimada subiu junto com um chiado arrepiante.
Demorou apenas um momento. Então, o coronel Olho de Cobra retirou o
ferro para revelar o enorme M estampado na testa de Crânio, que balbuciava
incoerências, com um fio de saliva escorrendo pela boca aberta. Quando Ed
Tempestade o soltou, o homem desabou outra vez, sem forças para mexer um
músculo sequer. O coronel se virou para os outros dois mercenários.
– Agora todos saberão que o líder de vocês é um mentiroso
imprestável – decretou. – Levem esse traste inútil daqui e não voltem a
colocar os pés na minha propriedade, a menos que queiram ter a cabeça
separada dos seus pescoços imprestáveis, entendido?
3
Os Ratos do Deserto não precisaram de maiores incentivos para pegar
seu líder e partir com os rabos entre as pernas. Um soldado se encarregou de
recolher a cabeça decepada e levá-la embora. Nada disso foi suficiente para
acalmar os ânimos de Ed Tempestade, que ainda fumegava de raiva. O
coronel Olho de Cobra fez um sinal para que Komodo e o restante dos
soldados deixassem o escritório enquanto ele servia uma dose de uísque para
si mesmo e outra para seu hóspede.
– Lamento tê-lo acordado por conta dessa bobagem – desculpou-se,
oferecendo o copo de uísque como uma oferta de paz.
Ed Tempestade aceitou a bebida, que tomou num só gole.
– Tudo bem – respondeu, de mau humor. – Ao menos tive a
oportunidade de me exercitar, mesmo que essa cambada de frouxos não tenha
dado quase nenhum trabalho. Essa demora para dar cabo de Tião Peixeira
está me deixando louco.
O coronel Olho de Cobra se sentou numa poltrona próxima ao fogo,
bebericando o uísque sem a urgência do hóspede.
– Acho que começo a entender como se sente, meu caro – comentou.
Ed Tempestade se sentou numa poltrona de frente para o anfitrião.
– Seu amigo ainda não conseguiu nenhuma pista?
O coronel Olho de Cobra bufou, balançando a cabeça.
– Nada de útil – respondeu. – Desde que o maldito Tião Peixeira
voltou dos mortos, não consigo arrancar uma informação que preste do meu
associado. Deve ser culpa do tal João Macumba. Desconfio de que seja um
bruxo poderoso, mas não entendo o que pode tê-lo levado a se associar contra
nosso inimigo em comum.
Ed Tempestade balançava a perna sobre o braço da cadeira, apoiando
a cabeça numa das mãos, pensativo.
– Também não entendo porque Tião Peixeira está demorando tanto
para vir ao meu encalço – avaliou. – Ele não costuma ser sutil. A essa altura,
já devíamos ter alguma notícia de seu paradeiro.
O coronel Olho de Cobra assentiu, dando mais um gole no uísque.
– Seu mestre não pode nos ajudar?
Ed Tempestade se remexeu na poltrona, balançando a cabeça,
claramente incomodado com a pergunta.
– Na verdade, recebi uma visita dele antes da reunião – revelou.
O coronel se aprumou na poltrona.
– O que ele disse?
Ed Tempestade cruzou os braços, enterrando o queixo no peito.
– Nada de útil – respondeu, repetindo as palavras do coronel. – Só sei
que está furioso com a falta de resultados e me deu uma última chance de
ajustar as contas.
O coronel Olho de Cobra balançou o copo, fazendo o restinho de
uísque dar voltas e mais voltas pela circunferência que lhe cabia.
– Consultarei meu associado novamente daqui a pouco– concedeu. –
Talvez ele nos traga boas notícias dessa vez.
Ed Tempestade fez uma careta, levantando-se, dando a reunião por
encerrada.
– A esperança é a última que morre, certo?
5
De todos os residentes do Ninho da Serpente, nenhum contava com
tantas regalias quanto o pequeno Jiboia, último filho vivo do coronel Olho de
Cobra. Se bem que chamá-lo de pequeno era um eufemismo, visto os 160
quilos do garoto que passava os dias trancado no quarto jogando videogames
numa das últimas televisões em funcionamento do mundo. Os empregados
viviam levando bolos e doces para o consumo do príncipe, que só parava de
jogar para devorar as guloseimas cujos farelos se espalhavam pelas roupas,
invariavelmente manchadas de chocolate, catchup e outros elementos
misteriosos.
Era para o quarto dele que Ed Tempestade se dirigia sempre que
ficava entediado. Não por realmente gostar do garoto, que julgava um
preguiçoso de marca maior, mas pelo fato de o rapaz ser o jogador mais
habilidoso que já conhecera. Nem antes da Grande Guerra, quando não
faltavam televisões e videogames em funcionamento na face da Terra,
encontrou alguém capaz de derrotá-lo em tantos jogos diferentes. Além disso,
as partidas o distraíam dos problemas que o perseguiam aonde quer que
fosse. Por isso, bateu na porta do pequeno Jiboia naquela manhã.
– Está aberta – berrou uma voz lá de dentro.
Ed Tempestade girou a maçaneta e entrou. O quarto se encontrava
bagunçado, como de costume, com roupas espalhadas pelo chão, junto de
pratos e copos sujos. Um cheiro de chulé permeava o ambiente. O pequeno
Jiboia estava sentado no chão, diante da televisão, na qual um gorila
avançava por cenários coloridos derrubando jacarés humanoides com
rolamentos e conquistando bananas pelo caminho.
– Fala, campeão – cumprimentou Ed Tempestade. – Tem lugar para
mais um?
Jiboia se virou para o amigo, sorrindo como um dos macacos do jogo.
– Onde joga um, jogam dois – respondeu, alegre.
Ed Tempestade se sentou ao lado dele, pegando o outro controle
enquanto o garoto trocava a fita, optando por um jogo de lutas, cheio de
personagens para escolher e golpes especiais para eliminar os oponentes.
– Espero que esteja preparado para levar uma surra – alertou Jiboia,
animado.
– Garoto, você é o único que consegue me derrubar, mas desta vez
vou fazê-lo suar que nem um porco – brincou Ed Tempestade.
Os dois adentraram uma arena virtual. Ed Tempestade controlava um
cara forte, de quimono e faixa vermelha prendendo os cabelos arrepiados.
Jiboia escolheu um personagem gordo, vestido com uma saia azul e branca,
que já começou o jogo distribuindo tapas num de seus golpes especiais. Ed
Tempestade se defendeu como pôde, procurando acertar alguns golpes, mas
Jiboia era um jogador muito mais habilidoso. Ele venceu dois rounds sem
precisar se esforçar muito.
– O que foi mesmo que você disse? – perguntou após a primeira
vitória.
– Que na próxima acabo com sua raça – prometeu Ed Tempestade.
Ele, porém, levou outra surra, apesar de ter conseguido desferir alguns
bons golpes. O pequeno Jiboia ria e contava piadas. Normalmente, Ed
Tempestade relaxava e esquecia os problemas durante as partidas. Mas não
naquele dia. Fora os imprevistos noturnos com os Ratos do Deserto, o
homem de preto acordou com um gosto ruim no fundo da garganta e a
sensação de que havia algo errado no ar. Não sabia exatamente o que era, até
que percebeu a movimentação de empregados no corredor, uma vez que
havia esquecido a porta do quarto aberta. Ele se virou e notou outra coisa
estranha, que lhe escapou num primeiro momento.
– Onde está o Leo Gecko?
Leo Gecko era um velho leão de chácara que trabalhava para o
coronel Olho de Cobra havia mais de trinta anos e já cumprira todo tipo de
função. Nos últimos anos, encontrava-se na posição de guarda-costas pessoal
do filho do chefe, um trabalho tedioso e monótono, mas que, como um
cachorro idoso, ele não abandonava por nada no mundo. Ed Tempestade
costumava achar graça do velho, olhando-o torto sentado numa cadeira no
fundo do quarto, a mão descansando no coldre da arma, como se o homem de
preto fosse uma ameaça para o garoto. O pequeno Jiboia deu de ombros.
– Meu pai mandou chamá-lo logo cedo – relatou, desinteressado.
Na televisão, o personagem de Ed Tempestade era derrotado
novamente.
– É mesmo?
O homem de preto largou o controle e se levantou.
– Já vai? – quis saber Jiboia, procurando não parecer ansioso demais.
Ed Tempestade sabia que o rapaz o deixaria ganhar a próxima partida,
caso continuassem o jogo. Era preciso manter o interesse do fraco adversário,
afinal. Jogar com alguém era sempre melhor do que jogar sozinho, mesmo
que o outro jogador fosse pior do que um macaco maneta.
– Volto daqui a pouco – prometeu Ed Tempestade, bagunçando o
cabelo do garoto. – Só quero ver que confusão é essa lá fora.
Os corredores do castelo, de fato, andavam bem movimentados
naquela manhã e Ed Tempestade logo descobriu o motivo ao passar por uma
das janelas, de onde viu as tropas reunidas em frente à propriedade. Os
soldados do coronel se armavam e tiravam veículos da garagem, prontos para
partirem rumo a mais uma guerra. O homem de preto achou aquilo estranho.
Não enxergava motivos para tamanha mobilização e ficou curioso. Encontrou
Komodo ladrando ordens no pátio principal e foi falar com ele.
– Qual o motivo para toda essa algazarra? – quis saber.
Komodo se virou para o homem de preto, de peito estufado.
– Estou levando as tropas para conter uma rebelião em Boi Bravo e
Ventos Uivantes – anunciou. – O coronel me concedeu o título de major logo
após o café da manhã – completou, todo orgulhoso.
– Bom para você – cumprimentou Ed Tempestade. – Mas que
rebelião é essa da qual nunca ouvi falar? Tem algo a ver com a situação em
Miradouro?
– Você, recruta! – bradou Komodo, assumindo uma expressão
furiosa. – Onde está seu capacete? Olhe esse cinto desabotoado! Aprume-se,
homem, ou quer que o inimigo pense que somos todos desleixados que nem
você?
O recruta recuou, arrumando as calças e dando desculpas a respeito
do capacete. Komodo se voltou para Ed Tempestade.
– Olha, não tenho autorização de comentar assuntos militares com
hóspedes do coronel. Converse com ele, se quiser mais informações. Agora,
se me dá licença, tenho uma centena de soldados para disciplinar, ok?
Ed Tempestade saiu do caminho e Komodo partiu, pisando pesado e
chamando a atenção dos recrutas. O poder subiu rapidamente à cabeça do
chefe de segurança substituto. O homem de preto coçou o queixo,
preocupado. Uma mobilização como aquela deixaria o castelo desguarnecido,
mas o coronel Olho de Cobra devia saber o que estava fazendo, portanto,
retornou ao quarto do pequeno Jiboia.
– Está tudo bem lá fora? – quis saber o garoto.
Ed Tempestade deu de ombros, pegando o controle.
– Nada que seu pai não possa resolver sozinho – respondeu.
Os dois começaram outra partida, e mesmo que Jiboia se esforçasse
para deixar Ed Tempestade ganhar, o homem de preto não conseguia se
concentrar no jogo. Sentia como se estivesse deixando passar algo
importante, mesmo vital, e não importava o que fizesse: nada lhe tirava a
sensação de que o pior ainda estava por vir.
6
Ed Tempestade estava quase pegando no sono quando escutou passos
apressados no corredor e alguém bateu em sua porta. Ele levantou a cabeça,
confuso.
– Quem é? – gritou sem sair da cama.
– O novo chefe de segurança, mestre Tempestade – respondeu uma
voz abafada do lado de fora. – O coronel Olho de Cobra requisita a presença
imediata do senhor em seu escritório.
Ed Tempestade dispensou o lençol com um movimento rápido das
mãos.
– Porra! Agora toda noite a mesma maluquice? O que foi desta vez?
– Notícias de Miradouro – respondeu a voz do lado de fora.
Ed Tempestade franziu o cenho, vestindo a calça. Conhecia aquela
voz direta e monótona de algum lugar, mas não conseguia dizer exatamente
de onde. Talvez fosse por conta da hora ou do sono. De todo modo, precisava
se arrumar para mais uma reunião noturna. Decidiu que dessa vez levaria a
espada, só por garantia. Se fosse mais algum mercenário clamando a morte
de Tião Peixeira, ele não deixaria o castelo com a cabeça pregada ao pescoço.
– Estou me arrumando – avisou, enfim saindo da cama. – Só vai levar
um minuto.
– Eu aguardo – respondeu o novo chefe da segurança.
Dava para ver a sombra dos pés do homem pelo vão entre a o chão e a
porta. Ed Tempestade colocou a camisa que estava menos amassada e passou
a fechar os botões, procurando descobrir a identidade de seu visitante
noturno. Sabia que conhecia aquela voz de algum lugar, assim como os
trejeitos do sujeito. Poucas pessoas o chamavam de mestre Tempestade,
menos ainda com o mesmo desdém que detectou no homem do outro lado da
porta. A resposta a tal enigma estava na ponta da língua, porém ele não
conseguia desvendá-la de maneira nenhuma.
Após fechar o cinto e embainhar a espada, enfim abriu a porta e deu
uma longa risada ao notar o velho de olhos grandes, permanentemente
semicerrados, e boca larga que o aguardava com a paciência de uma
tartaruga.
– Leo Gecko – cumprimentou, animado. – Quer dizer que o chefão
decidiu promovê-lo como o substituto do substituo do chefe de segurança?
O velho apenas piscou e encarou o hóspede com indiferença.
– Se o senhor puder me acompanhar...
Leo Gecko seguiu na frente do homem de preto, que só então
percebeu que o novo chefe de segurança caminhava como um mordomo,
certamente uma das muitas funções que ocupara no passado. A ideia o
divertia, mas ainda precisava descobrir o que estava acontecendo.
– Quais são as notícias de Miradouro? – interpelou.
– Um de nossos tenentes acaba de retornar de lá – revelou Leo Gecko.
– Ele exigiu uma audiência especificamente com o coronel e o senhor.
Também disse que não podia dar detalhes a mais ninguém. Mas posso lhe
dizer que ele traz uma caixa grande a tiracolo.
7
Para surpresa de Ed Tempestade, ele acabou esbarrando no corredor
com o coronel Olho de Cobra, que vinha acompanhado de uma versão mais
jovem de Leo Gecko. Pelo caminho de onde vinha, o homem de preto
assumiu que o coronel devia estar no jardim de inverno quando recebeu o
chamado. Mesmo porque se encontrava vestido com jeans e uma camiseta
branca, roupas informais que quase nunca usava em diante dos subordinados
ou de eventuais visitas.
– Coronel – cumprimentou Ed Tempestade. – Já sabe do que se trata
essa reunião noturna?
O coronel Olho de Cobra seguiu pelo corredor sem diminuir o passo.
– Sei tanto quanto você – confessou. – Só espero descobrir o que
aconteceu com Berne. Afinal, o tenente Lucas Guará estava na companhia
dele quando desapareceu.
A comitiva seguiu em frente em silêncio. No entanto, Ed Tempestade
ficou curioso a respeito do homem que acompanhava o coronel. A
semelhança dele com Leo Gecko era grande demais para passar despercebida.
Desse modo, aproximou-se do chefe de segurança e cochichou:
– Quem seria nosso amigo ali?
O chefe de segurança respondeu no mesmo tom:
– Meu filho, Leo Gecko Jr. Posso estar à frente da segurança do
castelo, mas julguei melhor deixá-lo com a responsabilidade de proteger o
coronel, mesmo porque não sou mais tão rápido quanto antes.
Ed Tempestade ficou impressionado.
– Você é mais esperto do que parece, hein, velhinho?
Leo Gecko o olhou de soslaio.
– Mais esperto que você, com certeza.
Outros soldados apareceram ao contornarem mais um corredor. Eles
guardavam a porta do escritório com caras de sono e tédio, mas se
aprumaram e prestaram continência quando viram quem se aproximava. O
coronel Olho de Cobra não lhes deu nenhuma atenção, apontando com o
queixo para a passagem, que foi imediatamente aberta por um dos militares.
A comitiva adentrou o escritório, onde o tenente aguardava na companhia de
outros três soldados, que o vigiavam. A fogueira queimava intensamente na
lareira.
O coronel Olho de Cobra parou bruscamente após dar uma boa olhada
no tenente. Ed Tempestade conseguia compreender o motivo daquilo. O
homem diante deles não parecia normal. Tinha os olhos muito abertos e
dilatados, como se estivesse sob efeito de alguma droga, e a pele seca e
esbranquiçada. Além disso, movimentava-se lentamente, de forma mecânica,
como se brigasse com o próprio corpo para fazer o que a mente lhe ordenava.
– Meu Deus! – exclamou o coronel. – O que houve com o senhor,
tenente?
Lucas segurava uma caixa debaixo do braço esquerdo e apontou para
o homem de preto com a mão direita. Os dois nunca haviam se visto antes.
– Ed Tempestade?
O homem de preto assentiu e Lucas se voltou para a caixa, jogando a
tampa fora. Os homens no escritório se entreolharam, sem entender nada.
Com gestos mecânicos e bruscos, o tenente meteu a mão direita dentro da
caixa e tirou algo lá de dentro. Ed Tempestade demorou um instante para
compreender que o sujeito segurava uma cabeça decepada, que não se
assemelhava em nada com Tião Peixeira. Não parecia nem humana. Todos os
presentes, todavia, a reconheceram de imediato, antes mesmo de o tenente
jogá-la aos pés do coronel Olho de Cobra, que recuou com uma expressão de
puro terror. Um cego seria capaz de reconhecer um rosto monstruoso como
aquele, com os cabelos brancos arrepiados e a pele cheia de marcas
características.
A cabeça decepada pertencia a Berne, também conhecido como
Dragão Albino.
– Com os cumprimentos de Peixeira e Macumba – anunciou o tenente
Lucas Guará, sacando as pistolas que trazia na cintura e que ninguém se
preocupou em recolher antes da audiência.
Foi nesse momento que se iniciou o caos no Ninho da Serpente.
Capítulo 13
Balas, espadas e maldições
1
Nos filmes de antigamente, sempre havia aquela cena em que os personagens
se movimentavam em câmera lenta para oferecer maior dramaticidade aos
espectadores. Geralmente, tratava-se de cenas de ações, nas quais poucos
segundos representavam uma eternidade, com protagonistas sendo feridos e
figurantes morrendo por todo lado. A vida não tem tais recursos
cinematográficos, conquanto, em retrospecto, muitas pessoas sejam capazes
de lembrar detalhes que passariam despercebidos num primeiro instante e
remontar um cenário traumático com a perfeição de um diretor de cinema,
como no caso do ataque ao Ninho da Serpente.
O lançamento da cabeça de Berne, o Dragão Albino, aos pés de seu
senhor deixou todos os presentes em estado de choque. Não só por se tratar
de uma traição, mas por ser algo completamente inesperado. Todos olhavam
para a cabeça decepada enquanto o tenente Lucas Guará sacava suas pistolas
– ironicamente, como se estivesse em câmera lenta. Ed Tempestade levantou
o rosto, com a adrenalina correndo nas veias, e aumentando seu grau de
percepção. Estranhamente, ele voltou a se perguntar o motivo pelo qual o
tenente se movimentava de modo tão errático. Até que ele disparou o
primeiro tiro.
Uma bala passou voando próxima à cabeça de Ed Tempestade,
errando o alvo por questão de milímetros. O homem de preto se jogou atrás
de uma poltrona por puro instinto. O tenente Lucas Guará continuou atirando.
O segundo disparo tinha como alvo o coronel Olho de Cobra, mas Leo Gecko
Jr. tirou o chefe da linha de tiro e levou uma bala no ombro. Os guardas que
cercavam o tenente saíram da imobilidade em que se encontravam e
levantaram suas armas. Um deles disparou, errando completamente o
inimigo, mas acertando a barriga de um colega do outro lado. Outro cravou
dois tiros no braço do tenente, que parecia não se incomodar com aquilo.
Ed Tempestade observou o tenente se virar lentamente, levar mais
dois tiros no peito, não cair, e derrubar seu atacante com um tiro certeiro no
meio da testa. O novo chefe de segurança, Leo Gecko, podia ser mais lento
que os demais, mas também acertou dois tiros na barriga e na perna do
tenente. Apesar de ferido, Leo Gecko Jr. aproveitou a distração para esconder
o chefe atrás de um móvel. Lucas continuava a massacrar seus inimigos com
a lentidão de uma tartaruga. O último guarda armado parecia nervoso demais
e não conseguia acertar um tiro sequer no tenente, que não teve o mesmo
problema ao disparar contra ele.
Ao agir de tal maneira, contudo, o tenente cometeu um erro: deu as
costas para Ed Tempestade, que sacou a espada e, rápido como um felino,
cruzou os cinco metros que o separavam do inimigo e cortou seu pescoço
com um golpe certeiro. Assim, a luta chegou ao fim, com a cabeça de Lucas
rolando num tapete caro, com os olhos ainda abertos e vidrados e o corpo
desabando com um som abafado. Eliminada a ameaça, Ed Tempestade
contemplou o cadáver e o sangue grosso e negro que se esvaía lentamente do
pescoço cortado.
O coronel Olho de Cobra saiu de seu esconderijo improvisado. Os
guardas que estavam do lado de fora entraram no escritório, de armas em
punho, chegando tarde demais para o tiroteio. Ed Tempestade os encarou e
levantou a mão antes que alguém cometesse um erro.
– Não atirem – ordenou. – Já dei cabo do bastardo.
Os guardas baixaram as armas, confusos. O soldado que levou o tiro
na barriga gemia de dor, caído no chão. O coronel se aproximou do cadáver
sem cabeça do traidor.
– Lucas era um dos meus soldados mais leais – comentou, ainda em
choque. – Não posso imaginar o que o tenha levado a fazer uma coisa dessas.
– Não sei se ele era mais o mesmo, coronel – consolou Ed
Tempestade. – Olhe como o sangue dele parece podre e coagulado, como se
ele já estivesse morto.
– Mas isso é impossível.
– A não ser que ele fosse um instrumento de nossos inimigos.
– Peixeira e Macumba – concordou o coronel Olho de Cobra. – Foi o
que ele disse antes de começar a atirar.
– Sabe o que isso significa?
– O quê?
– Que esse idiota era provavelmente só uma distração – respondeu Ed
Tempestade. – E que Peixeira e Macumba já se encontram aqui!
Antes que o coronel Olho de Cobra pudesse reagir, e como uma
comprovação das palavras do homem de preto, uma enorme explosão do lado
de fora do castelo arrebentou as vidraças do escritório e ensurdeceu
momentaneamente os homens ainda abalados com a traição do tenente Lucas
Guará. Eles levaram um instante para se recompor quando perceberam a bola
de fogo que se levantava do setor de abastecimento, provocando outras
explosões menores, de carros, caminhões e jipes. O pânico tomou o olho bom
do coronel Olho de Cobra ao ver o fogo consumir todo o combustível e os
automóveis que lhe restava. Então, as luzes do castelo se apagaram:
Peixeira e Macumba haviam chegado no Ninho da Serpente.
2
Luzes de emergência se acenderam com a queda da energia,
mergulhando o escritório e os demais recintos do castelo numa vermelhidão
sanguínea. O coronel Olho de Cobra assistia a tudo atordoado, sem parecer o
homem implacável que todos ali conheciam. Ed Tempestade notou o
problema de imediato. Graças ao associado, que sempre previra tragédias
futuras, o coronel não sabia como reagir quando alguém o pegava de
surpresa. Esse era um problema do qual o homem de preto não sofria.
– Eles derrubaram o gerador principal – berrou, chamando a atenção
dos soldados. – Isso significa que ao menos um dos malditos se encontra na
casa de máquinas do castelo. O que vocês estão esperando para irem até lá
dar uma surra nele? Um convite?
Nisso Leo Gecko pareceu lembrar que ainda era o chefe de segurança
do castelo e deu um passo à frente.
– Vocês ouviram o homem – gritou. – Quero cinco homens bem
armados imediatamente na casa de máquinas! Cerquem o lugar e não deixem
o inimigo escapar! Convoquem o restante da guarnição para o castelo! Selem
todas as saídas e vasculhem cada centímetro deste lugar! Tragam-me a
cabeça dos invasores ou é a de vocês que vai rolar antes de esta noite acabar!
Os soldados prestaram continência e se colocaram em movimento. O
coronel Olho de Cobra ainda parecia perdido, assistindo com o olho vidrado
ao incêndio que se alastrava pelo setor de abastecimento. Ed Tempestade o
puxou gentilmente pelo ombro.
– Vamos, coronel – chamou. – Precisamos reagir.
– Eles tomaram meu precioso combustível, Ed – comentou, perplexo.
– O que será da minha poderosa frota de automotivos sem combustível?
– Podemos pensar nisso amanhã – aconselhou o homem de preto. –
Temos problemas mais urgentes a tratar no momento.
O coronel Olho de Cobra se empertigou, recuperando a compostura.
– Tem razão – concordou. – O que faremos?
– Talvez seu associado possa nos dar um auxílio.
O coronel concordou.
– Sim, talvez ele possa nos ajudar. Vou consultá-lo imediatamente.
– Não tão depressa, coronel – rebateu Ed Tempestade, virando-se para
Leo Gecko Jr., que acabava de fazer um curativo no ombro. – E aí, rapaz,
acha que dá conta de proteger seu chefe?
Leo Gecko Jr. fechou a cara, engatilhando a pistola que trazia na mão.
– O tiro pegou de raspão – mentiu. – E estou doido para dar o troco
em quem quer que seja burro o suficiente para nos atacar dentro da nossa
própria casa.
Ed Tempestade sorriu, simpático.
– Eu não teria dito melhor – cumprimentou.
O coronel Olho de Cobra segurou o ombro do homem de preto.
– Mas e você? – quis saber. – O que vai fazer agora?
Ed Tempestade limpou o sangue escuro da espada com um pedaço de
pano.
– Acredito que finalmente eu vou ajustar as contas com um certo Tião
Peixeira.
3
Os soldados fizeram como lhes foi ordenado e cercaram a casa de
máquinas. No entanto, não puderam esperar por reforços, como indicavam os
buracos de tiro nas paredes, as poças de sangue pelo chão e os corpos
mutilados deixados para trás, com rostos congelados em expressões
aterrorizadas. Aquilo lembrava o trabalho realizado por Tião Peixeira, não
havia como Ed Tempestade negar. O silêncio reinava no grupo de soldados
que o acompanhava, o medo tomava conta das fileiras e ele não podia deixar
que se alastrasse.
– Não precisam se mijar nas calças, meninos. O bicho-papão já foi
embora – brincou. – Agora, qual de vocês pode consertar o estrago feito no
gerador?
Um dos soldados levantou a mão. Era um garoto com menos de 20
anos e o rosto medroso de um ratinho, que não buscava esconder o
arrependimento de ter se alistado.
– Muito bem, soldado, venha cá – chamou Ed Tempestade. – Qual o
seu nome, filho?
– Nicolas, senhor.
– Muito bem, Nicolas, quanto tempo você acha que leva para
restabelecer a energia e lançar luz sobre nossos problemas mais prementes?
O soldado deu de ombros.
– Depende do estrago, senhor. Uns vinte minutos. Meia hora, talvez.
– Bom, nesse caso, corte o papo-furado e comece a trabalhar, sim?
Vocês dois – apontou para uma dupla de soldados parrudos. – Acompanhem
o cabo Nicolas, para o caso de ele precisar de proteção.
Os homens obedeceram a contragosto. Estava na cara que não
gostavam de contar com Ed Tempestade no comando, mas não podiam fazer
nada a respeito disso, uma vez que o próprio chefe da segurança o colocora
na liderança do grupo de ataque enquanto garantia a segurança do legado do
coronel Olho de Cobra, fosse lá o que isso significasse.
– Quanto ao resto de vocês, não fiquem aí parados – ordenou. – Quero
pistas do paradeiro de Tião Peixeira, estão me ouvindo? Mexam-se!
Ed Tempestade deu um passo para o lado, abrindo caminho para os
soldados, e acabou pisando numa mão decepada, que chutou para longe, sem
esconder o asco. Procurava manter a calma na frente dos homens, pois não os
queria mais assustados do que já se encontravam, mas as ações de Tião
Peixeira mexiam com seus nervos e as luzes vermelhas de emergência não
ajudavam em nada, mergulhando o ambiente numa penumbra escarlate.
– Senhor – chamou um soldado num corredor paralelo. –, encontrei
uma pista, senhor. Uma trilha de sangue.
Aquilo parecia promissor. Ed Tempestade avançou até o soldado
agachado e apontou para pontos negros – uns minúsculos, outros nem tanto –
que seguiam na direção das escadas, manchando os degraus que subiam para
os andares superiores. Uma trilha lógica para um assassino em busca de
outras vítimas.
– O senhor acha que ele foi ferido?
Ed Tempestade quase riu. Era mais provável que o sangue tivesse
pingado da ponta das peixeiras de Tião, mas não diria isso aos homens.
– Se tivermos sorte...
Ele fez sinal para o restante do pelotão.
– Vamos subir em silêncio – avisou. – Mas deixem as armas
destravadas e estejam preparados para tudo, ok?
Os homens assentiram como se tivessem coreografado o movimento.
Ed Tempestade assumiu a dianteira. Eles subiram dois lances de escada e
seguiram a trilha de sangue, que pontilhava uma trilha por um longo e amplo
corredor, no fim do qual se encontrava uma enorme porta branca: a entrada
do Jardim de Inverno. Por algum motivo, as luzes de emergência não estavam
inteiramente funcionais naquele andar e tremeluziam, provocando um efeito
vertiginoso de escuridão entremeada por vermelhidão. Tião Peixeira devia ter
levado tal fato em conta ao tomar aquele caminho.
De repente, Ed Tempestade levantou o punho fechado, fazendo com
que os homens atrás dele parassem. A trilha de sangue chegava ao fim no
meio do corredor. Havia muitas portas ao redor, de ambos os lados, mas
nenhuma indicação de que o inimigo se encontrava atrás de alguma delas. O
homem de preto fez sinal para que os soldados avançassem investigando cada
um dos quartos no caminho. As luzes de emergência tremiam sem parar e
nenhuma delas indicava a saída daquele pesadelo.
O homem de preto sacou a espada, com os dedos dançando sobre o
punho prateado, e respirou profundamente ao se plantar no meio do corredor,
pronto para o combate. Os soldados entravam nos quartos em duplas,
seguindo as ordens de Ed Tempestade. Avançavam devagar e sem pressa.
Um leve fedor no ar indicava o nervosismo dos homens. Era difícil saber se
alguém havia se borrado de medo ou somente soltado os gases que lhe
comprimiam o estômago. A tensão crescia à medida que os soldados não
encontravam nada e retornavam ao corredor, prontos para entrar em outro
quarto escuro, sem saber o que esperar.
Um deles se aproximou de Ed Tempestade.
– Os quartos e as salas deste andar são conectados uns aos outros –
sussurrou. – Alguns são grandes demais, com muitos lugares para se
esconder.
– O que está tentando me dizer?
O soldado engoliu em seco.
– Que este é um bom lugar para uma emboscada – concluiu.
Ed Tempestade, porém, já havia percebido a armadilha.
– Continue vasculhando – ordenou, secamente.
O soldado se afastou, contrariado. As luzes de emergência piscavam
sem parar. Escuridão. Vermelhidão. Escuridão. Vermelhidão. Escuridão.
Vermelhidão. Os soldados seguiam encostados às paredes, arrombando
portas e adentrando os recintos com os fuzis levantados, tendo a retaguarda
protegida pelos parceiros que o acompanhavam. As revistas demoravam a se
concluir, mas invariavelmente terminavam com homens retornando ao
corredor de armas abaixadas, balançando a cabeça de um lado para o outro.
As luzes continuavam a piscar. Escuridão. Vermelhidão. Escuridão.
Vermelhidão. Escuridão. Vermelhidão.
Aquele pisca-pisca começava a provocar dores de cabeça em Ed
Tempestade, que concentrou o olhar na porta branca no fim do corredor.
Talvez Tião Peixeira tivesse se escondido no Jardim de Inverno, certamente o
melhor lugar para se preparar uma armadilha. As luzes de emergência
piscavam sem parar. A porta no fim do corredor aparecia e desaparecia,
aparecia e desaparecia, aparecia e desaparecia. Ed Tempestade virou o rosto
para cima: podia ouvir os circuitos das luzes de emergência tremendo.
Escuridão. Vermelhidão. Escuridão. Vermelhidão. Escuridão. Vermelhidão.
Voltou a olhar para a porta branca no fim do corredor.
Dessa vez, no entanto, havia o perfil de um homem destacado contra
ela.
Ed Tempestade vacilou, respirando profundamente por puro instinto.
Os soldados nem haviam se dado conta da presença do vulto parado no meio
do corredor diante deles. Talvez estivessem concentrados demais nos quartos
e nas salas que precisavam invadir para prestar atenção ao que estava bem
diante do nariz. O homem de preto piscou várias vezes, para garantir que não
estava vendo um fantasma. O estranho continuava lá, parado, de cabeça
baixa, com duas lâminas prateadas, acompanhando o comprimento de seus
braços, apontadas para baixo.
De repente, o indivíduo levantou a cabeça, e, mesmo daquela
distância, olhos azuis frios como a lua fuzilaram Ed Tempestade. Não era
nenhuma ilusão: Tião Peixeira finalmente aparecia para confrontar seu
inimigo jurado.
– Ed Tempestade – cumprimentou o homem numa voz
fantasmagórica.
O chamado tirou os soldados do estupor em que se encontravam e
todos voltaram apressados ao corredor, posicionando-se e engatilhando os
fuzis, que apontavam para o homem adiante. Tião Peixeira não lhes dava
atenção e permanecia parado, com os olhos fixos em Ed Tempestade,
enquanto as luzes de emergência piscavam sem parar. Escuridão.
Vermelhidão. Escuridão. Vermelhidão. Escuridão. Vermelhidão.
– Atirem! – ordenou Ed Tempestade sem esconder o pavor na voz. –
Atirem! Acabem com esse canalha! Atirem!
Os soldados atenderam à ordem prontamente. O corredor brilhou com
o fogo que saía do cano de suas armas e tremeu com o estrondo de seus
disparos. Nenhum deles economizava munição. Os cartuchos vazios caíam no
chão, um após o outro, e os soldados continuavam atirando. Até que Ed
Tempestade, cego pelo brilho dos disparos e pela fumaça das armas, percebeu
a bobagem que faziam.
– Parem! – ordenou, em alto e bom som.
Os soldados não lhe deram ouvidos.
– Parem! – repetiu, ainda mais alto.
As armas continuavam atirando.
– PAREM! – bradou com todo o fôlego.
Só então os soldados acataram a ordem, com um ou dois precisando
ser sacudidos por colegas para deixarem de atirar. Fumaça e enxofre
preenchiam o corredor. As luzes de emergência não paravam de piscar.
– Conseguimos? – quis saber alguém. – Ele está morto?
Ed Tempestade não respondeu. Esperava a fumaça clarear e a maldita
iluminação permitir uma visão melhor do corredor adiante, embora
desconfiasse do que fosse ver. A porta branca estava agora cheia de furos de
balas e escancarada. Paredes próximas também apresentavam danos
provocados pelo tiroteio intenso. No entanto, não importava para onde
olhasse, não havia o menor sinal de Tião Peixeira. Os soldados se
empertigaram, assustados.
De repente, um som metálico na retaguarda do grupo foi seguido de
gorgolejos e gemidos de dor. Todos se viraram. Uma sombra retalhava os
homens que haviam ficado para trás, com lâminas prateadas brilhando na
vermelhidão.
– Atrás da gente! Atrás da gente! – alertou um soldado.
Ninguém esperou por ordens dessa vez. Os soldados voltaram a abrir
fogo, sem perceber que atingiam os próprios colegas em meio ao pânico. Ed
Tempestade fez o que pode para impedi-los de serem dominados pelo
desespero.
– Não, seus idiotas! – berrou. – Parem com isso! Parem com isso
agora!
Os soldados pararam de atirar. No início do corredor, puderam ver
vários homens caídos, com pescoços cortados, braços decepados ou abatidos
por vários tiros. Ainda assim, não encontravam nenhum sinal de Tião
Peixeira. Aquele sinistro som metálico voltou a se repetir, dessa vez na
dianteira do grupo. Ed Tempestade não sabia o que fazer. A situação estava
saindo completamente de controle.
– Ali! – gritou um homem desesperado. – Ele está ali!
Os fuzis voltaram a cantar, e o brilho das armas iluminava a loucura
nos olhos dos homens. Quando pararam, viram mais um punhado de
cadáveres retalhados e crivados de balas, mas nada de Tião Peixeira.
– Ele está usando as salas para se movimentar – alertou Ed
Tempestade. – Atirem contra as paredes!
O que restava dos soldados se amontoou no meio do corredor e
passou a atirar contra paredes e portas, torcendo para que alguém desse sorte
e derrubasse aquele inimigo implacável. Era inútil, Ed Tempestade sabia.
Tião Peixeira acabaria com eles mais cedo ou mais tarde. Precisava de um
plano para sair dali, seguir para um terreno onde a vantagem fosse dele. Só
então percebeu um soldado que se escondia atrás dos outros, com um galão
de combustível nas costas. O idiota havia levado um lança-chamas para o
combate.
– Parem de atirar – ordenou, com medo de que alguém acertasse a
bomba humana no meio deles por acidente. – Economizem munição! Não
podemos perder a cabeça!
No cessar-fogo, uma sombra saltou de uma das portas abertas, cortou
a barriga de um soldado e o pescoço de outro antes de escapar por uma porta
no lado contrário do corredor. Os homens atiraram pela passagem por onde
ele desaparecera por puro reflexo. Tião Peixeira não lhes daria nem um
momento sequer para recuperar o fôlego, mas Ed Tempestade já sabia o que
fazer.
– Você! – gritou para o soldado com o lança-chamas. – Quer matar
todos nós? Passe já essa coisa para cá.
Novamente a sombra saltou de uma porta diferente, decepando a
perna de um soldado e o braço de outro. Mais tiros inúteis disparados contra a
passagem por onde ela desapareceu. Os gemidos de homens gravemente
feridos inundavam o corredor. Ed Tempestade guardou a espada, pegou o
lança-chamas e o colocou nas costas. O soldado que lhe dera a arma
balbuciava qualquer coisa sem sentido. Não tinha importância. O homem de
preto tinha um plano.
– As paredes! – ordenou, furioso. – Voltem a atirar contra as paredes!
Os homens atiraram sem pensar. Ed Tempestade aproveitou a
distração para abrir o caminho entre eles e correr para o Jardim de Inverno.
Não olhou para trás uma vez sequer. Sabia que eles eram todos homens
mortos, de qualquer maneira.
4
A escuridão no Jardim de Inverno era maior do que no restante do
castelo, uma vez que ali não haviam sido instaladas luzes de emergência. O
coronel Olho de Cobra nunca vira motivo para isso. Um exagero, certamente,
embora Ed Tempestade desejasse um pouco daquela penumbra escarlate para
poder encontrar uma trilha no meio de todas aquelas árvores, espinheiros e
mato alto. Os tiros ainda soavam no corredor, sinal de que Tião Peixeira
continuava ocupado. O homem de preto contava com alguns minutos para se
preparar.
O lança-chamas pesava em suas costas. Percebeu que os tanques
estavam cheios. Ele faria bom uso deles. Logo acendeu o bocal da arma e a
apontou para o meio do mato, do lado esquerdo da porta, pressionando
levemente o gatilho. Uma língua de fogo saltou do cano, pulando sobre as
plantas indefesas e enchendo a floresta artificial de uma luminosidade
amarela mortal. O mármore branco de Adão e Eva refletiam as chamas,
avermelhadas, conferindo um aspecto demoníaco às estátuas. Uma revoada
de pássaros exóticos levantou voo, em protestos estridentes. Outros animais
também despertaram assustados, urrando no meio das sombras, balançando
galhos e fazendo a mata farfalhar, cheia de vida. Dois pavões passaram pelo
homem de preto e escaparam pela porta escancarada.
Ed Tempestade não tinha tempo para pensar no bem-estar das
criaturas que ali viviam. Os tiros no corredor se tornavam cada vez mais
escassos, sinal de que Tião Peixeira devia estar perto de exterminar todos os
soldados. Não fazia diferença. A luz do fogo iluminava o caminho, e o
homem de preto seguiu pela trilha que o levava para longe de toda a
carnificina. Em intervalos regulares, parava para atear fogo em palmeiras,
samambaias e qualquer outra planta que surgisse pela frente. Não fazia isso
apenas para poder enxergar no escuro, e sim porque pretendia criar um
inferno particular que não só atrapalhasse seu perseguidor, como também
provocasse sua ruína.
Em pouco tempo, o incêndio começou a adquirir vida própria,
alastrando-se com avidez e ganância sobre árvores, flores e plantas rasteiras,
sem distinção. O fogo já urrava faminto quando Ed Tempestade alcançou a
escada em caracol que levava à plataforma superior, a mais de dez metros de
altura. O homem de preto lançou uma última labareda sobre a floresta antes
de dispensar o lança-chamas num canto. O peso dos galões, quase vazios,
apenas o retardaria, e a subida era longa. Começou a calcar os degraus.
– Ed Tempestade! – chamou uma voz poderosa em meio ao incêndio.
O homem de preto parou na metade da escada. Lá embaixo, entre as
chamas, um homem com as roupas sujas de sangue e as peixeiras vermelhas a
pingarem pela trilha descoberta o encarava, cheio de ódio.
– Seja homem e me enfrente, seu crápula covarde!
Ed Tempestade sentiu um calafrio e uma contração estomacal. Dez
anos de perseguições incessantes levaram os dois até aquele momento. Dava
para ver no olhar de Tião Peixeira a convicção de que aquele era o fim da
linha, mas o homem de preto não se entregaria de forma alguma.
– Pegue-me se for capaz, seu demente! – respondeu.
Tião Peixeira baixou a cabeça e seguiu rumo à escada em caracol. As
chamas se espalhavam, sem controle. Ed Tempestade voltou a subir os
degraus, cada um deles o levando para mais perto da salvação. O calor
começava a ficar intenso e a fumaça se acumulava nas abóbodas acima, mas
o homem de preto já enxergava a porta de ferro para os pavimentos
superiores do castelo. Tudo que precisava fazer era atravessar a plataforma
suspensa e escapar por ali, trancando a passagem de modo a garantir que Tião
Peixeira não tivesse a mesma sorte.
Ao chegar ao topo da escada, Ed Tempestade olhou para baixo e não
se decepcionou: Tião Peixeira começava a calcar os primeiros degraus em
seu encalço. O homem de preto sorriu, avançando com passos decididos pelo
gradeado da plataforma, protegendo o rosto da fumaça que subia quente pelos
espaços vazios, fazendo seus olhos arderem. Num instante, alcançou a porta
e, com um sorriso no rosto, girou a maçaneta e empurrou. Nada aconteceu.
Seus lábios desarmaram o sorriso. Ele tentou novamente, colocando o peso
contra a porta, que não cedeu um centímetro sequer. Podia forçar o quanto
quisesse que o resultado seria o mesmo. A fechadura estava trancada. Ele
estava preso naquele inferno junto de seu pior inimigo.
Ao perceber que a armadilha se voltava contra ele mesmo, Ed
Tempestade não conseguiu fazer nada além de gargalhar como um louco.
– Qual é a graça? – quis saber uma voz rouca atrás dele.
O homem de preto se virou lentamente. Tião Peixeira o observava
com interesse, os olhos brilhavam mais fortes do que as chamas que ardiam
abaixo. Apresentava-se em suas roupas de cangaceiro, com o chapéu ainda
intacto, não obstante o mesmo não pudesse ser dito do restante de suas
vestimentas. Sangue e vísceras sujavam a jaqueta marrom e a calça bege,
como se ele tivesse atravessado um matadouro para conseguir aquele
encontro, o que não estava muito distante da verdade. Ed Tempestade sacou a
espada com um floreio, voltando a sorrir.
– Parece que nós dois vamos morrer aqui hoje, Ventania – provocou,
apelando para um apelido de infância com o intuito de desestabilizar o
adversário.
Tião Peixeira não retribuiu o sorriso. Sacou somente uma lâmina, que
ainda brilhava prateada apesar do sangue seco que cobria boa parte de sua
superfície.
– Ventania morreu junto com meus pais – respondeu. – Meu nome
hoje é Tião Peixeira, como tenho certeza de que você não se esquecerá
jamais.
Ed Tempestade voltou a ficar sério, avançando pé ante pé, com a
espada levantada em guarda. Tião Peixeira o observava sem se mexer,
mantendo a própria arma a postos do lado do corpo, com os olhos fixos no
rosto do adversário. De algum modo, o confronto fez o homem de preto
lembrar o último encontro que tiveram no circo, que deu início a toda aquela
loucura.
– Fico contente de morrer se levar você comigo – disse o homem de
preto.
– Isso não vai acontecer – garantiu Tião Peixeira.
– E como pensa que vai escapar daqui? – quis saber Ed Tempestade. –
A porta está trancada – indicou. – O caminho de volta está tomado pelo fogo.
Estamos presos, eu e você, neste inferno.
O fogo rugia abaixo dos dois, partindo árvores ao meio e se elevando
cada vez mais. O calor na plataforma fazia com que os combatentes suassem
profusamente. A fumaça acumulada borrava a visão de ambos. A previsão de
Ed Tempestade parecia acurada, o que lhe trazia algum alento – afinal, se
Tião Peixeira morresse com ele, o homem de preto teria cumprido sua
promessa e sua alma escaparia das garras do Senhor Fumaça. Caso contrário,
estaria condenado a se transformar num dos escravos sem mente do demônio.
Tião Peixeira permitiu que a sombra de um sorriso atravessasse os lábios
secos.
– Esta sempre foi a diferença entre nós dois: nunca pensei no caminho
de volta. – respondeu.
– Mas não pense que vai vencer por conta disso.
Ed Tempestade avançou, fazendo a espada descer num arco que
almejava o pescoço do inimigo, que bloqueou o golpe sem nenhuma
dificuldade. O homem de preto continuou a investida, procurando uma
abertura na guarda de Tião Peixeira, que permanecia na defensiva,
bloqueando golpe após golpe enquanto recuava pela plataforma. Ele
mantinha uma das mãos firmes nas costas, como se não precisasse dela
naquele combate, e após um deslize por parte do oponente o derrubou com
uma rasteira.
– Isso é tudo que você tem? – perguntou, circulando o homem de
preto, que se apressou para se levantar. – Após todos esses anos, isso é o
melhor que pode fazer? O grande Ed Tempestade? É esse o maior matador do
sertão?
O homem de preto rilhou os dentes.
– Você sempre falou demais, Ventania.
O rosto de Tião Peixeira se fechou e seus olhos se estreitaram.
– Já lhe disse para não me chamar por esse nome!
Dessa vez foi Tião Peixeira quem avançou, mas Ed Tempestade
estava preparado e conseguiu se desviar do golpe que almejava seu peito e
acertou uma cotovelada na nuca do oponente, que o fez cair de joelhos. Antes
que pudesse se recuperar, o homem de preto ainda o acertou com um golpe
nas costas, abrindo um vergão na jaqueta de couro e um talho na carne abaixo
dela. Tião Peixeira se afastou, com passos claudicantes, protegendo a
retaguarda com a lâmina levantada.
Ed Tempestade sorria, ao perceber o estrago que fizera. O primeiro
sangue derramado era dele. Já Tião Peixeira parecia engasgado, como se a
fumaça o sufocasse. Demorou um instante para o homem de preto perceber
que o inimigo não tossia, e sim gargalhava como um louco.
– É disso que estou falando – disse Tião Peixeira, endireitando-se. –
Me dê uma luta de verdade, seu merdinha covarde!
Tião Peixeira voltou a avançar. Ed Tempestade manteve a posição.
Lâminas se bateram no ar, arrancando faíscas azuis com o impacto. Um soco
acertou o queixo do homem de preto. Espada e peixeira voltaram a se bater
com mais uma chuva de faíscas. Um joelho acertou Tião Peixeira no meio
das pernas. A briga ganhava velocidade na medida em que os combatentes
deixavam as técnicas de lado para se engalfinharem como dois animais
ferozes.
Ed Tempestade, entretanto, notou que o inimigo não levava o
combate tão sério quanto ele. Como prova disso, Tião ainda mantinha uma
peixeira embainhada, como se não precisasse dela. O homem de preto ficou
irritado com isso e, com um golpe rápido e uma volta elaborada, conseguiu
roubá-la com a mão esquerda, o que pegou o oponente de surpresa.
– Minha peixeira! – reclamou Tião, virando-se mais uma vez.
Ed Tempestade o encarou, com a espada na mão direita e a peixeira
na esquerda.
– Ela agora pertence a mim – afirmou. – Assim como sua vida.
O homem de preto atacou. Dessa vez, quando recuou, Tião Peixeira
parecia mais preocupado e se defendia com maior afinco. Ed Tempestade era
um espadachim habilidoso tanto com a mão direita quanto com a esquerda e
não se envergonhava de aproveitar cada vantagem que a luta oferecesse.
Após ter um golpe de espada bloqueado, reagiu com a peixeira, que atingiu o
maxilar de Tião, subiu pelo seu nariz e escapou ao bater na testa, arrancando
sangue e cartilagem. O combatente recuou, levando a mão livre ao rosto,
sentindo o enorme talho que se abrira ali.
– Uma lembrancinha para se recordar de mim no inferno – riu Ed
Tempestade.
Tião Peixeira tirou a mão melada de sangue do rosto e a sacudiu,
como se não fosse nada. Em seguida, ofereceu um sorriso sangrento para o
adversário.
– Tudo bem – concordou. – O recreio acabou.
Tião Peixeira voltou a atacar, e, mesmo preparado, Ed Tempestade
ficou surpreso com a velocidade do inimigo, que não se assustava nem com a
ameaça de duas lâminas. Tanto que bloqueou um ataque com o antebraço,
deixando a peixeira afundar na carne até tocar o osso antes de, com um giro,
desestabilizar o homem de preto e fazê-lo reagir por instinto. Ao tentar um
golpe às cegas, Tião Peixeira decepou a mão direita de Ed Tempestade,
dando um fim abrupto ao combate.
A dor fez o homem de preto largar a peixeira roubada para cuidar do
cotoco, que esguichava sangue na ponta do braço direito. Tião recuperou sua
arma e a guardou na bainha, ficando de pé sobre o inimigo ajoelhado, como
se fosse executá-lo em seguida. Ed Tempestade rosnou para ele.
– Você ainda vai morrer aqui comigo – lembrou. – Sua vitória não
vale nada!
De repente, como se os dois estivessem numa competição, luzes de
alta potência se acenderam, cegando ambos momentaneamente. Como se isso
não fosse o bastante, começou a chover sobre eles. Uma chuva artificial,
cortesia de uma rede de sprinklers que percorria todo o Jardim de Inverno em
diferentes níveis, borrifando água sobre as chamas e a fazendo chiar de
desgosto. O coronel Olho de Cobra gostava de ver suas plantas sempre
verdes, afinal. Logo o fogo começou a se arrefecer lá embaixo. Tião Peixeira
sorriu para o homem de preto.
– Parece que seus garotos consertaram o gerador – comentou,
divertido.
Pela primeira vez em anos, Ed Tempestade chorou. Estava tudo
perdido.
– O que está esperando? – quis saber. – Me mate de uma vez!
Tião, todavia, guardou a segunda peixeira na bainha.
– Você não merece morrer – afirmou. – Não ainda.
Deu um soco tão potente no rosto do homem de preto que ele apagou
no mesmo instante.
5
1
Faltava pouco, muito pouco, para o pequeno Jiboia bater o próprio recorde
em seu jogo favorito, que contava com um personagem de macacão azul,
camisa e bonés vermelhos, além de um bigode inimitável. Estava a par de
todos os macetes, de como ir mais rápido em cada fase e dos movimentos
precisos para derrubar os chefões. O coração do rapaz batia acelerado, a
língua saía da boca em sinal de concentração, ele apertava os botões
vigorosamente. Concentrado, completamente concentrado.
De repente, a luz acabou.
– Filha da puta! – xingou o menino, jogando o controle no chão. –
Vou arrancar o couro de alguém por conta disso!
Luzes vermelhas de emergência se ligaram. O pequeno Jiboia se
levantou, pôs uma camisa sobre a enorme pança e atravessou o quarto até a
porta. Dois soldados passaram correndo do lado de fora.
– Ei! – chamou. – O que está acontecendo? Mais um dos exercícios
de guerra do meu pai?
Pelo menos uma vez a cada três meses o coronel Olho de Cobra
realizava simulações de acidentes ou incêndios, para que todos os
funcionários soubessem como reagir em caso de uma situação extrema. Claro
que ele costumava avisar a todos sobre quando os exercícios seriam feitos,
geralmente de dia e em horário comercial, mas o pequeno Jiboia preferia
ignorar detalhes dessa natureza.
Os soldados pararam e olharam para trás.
– É melhor retornar para seu quarto, senhor – recomendou um deles.
Jiboia franziu o cenho.
– Não me diga o que fazer. Você é novo aqui? Não sabe quem sou?
O segundo soldado segurou o primeiro pelo ombro, assumindo a
dianteira.
– Por favor, mestre Jiboia – recomeçou num tom conciliador. – Será
melhor se você aguardar a conclusão da atual crise dentro do seu quarto.
Tenho certeza de que seu pai mandará alguém vir buscá-lo assim que
possível.
Jiboia sentiu vontade de rir, mas não por um motivo agradável.
– Que crise? – quis saber. – Desde quando há crise por aqui?
O segundo soldado havia aberto a boca para responder quando
recebeu um chamado no walkie-talkie que trazia acoplado no ombro.
– Mendonça, Ramires, qual a posição de vocês? – indagou uma voz
nervosa. – Só faltam os dois para completarmos o grupo que vai descer até a
casa de máquinas. Cadê vocês, caralho?
Os soldados trocaram um olhar.
– Precisamos ir – reforçou um deles.
– Volte para seu quarto – recomendou o outro. – E tranque a porta!
Jiboia balançou a cabeça, confuso, mas os soldados lhe deram as
costas e voltaram a correr.
– Mas que merda está acontecendo?
Os soldados viraram um corredor e desapareceram. Jiboia olhou ao
redor, assustado. As luzes vermelhas de emergência pintavam o castelo de
um jeito estranho, fazendo-o parecer um lugar diferente, assombrado. O rapaz
voltou para o quarto e fechou a porta. Após um momento de reflexão,
também a trancou. Depois caminhou até a janela e contemplou a escuridão
que tomara conta das plantações.
As montanhas distantes cresciam atrás delas sombrias, enormes e
amedrontadoras, como se a qualquer momento fossem engolir a terra à sua
frente. Havia um brilho para os lados da ala leste, mas não dava para ver o
que era. Jiboia abriu a janela, deixando o frio noturno entrar no quarto, e
ouviu gritos distantes de homens preocupados. Aquilo não era nenhum
exercício. A única resposta que lhe viera à mente é que o castelo estava sob
ataque, o que considerava impossível, haja vista que seu pai sempre soube de
tudo e que ninguém nunca o pegara de surpresa antes.
Jiboia fechou a janela, com medo. Preferia não escutar nada do que se
desenrolava do lado de fora. Os barulhos lhe trariam apenas mais
preocupação. Então, correu até o armário e pegou uma caixa que guardava
numa estante superior. Havia uma pistola dentro dela e três pentes de
munição. Percebeu que as bermudas que usava não eram boas para uma fuga
e a trocou por uma calça jeans. Enfiou os pentes no bolso, mas preferiu ficar
com a arma nas mãos. O peso dela lhe trazia uma sensação de segurança,
como se fosse capaz de matar qualquer inimigo que ousasse desafiá-lo, assim
como nos jogos de videogame.
De repente, o interfone buzinou e o deixou sobressaltado. Ele apontou
a arma para a porta e puxou o gatilho, que não cedeu à pressão. Demorou um
instante para perceber que a trava estava ativada.
– Mestre Jiboia – chamou uma voz conhecida pelo aparelho. – Sou
eu. Leo Gecko. Está tudo bem com o senhor?
Jiboia levantou a pistola, instintivamente. Quase atirou contra a porta
sem pensar que um invasor não tocaria o interfone se viesse atrás dele.
Respirou, aliviado, sentindo-se um pouco idiota por se deixar levar pelo
medo.
– Mestre Jiboia? – repetiu Leo Gecko, preocupado.
– Estou aqui dentro, velho lagarto – respondeu Jiboia, colocando a
arma no cós da calça. – Me dê um minuto, sim?
Ele destrancou a porta e Leo Gecko o agarrou pelo braço.
– Vamos! – disse o guarda-costas. – Não temos tempo a perder.
Jiboia ficou indignado com a audácia do velho em puxá-lo daquele
jeito e cogitava discutir que tratamento era aquele quando escutou os tiros.
Uma saraivada de balas em algum ponto não tão distante do seu quarto. Um
arrepio percorreu a espinha do rapaz, que apressou os passos, buscando
acompanhar o ritmo de Leo Gecko. Desceram alguns lances de escada antes
de entrarem por uma porta secreta, que Jiboia nem sabia que existia. Os dois
entraram num túnel completamente escuro, mas o guarda-costas carregava
uma lanterna, que acendeu naquele momento.
– Para onde estamos indo? – quis saber Jiboia.
Leo Gecko apontou a lanterna para dentro do túnel, que sofria com
infiltrações e parecia um tanto apertado para um garoto que nunca fizera dieta
na vida.
– Para um lugar seguro – resumiu o guarda-costas, voltando a puxá-
lo.
Jiboia seguia o velho balançando o corpo de um lado para outro,
ofegante. Não lembrava a última vez em que se exercitara daquela maneira.
– Por quê? O que está acontecendo?
Leo Gecko baixou a cabeça, para não a bater num cano úmido.
– O castelo está sob ataque – respondeu. – Seu pai me pediu que
tomasse conta de você até a situação se resolver – continuou, ao perceber que
o garoto não calaria a boca até receber uma explicação decente. – Este túnel
nos levará para uma garagem secreta, onde se encontram os carros de fuga.
De lá, seguiremos trezentos quilômetros até um esconderijo que ninguém
conhece, além do seu pai e de mim. Não se preocupe, mestre Jiboia, todas as
precauções para assegurar seu futuro já foram tomadas.
Jiboia assentiu, com um nó na garganta. Vez ou outra olhava para
trás, querendo guardar alguma memória do castelo que fora o seu lar por toda
a vida, mas não via nada além da escuridão densa e fechada.
– Meu pai vai encontrar a gente lá?
Leo Gecko demorou a responder.
– Foi o que combinamos.
Jiboia não gostou do tom usado pelo velho.
– E se ele não aparecer?
Leo Gecko o espiou de soslaio.
– Como disse antes, precauções foram tomadas para assegurar seu
futuro.
Não era a melhor resposta do mundo, mas Jiboia percebeu que era
recomendável não pressionar o guarda-costas naquele momento. No entanto,
uma dúvida crucial ainda o atormentava, embora sentisse vergonha de
enunciá-la em voz alta.
– Esse esconderijo – disse, baixando a cabeça e levantando os olhos de
maneira sugestiva. – Tem videogame?
2
A consciência retornava em camadas. Primeiro veio o som de batidas
metálicas, muito próximas e cadenciadas, do tipo esperado numa construção.
Em seguida, a dor, que se arrastava pelos nervos como magma derretido,
despertando os demais sentidos sem nenhuma gentileza. Se suas veias
queimavam, a pele ardia de frio. Ed Tempestade abriu os olhos para um
ambiente escuro e azulado, devido à presença do que parecia ser uma lagoa
subterrânea. Uma sombra mais escura à sua direita era a responsável pelos
sons metálicos que machucavam seus ouvidos. O homem de preto se virou
para ela e a reconheceu de imediato. Era Tião Peixeira.
O adversário continuava com as roupas imundas de sangue, mas
apresentava bandagens novas no braço esquerdo, ferido durante a luta, e o
rosto remendado com o que parecia ser fio dental. Ele usava as duas mãos
para bater a marreta numa estaca metálica, que afundava no solo pedregoso
com teimosia. Ed Tempestade percebeu que a estaca estava ligada a uma
corrente, que se arrastava como uma cobra pelo chão até a algema fechada
em seu tornozelo esquerdo. O homem de preto tentou se levantar, esquecendo
do ferimento em seu braço direito ao tentar apoiá-lo no chão. Foi como se um
milhão de agulhas atravessassem sua carne ao mesmo tempo. Ele gritou de
dor.
Tião Peixeira parou o que estava fazendo e limpou o suor da testa.
– A bela adormecida acordou.
Ed Tempestade se encolhia em posição fetal, segurando o que sobrara
do pulso com a mão esquerda, percebendo o ferimento fechado de forma
tosca onde deveria se encontrar sua mão. Só então se lembrou da luta em que
fora aleijado e não resistiu: começou a chorar.
– O que fez comigo, seu desgraçado?
Tião Peixeira levantou a marreta e bateu mais uma vez na estaca.
– Cauterizei seu ferimento – explicou. – Não queria que sangrasse até
morrer. Salvei sua vida. Outra pessoa me agradeceria por isso.
Ed Tempestade rilhou os dentes, estudando melhor o ambiente ao
redor. Percebeu que se encontrava numa espécie de caverna, em alguma parte
subterrânea do castelo. Havia um buraco enorme numa parede próxima que
indicava o local por onde Tião Peixeira entrara naquele lugar. Pelo estilo das
paredes cinzentas, devia ser próximo à casa de máquinas, onde existia uma
infinidade de túneis malcuidados e esburacados.
– Por que não me deixou morrer? – quis saber.
Tião Peixeira deu outra porrada na estaca.
– A morte seria boa demais para você – respondeu. – Você merece
sofrer por tudo que fez, todas as vidas que arruinou...
Ed Tempestade se ajoelhou, segurando o cotoco do braço contra o
peito.
– Está me chamando de monstro?
Tião Peixeira deu de ombros e acertou mais um golpe com a marreta.
– Se a carapuça serve...
– Não seja hipócrita – criticou Ed Tempestade. – Quantos dos homens
que você matou tinham família? Quantos dos homens que você matou eram
realmente maus?
Tião Peixeira acertou outro golpe na estaca.
– Se sou um monstro, o que você é? – desafiou Ed Tempestade.
A marreta desceu sobre a estaca pela última vez, fincando-a firmemente
no solo pedregoso. Tião Peixeira levantou os olhos azuis, mais frios que
aquela caverna escura.
– Sou o que você fez de mim.
Ed Tempestade se sentou no chão, procurando uma pedra na qual se
encostar. Fazia frio ali embaixo. Pingos caíam de estalactites na água imóvel
da lagoa escura a intervalos irregulares.
– E essa é sua ideia de punição? – insistiu. – Me prender numa caverna
para que morra de fome?
Tião Peixeira colocou a marreta de lado, apoiando-se no cabo dela, e
passou a mão pelo nariz, como se precisasse tirar uma sujeira dali.
– Tem muitos ratos aqui embaixo – comentou. – Morcegos também.
Talvez até alguns peixes na lagoa. Você pode sobreviver, se quiser – então,
ele tirou uma pequena lâmina do cinturão de munições que carregava no
peito e a jogou aos pés do prisioneiro. – Ou pode escolher o caminho mais
rápido.
Ed Tempestade contemplou a lâmina prateada. Parecia uma navalha
sem o cabo. Ele a pegou com cuidado e testou o fio com o dedão. O aço
mordeu a carne, arrancando sangue. Era bem afiada. Ele a jogou longe,
deixando-a cair entre as pedras.
– Prefiro esperar alguém para me tirar deste buraco – afirmou,
revoltado. – Quando você se for, chamarei por ajuda. Por mais que você seja
um matador eficiente, tenho certeza de que deixou escapar alguém vivo por
aí. Você não matou os empregados, matou? Aqueles pobres-coitados...
Tião Peixeira sorriu, e apontou o buraco na parede.
– Quando sair, fecharei aquela passagem com tijolo e cimento – contou.
– Você não acreditaria no tanto de material de construção que achei numa
salinha aqui embaixo. Este é um ponto bem isolado do castelo, com mais de
uma parede remendada, pelo que pude notar. Você vai precisar gritar bastante
até alguém ouvi-lo.
Ed Tempestade voltou a soluçar, sem conseguir trancar o choro na
garganta.
– O que quer de mim, maldito?
Tião Peixeira largou a marreta e se aproximou. Ed Tempestade se
arrastou instintivamente para trás, levantando o braço e o cotoco que lhe
sobrou para se proteger. Tião Peixeira se agachou diante dele.
– Quero que me conte o motivo – rosnou.
Ed Tempestade engoliu em seco. Tião Peixeira não precisava explicar
mais nada. Compreendeu o que ele desejava saber, a resposta pela qual esteve
atrás por mais de dez anos. A roda da fortuna. Ele queria saber o motivo
daquilo.
– Não foi pessoal – lamentou o homem de preto.
– O caralho que não foi – cortou Tião Peixeira, pegando Ed
Tempestade pelo pescoço. – Quem o mandou fazer aquilo, canalha?
Os dedos de Tião Peixeira pressionaram a traqueia do homem de preto,
que soltou tons esganiçados tentando se libertar. No entanto, sem uma das
mãos e fraco como estava, não conseguia fazer o inimigo ceder um milímetro
sequer. Então começou a dar tapinhas de desistência no braço de Tião
Peixeira.
– Tudo bem – concordou numa voz esganiçada. – Eu falo. Eu falo.
Tião Peixeira o largou, e o homem de preto caiu para trás, massageando
o pescoço sem tirar os olhos preocupados do outro. Tião Peixeira cerrou os
punhos, sinal de que estava perdendo a paciência.
– Foi o Senhor Fumaça – revelou Ed Tempestade, antes que o
adversário decidisse castigá-lo mais um pouco. – Foi o Senhor Fumaça quem
ordenou que eu matasse todos no circo aquele dia. Foi em nome dele que agi.
Tião Peixeira abriu as mãos e franziu o cenho, confuso.
– Aquele maluco que queria arrancar Maria Estrela da gente em
Salvador? – perguntou, sem acreditar. – Por quê?
Ed Tempestade se ajeitou no chão, recuperando o fôlego.
– Ele não era um homem de verdade – continuou. – Era um demônio,
como você sempre desconfiou. Lembra?
Os olhos de Tião Peixeira brilharam sem nenhuma maldade, perdidos
em algum lugar do passado. Por um momento, ele pareceu o perigoso
matador que era. Por um momento, tornou-se o garoto que fora antes de todo
aquele pesadelo começar.
– Mas eu o derrotei de maneira justa – relembrou. – E o maldito jurou
que não viria atrás de mim. Ele jurou.
Ed Tempestade ofereceu um sorriso cansado.
– Foi por isso que ele armou para que eu fizesse o serviço sujo.
Tião Peixeira não disse nada. Lágrimas escorriam pelo rosto de Ed
Tempestade. As palavras pareciam entaladas na garganta. Ele precisava
colocá-las para fora, se não quisesse sufocar.
– Um dia, depois que deixei o circo para trás, ele apareceu para mim –
contou. – Ele me encontrou na sarjeta, após apanhar como um condenado
num bar de uma cidade cujo nome nem me lembro. Não o reconheci na hora.
Ele usava um rosto diferente. Mas me pagou uma refeição e me chamou para
seu quarto. Achei que fosse um pervertido, querendo comer o rabo de um
garotinho abandonado, e eu nunca teria aceitado o convite antes daquela
noite. Só que eu estava na rua havia muito tempo, sem dinheiro, sem amigos,
vivendo como um cão vadio. E aquele estranho me ofereceu um prato de
comida...
Ed Tempestade voltou a chorar, em silêncio. Algo em sua postura fez
Tião Peixeira se aproximar. Ele parecia tão vulnerável que o cangaceiro não
pôde evitar. Apertou o ombro do ex-amigo, mostrando que compreendia sua
dor.
– Só depois do ato que ele revelou quem verdadeiramente era –
continuou o homem de preto. – Lembro as palavras venenosas que sussurrou
no meu ouvido, como meus velhos amigos me traíram e deixaram meu pai
apodrecer na prisão. Ele disse que podia consertar tudo, soltar meu pai e dar
uma lição em vocês. Tudo que eu precisava fazer para isso acontecer era
trabalhar para ele.
– Então você fez um pacto – concluiu Tião Peixeira.
Ed Tempestade assentiu, de cabeça baixa. Tião Peixeira suspirou.
– Chuvisco, seu idiota...
Ed Tempestade olhou o ex-amigo de lado, sorrindo.
– Sim – concordou. – Fui um idiota. Ainda sou. E aquele demônio me
transformou num assassino. Nosso pacto foi selado com o sangue de uma
criança inocente, que ele roubou de algum berçário ou da casa de alguém.
Nunca procurei saber. Então, não sinta pena de mim. Condenei a minha alma
muito tempo atrás.
Tião Peixeira se afastou, retomando a postura do homem que havia se
tornado.
– E o Senhor Fumaça mandou você atrás de nós – concluiu, sem
simpatia. – Ou de Maria Estrela? Era nela que o maldito estava interessado,
não era?
Ed Tempestade assentiu, de cabeça baixa.
– Ele ordenou a morte de todos vocês – contou. – Mas não de Maria
Estrela. Ela, ele queria viva.
Nesse instante, uma fúria ardente tomou conta do rosto de Tião
Peixeira, que avançou novamente, pegando o homem de preto pela gola da
camisa e o erguendo como se não pesasse nada.
– O que vocês fizeram com ela, desgraçado? – quis saber. – O que
fizeram com minha namorada?
Ed Tempestade levantou os braços, em sinal de paz.
– Não sei, juro por Deus que não sei – respondeu. – Nunca mais a vi.
Parece que o Senhor Fumaça não era o único que estava atrás dela. A última
notícia que tive foi que Labareda Jones a encontrou e a levou para o sul, para
o que sobrou de São Paulo.
– Labareda Jones? – repetiu Tião Peixeira, estupefato.
– Ele não estava lá aquele dia, lembra? – prosseguiu Ed Tempestade.
Tião Peixeira o largou, com os olhos novamente exibindo aquele brilho
estranho, de quem está perdido no passado. Ele cambaleou, procurando apoio
numa parede próxima. Ed Tempestade se levantou com as costas encurvadas.
– Talvez ela ainda esteja viva – sugeriu.
Tião Peixeira se virou, furioso, apontando o dedo para o vilão.
– Cale sua boca imunda de serpente – ordenou. – Você a teria
entregado para o Senhor Fumaça como o bom lacaio que é! E pensar que
cheguei a pensar que você também a amasse...
Ed Tempestade deu um passo à frente.
– Mas eu amava – afirmou, fracamente. – Só que você precisa entender,
Ventania: minha alma pertencerá ao Senhor Fumaça enquanto eu não cumprir
o que foi combinado.
– Apenas cale essa maldita boca – repetiu Tião Peixeira. – Nossa
conversa acabou. Você está morto para mim.
Sem dizer mais nada, Tião Peixeira lhe deu as costas e rumou para o
buraco na parede. Ed Tempestade tentou segui-lo, mas logo foi impedido pela
corrente presa ao seu pé. O homem de preto se esticou pelo chão pedregoso,
estendendo a única mão que lhe restava adiante.
– Espere um minuto, Tião – chamou, desesperado. – Vamos conversar
mais um pouco. Não me deixe aqui sozinho. Ainda posso lhe revelar alguns
segredos.
Tião Peixeira, no entanto, não dava ouvidos às súplicas do homem de
preto. Ele tinha um trabalho a fazer. Assim, pegou uma pá, misturou o
cimento e colocou o primeiro tijolo da nova parede em seu lugar.
3
Fumaça e fogo escaparam do bocal da garrafa com a força de um
furacão. João dos Mistérios precisou travar os pés no chão e segurar a garrafa
com força para não cair. O coronel Olho de Cobra não teve a menor chance.
O demônio o pegou tentando recuar. Tomou posse do homem pela boca,
pelas narinas, pelos ouvidos, pelo olho bom e pelo outro que não existia mais.
Um som horrendo semelhante a porcos guinchando escapou daquela união
profana, que elevou o corpo do coronel no ar e fez seus membros dançarem,
como se ultrapassados por uma potente corrente elétrica. Durou menos de um
minuto. Então, o corpo do coronel despencou, como um boneco quebrado, e
o closet mergulhou num silêncio profundo.
Sem a força que saía da garrafa, João dos Mistérios quase perdeu o
equilíbrio, mas conseguiu se sustentar. Ele piscou várias vezes e olhou ao
redor, preocupado. Não via sinal do demônio. A garrafa em sua mão voltava
a ser transparente sem seu prisioneiro de décadas. Ele a encostou um canto,
ciente de que não estava sozinho, endireitou as costas e respirou fundo.
– Muito bem – falou. – Acho que precisamos ter uma conversinha.
Uma risadinha sinistra subiu do corpo imóvel no fundo do armário. O
demônio continuava escondido dentro dele. O coronel Olho de Cobra voltava
a se mover, com movimentos estranhos e poucos naturais, braços e pernas
tremendo enquanto a criatura em seu interior se acostumava com as novas
acomodações. Ele se levantou como se fosse um fantoche quebrado, com um
ombro mais elevado que o outro e as mãos dispostas em garras tortas. O olho
bom do coronel explodiu numa bola de fogo, fazendo João dos Mistérios
recuar.
– O garoto invisível, neto do feiticeiro – comentou uma voz rascante,
muito diferente da usada pelo coronel. – Tenho que admitir, você tem colhões
para me encarar dessa maneira depois do que seu avô fez comigo.
João dos Mistérios engoliu em seco, mas se endireitou.
– Minha família inteira morreu graças ao erro do meu avô – afirmou.
A coisa dentro do coronel torceu o pescoço.
– Não graças a mim – reclamou.
João dos Mistérios assentiu, muito sério.
– Compreendo que tenha prometido matar todos os descendentes do
meu avô se um dia alguém o libertasse...
A coisa dentro do coronel apenas o encarou.
– O que pretende fazer comigo? – quis saber João dos Mistérios.
Silêncio.
– Sua dívida comigo está paga – respondeu o demônio, afinal. –
Agradeço por me libertar e por me entregar a carcaça desse miserável, que
me explorou todos estes anos achando que nunca haveria um acerto de
contas. Se tiver algo que eu possa fazer por você, fale agora, pois tenho
pressa para deixar o plano físico. Essa é uma proposta que não farei
novamente.
João dos Mistérios hesitou. Negociar com demônios sempre era
perigoso, mas fazia parte dos requisitos para se tornar um bom feiticeiro. Um
bruxo com medo de sombras e aquilo que as habita não era de muita valia
para ninguém. E, naquele caso, a vantagem estava do lado dele – ao menos,
era o que dizia a si mesmo, imaginando que todo aprendiz de feiticeiro
repetia as mesmas palavras ao deparar com uma situação semelhante.
– Você mencionou que não foi responsável pela morte da minha família
– apontou.
– Infelizmente – concordou a coisa dentro do coronel.
João dos Mistérios não lhe deu atenção.
– Mas foram homens do coronel Olho de Cobra que vieram atrás de nós
– lembrou. – Se não foi você que revelou onde nos encontrávamos, quem foi?
A coisa dentro do coronel exibiu um sorriso longo demais para ser
considerado normal ou mesmo saudável.
– Existem outros demônios além de mim – comentou. – E o coronel
Olho de Cobra estudou vários deles à procura da minha verdadeira
identidade. Ele sabia que só uma coisa no mundo seria capaz de me
controlar...
– Seu verdadeiro nome – acrescentou João dos Mistérios.
A coisa dentro do coronel concordou.
– No meio desses estudos, ele acabou cruzando caminhos com um
demônio muito mais astuto e perigoso do que eu – revelou. – Um demônio
que prometeu revelar meu verdadeiro nome e o paradeiro da única família
capaz de destruí-lo por um preço módico, um pequeno sacrifício...
– O que ele pediu?
A coisa dentro do coronel bateu um dedo no tapa-olho.
– Uma ninharia, se quer a minha opinião.
João dos Mistérios levantou uma sobrancelha, desconfiado.
– Um olho? Só isso?
– Bom, isso e a alma imortal do velho bastardo – acrescentou. – Como
disse antes, uma ninharia!
Em seguida, a coisa dentro do coronel soltou uma gargalhada que mais
lembrava o grasnar de uma ave sendo depenada.
– Mas não é isso que você quer realmente saber, certo, neto de
feiticeiro?
João dos Mistérios balançou a cabeça.
– Qual o nome do demônio responsável pela morte da minha família?
A coisa dentro do coronel voltou a oferecer seu sorriso maldito.
– Acredite em mim quando digo que adoraria saber seu verdadeiro
nome – respondeu. – Mas sei que não foi só sua vida que ele destruiu.
João dos Mistérios estreitou os olhos.
– O que quer dizer com isso?
A coisa dentro do coronel apontou para o lado, com o indicador
dançando no ar.
– Pergunte ao seu amigo – aconselhou. – Pergunte a ele para quem Ed
Tempestade trabalhava.
A compreensão fez João dos Mistérios dar um passo para trás.
– Você só pode estar de sacanagem comigo.
A coisa dentro do coronel riu, balançando o indicador de um lado para
outro.
– De maneira alguma, meu amigo – garantiu. – Na verdade, vou até lhe
dar uma colher de chá. Chegou ao meu conhecimento que esse demônio às
vezes atende pelo nome de Senhor Fumaça e que não tem ninguém que ele
tema mais neste mundo do que o homem chamado Tião Peixeira.
Nisso foi a vez de João dos Mistérios soltar uma longa gargalhada,
enlouquecida, assustando até a coisa dentro do coronel.
– Você está bem, garoto invisível? Foi alguma coisa que eu disse?
João dos Mistérios se conteve com alguma dificuldade, limpando os
olhos com as costas da mão.
– Nada não – respondeu. – Estou só imaginando o que aquele
branquelo vai dizer quando descobrir que tenho outros motivos para
continuar usando o nome idiota que ele me deu.
Capítulo 15
Terra de ninguém
1
Dizer que a tempestade de areia pegou o viajante solitário de surpresa seria
uma mentira. Mais justo seria dizer que ele não teve como escapar dela. A pé,
caminhando pelo barro vermelho do sertão, sem nenhum esconderijo nas
cercanias, o pobre homem não pôde fazer outra coisa além de seguir em
frente, com o rosto protegido por um pedaço de pano puído e óculos
especiais, adquiridos em circunstâncias obscuras. Cada passo adiante era
recebido com uma lufada violenta de vento e grãos de areia a fustigar o
pouco da pele exposta que nem as roupas nem o poncho conseguiam
proteger.
Ao longe, como uma miragem, era possível enxergar uma cidade
entre as rajadas traiçoeiras de vento e areia. Riacho Doce, o destino final do
viajante solitário. Ele avançou em sua direção como um homem obstinado,
com o corpo encolhido sobre o tronco encurvado, um pé após o outro. Seria
irônico morrer tão próximo de casa, talvez um fim adequado para um sujeito
como ele. Só que a vida é uma megera insistente, que não desiste nunca,
independente das condições em que se encontra ou das ameaças que
aparecem pelo caminho. Ela sempre nos leva a seguir em frente, sempre em
frente.
Claro que não havia vivalma quando o viajante solitário alcançou as
ruas da cidade. Somente um louco sairia de casa com aquele tempo. No
entanto, era possível perceber rostos escondidos nas sombras, por trás de
janelas fechadas, a observarem seu avanço. Ninguém lhe ofereceria ajuda, ele
sabia disso. Confiar em estranhos fazia parte de um passado distante, que não
oferecia nenhum alento àqueles que precisavam sobreviver no presente. O
viajante solitário seguiu em frente, de olho no lugar aonde queria chegar, um
porto seguro com as portas sempre abertas para gente como ele. A maçaneta
cedeu com facilidade e ele entrou apressado no estabelecimento.
– Feche a maldita porta! – gritou uma mulher gorda, de seios fartos, e
cabelos louros como um campo de trigo de trás do balcão.
O viajante solitário procurou atender à ordem prontamente, ainda que
estivesse fraco em razão da longa caminhada e o vento rugisse como um leão
em seu encalço. Foi preciso que outros dois clientes viessem em seu socorro
antes que a porta voltasse ao seu lugar, deixando a tempestade correr solta
fora do bar. Com a passagem definitivamente fechada, o viajante caminhou
tropegamente até o balcão e despencou, exausto, numa de suas cadeiras. A
mulher de cabelos louros veio atendê-lo.
– Se entrou no meu bar para tirar uma soneca no balcão, vou ter que
pedir que volte para casa, amigo.
O viajante solitário levantou a cabeça, meio tonto.
– Um copo d’água, por favor – pediu com a voz tão seca quanto o
deserto.
A loura atendeu ao pedido prontamente, embora o líquido servido no
copo não fosse exatamente transparente e desse para ver corpos estranhos
flutuando em sua superfície. O viajante solitário não ligou. Desenrolou o
pano do rosto e bebeu com sofreguidão. A loura estreitou os olhos, espiando
o cliente.
– Conheço você, não?
O viajante solitário colocou o copo de volta no balcão e suspirou,
tirando os óculos especiais e o chapéu empoeirado, para revelar um rosto bem
conhecido de todos por ali. A loura abriu um largo sorriso.
– Meu querido Leandro – cumprimentou, apertando o jornalista
contra os seios fartos num abraço de urso. – Por onde você tem andado? Não
o vejo há quase um mês.
– Acredite Mama Jan, você não gostaria de saber – respondeu
Leandro Fuentes, jornalista extraordinário.
A dona do bar colocou a mão na cintura, estudando o cliente.
– Nossa! Como você está diferente – comentou. – O que lhe
aconteceu?
– Fiquei sóbrio, infelizmente – respondeu Leandro. – Vim até aqui
para tomar meu remédio. Por que não me faz um favor e me serve algo bem
forte, chica?
Mama Jan se animou.
– Tão quente quanto eu? – perguntou, com um dedo na boca,
insinuante.
Leandro sorriu.
– Vamos devagar, mas trabalhando nessa direção – piscou.
Mama Jan se afastou para atender ao pedido, e a cabeça de Leandro
voltou a desabar entre os ombros. O peso dos dias se acumulava em suas
costas. Já não era mais tão jovem para viver daquele jeito, metendo-se em
confusões a cada esquina, escapando da morte por um triz e assistindo ao
destino de outros sem a mesma sorte. Invariavelmente, sua mente se voltava
para o que acontecera com Carlitos Doninha. Sentia-se culpado pelo garoto.
Talvez fosse hora de pendurar as chuteiras, deixar o jornalismo para trás,
encontrar outro modo honesto de ganhar a vida – coisas que poderia pensar
após tomar um trago.
Um homem de macacão e mãos sujas de graxas se sentou no banco ao
seu lado.
– Eu sabia – disse ele.
Leandro Fuentes fechou os olhos com força. Conhecia aquela voz.
– Eu sabia que era você – repetiu o rapaz. – Mesmo com todas essas
roupas surradas, não teria como me confundir. Leandro! Onde você esteve,
meu amigo?
O jornalista forçou um sorriso. Guto era o neto de mestre Silas,
responsável pela manutenção do parque gráfico do Edição Extraordinária,
um rapaz bem-intencionado, ainda que um pouco lento e capaz de escolher os
piores momentos para aparecer.
– Como vai você, Guto?- cumprimentou, oferecendo a mão para um
aperto.
Guto franziu o cenho.
– Oxe... Somos amigos, não somos? Venha cá, me dê um abraço!
Antes que Leandro pudesse protestar o rapaz o envolveu em seus
braços fortes e apertou, como se quisesse quebrar seus ossos. Depois o largou
na cadeira, sem nunca parar de rir. Ele apertou o ombro do jornalista com a
mão suja.
– Quanto tempo, cara! Chegamos a pensar que você tinha morrido! A
última notícia sua que tivemos foi que fugiu da prisão em Miradouro com a
cidade em estado de sítio. Que loucura!
Leandro sorria, procurando atender às expectativas. A fuga da prisão
fora menos apoteótica do que o amigo dava a entender. Com a delegacia
destruída, os soldados do coronel Olho de Cobra improvisaram uma cadeia
num estábulo, onde os guardas precisavam ficar de olho nos prisioneiros o
tempo todo. No dia em que enforcaram a maioria dos encarcerados, apenas
um guarda ficou para para vigiar Leandro, que só precisou esperar o
carcereiro cochilar para pular por cima da baia e escapar noite adentro. Sair
de Miradouro foi um pouco mais complicado, mas igualmente corriqueiro.
– Bom, estou vivo – sorriu o jornalista. – Que tal fazermos um brinde
a isso?
Leandro levantou o copo de pinga que Mama Jan havia deixado no
balcão, mas Guto levantou uma das mãos em sinal de advertência.
– Obrigado, amigo, mas não bebo – justificou.
Leandro olhou ao redor.
– Então o que está fazendo num bar?
Guto apoiou o braço no balcão.
– Estava correndo atrás de umas peças para a velha prensa quando a
tempestade começou – respondeu. – Entrei aqui para me proteger. Mama Jan
não liga. Vez ou outra ela precisa de alguém como eu para consertar as
dobradiças da porta ou passar uma demão de tinta na parede. Volto para o
jornal assim que o tempo melhorar.
– É mesmo? – perguntou Leandro, sem nenhuma empolgação,
tomando a cachaça num só gole. A bebida desceu queimando, do jeito que ele
gostava. – Que azar, então! Acho que essa tempestade de areia não vai passar
tão cedo.
Guto deu de ombros.
– Não – opinou. – Ainda não estamos na época dos furacões. Isso aí
não passa de um rabo de vento, que vai morrer daqui a pouco. Pode marcar
minhas palavras.
Leandro não conseguiu evitar uma risada.
– O que foi? – quis saber Guto, desconfiado.
O jornalista se aprumou.
– Nada – garantiu. – É só que, se Verônica estivesse aqui, ela me
mandaria pegar meu caderninho para fazer justamente isso.
– Ela está preocupada com você, sabia? – contou Guto, sorumbático.
Nesse momento, seu rosto se iluminou como uma lâmpada. – Talvez seja
melhor eu voltar para o jornal, dizer à dona Verônica que você voltou...
Leandro fez uma careta.
– Acho que isso é uma má ideia – opinou.
Guto pareceu não o escutar.
– Você não vai acreditar. Ouvi dela mesma hoje de manhã da falta
que você faz. Ainda mais agora, que ela pretende subir lá para os lados do
Ninho da Serpente, descobrir o que aconteceu com o coronel Olho de
Cobra...
Leandro levantou a orelha.
– O Ninho da Serpente, você disse?
Guto se aproximou do jornalista e sussurrou com um bafo de quem
nunca escovou os dentes:
– Chegou um monte de mensageiro à cidade pela manhã. Parece que
teve uma explosão grande lá para o outro lado das montanhas. Andam
dizendo por aí que foi um ataque direto contra o coronel Olho de Cobra.
– Mas quem seria louco de fazer uma coisa dessas?
Guto deu de ombros.
– É o que dona Verônica gostaria que você descobrisse.
2
A previsão de Guto logo se confirmou, com os uivos dos ventos
ficando cada vez mais distantes enquanto a tempestade de areia se afastava da
cidade. O rapaz colocou o chapéu na cabeça e partiu em seguida. Leandro
pediu mais uma dose de pinga para Mama Jan. Após ser servido, ele segurou
a mão da mulher.
– Deixe a garrafa, si?
Mama Jan concordou, assistindo ao jornalista tomar a bebida de um
só gole e se servir de uma nova dose.
– Você sabe que sua chefe logo estará aqui, certo?
Leandro concordou, fazendo uma careta ao beber mais um copo.
– Porque acha que pedi para deixar a garrafa?
Mama Jan se aproximou, apoiando-se no balcão de modo a valorizar
o decote do vestido, com a dobra entre os seios formando um túnel capaz de
fazer um homem se perder, o que não passou despercebido por Leandro.
– Se quiser, posso escondê-lo no quartinho dos fundos – sussurrou. –
Aviso à patroa que você já partiu e tiramos o resto do dia de folga – ela
levantou o queixo do jornalista com o dedo, para que olhasse seu rosto. – Não
lhe parece uma boa ideia?
Leandro sorriu, embriagado.
– A melhor ideia que ouvi o dia inteiro – concordou.
Foi exatamente nesse momento, porém, que a porta do bar se abriu e
uma mulher de cabelos ruivos cacheados entrou, com os pés batendo firmes
no chão.
– Então aí está o senhor – apontou Verônica. – Depois de todo esse
tempo, esperava que viesse me ver antes de mergulhar na garrafa de novo.
O sorriso de Leandro se desfez como chuva de verão.
– Quase morri para chegar aqui por conta de uma tempestade de areia,
sabia?
– Bom, nesse caso não vou deixar que o álcool complete o serviço –
respondeu Verônica. – Vamos! Levante o rabo dessa cadeira.
Leandro se virou para encarar a chefe, de braços abertos.
– Tenho más notícias – anunciou. – Receio que tenha perdido todo o
dinheiro da viagem para Miradouro. Não tenho um centavo sequer nem
recibos para apresentar de meus gastos por lá.
Verônica pôs as mãos na cintura e bufou, exasperada.
– Posso despedi-lo amanhã, mas preciso dos seus serviços agora –
disse. – E ainda conversaremos sobre uma matéria dos dias em que esteve
fora. Algo como “Dias de terror em Miradouro”. Então, pare de enrolar e me
acompanhe de uma vez. Temos uma carruagem para pegar.
3
Não teve choro nem vela. Após pendurar a conta, Leandro
acompanhou Verônica até a frente do jornal, onde uma carruagem fretada já
os aguardava. O jornalista não deixou de se impressionar com a agilidade da
coisa toda, uma vez que menos de meia hora antes a areia fustigava casas e
comércios como se o mundo estivesse prestes a acabar. Porém, os fatos
continuavam os mesmos. Quanto mais ele tentava se afastar do jornalismo,
mais as notícias o puxavam de volta pelo pé.
Leandro entrou na carruagem logo depois de Verônica. Os dois se
sentaram, um de frente para o outro, antes de os cavalos arrancarem com um
solavanco pouco elegante. Nada capaz de derrubar seus passageiros, apenas
de fazê-los perderem a pose de sérios. Para Leandro, isso não era nenhum
problema, dado que seriedade nunca fora uma de suas melhores qualidades.
Já com Verônica o papo era outro. A editora tinha uma autoridade intrínseca
que acompanhava seus modos de vestir, falar e agir. Ela ficou claramente
desconcertada com a arrancada e fez questão de arrumar o visual. Leandro
virou o rosto e fez cara de paisagem. Era melhor fingir que nada tinha
acontecido.
– Muito bem – disse Verônica, após se recompor. – Desembuche!
Leandro piscou várias vezes.
– Desculpe?
Verônica suspirou.
– Disfarce o quanto quiser, os outros não o conhecem que nem eu.
Está na cara que algo aconteceu com você em Miradouro. Não se acanhe.
Desembuche!
Não era um pedido, portanto, Leandro contou sua história, ainda que
omitindo algumas passagens – como o modo com que gastara o dinheiro que
lhe foi dado. Concentrou-se na truculência dos soldados e no triste destino de
Carlos Doninha. De seu lado, Verônica ouviu pacientemente, demonstrando
aflição em determinados momentos, apesar de tentar permanecer impassível.
Quando terminou o relato, os dois ficaram calados por um tempo.
– Imagino que devamos omitir as piores partes para não incomodar o
coronel Olho de Cobra – supôs Leandro. – Só não sei o que vou escrever se
não puder contar a história de Doninha.
– De jeito nenhum – opôs-se Verônica, categórica. – Uma história
como essa deve ser contada na íntegra. Não podemos permitir que um crime
desses passe impune.
Leandro se admirou com a indignação da editora.
– Você sabe que o coronel não vai gostar nada disso...
– Foda-se – resumiu Verônica com uma única expressão. – O coronel
tem problemas mais sérios do que a gente com que se preocupar no
momento.
Leandro inclinou-se para frente.
– O que aconteceu no Ninho da Serpente?
Verônica sorriu, como se estivesse jogando cartas com uma mão
muito boa.
– Ninguém sabe ao certo – admitiu. – Mas parece que o coronel
recebeu visitas inesperadas na noite de ontem. Minhas fontes dizem que um
jipe chegou ao castelo após a meia-noite com três pessoas dentro, mas só uma
entrou no local pela porta da frente. Pouco depois, alguém explodiu o setor de
abastecimento, e boa parte da frota automotiva também foi pelos ares. Daí a
loucura se alastrou para dentro do castelo, onde um verdadeiro tiroteio teve
início. Ninguém soube me dizer como isso acabou, nem se o coronel está
vivo ou morto.
– Quer dizer que o coronel sofreu um ataque na noite anterior e nós
estamos indo visitá-lo sem saber quem ganhou essa pequena guerra?
– Quando você fala dessa maneira, parece que estou sendo
imprudente – criticou Verônica. – Somos jornalistas, Leandro. Não temos
medo do perigo, certo?
Verônica sorriu de maneira meio maluca e Leandro se convenceu de
que a editora definitivamente não batia bem das ideias. Ou talvez não tivesse
medo de nada. Ao contrário dele, ela não tremia nas bases quando alguém
olhava feio na sua direção ou a ameaçava. Leandro baixou a cabeça,
pensativo.
– Você acha que nosso trabalho faz alguma diferença?
– Claro que sim – garantiu Verônica. – Publicamos somente três
edições até o momento, e, apesar de as vendas terem caído levemente após a
primeira edição, já dá para sentir que as pessoas estão mais preocupadas com
as ações de homens como o coronel Olho de Cobra. O povo tem conversado
mais sobre política e as injustiças que presenciamos diariamente. Você
precisa ver quanta gente nos procurou nos últimos dias querendo revelar
alguma informação quente. Nossa redação anda mais movimentada que o
confessionário do padre Azevedo. Estamos fazendo diferença. Você não
nota?
– Talvez eu não esteja prestando atenção o suficiente – disse Leandro.
– Mas tenho a impressão de que as coisas ruins acontecem
independentemente da nossa presença ou das tentativas que fazemos para
melhorar a vida dos outros. É como se todo dia uma tragédia nova
acontecesse para mostrar que nosso esforço anterior não valeu de nada.
Ninguém se importa com o que fazemos, ninguém dá a mínima.
Verônica ficou quieta por um momento.
– Parece que essa história de Miradouro realmente o deixou abalado.
Leandro baixou a cabeça, mas estava sorrindo quando a levantou.
– Vamos fazer uma aposta? Quantos mortos acha que encontraremos
no Ninho da Serpente? Chuto que teremos dois cadáveres e um prisioneiro e
que o próprio coronel Olho de Cobra fará as honras de nos contar como
defendeu o reino sozinho contra a invasão dos bárbaros.
De repente, a carruagem parou bruscamente. Dessa vez, o solavanco
foi mais forte e acabou lançando Leandro sobre a própria editora.
Instintivamente, ele esticou as mãos para a frente e elas acabaram pousando
sobre os peitos de Verônica. Ao tentarem corrigir a situação, os dois se
embolaram e terminaram caindo no vão entre os bancos, numa confusão de
braços e pernas.
– Leandro, saia já de cima de mim – berrou Verônica, furiosa.
O jornalista obedeceu o mais rápido que pôde, encolhendo-se num
canto da carruagem, acuado. Verônica se levantou, indignada, e se ajeitou o
melhor possível, dada a condição em que se encontrava.
– O que esse cocheiro maluco pensa que está fazendo?
A editora colocou a cabeça para fora da janela.
– Ei! – chamou a atenção do cocheiro. – Aprendeu a dirigir ontem?
Por que paramos no meio do nada?
O cocheiro a observou, com olhos assustados.
– Silêncio, dona – pediu. – Não estamos sozinhos na estrada.
Verônica não entendeu exatamente o que ele queria dizer até olhar
para a frente. Aproximadamente cem metros adiante, uma dupla de cavaleiros
observava a carruagem com interesse. Um deles era um negro alto, de cabelos
brancos arrepiados e roupas simples, igualmente brancas. O outro era um
baixinho com roupas imundas e um chapéu que lembrava os antigos
cangaceiros. Verônica voltou para dentro da cabine com os olhos bem
abertos. Leandro franziu o cenho ao vê-la daquela maneira.
– O que houve? – quis saber.
Verônica encarou o jornalista, demonstrando medo pela primeira vez
desde que se conheceram.
– Acho que acabamos de esbarrar com Peixeira e Macumba.
4
A ideia de descer da cabine foi de Verônica. Após o susto inicial, ela
percebeu a oportunidade de ganhar um furo de reportagem, como se houvesse
outros jornais no sertão para competir com o Edição Extraordinária. Leandro
a acompanhou como um bom soldado, ao passo que o cocheiro achou aquilo
uma má ideia e afirmou que daria meia-volta ao primeiro sinal de problemas,
com ou sem eles. Verônica prometeu algumas peças de prata se ele
aguentasse firme em seu lugar. Tinha certeza de que nada de ruim lhes
aconteceria. Aquela mulher tinha sangue de barata.
Juntos, Verônica e Leandro atravessaram o caminho deserto que os
separava dos dois cavaleiros, que os aguardaram em silêncio, como se não
tivessem nada melhor para fazer. Também permaneciam imóveis. O negro,
de costas eretas e rosto tranquilo, com as rédeas de uma égua branca seguras
frouxamente numa das mãos. O cangaceiro, debruçado sobre o pescoço do
cavalo negro, com o rosto coberto de sombras marcado por um ferimento
profundo remendado de forma tosca. Ambos mantinham os olhos fixos na
dupla que se aproximava e exibiam expressões completamente neutras.
– Acho que essa não foi uma das suas melhores ideias – sussurrou
Leandro.
– Não vá dar para trás agora – respondeu Verônica, no mesmo tom. –
E não diga nada a não ser que seja estritamente necessário.
Não seria necessário alertá-lo. Quando estavam a pouco menos de
vinte metros da dupla, Leandro parou e Verônica se adiantou, abrindo seu
melhor sorriso.
– Boa tarde – cumprimentou, simpática. – Por acaso os cavalheiros
estão vindo do Ninho da Serpente?
Leandro precisava tirar o chapéu para ela. A editora não tinha papas
na língua. Os cavaleiros trocaram um olhar e o negro perguntou:
– Quem quer saber?
Verônica se aproximou mais um pouco.
– Ora, que falta de educação a minha! Meu nome é Verônica Mota,
sou editora do jornal Edição Extraordinária e no momento estou a caminho
do Ninho da Serpente – ela fez um sinal para que Leandro também se
aproximasse. O jornalista avançou uns poucos passos. – Sigo na companhia
do meu melhor repórter. Talvez já tenham ouvido falar dele. Leandro
Fuentes?
O cangaceiro levantou a cabeça, interessado.
– Veja só, João Macumba – comentou. – É aquele cara que escreveu
uma matéria a meu respeito – apontou.
Verônica aproveitou a deixa.
– João Macumba? – repetiu, contemplando o negro antes de se virar
para o cangaceiro. – Então você seria Tião Peixeira? – o sorriso dela se
alargou como o de uma fã diante de seus artistas favoritos. Ela sabia
representar. – Estou mesmo na companhia dos famosos Peixeira e Macumba?
O negro girou com a égua branca, aproximando-se da editora
calmamente.
– Parabéns pelo seu trabalho! – cumprimentou. – Apreciamos muito
saber que tem alguém por aí que nem você, preocupada em restabelecer
algum tipo de ordem por estas bandas. Também admiro seu trabalho –
complementou, olhando para Leandro. – Não deve ser fácil convencer as
pessoas a contarem histórias perigosas nos dias escuros em que vivemos.
Verônica olhou para trás, para Leandro, com um sorrisinho matreiro
nos lábios. O jornalista entendeu o recado de imediato. Era justamente o
contraponto da discussão que vinham travando na carruagem. O jornal tinha
um impacto, e nada seria capaz de deixar isso mais claro do que a fala de
João Macumba.
– Fazemos o que podemos – minimizou Verônica, altiva. – E vocês?
O que fazem por aqui?
João Macumba e Tião Peixeira trocaram outro olhar.
– Acredito que esperávamos por vocês – respondeu o negro,
assumindo o papel de porta-voz da dupla.
– Que ótimo! – animou-se Verônica, fazendo mais um sinal, dessa vez
irritado, para que Leandro se aproximasse. – Adoraríamos entrevistá-los.
João Macumba riu, divertindo-se.
– Não temos interesse em dar entrevistas – cortou.
Verônica ficou sem saber o que responder. Leandro se adiantou.
– Mas você mesmo disse que nosso trabalho é importante – destacou
o jornalista, entrando na conversa pela primeira vez. – E se vocês vieram do
Ninho da Serpente, temos certeza de que têm uma história interessante para
contar.
João Macumba se virou para Tião Peixeira, como se procurasse a
aprovação do parceiro, que deu de ombros. Ele tornou a olhar para os
repórteres.
– Não me levem a mal, amigos. Só achamos que temos assuntos mais
sérios a discutir do que a manchete de amanhã.
– Como o quê? – quis saber Verônica.
– Como o destino destas terras – respondeu João Macumba, com um
gesto amplo, abrangendo toda a paisagem que os rodeava. – Desde o fim da
Grande Guerra, o povo daqui se encontra à deriva, vivendo nas terras de
fulano ou beltrano, com as fronteiras flutuando de um lugar para outro de
acordo com as vontades dos poderosos. Depois de tudo que aconteceu,
continuamos a viver numa terra de ninguém, entregues a interesses alheios.
Se quisermos sobreviver aos tempos difíceis que nos aguardam, precisamos
dar um jeito de mudar isso. O jornal de vocês é um bom começo. Informação
pode unir as pessoas ou dividi-las, se for mal utilizada. O importante é que
estão tentando. Mesmo que errem, o sucesso só acontece para aqueles que
tentam.
Verônica olhou de soslaio para Leandro e percebeu que o jornalista
anotava o que podia no caderninho, prestando atenção a cada palavra.
– O que podemos fazer além disso? – incentivou.
– Dar um nome para estas terras seria um bom começo – sugeriu João
Macumba. – Identidade é outra coisa que ajuda as pessoas a se unirem.
Dessa vez foi Verônica e Leandro que se entreolharam.
– Mas não temos esse poder – argumentou o jornalista. – Quem
manda nessas terras é o coronel Olho de Cobra.
João Macumba ofereceu um sorriso enigmático para o repórter.
– Não mais.
Os pelos nos braços de Verônica e de Leandro se arrepiaram, como se
tivessem combinado a ação ao mesmo tempo.
– O que aconteceu com o coronel? – perguntou Verônica, excitada.
João Macumba se virou para Tião Peixeira.
– Vocês vão encontrar o que sobrou dele no castelo – respondeu o
cangaceiro, que ficou incomodado com o modo como Leandro o encarava
fixamente. – O que foi? Algum problema?
– Nada, nada – respondeu o jornalista imediatamente, sem graça. – É
só que, sabe, pensei que você fosse um pouco mais alto.
Pela primeira vez desde o início da conversa, Tião Peixeira sorriu.
– Rapaz, se um cara com o dobro do meu tamanho leva uma surra de
mim você acha realmente que ele vai confessar que apanhou de um
tampinha?
Leandro riu, educadamente.
– Faz sentido – concordou.
João Macumba tornou a encarar Verônica.
– Como estava lhe dizendo, ninguém precisa mais se preocupar com o
coronel Olho de Cobra. Demos um jeito nele para vocês. Só que isso também
cria um novo problema...
– Um vácuo de poder – concordou Verônica, levando a mão ao
queixo, pensativa. – Sem o coronel, outros senhores vão querer um pedaço de
tudo que temos. Os próprios homens das redondezas vão ficar com o olho
grande. Deus! Podemos estar diante de uma nova guerra por território.
João Macumba concordou, calmamente.
– A não ser que outra pessoa assuma o crédito pela queda do coronel.
Verônica fez cara de surpresa.
– Você não pode estar falando sério.
– Por que não? – insistiu João Macumba. – Também fiz meu dever de
casa. Sei que seu pai é um homem poderoso, com sua própria tropa de
soldados à disposição. Depois do que aconteceu em Miradouro ele pode ter
ficado um pouco inseguro. Ainda mais depois de descobrir que o coronel
mandou forças igualmente avassaladoras para Boi Bravo e Ventos Uivantes.
Afinal, Riacho Doce fica bem perto do Ninho da Serpente. E se o coronel
decidisse estabelecer estado de sítio por estas bandas também? Seu pai
precisaria tomar uma providência, mostrar para o povo do que ele é capaz
para proteger os seus...
Verônica pensou sobre o assunto.
– O pior é que isso pode dar certo.
Leandro parou de escrever.
– Parem – protestou. – Parem agora mesmo com essa conversa! O que
você está sugerindo é criminoso! Não temos como sustentar uma mentira
desse tamanho!
– Por que não? – quem perguntou dessa vez foi Verônica.
O jornalista a encarou, estupefato.
– Porque todos vão saber a verdade – disse Leandro, apontando para
os cavaleiros. – Esses dois já são famosos! É só uma questão de tempo até
que o povo descubra que foram Peixeira e Macumba que derrubaram o
coronel.
– Peixeira e Macumba? – perguntou o negro, como se não conhecesse
tais nomes. – Esses dois não existem de verdade, são só uma lenda soprada
pelo vento, criada para dar esperança ao povo.
– É isso aí – concordou o cangaceiro. – Cheguei até a ler no jornal
que o tal Tião Peixeira morreu outro dia! Como um morto pode andar por aí
fazendo justiça com as próprias mãos?
– Devo concordar com eles – disse Verônica. – O povo vai falar um
bocado, mas também vai acabar acreditando no que sair no jornal.
– Como você pode sequer cogitar isso? – perguntou Leandro, já sem
forças.
– Qual é a outra opção? – quis saber Verônica. – Permitir que uma
nova guerra nos arraste para uma trilha sangrenta de morte e destruição?
Porque é isso que vai acontecer se contarmos a verdade.
– E quanto a vocês dois? – apontou Leandro. – Como pretendem
fingir que não existem, circulando por aí em seus cavalos, matando quem der
na telha?
– Vocês não precisam se preocupar mais conosco – garantiu Tião
Peixeira. – Nossos negócios por estas bandas estão concluídos. É provável
que nunca mais ouçam falar de nós. Ou de mim, pelo menos.
Tião Peixeira encarou João Macumba, uma dúvida no olhar.
– De nós – confirmou o negro. – Temos assuntos a resolver em outro
lugar, bem longe daqui.
Leandro cruzou os braços e balançou a cabeça.
– Não gosto nem um pouco de fazer parte disso – reclamou.
– Os personagens raramente escolhem as histórias de que devem
participar – consolou João Macumba, solene. – Todos somos forçados a
tomar posições difíceis de acordo com as circunstâncias em que nos
encontramos. Você veio até aqui por sua própria vontade ou pela curiosidade.
Assuma a responsabilidade por suas decisões, Leandro Fuentes. E se lembre
do poder que têm as palavras nesse seu caderninho.
Leandro continuou de braços cruzados, emburrado.
– Deixe ele comigo – pediu Verônica. – O Leandro gosta de se manter
fiel aos fatos sempre que possível, mas no fim do dia sempre faz a coisa
certa, por mais que lhe doa o coração. Ele entende que o jornal é um veículo
que nem sempre conta a verdade, mas que procura manter um equilíbrio entre
os poderes vigentes, que é o que nos sustenta quando esgotamos todas as
demais alternativas.
João Macumba assentiu e olhou para Tião Peixeira, que se levantou
preguiçosamente de sua posição de descanso, pegando as rédeas do cavalo.
– Nesse caso, desejamos bons ventos para vocês e que tudo se resolva
nestas terras de forma pacífica – despediu-se.
– Apesar das circunstâncias, foi um prazer conhecer vocês –
respondeu Verônica, sem muita certeza no que dizia.
João Macumba não deu bola. Ele sorriu e partiu juntamente com Tião
Peixeira, trotando sem pressa pelo caminho de terra, deixando para trás uma
dupla de jornalistas confusos e infelizes. Todos desejam a mudança, até o dia
em que ela chega e acaba com todas as antigas certezas.
Um grande abraço,
Pablo Amaral Rebello
1º de outubro de 2018
Contatos do autor