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BIOPOLÍTICAS DA NEGAÇÃO AO GÊNERO E AO FEMINISMO NO

MOVIMENTO ESCOLA SEM PARTIDO

Fabiana Aparecida de Carvalho1


Alexandre Luiz Polizel2

Resumo: O Movimento Escola Sem Partido (ESP) configura-se como uma biopolítica escolar que
visa vigilância, coerção e a proibição de temáticas sociais e de direitos humanos, além de rejeitar
discussões sobre os gêneros e as sexualidades, tomando o feminismo e a militância como distorções
ideológicas que corroboram para a corrupção de alunas/os e dos conteúdos disciplinares. O ESP
gera efeitos constitutivos ao implementar um dispositivo pedagógico baseado na docilização dos
corpos e no apagamento das diferenças. Projetos de lei propostos em todas as instâncias
contrapõem-se à construção cultural do gênero e, sob o respaldo de um discurso moral e biológico,
tentam alterar a LDB/96 e permitir a interferência privada familiar no domínio estatal e laico da
escola. Para tal, demonizam as contribuições feministas em função da ideia de neutralidade do
conhecimento ameaçada por políticas partidárias. O presente ensaio objetiva problematizar o ESP à
luz da epistemologia feminista e dos estudos foucaultianos, tensionando-o em sua discursividade
para expor seus enunciados e suas exclusões de falas, principalmente ao se considerar, numa análise
de discurso: a) o cruzamento de uma suposta ideologia de gênero com as proposições desejadas
para a escola; b) a recusa de bases teóricas e militantes advindas do feminismo e suas implicações
na educação para os gêneros, as sexualidades e ao combate às violências; c) o avanço do
movimento junto a outras propostas de políticas públicas conservadoras.
Palavras-chave: Gênero. Feminismo. Escola Sem Partido. Biopolítica. Discursos.

A Infâmia em f-atos...
1.) Em 1961, o cineasta William Wyler adaptou para o cinema a obra “The Children´s
hour”, de Lillian Hellman, cuja materialidade fílmica encorpa a história de duas professoras
fundadoras de um internato para meninas ricas numa pequena cidade da costa leste americana que,
no roteiro, simbolizava um território tomado pela estratificação social e pelos princípios da tradição
puritana e dos bons costumes apregoados no país. Vítimas de suposições, difamação e de calúnia
provindas das acusações de uma aluna, que contava mentiras a bel-prazer e com o intuito de
manipularas regras quanto à realização de suas obrigações e atividades curriculares, as docentes
foram acusadas de conduta não natural que colocaria em cheque os dogmas morais da localidade,
principalmente por se tratar, no âmbito do insinuado, de um relacionamento lesbiano. A história,
adensada por um clima psicologicamente devastador e sombrio de dúvidas, culpas e incriminações
introjetadas, conduz-nos, como espectadoras/es, às conseqüências de uma impostura que culminou
na falência da escola e no arraso das vidas profissionais e pessoais das donas do colégio. Os

1
Departamento de Biologia, Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá (PR), Brasil.
2
Programa de Pós Graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática, Universidade Estadual de Londrina
(UEL), Londrina (PR), Brasil.

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julgamentos proferidos e as acusações inapeláveis retratados na trama são uma metáfora alusiva ao
período de caça às bruxas do macarthismo estadunidense – uma política de Estado centrada na
delação promovida pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, entre as décadas de 1940 e 1960,
com o pretexto de denunciar, vigiar e prender comunistas ou pessoas com associações socialistas ou
contrárias aos valores tradicionais vigentes. “Infâmia" é título dado em português para um filme
que joga com as ambigüidades da mentira, da dúvida e da perda da honra, de sermos capturadas por
discursos que inventam pessoas e o que essas podem fazer ou não em sociedade; é uma obra de
ficção que expõe os agravos da condenação às cegas, da vigilância e da imposição moral.
2.) Em 2017, uma professora de pós-graduação filiada a uma Universidade Catarinense está
sendo processada por sua ex-aluna; o motivo: a divergência de posicionamento entre as duas quanto
aos estudos feministas e ao papel das mulheres em sociedade. A aluna, que se reconheceu cristã,
conservadora e antifeminista, alegou ter sido constrangida pela orientadora e sua concepção de
gênero durante as aulas, requerendo indenização por danos morais e por difamação de suas
convicções religiosas e pessoais. Declarou-se também adepta à Escola Sem Partido (ESP), de quem
recebeu convites para postar vídeos no canal YouTube, reportando-se ao caso e desqualificando a
instituição e a orientadora com palavras fóbicas que, fatidicamente, causaram constrangimento à
docente. Muitos desses vídeos viralizaram rapidamente pela rede social Facebook sem o
consentimento da professora, expondo seu perfil, seus alinhamentos teóricos e de vida a toda sorte
de comentários violentos, sexistas e acusatórios proferidos por seguidoras/es declaradas/os de
movimentos sociais que empunham posturas de direita e da organização Escola Sem Partido. A
tônica da aluna é dada pela crítica a um suposto totalitarismo de professoras/es e a acusação de que
essas/es se manifestam ideologicamente em temas sociais e contundentes como educação sexual,
racismo, ensino religioso e diversidade étnico-cultural. Diversas entidades como a Associação
Nacional dos Professores Universitários de Histórias (ANPUH), grupos de pesquisa e de militância
moveram moções de apoio e solidariedade à Docente. O processo segue em andamento. A aluna
sustenta o feminismo como antinatural. A professora se sentiu abalada pela exposição excessiva de
seu nome em perseguições infames e infundadas. O caso segue em julgamento na comarca da
capital do Estado.
Os dois fatos descritos estão borrados de ficção e verdade e podem ser deslocados para
pensarmos que, no emblemático momento pós-impeachement de Dilma Roussef e da ascensão de
coalisões conservadoras no país, cada uma de nós, leitoras e docentes, poderíamos performar (por
força de imposição e denúncia) quaisquer dessas personagens que se viram questionadas por suas

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posturas sociais, mas, também em episódios persecutórios de suas práticas profissionais, das
liberdades de ensino, expressão e de cátedra. Esses fragmentos são deslocados como exemplos da
atuação de tecnologias de poder que determinam e agem na conduta das pessoas a fim de se criar
táticas de governo e de regulação de suas vidas (FOUCAULT, 1988). Adensam também a escrita
deste ensaio teórico, cuja análise debruça-se nas enunciações e nos apontamentos discursivos
apresentados no site do ESP, criticados, aqui, à luz das teorizações foucaultianas e feministas.
Problematizamos os efeitos constitutivos dos discursos dispersados nas bases ideológicas da
organização, especialmente em relação à sua cruzada contra os estudos de gênero e ao feminismo
rotulados como antinaturais e como posições ideológicas que corroboram para a corrupção das/os
estudantes e das disciplinas da educação básica. Essa distorção de proposições, negociada nas/por
relações de poder e saber, envolve dispositivos advindos de dogmas religiosos e escolhe como alvo
da supressão das políticas escolares os corpos e às materialidades femininas, LGBTTQIAs, étnicas
e aquelas/es que apregoam o pensamento crítico, a problematização das condições históricas e o
pensamento divergente da ordem normativa.

A Emergência de uma Biopolítica para os Corpos Escolares Brasileiros


O ESP foi fundado em 2004 por Miguel Nagib, advogado e ex-procurador do Estado de São
Paulo vinculado a grandes corporações particulares de ensino e à “Think tank” Instituto Millenium
e, consubstancialmente, cresce em termos de adesão, vinculação partidária e apresentação de
projetos de lei (PL) em todo país que visam, estrategicamente, cercear o ensino nas escolas
públicas. A decisão de iniciar e coordenar a organização decorreu da ideia de controle parental por
sobre as tomadas de decisões na escola da filha de Nagib e de suas posturas pessoais contrárias aos
pressupostos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO/ONU), particularmente no que diz respeito à promoção de políticas públicas igualitárias
e equitativas e à proposição de temáticas sociais voltadas à superação de violências, racismos,
preconceitos e classismos nas escolas. No site da organização, há uma declaração de que as Escolas
funcionariam como seqüestradoras da boa vontade das/os estudantes, num mecanismo doutrinário
semelhante à Síndrome de Estocolmo, no qual discentes tidas/os como reféns acabariam cativas/os e
capturadas/os afetivamente pelas posturas ideológicas de suas/eus professoras/es (ESCOLA...,
2017).
O movimento, entretanto, não é novo em termos de filosofia de atuação. Baseia-se nos
ideários conservadores das ONGs estadunidenses “No indoctrination”,“Accuracy in Academia”

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(AIA) e “Accuracy in Media”, que rejeitam a educação problematizadora, a educação multicultural
e a redução de incentivos financeiros para as práticas equitativas de direitos e respeito às minorias,
atacando algumas proposições de cunho social e as epistemologias feministas que visam à
eliminação de discriminação e desigualdades ao equiparar, por exemplo, os direitos de mulheres e
de homens. O objetivo dessas instituições é sempre a denúncia de preconceito, de perseguições ou
de ensino de cunho ideológico professado por docentes e o combate das consideradas posturas
críticas como aquelas defendidas, no caso do Brasil, por Paulo Freire e sua Pedagogia do Oprimido,
por Milton Santos e a proposição da Geografia Crítica, por Frei Beto e as correntes filosóficas
vinculadas à Teologia da Libertação e pelos os Estudos Feministas que avançaram nos debates
sobre gênero e disseminaram demandas incorporadas nos currículos escolares oficiais a partir da
década de 1990. Logo, numa distorção que opera pela leitura enviesada e superficial das bases e dos
fundamentos dessas teorizações o ESP categoriza a todas como doutrinação marxista, ideologia
esquerdo-partidária e deterioração comunista dos valores morais.
Como organização atrelada a corporações particulares de educação, sistemas de ensino,
famílias, empresas e igrejas, motiva-se por três objetivos: “a descontaminação e desmonopolização
política e ideológica das escolas; o respeito à integridade intelectual e moral dos estudantes; e o
respeito ao direito os pais de dar aos seus filhos uma educação moral que esteja de acordo com suas
convicções” (CARA, 2016, p. 4). E se apoia na idéia de interdito dos saberes científicos no espaço
educacional, considerando os posicionamentos das/os professoras/es (cunhados como
doutrinadoras/es) um impedimento à liberdade de aprender e ao pluralismo de ideias.
Embora haja PL baseados no ESP propostos nas esferas estaduais e municipais, dois
especificamente ganharam destaque nacional: o PL 867/2015, de autoria do Deputado Izalci Lucas
(PSDB) apresentado na Câmera, visando incluir o ESP na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB/1996) com o intuito de regimentar a neutralidade política, ideológica e religiosa do
Estado, o pluralismo de idéias, as liberdades de crença, o reconhecimento da vulnerabilidade das
estudantes, o direito de interferência familiar na educação moral, a proibição da doutrinação política
conflitantes com as convicções religiosas ou morais dos pais, o cerceamento da liberdade das
professoras em questões políticas, sócio-culturais e econômicas, a afixação de um cartaz de 70 X 50
cm com deveres docentes para que as/os estudantes saibam diagnosticar a doutrinação, a
interferência no Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD) e nas avaliações de vestibulares e
concursos para o ingresso em carreira docente. Ressaltamos que essas medidas não se tratam de
ações inocentes, mas, primeiramente, de interferências precisas na LDB/1996 que afetariam a

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autonomia escolar e os princípios laicos do Estado ao se implantar uma indistinção entre o público e
o privado; e, à segunda vista, na implantação de uma tecnologia de poder pastoral e de controle
panóptico (FOUCAULT, 2014) que criará regimentações no espaço escolar a ser vigiado por
mecanismos de medos, por práticas delativas, coercitivas e pela interiozação de culpas ao não se
comportar de acordo com o programa.
Na mesma esteira, o PL 193/2016, de autoria do Senador Magno Malta (PR), é uma versão
estendida do primeiro, delegando ao Estado o poder de vigilância por sobre quaisquer práticas
capazes de comprometer o amadurecimento natural das/os alunas/os que não seja harmônica com a
identidade biológica de sexo. Veta, especialmente, a aplicação dos postulados advindos de teorias e
dos estudos decorrentes de uma suposta "ideologia de gênero", clamando a pluralidade de idéias
advinda de casa. A base constitutiva do PL, que ainda tramita pela Comissão de Educação, Cultura
e Esporte do Senado, endossa um modelo de notificação extrajudicial disponível no site do
movimento como a arma mais poderosa da família no direito de filhas/os (ESCOLA..., 2017), que
se aplicaria não somente aos casos de doutrinação descritos, mas que se estenderia, com a ameaça
de judicialização das abordagens docentes, às discussões de sexualidade e gênero, mesmo aquelas
pautadas pelos pressupostos dos Parâmetros Curriculares Nacionais e mesmo com a declaração de
inconstitucionalidade emitida pelo Ministério Público Federal, que aponta a ilegalidade da censura
das discussões.
O ESP, portanto, imbuído de dispositivos, ou seja, de práticas, discursos, aparelhagens,
ferramentas, enunciados que organizam, constituem e adensam os sujeitos escolares (FOUCAULT,
1988), visa implantar ordenamentos, vigilâncias, coerção e a proibição de temáticas sociais e de
direitos humanos, além de rejeitar discussões sobre os gêneros e as sexualidades, tomando o
feminismo e a militância como distorções ideológicas que degradam a escola. Trata-se, sob um
entendimento foucaultiano, de um biopoder sobre os corpos discentes e docentes e de uma
biopolítica atenta à população e ao governamento da vida social a partir das escolas. Do ponto de
vista das epistemologias feministas, a organização pode ser considerada um processo de
subalternização a impor "violências epistêmicas" (SPIVAK, 2014), à medida que seus proponentes
tomam o lugar de outrem ou universalizam as/os sujeitos da escolarização e suas famílias em
negociações e tutelamentos que descaracterizam o lugar social e as legitimidades das pessoas em
termos de direitos, opiniões e liberdades de expressão. As arbitrariedades escamoteadas por uma
pseudo-idéia de pluralismo de opiniões afetam diretamente as posições dos grupos minoritários que,
no decorrer das últimas três décadas do cenário político brasileiro, conquistaram visibilidade nas

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arenas sociais e levaram para os documentos e territórios escolares as demandas específicas de suas
classes sociais, etnias, identificações de gênero e de seus pertencimentos culturais. Logo, além de
gerar controle, o maior efeito do ESP é manter a inteligibilidade de corpos, pessoas e escolas
desejáveis pelo poder hegemônico (BUTLER, 2012), relegando condições de abjeção,
invisibilidade e de minimização de direitos para as materialidades não brancas, não
heteronormativas e não detentoras de fluxos econômicos.
Apontamos, a seguir, as questões mais tocantes aos estudos feministas e às temáticas de
gênero tracionadas pelos ESP.

O cruzamento da Ideologia de Gênero com proposiçõs escolares


A popularização do movimento, aqui no Brasil, não pode ser analisada sem tracionar seu
vínculo com alguns setores das Igrejas Católicas e Pentecostais e com as/os representantes
políticas/os contrários à laicidade do Estado que estão, dentro das condições de votação ou tomada
de decisões públicas, orientadas/os por dogmas e preceitos religiosos. Antes de 2014, por exemplo,
a expressividade do ESP era pífia e circunscrita a poucas palestras de Miguel Nagib e à
disseminação de idéias em sites inexpressivos nas redes sociais. O crescimento de adeptas/os em
volume e participação nas decisões sociais adveio, no mesmo ano, com a cruzada contra os estudos
feministas empreendida por aquelas/es que combatem os aportes de uma suposta "Ideologia de
Gênero".
Neste sentido, os episódios de votação dos Planos Decenais de Educação - em âmbito
Federal no ano de 2014 e, no período subseqüente, nas esferas Estaduais e Municipais, são
exemplos emblemáticos de um verdadeiro controle que, discursivamente, incidiu na opinião pública
quanto à denegação de mulheres, negras/os e de LGBTTQIAs em políticas educativas. Com a
apresentação de argumentos religiosos que descaracterizaram os científicos e se cruzaram com
proposições fascistas, as/os legisladores alteraram e suprimiram conceitos, terminologias e metas
pertinentes ao combate da desigualdade de gênero e outras desigualdades sociais, o que abriu
brechas interpretativas para que a cultura dominante determine o que entenderá por políticas e por
investimentos educacionais necessários para a conformação social de práticas de apoio às minorias.
A justificativa decorreu da tese de que a promoção da igualdade dos gêneros desconstruiria os
valores tradicionais da família, as leis naturais e biológicas e a base religiosa defensora da
determinação sexo/gênero ao nascimento; o pano de fundo da questão, entretanto, remete ao fato de
que a inclusão do gênero nas metas obrigaria as/os legisladores, posteriormente, a tomarem

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posicionamentos quanto à criminalização das violências e fobias e quanto à inserção de políticas
educacionais e de saúde para mulheres e pessoas transgêneras.
Paulatinamente, as medidas derivadas das votações dos planos e da visibilidade do viés
conservador dos PL e do site do ESP adentraram nos ideários escolares e a familiares como
dispositivos de sexualidade (FOUCAULT, 1988) e como investidas de uma dinâmica de poder que
normatiza corpos, gêneros, prazeres, vivências, tomando-os em função de ideais regulatórios que
lhes impõe uma materialização a ser governada (BUTLER, 2012) e os subordinam a uma sociedade
que exclui, compulsoriamente, aquilo que ela mesma classifica e patologiza. Ao se visitar, por
exemplo, as proposições do movimento em seu site, mais de 49 postagens que perfazem
depoimentos, vídeos e artigos escritos por advogadas/os, psicológas/os, pais e mães (ESCOLA...,
2017) fomentam a invisibilização e a condenação de iniciativas escolares que abordam temas como
violências de gênero, desigualdade, diversidade sexual, preconceitos raciais e sexuais, além de
descaracterizar grupos de pesquisa acadêmicos, feministas, militantes, práticas e debates
questionadoras das relações de poder, das práticas heteronormativas, das discriminações e
violências de gênero e dos apagamentos dos LGBTTQIA. Os materiais e livros didáticos também
são alvos de críticas e perseguições, pois seriam, segundo o site, os principais conformadores do
pensamento da "ideologia de gênero" e do construcionismo subjetivo e sócio-relacional dos corpos
na cabeça das crianças e jovens, o que projeta o ESP como um severo interpelador do Plano
Nacional do Livro Didático (PNLD) e das campanhas educativas promovidas pelo Ministério da
Educação (MEC) e como a um censor dos conteúdos, práticas e intervenções escolares que
confluem para as discussões de gênero e sexualidade.
Logo, o combate à "ideologia de gênero", nas proposições do movimento, está amparado por
falácias e discursividades que elegem a religião como "totem e tabu" incontestes; como imperativo
de verdade, os dogmas disseminados acabam, portanto, por corroborar para passividade das/os
estudantes nos processos democráticos de construção de respeito, para minimizar suas participações
nos debates públicos sobre gênero e para o esvaziar das demandas escolares os temas que
problematizam a vida em sociedade. Nesse sentido, a educação neutra almejada por suas/seus
defensoras/es, conforme aponta Ximenes (2016), vincular-se-ia à reprodução da ideologia
discriminatória, machista, misógina, racista e homolesbotransfóbica de outra instâncias
educacionais. Vale destacar também que sob a égide do cuidado e da preservação dos costumes, o
dispositivo religioso coliga-se às estratégias de governabilidade das/os sujeitos escolares e implanta
a preferência por uma educação conservadora e tecnicista que reproduz os papéis sociais

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estereotipados e opressivos para mulheres e homens, que criminaliza o trabalho pedagógico e que
realoca a escola num obscurantismo de posições anticientíficas e a-históricas, estrategicamente,
capturado por interesses econômicos de corporações que apregoam a ideologia da exclusão, a
pedagogia do medo, a intolerância à pluralidade de saberes e o desmantelamento da escola pública
com finalidades lucrativas.

A recusa de bases teóricas e militantes advindas do feminismo


Para compreender a aversão à epistemologia feminista, é necessário perfazer um caminho
explicativo para localizar como insurgem as condenações dos estudos e da militância de gênero
apregoadas pelo ESP. Em destaque na apresentação da web página da organização, por exemplo,
encontramos um vídeo com o título: "Ideologia de gênero e que se dane a lei" (apresentado por uma
Youtuber que se declara cristã, feminina e politicamente incorreta), distorcendo as bases legais
presentes na legislação brasileira (em consonância com o trabalho com temas ligados aos gêneros e
contra a violência), principalmente, ao alegar que as mesmas fazem parte de um marxismo cultural
que opera por uma lavagem cerebral dentro de universidades, de grupos militantes e de escolas
(ESCOLA..., 2017). Esse discurso perfaz uma adulteração cínica da verdade história e se entrelaça à
também difundida concepção de que o gênero desconstrói as realidades universalistas defendidas
pelo cristianismo: o sexo justificado pela procriação, a família natural, a maternidade como sina
abnegada das mulheres, a hegemonia masculina, a criação divina, o fixismo dos corpos e das
sexualidades, o interdito do aborto e a sistêmica patriarcalista sempre apoiada na idéia de governo
do mundo por um deus masculino e soberano, entre outras.
Tanto fundamentalistas católicos quanto evangélicos empunham, desde o final da década de
1990, nos Estados Unidos, em países sul-americanos, africanos e europeus com forte influência de
lideranças religiosas, arbitrárias críticas à agenda de gênero da ONU e da UNESCO implantada, ao
que dizem, sobre influência do ativismo feminista e como perspectiva de governança mundial. De
acordo com suas concepções dogmáticas, o propósito da militância seria gerar um Gender
Establishment (O´LEARY, 1997) cujos objetivos abarcam: o controle populacional, a liberdade
sexual, a promoção dos direitos gays, lésbicos, transexuais e transgêneros, o apoio ao
multiculturalismo, o apoio aos movimentos ambientalistas e às causas ecológicas, o vínculo teórico
às bases marxistas, pós-modernistas e desconstrutivistas e a incorporação da perspectiva de gênero
em todo programa e política nos setores públicos e privados. Acreditam que o gênero tenha nascido
em laboratórios de ciências humanas, sendo enxertados gradativamente na revolução feminista dos

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anos de 1960-1970, na revolução cultural dos anos de 1980, nas proposições internacionais dos
órgãos e comunidades internacionais (sobretudo, as advindas da Conferência Populacional do Cairo
(1994) e da Conferência Mundial sobre as Mulheres de Pequim (1995), que consagraram a
igualdade dos direitos e o gênero como constructo decorrente das relações de poder e dos padrões
socioculturais impostos a mulheres e homens) (PEETERS, 2015). E mais. Apontam que, não
satisfeitas, as feministas deliberadamente implantariam o nonsense da homossexualidade e
promoveriam a diversidade de orientações sexuais inclassificáveis ou queers a deturpar a mente de
jovens e a implodir a vida heterossexual conjugal. Nas acepções apontadas pelos movimentos
religiosos e pelo ESP, a idéia de queer é, contudo, uma subversão radical da ordem natural e divina,
desessencializada da normalidade e perigosamente atrelada à desestabilização identitária e social.
A filósofa francesa Simone de Beauvoir, e o apontamento social constitutivo do se fazer
mulher; a americana Eve Sedwick, e sua epistemologia do armário; a australiana Raewyn Connel, e
as chaves para se entender o campo de embate dos gêneros em termos de uma arena reprodutiva; a
hispânica Paul Beatriz Preciado, e a discussões das tecnologias sexuais na conformação dos corpos;
e a americana Judith Butler, e a explicação dos efeitos de poder e de constituição dos atos de
performatividade que podem ser reiterados, deslocados ou desconstruídos na conformação de
pessoas femininas, masculinas ou não binárias, são as teóricas mais apontadas e difamadas pelo
conteúdo do site, justamente, por desprenderem, na construção de suas teorizações, o gênero da
ontologia biológica e das preleções religiosas atreladas ao determinismo naturalístico.
A categoria analítica do gênero, portanto, está arrastada pelo ESP junto a uma difusa rede de
discursos totalitários e fascistas, encarregados de realizar uma superposição de enunciados que
relativizam, por meio de dicotomias, explicações, propagandas e cartilhas de divulgação, todo e
qualquer assunto relativo à desestabilização dos papéis sexuais mantidos pelo status quo, todo
entendimento sobre homo, lesbo e bi afetividade, toda pauta de direitos de mulheres, de classes e de
etnias e toda tentativa de não marginalizar as alteridades e as sexualidades diferenciadas nas
escolas.

O avanço do movimento junto a outras propostas de políticas públicas conservadoras


Num breve recorte, podemos dizer que o ESP encontrou terreno fértil para sua ascensão a
partir de conjunturas políticas que minaram as ações referentes: i) à promoção dos direitos sexuais,
reprodutivos, da defesa da laicidade e da livre expressão no Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH); ii) que promoveram proibições e sanções ao Programa Educacional Brasil sem

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Homofobia; iii) que eliminaram, como já explicitado, as metas favoráveis ao combate de
discriminações de gênero nos Planos de Educação (XIMENES, 2016). Entretanto, vale frisar que
uma das causas de seu aumento em volume, adesão e representatividade, encontra-se causa e
conseqüência nas movimentações e protestos apartidários que tomaram as ruas em 2013 na defesa
do liberalismo, do livre mercado e deram visibilidade para posicionamentos autoritários e
polarizados. A esses fatores soma-se, ainda, a sua vinculação panfletária ao Movimento Brasil Livre
(MBL) - entidade empenhada na eliminação da representatividade política esquerdo-partidária e co-
responsável por algumas das articulações e protestos que impulsionaram a opinião pública em
relação ao afastamento de Dilma Roussef em 2015. Ambas as organizações defendem, em termos
de políticas educativas, a legalização do "homeschooling" (educação domiciliar que aumenta o
poder de interferência familiar na instrução de filhas), a apresentação do ESP em legislativos
estaduais e municipais, a redução de impostos para escolas privadas, a militarização de escolas em
áreas de risco social, a gestão privada da escola pública por organizações sociais e sistemas de
ensino particulares, a facilitação da expansão da rede privada via financiamento institucional, o
incentivo à produção científica nas áreas de exatas e biológicas e a extinção das abordagens de
temas contundentes pelas ciências humanas. Essas posturas, em conjunto com as políticas
neoliberais, cruzam-se com e fortalecem as bancadas representantes de igrejas, do agronegócio e do
armamento (conhecidas como "Bala, Boi e Bíblia") - que conclamam a moralidade no país ao se
revestir de autoridade religiosa, da evocação da família e da estabilidade financeira para justificar a
inflexibilidade de suas posições no processo democrático de direitos, investimentos e de políticas.
Recentemente, em abril de 2017, durante o processo que discute e sistematiza a nova Base
Nacional Curricular Comum (BNCC), o MEC, a exemplo da votação dos planos nas casas
legislativas, cedeu às pressões de grupos religiosos e das/os defensoras/es do ESP, excluindo, uma
vez mais, as expressões "identidade de gênero" e "orientação sexual" do currículo comum, o que
impacta negativamente as competências de ensino de educadoras/es, a proposição de objetivos
educacionais e conteúdos curriculares e a construção de habilidades e táticas de respeito para com a
diversidade junto às/aos estudantes. A ONU emitiu nota contrária e cobrou posicionamento do
governo brasileiro em relação à subordinação legislativa às influências do ESP e ao cerceamento de
conteúdos escolares. Apesar da solicitação de resposta do organismo internacional, o movimento
tenta se firmar para além dos PL por meio de clamores imediatistas, midiáticos, interferências em
processos de tomadas de decisão e respaldados pelos discursos de crise moral, econômica e
educacional no país; destacam-se: i) as tentativas de implantar emendas na Medida Provisória

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746/2016, que alterou as políticas de fomento para o Ensino Médio; ii) a participação de
representantes em Comissão Especial no Congresso, que deverá julgar a inclusão dos valores de
familiares sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à moral, educação sexual e religiosa;
iii) a interferência nas respostas enviadas à ONU pelo Itamaraty, alegando que a tramitação de todos
os PL seguem democraticamente no Brasil; iv) a constante reincidência na elaboração de
notificações extrajudiciais como recurso coercitivo para minar a autonomia docente; v)o
cerceamento conservador das políticas do PNLD/MEC e acusações junto ao Ministério Público para
extinguir a distribuição de livros com caráter doutrinador; vi) a deliberada acusação de sites, blogs,
militantes e movimentos feministas em prol de pautas como o aborto, o rigor na aplicabilidade da
Lei Maria da Penha, o exortação das articulações negras e periféricas, as políticas humanitárias de
migração, o empoderamento das mulheres em relação a salários dignos, o incentivo aos direitos e
arranjos familiares diferenciados, entre outros..

Considerações finais
Embora não tenha, ainda, alterado os dispositivos da LDB/96 e nem se configurado como lei
oficial (apesar da aprovação Lei da Escola Livre em Alagoas, o Ministério Público Federal emitiu
Liminar sobre sua inconstitucionalidade), o movimento perfaz uma pedagogia do medo e da
violência a oprimir pessoas e a mobilizar uma concepção de ciência ligada aos conhecimentos
hegemônicos que, sob o disfarce da neutralidade dela própria, do ensino e do ordenamento técnico
do planejamento, mormente sustenta bases ideológicas que naturalizam as desigualdades de raça,
classe e gênero. As táticas de negação ao feminismo e ao gênero contribuem para perpetrar um
"estado de exceção" (AGAMBEN, 2004) para as escolas públicas, firmando discursos travestidos
de estatutos legalizados e com o intuito de instalar absolutismos morais e perseguições. Embora o
movimento, dada à sua ilegalidade, seja uma falácia ideológica, a cada dia, em alguma localidade
do país, ele avança como argumento de autoridade e como estatuto que mobiliza injúrias e infâmias
contrárias à proposição de uma educação libertária. Sob esse prisma, O ESP já é assumido por
muitas/os críticas/os, organizações civis e instituições de pesquisa comprometidas com a
publicização das escolas (entre eles, o movimento "Professores contra o ESP"), como uma espécie
de neomarcatismo criador de táticas delatórias, de criminalização e de coibição dos atos docentes e
da formação escolar, que funciona com a dispersão compulsória de mentiras e acusações que
acabam se tornando verdades nos meios de comunicação, nas redes sociais e nas pedagogias
escolares e culturais que permeiam a vida de professoras/es, estudantes e famílias.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13 thWomen’s Worlds Congress(Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

BUTLER, Judith. Cuerpos que importan - sobre los límites mateirales y discursivos dels sexo.
Buenos Aires: Páidos, 2012.

CARA, Daniel. O programa "Escola sem Partido" quer uma escola sem educação. In: SOUZA, Ana
Lúcia Silva et al (orgs.). A ideologia do Movimento Escola sem Partido. São Paulo: Ação
Educativa, 2016. p. 23-48.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.

_____. História da Sexualidade - a vontade de saber. 14a. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

O´LEARY, Dale. The gender agenda. Vital Issues Pres: Lafayette, 1997.

PEETERS, Marguerite. O gênero: uma norma política e cultural mundial. São Paulo: Paulus, 2015.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

XIMENES, Salomão. O que o direito à educação tem a dizer sobre “Escola Sem Partido”?. In:
SOUZA, Ana Lúcia Silva et al (orgs.). A ideologia do Movimento Escola sem Partido. São Paulo:
Ação Educativa, 2016. p. 49-58.

Biopolitics of denial to the gender and feminism in the Moviment “EscolaSemPartido”

Astract: The Movement EscolasemPartido (ESP) is a school biopolitics that aims at surveillance,
coercion and the prohibition of social and human rights issues, as well as rejecting discussions
about gender and sexuality, taking feminism and militancy as Ideological distortions that
corroborate the corruption of students and disciplinary content. ESP generates constitutive effects
by implementing a pedagogical device based on the docilization of bodies and the erasing of
differences. Proposed bills of law in all instances contradict the cultural construction of the genre
and, under the backing of a moral and biological discourse, attempt to alter LDB / 96 and allow
private family interference in the state and secular domain of the school. To this end, they demonize
feminist contributions in terms of the idea of knowledge neutrality threatened by party policies. The
present essay aims to problematize ESP in the light of feminist epistemology and Foucaultian
studies, stressing it in its discursiveness to expose its statements and their exclusions from speeches,
especially when considering, in a discourse analysis: a) the intersection of a supposed Gender
ideology with the desired norms for the school; B) the rejection of theoretical and militant bases
from feminism and its implications in education for gender, sexuality and the fight against violence;
C) the advance of the movement along with other conservative public policy proposals.
Keywords: Gender. Feminism. Escola sem Partido. Biopolitics. Discourses.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13 thWomen’s Worlds Congress(Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X

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