Entregue a Sedução - Sg Mendes
Entregue a Sedução - Sg Mendes
Entregue a Sedução - Sg Mendes
ENTREGUE A SEDUÇÃO
1ª edição 2024
Assessoria: @fox.assessorialiteraria
Capa: Giovana Martins
Diagramação: Sandra Almeida
Revisão: Márcia Rodrigues
Passei o dia todo pensando em Letícia. Vê-la ali tão carinhosa com
as crianças me deixou sensibilizado. Fui para a ronda, mas com a cabeça na
ala pediátrica. O que estava acontecendo comigo? Aquilo estava parecendo
mais uma obsessão.
Tinha pedido para que ela me aguardasse, mas um dos pacientes
apresentou uma infiltração, e tive que fazer um procedimento que demorou
mais do que o esperado. Fiquei preocupado que ela não me aguardasse e
enviei uma mensagem pedindo para que me esperasse. Que ansiedade, puta
que pariu! Estava parecendo aqueles adolescentes prestes a ter o primeiro
encontro.
Estava na sala trocando de roupa, quando Thaís chegou me
agarrando por trás.
— Vamos brincar um pouquinho, Doutor Sedução?
— Hoje eu não vou poder. Vamos deixar para outro dia.
— Ah, vai! Só uma rapidinha. O meu plantão ainda não acabou e
daqui a pouco tenho que voltar ao trabalho.
Ela enlaçou os braços no meu pescoço querendo me beijar. Me
desvencilhei com delicadeza dizendo.
— Fica pra próxima, gata. Hoje não dá mesmo.
Dei um selinho nela e saí.
Quando cheguei à recepção, Letícia não estava. Fiquei nervoso,
imaginando que ela teria cansado de me esperar e ido embora. Perguntei à
recepcionista, que me informou que ela estava no banheiro. Quando ela
apareceu, eu quase perdi o fôlego. Ela estava linda, com os cabelos longos
soltos e um batom rosado naquela boca gostosa. Teria que me segurar. Já
tinha sacado que essa menina não era como as outras. Teria que ir bem
devagar até conseguir o que eu queria.
Fui ao seu encontro, disse o quanto estava linda e a convidei para
jantar. Ela fez charminho, dizendo que não, então fiz uma gracinha
perguntando se ela tinha um namorado ciumento e disse que éramos
amigos. Antes que ela desistisse, segurei sua mão e saí de mãos dadas com
ela do hospital.
Decidi levá-la a um restaurante discreto, fora do perímetro urbano.
Não queria que fôssemos vistos juntos. Eu era muito conhecido na cidade, e
sempre quando me viam acompanhado, as especulações já começavam e
não demorava muito até chegarem aos ouvidos da minha mãe. Aí eu seria
submetido a um interrogatório sem fim do tipo “quem é” e “a qual família
pertence”. Já pensou se minha mãe descobrisse que eu estava saindo com
uma garota que viveu a vida inteira em um orfanato e ainda trabalhava
como cuidadora no lugar onde meu avô estava internado? Ela iria surtar!
Quando chegamos ao restaurante, notei que Letícia ficou um pouco
desconfortável. Apesar de o local não ser tão luxuoso, ela parecia
visivelmente acanhada. Para descontrair, pedi uma garrafa de vinho, mas ela
quis apenas uma água, alegando que nunca havia bebido. Ainda insisti para
que experimentasse, mas ela se negou. Realmente, ela era diferente de todas
as meninas que eu já conheci. Tentando deixá-la mais à vontade, engatei
uma conversa sobre o meu trabalho no hospital e na clínica, sem mencionar
que eu era o dono.
— Eu acho a carreira médica linda. Para mim, ser médico é gostar
de gente, das relações humanas, de olhar para o outro com respeito e tratá-
lo com amor e dignidade. Os médicos são verdadeiros anjos. Assim como
você, Miguel.
Ela realmente era muito iludida...
— Olha, Letícia, ser médico não é exatamente um sacerdócio como
sugerem alguns. Não tem nada a ver com ser um anjo ou um super-herói
que supera absolutamente todas as adversidades. A não ser em ONGs
focadas em ofertar amor e qualidade de vida aos pacientes, como a
Doutores da Alegria.
— Eu assisti a um documentário sobre os Doutores da Alegria.
Achei fantástico — disse ela.
— Pois é, mas a realidade é muito diferente. Nós enfrentamos
problemas gigantescos diariamente nos hospitais públicos. O Sistema Único
de Saúde está sucateado, não há leitos em muitos hospitais pelo país e
faltam medicamentos...
— Sim, mas ser médico também significa superar esses obstáculos e
dar o melhor para o bem do paciente. É exatamente isso que me impulsiona.
Na próxima semana, vou começar um cursinho para prestar o vestibular no
final do ano, pois meu sonho é fazer uma faculdade de enfermagem.
Opa! Aí estava o gancho que eu precisava para aproximá-la mais de
mim.
— Enfermagem? Perfeito, Letícia. Já tem emprego garantido. Nem
precisa estar formada. Assim que você entrar na faculdade, vou falar
pessoalmente com o diretor da clínica onde trabalho e pedir para encaixar
você no programa de estágio remunerado. Assim, você não vai mais
precisar ficar o dia inteiro cuidando de velhos doentes.
— Ah, Miguel, desde já eu agradeço muito a você pelo estágio. Já
aceitei, e quando chegar a hora eu vou cobrar. Uma coisa que aprendi é não
ser orgulhosa. Sei que vou precisar de toda a ajuda possível para iniciar
minha carreira. Mas, quanto ao meu local de trabalho, só para esclarecer, lá
não é um lugar só de velhos doentes. Desde que comecei a trabalhar lá,
conheci pessoas incríveis. Pessoas que me ensinam a cada dia. Você não
tem ideia da sabedoria dessas pessoas. Estou amando essa troca de
experiências. Está sendo fundamental para a minha formação, para o meu
amadurecimento e para a minha evolução como pessoa.
Acho que falei merda, putz! Ela continuou:
— Se você tiver oportunidade de ir lá um dia para conhecer, você
vai ver o quanto essas pessoas podem acrescentar na sua vida. Fiz amizade
com um dos moradores que está sendo muito valiosa para mim. Percebi que
a amizade não escolhe idades, motivos ou desculpas. É só deixá-la entrar e
deixá-la ficar. E é uma pena ver que muitas famílias abandonam seus entes
queridos quando percebem que eles estão envelhecendo. Envelhecer não é
sinônimo de doença e mesmo aqueles que apresentam algum tipo de
limitação física ou psicológica, têm algo a nos ensinar, algo a nos doar. Nós
somos tão soberbos que pensamos que estamos doando nosso tempo e
energia como se fosse um favor, mas na verdade somos nós que estamos
recebendo. Recebendo amor, sabedoria, respeito, conhecimento, carinho,
amizade e conforto. Eu adoro trabalhar lá, conviver com eles. E lá também
é o local onde moro. Se eu sair de lá, não tenho mais para onde ir.
— Eu até entendo. Mas será que esse apego a essas pessoas não tem
relação com o fato de você também ser carente? Afinal, você foi criada em
um orfanato, nunca teve uma família...
— Sim, é verdade. Eu me apego muito às pessoas por carência e
gratidão. Se alguém me der um pouquinho de atenção, já me ganha logo.
— Eu estou te dando toda a atenção do mundo — afirmei e ela riu.
— E eu estou adorando receber a sua atenção. Mas o que estou
tentando dizer, é que a vida sempre nos ensina. Antes, quando eu morava no
abrigo, vivia na ilusão de que se eu tivesse uma família as coisas poderiam
ter sido diferentes. No entanto, hoje percebo que nem sempre a família é
sinal de acolhimento, aconchego e proteção. Eu vivi com a minha mãe até
os quatro anos de idade, sofrendo negligência e maus-tratos. Ela nunca me
deu o carinho e atenção que eu tanto necessitava. Hoje, recebo isso desses
idosos, pessoas que me tratam como se eu fosse uma parte da família deles
e que se tornaram muito importantes para mim.
— Espero também entrar para esse rol de pessoas importantes para
você.
— Já é. Tenha certeza disso. Só o fato de você ter salvado a vida da
Clarinha, já se tornou uma das pessoas mais importantes para mim.
— Então vamos brindar a isso. — Levantei minha taça de vinho e
ela brindou com o copo de água.
O jantar foi servido, e percebi que ela comeu pouco; parecia
envergonhada por estar naquele ambiente requintado. Letícia era uma jóia
rara que precisava ser lapidada.
Quando saímos do restaurante, perguntei, como quem não quer
nada, se ela queria que eu a levasse direto para casa ou se preferia terminar
a noite em outro lugar. Novamente, ela pareceu não entender. Como era
inocente essa menina... “Calma, doutor Miguel, calma!”
— Chegamos — falei, enquanto estacionava o carro um pouco antes
de chegar ao portão suntuoso do Perfect Village.
— Miguel, muito obrigada pela companhia e pelo jantar também.
Você acredita que eu nunca tinha ido a um restaurante na vida? Foi a minha
primeira vez.
— Então eu vou te dar algo que acho que também vai ser a sua
primeira vez.
Me aproximei devagar e dei um selinho nela. Letícia ficou
vermelha, com a carinha assustada. Depois de um tempo, ela suspirou
dizendo:
— Sim. Parece que hoje foi o dia das minhas primeiras vezes, e as
duas serão inesquecíveis por ter sido você a pessoa que me proporcionou
tudo isso.
Aí não resisti. Me aproximei mais, puxei-a pela nuca e a beijei de
verdade. De início ela pareceu um pouco tímida, sem saber muito o que
fazer, mas quando eu comecei a explorar sua boca com a minha língua,
Letícia correspondeu de um jeito maravilhoso. As mãos trêmulas
acariciando o meu rosto, os lábios macios seduzindo a minha razão. Que
linda essa menina. Minha vontade era de agarrá-la e não soltar mais. Tirar
todo o seu fôlego, rasgar suas roupas, deixar marcas, fazer dela minha.
“Calma, doutor Miguel, calma!”
— Eu vou entrar Miguel. Já está ficando tarde.
— Está bem. Mas promete que vai sonhar comigo.
— Com certeza eu vou.
Dei mais um selinho e ela se foi.
Após deixá-la, fui direto para a boate. Precisava urgentemente de
uma mulher, que conseguisse aplacar o tanto de tesão que aquela menina
inocente me deixou. Queria trepar até a exaustão.
Assim que cheguei, encontrei meus amigos, os gêmeos Greg e Cauã,
cercado de belas mulheres. Os dois eram muito bonitos, tipo nórdicos, e
também faziam muito sucesso com as mulheres.
— Fala Doutor Sedução! — Cauã exclamou.
— Doutor Sedução é o caralho! — exclamei.
Assim que ouviu minha exclamação, uma das mulheres veio para
cima de mim dizendo.
— Hum, que delícia! Quer me mostrar o porquê desse apelido,
gostoso?
A mulher era sensacional. Alta, loira e com o corpo escultural. A
puxei para mim e fomos direto para a pista de dança. Fiquei sarrando meu
pau na bunda grande dela enquanto dançávamos, depois, beijei sua boca,
pescoço e seios, numa fome de enlouquecer. Foi quando Greg se aproximou
dizendo:
— Já vi que vocês dois estão bem animados, mas hoje é dia de
compartilhar. Vamos todos para a minha casa terminar essa festinha lá.
Pagamos a conta, saímos da boate e fomos para a casa dos gêmeos,
onde iniciamos a nossa festinha regada a muita bebida e belas mulheres
para a nossa diversão. Delícia!
Já estava amanhecendo quando cheguei em casa. Ainda bem que
teria que ir para a clínica somente na parte da tarde e meu plantão no
hospital começaria só à noite. Estava tão cansado da farra, que só fui
acordar quando minha mãe bateu na porta do quarto me chamando para
almoçar.
Tomei um banho, uma aspirina, almocei, e assim que entrei no meu
carro com destino a clínica, enviei uma mensagem para Letícia.
Eu: Sonhou comigo?
Ela não visualizou a minha mensagem. Dei partida no carro e fiquei
pensando em tudo o que Letícia me disse sobre os moradores do asilo. Se
ela soubesse que meu avô era um deles e que minha família, incluindo eu, o
abandonou, acho que ela iria me odiar. O melhor seria que ela não soubesse
de nada até eu conseguir o que eu queria com ela. Depois, se ela
descobrisse, não teria mais a mínima importância.
CAPÍTULO 7
Era sério que eu ia matar a Thaís. Ela não tinha esse direito. Letícia
estava tão feliz, e aquela “infeliz” quase estragou tudo. Quase, porque eu
consegui consertar a merda a tempo.
Quando saímos da festa e chegamos na cobertura, também quase
deu outra merda. Onde eu estava com a cabeça quando pensei em passar a
noite lá? Deveria ter ido para um hotel, mas quando eu me dei conta, já era
tarde. Estava acostumado a ir direto para lá sempre que ia para São Paulo.
Era automático. Esse negócio de subconsciente era foda mesmo.
Sem querer, tive que contar mais uma mentira para Letícia. Não
podia dizer para ela que aquela cobertura pertencia a minha família, mais
precisamente ao meu avô. Senti que ela ficou desconfiada, mas falei que era
de um amigo e deu tudo certo. A única verdade que contei, foi que morei ali
durante todo o período em que fiz a faculdade de medicina.
Minha “Fadinha” ficou deslumbrada com tudo o que via. Realmente
a vista da cidade era deslumbrante. Enquanto a agarrava por trás, fiquei
imaginando todas as loucuras que faria com ela ali. Queria trepar com ela
em cada canto daquele lugar.
Sem mais mimimi, a peguei no colo e a levei até o terraço. Liguei a
sauna e comecei a despi-la devagar. Logo, ela estava nua e linda à luz do
luar. Também tirei toda a minha roupa e mergulhamos juntos. Letícia ficou
insegura pois não sabia nadar, mas a segurei no colo e ela ficou boiando em
meus braços. Depois de muitos beijos, abraços e amassos, fui com ela até a
sauna e fiz uma massagem em todo o seu corpo. Minhas mãos deslizavam e
ela gemia. Peguei na prateleira um vibrador e comecei a estimular seu
clitóris. Letícia teve um orgasmo tão intenso que ficou exausta, molinha,
mas assim que se recuperou falou:
— Agora é a minha vez.
Ela pegou um óleo e, com suas mãos de fada, começou a massagear
o meu corpo. Depois, foi se encaixando em mim, chegando devagar com
pequenos beijinhos pelo meu pescoço e orelha, arrancando-me suspiros.
Como sabia que eu estava prestes a explodir, desceu novamente, torturando-
me com a língua, primeiro lambendo diretamente na glande, fazendo eu ter
um espasmo com as pernas. Depois beijou minha virilha devagar e foi
alternando entre a glande e a virilha, até que me entreguei por completo a
sua língua e ao calor da sua boca. Letícia mamava tão firme o meu pau, que
uma nova onda de prazer subiu pelo meu corpo e desaguei diretamente
naquela boca. Ela engoliu tudo, até a última gota.
O desejo não cessava. A tensão sexual só aumentava. A peguei
firme e ela sentou no meu colo. Letícia cavalgava sobre mim, levando-nos à
loucura. A explosão aproximava-se novamente e nossos corpos entraram
num completo êxtase. Corpos em brasa, orgasmos arrebatadores, beijos
ardentes, línguas entrelaçadas, lambidas sensuais, entrega total.
Letícia despertava em mim um desejo selvagem, insaciável. Ficava
impressionado comigo, com as minhas reações. Era como se só ela
soubesse me amar, só ela soubesse me tocar. Não só o meu corpo, mas
sobretudo a alma.
Dormimos cansados, corpos colados, entrelaçados. Quando acordei,
não encontrei Letícia ao meu lado na cama. Quando desci, ela estava na
cozinha, vestindo apenas a minha camisa, os cabelos presos em um coque
frouxo, preparando o café. Fiquei alguns segundos sem me revelar,
observando aquela cena linda. Quando ela se virou e me viu, abriu um
sorriso maravilhoso.
— Bom dia, meu amor — falou.
— Bom dia. O que você está fazendo, “Fadinha”?
— Troco a informação por um beijo.
Me aproximei e a agarrei cheirando o seu pescoço.
— Ah, é assim?
— É assim.
— Você não precisa barganhar nada. Tem tudo de mim.
— Tudo?
— Meu corpo e minha alma.
Demos um beijo apaixonado. A ergui para que ela pudesse ficar
sentada na bancada e me coloquei entre as suas pernas.
— Está com fome? — perguntou.
— De você. Tem uma banheira com água quentinha, cheia de
espuma esperando por nós.
— Ah, Miguel.
Comecei a acariciar as suas coxas, enquanto Letícia se esfregava
cada vez mais para sentir toda a pressão do meu corpo junto ao dela.
— Vamos subir, amor — disse ansioso. — Hoje eu quero esquecer
do mundo e aproveitar você toda. Não quero lembrar de mais nada, só sentir
tudo de bom que você tem para me entregar. Vamos fechar as cortinas,
desligar os telefones e morrer para o mundo. Nada pode nos interromper.
E assim ficamos. O dia inteiro nos amando, vivendo em uma
cumplicidade que eu nem sabia ser possível existir. Com o coração leve e a
alma renovada, retornamos. Letícia não conheceu São Paulo, mas também
não reclamou. Prometi que assim que fosse possível, voltaríamos. Prometi
que mostraria a ela tudo. Mostraria a ela o mundo.
Depois de deixá-la na porta do “Perfect Village”, fui direto para
casa, como sempre divagando. Eu tinha que encontrar uma forma de contar
toda a verdade a Letícia sobre quem eu era e sobre a minha família. Aquilo
estava me atormentando. Nosso relacionamento estava ficando cada dia
mais sério, e eu não queria que a confiança que ela depositava em mim
acabasse.
Talvez, esse meu receio em contar a verdade para ela por causa do
meu avô, fosse completamente infundado. Meu avô nunca gostou de
interagir com ninguém. Sempre foi um homem arredio. Seu único interesse
sempre foi a família e o trabalho. Na época em que eu ainda o visitava, as
pessoas comentavam que ele ficava o dia inteiro trancado em sua suíte,
lendo e esquecendo do mundo lá fora. Talvez Letícia nem o conhecesse e
nunca ligaria o meu nome ao de Raul Hernandez.
Era isso! Assim que Letícia entrasse para a faculdade, eu iria contar
a ela toda a verdade: que eu era rico, na verdade milionário e que era o dono
da clínica. Depois arranjaria um estágio para ela e a colocaria para morar
em um dos inúmeros imóveis que minha família possuía, espalhados pela
cidade. O importante era que ela saísse daquele emprego o quanto antes, e
que nunca soubesse que meu avô era um dos residentes do “Perfect
Village”. Se um dia ela perguntasse, eu manteria a versão de que ele morava
na Espanha.
Quando cheguei em casa, minha mãe estava me aguardando.
— Você vai me dizer quem é essa mulher com quem você anda
saindo?
— Outra vez essa história, mãe? Eu não quero que ninguém se meta
na minha vida.
— Se é assim, da próxima vez que você for com ela para a capital,
leva essa vadia para um motel e não para a nossa cobertura.
— Primeiro, que ela não é nenhuma vadia; e segundo: quem anda
passando informações da minha vida para você?
— Eu já falei, Miguel. Eu tenho os meus contatos. Nada acontece
sem que eu fique sabendo, ainda mais quando se trata de pessoa da minha
família. O que eu não posso admitir é que um médico renomado como você
ande por aí na companhia de qualquer uma, a levando a um casamento onde
até o nosso prefeito estava presente.
— Ah, tá. Agora entendi... A sua fonte é a fofoqueira da Diana, a
primeira dama?
— Ela apenas comentou comigo que o viu acompanhado de uma
moça e me perguntou quem era, pois nunca a viu em nenhum evento na
nossa sociedade e ficou curiosa para saber o sobrenome dela e de quem era
filha.
— E qual o interesse dela em saber o sobrenome dela e de quem ela
é filha? Pois saiba que ela não é filha de ninguém!
— Era exatamente isso o que eu temia. Ela é uma qualquer.
— Ela não é uma qualquer, mãe. Ela é a pessoa mais doce, gentil,
generosa e amorosa que eu conheço. Uma mulher maravilhosa, um exemplo
de pessoa.
— Você está apaixonado, Miguel?
— E se eu estiver?
— Miguel, você pode sair e se divertir com qualquer garota, mas
para assumir um compromisso, você precisa ser mais seletivo. Não vai
aparecer aqui com uma pessoa de classe social inferior. Isso seria uma
vergonha.
— Olha, eu cansei! É muita ignorância, muita presunção. Eu só
lamento que você tenha uma mentalidade tão distorcida, que você seja uma
pessoa tão frívola, com uma visão tão superficial do mundo e do ser
humano.
— O que é isso, Miguel? Vai me atacar agora? Eu estou
desconhecendo você. É isso que dá se envolver com gentinha.
— Eu só vou te dar um aviso, mãe. Não se mete mais na minha
vida, ou você vai se arrepender.
Subi para o meu quarto. Acho que estava na hora de deixar aquela
casa, gerir a minha própria vida. Assim que eu conversasse com Letícia e
contasse toda a verdade a ela, eu me mudaria da mansão. Iria morar junto
com ela em um dos apartamentos disponíveis, e assumir de vez a nossa
relação.
CAPÍTULO 15
Me surpreendi com Letícia. Achei que ela fosse reagir mal quando
eu contasse tudo sobre a minha família, mas não. Ela era realmente perfeita.
Fiz questão de contar para Susana que reatamos e que eu contei a ela toda a
verdade.
— Eu fico muito feliz, Miguel. Por você e por ela. Mas você
também falou a verdade sobre o seu avô?
— Não achei que fosse necessário.
— Ah, Miguel. Não faça isso. Seja honesto com ela.
— Eu não posso. Ela tem tanto amor por aqueles velhos do asilo,
que é capaz de me odiar se souber que meu avô é um deles.
— Miguel, nós passamos a infância e a adolescência praticamente
juntos. Eu vivia nessa casa, e lembro muito bem da relação de cumplicidade
e amor que você tinha com o seu avô. O que foi que mudou?
— A vida mudou.
— Olha, para ser sincera, quando eu soube que seu avô estava
internado em uma casa de repouso, eu nem acreditei. Ele sempre foi um
homem forte e dinâmico. Tinha mão de ferro nos negócios. Eu sei que a
morte de seu pai foi um choque, mas daí ele ficar demente, e ser
abandonado pela família...
— Susana, segundo a minha mãe, a doença dele evoluiu muito
rápido e não teve outro jeito, a não ser interná-lo. Eu até fui lá visitá-lo
algumas vezes e ele ficava sempre apático, não reagia a nada. Parecia que
nem me reconhecia. Um dia se enfureceu. Me acusou de ser ingrato,
aproveitador. Disse que eu só ia visitá-lo porque estava interessado no
dinheiro dele. Foi aí que eu parei de ir.
— Pois errou, Miguel. Você deveria ter insistido. Ter provado para
ele que você não estava só interessado no dinheiro. Naquele momento, ele
se achava vulnerável, precisando de carinho e de amor. Até como médico,
você poderia ajudar. Aquele seu amigo, o Fausto, não é neurologista?
Assenti. Ela continuou.
— Então, ele poderia ter analisado o caso do seu avô. Será que o
caso dele era tão grave, a ponto de uma internação? Desculpe por eu estar
me intrometendo, mas eu sempre fui um pouco enxerida.
— Você pode se meter à vontade. Faz muito bem te ouvir.
— Então escute o meu conselho. Conta para a Letícia sobre o seu
avô. Mesmo que ela não o conheça, ela pode tentar uma aproximação entre
vocês. Acho que isso faria um bem enorme não só a ele, mas a você
também, Miguel. Te traria paz.
— Você está certa. Deixa só as festas de final de ano passarem, que
eu conto tudo para a Letícia e tento me reaproximar do meu avô. Ano novo,
vida nova!
— Certo.
O Natal se aproximava. Letícia estava empolgada com a festa das
crianças do abrigo. Íamos lá todos os domingos, e eu já estava totalmente
integrado ao local. Clarinha era a coisa mais linda do mundo. Eu percebia o
grande amor que Letícia nutria por aquela criança e, com o tempo, acabei
também me apaixonando pela menina. Quando Letícia disse que um dia
pretendia adotá-la, aquilo também se tornou o meu propósito. Tanto que
planejei levar Letícia e Clarinha para passarem o Natal comigo. Já estava
mais do que na hora de apresentá-la à minha família. Sabia que não seria
fácil para minha mãe aceitá-la, mas estava disposto a enfrentar tudo por ela.
Infelizmente, Letícia já tinha outros planos. Além de ter que
participar da festa das crianças do abrigo durante o dia, ela ainda não abria
mão de passar a noite de Natal com o tal velho que não tinha família e que
ela adorava.
Fiquei aborrecido. Chegamos a discutir por causa disso, mas depois
percebi que estava parecendo um garoto mimado e acabei aceitando. Ajudei
com os preparativos da festa das crianças: compramos brinquedos, enfeites
e contratei um buffet. Perguntei se ela não gostaria de levar o “tal velho”
para a ceia na minha casa, mas ela disse que o homem se negou. Além de
tudo, o velho era marrento!
Estava em casa em um dia de folga quando ouvi barulhos vindo do
escritório. Minha mãe berrava nervosa, chamando os seguranças para
colocar alguém para fora de casa. Corri até lá para ver o que estava
acontecendo e me deparei com Letícia sendo agarrada pelos seguranças.
Fiquei atônito, sem reação. O que ela estava fazendo ali? Veio à minha
procura? Foi então que minha mãe gritou para que eu a expulsasse,
afirmando que ela era uma indigente que estava ali para dar o golpe na
família através de meu avô.
Letícia e eu nos olhávamos com espanto, sem dizer nada. Após
segundos que pareceram horas, ela conseguiu balbuciar:
— O que você está fazen... Ah não!
Inteligente e perspicaz, ela logo percebeu a verdade: eu era o neto de
Raul Hernandez. Por uma fatalidade, o velho a quem ela estava tão apegada
era o meu avô, e ela foi tirar satisfações com a família que o abandonou no
asilo. Foi horrível ver minha mãe gritando, meu tio a expulsando e os olhos
dela banhados de lágrimas, cheios de dor e decepção ao constatar que eu era
uma fraude. Sim. Eu era uma fraude, uma grande decepção.
Aquela mulher tão generosa, cheia de compaixão pelos outros, tinha
se apaixonado por um nada. Por um homem fraco, que sempre se omitiu,
que compactuava com duas pessoas egoístas por causa de dinheiro. Ela
nunca iria me perdoar. Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, Letícia
fugiu correndo. Fui atrás tentando alcançá-la, mas ela foi mais rápida e
entrou em um ônibus qualquer.
Comecei a ligar para Letícia como um desesperado, mas ela não
atendia. Mandei várias mensagens dizendo o quanto a amava, mas ela
ignorava. Queria muito encontrá-la e dizer que tudo não passou de um mal-
entendido e que eu poderia explicar. Tentei, dia após dia, e nada. Todos os
dias, ao sair da clínica ou do hospital, eu seguia até o Perfect Village e
ficava lá na porta de plantão, esperando que ela viesse falar comigo, mas foi
em vão.
Estava sofrendo como um louco. Não conseguia imaginar minha
vida longe dela. Nem no trabalho conseguia me concentrar. Tive uma crise
de ansiedade. Durante uma cirurgia, minhas mãos começaram a tremer e
não tive condições de continuar. Fernando, o residente, assumiu, e eu fui
para a sala de descanso, tremendo, suando e chorando. Thaís entrou e
perguntou:
— Miguel, você está bem? Se você quiser eu posso te animar.
— Vai pro inferno! — exclamei, furioso.
Ela saiu assustada. Deitei um pouco e coloquei um pedaço de pano
sobre os olhos para aliviar a dor de cabeça que me atormentava. Sentia dor
no corpo e na alma. Devo ter ficado ali por cerca de uma hora até que a
porta foi aberta e meus amigos Fausto, Jaime e Vitor entraram.
— Cara, o que está acontecendo? — Jaime perguntou
— Eu só quero ficar sozinho.
— Miguel, nós somos amigos. Você não está bem. Nós soubemos o
que aconteceu na sala de cirurgia. — Foi a vez de Fausto falar.
— Eu sou um merda. Não sirvo pra nada.
— Amigo, você está sob muita pressão. Vamos que eu vou te levar
em casa. No caminho conversamos.
Concordei. Eu nem tinha condições de dirigir; estava há dias sem
comer e sem dormir. Contei tudo para Fausto.
— Olha, Miguel, você não é um merda, você está na merda.
— Eu não sei o que eu faço. Eu estou acabado.
— Você errou feio, Miguel. Agora precisa ter paciência. Dá um
tempo para ela. O tempo é o melhor remédio para tudo.
Entrei em casa, tomei banho, tomei um analgésico e fui deitar. Se
ela precisava de um tempo, eu iria dar isso a ela. Só não ia desistir. Nunca.
Véspera de Natal. Fazia uma semana que eu não falava com Letícia.
Lembrei da festa das crianças e fui até o abrigo na esperança de encontrá-la.
Assim que me viu, Clarinha veio correndo para os meus braços. Abracei
minha garotinha com força; era como se eu estivesse abraçando Letícia.
Não a vi em lugar nenhum. Perguntei, e as pessoas informaram que ela não
viria. Mesmo assim, fiquei até o final. Chorei abraçado a Clarinha ao ver e
ouvir as crianças cantando as canções de Natal. Chorei de saudade: de
Letícia, do meu pai, do meu avô.
Na noite de Natal, me recusei a descer para a ceia. Não conseguia
encarar minha mãe, meu tio e seus convidados ilustres. Me sentia enojado
com toda aquela falsidade e hipocrisia. Pensava em Letícia o tempo todo. A
única coisa que queria, era ela de volta para mim.
Susana bateu à minha porta. Pedi que entrasse.
— Não vai descer, Miguel?
— Não estou com vontade.
Ela estava com uma sacola na mão e estendeu para mim.
— Um presente de Natal para você
— Ah, Susana. Não precisava se incomodar. Eu não comprei nada
nem para você e nem para ninguém.
— Abre.
Quando abri, era uma imagem de São Miguel Arcanjo.
— São Miguel é considerado o guardião celeste. Ele também é
conhecido como o Arcanjo do arrependimento.
Levantei para abraçá-la.
— Muito obrigada. É o mais lindo presente que eu poderia receber
neste momento. Eu estou muito arrependido. Se pudesse voltar atrás...
— O arrependimento é uma mudança de atitude, Miguel.
Arrependimento significa mudar de direção, mudar de pensamento. Ao
invés de lutar contra o que já aconteceu, que essa experiência sirva para
você ressignificar a sua forma de pensar. Construir uma nova história.
Recomeçar.
Susana era realmente uma daquelas pessoas que, de fato, mudam a
vida de quem está ao seu lado. E não me refiro a sua inteligência; estou
falando de algo além. Ela é necessária. Coração que transborda. Amor dos
pés à cabeça. Ela se deitou na minha cama e fez um gesto com as mãos me
chamando. Me aproximei e deitei a cabeça no seu colo. Depois de dias,
acabei adormecendo, sob a proteção de São Miguel Arcanjo, no colo de
Susana.
Vinte e cinco de dezembro. Natal. Peguei meu carro e fui parar na
porta do Perfect Village. Desci do carro e toquei o interfone. Quando o
porteiro atendeu, falei:
— Gostaria de falar com a Letícia.
— Ela não está.
— Por favor, diga para ela que é o Miguel. Eu preciso falar com ela.
É muito importante.
— Sinto muito, mas a Letícia não trabalha mais aqui.
— Foi ela que pediu que você dissesse isso?
— Não senhor. Infelizmente ela foi demitida.
— Demitida?
— Sim. Ontem foi o último dia dela aqui.
— E para onde ela foi?
— Eu não sei informar.
Imediatamente, parti para Passos, a cidade vizinha. Letícia só podia
ter voltado para o abrigo de crianças onde morou por tantos anos. Meu
coração disparava, um misto de medo e esperança me dominando. Quando
cheguei, fui informado de que Letícia tinha passado a noite de Natal com as
crianças, mas saiu assim que o sol despontou sem deixar nenhum aviso.
Meu mundo ruiu.
CAPÍTULO 21
Fiquei doente, tive febre. Meu corpo sentiu o peso do meu coração
totalmente destruído. Todos ficaram preocupados, mas eu só havia contado
o que tinha acontecido para Lisete. Não saí do quarto nos três dias
seguintes. Doente, abatida, apática.
Na véspera de Natal, Hermínia me chamou para uma conversa em
seu escritório. Muito educada, perguntou se eu havia melhorado e, quando
eu disse que sim, ela falou que estava muito decepcionada, porque eu havia
abusado da sua confiança ao pegar dados pessoais de um morador sem a
devida permissão. Dados esses, confidenciais. Depois, ainda fui à casa dos
familiares acusá-los de abandono e negligência, uma acusação gravíssima.
Disse que eu havia mexido com a família mais poderosa da cidade e que,
infelizmente, eles haviam exigido a minha demissão.
Fiquei chocada. Como assim? Tentei dissuadir Hermínia daquela
decisão, pois tudo o que eu havia dito era verdade, e ela sabia muito bem
que Seu Raul era um homem são e que não merecia ser abandonado em um
asilo. Além disso, eu não tinha onde morar. Ela lamentou, disse que gostava
muito de mim, mas que eu teria que deixar o local imediatamente, pois os
Hernandez a ameaçaram de fechar a instituição caso ela insistisse em me
manter trabalhando lá. Ela iria pagar tudo o que me era devido, mas eu
precisava ir embora.
Meu Deus! E agora, o que é que eu ia fazer? Segui até o meu quarto
aos prantos. Quando me refiz um pouco, comecei a arrumar as poucas
coisas que eu tinha em uma mala. Não me despedi de Seu Raul. Não queria
que ele se envolvesse nessa questão, que se sentisse culpado pela minha
demissão. Também temi por ele. Aquela família era capaz de tudo, até
transferi-lo para um outro local onde ele não tivesse o mesmo tratamento.
Me despedi de Lisete e dos demais amigos de trabalho. Todos
estavam inconformados com a minha demissão. Peguei um ônibus que me
levou até o centro da cidade. Só agora reparei que praticamente todo o
comércio local tinha o nome de “Hernandez”. Fui uma tola. Deixei-me
enganar de todas as formas. O que será que ele pretendia ao me levar para a
ceia de Natal? Talvez quisesse rir de mim, me expor ao ridículo perante
aquela família esnobe e gananciosa. Quantas vezes Seu Raul tentou me
avisar? Eu é que fui boba, ingênua ao acreditar naquele homem que só quis
brincar com os meus sentimentos.
Fiquei perambulando sem rumo pela cidade. Sentei em um banco no
parque e fiquei observando as crianças, os passantes e os casais de
namorados passeando felizes de mãos dadas, como tantas vezes eu e Miguel
fizemos.
Não queria ir para o abrigo onde morei. A festa de Natal das
crianças estava acontecendo e eu não queria correr o risco de encontrar
Miguel por lá. Tinha certeza que aquele seria o primeiro lugar que ele iria
me procurar. Queria fugir dele, me afastar de uma vez.
Dezoito horas. Já anoitecia. A cidade ficou toda iluminada. Linda.
Fui até a Igreja Matriz e me acomodei em um dos bancos. A missa já ia
começar. Um lindo coral começou a cantar. As músicas natalinas me
fizeram chorar convulsivamente. Lamentava por mim, por Seu Raul, pelo
meu amor desperdiçado. Amor que eu sabia que jamais esqueceria.
Quando a missa terminou, todos se dirigiram até a saída. Assim que
levantei para deixar o local, olhei para o lado e me deparei com a linda
imagem de São Miguel Arcanjo. Fui até lá, e pedi que ele me desse forças
para que eu pudesse enfrentar com fé aquele momento crítico da minha
vida. Novamente sem emprego e sem ter onde morar.
Já passavam das oito horas. A cidade já começava a ficar deserta.
Era véspera de Natal e as pessoas tinham pressa de chegar em casa para se
reunirem com suas famílias. Fui andando sem rumo, até que achei um
letreiro escrito “Hotel”. Entrei. A recepção estava vazia. Toquei uma sineta
que estava em cima do balcão e poucos minutos depois, um homem
apareceu.
— O senhor teria um quarto disponível? — perguntei.
Ele me olhou de cima a baixo.
— Seria só para você?
— Sim.
— E você pretende ficar quantas noites.
— Ainda não sei ao certo. Talvez duas ou três.
— Eu tenho um quarto, mas o pagamento é adiantado.
— Qual o valor?
— A diária do quarto mais simples custa cento e vinte reais.
Meu Deus!
— O senhor conhece algum hotel aqui que seja mais barato?
— Esse é o único hotel da cidade.
Olhei para um quadro de aviso exposto na parede da recepção, e me
deparei com o nome do hotel: Hernandez’s Plaza. Que situação! Mas como
não tinha outra opção, peguei o dinheiro na bolsa e paguei por duas noites.
Era melhor ficar bem acomodada, até conseguir uma pensão ou albergue
mais em conta. Depois, procuraria emprego em uma casa de família onde
eu pudesse morar. O recepcionista me passou a chave e eu subi para o
quarto que era bem simples pelo valor: uma cama de solteiro, uma televisão
pequena, ventilador de teto e um banheiro. Melhor não lamentar. Estava
segura ali.
Tomei um banho e coloquei meu pijama. Me olhei no espelho e vi o
quanto eu estava magra e abatida. As olheiras fundas, os olhos inchados.
Deitei na cama e peguei um livro sem conseguir me concentrar. Liguei a tv
onde passava uma comédia romântica de Natal. Fiquei assistindo por um
tempo, mas depois desliguei.
Lembrei que não havia comido nada o dia inteiro e peguei um
chocolate que Lisete colocou na minha bolsa na hora da minha partida. Não
consegui comer; enjoei. Deixei o chocolate de lado, apaguei as luzes e
tentei dormir, mas não consegui. O sino da igreja anunciava que era meia-
noite. Dia de Natal. As lágrimas caíam sem cessar. Pensei em Clarinha sem
o meu colo e aconchego, em Seu Raul mais uma vez sozinho, e em Miguel.
O celular vibrou com uma mensagem.
Miguel: Feliz Natal. Eu te amo para sempre.
Não respondi. No dia seguinte, fiquei o dia inteiro no quarto sem
conseguir me levantar da cama. Estava me sentindo muito fraca. Não tinha
dormido durante toda a noite e quando amanheceu, me sentia sem ânimo.
Às duas da tarde ainda não tinha conseguido comer nada. Até beber água se
tornou uma dificuldade. O celular tocou. Era Ana Lúcia, minha amiga.
— Feliz Natal! — exclamou feliz.
— Oi Ana.
— Letícia, que voz é essa? Aconteceu alguma coisa?
Chorando, contei a ela tudo o que havia acontecido.
— E onde você está agora?
— Eu estou em um hotel, no centro da cidade.
— Nada disso. Vem pra cá.
— Amiga, eu não quero incomodar. Sei que você mora com seus
pais e eu não quero ser um fardo para ninguém.
— Letícia, vai para a rodoviária agora. Tem um ônibus que sai daí a
cada meia hora. Eu vou estar te esperando na rodoviária de Passos.
Ela desligou. Meu Deus! Que amiga maravilhosa que eu tinha...
arrumei minhas coisas e segui a pé até a rodoviária. Não demorou muito e o
ônibus chegou. Quarenta minutos depois, cheguei na rodoviária de Passos e
encontrei Ana Lúcia e seu pai me aguardando. Ela me abraçou e eu disse
chorando:
— Eu não queria incomodar.
— Vamos para casa, Letícia. Olhe pra você. Está doente, precisa de
cuidados.
Quando cheguei na casa de Ana, fui muito bem recebida por sua
mãe. Ela disse que eu poderia ficar o tempo que fosse necessário. Agradeci.
No quarto de Ana Lúcia, só havia uma cama, e ela disponibilizou um
colchonete para eu dormir. Tomei um banho, e mesmo sem ânimo, me
forcei a ficar um pouco na sala junto com aquela família tão carinhosa que
me acolheu no dia de Natal. Que eles fossem abençoados. Não consegui
comer nada. Não conseguia nem olhar para as guloseimas de Natal expostas
na mesa farta. Preocupada, Dona Teresa, mãe de Ana, preparou uma sopa
para mim. Me senti muito amada e agradecida.
Fazia uma semana que eu estava na casa de Ana Lúcia. Estava
preocupada, pois me sentia péssima fisicamente, o que me impedia de sair
para procurar um emprego. Quando me senti um pouco melhor, fui até o
abrigo e conversei com Verônica, a assistente social. Imediatamente ela
ligou para Dona Vilma da ONG Preparando Vidas, que disse que assim que
surgisse uma oportunidade de emprego, me avisaria.
Clarinha não desgrudou de mim um só minuto. Como já era de se
esperar, as “tias” disseram que Miguel esteve lá na festa de Natal me
procurando. Elas queriam saber o que havia acontecido entre nós. Falei
apenas que tínhamos terminado o namoro. Todas lamentaram.
Quinze dias haviam se passado. Eu não podia mais ficar naquela
situação. Por mais amorosos e prestativos que fossem, eu não queria abusar
mais da boa vontade daquela família. Saí de casa bem cedinho, decidida a
só voltar com um emprego. Aceitaria qualquer coisa.
Bati de porta em porta com o meu currículo em mãos, em vão. Por
volta das quatro da tarde meu celular tocou. Era Lisete.
— Fadinha, como você está?
— Exausta. Andando o dia inteiro atrás de um emprego.
— O Seu Raul quer muito falar com você. Ele já sabe o que
aconteceu e está muito revoltado.
— Tadinho. Eu não queria que ele se preocupasse. Ele está aí perto?
Passa o celular para eu poder falar com ele.
— Não. Ele disse que não gosta de falar pelo celular. Ele quer falar
com você pessoalmente. Disse que é muito importante.
— Tá bom. Eu também estou morrendo de saudades dele. Diz que
amanhã à tarde eu vou visitá-lo.
No dia seguinte tirei a parte da manhã para entregar mais currículos
e à tarde, fui para a rodoviária e peguei um ônibus até Ribeirão. Fui
recebida com festa pelos amigos do Perfect Village, mas todos ficaram
preocupados com a minha aparência frágil e doentia. Depois de conversar
um pouco com as pessoas, bati na porta da suíte de Seu Raul. Quando ele
abriu a porta, eu não aguentei e desabei em seus braços aos prantos. Quando
me acalmei, perguntei:
— Seu Raul, por que o senhor nunca me falou a verdade sobre o
Miguel? Por que?
— Porque eu tive esperanças.
— Esperanças de que, Seu Raul?
— De que você conseguisse mudar o caminho dele. Sabe, Letícia, o
Miguel foi a minha maior alegria. Era uma criança inteligente e feliz.
Mesmo sob a influência da mãe, ele conseguia ser afetuoso, amoroso,
alegre e sensível. Todos queriam que ele se interessasse pelo comércio, mas
só eu o apoiei quando ele se negou a assumir os negócios da família,
dizendo que queria ser médico. Quando ele completou dezoito anos, se
mudou para São Paulo, entrou na tão sonhada faculdade de medicina e
raramente vinha visitar a família. Quando vinha, eu notava ele diferente.
Indiferente.
Ele suspirou e continuou.
— Depois que terminou a faculdade, não quis mais voltar para casa.
Foi para a Espanha fazer especialização em ortopedia, e acho que se não
fosse pela morte do pai, ele nunca voltaria. Mesmo sofrendo pela morte do
meu filho, notei que Miguel cada vez mais se unia à mãe, uma mulher
frívola e mesquinha. Quando ela convenceu o meu outro filho a me colocar
em um asilo, Miguel não protestou. Foi omisso, e isso me magoou. Eu
esperava isso de Celeste e até de Enrico, mas nunca de Miguel. Ele veio
aqui algumas vezes, até que eu não suportei mais e disse a ele tudo o que eu
pensava. Estava muito decepcionado e triste por saber que ele havia se
perdido. Achei que com você, ele pudesse voltar a se encontrar, se tornar
uma pessoa melhor, mas me enganei.
— Seu Raul, eu amo muito o Miguel, de verdade, mas ele me
magoou demais. Foi a minha maior decepção. Por causa dele e daquela
família, eu perdi o meu emprego e não tenho nem mais onde morar. Eu
desisti dele. Quem ama também cansa. Eu estou cansada, esgotada e um
pouco destruída.
— Eu sinto muito, Letícia. Na verdade, foi por minha causa que
você perdeu seu emprego, tentando me defender. Por isso eu pedi que você
viesse aqui, pois eu quero lhe ajudar.
— Ah, Seu Raul, não precisa se preocupar. Eu tenho saído todos os
dias para procurar emprego, e tenho certeza que logo eu vou conseguir.
— E onde você está morando?
— Por enquanto na casa da minha amiga, Ana Lúcia. Eu já falei
dela para o senhor.
Ele assentiu.
— Eu tenho alguns apartamentos aqui na cidade. Você pode morar
em qualquer um deles.
— Não, Seu Raul. Não é que eu seja orgulhosa, mas eu não quero
mais morar aqui, em Ribeirão. Eu não quero correr o risco de me encontrar
com o Miguel. Se fosse pela minha vontade, eu sumiria. Iria morar em um
lugar bem longe, onde ele nunca pudesse me encontrar. Recomeçar em
outro lugar.
— É sério, isso? — Seu Raul perguntou.
— Sim, mas nesse momento, eu não tenho condições de ir para
lugar nenhum.
Ele ficou alguns segundos em silêncio, e depois falou:
— Eu sei de um lugar bem longe, onde você possa trabalhar, morar
e recomeçar.
— Que lugar seria esse, Seu Raul?
Ele foi até a escrivaninha que havia em sua suíte, pegou papel e
caneta, escreveu um bilhete, e me entregou junto com um cartão que pegou
na gaveta.
— Letícia, procure essa pessoa amanhã, em São Paulo.
— Em São Paulo, Seu Raul?
— Sim. Trata-se de uma pessoa da minha inteira confiança. Eu
estou pedindo que ele providencie o seu passaporte, para que você possa
embarcar para a Espanha o mais breve possível. Você vai cuidar da casa que
eu tenho lá, como se fosse sua, e vai receber um bom salário para isso.
— Espanha? O senhor está falando sério?
— Estou. Você quer?
O abracei.
— Seu Raul, recomeçar em outro lugar, longe daqui, é tudo o que eu
mais quero e preciso nesse momento.
— Então você vai para Barcelona, minha neta. A minha terra natal.
— Eu vou, mas com uma condição: o Miguel nunca poderá saber
onde eu estou.
— Ele não saberá.
CAPÍTULO 22
Por que será que meu avô queria tanto que eu fosse para Barcelona?
Conhecia o velho Hernandez e aquela história da casa precisar de reparos,
era sem pé nem cabeça, pura conversa. Prometi que iria, mas não sabia se
conseguiria cumprir com a promessa. O congresso de ortopedia e
traumatologia que eu iria participar, tinha a duração de quatro dias e
planejei ficar ao todo sete dias em Madri. Não queria ficar tanto tempo
afastado de Clarinha.
Até o dia da minha viagem, passei por um grande sofrimento por ter
que ficar longe dela. Havia combinado que ela ficaria na casa da Susana.
Sabia que ela cuidaria da minha filha como se fosse sua, mas meu coração
estava muito apertado. Por sugestão de Susana, Clarinha preparou vários
desenhos para que eu pudesse levar comigo na mala. Como eram mais
borrões do que desenhos, eu sempre perguntava o que ela havia desenhado.
Dessa vez, ela respondeu:
— É a nossa família, papai.
Um dos desenhos era eu, Letícia e ela no meio, o outro era ela e
Vivian de mãos dadas, o outro era o “biso Raul” sentado na cadeira, outro
era “tio Carlos e tia Cândida”, o outro “tia Susana”, o outro “vovó Celeste”
e o outro ela disse que era o bebê da foto do quarto do “biso” com a
chupetinha na boca. Achei graça naquilo. Ela era mesmo muito esperta.
Na véspera da viagem, Clarinha me ajudou a arrumar a minha mala.
Aquilo para ela foi uma verdadeira farra. Queria que eu colocasse tudo o
que havia no meu closet dentro. No dia do meu embarque, quando fui levá-
la até a casa de Susana, enchi sete balões coloridos e pendurei na parede
próxima à cama que ela ocuparia no quarto de Vivian. Pedi que, todos os
dias ao acordar, ela estourasse um dos balões até o último, que marcaria o
dia em que o papai iria voltar.
Ela chorou, eu chorei. Embarquei.
Voltar a Madri foi muito bom. Foram quase quatro anos longe e
confesso que estava com saudades. Morei mais de cinco anos na capital da
Espanha e foi uma experiência enriquecedora. Madri oferecia uma
variedade de estilos de vida, desde a agitação das grandes cidades até a
tranquilidade das regiões costeiras e vilarejos. A abundância de sol e
temperaturas agradáveis favoreciam um estilo de vida ao ar livre, com
muitas atividades sociais e esportivas ao longo do ano. A vida cultural era
vibrante e diversificada, refletida em suas tradições, festivais e gastronomia.
A música, a dança e a arte também desempenhavam papéis significativos na
vida cotidiana. A culinária era variada e rica: desde tapas e paella até jamón
ibérico e churros. Os mercados locais como o Mercado San Miguel, eram
locais populares para explorar e experimentar a culinária local. Além da
vida noturna agitada com bares, restaurantes e boates.
Assim que cheguei ao aeroporto de Barajas, fui até a locadora de
automóveis e peguei o carro que aluguei ainda quando estava no Brasil.
Segui em direção ao apartamento que morei durante três anos em
companhia de Pietro. Assim que cheguei, fui tomar um banho e deitei
apenas para descansar, pois não consegui dormir. Comecei a lembrar dos
meus tempos naquele apartamento, quando eu não tinha responsabilidade
com nada e nem com ninguém. Era uma vida mundana, regada a muitas
farras, bebidas e mulheres.
Pietro sempre foi mais centrado e na dele, mas quase sempre me
acompanhava em minhas loucuras. Aquele apartamento foi palco de várias
festas com muita devassidão. O “surubão”, como minhas festas eram
conhecidas, começava à noite e só terminava pela manhã com todo mundo
caindo de bêbado e desmaiando em qualquer espaço. O sexo era sem
limites. Fazíamos de tudo ali.
Depois que Pietro conheceu Dulce e se apaixonou por ela, as
festinhas passaram a ser só minhas. Depois do mal-entendido, quando ele
me pegou na cama com Dulce, Pietro se mudou e nunca mais nos falamos.
Uma pena. Sentia muita falta dele, pois éramos amigos desde criança.
Fiquei tão puto com aquela mulher que a expulsei do meu apartamento e
nunca mais a vi. Meses depois conheci Martina em uma boate e ficamos
juntos até eu voltar ao Brasil. Martina era como eu, sem limites. Nosso
relacionamento era aberto. Ela gostava de sexo, de experimentar, de gozar.
Gostava de homens e mulheres. Curtimos muito enquanto estávamos juntos.
Quem diria que eu me tornaria um responsável pai solo?
Já passavam das duas da tarde quando eu me levantei e fui dar um
giro pela cidade. Parei no Clos Madrid, um dos meus restaurantes favoritos.
Tratava-se de um restaurante premiado com uma cozinha mediterrânea de
primeira. Era um dos lugares ideais para os amantes de refeições lentas e
menu degustação, além de oferecer uma carta de vinhos excepcional.
Quando voltei para o apartamento, liguei para Susana, pois queria
falar com Clarinha antes que ela dormisse. Minha menina cantou uma
musiquinha para eu dormir bem. Linda demais.
No dia seguinte, acordei cedo para participar do congresso. Foi
gratificante encontrar velhos amigos, e também professores da época em
que fiz a especialização. As palestras começavam pontualmente às dez
horas, parava para o almoço às treze, retornava às quinze e ia até às vinte
horas. Os quatro dias foram assim, intensos, mas não podia reclamar. Tinha
que estar sempre atualizado quanto às últimas tendências, novas tecnologias
e imagens.
Quando o congresso terminou, foi a vez de relaxar. Nos reunimos
em um bar, e relembramos os velhos tempos. Quem não se lembrava do
“surubão”? Difícil esquecer. Para minha surpresa, em um desses encontros,
Martina, minha ex, apareceu. Foi muito bom revê-la. Estava mais linda do
que eu me lembrava. Estava morando em Segóvia, cidade vizinha a Madri,
mas tinha vindo especialmente para rever os amigos. Ao final, disse que
não havia reservado hotel, e praticamente se convidou para passar a noite
no meu apartamento.
Não achei nada demais, afinal, o apartamento era grande e ela era
uma velha amiga. Acontece que Martina estava cheia de más-intenções.
Assim que entramos, foi logo me agarrando, abrindo a minha calça e
tirando o meu pau para fora. Estava há mais de um ano sem transar com
ninguém. Me aliviava sozinho, pensando sempre na minha “Fadinha”, mas
ali a coisa esquentou. Martina colocou meu pau na boca e eu não consegui
segurar. Foi tesão acumulado, incubado, sei lá. Só tesão. Ela queria mais,
mas eu a convenci que não seria bom para nenhum de nós. Ela não insistiu.
Foi dormir em um dos quartos vagos, e eu no meu. Quando acordei,
Martina já havia ido embora deixando um bilhete com seu número de
telefone:
“Você está ainda mais gostoso.”
Ri. Martina. Boa garota!
Todos os dias, Susana me enviava um vídeo de Clarinha estourando
um dos balões. Ela estava ansiosa pela minha volta. Pensando nela, fui a um
shopping comprar presentes para ela, Vivian, Susana, meu avô, Carlos e
Cândida. “Nossa família”, como Clarinha disse. Só faltava Letícia e aquele
bebê que eu não sabia quem era.
Faltavam dois dias para eu pegar meu voo de volta para o Brasil.
Lembrei da promessa feita ao meu avô. No final da tarde, me dirigi até o
aeroporto e comprei uma passagem para o primeiro voo com destino a
Barcelona. Meu plano era passar a noite lá, pela manhã verificar como
estava o estado da casa e voltar para Madri à tarde.
Enviei para Carlos uma selfie subindo no avião com uma
mensagem:
Eu: Partiu Barcelona!
Quando visualizou, Carlos digitou:
Carlos: Boa sorte!
Não entendi. Que porra era aquela?
O voo de Madri para Barcelona tinha duração de uma hora e quinze
minutos. Logo, estava de volta a cidade onde passei várias férias na minha
infância e adolescência. A casa do meu avô era magnífica e foi ponto de
encontro da família durante muitos verões.
Aluguei um carro assim que cheguei no aeroporto e parti para a casa
de meu avô. Não avisei a Carmen que estaria chegando, pois resolvi de
última hora. Esperava que ela estivesse em casa, pois eu não tinha as
chaves. Por ser sexta-feira, o trânsito estava infernal. Demorei quase uma
hora para chegar.
Ao entrar no imenso terreno todo arborizado, as memórias vieram
com tudo. Parecia que eu estava vendo meu pai ali, na beira daquele lago,
pescando, se divertindo, forte e saudável. As lágrimas vieram com tudo.
Esperei um pouco para me recuperar de tanta emoção antes de sair do carro.
As luzes da casa estavam todas acesas, sinal de que havia alguém. Toquei a
campainha. Segundos depois Carmen apareceu abrindo a porta, e surpresa
exclamou:
— Miguel!
Nos abraçamos forte. Carmen sempre foi uma figura muito presente
e marcante na minha vida.
— Ei, tia Carmen! Saudades.
— Deixa eu olhar para você, Miguel. Meu Deus! Bonito como
sempre. Mas entra. Não preciso nem dizer que a casa é sua.
Entrei. Por alguns instantes olhei tudo ao redor. Cada pedacinho
daquele lugar me trazia memórias.
— Miguel, por que você não avisou que vinha? Eu mandaria alguém
te buscar no aeroporto.
— Eu não sabia que viria. Estava em Madri e decidi de última hora.
— Vai ficar muitos dias?
— Não. Vou embora amanhã. No domingo tenho um voo marcado
de volta ao Brasil.
— Ah, que pena. O Pietro e a namorada estão aqui. Seria bom que
você pudesse ficar mais tempo, e acabar de vez com essa birra que há entre
vocês.
— Pietro está aqui? Pensei que ele estivesse morando em Madri.
— Ele fica lá e cá. Agora mais aqui, por causa da namorada.
— Entendi. Mas tia, essa birra foi ele quem começou. Eu não tenho
nada contra ele. Por mim, nós nunca tínhamos brigado. Sinto muito a falta
dele.
— Sim, meu filho. É muito bom ouvir isso. Vocês agora são dois
homens maduros, já passaram dos trinta. Têm mais é que acabar de vez com
essas atitudes infantis.
Assenti.
— E você, Miguel. Casou? Está namorando?
— Não casei e nem estou namorando. Mas eu tenho uma filha.
— Não me diga! — Carmen colocou as duas mãos na boca em
espanto.
— Sim. Ela já tem quase quatro anos e é a coisa mais linda do
mundo — disse, orgulhoso.
— E seu avô, sua mãe, seu tio Enrico?
— Estão todos bem.
Não sabia se Carmen estava a par de que meu avô passou todo esse
tempo internado em um asilo. Achei melhor não comentar. De repente,
ouvimos um choro de bebê. Carmen pediu licença e correu para um dos
quartos que ficavam próximos da sala onde estávamos.
Quando voltou, veio com um bebê no colo. No primeiro momento,
não percebi nada, até porque a criança tinha acabado de acordar, e estava
com o rostinho enfiado no pescoço de Carmen.
— Temos um bebê em casa? — perguntei.
— Sim, temos um bebê em casa — disse Carmen, virando o bebê
para eu ver o seu rosto.
Quando olhei para ele, fiquei atônito.
— Peraí! Eu conheço essa criança — afirmei espantado.
Era o mesmo bebê das fotos espalhadas pelo quarto do meu avô.
— Esse é o Francisco — disse Carmen.
— Francisco?
Me aproximei deles e, como se eu fosse um ímã, o bebê se jogou em
meus braços.
— Ih, parece que ele gostou de você, Miguel.
Fiquei olhando espantado e perguntei:
— Essa criança é filho de quem?
Antes que Carmen pudesse responder, ouvimos vozes e o som da
porta se abrindo.
— Eles chegaram! — Carmen exclamou.
Fiquei olhando para a porta com o bebê no meu colo, e quando ela
se abriu, eu pensei que eu estivesse sonhando. Era Letícia. Ficamos
parados, olhando incrédulos um para o outro, com a respiração em
suspenso. Lágrimas já despontavam dos olhos verdes de Letícia. Reparei o
quanto estava linda, com um vestido preto e sensual. Pietro entrou, surpreso
ao me ver ali. Foi ele quem rompeu o silêncio:
— Oi, Miguel. Como vai? Eu não sabia que você viria.
Olhei para ele sem conseguir falar. Depois olhei para ela novamente
e consegui balbuciar.
— E...Eu... Letícia...
Ela veio correndo como um furacão e arrancou o bebê dos meus
braços.
— Larga o meu filho!
— Seu filho?!
Letícia não conseguiu me encarar. Desviou o olhar e ali eu entendi
tudo. Francisco... Meu filho.
Comecei a rir e chorar ao mesmo tempo exclamando:
— Meu filho! Porra, é meu filho! O meu filho!
— Mas o que está acontecendo aqui? Letícia?! — Pietro perguntou.
Letícia não respondeu. Ficou soluçando com Francisco em seus
braços.
— O que está acontecendo é que essa criança é meu filho —
afirmei.
— Vocês já se conheciam? — Carmen perguntou espantada
Ela continuava calada, aos prantos, abraçada ao nosso filho.
— Como é que eu não pensei nisso antes? Meu avô, Carlos, o
passaporte... Letícia, eu te procurei por toda parte e você esse tempo todo
aqui, em Barcelona, na casa do meu avô...
— Vai embora, Miguel — pediu chorando.
— Sim. Vamos embora. Eu, você e o nosso filho.
— Ei, alto lá, Miguel. Você não pode chegar assim, do nada, achar
que o Francisco é seu filho e querer que a Letícia vá com você — disse
Pietro.
— Eu não “acho” que o Francisco é meu filho. Eu tenho certeza que
ele é meu filho e eu vou levar ele e a minha mulher comigo — disse
decidido.
— Sua mulher? Ah, essa é boa — debochou.
— Sim. A minha mulher.
— Então foi esse o babaca que te enganou e mentiu pra você? Só
podia ser! — Pietro falou se dirigindo a Letícia.
— Escuta aqui, Pietro, esse assunto não lhe diz respeito.
— Pois saiba que tudo o que se refere a minha namorada me diz
respeito.
Ouvindo ele falar assim, a minha vontade foi dar um soco na cara
dele. Só não fiz em respeito a Carmen, a Letícia e ao meu filho. Decidi
ignorar o comentário dele.
— Letícia, vamos embora. Arruma as suas coisas e as do Francisco,
e vamos agora mesmo para Madri.
— Eu vou ficar aqui, Miguel — respondeu choramingando.
— Está certo. Já está tarde, eu entendo. Essa noite ficaremos aqui,
mas amanhã cedo nós vamos embora.
— Isso quem decide é ela — disse Pietro em tom desafiador.
— Sim, quem decide é ela. Amor, você vai comigo amanhã cedo
para Madri e domingo nós voltamos para o Brasil — disse, olhando para
Letícia.
— Pare com isso, Miguel. As coisas não são mais assim — ela
conseguiu reagir e falar.
— Amor, você sabe que não existe outra alternativa para nós. Foi
por isso que o meu avô insistiu tanto para que eu viesse até Barcelona.
— Seu Raul?
— Sim, Letícia. O meu avô. Eu vim para participar de um congresso
em Madri e ele me fez prometer que viria aqui. Ele queria que a gente se
encontrasse.
— Você está mentindo.
— Eu não estou mentindo. Você é quem mentiu. Até quando achou
que ia esconder ele de mim? — disse, apontando para o bebê no colo dela.
— Eu vou subir. Tenho que colocar ele para dormir — disse
desconcertada.
— Eu vou subir com você.
— De jeito nenhum — Pietro se colocou na minha frente — Você
entendeu que a Letícia é minha namorada e que ela não quer mais papo com
você? Pare de insistir! Perdeu, playboy!
— Pietro, eu não quero perder a paciência com você. Sai da minha
frente.
— Pelo amor de Deus, parem com isso, meninos. Letícia, sobe. Põe
o Francisco para dormir e vai você também descansar. Miguel, amanhã
vocês dois conversam — disse Carmen, tentando conciliar.
Letícia subiu às pressas com o meu filho no colo. Fiquei possesso,
mas não iria enfrentar Carmen. Era mesmo melhor deixar para amanhã. Os
ânimos estavam exaltados e a conversa seria bem longa. A única certeza
que tinha era que teria minha mulher de volta. Seríamos uma família de
verdade: eu, Letícia, Clarinha e Francisco.
CAPÍTULO 33