Entregue a Sedução - Sg Mendes

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Copyright © 2024 SG MENDES

ENTREGUE A SEDUÇÃO

1ª edição 2024

Assessoria: @fox.assessorialiteraria
Capa: Giovana Martins
Diagramação: Sandra Almeida
Revisão: Márcia Rodrigues

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens,


lugares e acontecimentos descritos são produtos
da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com nomes,
datas e acontecimentos reais, é mera coincidência.
É proibido o armazenamento e/ou a
reprodução de qualquer parte dessa obra,
através de quaisquer meios, tangível ou intangível,
sem o consentimento escrito da autora.
A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na lei n◦.9610/98 e punido
pelo artigo 184 do Código Penal.

Todos os direitos reservados


Sumário
SINOPSE
ALERTA DE GATILHO
PLAYLIST
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
SOBRE A AUTORA:
SINOPSE

Ela é uma jovem órfã, pura e inocente.


Ele é um médico devasso e sedutor, avesso a relacionamentos.
Ela acha que ele é um anjo.
Ele a acha uma presa fácil.
Ela é cuidadora de idosos.
Ele é um herdeiro milionário que finge ser pobre para
conquistá-la.
Ela se apaixona por uma fraude.
Ele tenta provar que mudou.

Miguel Hernandez era a personificação da confiança e do poder.


Herdeiro da família mais rica e influente da região, ele atraía tudo o que
queria com o seu charme irresistível, especialmente as mulheres. Médico
ortopedista, conhecido como “Doutor Sedução”, Miguel não se deixava
envolver por sentimentos profundos. Para ele, as mulheres não passavam de
um passatempo, prontas para satisfazer seus desejos, e Letícia, a bela órfã,
pura e inocente, era o seu mais novo capricho.
Letícia Prado carregava cicatrizes profundas de uma infância
marcada pelo abandono e pelos maus-tratos. Aos quatro anos de idade, viu-
se sozinha, vivendo em um orfanato até completar a maioridade. Doce,
gentil e alheia às maldades do mundo, a “Fadinha”, como era conhecida,
sonhava apenas em fazer faculdade de enfermagem e ser feliz — até cair
nas garras do Doutor Miguel Hernandez, um cafajeste cheio de más
intenções.
Entre sedução, encanto, paixão, mentiras, verdades, encontros e
desencontros, Letícia e Miguel descobrirão que o amor verdadeiro é aquele
que cuida, suporta e permanece, mesmo que tudo o mais parece incerto.
ALERTA DE GATILHO

Esta obra contém cenas de sexo explícito, palavras de baixo calão,


abandono, relacionamento tóxico e manipulação.
Playlist
CAPÍTULO 1

Peguei aleatoriamente um livro na biblioteca do colégio e me


deparei com um poema de Mário Quintana sobre o tempo:
“Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já terminou o ano...”
Fiquei pensando em como aquilo era verdade. O tempo passa muito
rápido, e quando se vê...
— Pensando na vida, Letícia?
Ana Lúcia se aproximou tão de repente que eu me assustei.
— Oi, amiga. Ultimamente não tenho feito outra coisa senão pensar
na vida. Conto no calendário o tempo que me resta até conseguir um
emprego e um novo lugar para morar. Vou ter que deixar o abrigo assim que
completar a maioridade, e o tempo parece estar voando — respondi.
— Eu já falei para você não se preocupar tanto. Pode ficar na minha
casa por um tempo, até conseguir um bom lugar para morar.
— Eu sei, e te agradeço muito por isso, mas eu tenho certeza que,
até lá, vou encontrar uma solução.
— Só não me venha com essa história absurda de trabalhar em casa
de família...
— Não é nenhum absurdo. É um trabalho digno como outro
qualquer, e, além do mais, eu teria um lugar para morar e poderia continuar
com meus estudos.
— Eu sei que é um trabalho digno, mas o que não quero é que você
entre em desespero e se sujeite a qualquer coisa. Tenha calma. Eu falei com
o meu padrinho, que tem um escritório contábil, e pedi que ele me avisasse
assim que surgisse uma vaga.
— Obrigada, amiga. Ainda faltam três meses para o meu
aniversário, e vou continuar enviando currículos. Tenho muita esperança de
que surgirá uma boa oportunidade.
— Vai sim. Tenho certeza que você ainda vai ser muito feliz.
— Amém! — falei.
Ela se despediu, e eu continuei na biblioteca estudando para as
provas finais. Eram muitas matérias e, depois das aulas, eu sempre ficava
até mais tarde utilizando um dos computadores disponíveis e fazendo
pesquisas. Meu único objetivo era estudar para ter um futuro melhor.
Aprendi desde muito cedo que nada vem sem esforço, e meu tempo era
focado nisso: em ter bagagem para ingressar em uma faculdade.
Já passavam das quatro da tarde quando saí da biblioteca e segui a
pé em direção ao “lar”. No caminho, parei diante de uma perfumaria, e a
vendedora me entregou uma fita olfativa para que eu sentisse o aroma de
um dos perfumes que era o lançamento da loja. Peguei o papel, agradeci e
segui meu caminho, aspirando a fita, que depois guardei dentro da minha
mochila.
Podemos não nos dar conta, mas nosso cotidiano está cercado de
cheiros que afetam profundamente nossas vidas e despertam emoções. Isso
ocorre porque, de todos os sentidos, o olfato é o que está mais intimamente
ligado às regiões do cérebro envolvidas com emoções e memórias, podendo
trazer lembranças boas ou más.
Ao sentir o aroma daquele perfume, imediatamente me lembrei de
quando ganhei uma caixinha com três sabonetes de presente de Natal. Eu
devia ter uns doze anos. Mesmo depois de tê-los usado, guardei o papel que
os envolvia em minha gaveta de roupas. Aquele cheiro ficou impregnado
em mim. Lembrei-me também do cheiro da minha mãe: cheiro de álcool e
drogas. Aquele cheiro também ficou impregnado em mim.
Quando cheguei ao “lar”, deparei-me com um grande tumulto.
Assim que me viu chegar, tia Penha pediu que eu a ajudasse, pois era
véspera de feriado e ela estava com muitos afazeres, tentando deixar tudo
pronto para a grande festa que aconteceria no dia seguinte no abrigo,
motivo de alegria e esperança para as vinte e sete meninas, a maioria
crianças, que esperavam ansiosamente por aquela data.
Todos os anos, acontecia uma festa com muitas guloseimas e
distribuição de brinquedos, comprados com a ajuda de voluntários e
colaboradores. Um mês antes, as crianças ensaiavam canções e, no dia da
festa, faziam uma apresentação para os convidados que, em sua maioria,
eram pretendentes à adoção. A ansiedade era geral, não só pela festa e pelos
brinquedos, mas também pela possibilidade de, finalmente, serem acolhidas
no seio de uma família.
Foi com isso que sonhei durante todos esses anos. Sonhei que um
dia alguém chegaria ali e, milagrosamente, se encantaria por mim, me
levaria e me desejaria como filha. Foram quatorze anos sonhando em vão.
Moro no Lar Seara de Paz desde os quatro anos de idade. Primeiro,
o Conselho Tutelar retirou a guarda da minha mãe por violência e maus-
tratos. Depois, ela faleceu devido a uma overdose, e como eu não tinha
mais nenhum parente vivo, fui ficando...
As “tias” iam e vinham, e, aos poucos, eu descobri que não podia
me apegar. Era torturante quando procurava por aquele colo, aquele
carinho, aquele aconchego e era informada de que a “tia” tinha sido
transferida para outra instituição. O mesmo acontecia com as amigas.
Algumas eram reintegradas à família de origem, outras caíam nas graças
dos pretendentes à adoção e, de uma hora para outra, iam embora felizes.
Infelizmente, isso nunca aconteceu comigo. Todos sabem que os
pretendentes à adoção preferem os bebês. Eu vim morar no abrigo com
quatro anos, mas só fiquei disponível para adoção aos nove. Isso contribuiu
para que eu sempre fosse deixada de lado. Os que vinham visitar nem me
olhavam. Às vezes, as “tias” forçavam a barra e me enfeitavam na tentativa
de agradar, mas eu sempre ouvia o mesmo comentário: “Ela é muito linda,
mas nós viemos atrás de uma criança menor”.
Uma vez, eu tive esperança. Uma mulher que era sozinha sempre
vinha visitar o abrigo e parecia gostar bastante de mim. Foi ela quem me
presenteou com a caixa de sabonetes. Sempre que vinha, me trazia balas,
biscoitos, presentes e livros. Uma vez, pediu permissão para que eu saísse
com ela para passear. Fomos a um parque de diversões. Eu fiquei em
êxtase. Fiz tudo o que as “tias” recomendaram: comportei-me bem, não
pedi nada, fui educada, comi de boca fechada, pedi licença e agradeci.
Depois desse dia, ela simplesmente sumiu. Uma grande decepção.
Estou às vésperas de completar dezoito anos e serei obrigada a
deixar esse lugar que sempre foi o meu porto seguro, o único local de
referência que tenho no mundo. O sentimento é de medo e incerteza. Sinto-
me como um animal em perigo, indo para uma vida selvagem enfrentando
os perigos do mundo e tendo que me virar sozinha porque não tenho
ninguém.
Durante todo este ano, fiquei procurando alternativas para quando
tiver que ir embora em definitivo. As “tias” disseram que o ideal seria que
eu procurasse um emprego como doméstica, porque assim eu teria onde
morar. E era exatamente isso que eu estava determinada a fazer: assim que
terminassem as provas finais, iria procurar emprego em uma casa de família
onde eu pudesse morar e, nos horários de folga, estudar para, em breve,
prestar o vestibular e realizar o meu grande sonho de ser uma enfermeira.
Naquela noite, fomos dormir tarde, pois deixamos tudo preparado
para a grande festa. Na manhã seguinte, as crianças acordaram em
polvorosa. Ajudei as “tias” a dar banho nas crianças menores e, depois, foi
a minha vez de tomar um banho e me arrumar. Me olhei no espelho e fiquei
feliz com minha aparência.
Coloquei um vestido azul muito lindo que Ana Lúcia, minha amiga
do colégio, me presenteou. Eu me sentia muito grata por essa amizade. Ana
sabia que eu morava em um abrigo e sempre fazia questão de me ajudar.
Além do apoio e companheirismo, ela sempre me dava roupas e calçados,
alegando que não cabia mais nela. Eu sabia que não era verdade, que aquilo
era uma forma que ela encontrou de me ajudar sem deixar que eu me
sentisse constrangida. Aceitava tudo com muita gratidão.
A cor azul combinava bem com minha tez morena e com os meus
longos cabelos castanhos-escuros. Resolvi deixá-los soltos hoje. Coloquei
uma sandália rasteirinha e segui até o salão principal para assistir bem de
pertinho à apresentação das crianças no coral.
Muitos convidados vieram e o salão estava cheio. Esse era o
momento mais emocionante: aquelas meninas lindas, com os rostos cheios
de expectativa e esperança cantando canções maravilhosas. Chorei
lembrando de mim, menina, ali naquele mesmo palco improvisado,
cantando e vibrando.
Peguei Clarinha no colo, uma princesinha de dois anos que chegou
ao abrigo há quatro meses. Ela era linda, meiga e sorridente, e estava muito
apegada a mim. Fiquei pensando no dia em que eu teria que ir embora. O
que será da Clarinha? Como será quando ela quiser o meu colo, o meu
carinho, o meu aconchego? Bem, mas hoje me recuso a pensar nisso. É
feriado, e eu quero aproveitar muito esse dia mágico e essa festa linda.
A festa teve de tudo: brinquedo inflável, presentes, maquiagem
artística, fantasias, comidinhas, pipoca, algodão doce e uma equipe de
voluntários engajada para garantir a diversão da criançada. Até eu brinquei
e me diverti muito, mas, como tudo o que é bom dura pouco, no dia
seguinte tive que voltar à minha realidade

Logo, as provas finais chegaram e, graças a Deus, passei direto.


Com o diploma de ensino médio em mãos, a sensação era de felicidade,
alívio e muito orgulho. Eu consegui!
E num piscar de olhos, chegou o dia do meu aniversário: dezoito
anos. O que, para muitas meninas, significava prazer e liberdade, para mim
a maioridade era um grande desafio, uma transição cercada de incertezas.
Me sentia totalmente despreparada para seguir essa etapa da vida que exigia
autonomia e protagonismo.
Diante de tantos desafios, Verônica, a assistente social que
trabalhava no abrigo, veio falar comigo. Foi então que uma luz no fim do
túnel surgiu quando ela me falou sobre o “Preparando Vidas”, uma
organização não governamental, que desenvolvia um programa de apoio
para jovens recém-saídos de instituições, oferecendo moradia, apoio,
auxiliando na construção de projetos de vida e estimulando a autonomia, até
que o jovem se sentisse apto a seguir seu próprio caminho.
Segundo Verônica, ao longo de um ano, os jovens eram
acompanhados por um adulto de referência, que os orientava e dava suporte
em seus planos e projetos pessoais. Ela disse que as vagas eram muito
concorridas, mas que, se eu quisesse, poderia me indicar.
Assim foi feito. Um mês depois, eu estava me despedindo do Lar
Seara de Paz e seguindo para uma nova etapa da minha vida. A despedida
foi muito triste. Meu coração apertou como não apertava há muito tempo.
Me despedir das crianças foi muito penoso. Chorei abraçada a cada uma
delas. Quando peguei Clarinha no colo, prometi baixinho em seu ouvido
que um dia eu viria buscá-la e que seríamos uma família.
Antes de sair pelo portão, parei por um instante e olhei para trás,
relembrando de todos os momentos vividos ali desde o dia que em que
cheguei, uma criança de apenas quatro anos, fragilizada e assustada, tendo
que encontrar forças e aprender a perdoar alguém que deveria me proteger.
Não foi fácil, mas a vida era feita de ciclos, e um novo estava prestes a
começar.
Cheguei à ONG “Preparando Vidas” com uma mala na mão e
muitas expectativas. O local era um casarão enorme de três andares e
parecia um local muito bem estruturado e organizado. Fui recebida por
Dona Vilma, uma mulher na faixa dos cinquenta anos, muito prestativa e
carinhosa, que seria a minha mentora. Nossa empatia foi imediata. Ela me
contou que o local estava preparado para receber até vinte jovens
anualmente e que, atualmente, contava com sete rapazes e dez moças.
O lugar era dividido por alas. No terceiro andar era a ala masculina,
no segundo andar, a ala feminina e no térreo, era o ambiente comum a
todos, com refeitório, sala de TV, sala de jogos e lazer, sala de estudos com
uma vasta biblioteca e uma sala de reuniões, onde, duas vezes por semana,
aconteciam grupos temáticos com pessoas qualificadas que nos orientavam
sobre questões de moradia, trabalho, educação financeira e cidadania. Os
jovens trocavam experiências, fortaleciam suas identidades e tinham a
possibilidade de formar novos vínculos afetivos e de suporte para as
questões que enfrentavam.
Adorei o lugar. Tinha certeza que essa troca seria de extrema
importância para o meu amadurecimento como pessoa e cidadã. Dividi o
quarto com mais três meninas e fui muito bem recebida por todas elas.
O único problema era que, assim como no abrigo, não dava para a
gente se apegar. A rotatividade era muito grande, pois a ONG fazia parceria
com várias empresas, e logo os jovens eram encaminhados para o mercado
de trabalho e seguiam seu próprio caminho.
Me adaptei rápido, sempre de olho nas oportunidades que surgiam.
Após quatro meses na ONG, Dona Vilma me chamou para falar sobre uma
vaga em um residencial para idosos na cidade vizinha. Ela disse que
estavam precisando de uma cuidadora, uma pessoa que fizesse companhia
aos internos e, caso eu aceitasse, poderia morar no local e ainda ganhar um
salário mínimo.
O turno de trabalho seria de oito horas diárias, com uma folga na
semana. Perguntei se precisava passar por alguma entrevista, e ela disse que
não. Se eu aceitasse, a vaga seria minha. Meu Deus, eu nem podia acreditar
naquilo. Claro que eu aceitava! Chorei emocionada quando ela me abraçou
dizendo:
— Letícia, a vida está à sua espera. Voe com os pés no chão. Você
tem o resto do mundo pela frente e eu quero muito ver você voar.
E foi assim que, em quinze dias, eu estava embarcando em um
ônibus para a cidade de Ribeirão e seguindo em frente para o voo mais alto
da minha vida.
CAPÍTULO 2

“Doutor Hernandez, queira se apresentar na emergência”. “Doutor


Hernandez ...”
Porra! Assim não dá! Estou aqui, na sala de descanso, metendo
gostoso na boceta da Thaís, a enfermeira de plantão, e ficam gritando o meu
nome pelo alto falante do hospital...
Calma! Mesmo uma emergência pode esperar por mais umas
estocadas até eu explodir em um gozo bem gostoso. Thaís já gozou duas
vezes, na minha boca e no meu pau. Estou quase lá.
— Ahhh!
Que gostosa essa Thaís! Mesmo querendo mais, sou obrigado a sair
de dentro dela. Me recompus, me despedi com um beijo molhado e, como
num passe de mágica, entrou em cena o Doutor Miguel Hernandez,
cirurgião ortopédico, especialista em traumas.
Quando cheguei na emergência, fui informado de que, na sala cinco,
estava à minha espera um paciente idoso que sofreu uma queda e
apresentava suspeita de fratura no fêmur. A fratura do fêmur é uma das
lesões mais perigosas para idosos, pois pode levar a complicações graves e
diminuir gradativamente a qualidade de vida. Os pacientes podem
desenvolver complicações médicas, como pneumonia, trombose venosa
profunda e infecção no trato urinário. O tratamento cirúrgico precisa ser
imediato.
Me dirigi até a sala cinco e encontrei o idoso deitado na maca, já
recebendo tratamento intravenoso. O que mais me chamou a atenção foi a
comoção da família. Ele estava acompanhado dos três filhos, noras e dois
netos. Todos estavam muito preocupados e angustiados com a situação.
Aproximei-me para examiná-lo melhor. Ele estava muito assustado, mas
tentei tranquilizá-lo, dizendo que já iria pedir para prepararem o centro
cirúrgico e que, no máximo em uma hora, estaríamos prontos para a
cirurgia. Ao me ouvir, a família se desesperou. Os filhos me cercaram
aflitos. Pedi apenas que confiassem, pois tudo iria dar certo. Sempre dá.
Afinal, sou o Dr. Miguel Hernandez. Eu me garanto!
Entrei em contato com a minha equipe de assistentes, enfermagem,
instrumentista e anestesista e pedi para estarem prontos, pois, assim que a
sala de cirurgia estivesse disponível, iríamos entrar em ação.
Enquanto aguardava, fiquei pensando em meu avô, Raul Hernandez.
Fazia quase dois anos que não nos víamos. Minha família, ou seja, minha
mãe e meu tio Enrico, o colocaram em um asilo — ou “residencial para
idosos”, como eles diziam — assim que surgiram os primeiros sinais de
Alzheimer.
Meu avô sempre morou conosco. Não, na verdade nós é que sempre
moramos com ele. Raul Hernandez era um homem muito rico, mas nem
sempre foi assim. Desde criança, ele me contava as histórias de como
batalhou para conseguir tudo o que conquistou na vida: muito trabalho,
dedicação e pouco tempo para viver e desfrutar dos prazeres da vida. Ele
era praticamente o “dono” do comércio da cidade de Ribeirão.
Começou com uma pequena loja de bugigangas que se expandiu a
ponto de virar uma grande rede de lojas varejistas. Meu pai, Francisco e
meu tio, Enrico, que desde cedo trabalharam e aprenderam tudo com ele,
diversificaram os negócios com redes de supermercados e eletrodomésticos.
Com isso, a cidade prosperou, muitas frentes de trabalho foram abertas e
minha família se tornou idolatrada. Os “Hernandez” eram os cidadãos mais
respeitados da cidade.
Depois que meu pai se casou com minha mãe, Celeste Hernandez,
os dois foram morar na mansão pertencia ao meu avô. Cresci naquela casa,
tendo meu avô como meu grande companheiro e amigo durante toda a
minha infância e adolescência.
Quando fui estudar medicina em São Paulo, tudo mudou. Fiquei
muitos anos afastado, vivendo uma vida regada a muita farra, bebidas e
mulheres. Raramente visitava minha família e não me importava com
ninguém. Quando terminei a faculdade, fui fazer uma especialização na
Espanha e fiquei um bom tempo fora, só retornando a Ribeirão quando,
infelizmente, meu pai faleceu vítima de um infarto fulminante.
Meu retorno à cidade gerou muitas cobranças por parte da família,
principalmente da minha mãe. Dona Celeste era uma mulher forte, decidida,
determinada e muito temperamental. Com um grande poder de persuasão,
ela me convenceu a me estabelecer de vez na cidade. A princípio relutei,
mas acabei pensando que isso poderia ser bom para o início da minha
carreira.
Graças à influência do prefeito da cidade, amigo da família, fui
nomeado chefe da ortopedia do hospital municipal em pouco tempo. Minha
mãe também se encarregou de conversar com meu avô e convencê-lo a
ceder um de seus melhores prédios no centro da cidade para a construção da
minha clínica ortopédica. E ela conseguiu. Dona Celeste conseguia tudo o
que queria e, após a morte de meu pai, uniu forças com meu tio Enrico com
a intenção de interditar meu avô e tomar posse de todos os seus bens.
Meu avô já estava com setenta e seis anos, era viúvo e sempre o vi
como um homem cheio de saúde e vigor físico. No entanto, desde a morte
do meu pai, ele se deixou abater. Os dois eram muito ligados e unidos, e
essa morte repentina, foi um baque imenso para ele. Desde que voltei, tentei
me aproximar, mas ele estava muito reticente, cabisbaixo e deprimido.
Como médico, eu sabia que o luto desencadeia uma série de
emoções e que esse processo pode provocar instabilidade emocional,
cognitiva e orgânica. Sentimentos como tristeza, desânimo, medo,
ansiedade, além de dificuldade para dormir, comer e se concentrar, são
características comuns desse período. No entanto, minha mãe e meu tio
pareciam não querer entender isso. Eles falavam que o velho estava “gagá”,
esquecendo das coisas, e acreditavam que a única solução seria interná-lo
em um lugar que, segundo eles, ofereceria suporte, acompanhamento e
apoio vinte e quatro horas por dia.
Com o aval de um neurologista amigo da família, foi fácil para eles
atestar que meu avô estava sofrendo de demência, perturbação mental e
princípio de Alzheimer. Segurança e conforto eram os argumentos que
usaram para justificar a decisão, e assim, meu avô foi internado no “Perfect
Village”, o lugar mais bonito, caro e luxuoso da região. Era uma forma
clara de se eximir da culpa. Agora, ele estava judicialmente interditado, e
minha mãe e meu tio eram os seus curadores.
Fiquei profundamente triste, chateado mesmo, mas não havia nada
que eu pudesse fazer. Nos primeiros meses após a internação, eu o visitava
toda semana, mas ele se recusava a interagir. Parecia enxergar cada membro
da família como um inimigo, um traidor. Com o tempo, ele foi ficando cada
vez mais arredio e, aos poucos, acabei me afastando. Minha mãe e meu tio
também quase não o visitavam, mais preocupados em gastar toda a sua
fortuna.
Eu, por minha parte, estava muito ocupado com o trabalho no
hospital e supervisionando as obras da clínica que, graças ao dinheiro do
meu avô, seria uma referência em ortopedia e traumatologia na região,
contando com os melhores equipamentos de imagem e tecnologia de ponta.
Raramente me lembrava do meu avô, mas ao ver aquela família tão
preocupada com o seu idoso, eu senti saudade de um tempo ao qual era
impossível voltar. Um tempo em que éramos felizes.
Finalmente, o centro cirúrgico ficou pronto. O paciente foi
preparado e logo iniciamos mais uma jornada bem-sucedida. Mesmo
morando no interior, consegui uma equipe de excelentes profissionais e
confiava muito no trabalho de cada um deles. Depois de mais de três horas,
estávamos finalizando a cirurgia, satisfeitos com o resultado.
Enquanto a equipe de enfermagem preparava o paciente para ser
internado na UTI, um procedimento comum quando se trata de um idoso,
fui dar notícias à família, que em nenhum momento arredou o pé do andar
onde ficava o centro cirúrgico. Todos estavam com o semblante angustiado,
mas logo se aliviaram quando eu informei que a cirurgia havia sido bem-
sucedida e agora era só aguardar a recuperação. Os filhos, noras e netos me
agradeceram, e presenciei uma das cenas mais lindas quando todos se
abraçaram em uma corrente de oração.
Quando me virei para deixá-los a sós e me retirar do local, Cida,
uma das enfermeiras, se aproximou dizendo:
— É doutor, isso se chama amor.
— Estão felizes, deu tudo certo.
— Não poderia ser diferente com você no comando.
— Obrigado, Cida.
Fui para a sala de descanso dos médicos para me trocar, pensando
naquela família unida e amorosa ao redor de seu idoso, em contraste com o
meu avô, que estava sozinho e abandonado em um asilo.
Fausto, que era neurologista, entrou na sala, interrompendo meus
pensamentos.
— Que tal um chope no “De Plantão”? Combinamos de nos reunir
lá.
— Cara, eu estou exausto. Estou há mais de vinte e quatro horas
aqui no hospital e ainda tive essa cirurgia de emergência...
Ele me interrompeu dizendo:
— Vamos lá, “Doutor Sedução”. Sem você não tem graça.
Comecei a rir. Era assim que eu era conhecido no meio dos meus
amigos médicos: Doutor Sedução. Achava graça do apelido, mas, no fundo,
acreditava que tinha mesmo um poder de sedução nato. Um magnetismo
pessoal que atraía não apenas as mulheres, mas as pessoas de um modo
geral. Na verdade, existiam várias formas de sedução, e nem todas tinham
como fim específico o ato sexual. Para mim, a sedução era um
encantamento, uma atitude, uma conversa, e, nisso, eu era um expert.
Mesmo estando cansado, achei que seria uma boa ideia relaxar. O
dia tinha sido intenso e tenso demais. O “De Plantão” era um bar que ficava
na esquina do hospital e, normalmente, o pessoal se encontrava lá para dar
uma aliviada nas tensões diárias, tomando um chope gelado e comendo uns
petiscos.
— Me convenceu. Vai indo, que já te encontro lá — falei.
— Não vai furar, hein?
— Não mesmo — afirmei.
Quando Fausto saiu da sala, continuei me arrumando, ainda um
pouco abalado por tudo. Antes de sair do hospital, fui verificar três
pacientes em recuperação. Fim da ronda e de mais um plantão concluído.
Chegando ao bar, vi Fausto em uma mesa acompanhado de Jaime e
Vítor, dois outros grandes amigos. O primeiro era cardiologista e o
segundo, clínico geral. Ficamos conversando um pouco sobre o nosso dia
no hospital e, depois de mais duas rodadas de chope, o celular de Vitor
começou a tocar. Ele olhou para o visor e atendeu imediatamente. Depois,
tomou mais um gole de seu chope e chamou o garçom, pedindo a conta.
— Mas já? — perguntei.
— Minha mulher ligou pedindo que eu não me atrasasse para o
jantar. Sabe como é, né?
Vítor e Fausto eram casados. Jaime estava noivo de uma das
enfermeiras do hospital, e eu era o único solteiro na mesa.
— Eu sei exatamente como é — comentou Fausto.
Olhei para a cara de Jaime e perguntei:
— Você tem certeza que é essa vida que você quer? Ainda dá tempo
de desistir.
— É exatamente essa a vida que eu quero. Eu e Ana estamos muito
apaixonados e não vejo a hora de dividir a minha vida com ela —
respondeu Jaime.
— Há gosto para tudo. Pois eu é que não quero me prender, ficar
usando uma coleira. Quero ter a liberdade de sentar em uma mesa de bar
com os amigos, sem ter ninguém para encher meu saco — falei.
— Mas quem disse que é encheção de saco? Casamento não é só
cobrança, Miguel. O meu casamento, por exemplo, é feito de leveza,
parceria, apoio e cumplicidade. Nós gostamos de estar juntos, de curtir a
companhia um do outro. Eu sinto o maior prazer em aproveitar os
momentos livres que tenho ao lado da minha mulher e dos meus filhos. A
vida em família pode ser boa. Você devia experimentar — disse Fausto.
— Jamais. Eu sempre prezei muito pela minha liberdade. A palavra
compromisso está fora do meu dicionário.
— Todos dizem isso até encontrar a mulher certa. Mas deixa pra lá.
Um dia, você vai cansar dessa sua vida devassa e vai querer compartilhar
com alguém. Aí nós vamos rir quando você sair correndo para dar plantões
dentro de casa — disse Vítor, e todos gargalharam.
— Isso nunca vai acontecer — afirmei. — Mas vamos tomar a
saideira. Aí, a gente pede a conta e divide.
Pedimos mais uma rodada de chope e nos despedimos.
No caminho para casa, fiquei pensando na conversa que tivemos no
bar. Nunca me imaginei dividindo minha vida com ninguém. Aos trinta
anos, eu só havia tido dois relacionamentos que duraram mais tempo. Com
Susana, uma vizinha, ainda na adolescência, e com Martina, durante o
período em que fui fazer especialização na Espanha. Com Susana, foi a
descoberta do sexo. Fomos os primeiros na vida um do outro. Já com
Martina, foi a descoberta do prazer. Ela era livre, ousada e aberta a todos os
tipos de relações. Depois delas, nunca houve uma mulher que despertasse
em mim um interesse maior e a vontade de querer ficar.
Adorava sexo e gostava de diversificar, mas havia dias em que
passava horas à procura de algo mais: compreensão, felicidade, sensações,
emoções, alguém. Havia dias em que eu só procurava, mas logo me dava
conta de que tudo não passava de uma grande bobagem. Amar, se
apaixonar, se dar...
Cheguei em casa, tomei banho e busquei um livro na biblioteca.
Abri a página aleatoriamente e me deparei com um poema de Mário
Quintana:
“Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já terminou o ano...”
Era isso. Eu tinha que aproveitar minha vida sem me prender a
ninguém. O tempo passa muito rápido, e quando se vê...
CAPÍTULO 3

Nunca na minha vida havia colocado os pés em um lugar tão


luxuoso. Como pode aquilo ser considerado um asilo? O “Perfect Village”
era magnífico, com sua área de trezentos mil metros quadrados cercado de
verde, três mil metros quadrados de área comum e suítes com vinte e nove
metros quadrados. Parecia mais um resort de luxo que a gente via na TV ou
pela internet. O local contava ainda com tecnologia, infraestrutura e uma
equipe multidisciplinar pronta para atender a cada necessidade dos internos
— ou moradores como eram chamados — e garantir o bem-estar e a
qualidade de vida.
Logo que cheguei, fui encaminhada para um escritório onde conheci
Hermínia, a administradora do local. Uma mulher muito elegante e séria.
Apesar de ter me recebido muito bem, fez questão de frisar o quanto o
trabalho ali era de responsabilidade, que nunca havia contratado ninguém
sem experiência e que só havia aberto uma exceção a pedido de Dona
Vilma, uma pessoa a quem ela considerava muito, mas esperava não se
arrepender. Eu disse a ela o quanto eu estava agradecida pela oportunidade
e que, apesar de não ter experiência, estava disposta a aprender e que ela
jamais se arrependeria.
Depois, ela chamou uma das assistentes para que me mostrasse todo
o local. Acompanhei Lisete em um verdadeiro tour. Ela tinha vinte e seis
anos e era uma das cuidadoras, mas não morava ali. Aliás, depois eu
descobri que a única cuidadora que moraria ali seria eu e, por isso, quando
ela me mostrou o local onde eu iria dormir, quase caí para trás. Era uma
suíte muito semelhante à dos “moradores”, com banheiro privativo,
televisão com canais a cabo, armário embutido e uma bancada para leitura e
estudo. Estava maravilhada. Como eu podia ter tanta sorte?
Lisete era muito simpática e falante, daquele tipo que se abre
facilmente nos deixando muito à vontade. Trabalhava no local há quase dois
anos e tinha muita familiaridade com todos os moradores. Me mostrou cada
pedacinho do lugar, falou sobre os funcionários, administradores e também
sobre os moradores. Ela me explicou que apenas os que não tinham
dificuldade de locomoção podiam transitar livremente pelas áreas comuns.
Os que estavam mais debilitados seguiam um cronograma de terapia
designado pela equipe médica, com horários pré-determinados para
atividades ao ar livre.
Como eu estava iniciando, ficaria responsável pelos cuidados
daqueles que não tinham nenhum tipo de doença grave ou sequela. Eu iria
desempenhar mais o papel de acompanhante, para passear, conversar,
entreter e ler. Achei maravilhoso. Tinha certeza de que iria adorar.
Gostei de tudo o que vi e ouvi sobre o meu local de trabalho. Depois
de me instalar, fui dar uma volta sozinha para me familiarizar com o lugar,
já que meu trabalho só começaria no dia seguinte às oito da manhã. Fiquei
observando alguns moradores que passeavam, alguns acompanhados de
familiares e outros, pelos cuidadores ou terapeutas. Alguns ficaram curiosos
ao me ver ali, e eu acenava para eles.
Depois, fui para o meu quarto e agradeci a Deus por tudo de bom
que estava acontecendo em minha vida. Fiquei lendo até o sono chegar e
dormi como há muito tempo não dormia. Também, naquela cama
confortável, era impossível dormir mal. Sentia-me feliz e segura naquele
lugar.
Acordei às seis da manhã, ansiosa para começar o dia. Tomei um
banho e depois fui direto para o restaurante onde era servido o café da
manhã. Fui muito bem recebida por toda a equipe de funcionários e tomei
um café da manhã de princesa na companhia deles.
Em minutos, eu me tornei a atração do local. Todos queriam saber
mais sobre mim, como se eu tivesse muito o que contar. Disse a verdade:
que, durante os últimos quatro meses, morei numa instituição que auxilia
jovens carentes e que a minha vida foi dentro de um abrigo onde morei
desde os quatro anos de idade. Contei também que minha vida social se
restringia às festinhas comemorativas do abrigo e que, além do colégio, eu
raramente saía. Depois, foi a vez de cada um deles se apresentar, falando
um pouco sobre si e sobre o trabalho que exerciam ali. Adorei todos eles.
Paramos um pouco de conversar quando alguns moradores foram se
aproximando do restaurante. Segundo me contaram, eles tinham a opção de
fazer suas refeições no quarto ou no restaurante, mas às sete e meia da
manhã, a maioria deles, que não tinha problemas de mobilidade, começou a
chegar. Vi Lisete se aproximando, e ela me cumprimentou com um abraço.
Esperei que ela fizesse sua refeição, pois hoje eu iria acompanhá-la e seria
apresentada a todos como a nova cuidadora.
Gostei muito de todos os moradores que conheci. Eles
compartilharam um pouco de suas histórias comigo, o que, para mim, foi
um grande aprendizado. A solidão parecia fazer com que se abrissem mais,
sem reservas. Também contei um pouco sobre minha vida para eles. Todos
elogiaram muito a minha educação e também a minha beleza. A manhã
passou muito rápido e, na parte da tarde, muitos deles receberam a visita de
parentes e amigos. Fizeram questão de me apresentar a seus familiares. Foi
uma alegria só.
Após uma semana, eu já estava totalmente adaptada ao lugar. Não
precisava mais acompanhar Lisete e já me sentia querida por alguns dos
moradores, que muitas vezes disputavam a minha companhia. Eles
precisavam de companhia, carinho e atenção, e eu também. Era uma troca
perfeita. Passava os dias jogando cartas, dominó, jogos de tabuleiro,
videogame, lendo e assistindo a filmes. Ríamos muito e nos divertíamos.
Aos poucos, fui conhecendo cada um deles, suas necessidades,
gostos e jeitos. Todos interagiam uns com os outros, exceto um. Havia um
senhor que sempre se isolava, com o semblante muito fechado. Fazia todas
as refeições na sua suíte, nunca indo ao restaurante. Eu sempre o observava.
Todas as tardes, ele se sentava em um lugar bem afastado no jardim, sempre
com um livro na mão. Quando algum outro morador se aproximava, ele saía
de perto, visivelmente incomodado. Sempre que um dos cuidadores
perguntava se ele precisava de algo, negava com a cabeça. Não se dava nem
ao trabalho de responder. Nunca o vi recebendo nenhuma visita.
Minha curiosidade sobre aquele homem aumentava a cada dia.
Ficava intrigada, até porque ele não parecia doente ou debilitado. Parecia
um homem com capacidade física e intelectual plena. Perguntei a Lisete
sobre ele.
— Aquele é Seu Raul. Mora aqui há cerca de dois anos. No início,
ainda recebia visitas de alguns parentes, mas elas foram ficando cada vez
mais escassas até que ele foi abandonado de vez. Ninguém nem liga mais
para saber notícias dele.
— Mas ele nem parece ser um homem doente. O que está fazendo
aqui?
— Vai ver que a doença dele é mau humor. O homem é intragável.
Se tranca o dia inteiro na suíte para não ter que falar com ninguém. Quando
sai, não cumprimenta ninguém. Enfia a cabeça no livro e fica lá, sozinho, e
não gosta de ser incomodado.
— Nossa, coitado! Que história mais triste. Uma coisa é não ter uma
família como eu; outra coisa é ter uma família e ser abandonado. Ele deve
sofrer muito.
— Algum motivo deve ter — disse Lisete.
— Sim, mas qual seria esse motivo? O que esse homem fez para
merecer tanto desprezo?
Lisete deu de ombros. Fomos interagir com outras pessoas, e assim
o dia passou. Nos despedimos e eu fui para o meu quarto. Naquela noite, fui
deitar pensando naquele homem solitário, imaginando as suas dores e
cicatrizes. Ninguém merece viver no meio de tanto vazio. Fui dormir
decidida a me aproximar.
No dia seguinte, como de costume, acordei cedo. Fui tomar café
junto aos meus colegas de trabalho, e logo os moradores começaram a
chegar. Alguns já me abraçavam e beijavam, desejando-me um bom dia.
Olhei em volta e, como sempre, não vi Seu Raul. Devia estar lá,
enclausurado dentro de sua suíte.
Após o almoço, como sempre, os familiares chegavam e ficavam até
o final da tarde. Vi Seu Raul chegando e se dirigindo para o mesmo local
afastado com um livro na mão. Aguardei alguns minutos e, como quem não
quer nada, resolvi me aproximar.
— Boa tarde, o senhor deseja alguma coisa? — perguntei.
Ele apenas acenou negativamente com a cabeça sem nem mesmo
me olhar.
— Hum... “Grandes Esperanças”. Ainda não li. Do que se trata? —
questionei, olhando para a capa do livro.
— Desculpe, mas eu prefiro ficar sozinho — disse ainda sem me
olhar.
— Ah, desculpe senhor. É que eu o vejo sempre aqui tão sozinho
que fico pensando: quem sabe eu não poderia fazer um pouco de
companhia, conversar, ler para o senhor....
Ele me interrompeu ainda sem tirar os olhos do livro.
— Eu sou alfabetizado. Não preciso que ninguém leia para mim.
— Eu sei. Mas é que alguns moradores têm a vista cansada e, às
vezes, eu leio para eles. Me dá o maior prazer. De qualquer forma, se um
dia o senhor quiser, estou à disposição. Tchau!
Me despedi e me afastei, mas não ia desistir. Se ele era duro na
queda, eu era mais.
Aproveitei para ir até a administração e pedi licença à Hermínia para
fazer uma ligação para o abrigo onde morava. Ela permitiu que eu usasse o
telefone, e, quando atendeu, todas as “tias” queriam falar comigo e saber
como eu estava. Era sempre assim quando eu ligava. Perguntei se todas as
crianças estavam bem, mas principalmente por Clarinha. Adorava aquela
criança. Quem sabe um dia eu teria a oportunidade de tê-la ao meu lado
para sempre? Ser sua mãe? Nada como um dia após o outro.
Na tarde seguinte, encontrei Seu Raul no mesmo lugar, absorto em
sua leitura. Me aproximei:
— Boa tarde, Seu Raul. Andei pesquisando sobre esse livro e acabei
lendo a sinopse. Fala sobre um menino órfão que herda uma fortuna de um
benfeitor anônimo e nutre uma grande esperança em ser feliz. Adorei a
temática.
— Herdar uma fortuna pode ser perigoso. — disse olhando-me nos
olhos pela primeira vez. — Ninguém é feliz porque é rico ou recebe uma
herança. Isso tudo é ilusão. Em algum momento, as pessoas se dão conta
disso.
— Mas, ao final do livro, ele é feliz? — perguntei.
— Isso você só saberá depois de ler. Mas seja cautelosa com o que
deseja. Essa é a grande mensagem desse romance.
— Sabe, Seu Raul, eu acho difícil a gente ter cuidado com os nossos
pensamentos e desejos. Eu tenho muitos desejos e faço muitos planos. Se
vão se realizar e me trazer felicidade, isso eu já não sei.
— Você é muito jovem. Quantos anos tem? — perguntou.
— Dezoito — respondi.
— Certo. Ainda está em idade de sonhar — disse isso, voltando a
olhar para o seu livro.
Eu insisti.
— Mas eu acho que, independente da idade, todos nós temos direito
de sonhar. Uma vez, li uma frase dizendo que “os sonhos impulsionam a
vida.”
— Eu parei de sonhar há muito tempo e continuo vivendo. Então, a
vida independe dos sonhos — respondeu.
— Ah, Seu Raul, como assim parou de sonhar? Um homem como o
senhor, que parece ser saudável, tem mais é que sonhar, desejar, viver
plenamente.
— Quais são os seus sonhos? — Ele perguntou.
— Voltar a estudar e fazer uma faculdade de enfermagem. Esse é o
meu maior desejo. Graças a Deus, eu consegui esse trabalho. Assim que eu
receber o meu primeiro salário, vou me matricular em um curso
preparatório, nem que seja um curso online, e vou me esforçar muito para
alcançar o meu objetivo.
— Espero que você consiga. Qual o seu nome?
— Letícia — respondi estendendo a mão para ele que correspondeu
no ato.
Primeira batalha vencida com sucesso!
A partir daquele dia, sempre conversávamos. Não queria ser muito
invasiva e não ficava por muito tempo, mas, para mim, era o suficiente, pois
o que eu queria era quebrar um pouco da resistência dele. Na verdade, era
praticamente um monólogo, pois só eu falava e ele se limitava a ouvir. Pelo
menos não era rude e sempre colocava o livro de lado para me dar atenção.
Aos poucos, fui conseguindo um “sim”, “não”, “talvez”, “isso”, o
que já era uma grande evolução. Um dia, fiquei mais um tempo; no outro,
mais um pouco, até chegar o dia em que passamos a tarde inteira juntos.
Os amigos do trabalho ficaram curiosos em saber como eu tinha
conseguido aquele feito; afinal, Seu Raul não falava com ninguém e,
quando se expressava, normalmente era através de monossílabos.
Brinquei com eles, dizendo que eu era uma fada e tinha jogado um
encantamento em Seu Raul para que fôssemos amigos.
A partir daquele dia, o meu apelido no trabalho passou a ser
“Fadinha”, a menina que encantava.
CAPÍTULO 4

A clínica finalmente ficou pronta. Com todo dinheiro investido, não


poderia ser diferente. Ela levava o nome do meu pai: Clínica de Ortopedia e
Traumatologia Francisco Hernandez. Pensei até em colocar o nome do meu
avô, Raul Hernandez, que, afinal, foi o grande financiador, mas minha mãe
e meu tio acharam melhor não. Alegaram que as pessoas poderiam
estranhar a ausência dele no dia da inauguração e questionar. O que todos
da cidade sabiam era que meu avô ficou muito abalado com a morte de meu
pai e resolveu passar uma temporada em sua residência na Espanha.
Todas as figuras ilustres da cidade compareceram à inauguração,
incluindo o prefeito, vereadores, secretários e outras autoridades.
A estrutura da clínica era composta de um pronto atendimento, doze
consultórios, quatro salas de imagem, duas salas de procedimentos
simultâneos e individuais, duas salas para infiltrações, suturas e curativos,
uma área dedicada ao tratamento com acupuntura e um espaço Fisio para
fisioterapia, RPG e Pilates, oferecendo um atendimento personalizado,
moderno e de qualidade.
As pessoas vieram me cumprimentar, desejando sucesso. Eu estava
feliz e orgulhoso, pois, aos trinta anos, já era considerado um dos cirurgiões
ortopédicos mais respeitados do meu estado. Minha mãe também estava
orgulhosa. Apesar de seu jeito prepotente, eu sabia que me amava e fazia
tudo para que eu fosse feliz.
O único inconveniente era ela querer me empurrar para todas as
moças que ela considerava ser de “boa família”. Dessa vez, foi a filha do
Juiz. Rilana era até bonita e elegante, mas, após algum tempo de conversa,
tive a impressão de que ela era fútil e totalmente dominada pelo pai. Não
tinha opinião própria, e eu não tinha nenhuma paciência com pessoas sem
personalidade. Dona Celeste estava completamente enganada se achava que
esse tipo de mulher me atraía.
Após o coquetel de inauguração, saí para encontrar meus amigos na
boate da cidade. Era o meu reduto desde que cheguei: boa companhia,
bebida e mulheres. Se elas eram fúteis e não tinham opinião própria, isso
não tinha a menor importância. O que eu queria mesmo era garantir a foda
da noite. Uma bocetinha gostosa, molhadinha e apertada, era tudo o que eu
queria e precisava.
Estava entusiasmado, cheio de gás e energia e logo duas garotas se
aproximaram: uma morena e outra negra. Eu bem que merecia essa sorte.
Ofereci uma bebida e, depois, fomos para a pista de dança. As duas
pareciam ensandecidas. Desciam até o chão num frenesi sensual, se
esfregando no meu corpo. Meu pau parecia que ia explodir de tanto tesão.
Saí da boate levando as duas comigo para um motel. Primeiro,
assisti elas se pegando enquanto eu me masturbava. Uma cena de
enlouquecer. Elas sugavam e babavam na bocetinha uma da outra. Uma
delícia de assistir. Depois, quando finalmente entrei em ação, comecei a
foder uma e masturbar a outra ao mesmo tempo. Fizemos a troca várias
vezes durante a noite, e elas se acabaram de tanto gozar no meu pau e na
minha boca. Mas, como tudo o que é bom tem prazo de validade, lembrei
que em três horas começaria o meu novo plantão no hospital. Tive que me
despedir das meninas, prometendo que, em breve, iríamos repetir a dose.
Cheguei em casa já amanhecendo e encontrei minha mãe me
esperando. Ela começou com um pequeno sermão, dizendo que não ficava
bem um médico respeitado na cidade passar a noite toda na orgia, que era
um desrespeito ao nome da família, que todos iriam comentar o meu
comportamento e que o ideal seria que eu arrumasse logo uma boa moça
para casar. É sério isso? Casar? Ela só podia estar ficando louca. Deus me
livre! Para ela parar de falar, aleguei que estava atrasado e que precisava
tomar um banho, porque, daqui a pouco, começaria o meu plantão no
hospital.
Aquele foi um dia conturbado. Houve um acidente de trânsito entre
um carro e uma van. Apesar de serem da cidade vizinha, os feridos foram
levados para o hospital onde eu trabalhava, pois havia três pessoas com
traumas graves. Dentre elas duas crianças que iriam precisar de cirurgia.
Minha equipe estava se esforçando ao máximo para atender a todos
da melhor forma possível, pois as crianças estavam muito assustadas e
tivemos muito trabalho para acalmá-las. Depois, soubemos que a van
pertencia a um orfanato que estava levando as crianças para vacinação no
posto de saúde da cidade.
Foi exaustivo, mas conseguimos atender a todos e fazer o nosso
melhor. Levamos a moça que estava acompanhando as crianças para a sala
de cirurgia, pois o estado dela parecia ser o mais grave, com fratura exposta
da tíbia. As duas crianças estavam com lesões menos graves: uma menina
de sete anos na perna e uma pequena de dois anos no braço, exigindo
cirurgia para o adequado posicionamento dos fragmentos da fratura e
fixação.
Já passava das nove da noite quando saí do centro cirúrgico após a
última cirurgia, que foi justamente da criança menor. Eu estava
extremamente cansado, até porque não havia dormido na noite anterior.
Quando cheguei à recepção, já pronto para ir embora, fui informado
de que uma pessoa me aguardava para saber informações sobre os
acidentados do orfanato. Falei com a recepcionista que todos estavam bem
e se recuperando, mas me recusei a falar com qualquer pessoa naquela hora.
Disse que, se quisessem, poderiam me procurar no dia seguinte para obter
maiores detalhes.
A recepcionista ainda tentou me comover, dizendo que a moça
estava muito preocupada e que havia passado a tarde toda no hospital em
busca de notícias, principalmente da criança de dois anos. Não dei a
mínima. Fiz o meu trabalho. Agora eu iria descansar. Dei as costas e me
dirigi ao estacionamento do hospital.
Assim que destravei a porta do meu carro, ouvi uma voz chamando:
— Doutor!
Me virei e fiquei deslumbrado com o que vi. Me deparei com uma
moça morena, de cabelos castanhos que caíam sobre os ombros em longas
cascatas e lindos olhos verdes. Uma boca carnuda e bem desenhada e um
corpo que, apesar de magro, era bem definido, com cada curva no lugar.
Linda. No momento em que a vi, fiquei logo imaginando aquela coisinha
deliciosa gemendo embaixo de mim em uma cama. Ela me tirou do meu
delírio.
— Doutor, me desculpe, pois sei que o senhor não está mais no seu
horário de trabalho, mas eu preciso muito ter notícias da Clarinha. Não só
dela, mas de todos os acidentados do Lar Seara de Paz.
— Clarinha?
— Sim. Fui informada que ela foi uma das acidentadas e ficou em
estado grave. Teve que passar por uma cirurgia. Ela tem apenas dois
aninhos e não tem ninguém.
Ela começou a chorar.
— Calma. Está tudo bem. Ela está bem. A cirurgia foi bem-
sucedida. Agora ela está recebendo cuidados na UTI.
— UTI?
Foi aí que ela chorou mais. Que vontade de agarrá-la ali mesmo e
consolá-la, beijando aquela boca gostosa.
— Não se preocupe. Isso é de praxe. Ela é muito pequena e, na UTI,
ela será monitorada por vinte e quatro horas. Amanhã, ela deve ser
transferida para a enfermaria pediátrica e vai ficar tudo bem. Só vai ter que
ficar pelo menos mais uns três dias no hospital por precaução, até ter alta.
— Mas eu não posso vê-la?
— Hoje não, só amanhã. Até porque o horário de visitas já encerrou.
Amanhã, quando eu chegar, verei como ela e os demais passaram a noite
para poder liberar para a enfermaria e também para receber as visitas.
— Está bem, doutor. Muito obrigada. O senhor é um anjo que
salvou a vida da Clarinha. Serei eternamente grata ao senhor. Tchau!
Ela já ia se virando para ir embora, quando eu a chamei.
— Ei!
Ela se virou e eu perguntei:
— Para onde você está indo? Não quer uma carona?
— Não precisa, doutor. Eu não quero incomodar. Tem um ponto de
ônibus logo ali na frente.
— Não é incômodo nenhum, e pegar ônibus a essa hora pode ser
muito perigoso. Eu faço questão de levá-la.
Ela assentiu com a cabeça e eu abri a porta do carro para ela entrar.
Yes! Essa já estava no papo!
— Para onde você quer ir? — perguntei já querendo parar no
primeiro motel.
— Estrada dos Pinheirais, o senhor conhece?
— Sim. Mas tem certeza que quer mesmo ir para lá? Não prefere ir
para outro lugar?
— É lá que eu moro — respondeu com inocência.
— Eu pensei que talvez nós pudéssemos ir jantar em algum lugar.
Acabei de sair do hospital e esse acidente me deixou ocupado durante todo
o dia. Nem tive tempo para comer.
— Ah, coitado! Então não precisa me levar, doutor. O senhor pode ir
jantar que eu me viro de ônibus.
Ela já estava colocando a mão na maçaneta do carro para abrir a
porta, quando eu a detive.
— Primeiro: você não precisa me chamar nem de doutor e nem de
senhor. O meu nome é Miguel. Segundo: eu faço questão de levar você em
casa.
— Está bem. Obrigada dout.. Miguel. Eu sou a Letícia.
— Muito prazer, Letícia. Mas então, qual é a sua relação com a
criança? Não vai me dizer que você é a mãe dela?
— Eu? Mãe da Clarinha? Quem me dera! Não. Nós apenas
morávamos no mesmo abrigo e eu me apeguei muito a ela.
— Você é moradora de um abrigo? — perguntei, perplexo.
— Era. Eu morei praticamente a vida toda no Seara de Paz, mas,
quando fiz dezoito anos, tive que sair de lá. Vim trabalhar nesta cidade e,
quando eu soube da notícia do acidente, vim para o hospital imediatamente.
— Há quanto tempo você está morando aqui na cidade?
— Há três meses.
— E está gostando?
— Sim. Eu moro no meu local de trabalho e está sendo muito bom.
Estou adorando.
Porra! Se essa menina saiu há três meses de um orfanato, ela deve
ser muito pura e inocente. Onde será que ela trabalha? Será que alguém já
chegou na minha frente e comeu a ninfetinha?
— Olha, estamos quase chegando. É logo depois da próxima curva
— indicou.
Eu conhecia aquele caminho, aquele lugar... Ah! Porra, não era
possível! Era ali que meu avô estava internado. Ela trabalhava e morava ali?
— O que você faz trabalhando aqui? — perguntei.
— Aqui é um residencial para idosos. Eu trabalho como cuidadora e
moro aqui também. Bem, muito obrigada pela carona, dout...Miguel.
Amanhã, eu vou ao hospital para ver a Clarinha.
— Me passa o seu número — pedi.
— Como?
— O número do seu celular. Assim que a Clarinha for para a
enfermaria, eu ligo para você e libero a sua visita.
Ela me passou o número, se despediu, mas antes de sair do carro se
virou e falou:
— Obrigada por tudo, Miguel. Você é realmente um anjo.
Dei a partida no carro, rindo. Linda e encantadora Letícia. Anjo...
ainda iria mostrar a ela direitinho o anjo que eu sou.
Quando cheguei em casa encontrei minha mãe e meu tio jantando.
— Filho, que bom que você chegou. Senta aqui para jantar conosco.
Assenti e me acomodei na mesa de jantar. Quando comecei a me
servir, minha mãe falou:
— Enrico, conta para o Miguel a novidade. Ele precisa ficar
inteirado quanto aos negócios da família; afinal, é o nosso único herdeiro.
Olhei para o meu tio esperando que ele falasse.
— Claro. Nós vamos expandir os negócios, mas, dessa vez, através
do comércio virtual. Já estávamos pensando nisso há algum tempo, mas
agora vamos começar a colocar o plano em ação. Não dá para ficar de fora,
pois no último ano, o e-commerce atingiu a marca de mais de duzentos e
cinquenta bilhões em faturamento.
— Entendi. Vocês vão ficar cada vez mais ricos enquanto meu avô
fica definhando, trancafiado em um asilo — falei, revoltado.
— Que isso, Miguel? O seu avô está muito bem, recebendo um
tratamento adequado para um idoso mentalmente doente como ele. E não
somos apenas “nós” que vamos ficar mais ricos. Você também. Não se
esqueça de que tudo o que fazemos é por você, pensando no seu futuro —
argumentou minha mãe.
— Pensando em mim? Vocês só podem estar de brincadeira. Eu
tenho o meu trabalho, a minha clínica. Não preciso de mais.
— Ah, é? E com que dinheiro você bancou a sua faculdade de
medicina na capital? Com que dinheiro você bancou a sua especialização na
Espanha? Com que dinheiro você montou a sua clínica ortopédica? Para de
ser hipócrita, Miguel — rebateu meu tio Enrico.
— Não fale assim com o meu filho!
— Pois o seu filhinho precisa ouvir umas verdades. Isso é coisa de
quem sempre teve tudo na mão. Vê se cresce, rapaz.
— Se meu pai estivesse aqui, isso jamais estaria acontecendo.
— Só que seu pai morreu e nós somos responsáveis por cuidar do
patrimônio da família. Aceita que dói menos. — disse meu tio.
Levantei da mesa e me retirei da sala, indo para o meu quarto. No
fundo, meu tio tinha razão. Eu não passava de um hipócrita.
Instintivamente, peguei meu celular, buscando nos meus contatos o telefone
do “Perfect Village”, local onde meu avô Raul estava internado. Quando
uma voz do outro lado atendeu a ligação, fiquei reticente, pensando se
desligava ou não. A voz insistiu:
— Perfect Village, boa noite!
— Oi, boa noite. Eu gostaria de saber informações sobre o paciente
Raul Hernandez.
— O senhor pertence à família?
— Sim. Meu nome é Miguel Hernandez. Sou neto dele.
— O senhor Hernandez está passando bem. Um momento que eu
vou passar a ligação para a suíte dele...
— Não! — a interrompi. — Eu só liguei para saber sobre o estado
de saúde dele.
— Bem senhor, o paciente aparentemente está bem, mas se o senhor
desejar, eu posso passar para um dos médicos que o atende e...
— Não precisa. Boa noite.
Desliguei. Não queria falar com ele, nem com médico nenhum.
Queria apenas saber como ele estava. Da última vez que nos vimos, ele me
fez várias acusações, dizendo que eu compactuava com minha mãe e meu
tio para tomar todo o seu dinheiro. Aquilo me chocou demais. Eu nunca
compactuei com aquela trama que o colocou em um asilo, mas devo admitir
que me omiti, e agora era tarde demais para voltar atrás.
Merda!
Tomei um banho e fui deitar. Peguei um livro, e não consegui me
concentrar. Liguei a TV, e nada me prendeu. Fechei os olhos e pensei nela.
Letícia. A única coisa boa que me aconteceu naquele dia. Adormeci
lembrando do sorriso dela.
CAPÍTULO 5

Estou morando em Ribeirão há três meses. Não sou de sair muito,


mas nas poucas vezes em que precisei ir até a cidade, pude observar o
quanto o lugar era bonito e muito bem estruturado. O comércio era intenso.
Saí um dia na companhia de Lisete para comprar meu primeiro aparelho
celular. Demorou um pouco até que eu conseguisse comprar, pois não
queria contrair dívidas, então juntei dinheiro para fazer a compra à vista.
Fiquei muito feliz.
Como vou me matricular em um curso pré-vestibular, o aparelho
será fundamental para que eu possa assistir às aulas online. Apesar de
Hermínia insistir, não queria abusar, usando sempre o computador da
administração. Ainda bem que aqui tinha rede Wi-Fi, o que me permite
ficar sempre conectada.
Estava encantada com a minha aquisição. Agora, poderia ficar em
contato permanente com o pessoal do abrigo, com Dona Vilma, além de me
conectar nas redes sociais e conversar online com minha amiga Ana Lúcia e
com os amigos que fiz durante a minha breve passagem pela ONG
“Preparando Vidas”.
Mostrei ao Seu Raul a minha nova “maravilha” e ele riu. Comentei
que, através do celular, eu também poderia ler alguns livros, baixando
aplicativos das plataformas disponíveis para leitura online. Ele disse que
odiava essas modernidades. Para ele, o livro tinha que ser físico: sentir o
cheiro, grifar os momentos mais marcantes e se deliciar com cada virada de
página. Sim, era muito bom, mas o custo de um livro físico também era
muito alto. Graças a Deus, agora temos as opções online à nossa disposição.
Só não lê quem não quer.
Durante todos esses meses, nossa amizade se solidificou. Não
passava um dia sem que tivéssemos nosso tempo juntos. Seu Raul era um
homem extremamente inteligente, observador, perspicaz, sensato e
prudente. Um intelectual nato. Conversávamos sobre vários assuntos, e eu
só aprendia com ele. Tínhamos muita afinidade. Eu sempre falava mais,
mas quando ele falava, era sempre algo para me fazer pensar e refletir.
Nunca tive isso antes: alguém que me desse atenção, orientação e me
fizesse sentir importante e querida.
Me abri com ele, contando da minha vida ao lado da minha mãe,
que tinha graves problemas com substâncias tóxicas, e de como foi viver
em um orfanato. Contei sobre os medos, as dúvidas e as incertezas de cada
fase, sem ter ninguém para dividir. Falei também da insegurança que senti
quando estava prestes a completar dezoito anos e de como fiquei feliz por
conseguir aquele emprego e ter onde morar.
Seu Raul nunca compartilhava detalhes sobre a sua vida, mas eu
sempre me questionava como um homem como ele, inteligente, capaz e
com tantos recursos havia acabado em um lugar como aquele. Não que o
ambiente fosse ruim, mas ele merecia desfrutar de uma vida plena fora dali.
Quando descobri a história de Seu Raul através do pessoal que
trabalhava lá, fiquei profundamente triste. Sua família, movida pela
ganância, teria feito de tudo para interná-lo, alegando problemas mentais,
com o único objetivo de tomar posse de sua fortuna. O filho, a nora e o
neto... Que tipo de pessoas eram essas? Aquilo me revoltou. De repente, a
nossa primeira conversa sobre o livro Grandes Esperanças, de Charles
Dickens, fez todo o sentido. Quando ele me disse que dinheiro e fortuna
nem sempre traziam felicidade e que tudo não passava de uma ilusão,
estava falando da sua própria vida.
Foi numa manhã chuvosa que eu recebi uma notícia terrível: a van
que levava as crianças do abrigo até o posto de saúde para atualização da
vacinação se acidentou, e algumas delas estavam em estado grave, tendo
sido levadas para o hospital municipal de Ribeirão. Me desesperei ainda
mais ao saber que Clarinha estava entre os feridos.
Pedi licença à Hermínia para ir até o hospital em busca de notícias.
Estava muito nervosa. Queria ver com os meus próprios olhos o estado da
Clarinha, mas, quando cheguei lá, não consegui subir. Fiquei muito
chateada, mas não desisti. Resolvi esperar na recepção por notícias.
Horas depois, fui informada de que Jane, uma das auxiliares que
acompanhava as crianças, estava entrando na sala de cirurgia e que Vivian e
Clarinha seriam operadas mais tarde. Meu Deus, quanto sofrimento!
Avistei uma capela próxima à recepção do hospital e fui até lá orar.
Pedi muito a Deus e a Jesus que intercedesse em favor daquelas pessoas tão
carentes, frágeis e vulneráveis. Como eu gostaria de estar com a minha
garotinha no colo. Chorei muito.
Às duas da tarde, fui informada pela recepcionista de que a cirurgia
de Jane tinha terminado e que ela estava bem. Alívio! Liguei imediatamente
para as “tias” que estavam aflitas, e garanti que não sairia de lá até saber
notícias de todos. Fui comer um sanduíche e às cinco horas, veio a notícia
de que Vivian também já tinha se submetido à cirurgia e estava em
observação.
Já passavam das oito da noite quando eu soube que a cirurgia de
Clarinha também havia terminado. Precisava vê-la. Pedi, implorei, mas não
consegui subir. A recepcionista disse que eu aguardasse, pois, se alguém da
equipe médica aparecesse por ali, ela iria pedir que falassem comigo para
me acalmar. Estava exausta, mas não iria embora antes de obter notícias.
Por volta das nove e meia da noite, a recepcionista acenou para mim
e eu me aproximei do balcão. Ela me informou que o cirurgião tinha
acabado de sair. Como assim? Ela não disse a ele que eu estava aguardando
por notícias? Saí correndo atrás dele pelo estacionamento do hospital.
— Doutor!
Eu praticamente gritei, e ele se virou assustado. Ficou me encarando
tão profundamente que fiquei sem graça pela minha abordagem tão
repentina. Mas, mesmo assim continuei:
— Doutor, me desculpe, pois sei que o senhor não está mais no seu
horário de trabalho, mas preciso muito ter notícias da Clarinha. Não só dela,
mas de todos os acidentados do Lar Seara de Paz.
— Clarinha? — Ele parecia tão cansado que não sabia nem do que
eu estava falando.
— Sim. Fui informada que ela foi uma das acidentadas e ficou em
estado grave. Teve que passar por uma cirurgia. Ela tem só dois aninhos e
não tem ninguém.
Não aguentei e comecei a chorar.
O médico tentou me acalmar, dizendo que estava tudo bem, mas que
a minha garotinha tinha ido parar na UTI. Ah, meu Deus! Chorei mais.
Gentilmente, o médico tentou me confortar com palavras
tranquilizadoras, explicando que era um procedimento padrão por ela ser
uma criança muito pequena. Ele garantiu que, na UTI, ela receberia todos
os cuidados necessários e que, se tudo corresse bem, seria transferida para a
enfermaria pediátrica no dia seguinte, com previsão de alta em três dias.
Pedi para vê-la, mas ele explicou que, devido ao horário avançado, não
seria possível naquele momento. Prometeu liberar minha visita no dia
seguinte.
Que anjo era esse homem! Agradeci muito por toda a ajuda e apoio,
e depois me despedi. Quando me virei para sair, ele se ofereceu para me dar
uma carona. Em um primeiro momento, recusei, pensando que seria um
abuso, afinal, ele estava visivelmente cansado, mas aí ele insistiu e eu
acabei cedendo. Também estava cansada e emocionalmente abalada pela
situação.
Ele perguntou para onde eu iria e, em seguida, desabafou que estava
sem comer o dia inteiro. Me convidou a acompanhá-lo em um jantar, mas
dessa vez, desconversei, afinal, não havia intimidade para tanto. Mesmo
assim, ele insistiu em me levar e pediu que eu o chamasse pelo nome dele:
Miguel.
Durante o trajeto, a conversa girou em torno de Clarinha, e eu contei
que, como ela, também morei em um abrigo. Ele me olhou de maneira
estranha e ficou ainda mais perplexo quando viu o meu local de trabalho,
que era também onde eu morava. Senti que ele ficou um pouco surpreso e
pensativo. Mesmo assim, pediu o número do meu celular e nos despedimos.
Cheguei ao meu quarto, tomei banho e, como estava cansada, fui
direto para a cama. Os pensamentos voaram. Pensei no acidente e em como
tudo poderia ter sido pior se não existissem pessoas como o doutor Miguel.
O anjo Miguel.
No dia seguinte, acordei cedo para as minhas atividades, sempre de
olho no celular. Surpreendentemente, Seu Raul apareceu no restaurante para
tomar o café da manhã. Ele disse que ficou preocupado porque não me viu
durante todo o dia anterior.
Expliquei a ele o que tinha acontecido, mas que, felizmente Clarinha
e as demais tiveram a sorte de cair nas mãos do doutor Miguel, que era um
verdadeiro anjo. Contei que, mesmo exausto, ele fez questão de me dar uma
carona e que hoje iria liberar a minha visita. Por isso, eu estava aguardando
ansiosa por um telefonema ou uma mensagem dele.
Quando falei isso, logo reparei que o semblante de Seu Raul mudou.
Ficou sério, com o rosto vermelho, como se estivesse com raiva de algo ou
de alguém. Nunca o vi assim. Perguntei se tinha acontecido alguma coisa, e
ele apenas disse:
— Letícia, cuidado com as pessoas. Não confie em todo mundo.
Não se deixe levar pela aparência. Há muitos oportunistas por aí querendo
se aproveitar de moças frágeis e ingênuas como você. São verdadeiros
lobos em pele de cordeiro. Seja esperta. Não se deixe levar por conversas
suaves, por homens inescrupulosos que só vão querer te usar.
Fiquei surpresa com o teor daquela conversa e argumentei:
— Mas não aconteceu nada, Seu Raul. Foi apenas uma carona
mesmo, e o doutor Miguel foi muito respeitoso. Serei eternamente grata a
ele.
O meu celular tocou.
— Ih! É ele me ligando! — disse me virando para atender.
Assim que atendi, Miguel disse que eu poderia ir até o hospital a
partir das quatro da tarde, que ele iria liberar a minha entrada na enfermaria
pediátrica. Disse que Clarinha estava passando muito bem, assim como as
demais. Graças a Deus! Quando me virei para falar com Seu Raul, ele já
tinha ido embora. Não entendi o motivo de ele ter ficado tão estressado
quando eu falei sobre o doutor Miguel. Mas, de qualquer forma, eu estava
muito feliz.
Às três e meia, eu já estava no hospital aguardando o horário da
visita. Quando subi e consegui ver a “minha” Clarinha, parecia que o meu
mundo havia se transformado. Sentia muito amor por aquela garotinha.
Quando ela me viu, quis logo vir para o meu colo, mas não podia. Fiquei
triste ao ver o bracinho dela todo enfaixado e alguns hematomas naquele
rostinho lindo. Fiquei ali, falando baixinho com ela, prometendo que nunca
a abandonaria. Ela acabou adormecendo.
Aproveitei para passar um tempo com Vivian, uma menina de sete
anos que também se acidentou. Ficamos conversando e deixei um pouco o
meu celular com ela para que se distraísse com um joguinho. Ela adorou.
Prometi que traria alguns livros infantis para ela no dia seguinte.
Logo, o doutor Miguel apareceu. Hoje, depois de ter passado um
pouco do susto, pude repará-lo melhor. Era um homem muito bonito: alto,
de tez clara, cabelos pretos e olhos castanhos escuros, uma barba rala e um
sorriso encantador. Assim que me viu, ele se aproximou.
— Oi Letícia, está mais tranquila agora depois de verificar com os
próprios olhos que a Clarinha está bem?
— Ah, doutor, o senhor nem imagina o alívio que estou sentindo.
— Outra vez com esse papo de “doutor”, de “senhor”? Eu não sou
tão velho assim.
— Desculpe Miguel. Não, você não é nem um pouco velho.
— Letícia, eu vou ter que fazer uma ronda agora para verificar meus
pacientes, mas por favor, não vá embora antes de falar comigo, ok?
— Ok — assenti.
Fiquei o resto do tempo fazendo companhia para as crianças e,
quando deu oito da noite, a enfermeira avisou que eu tinha que ir embora
para que elas pudessem descansar. Me despedi de Clarinha e de Vivian,
prometendo que estaria lá no dia seguinte para ficar mais tempo com elas.
Antes de ir ao hospital, conversei com Hermínia, prometendo que iria
compensar meu horário de trabalho nos meus dias de folga.
Assim que desci da ala pediátrica, fui até a recepção e perguntei
pelo doutor Miguel. A recepcionista informou que ele ainda devia estar na
ronda, então eu decidi esperar. Fiquei aguardando por mais ou menos vinte
e cinco minutos até que recebi uma mensagem dele em meu celular.
Miguel: Me espera.
Não sei por quê, mas meu coração disparou. Fiquei ansiosa e um
pouco perturbada.
Nunca tive um namorado e não sabia como me comportar diante de
um homem, principalmente um que aparentava ser mais velho que eu e
importante. Mas, o que eu estava pensando? O doutor Miguel nunca iria
olhar para mim com outros olhos. Ele era apenas um homem bom que
estava preocupado, pois percebeu o quanto eu fiquei perturbada com tudo o
que aconteceu. Era só isso.
Fui até o banheiro para me arrumar um pouco. Olhando através do
espelho, decidi soltar os cabelos que até então estavam presos e passei um
batom rosinha que sempre trazia na minha bolsa, mas que raramente usava.
Me sentia bonita. Assim que saí do banheiro, o vi. Ele usava uma calça
jeans e uma camiseta branca que marcava bem todos os músculos de seus
braços. Ele era muito lindo. Meu coração acelerou ainda mais. Fiquei tensa.
— Como você está linda, Letícia! — exclamou enquanto se
aproximava.
— O... Obrigada — gaguejei.
— Eu queria saber se você aceita jantar comigo hoje.
— Acho melhor não.
— Por quê, Letícia? Você tem algum compromisso? Já sei, um
namorado ciumento!
— Não. Sem compromisso e sem namorado.
— Então, o que te impede de me fazer companhia para jantar?
Somos amigos, não somos?
— Sim.
— Ótimo. Então vamos!
Sem que eu esperasse, ele pegou na minha mão e saímos pela porta
do hospital de mãos dadas, sob o olhar espantado da recepcionista.
CAPÍTULO 6

Passei o dia todo pensando em Letícia. Vê-la ali tão carinhosa com
as crianças me deixou sensibilizado. Fui para a ronda, mas com a cabeça na
ala pediátrica. O que estava acontecendo comigo? Aquilo estava parecendo
mais uma obsessão.
Tinha pedido para que ela me aguardasse, mas um dos pacientes
apresentou uma infiltração, e tive que fazer um procedimento que demorou
mais do que o esperado. Fiquei preocupado que ela não me aguardasse e
enviei uma mensagem pedindo para que me esperasse. Que ansiedade, puta
que pariu! Estava parecendo aqueles adolescentes prestes a ter o primeiro
encontro.
Estava na sala trocando de roupa, quando Thaís chegou me
agarrando por trás.
— Vamos brincar um pouquinho, Doutor Sedução?
— Hoje eu não vou poder. Vamos deixar para outro dia.
— Ah, vai! Só uma rapidinha. O meu plantão ainda não acabou e
daqui a pouco tenho que voltar ao trabalho.
Ela enlaçou os braços no meu pescoço querendo me beijar. Me
desvencilhei com delicadeza dizendo.
— Fica pra próxima, gata. Hoje não dá mesmo.
Dei um selinho nela e saí.
Quando cheguei à recepção, Letícia não estava. Fiquei nervoso,
imaginando que ela teria cansado de me esperar e ido embora. Perguntei à
recepcionista, que me informou que ela estava no banheiro. Quando ela
apareceu, eu quase perdi o fôlego. Ela estava linda, com os cabelos longos
soltos e um batom rosado naquela boca gostosa. Teria que me segurar. Já
tinha sacado que essa menina não era como as outras. Teria que ir bem
devagar até conseguir o que eu queria.
Fui ao seu encontro, disse o quanto estava linda e a convidei para
jantar. Ela fez charminho, dizendo que não, então fiz uma gracinha
perguntando se ela tinha um namorado ciumento e disse que éramos
amigos. Antes que ela desistisse, segurei sua mão e saí de mãos dadas com
ela do hospital.
Decidi levá-la a um restaurante discreto, fora do perímetro urbano.
Não queria que fôssemos vistos juntos. Eu era muito conhecido na cidade, e
sempre quando me viam acompanhado, as especulações já começavam e
não demorava muito até chegarem aos ouvidos da minha mãe. Aí eu seria
submetido a um interrogatório sem fim do tipo “quem é” e “a qual família
pertence”. Já pensou se minha mãe descobrisse que eu estava saindo com
uma garota que viveu a vida inteira em um orfanato e ainda trabalhava
como cuidadora no lugar onde meu avô estava internado? Ela iria surtar!
Quando chegamos ao restaurante, notei que Letícia ficou um pouco
desconfortável. Apesar de o local não ser tão luxuoso, ela parecia
visivelmente acanhada. Para descontrair, pedi uma garrafa de vinho, mas ela
quis apenas uma água, alegando que nunca havia bebido. Ainda insisti para
que experimentasse, mas ela se negou. Realmente, ela era diferente de todas
as meninas que eu já conheci. Tentando deixá-la mais à vontade, engatei
uma conversa sobre o meu trabalho no hospital e na clínica, sem mencionar
que eu era o dono.
— Eu acho a carreira médica linda. Para mim, ser médico é gostar
de gente, das relações humanas, de olhar para o outro com respeito e tratá-
lo com amor e dignidade. Os médicos são verdadeiros anjos. Assim como
você, Miguel.
Ela realmente era muito iludida...
— Olha, Letícia, ser médico não é exatamente um sacerdócio como
sugerem alguns. Não tem nada a ver com ser um anjo ou um super-herói
que supera absolutamente todas as adversidades. A não ser em ONGs
focadas em ofertar amor e qualidade de vida aos pacientes, como a
Doutores da Alegria.
— Eu assisti a um documentário sobre os Doutores da Alegria.
Achei fantástico — disse ela.
— Pois é, mas a realidade é muito diferente. Nós enfrentamos
problemas gigantescos diariamente nos hospitais públicos. O Sistema Único
de Saúde está sucateado, não há leitos em muitos hospitais pelo país e
faltam medicamentos...
— Sim, mas ser médico também significa superar esses obstáculos e
dar o melhor para o bem do paciente. É exatamente isso que me impulsiona.
Na próxima semana, vou começar um cursinho para prestar o vestibular no
final do ano, pois meu sonho é fazer uma faculdade de enfermagem.
Opa! Aí estava o gancho que eu precisava para aproximá-la mais de
mim.
— Enfermagem? Perfeito, Letícia. Já tem emprego garantido. Nem
precisa estar formada. Assim que você entrar na faculdade, vou falar
pessoalmente com o diretor da clínica onde trabalho e pedir para encaixar
você no programa de estágio remunerado. Assim, você não vai mais
precisar ficar o dia inteiro cuidando de velhos doentes.
— Ah, Miguel, desde já eu agradeço muito a você pelo estágio. Já
aceitei, e quando chegar a hora eu vou cobrar. Uma coisa que aprendi é não
ser orgulhosa. Sei que vou precisar de toda a ajuda possível para iniciar
minha carreira. Mas, quanto ao meu local de trabalho, só para esclarecer, lá
não é um lugar só de velhos doentes. Desde que comecei a trabalhar lá,
conheci pessoas incríveis. Pessoas que me ensinam a cada dia. Você não
tem ideia da sabedoria dessas pessoas. Estou amando essa troca de
experiências. Está sendo fundamental para a minha formação, para o meu
amadurecimento e para a minha evolução como pessoa.
Acho que falei merda, putz! Ela continuou:
— Se você tiver oportunidade de ir lá um dia para conhecer, você
vai ver o quanto essas pessoas podem acrescentar na sua vida. Fiz amizade
com um dos moradores que está sendo muito valiosa para mim. Percebi que
a amizade não escolhe idades, motivos ou desculpas. É só deixá-la entrar e
deixá-la ficar. E é uma pena ver que muitas famílias abandonam seus entes
queridos quando percebem que eles estão envelhecendo. Envelhecer não é
sinônimo de doença e mesmo aqueles que apresentam algum tipo de
limitação física ou psicológica, têm algo a nos ensinar, algo a nos doar. Nós
somos tão soberbos que pensamos que estamos doando nosso tempo e
energia como se fosse um favor, mas na verdade somos nós que estamos
recebendo. Recebendo amor, sabedoria, respeito, conhecimento, carinho,
amizade e conforto. Eu adoro trabalhar lá, conviver com eles. E lá também
é o local onde moro. Se eu sair de lá, não tenho mais para onde ir.
— Eu até entendo. Mas será que esse apego a essas pessoas não tem
relação com o fato de você também ser carente? Afinal, você foi criada em
um orfanato, nunca teve uma família...
— Sim, é verdade. Eu me apego muito às pessoas por carência e
gratidão. Se alguém me der um pouquinho de atenção, já me ganha logo.
— Eu estou te dando toda a atenção do mundo — afirmei e ela riu.
— E eu estou adorando receber a sua atenção. Mas o que estou
tentando dizer, é que a vida sempre nos ensina. Antes, quando eu morava no
abrigo, vivia na ilusão de que se eu tivesse uma família as coisas poderiam
ter sido diferentes. No entanto, hoje percebo que nem sempre a família é
sinal de acolhimento, aconchego e proteção. Eu vivi com a minha mãe até
os quatro anos de idade, sofrendo negligência e maus-tratos. Ela nunca me
deu o carinho e atenção que eu tanto necessitava. Hoje, recebo isso desses
idosos, pessoas que me tratam como se eu fosse uma parte da família deles
e que se tornaram muito importantes para mim.
— Espero também entrar para esse rol de pessoas importantes para
você.
— Já é. Tenha certeza disso. Só o fato de você ter salvado a vida da
Clarinha, já se tornou uma das pessoas mais importantes para mim.
— Então vamos brindar a isso. — Levantei minha taça de vinho e
ela brindou com o copo de água.
O jantar foi servido, e percebi que ela comeu pouco; parecia
envergonhada por estar naquele ambiente requintado. Letícia era uma jóia
rara que precisava ser lapidada.
Quando saímos do restaurante, perguntei, como quem não quer
nada, se ela queria que eu a levasse direto para casa ou se preferia terminar
a noite em outro lugar. Novamente, ela pareceu não entender. Como era
inocente essa menina... “Calma, doutor Miguel, calma!”
— Chegamos — falei, enquanto estacionava o carro um pouco antes
de chegar ao portão suntuoso do Perfect Village.
— Miguel, muito obrigada pela companhia e pelo jantar também.
Você acredita que eu nunca tinha ido a um restaurante na vida? Foi a minha
primeira vez.
— Então eu vou te dar algo que acho que também vai ser a sua
primeira vez.
Me aproximei devagar e dei um selinho nela. Letícia ficou
vermelha, com a carinha assustada. Depois de um tempo, ela suspirou
dizendo:
— Sim. Parece que hoje foi o dia das minhas primeiras vezes, e as
duas serão inesquecíveis por ter sido você a pessoa que me proporcionou
tudo isso.
Aí não resisti. Me aproximei mais, puxei-a pela nuca e a beijei de
verdade. De início ela pareceu um pouco tímida, sem saber muito o que
fazer, mas quando eu comecei a explorar sua boca com a minha língua,
Letícia correspondeu de um jeito maravilhoso. As mãos trêmulas
acariciando o meu rosto, os lábios macios seduzindo a minha razão. Que
linda essa menina. Minha vontade era de agarrá-la e não soltar mais. Tirar
todo o seu fôlego, rasgar suas roupas, deixar marcas, fazer dela minha.
“Calma, doutor Miguel, calma!”
— Eu vou entrar Miguel. Já está ficando tarde.
— Está bem. Mas promete que vai sonhar comigo.
— Com certeza eu vou.
Dei mais um selinho e ela se foi.
Após deixá-la, fui direto para a boate. Precisava urgentemente de
uma mulher, que conseguisse aplacar o tanto de tesão que aquela menina
inocente me deixou. Queria trepar até a exaustão.
Assim que cheguei, encontrei meus amigos, os gêmeos Greg e Cauã,
cercado de belas mulheres. Os dois eram muito bonitos, tipo nórdicos, e
também faziam muito sucesso com as mulheres.
— Fala Doutor Sedução! — Cauã exclamou.
— Doutor Sedução é o caralho! — exclamei.
Assim que ouviu minha exclamação, uma das mulheres veio para
cima de mim dizendo.
— Hum, que delícia! Quer me mostrar o porquê desse apelido,
gostoso?
A mulher era sensacional. Alta, loira e com o corpo escultural. A
puxei para mim e fomos direto para a pista de dança. Fiquei sarrando meu
pau na bunda grande dela enquanto dançávamos, depois, beijei sua boca,
pescoço e seios, numa fome de enlouquecer. Foi quando Greg se aproximou
dizendo:
— Já vi que vocês dois estão bem animados, mas hoje é dia de
compartilhar. Vamos todos para a minha casa terminar essa festinha lá.
Pagamos a conta, saímos da boate e fomos para a casa dos gêmeos,
onde iniciamos a nossa festinha regada a muita bebida e belas mulheres
para a nossa diversão. Delícia!
Já estava amanhecendo quando cheguei em casa. Ainda bem que
teria que ir para a clínica somente na parte da tarde e meu plantão no
hospital começaria só à noite. Estava tão cansado da farra, que só fui
acordar quando minha mãe bateu na porta do quarto me chamando para
almoçar.
Tomei um banho, uma aspirina, almocei, e assim que entrei no meu
carro com destino a clínica, enviei uma mensagem para Letícia.
Eu: Sonhou comigo?
Ela não visualizou a minha mensagem. Dei partida no carro e fiquei
pensando em tudo o que Letícia me disse sobre os moradores do asilo. Se
ela soubesse que meu avô era um deles e que minha família, incluindo eu, o
abandonou, acho que ela iria me odiar. O melhor seria que ela não soubesse
de nada até eu conseguir o que eu queria com ela. Depois, se ela
descobrisse, não teria mais a mínima importância.
CAPÍTULO 7

Meu primeiro beijo. Foi difícil conseguir dormir. Passei a noite


inteira revivendo aquele momento e pensando como um homem daquele
poderia prestar atenção em mim, querer me abraçar, me beijar... Não dava
nem para acreditar. Miguel era tudo: lindo, gentil, amoroso, prestativo,
perfeito. Um médico capaz, responsável, que trabalhava duro em um
hospital e em uma clínica para se manter, e ainda queria me ajudar na minha
carreira de enfermagem. Eu realmente tenho muita sorte. Só felicidade!
Assim que me levantei, tomei banho, vesti o meu uniforme e fui
tomar café da manhã. Encontrei Seu Raul já de pé, me aguardando no
restaurante. Dei um relatório a ele sobre o estado de saúde de Clarinha.
Falei o quanto eu estava aliviada e que, possivelmente amanhã ela já estaria
de alta, graças a Deus e também ao doutor Miguel. Quando toquei no nome
de Miguel, novamente senti seu Raul reticente. As feições dele mudaram,
ficaram mais frias, mais duras. Sem dúvidas, havia algo estranho. Como
não gostava de situações dúbias, resolvi perguntar:
— Seu Raul, desculpe, mas eu tenho que perguntar. O senhor
conhece o doutor Miguel? É a segunda vez que eu toco no nome dele e
sinto que o senhor se retrai, fica desconfortável.
— Não é nada — ele respondeu, sem me convencer.
— Eu gosto muito do doutor Miguel. Vou ser sempre muito grata a
ele. Para mim, ele é um homem admirável, assim como o senhor — falei.
Ele fez um gesto de negação com a cabeça e, depois disse com um
tom de contrariedade:
— Letícia, eu gosto de você como se fosse a minha neta. Eu quero
tudo de melhor para você. Não quero que você se iluda. Você é uma menina
doce, meiga, inocente e eu sei que tem muito aproveitador lá fora. Homens
que só querem usar moças ingênuas como você.
— Ah, Seu Raul, o melhor dessa conversa foi ouvir que o senhor
gosta de mim como se eu fosse a sua neta, porque eu também o considero e
o respeito como se fosse o meu avô. Mas, quanto ao doutor Miguel, eu
entendo a sua preocupação. Mesmo eu não tendo muita experiência, melhor
dizendo, mesmo eu não tendo nenhuma experiência com os homens, eu sei
me defender. A vida me ensinou a me defender. E eu sinto que o Miguel é
um bom homem, uma pessoa honesta e verdadeira. Não acho que ele vá
agir de leviandade para comigo.
— Só estou dizendo para você ficar esperta, reconhecer os sinais,
mas mesmo assim, quero que saiba que sempre poderá contar comigo.
— Eu sei. Amo muito o senhor — dei um beijo nele, tomamos o
café da manhã juntos e logo em seguida me retirei, pois tinha muitas tarefas
a cumprir antes de ir para o hospital visitar Clarinha.
Cheguei ao hospital às duas da tarde e saí da visita sem ver Miguel.
Como meu celular ficou o tempo todo nas mãos de Vivian, entretida com
um joguinho, só quando saí é que visualizei a mensagem dele:
Miguel: Sonhou comigo?
Meu coração bateu descompassado. Me dirigi até a recepção do
hospital e fui informada que ele já havia chegado, mas tinha ido direto para
o centro cirúrgico. Coitado! Devia estar exausto. Como já estava tarde,
decidi ir embora, mas antes deixei uma mensagem para ele no celular.
Eu: Sonhei com você e foi o sonho mais maravilhoso que tive na
vida. Estive aqui, mas infelizmente não te encontrei. Estou com saudades.
Já passava das onze da noite quando Miguel me ligou, dizendo que
tinha passado praticamente o dia inteiro na clínica e logo quando chegou ao
hospital, foi surpreendido com um paciente precisando de uma cirurgia de
emergência. Disse que também estava louco de saudade e com vontade de
me ver. Marcamos para o dia seguinte, já que seria o dia em que Clarinha
iria ter alta e eu queria estar lá para verificar se minha garotinha estava bem
e me despedir, antes que ela voltasse para o abrigo. Fui dormir na
expectativa do nosso encontro no dia seguinte.
Assim que acordei, peguei meu celular e encontrei outra mensagem
dele:
Miguel: Não vejo a hora de te encontrar.
Meu Deus! Será que eu estava sonhando? Será que isso tudo era
verdade?
Eu: Eu também estou ansiosa para te ver. Daqui a pouquinho estarei
aí.
Coloquei um emoji de coração ao final da mensagem. Fui para o
refeitório plena de felicidade. Dessa vez não encontrei Seu Raul. Tomei
café na companhia de Lisete que queria saber tudo sobre o meu “namoro”.
Contava sempre para ela e para Ana Lúcia, minha amiga do colégio, sobre
os meus encontros com Miguel.
— Lisete, na verdade eu estou com um pouco de receio. Tenho
medo de me precipitar, afinal foi apenas um beijo. Ele nunca falou em
namoro.
— E as mensagens? Esse homem está louco por você. Não seja
boba. Agarra esse médico bonitão de uma vez!
— Amiga, eu não sei fazer isso. Nunca namorei ninguém e não sei
tomar a iniciativa. O Seu Raul falou que eu tenho que me resguardar, que é
preciso ter cuidado, e eu acho que ele tem razão.
— Letícia, o Seu Raul é um velho, um homem ultrapassado. Não
sabe de nada. Você é uma moça linda, mas não pode ser muito boba. Você
mesma contou que o Miguel é um homem experiente, bonito e bem-
sucedido. Deve ser cobiçado por muitas mulheres. Se você ficar bancando
“a santinha”, cheia de “não me toques”, vai espantar o homem. Seja uma
“Fadinha” bem safadinha.
Caí na gargalhada. Adorava Lisete. Ela era uma mulher segura e
despachada. Assim como ela, Ana Lúcia também achava que eu tinha que
ser mais atirada, demonstrar mais os meus sentimentos e desejos. Não ficar
com tantos medos.
Na hora prevista, fui para o hospital. Assim que vi Miguel, meu
coração disparou. Ele estava muito lindo com aquele jaleco branco. Beijou
minha mão e fomos juntos para a enfermaria pediátrica. Clarinha estava
ótima e o pessoal do abrigo já estava lá para buscá-la. Foi triste me despedir
da minha menina, mas no próximo mês, seria o feriado de Páscoa e
estaríamos juntas. Miguel foi muito carinhoso com ela. Brincou, fez
gracinha e ela ria com vontade. Graças a Deus, deu tudo certo. Vivian
também teve alta naquele dia. Só gratidão!
Assim que a van partiu levando as crianças, olhei para Miguel e
disse:
— Eu gostaria de te agradecer por toda a atenção, carinho e desvelo
com que você tratou essas pessoas tão negligenciadas pela vida.
— Não precisa agradecer. Eu não fiz mais do que a minha
obrigação.
— Bem, eu já vou indo também. Não quero te atrapalhar.
— Você não me atrapalha nunca, Letícia.
— Obrigada. Você como sempre gentil. Agora que as crianças estão
bem e que não vamos mais nos ver com tanta frequência, eu posso te ligar
de vez em quando para a gente conversar?
Minhas mãos estavam suando de tanto nervoso.
— Como assim, Letícia? Do que você está falando? Você acha que
só porque as crianças tiveram alta, a gente vai parar de se ver?
— É que eu pensei...
— Pensou errado. Eu gosto de você. Eu quero você. Hoje à noite
quando eu sair do plantão, eu pego você para a gente sair, conversar, ir ao
cinema.
— Jura?
— Vai me dizer que você também nunca foi ao cinema?
— Na verdade, eu já assisti à exibição de filmes no abrigo e na
ONG onde também morei por um tempo, mas nunca fui em uma sala de
cinema.
— Então vai comigo. Eu vou te levar para conhecer tudo, Letícia.
Todas as suas primeiras experiências serão comigo. Garanto que você vai
gostar tanto, que vai até pedir mais.
— Nossa, você falando assim, eu tenho certeza de que vou adorar.
— Com certeza vai.
— Mas agora eu tenho que voltar ao trabalho e você também. Nos
vemos mais tarde então — falei.
Sem que eu esperasse, Miguel se aproximou e me deu um selinho.
Pensei que fosse desfalecer.
Segui para o ponto do ônibus só pensando nas palavras dele:
“Eu gosto de você...Eu quero você.”
Meu Deus! Definitivamente eu não me sentia preparada para tantas
emoções. Liguei para Ana Lúcia para falar sobre as minhas dúvidas e
receios.
— Medo de quê, Letícia?
— De me deixar envolver e me decepcionar.
— Amiga, quando o assunto é amor, quase todas nós
desenvolvemos algumas estratégias para nos proteger. Começar um novo
relacionamento, significa entrar em um território desconhecido. Qualquer
relação tem uma série de desafios, mas acho que esse tipo de preocupação
às vezes nos impede de estar com alguém que realmente tem um interesse
genuíno por nós. É preciso correr riscos. Amor é uma porta que liberta.
Aquilo que aprisiona se chama medo. O Miguel já demonstrou que está
disposto a pelo menos tentar. E você? Está disposta a dar uma chance a ele?
— Sim, estou. Até agora ele não me deu motivo nenhum para
desconfiar dele. Muito pelo contrário. Já decidi. Vou sair com ele esta noite
e deixar as coisas acontecerem.
— Isso. Você já tá caidinha por ele, que eu sei...
— Estou mesmo. E é isso que me assusta.
— Pois se joga. Você merece ser feliz.
— Obrigada amiga.
Voltei para o trabalho sem conseguir me concentrar muito. Passei a
tarde com uma das senhoras internas, mas não consegui prestar atenção em
nada. Estava nervosa, ansiosa.
Quando meu expediente encerrou, fui para o meu quarto me
arrumar. Tomei banho e fiquei remexendo no meu armário procurando algo
para vestir. Não tinha muitas opções. No meu próximo pagamento, iria
separar algum dinheiro para comprar novas roupas e calçados. Acabei
escolhendo um vestido verde, com saia rodada e decote “ciganinha”. Era
meio fora de moda, mas era o melhor que eu tinha. Não queria usar jeans,
camiseta e tênis. Coloquei a minha rasteirinha, uma bolsinha à tiracolo e
pronto.
Às oito em ponto, Miguel chegou para me buscar. Nós nos
encontramos em um ponto de ônibus próximo ao Perfect Village. Assim
que o carro parou, ele abriu a porta e me surpreendeu com um buquê de
rosas vermelhas. Meus olhos ficaram marejados de lágrimas.
— Para a mais linda de todas as mulheres que conheço — disse o
galanteador.
Estava emocionada, sem saber o que dizer. Miguel se aproximou e
me deu um beijo apaixonado. Consegui balbuciar:
— Eu nunca ganhei flores na vida...
— Eu vou encher a sua vida de flores, Letícia. Você merece tudo.
Dessa vez fui eu que enrosquei os braços em seu pescoço e lhe dei
um beijo.
— Vamos, meu amor. Não podemos nos atrasar para a sessão de
cinema — disse Miguel.
Ele abriu a porta, e durante todo o percurso, fiquei admirando o meu
buquê de flores. As mais lindas e cheirosas rosas do mundo.
A sala de cinema ficava dentro de um shopping. Miguel já tinha
comprado os ingressos através da internet e quando chegamos, só
enfrentamos uma pequena fila para comprar pipoca e refrigerante. Miguel
era tão perfeito, que escolheu uma comédia romântica para assistirmos.
Tudo era muito novo para mim, mas ele me deixava muito à vontade. Nos
sentamos em uma fileira completamente vazia e quando o telão surgiu, foi
mais uma emoção. Fiquei extasiada.
Durante o filme, Miguel me encheu de beijos e desejos. Não parava
de me agarrar e eu correspondia a cada investida dele. Quando ele acariciou
meus seios por cima do tecido do vestido, me surpreendi, pois além dos
meus mamilos ficarem entumescidos, minha calcinha estava completamente
encharcada. Estava entregue a todas aquelas sensações maravilhosas, mas
quando ele colocou uma das mãos em minha coxa e foi subindo para
alcançar minha calcinha, eu o impedi. Imediatamente ele parou, e passou o
restante do filme apenas segurando a minha mão.
Quando o filme terminou, eu me ausentei para ir até o banheiro e
fiquei lá por um tempo até conseguir me recuperar. Quando voltei, Miguel
sugeriu que fôssemos a uma pizzaria. Quando chegamos, ele foi o primeiro
a falar:
— Letícia, me desculpe. Eu não queria ser inoportuno. Acontece
que você é muito linda e especial. É difícil resistir quando estou perto de
você.
— Você não foi inoportuno, Miguel. Eu só preciso de mais tempo...
— O tempo que você precisar, princesa. Eu não quero te pressionar
em nada. O seu tempo é o meu tempo.
— Você é incrível, Miguel, mas eu gostaria de me conectar com
você primeiro pela emoção. Eu nem sei se nós somos namorados...
— Namorados?
Miguel caiu na gargalhada.
— Eu falei algo engraçado? — perguntei.
Ele negou com a cabeça, tomou um gole de sua bebida tentando se
recuperar da explosão de risos, e disse:
— Desculpa meu amor, mas eu achei que já tinha ficado claro para
você que nós somos namorados. Eu realmente sou um tolo, mas agora eu
quero formalizar a nossa situação. Letícia, você aceita namorar comigo?
Emocionada, respondi:
— Aceito.
— Então, “pelos poderes a mim concedidos”, eu nos declaro
namorados!
— Sim! Sim! Sim! — exclamei.
— Já posso beijar minha namorada? — perguntou sedutor.
— Claro, meu amor.
Depois de vários beijos apaixonados, Miguel me levou de volta. Ao
me deitar, lembrei das sábias palavras de Ana Lúcia:
“Amor é uma porta que liberta. Aquilo que aprisiona se chama
medo.”
Miguel... que o nosso amor seja sempre livre, intenso, pleno e
verdadeiro.
CAPÍTULO 8

Namorados... no que é que eu fui me meter?


Sinto que falhei redondamente no método, na forma, na abordagem.
Me enganei por achar que conseguiria seduzi-la somente com flores, beijos
e cinema. Ela era mais. Muito mais. Letícia era uma explosão de coisas
boas. Parecia que tudo que o mundo espalhou de bom, Letícia transformou
em essência.
Aos dezoito anos, Letícia já era uma grande mulher, com
características nobres e admiráveis. Encarava o mundo de um jeito lúdico,
rico, curioso e leve. Ela me deixava muito admirado. A vida para ela estava
apenas começando, mas ela tinha muita sabedoria e sensatez. Apesar de
tudo pelo que já passou, abandono, traumas e maus-tratos, andava pelo
mundo com delicadeza e força, distribuindo carinho, e olhando no olho de
cada um que cruzava seu caminho.
Não. Depois de conhecê-la melhor, eu não podia e nem queria
enganá-la. Não tinha nenhuma intenção de manter um relacionamento com
ela, e o melhor seria eu me afastar. Não tinha o direito de me aproveitar de
uma menina tão pura e inocente como ela. Além disso, tinha o meu avô, e
essa proximidade com Letícia poderia trazer complicações para a minha
família. Decidido: não iria procurá-la mais.
Nos dias que se seguiram, a ignorei completamente. Eu não atendi
aos seus telefonemas e nem respondi a nenhuma de suas mensagens.
Melhor seria cortar o mal pela raiz. Confesso que doeu. Senti falta de ouvir
sua voz e de sua risada. Senti falta da sua meiguice. Senti falta dela.
Durante duas semanas ia direto do trabalho para casa, sem vontade para
nada. Me sentia anestesiado, adormecido, angustiado, inquieto, fraco...
Os amigos iam se reunir no “De Plantão” e me convidaram. Dessa
vez, não tive como fugir.
— Quem é vivo sempre aparece — disse Fausto, assim que entrei no
bar.
— Em se tratando do “Doutor Sedução”, aposto que esse sumiço
tem nome de mulher — emendou Vitor.
— Conta tudo, Miguel. Adoramos ouvir suas histórias de perversão.
Comeu quem, onde e como? — Foi a vez de Jaime se pronunciar.
— Ninguém. Estou de recesso há mais de duas semanas.
— Ih, só pode estar doente. Diz logo quais são os sintomas que
dependendo do caso, eu posso te receitar um “Lexoxotan” ou uma
“Dipiroca”.
— Vai se foder, Jaime! — exclamei.
— Mas o que está se passando, amigo? As pessoas estão
estranhando o seu comportamento — comentou Vitor.
— Quem está estranhando? — perguntei.
— Thaís, a enfermeira. Ela disse que você não tem “comparecido” à
sala de descanso. É por causa dela que você está assim?
— Por causa da Thaís? Claro que não. Eu não tenho nada com ela.
A Thaís é uma mulher livre, bonita, atraente, experiente. Gosta de um sexo
casual, assim como eu. A gente se diverte. Nada mais que isso.
— Mas então... — Vitor insistiu.
— Eu conheci uma garota. Ela despertou o meu interesse, mas eu
pensei melhor, e percebi que não valia à pena arriscar. É página virada.
— Mas nós queremos saber. Quem é essa garota? — perguntou
Jaime.
— Eu a conheci no hospital. Ela estava acompanhando uma criança
que eu operei.
— Criança?
— Sim. Eu acho que cheguei a comentar com vocês sobre o
acidente com uma van, que acabou vitimando umas crianças de um
orfanato.
— Lembro de você ter comentado algo. — disse Fausto.
— Pois é. Ela ficou indo ao hospital todos os dias para visitar as
crianças, e aí conversa vai, conversa vem...
— O “Doutor Sedução” entrou em ação! — Vitor exclamou.
— O problema é que ela é romântica, quer namorar, sair de mãos
dadas, cineminha, pipoca, essas coisas...
— Piroca? — Jaime perguntou de sacanagem.
— Ela é uma menina de dezoito anos. Virgem, pura e inocente. Eu
não me acho no direito de brincar com os sentimentos dela. Posso ser um
canalha, mas não a esse ponto.
Fausto, que até então estava calado, resolveu se pronunciar:
— E por que você diz que não vale a pena arriscar?
— Eu já falei. Eu prezo demais pela minha liberdade e eu não quero
compromisso. Eu não quero enganá-la de jeito nenhum. Ela é especial
demais e merece tudo de melhor. Ela merece ser a primeira e a única
escolha de alguém, ser amada e adorada. Definitivamente, eu não sou
homem para ela.
— Miguel, nós já conversamos sobre isso e eu volto a afirmar que
um relacionamento saudável não tira a liberdade de ninguém, apenas te
ensina a ter respeito e compromisso. “Eu prezo pela minha liberdade”. “Eu
não quero compromisso”, são apenas frases que você se condicionou a
dizer. Está tudo certo em ser quem você é: intenso, forte, furacão, sedução,
mas deixe-se surpreender uma única vez. Se dê uma oportunidade. Abraça o
que for bom e aproveita cada segundo — disse Fausto.
Ouvir aquelas palavras, me deixou mais inquieto. Se fosse só isso…
Mas havia o problema do meu avô. Melhor deixar as coisas do jeito que
estavam. Uma boceta. Era disso que eu estava precisando para tirar Letícia
da minha cabeça.
Assim que saí do bar com os amigos, fui direto para a boate.
Encontrei os gêmeos, novamente cercado de mulheres. Fiquei apenas
bebendo e observando. Quando me chamaram para a casa deles para a
tradicional “festinha”, eu declinei. Disse que teria que estar cedo na clínica
e voltei para casa. Mais uma noite mal dormida.
No dia seguinte, assim que cheguei na clínica, Dagmar, minha
secretária, entrou na sala com seu tablet na mão dizendo:
— Bom dia, doutor. A agenda hoje está lotada. Posso pedir para
entrar o primeiro paciente?
— Pode — disse, sem entusiasmo.
Vendo o meu estado de total desânimo, ela se antecipou em dizer.
— Quer que eu peça ao paciente que aguarde mais um pouco?
— Não é necessário. Eu vou atender agora.
— Ok.
O dia foi longo. Queria sair dali e ir logo para casa. Precisava
urgentemente dormir, esquecer. Já estava dando o expediente como
encerrado, quando Dagmar bateu na porta:
— Desculpe, doutor, mas tem mais uma pessoa para o senhor
atender.
Estranhei. Não tinha mais nenhum paciente agendado para hoje.
— Tinha horário marcado? — perguntei.
— Não, mas a pessoa insistiu... se o senhor quiser, eu peço para
voltar amanhã.
— Não, tudo bem. Eu atendo. E você já pode ir para casa, Dagmar.
— Obrigada, doutor. Até amanhã.
— Até amanhã — falei.
Fiquei fazendo algumas anotações no computador, quando ouvi a
porta abrir e depois bater devagar. Nem levantei os olhos. Como de praxe,
perguntei:
— Pois não? Em que posso ajudar?
— Eu sei que você não é cardiologista, mas o meu coração está
doendo demais.
Levantei os olhos devagar, e constatei que quem precisava de um
cardiologista urgente era eu. Meu coração falhou uma batida ao vê-la.
— Letícia...
— Eu só queria entender, Miguel. As palavras, os beijos, as
mensagens, as flores, o pedido de namoro... Eu fiz alguma coisa errada? Eu
magoei ou decepcionei você? — perguntou choramingando.
Me aproximei de onde ela estava e segurei em suas mãos dizendo:
— Não. Você não fez nada, Letícia. Você é perfeita. O problema sou
eu. Você não me conhece. Eu não mereço alguém como você.
Ela se desvencilhou dizendo entre soluços:
— Eu conheço você, Miguel. Conheço o seu doce coração, a sua
generosidade, o seu carinho, a sua capacidade em transformar a dor em
amor e cuidado. Seu abraço é, talvez, um dos lugares mais seguros em que
eu já me aninhei.
— Letícia, eu...
Cabisbaixa, ela se dirigiu até a porta.
— Eu não vou mais tomar o seu tempo, Miguel. Aliás, peço
desculpas por ter vindo até aqui, mas eu precisava olhar nos seus olhos e te
agradecer, porque “nós” foi a melhor coisa que me aconteceu na vida.
Porra! Merda! Caralho! Puta que pariu!
Em um ímpeto, fui em direção a porta, a agarrei pela cintura e
grudei nossas bocas em um beijo avassalador. Um beijo de saudade, de
vontade, de desejo, de tesão, de loucura, de súplica, de perdão.
Como bem disse meu amigo, Fausto:
“Abraça o que for bom e aproveita cada segundo.”
CAPÍTULO 9

Com as crianças já seguras e se recuperando, minha rotina de


trabalho voltou ao normal. As aulas online do curso também já tinham
começado, e eu não tinha mais tempo para nada. Por isso, não estranhei
muito quando, depois de dois dias passados da sessão de cinema, com
direito a um pedido de namoro oficial, Miguel não me procurou mais.
Pensei que, assim como eu, ele também estivesse muito ocupado na clínica
e no hospital e que logo que se organizasse, iria querer me ver.
No terceiro dia, entre uma tarefa e outra, resolvi enviar uma
mensagem:
Eu: Estou morrendo de saudades.
Estranhei, pois até a hora que eu fui dormir, ele nem visualizou a
minha mensagem. Na manhã seguinte, insisti:
Eu: Oi, meu amor. Você está bem? Como não respondeu à minha
mensagem, fiquei preocupada. Me dá um “oi” para dizer que está tudo bem.
Ao final, coloquei vários emojis de coração e beijos.
Novamente ele não visualizou. Resolvi ligar. Chamou várias vezes,
até que a ligação foi para a caixa postal. Vendo a minha inquietação, Lisete
perguntou:
— Está tudo bem, “Fadinha”?
— Eu não sei. Estou tentando me comunicar com o Miguel há três
dias e ele nem visualiza as minhas mensagens e nem atendeu a minha
ligação. Será que aconteceu alguma coisa?
— Vai ver que está ocupado. Espera mais um pouco. À noite você
volta a ligar.
E foi o que eu fiz. Liguei, e ele não atendeu. Me aproximei do jarro
exposto em meu quarto, com o buquê de rosas que ele me presenteou, já
começando a murchar devido ao tempo. Seria aquilo um presságio? Meus
olhos se encheram de lágrimas. Estava triste, mas, ao mesmo tempo, me
recusava a pensar em algo ruim. Ele estava feliz. Nós estávamos felizes.
Amanhã seria outro dia.
Ao amanhecer, a primeira coisa que fiz foi enviar mensagem.
Eu: Bom dia, meu amor. Diz pra mim que você está bem, que nós
estamos bem.
Sem resposta. Um tempo depois, insisti.
Eu: Miguel, posso te ligar? Eu preciso conversar com você, ouvir a
sua voz.
Nada.
— Bom dia, “Fadinha”. E aí? Alguma notícia do doutor gostosão?
— Não. Eu estou começando a ficar preocupada de verdade.
— Será que ele foi viajar?
— Sem me avisar? Eu não tenho experiência em namoros, mas eu
acho que se ele tivesse ido viajar, poderia me avisar. Eu já estou começando
a achar que ele está doente, ou que se acidentou. Estou muito angustiada.
— Você sabe onde ele mora?
— Não sei.
— Então liga para a clínica. Se ele não estiver lá, liga para o
hospital.
— É isso mesmo que eu vou fazer.
Liguei para a clínica, e fui informada que Miguel ficaria o dia
inteiro no hospital. Liguei para o hospital e disseram que ele estava em uma
reunião e que depois entraria em uma cirurgia. Deixei recado para que ele
me ligasse assim que estivesse liberado.
— E então? — Lisete perguntou.
— Ele está no hospital.
— Está doente? Sofreu um acidente?
— Não. Está trabalhando. Deixei recado para que ele me ligasse.
— Nossa, que estranho! — Lisete exclamou me deixando sozinha.
Sim, era muito estranho. Passei o dia todo tentando me concentrar
no trabalho. Miguel não ligou.
Uma semana. Fechava os olhos e só pensava nele. Pensava em seus
olhos brilhantes, em seu sorriso bobo, nos abraços e beijos. Ah! Como eu
adorava o sabor daqueles lábios... Queria deixar de sentir o seu cheiro.
Queria simplesmente deixar de sentir como um todo.
Duas semanas. Todos os dias, Seu Raul me perguntava o que estava
acontecendo.
— Não é nada, Seu Raul. Eu estou um pouco preocupada, porque o
curso pré-vestibular que estou fazendo tem muitas matérias e acho que não
vou conseguir acompanhar.
— Mas se for só isso eu te ajudo, Letícia. O que eu não quero é ver
você assim, triste pelos cantos. Tem certeza que é só isso?
— É sim. E eu agradeço muito ao senhor por querer me ajudar com
os meus estudos.
— Vou fazer isso com prazer.
Que homem bom era Seu Raul! Não queria falar com ele sobre
Miguel. Ele nunca concordou com a nossa aproximação e eu não queria
aborrecê-lo com os meus problemas afetivos.
Na terceira semana, desabafei com minha amiga, Ana Lúcia.
— Letícia, eu acho que você deveria procurá-lo.
— Não, Ana. Eu não quero pressioná-lo. Algum motivo ele deve ter
tido para se afastar.
— Sim, deve haver um motivo e você precisa saber. Por mais
doloroso que possa ser, você precisa olhar nos olhos dele e exigir uma
explicação. Ninguém some assim do nada. Ele pode até ter se arrependido e
não querer mais ficar com você, mas precisa te dar uma satisfação. Não
pode simplesmente te descartar como se você fosse um simples objeto.
— Não. O Miguel não é assim.
— Então vai lá. Fica cara a cara com ele. Fala, ouve e tira as suas
próprias conclusões. Você vai saber identificar a verdade.
— É, você tem razão. Eu tenho que falar com ele. Enfrentar de vez
essa situação.
Liguei para o hospital e disseram que Miguel não estava lá. Tentei a
clínica e fui informada de que ele estaria lá atendendo o dia todo. Ao final
do meu expediente, tomei um banho, me arrumei, me enchi de coragem e
fui até a clínica.
Nunca havia estado lá. Era um ambiente extremamente luxuoso.
Fiquei feliz por Miguel trabalhar em um lugar tão bonito. A secretária, uma
senhora com um semblante muito calmo, perguntou se eu havia marcado
horário, e, como eu disse que não, falou que iria perguntar ao doutor
Hernandez se ele poderia me atender. Depois de um tempo, ela voltou
dizendo que eu podia entrar.
Quando entrei na sala, Miguel estava concentrado em seu
computador e nem me viu entrar. Meu coração batia descompassado, as
mãos suando, as lágrimas já caindo de saudade e emoção por vê-lo ali tão
perto.
— Pois não? Em que posso ajudar?
Só eu falei, questionei e chorei. Implorei em silêncio que o nosso
amor fosse para sempre, mas, quando ele disse que ele não merecia uma
pessoa tão perfeita como eu, percebi que aquele era o fim. Pedi forças a
Deus para que eu tivesse a capacidade de deixar ir, de seguir em frente. Me
despedi e agradeci.
E foi neste exato instante, que as forças do universo se uniram e o
trouxeram de volta a mim. E ele veio. Urgente, aflito, intenso, sedento.
O amor voltou. O meu corpo voltou a ficar quente. Voltei a ter
sonhos, a querer tudo, a querer provar tudo. Voltei a sentir. Voltei a ter
sentido. Era capaz de partilhar toda a minha felicidade com o mundo.
Questionei se merecia tanta coisa.
Nosso namoro começou de verdade naquele dia. Nunca imaginei
que fosse tão bom. Miguel era o namorado mais carinhoso, presente e
prestativo que alguém poderia ter. Passávamos todos os nossos momentos
de folga juntos. Compartilhamos conversas, sonhos e planos. Nós
parecíamos invencíveis, parceiros nesta coisa de amor e vida.
Com o feriado chegando, Miguel me convidou para viajar com ele.
Eu queria muito, mas não podia. Tinha compromissos no abrigo das
crianças e também não queria deixar Seu Raul sozinho na Páscoa, pois
sabia muito bem que a família dele não estaria lá.
Para minha surpresa, Miguel disse que não iria mais viajar, pois não
queria ficar longe de mim. Se comprometeu a me ajudar na festa e fez
questão de comprar todos os ovos de chocolate. Ainda contratou uma
pessoa para ser o “coelhinho” e participou comigo da festinha. Foi
maravilhoso. As crianças o adoraram, e todas as “tias” ficaram surpresas
por eu ter um namorado tão lindo, simpático e carinhoso.
Como eu não queria que Seu Raul almoçasse sozinho naquele dia
tão importante, convidei Miguel para almoçar conosco, mas ele se negou,
dizendo que tinha um compromisso com a família. Eu entendi a posição
dele; a família era muito importante. Nos despedimos no carro com um
beijo apaixonado.
O Perfect Village estava muito cheio naquele domingo especial.
Muitos familiares vieram almoçar com seus parentes. Procurei por Seu Raul
e me informaram que ele não havia saído da suíte. Fui até lá e bati na porta.
Não demorou muito para que ele abrisse e o surpreendi com uma caixa de
bombom. Ele ficou com os olhos marejados e me abraçou. Disse a ele, que
Páscoa era amor e renascimento, e que, a partir de agora, nós éramos a
família um do outro e assim seria para sempre. Saímos da suíte para o
restaurante e almoçamos juntos. Foi maravilhoso o nosso dia.
Contei a ele tudo sobre a festa das crianças e como eu gostaria que
ele estivesse lá comigo. Falei que na festa de Natal estaríamos juntos. Ele
confessou que odiava essas datas comemorativas, que só celebrava na época
em que os filhos e o neto eram crianças, mas que, depois da morte da
esposa e do filho mais velho, essas datas passavam despercebidas para ele,
principalmente o Natal. Prometi que, dali por diante, as coisas seriam
diferentes.
Estava feliz, radiante. Tudo estava dando certo na minha vida. Tinha
um trabalho que eu adorava, voltei aos estudos, fiz novos amigos, ganhei
um “avô” e ainda tinha o meu amor. O mais perfeito de todos.
Eu e Miguel estávamos cada dia mais íntimos. O beijo, por mais
maravilhoso que fosse, não nos saciava mais. Cada vez era um toque mais
audacioso, as mãos mais ousadas e um desejo que eu nem sabia de onde
vinha. Minha pele arrepiava, os mamilos ficavam eriçados, sentia-me
molhada. O desejo de sentir ele dentro de mim, ficava cada dia mais
incontrolável.
Em um domingo de folga, estávamos no carro em uma luta insana
contra o desejo. Miguel interrompeu seus toques e eu reagi. Queria mais.
Queria que ele não parasse. Ele se afastou sem nada dizer, ligou o carro e
saímos dali. Em poucos minutos estávamos entrando em um motel. O
mundo ficou lá fora. Agora era o nosso momento de prazer. Estávamos
sedentos de tanto tesão. Ele arrancou minhas roupas, eu fiz o mesmo com as
dele em uma loucura de sentidos. Ele sussurrava no meu ouvido coisas que
jamais imaginei ouvir:
— Vou te tirar o fôlego, marcar a sua pele, lamber cada centímetro
do seu corpo. Devorar essa sua bocetinha.
O meu desejo não tinha fim. A língua quente, os beijos
avassaladores, a boca faminta que descia até o meu pescoço, atacando os
meus seios, sugando os meus mamilos, me querendo, me enlouquecendo. A
mão experiente me tocando, me invadindo, me penetrando. Meu sexo
encharcado. Eu convulsionava, pedindo para ele não parar, para ir mais
forte, mais fundo. Meu corpo levitava. Miguel estimulava meu clitóris com
sua mão e meu coração acelerava. Em delírio fui ao céu, prestes a explodir.
Ele parou.
— Não para, por favor — supliquei.
— Eu vou te comer do jeito que eu quero, com vontade. Vou te
foder com a boca, com o dedo e com meu pau.
Miguel me jogou na cama, abriu minhas pernas e se afundou no meu
sexo sugando todo o meu mel, provocando em mim espasmos e gemidos
em um gozo que parecia não ter fim. Ele explorava com a língua todos os
meus pontos de A à Z me excitando cada vez mais, entorpecendo os meus
sentidos, tirando a minha razão.
— Mais, amor. Faz mais. Quero te sentir como um furacão dentro de
mim.
As minhas palavras foram o gatilho para que Miguel começasse a
deslizar primeiro um dedo, depois dois, experimentando, testando o meu
sexo, até esfregar seu membro enorme na minha boceta, penetrando aos
poucos. Me invadiu como se fosse um chicote de fogo. Doendo, ardendo,
pulsando. E eu gritando, gostando, gozando... Minha entrega foi total.
Ficamos na cama, nos olhando, nos acariciando, aproveitando
aquela sensação de prazer, de calma, de doação, de cumplicidade. Nossos
corpos nus, suados, as pernas entrelaçadas, a respiração se acalmando
depois de tanto prazer, de tanta luxúria.
Miguel se levantou e com um gesto carinhoso me carregou no colo
até o banheiro. Entramos no banho juntos. Ele limpando o sangue e sêmen
que escorria de dentro de mim. Que delícia sentir suas mãos. Parecia que
estava presa. Parecia que não havia mais saída. Estávamos ligados por um
elo inexplicável. Sentia o meu coração pulsar de tanto amar, de tanto querer.
Meu corpo tremendo e reagindo a cada toque.
— Eu te amo, Miguel — confessei.
Ele me levou de volta para casa e a sensação era de que nunca fui
tão feliz. Ele ficou o tempo todo calado, pensativo, mas na despedida me
beijou com paixão, me olhou profundamente dizendo:
— Eu também te amo, Letícia.
CAPÍTULO 10

Estou fodido! O que essa garota está fazendo comigo? Letícia


entrou na minha vida de mansinho e virou um furacão. Estava me
desconhecendo. No início, foi apenas a novidade. Um desejo insano de
levar para cama uma menina tão inocente e ingênua. Mas depois tudo
mudou. Letícia foi se infiltrando na minha vida com sua meiguice, doçura,
inteligência, força e coragem. Nunca conheci alguém assim, tão disponível,
tão generosa, tão envolvente.
Estamos saindo há dois meses, e eu nunca fui tão paciente com uma
garota. Sexo sempre tinha que ser de primeira e raramente eu repetia a dose
com a mesma mulher. Com ela, tive que testar minha paciência com
jantares, cineminhas e passeios de mãos dadas ao ar livre pelo parque.
No que eu me transformei? Até a festinha de Páscoa para as crianças
do abrigo eu me prontifiquei a organizar junto com ela. Fui até lá, comprei
ovos de Páscoa, brinquei com as crianças, fui alvo de olhares curiosos do
pessoal que trabalhava no abrigo, como se eu fosse um ET.
O pior, foi quando ela me convidou para almoçar com um dos
velhos do abrigo. Deus me livre! Já pensou se, por um azar, eu encontrasse
com o meu avô? Isso ia acabar com a minha reputação junto à Letícia. É
lógico que meu avô não ia perder a oportunidade de jogar na minha cara
que eu era um desnaturado, que não ligava para ele, que só dava
importância ao dinheiro, como ele falou da última vez em que nos vimos.
Não. Eu nunca iria aparecer lá, e Letícia nunca saberia a verdade sobre meu
avô Raul.
Aliás, Letícia já havia me questionado sobre a minha família, e eu
contei apenas que meu pai havia falecido há pouco mais de dois anos e que
eu morava com minha mãe. Não mencionei nada sobre a fortuna da minha
família. Era melhor que ela pensasse que eu era um simples médico que
trabalhava em dois lugares para sobreviver.
Foi difícil aguentar esses dois meses. Letícia era muito gostosa e por
mais que eu tentasse respeitar o seu tempo, eu ficava louco de tesão.
Sempre que nos víamos, o meu pau ficava dolorido de tão duro. Tinha que
correr para casa para me aliviar. É isso mesmo. Eu estava há dois meses na
secura, sem mulher, sem trepar com ninguém por causa dessa “Fadinha”
chamada Letícia. Só queria ela, só pensava nela, só desejava ela.
Em um domingo em que ela estava de folga, a levei até a cidade
vizinha para visitar o abrigo onde morou. Na volta, fomos almoçar e
quando estávamos voltando, começamos mais uma sessão de amassos
dentro do carro. Quando eu já estava resignado com mais uma punheta
solitária, ela me surpreendeu pedindo “mais”. Era tudo o que eu precisava.
Antes que ela desistisse, me afastei, e dei logo a partida no carro, parando
no primeiro motel.
Ela estava insegura, mas fiz tudo para que ela ficasse com bastante
tesão e me entregasse tudo. E ela entregou, gemendo intensamente, me
deixando louco. Eu queria lamber ela todinha. Comecei pela boca gostosa,
o pescoço, os seios com aqueles mamilos rosados e durinhos até chegar na
bocetinha apertada e molhadinha. E ela linda, pedindo para eu ir mais forte,
mais fundo. Porra! Aumentei a intensidade da minha língua e ela ali, toda
abertinha, encharcando a minha cara com o seu gozo arrebatador. Ela queria
mais e eu precisava de mais. Queria sentir ela por inteiro. Ensaiei um pouco
antes de penetrá-la com meus dedos e depois com meu pau muito duro e
grosso. Ela gemia gostoso, sufocava a dor e a pressão. Suportava tudo.
Comecei a estocar num ritmo mais forte, entrando e saindo daquela
boceta quentinha, e logo o meu corpo entrou em erupção. Tentei controlar o
gozo, mas não consegui. É como se ela tivesse a senha do meu corpo, da
minha alma. Os maiores prazeres e loucuras só se vivem com quem tem
coragem e vontade de se arriscar, e Letícia tinha muita coragem e vontade.
A coragem de se entregar sem medos e sem reservas. Maravilhosa.
Ficamos um bom tempo na cama aconchegados um ao outro e,
quando saímos do banho, ela confessou que me amava. Fiquei estático, fui
pego de surpresa. Não esperava por uma declaração. Queria sair logo dali.
Correr, fugir. A levei para casa e me perdi em mais um beijo. Sem pensar
em mais nada, também falei que a amava. Ela se foi em êxtase e eu saí de lá
arrasado, assustado.
Que merda era aquela que eu tinha acabado de fazer? Não era amor,
era tesão! Não queria que ela se iludisse.
Mesmo depois de eu ter jogado o meu gozo dentro dela, querendo
que aquela sensação única não acabasse mais, não era amor.
Mesmo eu querendo aconchegar ela nos meus braços e não
querendo soltá-la mais, eu posso garantir que não era amor.
Mesmo quando eu fico desejando vê-la todo dia, dormir e acordar
ao lado dela, não chega nem perto de ser amor.
Mesmo quando eu não imagino mais outra mulher na minha cama,
na minha vida, é só tesão, eu juro...
Estou fodido! Nunca abriguei no peito um sentimento tão intenso,
nunca vivi algo tão grande, tão devastador, tão assustador.
A semana começou com muito trabalho. Fiquei revezando entre a
clínica e o hospital. Estava exausto, mas foi bom porque só assim não tinha
muito tempo para pensar em Letícia. Seria melhor que eu me afastasse, que
agisse como um cafajeste mesmo, que come, usa, se lambuza e depois larga,
fere, machuca. Já tinha mesmo a fama, não seria nada demais. Mas não ia
conseguir. Letícia virou meu vício. Queria vê-la, queria tê-la e era isso que
estava me deixando mais doido, pois só estávamos conseguindo nos ver nos
dias de folga dela.
Estava com os amigos no “De Plantão” e resolvi desabafar.
— Eu não acredito! Quer dizer que o “Doutor Sedução” foi
fisgado?! — exclamou Jaime.
— Fisgado não, interessado. Mas só isso já tá me assustando pra
caralho.
— O amor assusta mesmo, Miguel — disse Fausto
— Quem falou em amor?
— É só olhar nos seus olhos para ver que você está apaixonado por
essa garota.
— Não é amor, é sexo, desejo, tesão, prazer…
Fausto interrompeu minha fala e continuou:
— E admiração. É um conjunto de coisas, Miguel. Há algo
profundamente prazeroso em sentir desejo por alguém. Aquele desejo
visceral, que pulsa nas veias. Ficar com alguém que verdadeiramente
desejamos é o corpo dizendo “sim” ao que ele mais anseia, é a alma se
nutrindo de algo que vai além do simples ato. É uma satisfação que
transcende o físico, alcançando o emocional e o espiritual.
— Eu gosto dela. É só isso.
— E isso já é muito, amigo. Eu comecei assim, gostando. Daqui a
três meses vou estar subindo ao altar — foi a vez do Jaime falar.
— Casar? Só se eu estiver louco.
— Vamos ver!
Pedimos mais uma rodada de chope e ficamos conversando sobre o
trabalho. Melhor tirar o foco de Letícia, pois aqueles caras eram muito
emocionados. Tudo para eles tinha a ver com romance e paixão. Tô fora!
Sempre que nos encontrávamos, eu e Letícia íamos direto para um
motel e tentávamos aplacar um fogo que parecia que nunca ia cessar. Sentia
arder dentro de mim uma força secreta pronta para explodir em fúria e
desejo. Queria ter o poder de parar o relógio, não contar os minutos e as
horas em que a tinha para mim.
Via nos olhos dela a vontade, o desejo. Letícia me beijava, me
acariciava, me tocava, me descobria, se descobria. Com gestos simples, mas
intensos, ela conseguiu despertar em mim uma fome descomunal que
atiçava todo o meu corpo, meus poros, meus pelos. Sua mão chegava até o
meu pau já duro e pronto para ela. A lambida, a chupada, o sêmen que
jorrava, o néctar que se espalhava e nos lambuzava. Ela não parava. Letícia
conseguia arrancar de mim os melhores orgasmos, sem esforço. Ela me
tinha nas mãos.
No dia dos namorados, pedi que ela trocasse o seu dia de folga para
que pudéssemos sair e ficar juntos. Nesse dia, levei Letícia ao melhor
restaurante da cidade. Não me importava mais se alguém pudesse me ver ao
seu lado, ou se minha mãe descobrisse. Letícia era minha, só minha. Ela
estava linda. Com um vestido preto que marcava cada uma das suas curvas,
sandálias de salto alto, e um batom vermelho que contrastava com o tom da
sua pele. Os cabelos meio soltos, caindo sobre os ombros.
Quando entramos no restaurante, fomos alvo de todos os olhares.
Peguei na mão da minha garota e ficamos assim, olhando um nos olhos do
outro. O jantar foi perfeito. Pedi um champanhe, e dessa vez ela fez questão
de experimentar. Brindamos juntos à nossa felicidade.
Já que ela estava estudando e assistindo as aulas através do celular,
decidi presenteá-la com um notebook, além das flores, é claro. Ela adorou,
ficou emocionada e preocupada por eu gastar tanto dinheiro com ela. Em
troca, me deu um porta-retratos com uma foto que tiramos em um passeio
no parque da cidade. Na foto, estávamos felizes e sorridentes. Era assim que
eu gostaria de ter Letícia sempre comigo. Feliz e sorridente. Nada e nem
ninguém nesse mundo seria capaz de nos atrapalhar.
No dia seguinte ao nosso jantar, minha mãe começou com o seu
interrogatório:
— Quem era a garota com quem você estava jantando ontem no
restaurante da cidade?
— Ninguém.
— Ninguém? No dia dos namorados? Um jantar regado a
champanhe, flores e olhares apaixonados?
— Quem contou isso para você? Você colocou alguém na minha
cola?
— Claro que não! Miguel, eu sou praticamente a primeira-dama da
cidade. Tenho mais influência do que a mulher do prefeito. Eu sei de tudo o
que se passa por aqui. As pessoas viram e me ligaram para comentar.
Inclusive disseram que a moça era bem bonita. Então me conta, quem é ela?
— Não interessa.
— Filho, convida ela para jantar aqui. Assim nós podemos nos
conhecer. Depois, se for o caso, podemos marcar um jantar para a família.
— Não.
— Miguel, por que toda essa relutância? Quem é essa moça? Não
vai me dizer que é uma daquelas enfermeiras sem eira nem beira que você
insiste em ficar?
— E se for?
— Eu já te avisei. Tome cuidado com essas oportunistas. Elas sabem
muito bem quem você é, a qual família pertence e de todo dinheiro que
você tem. Se cuida, porque essas mulheres são espertas. Elas são capazes de
tudo, até de dar o golpe da barriga para garantir o futuro com uma pensão
bem gorda.
— Para de falar besteira, mãe. Eu sei me cuidar.
— Pois não parece. Você se acha esperto, mas é tão ingênuo quanto
o seu pai.
— Por que, mãe? Por acaso você deu o golpe da barriga no meu pai?
Pelo que eu sei, você era pobre, sem “eira nem beira”, como você mesma
gosta de dizer.
— Eu não admito que você fale assim comigo. Eu e seu pai nos
casamos por amor e saiba que foi através dos meus conselhos e da minha
perspicácia, que seu pai fechou vários negócios que aumentaram e muito o
patrimônio dessa família.
— Chega com essa conversa. Eu tenho que ir para a clínica.
— Vai, meu filho. Mas presta atenção ao que eu falei. Você pode se
divertir à vontade, mas para casar e ser mãe de seus filhos, tem que ser uma
mulher muito especial. Eu não vou permitir que você traga uma qualquer
para o seio da nossa família.
Respirei fundo e saí. Adorava a minha mãe, mas ela estava muito
enganada se achava que eu ia me render aos seus caprichos. A mim, ela
nunca iria manipular.
CAPÍTULO 11

Eu estava completamente apaixonada por Miguel. A cada dia, me


sentia mais feliz, mais realizada. Nos encontrávamos sempre aos domingos
no meu dia de folga e ficávamos juntos durante todo o dia. Queria tudo
com Miguel. Ansiava sentir o seu cheiro, o seu toque por todo o meu corpo,
ouvir o som da sua voz sussurrando obscenidades no meu ouvido, sentir
suas mãos descobrindo cada um dos meus pontos fracos, até eu gemer e
gozar bem gostoso.
Fiquei muito feliz no dia dos namorados, quando ele me levou a um
restaurante na cidade. Às vezes, eu estranhava por ele sempre me levar a
lugares mais distantes, como se quisesse me esconder. Lisete sempre falava
para eu ficar atenta, e Seu Raul sempre dizia que um homem que não
assume uma mulher não tem caráter. Graças a Deus, ele me assumiu.
Quando alguém chegava até a nossa mesa para nos cumprimentar,
ele me apresentava como sua namorada. Fiquei muito emocionada. Além
disso, ele me presenteou com um notebook. Protestei, pois não queria que
ele gastasse o seu dinheiro comigo, afinal, sabia do seu sacrifício, mas por
outro lado, foi muito bom saber que ele se preocupava com os meus
estudos, que me apoiava nos meus projetos. Dei para ele um porta-retratos
contendo uma foto que tiramos juntos durante um passeio. Sei que não era
muito, mas foi de coração. Ele adorou.
Por falar em Seu Raul, ele ficou muito preocupado quando eu contei
que eu e Miguel estávamos namorando. Na verdade, ele ficou triste,
desolado. Não entendi a reação dele. Quando perguntei o porquê, ele
respondeu que lamentava, pois sabia que eu iria sofrer.
— Seu Raul, me explica direito. O que faz o senhor pensar que o
Miguel vai me fazer sofrer?
— Eu posso até não conhecer esse seu namorado, mas conheço
muito bem homens nocivos. Primeiro, eles parecem ser o homem dos
sonhos: bonitos, educados, atenciosos, sabem de todos os seus gostos e te
fazem sentir como uma rainha. Porém, por trás de toda essa perfeição,
existe alguém manipulador e mentiroso.
— O Miguel não é nada disso, Seu Raul...
— Letícia, estou falando isso por experiência. Não perca seu tempo
com um relacionamento que não vai dar em nada. Escolha um homem que
mereça o seu tempo e o seu amor, e que coloque o relacionamento acima de
tudo. Não desperdice o seu tempo com um homem que não liga para o que
você sente e não consegue ver a moça incrível que você é. Com certeza,
você merece muito mais do que isso.
— Seu Raul, eu agradeço, porque sei que suas palavras não passam
de preocupação de uma pessoa que gosta verdadeiramente de mim, mas o
Miguel não se enquadra nesse perfil. De qualquer forma, eu vou ficar bem
atenta — prometi.
Comentei essa conversa com Lisete e ela foi logo dizendo:
— Ih Letícia, para de ficar contando tudo pra esse velho, ficar dando
satisfação da sua vida. Ele vai acabar atrapalhando o seu namoro com essa
implicância toda.
— Não fala assim do Seu Raul, Lisete. Ele está preocupado, porque
gosta de mim de verdade.
— É um exagerado, isso sim.
— Eu quero muito que ele e o Miguel se conheçam. Acho que só
assim, o Seu Raul vai tirar essa má impressão. Vou tentar convencer o
Miguel a vir almoçar aqui com a gente no próximo domingo.
— Ah, só você! — exclamou. O pouco tempo que tem pra ficar
namorando, vai ficar paparicando esse velho ranzinza?
— Lisete, eu considero o Seu Raul como uma pessoa da minha
família. Eu levo muito em consideração as coisas que ele diz, e faço questão
que ele e Miguel se deem bem.
— Só você mesmo, “Fadinha”. Se ele é família, espero que quando
morra, deixe alguma coisa pra você.
— Eu não estou nem um pouco interessada nisso, e nem quero
pensar na morte do Seu Raul.
— O velho é podre de rico. Não custava nada te incluir na herança.
— Eu jamais vou aceitar dinheiro do Seu Raul. Já basta o que você
contou sobre a família dele. Imagina o desgosto de ser abandonado em um
asilo pelo filho, pela nora e pelo neto, que só querem tomar posse do
dinheiro dele?
— Tá aí! Bem que o Seu Raul podia fazer as pazes com o neto e
apresentar você para ele. Aí a fortuna do velho ficaria toda em família. Já
pensou? E o neto é bem bonitão. Eu o vi uma vez, logo que vim trabalhar
aqui.
— Ai amiga, você é terrível! Esqueceu que eu sou completamente
apaixonada pelo Miguel? Não troco o meu amor por nada nesse mundo.
“Na riqueza e na pobreza...” — brinquei.
— Mas se o Miguel fosse rico como o neto do Seu Raul, seria muito
melhor.
— Lisete, para mim que não tenho nada, o Miguel é um homem rico
e me orgulha muito saber que tudo o que ele tem e conquistou até hoje, é
consequência de muito estudo e muito esforço. Nada caiu do céu. Ele
trabalha em dois lugares para sobreviver, e se dedica muito aos seus
pacientes.
Voltamos às nossas tarefas. Quando o expediente terminou, fui para
o meu quarto assistir a mais uma aula do curso. Estava adorando, ainda
mais agora que eu tinha um notebook de última geração para estudar.
Quando Miguel me ligou, eu entrei no assunto do almoço no
domingo, mas ele disse que já havia combinado com um amigo e que só iria
me buscar à tarde. Não insisti. Fiquei frustrada, pois queria muito que ele e
Seu Raul se conhecessem.
No domingo, fiquei esperando, mas Miguel não apareceu. Passei a
tarde inteira apreensiva, pois ligava e ele não atendia. À noite, ele me ligou
pedindo desculpas e dizendo que o almoço com o amigo se estendeu mais
do que deveria. Prometeu que, durante a semana, iríamos tirar uma noite só
nossa.
Quando algo assim acontecia, eu logo ficava com a pulga atrás da
orelha. As palavras de Seu Raul vinham em cheio nessas horas. Não queria
me deixar influenciar por isso, mas a cabeça girava em mil pensamentos.
Por que Miguel não me levou com ele a esse almoço? Preferia ficar o dia
todo com um amigo no meu único dia de folga?
No dia em que nos encontramos à noite, Miguel me levou ao cinema
e depois fomos jantar. Não aguentei e perguntei:
— Como foi o almoço no domingo?
— Foi ótimo. Eu me diverti muito.
— Miguel, se eu sou a sua namorada, por que você não me levou?
Ele ficou surpreso com a minha pergunta. Demorou alguns segundos
antes de responder.
— Eu não podia levar você, meu amor.
— E por que não?
— Porque era uma despedida de solteiro. Foi um churrasco, só para
homens. Eu só não fui encontrar você depois, porque eu acabei me
entusiasmando junto com os amigos e bebendo mais do que devia.
— Ah...— Esperei que ele falasse mais.
— O Jaime, o cara que vai se casar, é um dos meus melhores
amigos. Ele é cardiologista e trabalha comigo no hospital. A noiva também
é uma das enfermeiras que trabalham lá. Talvez você até os conheça de
vista das vezes que esteve lá.
Não fiz nenhum comentário. Ele continuou:
— Inclusive, eu vou ser padrinho de casamento dele e gostaria
muito que você me acompanhasse na cerimônia e na festa.
— Jura?
— É claro. Você é minha namorada.
— Miguel, eu nem tenho roupa para usar em uma ocasião dessas...
— Já sei. Você nunca foi a um casamento antes. Nunca foi a uma
festa antes…
— Festas, só as do abrigo — confessei.
— Pois está decidido. Você vai comigo.
O casamento já seria no próximo final de semana. Pensei em pedir à
minha amiga, Ana Lúcia, uma roupa emprestada, pois eu não tinha nada
adequado, mas nem precisou. Na quinta-feira, Miguel me ligou dizendo que
me pegaria às oito para irmos até o shopping.
Chegando lá, ele me levou em uma loja lindíssima, só com roupas
de grife. Pediu que uma das atendentes tomasse conta de mim e que
providenciasse a indumentária completa para o casamento: vestido, calçado,
bolsa e demais acessórios. Miguel foi dar uma volta e me deixou lá, nas
mãos da moça, que gentilmente me indicou o que havia de melhor na loja.
Depois de experimentar vários vestidos, optei por um de cor
champanhe que segundo a atendente, ficou perfeito em mim. Eu também
achei. Apesar de bem ousado, o vestido era maravilhoso, colado ao corpo e
com as costas nuas. Me senti como uma verdadeira modelo.
Fiquei um pouco receosa, pois sabia que aquilo tudo deveria ser
muito caro. Antes que Miguel retornasse, perguntei à moça o valor, e quase
caí para trás. Só o preço do vestido, correspondia a quatro meses do meu
salário. Me desculpei com a moça e pedi que me indicasse algo mais em
conta, na promoção. Não queria de jeito nenhum dar tanta despesa a
Miguel. Sabia que dinheiro para ele não caía do céu. Foi então que ele
chegou e entregou o seu cartão, para que a atendente efetuasse o pagamento
total de tudo o que eu havia escolhido. Quis argumentar, mas ele foi logo
dizendo:
— Eu quero que você seja a mulher mais linda dessa festa.
Sorri. Como eu podia ter tanta sorte?
No dia do casamento, pedi à Hermínia que me liberasse ao meio-dia
para que eu pudesse me arrumar. Prometi que compensaria o horário depois.
Miguel combinou de me pegar às quatro, pois o casamento seria realizado
em São Paulo.
Todos os amigos do Perfect Village estavam felizes pela minha
“primeira festa” e ansiosos para me ver arrumada, menos Seu Raul. Quando
eu disse que Miguel tinha me presenteado com a roupa mais linda que eu já
tinha visto na vida para ir ao casamento com ele, Seu Raul simplesmente
ignorou. Fiquei triste, mas tinha esperança de que um dia, esse cisma com
Miguel iria passar.
Ana Lúcia veio da cidade vizinha só para me ajudar a me arrumar.
Era uma amiga maravilhosa. Lavei e hidratei meus cabelos. Depois ela fez
uma escova e usou o babyliss para esculpir alguns cachos. Já que o vestido
tinha as costas nuas, Ana fez um rabo de cavalo bem alto para valorizar o
decote, deixando alguns fios de cabelos soltos na frente. Depois fez uma
maquiagem que valorizou demais os meus olhos verdes. Coloquei uns
brincos lindíssimos que escolhi na loja, um perfume discreto e estava
pronta.
Quando saí do meu quarto, todos me ovacionaram.
— Eu não acredito que essa é a nossa “Fadinha”! — Lisete
exclamou.
Estava me sentindo linda, maravilhosa. Faltavam dez minutos para
as quatro. Daqui a pouco Miguel estaria chegando, mas resolvi bater na
porta da suíte de Seu Raul. Quando me viu, ele ficou extasiado.
— Depois da minha esposa, você é a mulher mais bonita e
deslumbrante que eu já conheci na vida — disse, beijando a minha mão.
— Seu Raul, como meu “avô”, eu vim aqui pedir a sua bênção para
a minha primeira festa.
Ele se aproximou, fez o sinal da cruz na minha testa e disse,
emocionado:
— Eu te abençoo minha neta. Uma verdadeira princesa. Sou o avô
mais sortudo e orgulhoso da face da terra.
O abracei, e fui ao encontro do meu príncipe.
CAPÍTULO 12

A despedida de solteiro de Jaime, aconteceu no domingo em um


sítio um pouco afastado da cidade. A festa, segundo ele, duraria o dia todo,
mas eu não pretendia ficar até tarde, pois tinha combinado de pegar Letícia
para aproveitarmos um pouco o seu dia de folga. Ela era a minha
prioridade. Acontece que a coisa saiu do controle: muita bebida e muita
mulher contratada para divertir os convidados. Todos os meus amigos
estavam presentes.
— Salve “Doutor Sedução”!
— Que porra é essa que tá rolando aqui? Não disseram que era uma
festinha só para homens?
— Festinha “só para homens”, tem que ter mulher gostosa — disse
Jaime, o noivo.
— Tem certeza que vai abdicar disso tudo e se “enforcar”? —
perguntei.
— Certeza absoluta, mas hoje eu ainda estou solteiro e quero
aproveitar.
Foi uma loucura. Até as garçonetes serviam os convidados de
topless e fio dental. Estava tentando me manter sóbrio e comportado. Fiquei
a maior parte do tempo na companhia de Fausto e Vitor, que se despediram
logo após o almoço, mas quando eu já ia fazer o mesmo, Jaime protestou:
— Ah, não Miguel. Eu até entendo esse dois aí quererem ir embora,
mas você? O show já vai começar. Espera mais um pouco.
Para não decepcionar meu amigo, decidi que assistiria ao show e
depois iria embora. Quando as dançarinas de pole-dance começaram a fazer
uma exibição, não teve mais jeito de escapar. Elas vieram em peso para
cima dos homens. Cada uma mais gostosa do que a outra. Uma morena de
arrasar, sentou no meu colo e começou a quicar gostoso no meu pau. Tentei
resistir, mas ela abriu a minha calça, colocou meu pau pra fora e começou a
me masturbar. Não satisfeita, colocou o meu pau na boca. Logo, uma ruiva
se uniu a ela. As duas se revezaram no boquete. Eu já estava a ponto de
gozar, mas algo me conteve. Respirei fundo, afastei as garotas, me despedi
de Jaime e fui para casa.
Assim que cheguei, liguei para Letícia. Ela estava preocupada, disse
que ficou me esperando e que tentou falar comigo a tarde toda. Inventei
uma desculpa, prometendo que nos veríamos durante a semana.
Um sentimento de culpa me invadiu ao falar com ela, mas, diferente
das outras vezes, eu não desejei aquelas mulheres. Eu não senti, e com
Letícia, aprendi que sentir era a essência de tudo.
Com ela, aprendi que sentir era o que transformava cada toque,
suspiro e olhar em algo vivo, pulsante e real. Sentir era o que fazia do sexo
uma experiência única. Era o que transformava um toque sutil em
eletricidade, o que transformava um beijo em um universo à parte. O prazer
verdadeiro eu só sentia com ela, a minha “Fadinha”. Quando ela falou sobre
o apelido que ganhou no trabalho, eu adorei e adotei.
No hospital, não se falava em outra coisa a não ser na “festinha” de
Jaime. Vitor perguntou, curioso:
— Comeu quantas, Miguel?
— Nenhuma — respondi.
— Não comeu, mas foi comido. Eu vi pelo menos duas mulheres
mamando no seu pau — disse Jaime, rindo.
— Mas não aconteceu nada além disso — afirmei.
— Qual é, Miguel? Logo você, negando fogo?
— Eu só não estava a fim.
— Pensando na sua “virgem, recatada e do lar”?
— Ih, se foi rendido, tá fodido! — Vitor comentou e eu comecei a
rir.
Há pouco tempo, esse tipo de comentário seria suficiente para eu
protestar, mas agora, sabia que o que ele falava era verdade: estava rendido
e fodido. Ainda bem que chamaram meu nome no alto-falante do hospital.
Não queria comentar nada sobre o meu relacionamento com Letícia.
Relacionamento...
Como combinado, peguei Letícia na quarta-feira. Fomos ao cinema
e depois levei-a para jantar. Enquanto jantávamos, ela me perguntou sobre o
almoço que fui no domingo. Perguntou o motivo de eu não tê-la levado
junto comigo. Fiquei um pouco sem saber o que responder, mas acabei
contando uma meia verdade: que se tratava de uma despedida de solteiro,
uma festa exclusiva para homens. Letícia era muito inteligente e perspicaz.
Ficou prestando atenção a tudo o que eu dizia. Me olhava nos olhos, atenta
a todas as minhas reações. Sem pensar, falei:
— Inclusive, eu vou ser padrinho de casamento dele e gostaria
muito que você me acompanhasse na cerimônia e na festa.
Os olhos dela brilharam na hora. Ótimo. Tirei o foco da farra de
domingo. Letícia não precisava saber de nada. Foi muito bom vê-la feliz.
Quando a levei ao shopping para comprar uma roupa, ela ficou encantada.
A deixei na mão da atendente, dando carta branca para ela gastar o que
fosse necessário. Mesmo assim, Letícia ficou preocupada com o valor da
compra. Não queria de jeito nenhum aceitar. Se ela soubesse que, várias
vezes, gastei aquele valor em um único final de semana com noitadas… No
final, ela aceitou quando eu disse que queria que ela fosse a mulher mais
linda da festa.
Que Letícia era bonita, eu sabia. Ela era linda. Mas quando eu a vi
arrumada, fiquei arrebatado. Sem dúvida, Letícia era a mulher mais linda
que eu já tinha visto na vida. Linda, elegante, sofisticada e cheirosa.
— Meu amor, você está linda demais. Eu não mereço tudo isso.
— E você um príncipe. O meu príncipe.
Ela me beijou e eu fiquei a ponto de desistir de ir ao casamento e me
perder dentro dela. Vontade de sentir, provar, agarrar, saborear o cheiro e o
sabor da pele.
— Vamos, Miguel? — disse, me tirando do meu delírio.
Fiquei doido de tesão. No carro, mergulhei minha mão por entre as
suas coxas e explorei lentamente, sem pressa, cada recanto de prazer e
sensações.
— Miguel, para!
— O que eu posso fazer se você é gostosa pra caralho?
— Nós vamos ter o final de semana inteiro juntos, esqueceu?
— Como eu posso esquecer? Não vejo a hora de te comer a noite
toda.
— Miguel...
O casamento de Jaime seria ao ar livre em um forte datado de 1555,
um local magnífico, com uma vista privilegiada, que ficava a
aproximadamente sessenta quilômetros de Ribeirão, próximo à capital.
Apesar de estar relativamente perto, Letícia nunca tinha estado em São
Paulo e ficou muito empolgada quando eu disse que iríamos passar todo o
final de semana lá para que ela conhecesse e pudesse curtir a cidade grande.
O trajeto foi rápido, e logo chegamos ao local onde seria a
cerimônia religiosa e a festa. Assim que chegamos, fomos alvo dos olhares
curiosos das pessoas. Letícia ficou insegura, mas peguei em sua mão e me
aproximei do local onde estavam os meus amigos.
Encontrei Fausto e Vitor junto de suas respectivas esposas:
— Miguel, que prazer em revê-lo.
Tati, esposa de Fausto, veio me cumprimentar. Ela sempre foi uma
mulher muito carinhosa. Retribuí ao seu abraço e falei:
— Amigos, quero que conheçam a Letícia, minha namorada.
Tati e Sabrina, mulher de Vitor, cumprimentaram Letícia com beijos
e abraços. Vitor comentou:
— Você nunca decepciona, Miguel. Está de parabéns. Sua namorada
é mesmo muito bonita.
— Obrigada — Letícia falou, sem graça.
— Muito prazer, Letícia. O Miguel já nos falou muito sobre você —
disse Fausto, beijando a mão da minha garota.
— O prazer é todo meu — disse tímida.
— Gosta de casamentos, Letícia? — Vitor perguntou malicioso.
— É a primeira vez que eu venho a um casamento. Estou ansiosa
para assistir a cerimônia. Ah, e participar da festa também.
— Então que tal a gente explorar um pouquinho o lugar antes que a
cerimônia comece? A decoração está belíssima. Podemos tirar algumas
fotos.
Sabrina sugeriu, e Letícia e Tati a acompanharam para apreciar o
espaço, que estava mesmo muito bonito.
Assim que elas saíram de perto, Thaís se aproximou. Ela estava de
arrasar em um vestido vermelho com uma fenda lateral.
— Oi “Doutor Sedução”. Estava ansiosa para você chegar.
Preparado para ser o meu par no altar?
— Eu sempre estou preparado, Thaís.
— Que bom. Eu também estou preparadíssima. — Ela se aproximou
mais, sussurrando no meu ouvido: — Estou sem calcinha, só pra você.
— Eu estou acompanhado, Thaís
— Eu não estou vendo ninguém — disse com deboche.
Enquanto ela cumprimentava Fausto e Vitor, peguei uma bebida já
temendo que desse alguma merda. Conhecia Thaís, e sabia o quanto ela era
maliciosa.
Quando as mulheres voltaram, Thaís puxou a minha mão dizendo:
— Vem Miguel! A cerimonialista já está chamando.
— Vamos todos então! — Fausto, que também seria um dos
padrinhos junto com a esposa, falou.
Me desvenciliei de Thaís, e abracei Letícia.
— Amor, eu vou ter que ficar no altar. Senta aqui, e fica me
esperando até a cerimônia acabar — disse, indicando uma cadeira para ela
sentar. Letícia assentiu dizendo:
— Você é o padrinho mais lindo.
Dei um selinho nela e me juntei aos demais padrinhos.
No altar, Thaís não sossegava, querendo mostrar intimidade como se
fôssemos um casal. Ficava endireitando a minha gravata, arrumando o meu
cabelo e fazendo carinho na minha barba. Além disso, agarrava a minha
mão e fazia carícias o tempo todo. Ainda bem que Letícia estava tão
envolvida com todas as novidades que via, que nem notou, mas aquilo já
estava me incomodando.
Quando a cerimônia acabou, tratei logo de me desvencilhar dela e
fui ao encontro de Letícia, que estava com os olhos marejados, visivelmente
emocionada com o casamento. Minha menina linda!
Fui com ela até o salão anexo, onde seria a festa. Sentamos em uma
mesa de seis lugares junto com Fausto, Vitor e as suas esposas. Não vi mais
Thaís. Letícia parecia feliz. Ela era muito simpática e educada e fez
amizade rápido com os meus amigos. Comentou que quando me conheceu,
achou que eu fosse um anjo, o que fez Vítor até se engasgar com a bebida.
Babaca!
Só queria que ela se sentisse bem. Que tivesse um verdadeiro dia de
princesa, que risse, se divertisse, aproveitasse, fosse feliz. Letícia
correspondia a tudo. Bebeu champanhe, sorriu, tirou fotos, filmou tudo com
o seu celular.
Mesmo sem ser o meu forte, a puxei para dançar. Ficamos muito
tempo grudados um no outro em uma dança sensual. Ela, de olhos fechados,
se deixando levar. Os nossos corpos cada vez mais perto, a tensão crescente
em cada toque, pele com pele. Um tesão que não conseguimos esconder,
sequer disfarçar. O beijo molhado, cheio de desejo. Letícia não era apenas
chama. Era fogo que me fazia arder.
Ficamos na pista de dança por mais algum tempo e, quando
voltamos à mesa, Letícia pediu licença para ir até o banheiro. Fiquei
bebendo e conversando com os amigos e, quando ela voltou, senti que
estava um pouco nervosa, com as mãos trêmulas.
— Está tudo bem? — perguntei.
— Eu quero ir embora, Miguel.
— Mas amor, eu achei que você estivesse gostando da festa, que
fosse querer ficar até o final.
Quando a encarei, vi seus olhos marejados, com as lágrimas prestes
a cair.
— Letícia, o que aconteceu?
Ela nem precisou responder. A poucos metros, vi Thaís nos olhando
com um sorriso vitorioso nos lábios. Filha de uma puta! Me levantei
pegando na mão de Letícia e fui com ela para um lugar reservado, longe do
burburinho da festa para que pudéssemos conversar.
— O que aconteceu, meu amor?
— Miguel, eu só preciso que você seja honesto comigo. O que nós
temos, é real?
— Por que você está me perguntando isso, Letícia?
— Porque aquela mulher, que estava com você no altar, disse que
vocês dois eram amantes, que você transava com ela todos os dias no
hospital, e que eu não passava de um brinquedinho, de uma novidade. Que
você iria me usar e depois descartar, como já fez com várias mulheres.
A abracei com força. Eu ia matar aquela Thaís. Minha menina
tremia e chorava em meus braços. Quando ela se acalmou um pouco, falei:
— Letícia, você pediu e eu vou ser honesto com você. Eu não sou o
anjo que você pensa. Na verdade, sou um canalha, um verdadeiro cafajeste,
um cara que sempre usou e abusou das mulheres. Até conhecer você…
Respirei fundo, e continuei:
— Com você, eu descobri um novo Miguel. Tem sido simples ser.
Tem sido simples viver. Tem sido simples amar. Com você o tempo é
pouco, e eu quero mais, muito mais. Eu não sou um anjo, Letícia, mas você
pode ser a minha redenção.
Ela acariciou meu rosto e disse, emocionada:
— Eu te amo, Miguel. Eu não sei mais ser, sem ser sua.
— Eu também te amo, Letícia. E você vai ser sempre minha.
CAPÍTULO 13

O casamento foi lindo. A festa maravilhosa. Adorei os amigos de


Miguel. Todos me trataram muito bem e me deixaram muito à vontade.
Adorei Tati e Sabrina, esposas de Fausto e Vitor. O noivo, Jaime, também
era muito simpático e estava muito feliz.
Como padrinho, Miguel ficou no altar junto a uma das enfermeiras
do hospital que, segundo ele, era amiga da noiva. Fiquei sentada em uma
das cadeiras reservadas aos convidados para assistir a cerimônia. Por várias
vezes me emocionei. As palavras do “padre”, que depois descobri que não
era padre e sim um cerimonialista, me tocaram fundo. Principalmente
quando ele disse:
“É fácil amar quando a vida está em festa, quando os sorrisos são
fáceis e as conversas são leves. O desafio está em amar nos dias nublados,
quando o outro se perde, quando suas palavras se tornam pesadas e sua luz
parece apagada. É aí que o amor se prova, quando não há nada a oferecer a
não ser a presença, o apoio e a compreensão. Amar é ficar quando é mais
fácil ir embora, é entender quando o outro não se entende, é ser firme
quando tudo parece desmoronar. Esse é o amor que resiste ao tempo e às
tempestades, o amor que não se esgota com a dificuldade, mas se fortalece
nela. Esse é o verdadeiro amor, aquele que sobrevive não só nos dias
ensolarados, mas que também floresce nas noites escuras. Porque o amor
real é aquele que cuida, que suporta e que permanece, mesmo que tudo o
mais pareça incerto.”
Como eram certas essas palavras. Enquanto ele falava, eu e Miguel
nos olhávamos, como se prometêssemos em silêncio um ao outro, que o
nosso amor seria capaz de resistir a qualquer tipo de tempestade. Mesmo
tentando disfarçar, percebi o quanto ele também se emocionou. Era lindo
demais o meu amor!
Logo quando a cerimônia terminou, Miguel se aproximou, me
puxou pela mão e me conduziu até um salão anexo onde seria a festa.
Assim que entramos, um garçom passou servindo champanhe. Miguel
pegou uma das taças para ele e me deu outra. Mesmo não sendo
acostumada a beber, aceitei e brindamos felizes, olhando um nos olhos do
outro. Essa noite, eu queria me liberar e me divertir muito ao lado dele.
Sentamos em uma mesa com os outros casais, e todos queriam saber
mais sobre mim. Nunca me envergonhei da minha história e contei para eles
um pouco da minha infância e adolescência no abrigo e de como parecia
que agora, eu estava vivendo em um conto de fadas desde que conheci
Miguel, que para mim era um verdadeiro anjo. Os amigos riram, e senti que
ele ficou um pouco sem graça.
Depois de comermos e conversarmos bastante, Miguel me puxou
para dançar. Ficamos grudados um ao outro, embalados ao som da música.
Como sempre acontecia, o tesão nos consumia, a paixão nos dominava. A
dança ficou mais sensual, sem pudor. Os gemidos, uma melodia divina. O
desejo, um vulcão em erupção. Pele arrepiada, coração acelerado. Nada
importava além de nós dois. Fechei os olhos e me deixei levar.
Quando voltamos à mesa, pedi licença para ir ao banheiro. Precisava
me recompor de toda aquela emoção. Minha calcinha já estava encharcada.
Quando estava retocando o meu batom diante o espelho, a mulher que foi
madrinha de casamento junto com Miguel, entrou no banheiro. Ela se
posicionou ao meu lado e ficou me encarando, sem nada dizer. Estranhei
aquele comportamento, mas mesmo assim, resolvi puxar assunto.
— Linda festa, não é?
— Quem é você? — Ela perguntou com rispidez.
— Me chamo Letícia. Sou namorada do Miguel, que foi o seu par
no altar.
Ela começou a gargalhar. Depois, falou sarcasticamente.
— Namorada? — questionou. — Esse “Doutor Sedução” não tem
jeito...
— “Doutor Sedução”?
— É como ele é conhecido. Nós somos amantes há anos.
Ao ouvir aquelas palavras, parecia que eu tinha levado um choque.
Ela continuou:
— O Miguel é o meu parceiro de foda mais constante. Toda vez que
damos plantão juntos, trepamos gostoso. Ele é um grande devasso!
— É mentira — consegui balbuciar.
— Mentira? Se as paredes da sala de descanso dos médicos
falassem... elas são testemunhas de todas as nossas transas. Adoro gozar na
boca e naquele pau grosso dele.
— Olha, eu não conheço você. Não sei sequer o seu nome, mas acho
que você está sendo muito indelicada ao me falar essas coisas. Se você teve
algo com o Miguel um dia, não tem mais. Agora ele é o meu namorado.
— Meu nome é Thaís, e o seu deve ser Letícia, ”a iludida”. O
Miguel é um canalha, um pervertido. Você não passa de uma novidade.
Uma novinha pra ele se divertir e depois descartar, como ele faz com as
inúmeras mulheres que passam pela cama dele.
Não queria ouvir mais nada. Saí do banheiro tremendo enquanto
ouvia a gargalhada de Thaís. Meu Deus, eu não podia acreditar naquilo. O
Miguel não era essa pessoa. Eu não podia ter me enganado tanto.
Voltei à mesa e sem conseguir disfarçar, chorei. Miguel me levou
para um canto afastado, querendo saber o que aconteceu. Contei tudo o que
aquela mulher me falou. Pedi que ele fosse honesto comigo. Mesmo que
doesse, que eu saísse machucada daquela história, preferia saber a verdade.
Miguel confessou que nunca foi um anjo, que teve várias amantes, mas que
agora queria ficar só comigo. Falou com tanto amor, com tanto sentimento,
que eu acreditei. Acabamos confessando o nosso amor um ao outro.
Voltamos para a festa apenas para nos despedir dos amigos. Não
havia clima para ficarmos mais. Queríamos ficar sozinhos, na companhia
um do outro. Miguel pegou seu carro e se dirigiu até o centro de São Paulo.
Mesmo à noite, eu já estava encantada com tudo o que via. As luzes e os
arranha-céus me fascinavam. Achei que fôssemos passar a noite em um
hotel, mas Miguel parou em frente a um prédio de luxo, pegou um controle
remoto, abriu o portão da garagem e entrou com o seu carro. Estranhei.
Quando ele estacionou, perguntei:
— Que lugar é esse, Miguel?
— É aqui que nós vamos ficar.
— Mas é um prédio residencial. Quem mora aqui?
Ele não me respondeu. Me puxou pela mão até o requintado salão
onde se localizavam os elevadores. Um porteiro veio ao nosso encontro.
— Boa noite, doutor Hernandez. O senhor poderia aguardar um
minuto para que eu possa entregar algumas correspondências que
chegaram?
— Ok.
Aquilo estava ficando cada vez mais estranho...
O homem voltou entregando a Miguel as correspondências.
Entramos no elevador e ele apertou o botão que nos levaria até a cobertura.
Me mantive calada, esperando que ele se pronunciasse. Quando a porta do
elevador abriu, só havia uma única cobertura no andar. Miguel colocou uma
senha no portal e a fechadura se abriu. Entramos e quando as luzes foram
acesas, a cobertura parecia um mundo. Miguel pegou um outro controle
remoto e com um toque, a persiana se abriu revelando uma vista
maravilhosa. Me aproximei em êxtase para vislumbrar a cidade iluminada.
Após alguns segundos, perguntei:
— O que é tudo isso, Miguel?
Ele me abraçou por trás e respondeu:
— Esse vai ser o nosso ninho de amor até amanhã.
Depois me beijou apaixonadamente e eu correspondi.
— Vem que eu vou te mostrar o resto.
Como sempre, Miguel me puxou pela mão e fez um verdadeiro tour
pela cobertura triplex. No andar de baixo, havia uma grande sala de estar,
sala de jantar, uma cozinha com conceito aberto e uma suíte. No segundo
andar, uma sala de estar com um bar, uma adega climatizada e mais três
suítes, sendo a principal com uma gigantesca jacuzzi no banheiro. No
terraço, havia uma piscina com cascata e sauna acoplada, uma academia de
ginástica e um espaço gourmet com churrasqueira.
— Miguel, tudo é lindo, maravilhoso, mas de quem é essa
cobertura?
— De um amigo.
— E cadê esse amigo, Miguel?
— Ele está viajando pela Europa e enquanto ele viaja, pede que eu
tome conta da cobertura dele.
— Ah...
— Foi aqui que eu morei no meu período de faculdade.
— Aqui?
— Sim. Morava com ele. É por isso que os porteiros me conhecem.
Foram seis anos morando aqui.
— Ah, então está tudo explicado.
— Mas vem cá meu amor. — Ele me puxou me enchendo de beijos.
— Viu aquela jacuzzi no banheiro? Já imaginou tudo o que eu vou fazer
com você ali dentro? Ou você prefere nadar nua na piscina e foder gostoso
dentro da sauna?
— Eu quero tudo com você, Miguel.
Foi o bastante. Miguel me pegou no colo e me levou até o terraço.
Tirou minha roupa devagar, peça por peça. Soltou meus cabelos e depois
também se despiu. Caímos juntos na piscina que era aquecida, totalmente
nus. Eu não sabia nadar, mas me senti segura em seus braços. Ficamos na
piscina nos acariciando, até que Miguel me levou até a sauna.
Ele pediu que eu deitasse de costas em uma espécie de
espreguiçadeira macia e reclinável. Senti suas mãos suaves tocarem minha
pele dos pés à cabeça, sem a intenção de massagear propriamente, mas de
estabelecer contato. Depois, pediu que eu me virasse de frente e lentamente
abriu as minhas pernas. Vi quando ele pegou algo em uma pequena
prateleira e quando olhei, era um singelo vibrador bullet. Fiquei tensa na
hora. Miguel pediu que eu fechasse os olhos e eu obedeci.
Estava nervosa, mas depois de sentir vibrações nos ombros, nas
curvas da cintura e me arrepiar ao sentir os mamilos serem estimulados,
relaxei.
— Me diz se a intensidade está boa assim — pediu.
— Sim — murmurei.
Miguel demorou percorrendo a minha virilha, grandes lábios e
passando o vibrador por cima de meus pouquíssimos pelos, quase como se
não quisesse tocar a pele. Até que pedi:
— Mais.
Simultaneamente, a intensidade aumentou e o pequeno bullet tocou
a ponta do meu clitóris que estava duro, estendido, desejoso de mais
contato. Minhas pernas estavam o mais abertas possível. Eu gemia, ainda
que tentasse abafar as reações. Miguel continuava me estimulando com o
vibrador, enquanto apertava o bico dos meus seios. Meus quadris moviam-
se desordenadamente.
Sem ter mais como me conter, meu corpo começou a tremer. Meus
pés se curvaram quase como em câimbras, e meu abdômen se contraiu
como se pedisse clemência. Se existia um limite para a dor, também deveria
existir um limite para o prazer. Por um segundo, achei que fosse desfalecer
com aquele orgasmo tão intenso.
Quando olhei para Miguel, ele estava sorrindo, satisfeito.
— Agora é a minha vez — falei.
Foi a vez de Miguel deitar de bruços. Peguei um óleo corporal
exposto na prateleira e sentei em sua cintura com as pernas abertas, uma de
cada lado. Comecei massageando seus cabelos, a nuca, os ombros, o tórax,
desci massageando a cintura, a bunda, as coxas, as pernas e os pés. Pedi que
virasse de frente e massageei o peitoral e a barriga. Busquei seu pênis e
comecei a fazer movimentos suaves, de cima a baixo. O vapor da sauna o
deixava escorregadio, gostoso, e minha mão deslizava fácil, enquanto
Miguel gemia. Comecei a fazer movimentos mais intensos e sem ter mais
como resistir, coloquei todo o seu pau na boca, lambendo, sugando,
beijando, mamando. Não demorou muito para que ele gozasse na minha
boca.
Sem nada a dizer, Miguel sentou na espreguiçadeira e eu me
coloquei por cima dele. Eu me movia com sutileza, encaixando-me no ritmo
frenético de nossos corpos escorregadios. Não consegui me segurar e gozei
mais uma vez. Poucos segundos depois, também ele veio, de novo.
E de novo, de novo, de novo... Num desejo que parecia não ter fim.
CAPÍTULO 14

Era sério que eu ia matar a Thaís. Ela não tinha esse direito. Letícia
estava tão feliz, e aquela “infeliz” quase estragou tudo. Quase, porque eu
consegui consertar a merda a tempo.
Quando saímos da festa e chegamos na cobertura, também quase
deu outra merda. Onde eu estava com a cabeça quando pensei em passar a
noite lá? Deveria ter ido para um hotel, mas quando eu me dei conta, já era
tarde. Estava acostumado a ir direto para lá sempre que ia para São Paulo.
Era automático. Esse negócio de subconsciente era foda mesmo.
Sem querer, tive que contar mais uma mentira para Letícia. Não
podia dizer para ela que aquela cobertura pertencia a minha família, mais
precisamente ao meu avô. Senti que ela ficou desconfiada, mas falei que era
de um amigo e deu tudo certo. A única verdade que contei, foi que morei ali
durante todo o período em que fiz a faculdade de medicina.
Minha “Fadinha” ficou deslumbrada com tudo o que via. Realmente
a vista da cidade era deslumbrante. Enquanto a agarrava por trás, fiquei
imaginando todas as loucuras que faria com ela ali. Queria trepar com ela
em cada canto daquele lugar.
Sem mais mimimi, a peguei no colo e a levei até o terraço. Liguei a
sauna e comecei a despi-la devagar. Logo, ela estava nua e linda à luz do
luar. Também tirei toda a minha roupa e mergulhamos juntos. Letícia ficou
insegura pois não sabia nadar, mas a segurei no colo e ela ficou boiando em
meus braços. Depois de muitos beijos, abraços e amassos, fui com ela até a
sauna e fiz uma massagem em todo o seu corpo. Minhas mãos deslizavam e
ela gemia. Peguei na prateleira um vibrador e comecei a estimular seu
clitóris. Letícia teve um orgasmo tão intenso que ficou exausta, molinha,
mas assim que se recuperou falou:
— Agora é a minha vez.
Ela pegou um óleo e, com suas mãos de fada, começou a massagear
o meu corpo. Depois, foi se encaixando em mim, chegando devagar com
pequenos beijinhos pelo meu pescoço e orelha, arrancando-me suspiros.
Como sabia que eu estava prestes a explodir, desceu novamente, torturando-
me com a língua, primeiro lambendo diretamente na glande, fazendo eu ter
um espasmo com as pernas. Depois beijou minha virilha devagar e foi
alternando entre a glande e a virilha, até que me entreguei por completo a
sua língua e ao calor da sua boca. Letícia mamava tão firme o meu pau, que
uma nova onda de prazer subiu pelo meu corpo e desaguei diretamente
naquela boca. Ela engoliu tudo, até a última gota.
O desejo não cessava. A tensão sexual só aumentava. A peguei
firme e ela sentou no meu colo. Letícia cavalgava sobre mim, levando-nos à
loucura. A explosão aproximava-se novamente e nossos corpos entraram
num completo êxtase. Corpos em brasa, orgasmos arrebatadores, beijos
ardentes, línguas entrelaçadas, lambidas sensuais, entrega total.
Letícia despertava em mim um desejo selvagem, insaciável. Ficava
impressionado comigo, com as minhas reações. Era como se só ela
soubesse me amar, só ela soubesse me tocar. Não só o meu corpo, mas
sobretudo a alma.
Dormimos cansados, corpos colados, entrelaçados. Quando acordei,
não encontrei Letícia ao meu lado na cama. Quando desci, ela estava na
cozinha, vestindo apenas a minha camisa, os cabelos presos em um coque
frouxo, preparando o café. Fiquei alguns segundos sem me revelar,
observando aquela cena linda. Quando ela se virou e me viu, abriu um
sorriso maravilhoso.
— Bom dia, meu amor — falou.
— Bom dia. O que você está fazendo, “Fadinha”?
— Troco a informação por um beijo.
Me aproximei e a agarrei cheirando o seu pescoço.
— Ah, é assim?
— É assim.
— Você não precisa barganhar nada. Tem tudo de mim.
— Tudo?
— Meu corpo e minha alma.
Demos um beijo apaixonado. A ergui para que ela pudesse ficar
sentada na bancada e me coloquei entre as suas pernas.
— Está com fome? — perguntou.
— De você. Tem uma banheira com água quentinha, cheia de
espuma esperando por nós.
— Ah, Miguel.
Comecei a acariciar as suas coxas, enquanto Letícia se esfregava
cada vez mais para sentir toda a pressão do meu corpo junto ao dela.
— Vamos subir, amor — disse ansioso. — Hoje eu quero esquecer
do mundo e aproveitar você toda. Não quero lembrar de mais nada, só sentir
tudo de bom que você tem para me entregar. Vamos fechar as cortinas,
desligar os telefones e morrer para o mundo. Nada pode nos interromper.
E assim ficamos. O dia inteiro nos amando, vivendo em uma
cumplicidade que eu nem sabia ser possível existir. Com o coração leve e a
alma renovada, retornamos. Letícia não conheceu São Paulo, mas também
não reclamou. Prometi que assim que fosse possível, voltaríamos. Prometi
que mostraria a ela tudo. Mostraria a ela o mundo.
Depois de deixá-la na porta do “Perfect Village”, fui direto para
casa, como sempre divagando. Eu tinha que encontrar uma forma de contar
toda a verdade a Letícia sobre quem eu era e sobre a minha família. Aquilo
estava me atormentando. Nosso relacionamento estava ficando cada dia
mais sério, e eu não queria que a confiança que ela depositava em mim
acabasse.
Talvez, esse meu receio em contar a verdade para ela por causa do
meu avô, fosse completamente infundado. Meu avô nunca gostou de
interagir com ninguém. Sempre foi um homem arredio. Seu único interesse
sempre foi a família e o trabalho. Na época em que eu ainda o visitava, as
pessoas comentavam que ele ficava o dia inteiro trancado em sua suíte,
lendo e esquecendo do mundo lá fora. Talvez Letícia nem o conhecesse e
nunca ligaria o meu nome ao de Raul Hernandez.
Era isso! Assim que Letícia entrasse para a faculdade, eu iria contar
a ela toda a verdade: que eu era rico, na verdade milionário e que era o dono
da clínica. Depois arranjaria um estágio para ela e a colocaria para morar
em um dos inúmeros imóveis que minha família possuía, espalhados pela
cidade. O importante era que ela saísse daquele emprego o quanto antes, e
que nunca soubesse que meu avô era um dos residentes do “Perfect
Village”. Se um dia ela perguntasse, eu manteria a versão de que ele morava
na Espanha.
Quando cheguei em casa, minha mãe estava me aguardando.
— Você vai me dizer quem é essa mulher com quem você anda
saindo?
— Outra vez essa história, mãe? Eu não quero que ninguém se meta
na minha vida.
— Se é assim, da próxima vez que você for com ela para a capital,
leva essa vadia para um motel e não para a nossa cobertura.
— Primeiro, que ela não é nenhuma vadia; e segundo: quem anda
passando informações da minha vida para você?
— Eu já falei, Miguel. Eu tenho os meus contatos. Nada acontece
sem que eu fique sabendo, ainda mais quando se trata de pessoa da minha
família. O que eu não posso admitir é que um médico renomado como você
ande por aí na companhia de qualquer uma, a levando a um casamento onde
até o nosso prefeito estava presente.
— Ah, tá. Agora entendi... A sua fonte é a fofoqueira da Diana, a
primeira dama?
— Ela apenas comentou comigo que o viu acompanhado de uma
moça e me perguntou quem era, pois nunca a viu em nenhum evento na
nossa sociedade e ficou curiosa para saber o sobrenome dela e de quem era
filha.
— E qual o interesse dela em saber o sobrenome dela e de quem ela
é filha? Pois saiba que ela não é filha de ninguém!
— Era exatamente isso o que eu temia. Ela é uma qualquer.
— Ela não é uma qualquer, mãe. Ela é a pessoa mais doce, gentil,
generosa e amorosa que eu conheço. Uma mulher maravilhosa, um exemplo
de pessoa.
— Você está apaixonado, Miguel?
— E se eu estiver?
— Miguel, você pode sair e se divertir com qualquer garota, mas
para assumir um compromisso, você precisa ser mais seletivo. Não vai
aparecer aqui com uma pessoa de classe social inferior. Isso seria uma
vergonha.
— Olha, eu cansei! É muita ignorância, muita presunção. Eu só
lamento que você tenha uma mentalidade tão distorcida, que você seja uma
pessoa tão frívola, com uma visão tão superficial do mundo e do ser
humano.
— O que é isso, Miguel? Vai me atacar agora? Eu estou
desconhecendo você. É isso que dá se envolver com gentinha.
— Eu só vou te dar um aviso, mãe. Não se mete mais na minha
vida, ou você vai se arrepender.
Subi para o meu quarto. Acho que estava na hora de deixar aquela
casa, gerir a minha própria vida. Assim que eu conversasse com Letícia e
contasse toda a verdade a ela, eu me mudaria da mansão. Iria morar junto
com ela em um dos apartamentos disponíveis, e assumir de vez a nossa
relação.
CAPÍTULO 15

Quando voltei ao trabalho, todos os amigos estavam ansiosos para


saber como havia sido o casamento. Contei com detalhes tudo sobre a
cerimônia, a festa, a linda decoração, a elegância das pessoas, as comidas e
bebidas, a música, a dança, e, como não podia deixar de ser, sobre o meu
amor: Miguel.
Quando me perguntaram o que eu havia achado da capital de São
Paulo, fiquei sem graça e comecei a inventar coisas. Lisete me olhava rindo,
pois percebeu que eu não conheci nada, já que não havia saído do quarto
com Miguel. Tinha sido uma verdadeira lua de mel.
Eu estava muito apaixonada. Parecia que minha vida tinha ganhado
um novo sentido. Parecia que eu era feita de desejos. Estava totalmente
entregue a ele, entregue ao prazer que ele me proporcionava. Entregue a sua
devassidão. Meus pensamentos voavam ao pensar nele. Meu corpo ficava
trêmulo, ansioso por ele.
Meu celular vibrou anunciando uma mensagem:
Miguel: Mal posso esperar para tirar a sua roupa com meus dentes e
sentir o seu gosto. Preciso de você. Sem roupa!
Só de ler aquilo, minha vagina ficou molhada, senti escorrendo o
mel pelas minhas coxas. Corri até o banheiro. O que estava acontecendo
comigo?
Desejei ele ali, me chupando lentamente, me mordendo, fazendo de
mim o fruto do seu desejo. Queria poder agora fundir o corpo dele com o
meu, percorrendo um caminho de puro prazer. E que caminho delicioso de
ser percorrido... Suor, saliva, cheiro, gosto, gozo. Ah, como era bom!
— Letícia, você está aí?
Era a voz de Lisete, batendo na porta do banheiro.
— Sim, Lisete. Eu já estou saindo.
Antes de abrir a porta, passei uma água pelo meu rosto, pescoço e
colo, para tirar aquela quentura que dominava todo o meu corpo.
— Letícia, o Seu Raul pediu que você fosse até a suíte dele.
— Ah, eu vou lá agora mesmo.
Bati na porta e ouvi a voz grave de Seu Raul pedindo que eu
entrasse.
— Bom dia! — disse, o abraçando.
— Bom dia, minha querida. Queria saber como você está.
— Eu estou ótima. A festa foi incrível.
Sem que ele pedisse, contei tudo sobre o casamento.
— Que bom que você gostou e foi feliz. O seu namorado a tratou
bem?
— O Miguel é maravilhoso, Seu Raul. Um perfeito cavalheiro. Nós
dançamos, nos divertimos e depois, passamos a noite em uma cobertura
maravilhosa, em São Paulo.
— Cobertura?
— Sim. Um amigo do Miguel está passando uma temporada na
Europa e pediu que ele tomasse conta da cobertura dele. O senhor tinha que
ver. Eu fiquei impressionada com tanto luxo, conforto e beleza.
— Ele disse a você que a cobertura pertencia a um amigo...
— Sim, inclusive o Miguel morou lá enquanto fazia a faculdade de
medicina. Olha como ainda existem pessoas boas, Seu Raul. Durante todo o
tempo em que o Miguel morou em São Paulo, esse amigo o acolheu. Isso
sim é uma verdadeira amizade.
Levei um susto quando Seu Raul, que estava sentado em sua
escrivaninha, deu um soco na mesa e exclamou:
— Mentiroso!
— O quê?! Seu Raul...
Ele estava vermelho e se levantou possesso, andando de um lado
para o outro.
— Ele não vai fazer isso com você. Eu não vou deixar!
— Como assim, Seu Raul?
— Esse homem é um mentiroso que só quer se aproveitar de você.
— Não, Seu Raul. O Miguel é um homem sincero e honesto.
— Ele já levou você para conhecer a família dele?
— Não, mas...
— E por que não?
— Por falta de oportunidade. Ele mora com a mãe, que é viúva, e
aos domingos, que é o único dia que eu tenho folga, a mãe dele vai à missa
e se reúne com as amigas.
— Meu Deus! — Seu Raul parecia inconformado. — Letícia, eu te
peço, termine esse namoro.
— Seu Raul, o senhor sabe que eu o considero demais, mas eu não
vou fazer isso. Eu estou apaixonada pelo Miguel. Ele também está
apaixonado por mim.
— Esse tipo de homem não se apaixona por ninguém, Letícia. É só
fingimento.
— Seu Raul, assim que vocês se conhecerem...
Ele me interrompeu dizendo:
— Ótimo. Marca com ele. Diz que eu quero conhecê-lo. Ter uma
conversa de homem para homem.
Me pendurei no pescoço de Seu Raul, e beijei seu rosto várias vezes,
emocionada.
— Obrigada. Ninguém nunca se importou comigo desse jeito. Eu
vou marcar sim. Ele vai vir aqui, e eu tenho certeza que vocês vão se
adorar.
Ele só assentiu com a cabeça.
— Agora eu tenho que trabalhar.
Me despedi e o deixei sozinho. Peguei meu celular e respondi a
mensagem de Miguel.
Eu: Faz de mim o que quiser.
O dia passou, e ele não respondeu. Devia estar atarefado com o
trabalho. Só na noite seguinte é que nos encontramos. Miguel nos levou
direto para um motel. Depois de matarmos toda a saudade e o tesão, falei
com ele sobre o encontro com o Seu Raul:
— Miguel, eu já comentei com você que eu tenho um grande amigo
no Perfect Village, lembra?
— Eu devo ter ciúmes desse amigo?
Comecei a rir.
— Claro que não, meu amor. Ele é um dos internos, e nós nos
apegamos muito um ao outro. Para você ter uma ideia, ele me chama de
“minha neta”. É um senhor maravilhoso e tem uma história de vida bem
dramática.
— Mas se está internado lá, deve ser rico.
— Isso é o que menos importa. O importante é que ele quer te
conhecer.
— Me conhecer? A troco de quê?
— Ele quer saber se você é uma boa pessoa e se me merece, saber
das suas reais intenções comigo, tipo um avô de verdade, sabe? Para mim
seria muito importante que você fosse. Eu o considero como se fosse
alguém da minha família.
— Eu vou.
— Jura? — O abracei feliz. — Podemos marcar no domingo, dia da
minha folga?
— Sim. Eu pego vocês lá e a gente almoça em algum lugar legal.
— Não, Miguel. Ele é um dos internos e só pode sair com a
autorização da família. Como ele não tem ninguém, esse almoço vai ter que
ser lá mesmo.
Ele ficou um pouco pensativo, mas acabou concordando.
— Está marcado.
Dei vários beijos no meu amor. Ele não fazia ideia do quanto aquilo
era importante para mim.
A semana passou rápido. No sábado, confirmei com Miguel o nosso
almoço e também com Seu Raul, que parecia desconfiado.
No domingo, amanheci alegre. Coloquei um vestido leve de estampa
floral, e me preparei para o almoço. Ao meio-dia, bati na porta de Seu Raul.
Ele também estava todo arrumado, de roupa social. Lindo demais.
— Qual foi o horário que você marcou? — perguntou.
— Marquei 12h30. Ele já deve estar chegando.
— É bom que ele não se atrase. Eu não gosto de almoçar tarde.
— Enquanto ele não chega, vamos dar uma volta pelo jardim? O
senhor está muito bonito para ficar trancado no quarto — sugeri.
Ele me deu o braço e fomos caminhando.
12h30.
12h45. Resolvi ligar. Caixa postal.
13h00.
— Vamos almoçar, Letícia. Ele não vem.
— Ele só se atrasou, Seu Raul. Ele vem sim.
— Não. Ele não vem. Eu já sabia. — disse Seu Raul.
Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu não podia acreditar que
Miguel fez uma desfeita dessas comigo. Liguei novamente. Caixa postal.
Nesse momento, as lágrimas já caíam dos meus olhos em abundância.
— Desculpe, Seu Raul, por fazer o senhor esperar. Pode ir almoçar.
— Você não tem do que se desculpar, e eu vou almoçar com você.
— Eu não quero, estou sem fome — falei soluçando.
Seu Raul me abraçou, dizendo.
— Minha querida, não deixe ninguém maltratar você assim. Não
desperdice o seu tempo com quem não te merece.
— Deve haver alguma explicação, Seu Raul.
— A única explicação é que cada pessoa oferece aquilo que tem.
Tenha cuidado. Quando a gente precisa cobrar o básico em um
relacionamento, tem alguma coisa errada.
— Eu vou para o meu quarto. Desculpe mais uma vez por ter feito
o senhor perder o seu tempo, o seu horário de almoço...
— Está tudo bem, Letícia.
Fui para o meu quarto e chorei. O que estava acontecendo? Será que
Seu Raul tinha razão? Não liguei mais. Acabei adormecendo. Acordei com
o meu celular tocando.
— Letícia, me perdoa.
Fiquei em silêncio, esperando que ele falasse.
— Amor, eu já estava saindo para ir ao seu encontro, mas a minha
mãe começou a passar muito mal. Eu tive que levá-la ao hospital, e fiquei
tão preocupado, que acabei esquecendo do nosso compromisso.
Meu Deus! Coloquei a mão no peito e perguntei:
— E como ela está?
— Agora está bem. Foi uma crise de hipertensão. Um grande susto.
— Ah, Miguel. Eu pensei em tanta coisa...
— Eu sei, meu anjo. Pede desculpas também a esse senhor, o seu
“avô”. Não vai faltar oportunidade para nos conhecermos.
— Tá bem, Miguel. Agora vai descansar, porque você deve ter tido
um dia horrível.
— Sem você, meu dia sempre é horrível. Eu te amo.
— Eu também te amo muito.
Nos despedimos com várias juras de amor.
Nos dias que se seguiram, Seu Raul não perguntou mais nada sobre
Miguel e eu também não fiz nenhum comentário. Quando nos
encontrávamos, ele me ajudava nos meus estudos. A prova do vestibular
estava se aproximando, e todas as tardes nos reuníamos para que ele me
ajudasse a estudar português e também espanhol, idioma que falava com
perfeição. Depois, ele me contou que nasceu na Espanha, e veio para o
Brasil ainda jovem. Toda semana, eu fazia uma redação para treinar a
escrita. Ele dava o tema, eu desenvolvia e depois ele corrigia. Ele me
ajudava demais.
Miguel, como médico, também sempre tirava as minhas dúvidas
sobre Biologia. Era engraçado, porque, aos domingos, passávamos o dia
juntos para namorar, mas ele sempre reservava um tempo para me ajudar
nessa matéria.
Em um domingo a tarde, assim que chegamos ao motel, Miguel
começou a me beijar e propôs:
— Vamos fazer um quiz de biologia. A cada erro, você tira uma
peça de roupa. Combinado?
— Sim.
— Vamos à primeira pergunta: Qual organela é responsável pela
respiração celular?
— Mitocôndrias — respondi.
— Os três componentes de uma célula são...
— Fácil. Membrana plasmática, citoplasma e núcleo.
Comecei acertando todas, mas depois decidi errar de propósito para
entrar de vez na brincadeira:
— Nucleotídeos formam ácidos nucleicos, que são monômeros, cuja
estrutura é formada por uma:
— Ribose — respondi.
— Absolutamente errado! — disse rindo. — A resposta correta é
Pentose, uma base nitrogenada e um grupo de fosfato. Pode ir tirando uma
peça da sua roupinha, meu bem.
E assim foi. Mesmo sabendo a resposta correta, eu errava
propositalmente até ficar completamente nua. Sem nenhum pudor,
supliquei:
— Vem! Me beija, me morde, me chupa, me lambe, me come. Me
faça sua. Quero que você me tire do sério, seja a minha insanidade, me
deixe completamente louca.
Miguel me olhou com os olhos cheios de fome, veio até mim e me
beijou, acendendo ainda mais o meu desejo. Me jogou na cama e beijou
meu pescoço, meus seios, sugou meus mamilos e voltou a me olhar nos
olhos. Abriu minhas pernas e desceu, deixando uma trilha de beijos
molhados na minha barriga e finalmente chegou lá, onde meu sexo se
dissolvia em líquidos quentes, e exalava o cheiro da minha excitação.
— Isso, amor. Mete a língua e me prove toda.
Assim, fui devorada, numa gula que parecia não ter fim.
Chegou o grande dia da prova. Na véspera, fiquei muito nervosa,
mas Seu Raul tratou de me acalmar. Ele disse que eu tinha que estar
confiante, pois era muito inteligente e capaz. As provas foram em dois
domingos consecutivos, e Miguel fez questão de me levar e me buscar no
local da prova. Ao final, fiquei aliviada. Parecia que eu tinha tirado um peso
das costas. Agora, seria só o tempo de aguardar o resultado. Seja o que
Deus quiser!

O ano parecia voar. O aniversário de Miguel se aproximava.


Dezenove de novembro. Apesar de cair em uma sexta-feira, não iríamos nos
ver. Infelizmente, Miguel estava escalado para dar plantão no hospital, e
não teria como escapar. Prometeu que no domingo iríamos comemorar
juntos. Comprei para ele um boné de presente e um par de meias. Ele
gostava de correr no parque, e achei que aquilo nunca era demais.
No dia do aniversário, mandei uma mensagem no seu celular logo
cedo, e depois liguei para dar os parabéns e reafirmar o quanto eu o amava.
Miguel lamentou não poder passar essa data tão importante comigo. Eu
também estava triste, mas não tinha o que fazer. Conversando com Lisete,
ela comentou:
— Plantão no dia do aniversário, ninguém merece!
— Mas trabalho é trabalho, amiga.
— “Fadinha”, por que você não faz uma surpresa para ele? Eu te
ajudo a fazer um bolo, e você leva para ele cantar parabéns junto com os
amigos no plantão.
— Que ideia maravilhosa, Lisete. Eu nem tinha pensado nisso.
Podemos preparar o bolo na hora do almoço para não atrapalhar o nosso
serviço. Quando acabar meu expediente, eu levo no hospital.
E assim fizemos. Um bolo de chocolate, com recheio de brigadeiro e
nozes. Ficou lindo demais. Com certeza Miguel ia adorar.
Às seis da tarde, fui para o meu quarto me arrumar, peguei o bolo, a
sacola com o presente, e fui até o hospital. Cheguei na recepção e perguntei
sorridente:
— Boa noite, eu gostaria de falar com o Doutor Miguel.
— Ele não veio hoje.
— Ah, deve estar havendo algum engano. Hoje é o plantão dele.
A recepcionista verificou no computador, e depois disse:
— Realmente, ele estava escalado para o plantão, mas deve ter
trocado. Quem está atendendo na ortopedia hoje, é o Doutor Fernando.
Fiquei paralisada, olhando para a recepcionista sem reação, com o
bolo e o presente na mão. Seria possível? Nesse momento Thaís, a
enfermeira maldosa, surgiu na recepção. Ela pediu um documento para a
recepcionista e quando me viu, falou com deboche:
— Ora, ora! Olha só quem eu encontro aqui: a namoradinha do
“Doutor Sedução”! Mas, o que é isso em suas mãos? Um bolo?
Ela riu estridentemente.
— Ah, tadinha! Sinto muito em ter que lhe informar que quem levou
o bolo foi você, gatinha. A essa hora, o Miguel está se divertindo na festa
de aniversário programada há dias na casa dele, e, pelo visto, ele não
convidou você, “a namorada”. Mas eu bem que tentei te avisar: ele enjoou.
Do jeito que eu conheço o Miguel, a fila já deve ter andado.
O chão se abriu sobre os meus pés.
CAPÍTULO 16

Estava muito certo e em paz com a minha decisão de contar toda a


verdade a Letícia sobre mim assim que ela entrasse para a faculdade.
Também planejava me mudar da mansão e assumir de vez a nossa relação.
Minha “Fadinha” merecia isso. Eu merecia isso. Tudo em nós era único,
intenso. Desde o olhar até o beijo. Letícia chegou sutilmente na minha vida
e arrebatou tudo. Seu jeito tímido, o sorriso fácil, sua disposição para o
mundo. Deixei-me levar e, sem esforço, eu já estava totalmente entregue a
ela. Entregue a sedução.
A amava com toda intensidade. Ela era única, mas também era
muitas. Estar com ela nunca era igual. Durante a semana, eu sempre a
provocava através de telefonemas, chamadas de vídeo e mensagens.
Gostava de atiçar, de deixá-la com água na boca e cheia de tesão. Já que só
nos víamos aos domingos, gostava de alimentar essa vontade nela, criar
expectativas e me fartar com as consequências. Provocava a mente e depois
me saciava com o corpo. A sedução estava sempre presente.
Era a pele que ficava quente, o corpo que fervia ao mínimo toque,
um desejo animalesco que não conseguíamos superar. A urgência, a
necessidade, os beijos intensos que chegavam a queimar a pele, as
respirações descompassadas, o desejo que se tornava selvagem. Nunca
precisávamos dizer nada. Sabíamos exatamente o que nossos corpos
queriam e precisavam. Sem censuras, sem amarras, sem controle.
Na cama não havia leis. Apenas ela, eu e o prazer. Ela dizia: “vem
amor” e eu obedecia. Duro, ereto. E em uma só estocada eu me afundava
nela. A boceta quente e úmida me recebendo, me sugando, se esfregando.
Os gemidos que se soltavam e os corpos que se batiam em uníssono. As
mãos que agarravam os meus cabelos e com toda vontade entrava em um
ritmo alucinante. Ficava perdido e rendido. Nada se comparava a ela.
Certo dia, ela veio com uma conversa esquisita. Disse que tinha um
velho que ela considerava muito, e que queria me conhecer. Estranhei. Que
porra era aquela? Aí ela disse que como não tinha família, o tal velho era
como se fosse o seu avô, e queria saber quais eram as minhas intenções para
com ela. Na hora que ela disse isso, eu segurei o riso, pois fiquei
imaginando a cara do velho quando eu lhe dissesse:
Sabe o que eu quero com a sua netinha? Fazer muitas maldades.
Rasgar a roupa dela, a deixar nua. Depois amarrar, amordaçar, vendar e
castigar, dando muitas palmadas naquela bunda redonda. Quero o corpo
dela na minha boca, me lambuzar de tanto mamar aquela bocetinha
gostosa, quentinha e gulosa que ela tem. A jogar de quatro na cama e
comer ela em todas as posições, até fazer ela gozar gritando o meu nome.
Letícia me tirou do transe, e eu respondi sem pensar:
— Eu vou.
Ela ficou extremamente feliz. Pensei em pegá-los no domingo para
irmos a um restaurante na cidade, mas quando ela disse que o velho não
podia sair do asilo, a coisa pegou. Eu não podia almoçar com eles lá e
correr o risco de dar de cara com o meu avô. Mesmo assim, confirmei.
Depois eu arrumaria uma desculpa. “Desculpa de médico”.
No dia marcado, fiquei com um tremendo sentimento de culpa, mas
não tinha jeito. Nem atendi as suas ligações. Quando mais tarde liguei para
ela, a senti triste, decepcionada. Aí disse que minha mãe havia passado mal,
e mais uma vez consegui contornar a situação. Ela ficou até com pena, por
eu ter vivido um “drama”. Minha “Fadinha” era um ser humano incrível.
Uma em um milhão.
Letícia estava muito empenhada nos estudos. Era muito esforçada.
Por ter vivido a vida inteira em um abrigo, teve uma educação muito
precária, sem grandes oportunidades e, apesar de inteligente, tinha muita
dificuldade. Como fazia um curso online, não tinha com quem tirar as
dúvidas e eu fazia questão de ajudá-la do jeito que podia.
Sempre quando nos encontrávamos aos domingos, eu reservava um
tempo para tirar as suas dúvidas. Para que a coisa não ficasse muito
maçante, eu sempre usava jogos de prazer. Letícia adorava essas
brincadeiras. Eu fazia a pergunta e, se ela errasse, era vendada, amarrada,
ou levava muitas palmadas na bunda. Se acertasse, tinha direito a massagem
erótica, uso de vibradores e lubrificantes sensoriais.
— Vem. Quero te ensinar um jogo novo.
— Qual?
— O jogo da paciência. Se você acertar, eu faço o que você quiser.
Se você errar, eu te provoco até você perder os sentidos, mas você não vai
poder gozar.
— Isso não se faz, Miguel.
— É só você acertar tudo, amor.
Na primeira vez em que ela errou, eu comecei a provocá-la com a
minha língua dançando na curva de sua orelha. Depois chupei seus mamilos
durinhos e assoprei, deixando sua pele toda arrepiada. Quando errou
novamente, aproximei a sua boceta encharcada no meu pau duro,
deslizando de cima a baixo, sem penetrá-la. O mel escorria, Letícia gemia,
se contorcia. Eu insistia nas perguntas, e ela respondia qualquer coisa,
totalmente sem nexo. Desci abrindo mais as suas pernas. Lambi a virilha,
abri a bocetinha com os meus dedos e apenas assoprei, sem lamber e nem
chupar. Quando ela tentava colocar a mão para se masturbar, eu não
deixava. Prendia seus braços e continuava com a tortura.
— Chega, amor. Me come de uma vez. Eu estou explodindo.
— Pede mais. Eu quero ouvir você implorando.
— Me come, amor. Enterra esse pau em mim.
— Isso. É assim que eu gosto de você. Atrevida.
E era assim. No ar, o cheiro de sexo. Na pele o sabor do pecado. A
vida sem um toque de luxúria e perversão não era vida.
Quando a levei para casa, ela disse:
— Mesmo sem me tocar, você desperta as melhores sensações no
meu corpo.
— Minha “Fadinha”, você não faz ideia do quanto eu te desejo.
Quando chegou o dia tão esperado da prova, Letícia ficou nervosa.
Achava que não ia dar certo, que não iria passar. Tentei animá-la. Fui levá-
la e buscá-la ao local da prova. Eu acreditava muito na sua capacidade, e
tinha certeza de que ela iria passar. Todo o esforço dela valeria a pena. E
depois, eu teria a recompensa de tê-la como minha estagiária na clínica e
morando junto comigo. Não via a hora disso acontecer.
Estava na clínica, no quarto de um dos pacientes que havia passado
por uma cirurgia, quando Dagmar, minha secretária, disse que minha mãe
estava me aguardando no meu consultório. Fui até lá.
— Oi, mãe.
Me curvei para beijar o seu rosto.
— Oi, filho. Eu vim aqui, porque agora eu mal vejo você. Nem nas
suas horas de folga nos vemos mais...
— Eu estou sempre aqui ou no hospital, mãe. Chego tarde, saio
cedo...
— E ainda tem que dar atenção a essa namorada que eu nem sei
quem é.
Começou...
— Então, a que devo essa visita?
— Você está muito mudado, Miguel. Mas eu vim aqui para falar
sobre o seu aniversário que é daqui a duas semanas. Até agora, você não me
disse o que pretende. Você sabe que eu não gosto de deixar as coisas para a
última hora. Gosto de organizar tudo com antecedência. Como vai cair na
sexta-feira, estava pensando em um jantar informal, à beira da piscina. Eu
contrataria um buffet elegante para as pessoas se servirem e aquele seu
amigo DJ para animar a pista de dança. O que você acha?
— Nesse dia eu tenho plantão no hospital, mãe.
— É só trocar o dia do seu plantão. Não é a primeira vez que você
faz isso. E então? Posso organizar tudo e pensar na lista de convidados?
— Pode.
— Eu só te peço para que não traga essa fulana com quem você está
saindo para dentro da nossa casa. Eu vou convidar pessoas influentes e de
classe. Não quero me aborrecer.
— Ela não vai, mãe. E sabe por que? Porque eu não quero vê-la se
misturando com essas “pessoas influentes e de classe”. Definitivamente ela
não merece isso.
— Antes, você não me respondia assim. Essa mulher está sendo
uma péssima influência para você. Mas eu sei como resolver isso.
Eu ri. Minha mãe era a soberba em pessoa.
Depois que ela foi embora, fiquei pensando em como eu iria
resolver mais esse embrolho. Letícia já havia me perguntado o que nós
faríamos no aniversário, e eu disse que iria pensar. Infelizmente, teria que
adicionar mais uma mentira à minha coleção.
— Amor, eu fui escalado para o plantão no dia do meu aniversário
— disse.
— Ah, Miguel. Isso não se faz! Eu queria tanto estar juntinho de
você. Aniversário é a data mais importante do ano.
— Eu sei, meu amor, mas vamos fazer uma coisa melhor. Meu
aniversário cai na sexta-feira. Eu vou trabalhar e, no sábado, depois que o
seu expediente acabar, eu pego você e vamos para São Paulo. Podemos
ficar na cobertura do meu amigo, e no domingo eu levo você para conhecer
tudo. Que tal?
— Eu vou amar.
Ufa! Resolvido. Era fácil trocar o plantão. Coloquei um dos
residentes no meu lugar, e pronto.
Na sexta-feira pela manhã, meu aniversário, Letícia me mandou
uma mensagem no celular:
Letícia: Meu amor, hoje agradeci a Deus pelo dom da sua vida, por
tudo que você é, por toda a sua determinação, sua preocupação em ser
melhor a cada dia, sua honestidade, sua verdade, seu jeitinho carinhoso e
único ao cuidar dos seus pacientes e das pessoas em geral, do seu sorriso
lindo! Um brinde aos seus trinta e um anos; e uma prece: Que os seus dias
sejam de muitos sorrisos, e que em todos eles eu esteja ao seu lado,
comemorando junto a você. Te amo infinito e além.
Depois, ela me ligou cantando parabéns, e lamentando por não
poder estar comigo. Fechei os olhos e jurei para mim, que a partir daquele
dia, todos os nossos aniversários passaríamos juntos.
Minha mãe tinha vários defeitos, mas uma coisa que ela sabia bem,
era organizar um evento. Estava tudo impecável. Às oito da noite, os
convidados já estavam chegando. Além das pessoas “influentes e de
classe”, meus amigos todos foram, e eu me animei.
Estava num papo animado com os gêmeos Greg e Cauã, quando
Fausto, Vitor e Jaime chegaram com suas esposas. Eles me abraçaram e a
primeira pergunta que Tati, esposa de Fausto fez, foi:
— Onde está a Letícia, Miguel?
Fiquei sem graça e respondi.
— Ela tinha um compromisso de trabalho e não pôde vir.
— Poxa, que pena. Logo no seu aniversário...
— Pois é.
Fausto me olhou desconfiado, mas não fez nenhum comentário.
Estávamos conversando e bebendo animados, quando minha mãe surgiu
dizendo:
— Miguel, eu tenho uma surpresa para você.
— Que surpresa?
Ela nem precisou responder. Quando olhei, não acreditei.
— Susana! — exclamei.
Isso sim era uma grande surpresa! Parecia uma visão, mas era ela
mesma. Susana, minha primeira namorada. Linda e maravilhosa em um
vestido branco deslumbrante. Ela se aproximou e nos abraçamos felizes.
— Parabéns, Miguel.
— Susana... Deixa eu olhar para você.
A peguei pelo braço, e ela deu uma voltinha. Meu Deus! Quantos
tempo havia passado? Quatorze anos? Susana Fischer era minha vizinha.
Sua família morava na mansão ao lado da nossa, e crescemos praticamente
juntos. Foi a minha primeira paixão.
Descendente de alemães, ela me fascinava com seus cabelos
dourados e seus olhos azuis. Durante a nossa infância e adolescência, não
nos desgrudamos. Meu primeiro beijo, minha primeira transa e meu
primeiro amor. Sofri demais quando sua família se mudou em definitivo
para a Alemanha. Tínhamos dezessete anos, e passamos dois anos nos
comunicando todos os dias através da internet.
Quando fui para São Paulo fazer a minha faculdade de medicina,
conheci outras mulheres, e me desliguei um pouco daquela paixão. Quando
fiz especialização na Espanha, chegamos a nos encontrar umas duas vezes,
mas depois eu conheci Martina, e fiquei com ela até voltar para o Brasil. E
agora ela estava ali. Susana...
— Miguel, você não mudou nada. Aliás, está mais bonito, mais
másculo com essa barba.
— E você também continua a mesma. Uma verdadeira princesa
nórdica. Linda demais.
Susana era bióloga, e disse que veio ao Brasil participar de uma
conferência sobre o meio ambiente. Passamos o resto da noite juntos,
conversando. Parecia que o tempo não havia passado. Rimos, dançamos,
curtimos. Foi lindo, foi mágico, mas na hora de cantar parabéns, soprar a
vela e fazer um pedido, fechei os olhos e pensei na minha “Fadinha”,
mentalizando que tudo desse certo, que o nosso amor pudesse ser mais forte
do que qualquer coisa e que ficássemos juntos para sempre.
No dia seguinte acordei tarde. Quando desci, encontrei Susana na
mesa junto com minha mãe tomando o café da manhã. Estranhei. Sorrindo,
dei um beijo na testa de cada uma delas.
— Bom dia.
— Bom dia, meu filho. Eu convidei a Susana para ficar hospedada
aqui em casa durante a permanência dela no Brasil.
— Ótimo, mas essa conferência que você vai participar, não é em
São Paulo? — perguntei.
— Sim, mas é só na próxima semana. Enquanto isso, eu fico aqui,
matando a saudade de vocês.
Minha mãe sorria e, naquele momento, eu percebi a sua grande
armação.
— Fico feliz que você fique aqui, Susana. Sinta-se à vontade.
— Obrigada, Miguel.
— Bem, apesar de ser sábado, eu vou ter que dar um pulo na clínica.
— Posso ir com você? — Susana perguntou. — Sua mãe elogiou
tanto a clínica, que eu gostaria de conhecer.
— Claro. Eu só preciso fazer uma ligação antes de ir.
Saí da mesa, peguei meu celular e liguei para Letícia. Ela não
atendeu. Talvez estivesse ocupada cuidando dos seus velhinhos. Deixei
mensagem:
Eu: Não vejo a hora de estarmos juntos. A minha necessidade de
estar com você, chama-se urgência. Te amo, Fadinha.
Ela não visualizou. Fui para clínica e mostrei tudo para Susana que
ficou impressionada com tudo o que viu. Acabamos almoçando juntos em
um restaurante na cidade. O almoço foi ótimo, a conversa agradável, mas eu
ficava o tempo todo de olho no meu celular. Cadê ela?
Deixei Susana em casa e fui para o hospital. Tinha que verificar
como estavam alguns pacientes e assinar a alta de um deles. Quando
cheguei, Thaís veio ao meu encontro, me abraçando.
— Uma pena eu não ter conseguido trocar o meu plantão, Miguel.
Eu adoraria ter ido a sua festa — disse ela.
— Uma pena mesmo.
— Mas podemos comemorar hoje, na sala de descanso. Agora que
você não está mais com a novinha, nada impede de nos divertirmos.
— E quem foi que disse a você que eu não estou mais com a
“novinha”?
— Eu deduzi. Nem na sua festa de aniversário ela foi...
— E como você ficou sabendo disso?
— Porque, ontem a noite, ela esteve aqui procurando por você.
Tadinha. Eu juro que fiquei com pena. Tão inocente, com um bolo
confeitado na mão e um presentinho... Eu tive que contar a verdade, dizer
que você estava se divertindo na sua festa de aniversário e nem a convidou.
E a coitadinha achando que você estava no plantão. Isso não se faz, Miguel.
Você é um canalha, mentiroso!
Porra! Merda! Caralho! Puta que pariu!
CAPÍTULO 17

Eu não podia acreditar. Aquela mulher só podia estar inventando


aquela história. Como assim? Miguel nunca faria isso comigo. Ou faria? Há
muito eu vinha sofrendo em silêncio, prestando atenção aos sinais, mas o
amor era tanto, que eu me recusava a acreditar que havia algo errado.
Thaís deixou a recepção às gargalhadas. As lágrimas caíam dos
meus olhos em profusão, sem que eu conseguisse segurar. Me sentia triste,
humilhada, frustrada, decepcionada, burra.
— Você quer uma água?
A recepcionista perguntou, e eu neguei com a cabeça. Deixei o bolo
e a sacola com o presente no balcão da recepção, e saí. Segui até o ponto de
ônibus e fiquei ali. Um ônibus passou e eu não subi. E outro, e mais outro.
Fiquei ali, no ponto, sem ânimo e nem coragem para sair do lugar. Fiquei ali
por muito tempo, até que olhei para o celular e vi que já passavam das dez
da noite. Os ônibus iam parar. O mundo ia parar. O último ônibus da noite
chegou e eu subi. Paguei minha passagem e sentei no último banco.
Quando cheguei ao Perfect Village, o porteiro abriu o portão
dizendo:
— Letícia, eu só estava aguardando você chegar para trancar o
portão.
— Obrigada e boa noite — balbuciei.
Ao entrar no meu quarto, me joguei de bruços na cama e desabei em
lágrimas. Era como se o tempo tivesse parado, me prendendo em uma
cápsula, onde só existiam a minha dor e a espera por respostas. Eu me
permiti ficar ali, em silêncio, imersa naquele momento. E, exausta, acabei
adormecendo.
Acordei às cinco da manhã, tomei banho, coloquei o meu uniforme
e fui até o refeitório. Encontrei alguns internos que pediam a minha
atenção. Coloquei o meu melhor sorriso e fui atendê-los. Aquele era o meu
trabalho e eu precisava me dedicar. Era só o que me restava na vida. Lisete
apareceu e acenou para mim. Fiz um sinal com as mãos indicando que
conversaríamos depois. No momento, eu queria paz. Encontrei Seu Raul,
que beijou a minha testa e perguntou:
— Está tudo bem, Letícia?
— Sim — respondi.
— Letícia, não guarde as palavras, senão elas te sufocam. Se você
precisar desabafar, saiba que eu estarei aqui.
Peguei em sua mão e a beijei. Seu Raul era a melhor pessoa, mas eu
não estava preparada para falar. Mal sabia ele que as palavras já haviam me
sufocado.
Às onze da manhã, Miguel ligou. Como não atendi, enviou
mensagem:
Miguel: Não vejo a hora de estarmos juntos. A minha necessidade
de estar com você, chama-se urgência. Te amo, Fadinha.
Não demorou muito, veio outra mensagem:
Miguel: Está tudo preparado para o nosso final de semana de
comemorações? Estou ansioso demais.
Não respondi. Lisete se aproximou.
— “Fadinha”, você nem me contou como foi ontem. O Miguel
gostou da surpresa?
Olhei para ela e não consegui segurar mais. Caí em um pranto
convulsivo. Minha amiga me abraçou, perguntando:
— O que houve, Letícia?
— Ele mentiu.
— O quê? Como assim? Mentiu como?
— Ele disse que estava no plantão, mas era tudo mentira. Ele deu
uma festa de aniversário na casa dele e não me convidou.
— O quê?
— Lisete, eu estou destruída — disse soluçando.
— Me conta o que aconteceu.
Contei tudo a ela. Desde a hora em que cheguei no hospital, quando
a recepcionista confirmou que Miguel havia trocado o plantão, até o
momento em que Thaís apareceu e jogou o seu veneno.
— Tá, e por que você não foi na casa dele verificar se era verdade?
— Eu não sei onde ele mora...
— Ah, amiga. Eu não sei o que está acontecendo, mas você precisa
descobrir. Será que ele é casado?
— Isso não. Ele me levou ao casamento e me apresentou aos
amigos, lembra? Acho que ele tem vergonha de mim...
— Vergonha de quê, Letícia?
— Porque eu não tenho família, sou sozinha. Não tenho nem uma
casa para morar.
— Não pensa assim. Você não está sozinha. Você tem a mim, a Ana
Lúcia, o Seu Raul. Nós somos a sua família, Fadinha.
Abracei minha amiga. Ela continuou.
— Mas você precisa falar com ele, nem que seja para esfregar na
cara dele que você já sabe de tudo. Tem que confrontar ele, amiga.
— Talvez amanhã. Hoje eu não estou preparada.
Miguel ligava a cada dez minutos e enviava mensagens. Eu as lia,
mas não respondia. Às seis da tarde me recolhi no meu quarto. Tomei um
banho e coloquei o meu pijama. Vi minha mochila arrumada em um canto.
Fiz tantos planos para esse final de semana... Às sete horas, o interfone do
quarto tocou. Estranhei. O expediente já havia acabado, mas, mesmo assim,
atendi.
— Letícia, é o Bruno da portaria. Tem um rapaz aqui querendo falar
com você. O nome dele é Miguel.
— Miguel?
— Sim. A essa hora eu não posso permitir que ele entre. Você vai
vir aqui falar com ele?
— Não, Bruno. Pede para ele ir embora.
Desliguei tremendo. Um minuto depois, o interfone tocou
novamente.
— Letícia, o rapaz insiste. Disse que não sai daqui até que você
venha falar com ele.
Pensei um pouco antes de responder.
— Pede para aguardar um pouco, por favor.
Suspirei. Não estava preparada para esse encontro, mas era melhor
resolver de vez esse assunto antes que eu sofresse mais.
Levantei, fui até o banheiro e me olhei no espelho. Meus olhos
estavam inchados de tanto chorar. A dor estampada no meu rosto. Lavei o
rosto, depois voltei ao quarto, vesti uma calça jeans, uma camiseta, calcei
meu par de tênis e saí. Quando cheguei na portaria, Bruno abriu o portão e
eu o vi. Me aproximei devagar e Miguel me abraçou.
— Meu amor...
Ele me agarrava e tentava me beijar. Eu me esquivava.
— Para, Miguel.
— Me perdoa, amor. Eu tenho que explicar...
O interrompi.
— Você não precisa me explicar nada. Pode ir embora. Eu cheguei a
conclusão de que você não me faz bem. Você suga a minha energia, cria
ilusões e destrói os meus sonhos. Quem é você afinal? O demônio
disfarçado de amor da minha vida?
— Letícia, eu te amo. Você é tudo para mim.
— Você deve me achar uma idiota. Aliás, até eu me acho uma
idiota. Todos os sinais estavam ali, e eu não queria enxergar. O amor me
cegou e eu acreditei em você. Mas agora, chega! Você não me ama. Aquela
mulher, a Thaís, tem toda razão: eu não passei de um brinquedo na sua mão.
— Letícia, não fale isso, por favor. Você é a minha vida. Eu só quero
ficar com você, meu amor.
— Você quer ficar comigo mentindo? Me magoando?
— Meu amor, desculpe se eu magoei você, mas eu não menti. Eu
estava com um plantão programado, mas, quando já estava de saída para o
hospital, me ligaram cancelando, o que achei estranho. Quando eu peguei
meu celular para ligar para você e anteciparmos a nossa viagem, minha mãe
bateu na porta do meu quarto dizendo que eu tinha visitas. Desci, e, ao abrir
a porta, me deparei com todos os meus amigos. A festa foi uma surpresa; eu
não sabia de nada. Meus amigos armaram tudo junto com a minha mãe,
trocaram o meu plantão e convidaram as pessoas. Foi só isso.
Olhei para ele com desconfiança, sem acreditar em uma só palavra
do que ele me dizia.
— Miguel, nada do que você diz é a realidade. Você parece que é
feito de camadas. Tantas camadas, que nem sei se já cheguei à última,
porque desconfio sempre que você vai querer me iludir mais, mais e mais.
— Eu não estou mentindo, Letícia. Acredita em mim, por favor.
— Eu não sei qual é a sua verdade. Nem sei onde começa e acaba a
sua mentira. Você foi a pessoa a quem eu dei tudo de mim, e a única que me
roubou cada pedaço. Você me destruiu, Miguel. Vai embora, por favor.
— Não. Eu não vou embora. A minha vida não tem nenhum sentido
sem você. Eu te amo!
— Que tipo de amor é esse, Miguel?
— Amor. Apenas amor. Imenso, louco, genuíno. Essa é a minha
verdade.
Ele me abraçou, mas dessa vez resisti.
— Eu não quero mais, Miguel. Acabou.
Ele parecia desesperado. Colocou as duas mãos no meu rosto e
implorou:
— Letícia, por favor. Não faz isso comigo. Não faz isso com a
gente. Vamos agora para São Paulo. Vamos passar o nosso final de semana
juntos. Vamos ser felizes, amor.
— Eu não vou, Miguel. Eu preciso de um tempo. Se você me ama
como diz, respeita o meu tempo.
Miguel se afastou, mas antes de ir embora, disse:
— Eu não vou desistir de você, Letícia. Nunca.
Voltei para o meu quarto aos prantos. Eu devia ter sido mais firme.
Acabar de vez com aquela relação. Miguel veio até mim disfarçado de
amor. Na verdade, estava coberto e carregado de efeitos colaterais, mas
faltava-me forças para deixá-lo ir de vez. Eu não conseguia dizer não à
chama que via em seus olhos, ao seu toque que invadia meus sentidos. Era
incapaz de recusar as suas investidas. Ele era a tentação na qual eu caía
todas as vezes.
Na manhã seguinte, fui chamada na administração. Quando cheguei,
Hermínia informou:
— Letícia, chegaram essas flores para você.
— Para mim?
Ela assentiu e me entregou um lindo buquê de rosas vermelhas. Abri
o cartão que dizia:
“Você é a minha única verdade”.
No outro dia, recebi mais um buquê:
“Não é um beijo que eu necessito. É a presença dos seus lábios em
mim”.
Durante duas semanas, Miguel me enviou um buquê com um cartão:
“Me diz que foi apenas uma pausa, e que agora tudo está certo e
que o certo somos nós”.
“Esperarei sempre”.
“Vem, antes que seja ontem”.
No trabalho, todos aguardavam ansiosos o momento em que eu me
dirigia até a administração para buscar as minhas flores. Era um verdadeiro
rebuliço. Todos querendo ver, saber, dar palpites. As idosas internas,
ficavam muito sensibilizadas com as declarações de Miguel. Sempre ouvia
os mesmos conselhos: “Você tem que dar mais uma chance a ele”. “Todo
mundo erra”. “Ninguém é perfeito”. “Todos merecem o perdão”. “Ele te
ama”.
“Ele te ama”. Será que eu podia acreditar nisso? Lisete achava que
sim, Ana Lúcia achava que o pior de um relacionamento era quando
perdíamos a confiança no outro. Seu Raul nada comentava. Apenas
balançava a cabeça em desaprovação, cada vez que eu me dirigia até a
administração e voltava com um buquê de rosas nas mãos.
A verdade é que eu estava com muita saudade. A falta dele me
consumia. Deitava e só pensava nele. O desejo não cessava, tornando-se
profundo e incontrolável. Fechava os olhos e me deixava viajar. Sentia a
presença dele provocando arrepios de desejo no meu corpo. As minhas
mãos eram as dele. O prazer vinha rápido. Gritava seu nome. Precisava dele
ali, grudado a mim, dentro de mim. Peguei o cartão que recebi pela manhã
junto com as flores. Nele dizia:
“Diz que sim”.
Peguei o celular e digitei uma mensagem:
Eu: SIM.
CAPÍTULO 18

Não sabia mais o que fazer para convencer Letícia. Já haviam


passado duas semanas e ela não me atendia e nem respondia as minhas
mensagens. Todos os dias, eu enviava um buquê de flores com um cartão
pedindo desculpas e dizendo que a amava. Eu sei o quanto eu errei, o
quanto a magoei. Letícia não merecia isso. Criei uma rede de mentiras e não
sabia mais como sair dela.
— Miguel?
Já havia anoitecido e eu estava sentado na borda da piscina com as
pernas dentro da água, quando ouvi a voz suave de Susana.
— Posso me aproximar? — perguntou.
— Claro.
Ela se sentou ao meu lado.
— Sábado à noite e você em casa? Que milagre é esse? Eu tenho
notado você muito calado, muito introspectivo. Quer conversar?
Resolvi desabafar.
— Eu tenho uma namorada. Eu menti, ela descobriu e terminou
comigo.
— Você a traiu, Miguel?
— Eu traí a confiança dela.
— Mas você nunca foi assim. Por que fez isso?
— Foram várias as situações que me levaram a agir assim, e agora
eu não sei como desfazer isso.
Contei tudo para Susana. Como conheci Letícia, sobre o trabalho
dela no lugar onde meu avô estava internado, sobre como eu, no início, só
queria me divertir e como me apaixonei.
— Miguel, ninguém consegue sustentar uma máscara por muito
tempo. Mais cedo ou mais tarde ela iria descobrir.
— Mas eu já tinha decidido contar toda a verdade. Era questão de
tempo
— Sem mencionar a verdade sobre o seu avô? Isso seria uma meia-
verdade, Miguel.
— Mas talvez ela nem o conheça, nem saiba quem ele é.
— Amigo, nenhuma relação sobrevive a mentiras. Lealdade e
respeito são fundamentais. É mais do que um compromisso com o outro; é
um compromisso conosco, com os nossos valores. Precisamos ser leais em
nossos relacionamentos, em nossas amizades e nossos sentimentos. As
relações devem ser construídas com verdade, transparência e respeito.
— Eu sou um merda — suspirei.
— Você a ama?
— Mais do que tudo na vida.
— Relacionamento é uma troca, Miguel. Requer maturidade
emocional, interesse, diálogo, empatia, verdade, força de vontade para
construí-lo dia após dia, e ainda fazer a manutenção para não desmoronar.
— O meu já desmoronou.
— Tudo na vida tem solução. Converse com ela. Fale a verdade.
Conte tudo sobre você, sobre sua vida e sua família.
— Ela não quer mais falar comigo. Nem me atende mais...
— Ih, você está parecendo um bebê chorão. Nem parece o Miguel
que eu conheço: forte, confiante, determinado e sedutor. Esse ser fracassado
não combina nada com você. Se você realmente quer essa mulher, lute.
Faça por merecer o amor dela.
— Como você amadureceu? — perguntei, e nós dois rimos.
Susana depositou um beijo em meu rosto e se foi. Fiquei mais um
tempo ali, pensando nela. Só nela. Já passavam das oito da noite e decidi
sair, espairecer um pouco. Peguei o meu carro e quando dei por mim, estava
em frente ao portão do Perfect Village. Fiquei ali, dentro do carro,
imaginando-a ali dentro. Tão perto e tão longe.
Meu celular tocou. Era Greg, um dos gêmeos, dizendo que estava
programando uma festinha mais tarde em sua casa e que eu não poderia
faltar. Dei uma desculpa e desliguei. Cinco minutos depois, veio um aviso
de mensagem. Peguei o celular, achando que fosse Greg insistindo, mas
meu coração deu um salto quando eu vi que a mensagem era dela. Abri, e
quando li, parecia que eu havia renascido. Foi tanta a emoção, que meus
olhos ficaram marejados. Era ela. A minha “Fadinha”, a minha menina
dizendo “SIM” para mim.
Liguei para ela. Assim que atendeu, eu disse:
— Vem comigo, vem?
— Para onde? — perguntou.
— Não importa. Só segura a minha mão, e vem comigo.
— Eu vou. Em quanto tempo você chega aqui?
— Eu já estou aqui, amor.
— Miguel?
— É sério.
Peguei o celular, tirei uma selfie em frente ao portão do Perfect
Village e enviei.
— Viu? — perguntei.
— O que você está fazendo aí?
— Te esperando. Eu avisei que nunca iria desistir de você.
Vinte minutos depois, o portão se abriu e ela saiu com seu sorriso
lindo. Fui ao seu encontro. Por alguns instantes, ficamos só nos olhando,
sem acreditar que estávamos ali, frente a frente. Até que a agarrei e rodopiei
com ela no meu colo. Depois, falei, beijando cada parte do seu rosto e
pescoço:
— Me perdoa. Eu te amo, te amo, te amo.
— Eu também te amo demais, Miguel.
Quando entramos no carro, a safada perguntou:
— Vamos para um motel?
— Não. Vamos daqui direto para São Paulo.
— Mas eu não trouxe roupa, mochila, nada...
— Nós não vamos precisar de roupa nenhuma.
A viagem foi curta e logo chegamos. Já no elevador que nos levaria
até a cobertura, entramos em uma luta insana contra os nossos desejos. Os
beijos esfomeados, as mãos, o toque. Como eu precisava daquilo...
Quando a porta do elevador se abriu, foi ela a pedir sem nenhum
pudor:
— Vem, amor. Eu estou ardendo por dentro. Explora todos os meus
caminhos. Eu ando sedenta de você.
— Mal posso esperar para tirar sua roupa com meus dentes e sentir
o seu gosto. Hoje eu vou te foder como nunca. Vai ser inesquecível.
Peguei Letícia por trás, prendi suas mãos nas costas e fui com ela
até o varandão que dava para uma vista panorâmica e magnífica da cidade.
Comecei tirando sua roupa enquanto cheirava e lambia a sua nuca. A deixei
só de calcinha. Passei a mão lentamente pelas suas curvas e saboreei as
reações do seu corpo gostoso. Como prometido, coloquei a lateral de sua
minúscula calcinha entre os dentes e fui descendo até que ela ficasse
completamente nua. Inalei seu cheiro enquanto ela enfiava as mãos nos
meus cabelos, ansiosa.
Apoiei uma de suas pernas no meu ombro abocanhando sua boceta.
Letícia gemia e rebolava enquanto eu a chupava. Fiz um passeio com a
minha língua, até penetrar a sua entrada. Ela enlouqueceu. Quando se
remexeu, eu a puxei para mais perto e mordisquei seu clitóris. Apertei sua
bunda e suguei com vontade. Suguei, mordi e lambi cada parte daquela
boceta. Letícia chamava meu nome enquanto gozava na minha boca e me
fazia perder a cabeça.
Depois, a peguei em meus braços e a levei para o quarto. Coloquei
ela na cama e ela abriu as pernas, ficando exposta, seus seios rígidos e
arrepiados. Linda. Senti que estava prestes a gozar, só de olhar para ela.
— Fica de quatro na cama — pedi.
Letícia obedeceu. Me encaixei por trás dela e a beijei sensualmente.
Toquei na boceta e peguei com a mão todos os fluídos de excitação e gozo
que ela deixou escapar, e lentamente comecei a massagear o seu cuzinho.
De início ela ficou tensa, mas logo relaxou quando com a outra mão,
massageei seus seios e beijei sua nuca. Senti que ela estava pronta.
Enquanto acomodava meu corpo ao dela, sorri. Encaixei meu pau muito
duro e a penetrei lentamente. Letícia gemia, gritava, se esfregava, rebolava,
segurava com firmeza o lençol. Enquanto a penetrava por trás, estimulava
com a mão o seu clitóris. Ela gritava enlouquecida:
— Não para!
Meu pau estava a ponto de explodir, e assim que ela gozou, me
esparramei dentro dela.
Era amor, paixão, sexo, romance, entendimento, descoberta,
conversa, caminho, destino. Era eu, era ela.
Deitada no meu peito, senti o bater compassado do seu coração.
Sentia o seu amor, sentia a sua paz, a sua inocência e paixão. Ela se
aconchegou mais e com um suspiro sussurrado, disse:
— Amor, é assim que eu quero você, para sempre grudado em mim.
— Eu nunca mais vou sair de perto de você. Nunca.
Eu estava feliz. Completamente feliz.
Na manhã seguinte, já passavam das nove horas quando despertei.
Letícia dormia ao meu lado em um sono profundo. Acordei beijando todo o
seu corpo. Ela sorriu, linda, sonolenta e satisfeita.
— Levanta dorminhoca. Você não quer conhecer a cidade?
— Tem que ser agora? — perguntou manhosa.
— Se a gente ficar aqui, vai ser igual da outra vez em que não
saímos desse quarto. Tem muita coisa que eu quero te mostrar.
Nos arrumamos e fomos fazer um tour pela cidade. Programei o
roteiro típico, para quem quer conhecer a capital paulistana em um dia:
tomamos café da manhã na padaria mais antiga da cidade, aproveitamos
para ver de perto a Catedral da Sé e o Marco Zero da cidade, depois
fizemos um passeio pelo Pateo do Collegio, onde São Paulo foi fundada.
Seguimos até o Vale do Anhangabaú e admiramos alguns dos prédios mais
icônicos de São Paulo. Visitamos as exposições em cartaz no Farol
Santander e vimos a cidade do alto. Conhecemos o Mercadão, mas quando
a fome bateu, levei Letícia ao A Figueira Rubaiyat, um dos restaurantes
mais elegantes da cidade. Reservei a tarde para conhecer a Avenida Paulista
e o MASP. Assistimos ao pôr do sol no Parque Ibirapuera e, para fechar a
noite, tomamos um drink e jantamos no Terraço Itália, um dos cartões
postais da capital paulistana.
Foi ali, naquele restaurante, que Letícia comentou preocupada:
— Miguel, não havia necessidade de me trazer nesses restaurantes
luxuosos. Podíamos ter almoçado no Mercadão e, agora à noite, eu ficaria
satisfeita com uma pizza ou até mesmo um lanche em um fast-food.
— Você não está gostando? — perguntei.
— Eu estou adorando, meu amor. O que eu não quero, é que você
gaste todo o seu dinheiro comigo. Eu sei que o seu sacrifício é grande.
— Não é — afirmei.
— Claro que é, Miguel. Você dá duro em dois empregos. Isso é
sacrifício.
— Letícia, as coisas não são bem assim. Eu preciso te contar uma
coisa sobre mim.
— Que você é lindo, maravilhoso e gostoso? Isso eu já sabia —
brincou.
— Não. Eu sou rico.
— Como assim, Miguel?
— A minha família é rica. Muito rica.
— Você está falando sério?
— Estou.
— Mas, você trabalha tanto...
— Eu sou médico por opção e vocação, mas na verdade, eu tenho
certas regalias. Eu sou o chefe da ortopedia do hospital e sou o dono
daquela clínica que você conheceu.
— Dono?
— Sim. Dono.
— Miguel, aquela clínica é luxuosa demais. Como assim?
Ela parecia desorientada.
— Eu fiz faculdade de medicina aqui na capital, e depois fui para a
Espanha fazer especialização. Eu voltei para o Brasil na ocasião da morte
do meu pai, e minha mãe me convenceu a me estabelecer em Ribeirão.
Aquele prédio onde funciona a clínica, pertencia ao meu avô. Ele cedeu o
imóvel para mim e financiou tudo.
— Meu Deus! Essa cobertura...
— Pertence a minha família.
— Miguel, porquê você não me contou isso antes?
— Me perdoa, amor. Eu nem sei porque eu omiti isso de você, mas
eu não quero que haja mais nenhum segredo entre nós.
— Esse seu avô deve ser um anjo. Você deve amá-lo muito, não é?
Tomei um gole da minha bebida antes de responder:
— Sim. Eu devo tudo a ele — disse com sinceridade.
— E onde ele está? Eu posso conhecê-lo?
— Ele mora na Espanha.
— Ah, que pena. Mas e a sua mãe? Quando você vai me apresentar
a ela?
— Em breve, meu amor. Eu prometo.
— Já que você é rico, eu posso pedir uma sobremesa?
Eu ri. Letícia era a inocência em pessoa.
— Você pode pedir o que você quiser, meu amor. Eu vou te dar o
mundo.
— Eu só quero você, Miguel. Ah, e a sobremesa!
Caímos na gargalhada.
Me senti aliviado por ter contado a verdade a ela. Parecia que havia
saído um peso grande das minhas costas. Tudo estava bem. Perfeito!
CAPÍTULO 19

Adorei São Paulo. A programação de Miguel foi perfeita. Achei


muito legal sair para tomar café da manhã na padaria. Pedi um pão na chapa
com manteiga, e um cappuccino. Meu namorado, pediu um baguete com
requeijão e uma vitamina. Miguel malhava todos os dias e tinha uma
alimentação balanceada.
Continuamos nossa peregrinação pela Avenida Paulista. Andamos
bastante, quase cobrindo a Paulista inteira. A Paulista tem poucos
quilômetros, sendo bem tranquila de ser percorrida a pé. Como era
domingo, a avenida estava fechada para os carros, e os pedestres tomavam
conta. O ambiente era delicioso, com muita música, muita gente praticando
esportes, famílias, jovens, casais…
Eu nunca tinha entrado em um museu, e queria muito visitar o
Museu de Arte de São Paulo, o famoso MASP. Miguel prometeu que
iríamos na parte da tarde. Dali, fomos direto até o Mercado Municipal.
Comemos um pastel e uma salada de frutas. Achei que íamos almoçar ali,
mas Miguel me levou em um dos restaurantes mais sofisticados de São
Paulo. Fiquei sem graça, até por não estar vestida de acordo com o local.
Miguel escolheu o cardápio feito por um chef renomado.
Depois de almoçarmos, foi a hora de conhecer o MASP. Fiquei
extasiada com tudo o que vi. A coleção permanente do MASP não tem
paredes e é composta de várias obras de autores nacionais e internacionais
organizadas cronologicamente. No meio delas, obras lindíssimas de Van
Gogh, Picasso, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral. Mesmo para quem não
entende nada de arte, como eu, com certeza a visita é muito válida. Há
também outras exposições bem legais.
Fomos também até o Parque do Ibirapuera. Como eu não sabia
andar de bicicleta, Miguel alugou uma bike de dois lugares e saímos
pedalando pelo parque.
Quando Miguel me levou ao restaurante Terraço Itália, fiquei
preocupada. Já tinha lido na internet que era um dos restaurantes mais
renomados e caros da cidade. Miguel pediu drinks e depois escolheu um
menu do cardápio, como se estivesse habituado a sentar ali para comer.
Achei melhor questionar. Foi quando ele me contou que sua família era rica
e que, além disso, era o dono da clínica onde trabalhava. Fiquei perplexa
com toda aquela informação. Rico? Por que nunca me disse nada?
Quando no outro dia comentei com Lisete, ela disse:
— Acho natural, Letícia. Imagina quantas mulheres não devem ter
se aproximado dele por interesse, para tomar vantagem? Vai ver ele queria
te conhecer melhor para poder contar. Não encara isso como uma mentira.
Encara isso como uma omissão. Mas que sorte hein, “Fadinha”? Um rico!
— Eu amo o Miguel, independente do que ele possui.
— Eu sei, amiga. Mas quem disse que dinheiro não traz felicidade
está mentindo.
— Nem sempre. Olha a situação do Seu Raul? Todos dizem que ele
é rico e está aqui, abandonado pela família. Ele não merece isso de jeito
nenhum.
— Verdade, coitado — lamentou Lisete.

Há oito meses eu namorava Miguel e a cada dia, sentia que


estávamos mais conectados. Todos os domingos, íamos até o abrigo onde
cresci visitar as crianças, principalmente Clarinha. Minha garotinha já ia
completar três anos e estava cada vez mais linda e falante. Ela adorava
Miguel. Quando o via chegar, ia correndo para os braços dele me causando
até ciúmes. Os dois estavam cada vez mais apegados. Comentei com
Miguel que se Deus permitisse, eu ainda seria a mãe de Clarinha.
— E eu o pai — afirmou.
Quando ele disse isso, meus olhos ficaram marejados.
— Sim, meu amor. Ela já é nossa de coração e de alma.
Era lindo demais ver a interação dos dois. Eles brincavam, riam.
Miguel dava comida, lia para ela, mostrava os joguinhos no seu celular. Um
amor verdadeiro. Sempre quando íamos embora, ela chorava. Era um
momento muito doloroso. Sempre que nos referíamos a ela, falávamos:
“nossa Clarinha”.
Com o Natal se aproximando, Miguel e eu estávamos muito
empenhados em fazer algo bonito e diferente para as crianças do abrigo. Ele
disponibilizou uma verba para comprarmos os presentes, fazer toda a
decoração, e contratou um buffet para preparar todas as delícias de Natal.
As crianças já estavam ensaiando com afinco as músicas para a
apresentação do coral. Estavam afiadíssimas. Iria ser, sem dúvida, o melhor
Natal da vida delas e da minha.
A grande surpresa foi quando Miguel me convidou para passar a
noite de Natal com ele e sua família. Disse que eu seria oficialmente
apresentada como sua namorada. Fiquei muito feliz, mas ao mesmo tempo
pensava em como eu ia fazer. Não queria deixar Seu Raul sozinho. Quando
comentei com Lisete, ela foi logo dizendo:
— Sério, “Fadinha”? Você vai deixar de passar a noite de Natal com
o seu namorado e a família dele, por causa desse velho? Só pode ser
brincadeira!
— Eu falei com ele que talvez não pudesse ir e ele ficou bem
chateado. Ele não conseguiu entender o meu ponto de vista.
— Não é pra menos! — Lisete exclamou.
— Tentei argumentar. Expliquei o quanto era triste não ter ninguém
na noite de Natal, mas mesmo assim acabamos discutindo por causa disso.
Fiquei arrasada. Preciso arrumar um jeito de contornar essa situação.
Fui até a suíte de Seu Raul e bati na porta:
— Posso entrar? — perguntei.
— Você é sempre bem-vinda, minha neta.
— Já que eu sou sua neta, vim lhe fazer um convite. O Miguel me
convidou para passar o Natal junto com a família dele.
— Ele convidou? Tem certeza?
— Claro que tenho certeza Seu Raul e, como é a primeira vez que
eu vou na casa de um namorado, eu gostaria que o senhor me
acompanhasse.
— Não.
— Mas Seu Raul, o senhor vai ficar sozinho na noite de Natal?
— Eu não me importo.
— Mas eu me importo. Além do mais é uma grande oportunidade de
o senhor conhecer o Miguel.
— Ele sabe que você está me convidando?
— Não, mas sei que ele não vai se importar de eu levar alguém,
afinal, o senhor é a minha família.
— Desculpe, Letícia, mas eu não vou. Vá se divertir com seu
namorado e a família dele.
Fiquei muito triste. Estava muito dividida. Por um lado, queria
muito passar a noite de Natal juntinho a Miguel, mas como deixar Seu Raul
sozinho?
Inconformada, perguntei a Lisete se ela sabia quem era a família de
Seu Raul e onde moravam. Talvez eu conseguisse falar com eles e as coisas
pudessem ser resolvidas.
Lisete contou que a única coisa que sabia, era que a família dele era
a mais rica e poderosa da cidade, mas o endereço da residência deles, seria
difícil conseguir. Por serem dados confidenciais, ficavam armazenados no
computador da administração, e só Hermínia tinha acesso.
Computador da administração... Lembrei que quando fui trabalhar
no Perfect Village e ainda não tinha um celular ou notebook, Hermínia me
passou a senha do computador da administração para que eu pudesse
estudar. Era isso! Em uma noite, fui até o escritório da administração, entrei
no computador, e encontrei o endereço dos Hernandez.
Sem falar nada com ninguém, uma semana antes do Natal, fui até o
endereço. Fiquei abismada, pois aquilo não era uma casa, mas sim uma
verdadeira mansão. Toquei o interfone que havia na frente do portão
gigantesco, e fui atendida por dois homens engravatados que supus serem
seguranças da casa. Perguntei por Dona Celeste Hernandez e, desconfiados,
quiseram saber qual era o assunto. Falei que o assunto era sobre o Senhor
Raul Hernandez.
Depois de quase cinco minutos aguardando, minha entrada foi
permitida e, quando entrei na casa, fiquei impressionada com tanto luxo.
Não fazia ideia de que a família de Seu Raul fosse tão rica. Fui conduzida
por uma mulher, que se identificou como governanta, a um escritório onde
uma senhora impecavelmente vestida e um senhor trajando paletó e gravata
me aguardavam. Me identifiquei como cuidadora do Perfect Village e disse
que estava ali, como amiga do Seu Raul. Assim que ouviu isso, a mulher foi
logo dizendo:
— Acho que deve estar havendo algum engano. Meu sogro não tem
amigos naquele lugar. Todos que estão ali são empregados. Estão ali para
servi-lo. Até porque, ele não tem condições de ser amigo de ninguém, pois
sua saúde mental está muito comprometida.
— Desculpe, senhora, mas eu também acho que deve estar havendo
algum engano, porque o Seu Raul é um homem completamente são, e é
exatamente por isso que eu estou aqui. Eu gostaria de entender por que uma
pessoa como ele, tão lúcida, saudável e capaz, está internado, tendo uma
casa e uma família.
Quando eu falei isso, a mulher ficou vermelha e disse cinicamente.
— Você “gostaria de entender”. E quem é você, para entender?
— Eu sou a pessoa que convive diariamente com os residentes do
local, e aprendi a identificar as necessidades de cada um deles: suas dores,
suas fragilidades, seus medos, seus traumas. Por isso, sei muito bem que a
família é essencial para a qualidade de vida dos idosos. Há mais de dois
anos, o Seu Raul não tem contato com nenhum membro da família. Quando
o conheci, ele era muito introspectivo. Depois, fui entender que o
sentimento de dor causado pelo abandono, fez com que ele ficasse assim.
Preferia sofrer em silêncio. O abandono, é a maior injustiça que alguém
pode sofrer.
A mulher se levantou, me olhou com fúria, já alterando o tom de
voz:
— Era só o que me faltava! Apesar de eu não ter que lhe dar
nenhum tipo de satisfação, saiba que o meu sogro foi diagnosticado com um
quadro de demência e Alzheimer por um dos maiores neurologistas do país.
Por esse motivo, nós o colocamos no melhor lugar, para que ele tivesse toda
a assistência e cuidados possíveis. Ele não foi abandonado. Não está
desamparado.
— Asilos são abrigos e cuidam dos idosos, mas cuidar não é o
mesmo que amar. O amor é responsabilidade da família e não da
comunidade, da sociedade ou do poder público. O dever de cuidado e zelo
cabe à família. O Seu Raul é um homem muito bom, e eu não consigo
entender como vocês podem dormir tranquilos, sabendo que abandonaram
um idoso à própria sorte. Agora mesmo, o Natal está se aproximando, uma
data tão importante, e ele vai estar sozinho. Isso não é certo.
— Como ousa vir à nossa casa e nos acusar desse jeito? Qual é o seu
interesse nisso? Olhe para você, menina. Você não é nada e nem ninguém.
Uma empregadinha, que tem a audácia de vir aqui, querendo nos dar lição
de moral. Nós pagamos uma fortuna para o meu sogro viver bem, e é esse
tipo de gente que eles colocam para cuidar dele? Você está vendo isso,
Enrico? Isso não vai ficar assim!
O tal Enrico, que devia ser o filho de Seu Carlos, mantinha-se
calado. Parecia ser dominado pela cunhada. Eu não abaixei a cabeça, e
continuei:
— É, a senhora tem razão. Eu não sou nada e nem ninguém, mas
pelo menos eu nunca abandonaria um membro da minha família do jeito
que vocês fizeram. Isso é covardia. Se vocês forem denunciados, vão ter
que responder por negligência.
— Você está nos ameaçando?
— De jeito nenhum, senhora. Eu só estou dizendo...
Ela me interrompeu.
— Ah, eu já entendi tudo. Você não passa de uma oportunista, uma
interesseira que está tentando dar um golpe no meu sogro. Com certeza, se
aproximou de um velho gagá, com a intenção de ficar com todo o dinheiro
dele. Graças a Deus que o interditamos a tempo e conseguimos proteger o
patrimônio da nossa família. Enrico, seu pai está correndo sérios riscos.
Precisamos providenciar imediatamente a transferência dele desse local
nefasto.
O homem, que até então estava calado, se pronunciou:
— Calma Celeste. Essa moça é uma pobre coitada. Não representa
risco nenhum.
Abri e fechei a boca indignada. Depois, disse:
— Uma coisa que não sou e nem nunca fui é interesseira. O Seu
Raul me conhece e sabe muito bem quem eu sou. E olha, agora conhecendo
vocês, eu acho até melhor para ele não ter contato nenhum. Vocês é que são
um bando de interesseiros e golpistas. Ele não merece ter uma família como
essa.
— Chega! Saia já da minha casa agora, sua atrevida! Fora! Fora!
Chamem os seguranças e tirem essa infeliz daqui!
A mulher berrou como uma louca ensandecida. Dois seguranças
surgiram, e agarraram o meu braço. Fiquei assustada com aquilo, e achei
melhor sair rápido daquele lugar. Quando eu já estava me dirigindo para a
porta de saída do escritório, escoltada pelos seguranças, Miguel abriu a
porta.
— Mas que gritaria...
Ao me ver ali, ele interrompeu o que iria falar, e parou segurando a
porta com cara de assustado.
— Miguel?!
Ficamos os dois parados, um olhando para a cara do outro, ele muito
pálido. Em uma fração de segundos, tentei entender o que ele estaria
fazendo ali, naquele lugar, naquela casa. Será que veio como médico para
atender alguém?
— O que você está fazen... Ah, não!
A ficha caiu. Raul Hernandez. Doutor Miguel Hernandez.
“Eu sou rico…”
“A família mais rica e poderosa da cidade…”
Não. Não era possível. Miguel não podia fazer parte disso. O meu
Miguel, não. Ele disse que o avô morava na Espanha. Não era possível que
o meu amor, um homem tão bom, tão carinhoso, tão prestativo,
compactuasse com tudo aquilo. Mas os olhos dele diziam que sim. Que era
tudo verdade.
— Filho, tira essa golpista daqui agora, senão eu não respondo por
mim! — A mulher berrou cada vez mais enfurecida.
— Calma, mãe. Letícia...
— Você conhece essa garota, Miguel? — O filho de Seu Raul
perguntou.
— Não, eu...
Olhei para ele com os olhos marejados de lágrimas e dor.
— Letícia...
Me soltei dos braços dos dois brutamontes que me seguravam e saí
correndo, aos prantos. Miguel, desesperado, veio atrás de mim, mas
consegui ser mais rápida, e entrei no primeiro ônibus que apareceu na rua.
Estava arrasada. Solucei durante todo o trajeto. Quando cheguei, me
refugiei no meu quarto. Não podia acreditar naquilo. Só conseguia chorar.
Quanta decepção, quanta mentira. Por quê?
No dia seguinte, não consegui levantar da cama. Pedi à Hermínia
que me liberasse do trabalho, inventando uma cólica forte. Lisete me
procurou, e eu desabafei. Ela se lembrava do neto de Seu Raul, que no
início visitava o avô. Mostrei a foto de Miguel, e ela confirmou que era ele.
Não podia suportar aquilo. Não podia namorar e me envolver com alguém,
que desprezava uma pessoa daquela forma. Seu Raul era um ser
maravilhoso e não merecia nada daquilo. Agora entendo por que ele ficava
tão nervoso toda vez que eu mencionava o nome de Miguel. Era mágoa, e
mágoa era algo difícil de tirar do coração.
Miguel me ligou várias vezes, e eu não atendi. Mandou mensagens e
eu não respondi. Não queria vê-lo e nem falar com ele. Acabou.
Infelizmente, eu me enganei. Seria difícil esquecer, pois estava muito
apaixonada, mas eu iria conseguir.
CAPÍTULO 20

Me surpreendi com Letícia. Achei que ela fosse reagir mal quando
eu contasse tudo sobre a minha família, mas não. Ela era realmente perfeita.
Fiz questão de contar para Susana que reatamos e que eu contei a ela toda a
verdade.
— Eu fico muito feliz, Miguel. Por você e por ela. Mas você
também falou a verdade sobre o seu avô?
— Não achei que fosse necessário.
— Ah, Miguel. Não faça isso. Seja honesto com ela.
— Eu não posso. Ela tem tanto amor por aqueles velhos do asilo,
que é capaz de me odiar se souber que meu avô é um deles.
— Miguel, nós passamos a infância e a adolescência praticamente
juntos. Eu vivia nessa casa, e lembro muito bem da relação de cumplicidade
e amor que você tinha com o seu avô. O que foi que mudou?
— A vida mudou.
— Olha, para ser sincera, quando eu soube que seu avô estava
internado em uma casa de repouso, eu nem acreditei. Ele sempre foi um
homem forte e dinâmico. Tinha mão de ferro nos negócios. Eu sei que a
morte de seu pai foi um choque, mas daí ele ficar demente, e ser
abandonado pela família...
— Susana, segundo a minha mãe, a doença dele evoluiu muito
rápido e não teve outro jeito, a não ser interná-lo. Eu até fui lá visitá-lo
algumas vezes e ele ficava sempre apático, não reagia a nada. Parecia que
nem me reconhecia. Um dia se enfureceu. Me acusou de ser ingrato,
aproveitador. Disse que eu só ia visitá-lo porque estava interessado no
dinheiro dele. Foi aí que eu parei de ir.
— Pois errou, Miguel. Você deveria ter insistido. Ter provado para
ele que você não estava só interessado no dinheiro. Naquele momento, ele
se achava vulnerável, precisando de carinho e de amor. Até como médico,
você poderia ajudar. Aquele seu amigo, o Fausto, não é neurologista?
Assenti. Ela continuou.
— Então, ele poderia ter analisado o caso do seu avô. Será que o
caso dele era tão grave, a ponto de uma internação? Desculpe por eu estar
me intrometendo, mas eu sempre fui um pouco enxerida.
— Você pode se meter à vontade. Faz muito bem te ouvir.
— Então escute o meu conselho. Conta para a Letícia sobre o seu
avô. Mesmo que ela não o conheça, ela pode tentar uma aproximação entre
vocês. Acho que isso faria um bem enorme não só a ele, mas a você
também, Miguel. Te traria paz.
— Você está certa. Deixa só as festas de final de ano passarem, que
eu conto tudo para a Letícia e tento me reaproximar do meu avô. Ano novo,
vida nova!
— Certo.
O Natal se aproximava. Letícia estava empolgada com a festa das
crianças do abrigo. Íamos lá todos os domingos, e eu já estava totalmente
integrado ao local. Clarinha era a coisa mais linda do mundo. Eu percebia o
grande amor que Letícia nutria por aquela criança e, com o tempo, acabei
também me apaixonando pela menina. Quando Letícia disse que um dia
pretendia adotá-la, aquilo também se tornou o meu propósito. Tanto que
planejei levar Letícia e Clarinha para passarem o Natal comigo. Já estava
mais do que na hora de apresentá-la à minha família. Sabia que não seria
fácil para minha mãe aceitá-la, mas estava disposto a enfrentar tudo por ela.
Infelizmente, Letícia já tinha outros planos. Além de ter que
participar da festa das crianças do abrigo durante o dia, ela ainda não abria
mão de passar a noite de Natal com o tal velho que não tinha família e que
ela adorava.
Fiquei aborrecido. Chegamos a discutir por causa disso, mas depois
percebi que estava parecendo um garoto mimado e acabei aceitando. Ajudei
com os preparativos da festa das crianças: compramos brinquedos, enfeites
e contratei um buffet. Perguntei se ela não gostaria de levar o “tal velho”
para a ceia na minha casa, mas ela disse que o homem se negou. Além de
tudo, o velho era marrento!
Estava em casa em um dia de folga quando ouvi barulhos vindo do
escritório. Minha mãe berrava nervosa, chamando os seguranças para
colocar alguém para fora de casa. Corri até lá para ver o que estava
acontecendo e me deparei com Letícia sendo agarrada pelos seguranças.
Fiquei atônito, sem reação. O que ela estava fazendo ali? Veio à minha
procura? Foi então que minha mãe gritou para que eu a expulsasse,
afirmando que ela era uma indigente que estava ali para dar o golpe na
família através de meu avô.
Letícia e eu nos olhávamos com espanto, sem dizer nada. Após
segundos que pareceram horas, ela conseguiu balbuciar:
— O que você está fazen... Ah não!
Inteligente e perspicaz, ela logo percebeu a verdade: eu era o neto de
Raul Hernandez. Por uma fatalidade, o velho a quem ela estava tão apegada
era o meu avô, e ela foi tirar satisfações com a família que o abandonou no
asilo. Foi horrível ver minha mãe gritando, meu tio a expulsando e os olhos
dela banhados de lágrimas, cheios de dor e decepção ao constatar que eu era
uma fraude. Sim. Eu era uma fraude, uma grande decepção.
Aquela mulher tão generosa, cheia de compaixão pelos outros, tinha
se apaixonado por um nada. Por um homem fraco, que sempre se omitiu,
que compactuava com duas pessoas egoístas por causa de dinheiro. Ela
nunca iria me perdoar. Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, Letícia
fugiu correndo. Fui atrás tentando alcançá-la, mas ela foi mais rápida e
entrou em um ônibus qualquer.
Comecei a ligar para Letícia como um desesperado, mas ela não
atendia. Mandei várias mensagens dizendo o quanto a amava, mas ela
ignorava. Queria muito encontrá-la e dizer que tudo não passou de um mal-
entendido e que eu poderia explicar. Tentei, dia após dia, e nada. Todos os
dias, ao sair da clínica ou do hospital, eu seguia até o Perfect Village e
ficava lá na porta de plantão, esperando que ela viesse falar comigo, mas foi
em vão.
Estava sofrendo como um louco. Não conseguia imaginar minha
vida longe dela. Nem no trabalho conseguia me concentrar. Tive uma crise
de ansiedade. Durante uma cirurgia, minhas mãos começaram a tremer e
não tive condições de continuar. Fernando, o residente, assumiu, e eu fui
para a sala de descanso, tremendo, suando e chorando. Thaís entrou e
perguntou:
— Miguel, você está bem? Se você quiser eu posso te animar.
— Vai pro inferno! — exclamei, furioso.
Ela saiu assustada. Deitei um pouco e coloquei um pedaço de pano
sobre os olhos para aliviar a dor de cabeça que me atormentava. Sentia dor
no corpo e na alma. Devo ter ficado ali por cerca de uma hora até que a
porta foi aberta e meus amigos Fausto, Jaime e Vitor entraram.
— Cara, o que está acontecendo? — Jaime perguntou
— Eu só quero ficar sozinho.
— Miguel, nós somos amigos. Você não está bem. Nós soubemos o
que aconteceu na sala de cirurgia. — Foi a vez de Fausto falar.
— Eu sou um merda. Não sirvo pra nada.
— Amigo, você está sob muita pressão. Vamos que eu vou te levar
em casa. No caminho conversamos.
Concordei. Eu nem tinha condições de dirigir; estava há dias sem
comer e sem dormir. Contei tudo para Fausto.
— Olha, Miguel, você não é um merda, você está na merda.
— Eu não sei o que eu faço. Eu estou acabado.
— Você errou feio, Miguel. Agora precisa ter paciência. Dá um
tempo para ela. O tempo é o melhor remédio para tudo.
Entrei em casa, tomei banho, tomei um analgésico e fui deitar. Se
ela precisava de um tempo, eu iria dar isso a ela. Só não ia desistir. Nunca.
Véspera de Natal. Fazia uma semana que eu não falava com Letícia.
Lembrei da festa das crianças e fui até o abrigo na esperança de encontrá-la.
Assim que me viu, Clarinha veio correndo para os meus braços. Abracei
minha garotinha com força; era como se eu estivesse abraçando Letícia.
Não a vi em lugar nenhum. Perguntei, e as pessoas informaram que ela não
viria. Mesmo assim, fiquei até o final. Chorei abraçado a Clarinha ao ver e
ouvir as crianças cantando as canções de Natal. Chorei de saudade: de
Letícia, do meu pai, do meu avô.
Na noite de Natal, me recusei a descer para a ceia. Não conseguia
encarar minha mãe, meu tio e seus convidados ilustres. Me sentia enojado
com toda aquela falsidade e hipocrisia. Pensava em Letícia o tempo todo. A
única coisa que queria, era ela de volta para mim.
Susana bateu à minha porta. Pedi que entrasse.
— Não vai descer, Miguel?
— Não estou com vontade.
Ela estava com uma sacola na mão e estendeu para mim.
— Um presente de Natal para você
— Ah, Susana. Não precisava se incomodar. Eu não comprei nada
nem para você e nem para ninguém.
— Abre.
Quando abri, era uma imagem de São Miguel Arcanjo.
— São Miguel é considerado o guardião celeste. Ele também é
conhecido como o Arcanjo do arrependimento.
Levantei para abraçá-la.
— Muito obrigada. É o mais lindo presente que eu poderia receber
neste momento. Eu estou muito arrependido. Se pudesse voltar atrás...
— O arrependimento é uma mudança de atitude, Miguel.
Arrependimento significa mudar de direção, mudar de pensamento. Ao
invés de lutar contra o que já aconteceu, que essa experiência sirva para
você ressignificar a sua forma de pensar. Construir uma nova história.
Recomeçar.
Susana era realmente uma daquelas pessoas que, de fato, mudam a
vida de quem está ao seu lado. E não me refiro a sua inteligência; estou
falando de algo além. Ela é necessária. Coração que transborda. Amor dos
pés à cabeça. Ela se deitou na minha cama e fez um gesto com as mãos me
chamando. Me aproximei e deitei a cabeça no seu colo. Depois de dias,
acabei adormecendo, sob a proteção de São Miguel Arcanjo, no colo de
Susana.
Vinte e cinco de dezembro. Natal. Peguei meu carro e fui parar na
porta do Perfect Village. Desci do carro e toquei o interfone. Quando o
porteiro atendeu, falei:
— Gostaria de falar com a Letícia.
— Ela não está.
— Por favor, diga para ela que é o Miguel. Eu preciso falar com ela.
É muito importante.
— Sinto muito, mas a Letícia não trabalha mais aqui.
— Foi ela que pediu que você dissesse isso?
— Não senhor. Infelizmente ela foi demitida.
— Demitida?
— Sim. Ontem foi o último dia dela aqui.
— E para onde ela foi?
— Eu não sei informar.
Imediatamente, parti para Passos, a cidade vizinha. Letícia só podia
ter voltado para o abrigo de crianças onde morou por tantos anos. Meu
coração disparava, um misto de medo e esperança me dominando. Quando
cheguei, fui informado de que Letícia tinha passado a noite de Natal com as
crianças, mas saiu assim que o sol despontou sem deixar nenhum aviso.
Meu mundo ruiu.
CAPÍTULO 21

Fiquei doente, tive febre. Meu corpo sentiu o peso do meu coração
totalmente destruído. Todos ficaram preocupados, mas eu só havia contado
o que tinha acontecido para Lisete. Não saí do quarto nos três dias
seguintes. Doente, abatida, apática.
Na véspera de Natal, Hermínia me chamou para uma conversa em
seu escritório. Muito educada, perguntou se eu havia melhorado e, quando
eu disse que sim, ela falou que estava muito decepcionada, porque eu havia
abusado da sua confiança ao pegar dados pessoais de um morador sem a
devida permissão. Dados esses, confidenciais. Depois, ainda fui à casa dos
familiares acusá-los de abandono e negligência, uma acusação gravíssima.
Disse que eu havia mexido com a família mais poderosa da cidade e que,
infelizmente, eles haviam exigido a minha demissão.
Fiquei chocada. Como assim? Tentei dissuadir Hermínia daquela
decisão, pois tudo o que eu havia dito era verdade, e ela sabia muito bem
que Seu Raul era um homem são e que não merecia ser abandonado em um
asilo. Além disso, eu não tinha onde morar. Ela lamentou, disse que gostava
muito de mim, mas que eu teria que deixar o local imediatamente, pois os
Hernandez a ameaçaram de fechar a instituição caso ela insistisse em me
manter trabalhando lá. Ela iria pagar tudo o que me era devido, mas eu
precisava ir embora.
Meu Deus! E agora, o que é que eu ia fazer? Segui até o meu quarto
aos prantos. Quando me refiz um pouco, comecei a arrumar as poucas
coisas que eu tinha em uma mala. Não me despedi de Seu Raul. Não queria
que ele se envolvesse nessa questão, que se sentisse culpado pela minha
demissão. Também temi por ele. Aquela família era capaz de tudo, até
transferi-lo para um outro local onde ele não tivesse o mesmo tratamento.
Me despedi de Lisete e dos demais amigos de trabalho. Todos
estavam inconformados com a minha demissão. Peguei um ônibus que me
levou até o centro da cidade. Só agora reparei que praticamente todo o
comércio local tinha o nome de “Hernandez”. Fui uma tola. Deixei-me
enganar de todas as formas. O que será que ele pretendia ao me levar para a
ceia de Natal? Talvez quisesse rir de mim, me expor ao ridículo perante
aquela família esnobe e gananciosa. Quantas vezes Seu Raul tentou me
avisar? Eu é que fui boba, ingênua ao acreditar naquele homem que só quis
brincar com os meus sentimentos.
Fiquei perambulando sem rumo pela cidade. Sentei em um banco no
parque e fiquei observando as crianças, os passantes e os casais de
namorados passeando felizes de mãos dadas, como tantas vezes eu e Miguel
fizemos.
Não queria ir para o abrigo onde morei. A festa de Natal das
crianças estava acontecendo e eu não queria correr o risco de encontrar
Miguel por lá. Tinha certeza que aquele seria o primeiro lugar que ele iria
me procurar. Queria fugir dele, me afastar de uma vez.
Dezoito horas. Já anoitecia. A cidade ficou toda iluminada. Linda.
Fui até a Igreja Matriz e me acomodei em um dos bancos. A missa já ia
começar. Um lindo coral começou a cantar. As músicas natalinas me
fizeram chorar convulsivamente. Lamentava por mim, por Seu Raul, pelo
meu amor desperdiçado. Amor que eu sabia que jamais esqueceria.
Quando a missa terminou, todos se dirigiram até a saída. Assim que
levantei para deixar o local, olhei para o lado e me deparei com a linda
imagem de São Miguel Arcanjo. Fui até lá, e pedi que ele me desse forças
para que eu pudesse enfrentar com fé aquele momento crítico da minha
vida. Novamente sem emprego e sem ter onde morar.
Já passavam das oito horas. A cidade já começava a ficar deserta.
Era véspera de Natal e as pessoas tinham pressa de chegar em casa para se
reunirem com suas famílias. Fui andando sem rumo, até que achei um
letreiro escrito “Hotel”. Entrei. A recepção estava vazia. Toquei uma sineta
que estava em cima do balcão e poucos minutos depois, um homem
apareceu.
— O senhor teria um quarto disponível? — perguntei.
Ele me olhou de cima a baixo.
— Seria só para você?
— Sim.
— E você pretende ficar quantas noites.
— Ainda não sei ao certo. Talvez duas ou três.
— Eu tenho um quarto, mas o pagamento é adiantado.
— Qual o valor?
— A diária do quarto mais simples custa cento e vinte reais.
Meu Deus!
— O senhor conhece algum hotel aqui que seja mais barato?
— Esse é o único hotel da cidade.
Olhei para um quadro de aviso exposto na parede da recepção, e me
deparei com o nome do hotel: Hernandez’s Plaza. Que situação! Mas como
não tinha outra opção, peguei o dinheiro na bolsa e paguei por duas noites.
Era melhor ficar bem acomodada, até conseguir uma pensão ou albergue
mais em conta. Depois, procuraria emprego em uma casa de família onde
eu pudesse morar. O recepcionista me passou a chave e eu subi para o
quarto que era bem simples pelo valor: uma cama de solteiro, uma televisão
pequena, ventilador de teto e um banheiro. Melhor não lamentar. Estava
segura ali.
Tomei um banho e coloquei meu pijama. Me olhei no espelho e vi o
quanto eu estava magra e abatida. As olheiras fundas, os olhos inchados.
Deitei na cama e peguei um livro sem conseguir me concentrar. Liguei a tv
onde passava uma comédia romântica de Natal. Fiquei assistindo por um
tempo, mas depois desliguei.
Lembrei que não havia comido nada o dia inteiro e peguei um
chocolate que Lisete colocou na minha bolsa na hora da minha partida. Não
consegui comer; enjoei. Deixei o chocolate de lado, apaguei as luzes e
tentei dormir, mas não consegui. O sino da igreja anunciava que era meia-
noite. Dia de Natal. As lágrimas caíam sem cessar. Pensei em Clarinha sem
o meu colo e aconchego, em Seu Raul mais uma vez sozinho, e em Miguel.
O celular vibrou com uma mensagem.
Miguel: Feliz Natal. Eu te amo para sempre.
Não respondi. No dia seguinte, fiquei o dia inteiro no quarto sem
conseguir me levantar da cama. Estava me sentindo muito fraca. Não tinha
dormido durante toda a noite e quando amanheceu, me sentia sem ânimo.
Às duas da tarde ainda não tinha conseguido comer nada. Até beber água se
tornou uma dificuldade. O celular tocou. Era Ana Lúcia, minha amiga.
— Feliz Natal! — exclamou feliz.
— Oi Ana.
— Letícia, que voz é essa? Aconteceu alguma coisa?
Chorando, contei a ela tudo o que havia acontecido.
— E onde você está agora?
— Eu estou em um hotel, no centro da cidade.
— Nada disso. Vem pra cá.
— Amiga, eu não quero incomodar. Sei que você mora com seus
pais e eu não quero ser um fardo para ninguém.
— Letícia, vai para a rodoviária agora. Tem um ônibus que sai daí a
cada meia hora. Eu vou estar te esperando na rodoviária de Passos.
Ela desligou. Meu Deus! Que amiga maravilhosa que eu tinha...
arrumei minhas coisas e segui a pé até a rodoviária. Não demorou muito e o
ônibus chegou. Quarenta minutos depois, cheguei na rodoviária de Passos e
encontrei Ana Lúcia e seu pai me aguardando. Ela me abraçou e eu disse
chorando:
— Eu não queria incomodar.
— Vamos para casa, Letícia. Olhe pra você. Está doente, precisa de
cuidados.
Quando cheguei na casa de Ana, fui muito bem recebida por sua
mãe. Ela disse que eu poderia ficar o tempo que fosse necessário. Agradeci.
No quarto de Ana Lúcia, só havia uma cama, e ela disponibilizou um
colchonete para eu dormir. Tomei um banho, e mesmo sem ânimo, me
forcei a ficar um pouco na sala junto com aquela família tão carinhosa que
me acolheu no dia de Natal. Que eles fossem abençoados. Não consegui
comer nada. Não conseguia nem olhar para as guloseimas de Natal expostas
na mesa farta. Preocupada, Dona Teresa, mãe de Ana, preparou uma sopa
para mim. Me senti muito amada e agradecida.
Fazia uma semana que eu estava na casa de Ana Lúcia. Estava
preocupada, pois me sentia péssima fisicamente, o que me impedia de sair
para procurar um emprego. Quando me senti um pouco melhor, fui até o
abrigo e conversei com Verônica, a assistente social. Imediatamente ela
ligou para Dona Vilma da ONG Preparando Vidas, que disse que assim que
surgisse uma oportunidade de emprego, me avisaria.
Clarinha não desgrudou de mim um só minuto. Como já era de se
esperar, as “tias” disseram que Miguel esteve lá na festa de Natal me
procurando. Elas queriam saber o que havia acontecido entre nós. Falei
apenas que tínhamos terminado o namoro. Todas lamentaram.
Quinze dias haviam se passado. Eu não podia mais ficar naquela
situação. Por mais amorosos e prestativos que fossem, eu não queria abusar
mais da boa vontade daquela família. Saí de casa bem cedinho, decidida a
só voltar com um emprego. Aceitaria qualquer coisa.
Bati de porta em porta com o meu currículo em mãos, em vão. Por
volta das quatro da tarde meu celular tocou. Era Lisete.
— Fadinha, como você está?
— Exausta. Andando o dia inteiro atrás de um emprego.
— O Seu Raul quer muito falar com você. Ele já sabe o que
aconteceu e está muito revoltado.
— Tadinho. Eu não queria que ele se preocupasse. Ele está aí perto?
Passa o celular para eu poder falar com ele.
— Não. Ele disse que não gosta de falar pelo celular. Ele quer falar
com você pessoalmente. Disse que é muito importante.
— Tá bom. Eu também estou morrendo de saudades dele. Diz que
amanhã à tarde eu vou visitá-lo.
No dia seguinte tirei a parte da manhã para entregar mais currículos
e à tarde, fui para a rodoviária e peguei um ônibus até Ribeirão. Fui
recebida com festa pelos amigos do Perfect Village, mas todos ficaram
preocupados com a minha aparência frágil e doentia. Depois de conversar
um pouco com as pessoas, bati na porta da suíte de Seu Raul. Quando ele
abriu a porta, eu não aguentei e desabei em seus braços aos prantos. Quando
me acalmei, perguntei:
— Seu Raul, por que o senhor nunca me falou a verdade sobre o
Miguel? Por que?
— Porque eu tive esperanças.
— Esperanças de que, Seu Raul?
— De que você conseguisse mudar o caminho dele. Sabe, Letícia, o
Miguel foi a minha maior alegria. Era uma criança inteligente e feliz.
Mesmo sob a influência da mãe, ele conseguia ser afetuoso, amoroso,
alegre e sensível. Todos queriam que ele se interessasse pelo comércio, mas
só eu o apoiei quando ele se negou a assumir os negócios da família,
dizendo que queria ser médico. Quando ele completou dezoito anos, se
mudou para São Paulo, entrou na tão sonhada faculdade de medicina e
raramente vinha visitar a família. Quando vinha, eu notava ele diferente.
Indiferente.
Ele suspirou e continuou.
— Depois que terminou a faculdade, não quis mais voltar para casa.
Foi para a Espanha fazer especialização em ortopedia, e acho que se não
fosse pela morte do pai, ele nunca voltaria. Mesmo sofrendo pela morte do
meu filho, notei que Miguel cada vez mais se unia à mãe, uma mulher
frívola e mesquinha. Quando ela convenceu o meu outro filho a me colocar
em um asilo, Miguel não protestou. Foi omisso, e isso me magoou. Eu
esperava isso de Celeste e até de Enrico, mas nunca de Miguel. Ele veio
aqui algumas vezes, até que eu não suportei mais e disse a ele tudo o que eu
pensava. Estava muito decepcionado e triste por saber que ele havia se
perdido. Achei que com você, ele pudesse voltar a se encontrar, se tornar
uma pessoa melhor, mas me enganei.
— Seu Raul, eu amo muito o Miguel, de verdade, mas ele me
magoou demais. Foi a minha maior decepção. Por causa dele e daquela
família, eu perdi o meu emprego e não tenho nem mais onde morar. Eu
desisti dele. Quem ama também cansa. Eu estou cansada, esgotada e um
pouco destruída.
— Eu sinto muito, Letícia. Na verdade, foi por minha causa que
você perdeu seu emprego, tentando me defender. Por isso eu pedi que você
viesse aqui, pois eu quero lhe ajudar.
— Ah, Seu Raul, não precisa se preocupar. Eu tenho saído todos os
dias para procurar emprego, e tenho certeza que logo eu vou conseguir.
— E onde você está morando?
— Por enquanto na casa da minha amiga, Ana Lúcia. Eu já falei
dela para o senhor.
Ele assentiu.
— Eu tenho alguns apartamentos aqui na cidade. Você pode morar
em qualquer um deles.
— Não, Seu Raul. Não é que eu seja orgulhosa, mas eu não quero
mais morar aqui, em Ribeirão. Eu não quero correr o risco de me encontrar
com o Miguel. Se fosse pela minha vontade, eu sumiria. Iria morar em um
lugar bem longe, onde ele nunca pudesse me encontrar. Recomeçar em
outro lugar.
— É sério, isso? — Seu Raul perguntou.
— Sim, mas nesse momento, eu não tenho condições de ir para
lugar nenhum.
Ele ficou alguns segundos em silêncio, e depois falou:
— Eu sei de um lugar bem longe, onde você possa trabalhar, morar
e recomeçar.
— Que lugar seria esse, Seu Raul?
Ele foi até a escrivaninha que havia em sua suíte, pegou papel e
caneta, escreveu um bilhete, e me entregou junto com um cartão que pegou
na gaveta.
— Letícia, procure essa pessoa amanhã, em São Paulo.
— Em São Paulo, Seu Raul?
— Sim. Trata-se de uma pessoa da minha inteira confiança. Eu
estou pedindo que ele providencie o seu passaporte, para que você possa
embarcar para a Espanha o mais breve possível. Você vai cuidar da casa que
eu tenho lá, como se fosse sua, e vai receber um bom salário para isso.
— Espanha? O senhor está falando sério?
— Estou. Você quer?
O abracei.
— Seu Raul, recomeçar em outro lugar, longe daqui, é tudo o que eu
mais quero e preciso nesse momento.
— Então você vai para Barcelona, minha neta. A minha terra natal.
— Eu vou, mas com uma condição: o Miguel nunca poderá saber
onde eu estou.
— Ele não saberá.
CAPÍTULO 22

Letícia demitida… Com certeza, isso tinha o dedo da minha mãe e


do meu tio. A raiva e o ódio me golpearam. Tinha que achá-la.
Como ela não atendia as minhas ligações, nem respondia as minhas
mensagens, voltei várias vezes ao abrigo na esperança de encontrá-la, mas
ninguém me dava nenhuma informação. Fui até a ONG Preparando Vidas,
onde ela morou por um tempo, sem sucesso. Onde estaria a minha Fadinha?
Pensava nela sozinha, sem dinheiro, sem ter onde morar. Lembrei de Lisete,
a amiga que trabalhava com ela. Voltei ao Perfect Village. Pedi, implorei
por ajuda. A resposta era sempre a mesma: “eu não sei onde ela está”.
Nunca fui religioso, mas rezei para que ela voltasse. Implorei a
Deus, a São Miguel Arcanjo, a todos os santos e anjos para que tudo aquilo
não passasse de um pesadelo. Fiquei louco, a ponto de procurá-la pelas
ruas, nos sons, nos cheiros e nas pessoas. Voltei aos lugares que ela gostava
de ir, mas não a encontrei em lugar algum. Andava pela rua, olhando em
volta na esperança de cruzar com seus olhos.
Recordava-me incessantemente da voz dela dizendo que me amava.
As lágrimas seguiam seu próprio caminho, e eu não conseguia impedi-las.
Estava a ponto de um colapso. Era novamente um menino com medo. Já se
passaram muitos dias, muitas noites. Chorei por tudo o que perdi.
A vida tão agitada e completa que eu tinha, parecia ser agora
insuficiente para aquilo que eu queria ter. Muitas foram as noites em que
nos imaginei sozinhos nos braços um do outro. Muitas foram as noites em
que a imaginei me abraçando, me beijando, me amando. Ela estava
apaixonada, tão apaixonada...
— Eu não acredito que você está assim por causa daquela indigente,
Miguel. Isso já está passando dos limites.
Minha mãe disse, assim que me viu entrando em casa.
— Indigente? Eu posso saber de quem você está falando?
— Daquela infeliz que veio aqui.
— Ela não é indigente — retruquei.
— É Indigente sim, porque eu pedi para investigarem, e descobri
que ela é uma órfã qualquer, sem família, criada em um orfanato. Uma sem
teto. Era esse tipo de mulher que você queria trazer para dentro da nossa
casa? Você não cansa de nos envergonhar.
— Quem devia se envergonhar é você. Como teve coragem de
exigir a demissão dela?
— Fiz e faria de novo. Eu faço tudo para proteger a minha família.
Aquela garota é uma ameaça para você e para seu avô. Uma oportunista.
— Quanto desprezo você tem pelas pessoas, mãe. A Letícia nunca
foi nada disso. Ela é a pessoa mais doce, pura e generosa que já conheci na
vida. Um ser superior, diferente de você.
Meu tio, que estava calado até então, abriu a boca para falar merda.
— Um ser superior? Aquilo não passa de uma ordinária, uma
golpista. Na certa tentou dar o golpe no idiota do meu pai, e como não
conseguiu, arquitetou um plano para se aproximar de você, outro grande
idiota.
Fui para cima dele. Susana, que entrava na sala naquele instante, me
impediu de cometer uma loucura.
— Calma, Miguel. Não perca a cabeça, por favor.
— Pra mim já chega! Eu não suporto mais vocês. Vou arrumar
minhas malas e vou embora desse inferno que vocês chamam de casa.
— Não, meu filho! Não faça isso, por favor — suplicou minha mãe.
— Deixa Celeste. Esse rapaz já ultrapassou todos os limites, e isso
por culpa do pai e do avô, que sempre o mimaram demais. Sempre teve
tudo nas mãos e nunca reconheceu o valor da família. A única coisa que fez
na vida foi manchar o nosso nome, se envolvendo com tudo o que não
prestava: drogas, bebidas e putas. Lembra quando ele foi preso em São
Paulo por dirigir sem carteira e embriagado? Nunca prestou para nada. Nem
um bom médico ele consegue ser. Eu soube até que largou um paciente na
mesa de cirurgia, por pura incompetência.
— Isso não é verdade! — gritei.
Tentei falar, mas Susana me puxou pela mão, e me levou até o
jardim.
— Calma, Miguel!
— Como ter calma? Eu não quero ter calma. Você não imagina o
quanto eu estou sofrendo e ainda vem esses dois encher o meu saco! Eu vou
embora. Já devia ter feito isso há tempos.
— Nenhuma notícia dela, Miguel?
— Nada. Eu já nem sei mais o que fazer.
— Eu entendo a sua dor. Há amores que nos acompanharão por toda
a vida em forma de saudade. A gente lembra de tudo: dos sorrisos, das
trocas, dos carinhos, dos segredos compartilhados, das conquistas e dos
obstáculos superados. Esses amores nos perseguem como uma sombra. Se
tornam uma extensão de nós.
Quando olhei, Susana estava com os olhos marejados de lágrimas,
prestes a cair.
— Você também já sentiu isso, Susana. Já amou assim?
— Eu voltei para o Brasil tentando fugir das lembranças, achando
que pudesse esquecer, mas quem ama, jamais esquece.
— As histórias se cruzam, se repetem — comentei.
— Não Miguel. A minha história é diferente da sua. Você perdeu a
Letícia para a vida. Eu perdi o Hans para a morte.
Susana começou a contar que três anos depois que foi morar na
Alemanha, conheceu Hans, seu professor na universidade. Foi paixão à
primeira vista. Uma paixão proibida, pois ele era comprometido. Os dois
lutaram muito para poderem ficar juntos e assumir aquele amor. Foram
cinco anos de uma relação cheia de cumplicidade e respeito. O sonho dos
dois era ter um filho. Fizeram vários tratamentos, até ela conseguir
engravidar. O mundo parecia irreal de tanta felicidade.
Quando ela estava com três meses de gravidez, Hans foi participar
de uma conferência em outra cidade. Houve um acidente na estrada. Com o
choque pela morte do companheiro, Susana sofreu um aborto, teve que
fazer uma histerectomia total e nunca mais poderia engravidar. Era uma
menina. Duas perdas. Dois amores. Duas saudades.
A abracei forte. Como eu era egoísta. No auge do meu desespero, eu
só pensei em mim, na minha angústia, no meu sofrimento.
— Eu sinto muito, Susana.
— Eu só contei essa história para te dizer que eu fui obrigada a dizer
adeus, a deixar ir. Mas você não. Não desista desse amor, Miguel.
— Eu não vou desistir.
No dia seguinte, acordei cedo. Tinha uma cirurgia difícil agendada
na clínica e, assim que terminou, peguei a estrada para São Paulo. Iria ao
escritório central da nossa empresa pegar as chaves de um dos apartamentos
que estavam disponíveis em Ribeirão. Queria me mudar o quanto antes. Ao
chegar ao prédio luxuoso de trinta andares no centro de São Paulo,
estacionei em uma das vagas destinadas à diretoria, e me dirigi até o saguão
principal.
Nossa empresa funcionava do vigésimo quarto ao trigésimo andar
daquele prédio. Me dirigi até o hall de elevadores e fiquei aguardando. Iria
até o trigésimo andar para falar com Carlos, um dos diretores, que durante
anos foi o braço direito do meu avô. Apertei o botão do elevador e,
enquanto aguardava, fiquei verificando algumas mensagens no meu celular.
Quando um dos elevadores chegou, aguardei que as pessoas saíssem, sem
prestar muita atenção. Depois que todos saíram, entrei. Apertei o botão para
subir, mas antes da porta fechar, eu a vi. Será que eu estava delirando?
Letícia? Aqui? Saí correndo do elevador e a chamei:
— Letícia!
Ela olhou para trás e quando me viu, correu em disparada. Fui atrás
a chamando:
— Letícia!
Ela corria em desespero pela rua, e eu a perseguia, gritando por ela
como se fosse um louco. Vi quando ela se refugiou em uma loja de
departamentos. O suor escorria pelo meu rosto de tanto nervosismo. Ela não
ia escapar. Quando entrei na loja, fiquei parado, olhando por todos os
lugares tentando encontrá-la. Depois, andei de um lado para o outro e,
quando olhei ao fundo, a vi subindo a escada rolante correndo. Fui atrás,
quase tropeçando nos degraus. Ela olhou para trás e me viu. Correu mais.
Quando cheguei ao andar superior da loja, ela havia sumido. Me desesperei.
Olhei em cada canto e nada. Até que vi um vão da loja onde ficavam os
provadores. Era isso! Dirigi-me até lá e já ia entrando quando uma das
vendedora me interceptou:
— Onde está a roupa que o senhor vai provar?
— Eu estou procurando uma pessoa.
— A entrada só é permitida se o senhor for provar alguma roupa.
Merda! Saí rápido dali, fui até a seção masculina e peguei a primeira
peça de roupa que encontrei em um cabide. Retornei ao local de
provadores. A mulher me deu uma ficha e eu entrei. Fui direto para a ala
feminina, a mulher veio atrás me chamando:
— Senhor?!
Não dei a mínima. Tinha que encontrar Letícia.
— Se o senhor não sair agora, eu vou chamar os seguranças.
— Chama! — falei, já verificando cada uma das cabines, e me
desculpando com as mulheres e senhoras que provavam suas roupas.
Na última cabine a achei. Letícia não estava provando nenhuma
peça de roupa. Estava pálida, encolhida, tentando se esconder de mim.
— Vai embora, Miguel. Me deixe em paz!
Sem pensar em nada, eu a agarrei. As lágrimas caindo em profusão
dos meus olhos. Pura emoção em vê-la ali.
— Me perdoa, eu te amo demais — implorei.
— Me solta, senão eu grito.
— Para com isso, Letícia. Sou eu, amor. Volta pra mim.
Letícia me empurrava, tentando se desvencilhar dos meus braços,
mas eu não a soltava.
— Vem, comigo, vem!
— Nunca! Eu te odeio, Miguel.
— Não fala isso, por favor. Tudo não passou de um mal-entendido.
Eu posso explicar.
— Explicar o quê? Que você mentiu pra mim desde o primeiro
instante em que nos conhecemos? Que você desprezou e abandonou o seu
avô em um asilo? Que você só queria brincar com os meus sentimentos?
Você não passa de uma fraude, Doutor Miguel.
— Não, Letícia. Eu ia contar toda a verdade. Eu juro.
Nesse momento, os seguranças chegaram.
— O que está acontecendo aqui? — Um deles perguntou.
— Nada — respondi.
— Esse homem a está importunando, moça?
— Si...sim — Letícia respondeu, gaguejando.
Olhei para os seguranças dizendo:
— Não é nada. Apenas uma briga de namorados.
— Ou o senhor sai agora, ou nós vamos chamar a polícia.
— Não precisa — disse Letícia nervosa. — Eu vou sair. Miguel por
favor, não venha atrás de mim.
— Fica tranquila, moça. Vamos garantir que ele não vai atrás de
você. — afirmou o segurança.
— Letícia, por favor...
Mesmo aos prantos, ela foi se esquivando, tentando sair da cabine.
Sem suportar mais, me ajoelhei e a agarrei pelas pernas, numa tentativa
inútil de não deixá-la ir.
— Volta pra mim, Letícia. Desde que você se foi, eu vivo de
saudades. Eu não sou nada sem você. Vamos recomeçar do zero, meu amor.
Me perdoa, eu te imploro.
Letícia olhou para os seguranças pedindo ajuda. Os dois me
arrancaram de perto dela e eu fiquei jogado ao chão. Quando ela ia se
afastando, disse sem olhar para trás:
— Adeus, Miguel.
CAPÍTULO 23

Espanha! Meu Deus, seria isso verdade? Quando cheguei na casa


de Ana Lúcia, contei para ela toda a conversa que tive com Seu Raul.
— Letícia, eu acho maravilhoso. Uma oportunidade única, mas não
pense que só porque você vai para longe, vai esquecê-lo.
— Eu não vou esquecê-lo nunca, Ana.
— E a sua faculdade? O que você pretende fazer?
— O resultado ainda não saiu, mas de qualquer forma, sem emprego
e sem moradia, eu não teria condições de cursar a faculdade agora. Quem
sabe eu não consiga continuar os estudos na Espanha?
— Que chique, hein?
Nos abraçamos rindo. Depois ficamos pesquisando na internet tudo
sobre Barcelona, na Espanha.
Na manhã seguinte, fui até a rodoviária e peguei o ônibus para São
Paulo. A viagem durou cerca de uma hora. Só tinha ido a São Paulo com
Miguel e estava completamente perdida. Fui até o posto de informações da
rodoviária e fui orientada a pegar o metrô até o centro da cidade.
Acostumada apenas com cidades pequenas, fiquei assustada com tanta
gente e barulho. Depois que saí do metrô, segui mais uns cinco minutos a
pé, até chegar ao endereço que Seu Raul indicou. Entrei no prédio
imponente, fiquei em uma fila para identificação, e quando chegou a minha
vez, disse:
— Bom dia, eu gostaria de falar com o senhor Carlos Pérez.
— Sua identidade, por favor.
Entreguei o meu documento, e a recepcionista fez uma ligação:
— O senhor Pérez está em reunião. Você marcou horário?
— Não.
— Melhor então você vir outro dia. Ligar antes para marcar.
— Ah, desculpe, mas eu não posso vir outro dia. Eu posso aguardar?
— É que o senhor Pérez é um homem muito ocupado...
Fiquei em dúvida se poderia falar em nome de Seu Raul. Achei
melhor não. Insisti.
— Por favor, eu tenho que falar com ele ainda hoje. É muito
importante.
— Você pode aguardar ali na recepção. Eu vou pedir para a
secretária dele avisar caso haja uma brecha na agenda dele.
— Eu agradeço.
Fiquei aguardando por cerca de duas horas. Já estava impaciente,
quando a recepcionista sinalizou com a mão, me chamando. Quando
cheguei ao balcão, ela disse:
— A secretária do senhor Pérez disse que ele só tem quinze minutos
até entrar na próxima reunião.
Ela me deu um crachá de visitantes e eu disse:
— Eu nem tenho como lhe agradecer.
Peguei o elevador até o trigésimo andar. Quando cheguei, me
deparei com um ambiente luxuosíssimo e duas recepcionistas
elegantemente uniformizadas.
— Bom dia, eu gostaria de falar com o senhor Carlos Pérez.
Uma das meninas ligou para a secretária que pediu que eu entrasse.
Quando entrei, fui recebida por uma mulher linda, com roupa de executiva
e com o semblante sério e altivo. Foi logo dizendo, sem olhar para mim.
— O senhor Pérez só tem dez minutos. Pode entrar.
— Obrigada.
Bati na porta de madeira com o nome de “Carlos Pérez – Diretor”,
escrito. Ao entrar, encontrei um senhor beirando os sessenta anos, de
estatura mediana, calvo e com olhar interrogativo para mim.
— Pois não?
— Bom dia, Seu Carlos. Meu nome é Letícia Prado, e eu estou aqui
a pedido do Seu Raul.
Ele me olhou um pouco surpreso e perguntou:
— Raul Hernandez?
— Isso — respondi.
— E de onde você conhece o Hernandez?
— Nos conhecemos na casa de repouso onde ele mora. Eu era uma
das cuidadoras do local. Eu trouxe uma carta dele para o senhor.
Estendi a carta. Ele pegou, colocou os óculos e se pôs a ler.
Enquanto lia, olhava espantado para mim, que calada, esperava. Quando ele
terminou de ler, levantou, andou de um lado para o outro no imenso
escritório, que tinha uma vista magnífica da cidade, e disse:
— Se eu não conhecesse a letra e a assinatura do meu grande amigo
Hernandez, eu diria que isso tudo não passava de uma farsa. Eu e todo
mundo acreditava que ele estava passando uma temporada na Espanha. Meu
Deus!
O homem estava visivelmente surpreso. Me mantive calada, e ele
continuou:
— Como ele foi parar nesse lugar? Um asilo para idosos? Eu não
consigo acreditar!
— Desculpe, Seu Carlos, mas eu não me sinto no direito de contar
nada do que eu sei sobre esse assunto. O Seu Raul apenas pediu que eu
viesse aqui e lhe entregasse essa carta, dizendo que o senhor era uma pessoa
da extrema confiança dele e que poderia me ajudar.
— Garota, hoje eu não posso, pois tenho vários compromissos aqui
no escritório, mas me passa o endereço desse lugar onde ele se encontra,
porque amanhã mesmo eu vou até lá.
— Eu não sei se ele vai querer. Ele não gosta de receber visitas.
— Ele está bem? Lúcido e saudável?
— Está sim. Seu Raul é um homem muito forte — respondi.
— Pois eu preciso vê-lo, conversar, saber tudo sobre essa história.
Como ele mesmo disse, eu sou alguém a quem ele confia.
Assenti. Talvez fosse uma boa ideia. Comigo longe, o Seu Raul iria
precisar de um amigo por perto, alguém que lhe desse apoio. Passei para
Seu Carlos o endereço e o telefone do Perfect Village. Ele anotou em uma
agenda e depois falou:
— Letícia, me passa também o número do seu celular. Eu entro em
contato com você depois que conseguir conversar com o Hernandez.
Eu entendi a posição dele. Apesar da carta, ele estava desconfiado e
queria confirmar com Seu Raul sobre mim. Estava certo. Aprendi a duras
penas que nesse mundo, não podemos confiar em qualquer um.
Passei para ele o número do meu celular, me despedi e saí da sala.
Agradeci a secretária, as recepcionistas, e fiquei aguardando o elevador
chegar. Como era o último andar, entrei sozinha, mas o elevador parou em
vários andares e as pessoas foram entrando. Quando chegou ao térreo, fui
uma das últimas a sair, e quando já estava depositando o crachá de
visitantes na catraca para liberar a minha saída, ouvi a voz dele:
— Letícia!
Não era possível. Eu só podia estar sonhando. Olhei para trás apenas
para confirmar. Miguel estava ali, na porta do elevador. Por um segundo,
nos olhamos. A saudade me invadiu. Minha vontade foi de pular aquela
catraca, correr para os braços dele e perguntar: “Por quê?” Até que me dei
conta de tudo o que ele havia feito e corri. Saí em disparada pela rua,
ouvindo ele gritar o meu nome. Fiquei desorientada, sem saber para onde ir
e qual rumo tomar. Atravessei a avenida entre os carros, correndo o risco de
ser atropelada, mas só pensava em fugir dele.
Vi uma grande loja de departamentos e entrei para me esconder.
Pensei em encontrar um banheiro onde eu pudesse me refugiar, ficar
trancada até ele desistir de me perseguir. Não encontrei o banheiro, mas
peguei várias roupas do cabide e perguntei para uma vendedora onde
ficavam os provadores. Ela indicou o andar superior, e eu subi a escada
rolante. Entrei na última cabine. Já me sentia segura, quando ouvi a voz da
vendedora, e depois a de Miguel:
— Se o senhor não sair agora, eu vou chamar os seguranças.
— Chama! — ouvi ele dizendo.
Dentro da cabine eu tremia. Não estava preparada para esse
confronto. Quando ele escancarou a cortina da cabine onde eu estava, só
consegui dizer:
— Vai embora, Miguel. Me deixe em paz!
Miguel me agarrou e me abraçou dizendo:
— Me perdoa, eu te amo demais.
Eu quase sucumbi. Era sempre assim. Eu me descontrolava por
completo quando as mãos dele se acendiam no meu corpo. As mãos, a boca,
a barba se arrastando pelo meu pescoço, o seu corpo esmagando o meu
contra o espelho, sem me deixar escapar da certeza do quanto eu o queria.
Lágrimas encharcaram os meus olhos.
— Me solta, senão eu grito.
Gritei, esperneei, implorei para que me soltasse, disse que o
odiava... Os seguranças chegaram, questionaram. Miguel pediu, implorou,
chorou, se ajoelhou no chão, se humilhou. Os seguranças o seguraram e eu
me afastei. Antes de deixar o local, disse sem olhar pra trás:
— Adeus, Miguel.
Saí da loja, atravessei a avenida e corri até o metrô. O trem chegou e
eu entrei. Cheguei na rodoviária, comprei minha passagem e fui embora.
Sem chorar, sem lamentar. Me fiz ausente. Me calei para não doer mais.
Cansei de ter dúvidas. Tinha certeza de que tudo acabou. Não queria me
iludir e acreditar que um dia as coisas poderiam mudar. Era melhor virar as
costas, fechar um ciclo.
No dia seguinte, já era noite quando Seu Carlos me ligou. Ele estava
muito feliz por ter reencontrado o amigo. Pediu que eu enviasse toda a
minha documentação, que ele iria providenciar tudo para a minha viagem.

Os dias passaram muito rápido. Os documentos chegaram e a pedido


de Seu Raul, Seu Carlos abriu uma conta para mim no exterior. Quando
olhei o montante, me assustei. Eram dez mil euros. Liguei para Seu Carlos,
perguntando se havia algum erro, mas ele disse que tinha sido “ordens do
Hernandez”.
Fui até o Perfect Village falar pessoalmente com Seu Raul.
— Não existe erro nenhum. O valor está correto.
— Seu Raul, dez mil euros é uma fortuna. Eu não posso aceitar.
— O custo de vida na Europa é muito caro. Você vai poder
comprovar isso assim que chegar lá. Fica como adiantamento do seu
salário.
— Seu Raul...
— Além disso, você é minha neta. Eu não quero ver você passando
por nenhum tipo de necessidade.
O abracei. Como era bom me sentir cuidada.
Depois ficamos conversando e ele contou que Seu Carlos era um
grande amigo, mas quando ele foi internado compulsoriamente, os parentes
trataram de contar uma mentira a todos, dizendo que ele tinha ido para a sua
casa na Espanha e não queria ser importunado. Ele disse que pensou várias
vezes em procurar Seu Carlos, mas não tinha ninguém que ele confiasse
para fazer essa intermediação entre eles. Agora, Seu Carlos estava
determinado a tirá-lo de lá. Disse que iria até às últimas consequências para
provar que a família tinha agido de má-fé, fraudando laudos médicos para
se apoderar de todos os seus bens.
Fiquei contente. Seu Raul merecia ter uma vida plena e ser feliz.
— Então promete que no dia que o senhor conseguir sair daqui de
vez, vai morar comigo?
— Na Espanha?
— Na Espanha ou em qualquer outro lugar. Não largo do senhor
nunca mais. Somos uma família, lembra?
Nos abraçamos, e assim nos despedimos. Me despedi também de
Lisete, mas não disse nada a ela sobre a minha ida para a Espanha. Não que
eu não confiasse nela, mas Lisete poderia soltar sem querer o meu paradeiro
para alguém desavisado, e Miguel descobrir. Sabia muito bem que ele
andava rondando o Perfect Village.
Antes de viajar, fui até o Lar Seara de Paz me despedir de Clarinha.
Quando cheguei, minha garotinha correu para me abraçar.
— Letícia!
Rodopiei com ela no meu colo.
— Vem ver a minha boneca nova — disse animada.
Fui com ela ao alojamento onde ficava a sua caminha, e ela me
mostrou uma linda boneca que falava palavras aleatórias quando a
barriguinha era apertada. Clarinha apertava e ria a cada som emitido pela
boneca. Reparei vários brinquedos perto dela. Estranhei.
— Clarinha, esses brinquedos são todos seus?
— Tudinho é meu — disse contente.
— E quem foi que deu isso “tudinho” para você?
— O tio Miguel — respondeu, inocente.
Ao ouvir o nome dele, meu coração bateu forte.
— Ele vem sempre aqui, para ver você?
— Vem muito, muito e muito.
— E o que vocês fazem juntos?
— A gente brinca.
— E você gosta dele?
— Gosto. Ele disse que vai ser o meu papai.
— Ele disse isso?
— Disse sim. E disse que eu vou ter um quartinho todo rosa, cheio
de brinquedos e uma roupa de princesa.
Abracei minha menina. Miguel... sempre sedutor. Já tinha
conquistado Clarinha do mesmo jeito que fez comigo. Com palavras, com
gestos, com carinhos, com presentes, com promessas... Que ele nunca a
decepcionasse como fez comigo.
A despedida foi doída. Mais uma vez prometi em silêncio que um
dia voltaria e que seríamos uma família. Seu Raul, Clarinha e eu.
Meu voo para Barcelona sairia às 14h15. Com medo de perder o
voo, por conta do trânsito caótico, na véspera da viagem fui para São Paulo
junto com Ana Lúcia. Me despedi de sua família agradecendo por tudo o
que fizeram por mim. Jamais iria esquecê-los. Passamos a noite em um
hotel e no dia seguinte ela me acompanhou até o aeroporto.
No trajeto até o aeroporto fui invadida por um monte de dúvidas,
insegurança, aperto no peito e frio na barriga. No aeroporto, choro, riso e o
último adeus. Peguei o cartão de embarque, atravessei o portão e me
despedi. Ao entrar no avião, lembrei das palavras ditas por Dona Vilma,
minha mentora na ONG Preparando Vidas:
“Voa com os pés no chão. Você tem o resto do mundo pela frente, e
eu quero muito te ver voar.”
Apertei o cinto de segurança e estava pronta para mais um voo.
CAPÍTULO 24

Enquanto eu via Letícia indo embora da minha vida, continuei no


chão. Não queria levantar, não conseguia levantar. Fiquei aos prantos,
encolhido, enquanto as pessoas me olhavam curiosas. Algumas penalizadas,
outras censurando e debochando. Um dos seguranças disse:
— O senhor está impedindo as senhoras de entrarem no provador.
Poderia me acompanhar, por favor?
Aos poucos, consegui me reerguer me apoiando na parede. Sentia
muita fraqueza, a cabeça parecia que ia explodir. O segurança pegou no
meu braço e eu me esquivei. Me sentia tonto. Respirava com dificuldade,
precisando de ar. Andei cambaleante até a saída da loja. Minha vista parecia
turva. Fui esbarrando nas pessoas, esbarrando nas araras de roupas,
derrubando tudo, até que apaguei.
— Miguel?
Abri os olhos devagar sem saber onde estava. Vi tudo embaçado.
Fechei novamente os olhos e fiquei assim, por mais alguns minutos.
Quando consegui abrir os olhos novamente, me deparei com a figura de
Carlos Pérez. Olhei para os lados, e vi uma enfermeira mexendo no tubo de
soro que levava até o acesso no meu braço.
— O que é que eu estou fazendo aqui? Que hospital é esse? —
Consegui balbuciar.
— Calma, Miguel. Você desmaiou, e foi trazido pela ambulância
para esse hospital. O médico já está vindo falar com você — disse Carlos.
Desmaiei?!
Um médico entrou, e perguntou:
— Está se sentindo melhor, doutor Miguel?
— Sim — falei tentando me erguer na cama.
— Nós fizemos alguns exames e não constatamos nada de errado.
Provavelmente foi uma crise de ansiedade. Se aborreceu com alguma coisa?
— Não — respondi.
— Então deve ser estresse do trabalho. Eu como médico, sei muito
bem o que é isso: plantões, noites sem dormir, má alimentação... Bem, o
melhor seria você tirar uns dias para descansar antes de voltar às suas
atividades normais. Repouso, doutor.
— Ok. Quando eu vou poder ir embora?
— Assim que o soro acabar, você será liberado.
Assenti com a cabeça. Quando o médico saiu, perguntei a Carlos:
— Quem avisou a você que eu estava aqui?
— Você estava usando o crachá da diretoria da Hernandez. A
recepção do hospital ligou, e eu vim para cá imediatamente.
De repente me deu um estalo. Letícia em São Paulo, naquele prédio.
Meu avô. Carlos...
— O que a Letícia Prado foi fazer na empresa? — perguntei.
— Eu não sei de quem você está falando.
— Sabe sim. O meu avô pediu que ela procurasse você, não foi?
Para quê?
— Até onde eu sei, o Hernandez está na Espanha e não quer ser
importunado com visitas. Ele não se comunica com ninguém, porque é
avesso ao uso de tecnologia como computador e celular. Há mais de dois
anos não nos falamos e, como amigo, eu respeito a vontade dele. No dia que
ele precisar, sabe muito bem onde me encontrar.
— Mas a Letícia...
— Eu não sei quem é Letícia.
— É a minha namorada. Eu a vi saindo do prédio.
— A nossa empresa ocupa apenas os seis últimos andares daquele
prédio, Miguel. Ali há vários escritórios, consultórios médicos e dentários.
Talvez ela tenha ido a uma consulta.
— É muita coincidência. Eu vou pedir as gravações para ver
direitinho onde ela foi.
— Desde quando você se tornou possessivo desse jeito? —
perguntou. — Não precisa responder. Isso não é da minha conta.
Fiquei olhando para ele desconfiado. Carlos sempre foi leal ao meu
avô, e se Letícia estivesse lá a pedido dele, ele nunca contaria. Mas eu iria
descobrir.
A enfermeira chegou para retirar o acesso do meu braço. Estava
liberado. Quando saímos do hospital, entrei no banco de carona do carro de
Carlos e disse:
— Meu carro ficou na garagem. Eu vou buscá-lo.
— Nada disso, Miguel. Você vai para a minha casa.
— Não posso. Eu tenho que voltar ainda hoje para Ribeirão.
— Qual foi a parte da palavra “repouso” que o médico disse e você
não entendeu? Eu não vou deixar você pegar estrada hoje de jeito nenhum.
— Então me deixa na cobertura. Eu fico lá.
— Não, Miguel. Hoje eu não vou deixá-lo sozinho. Amanhã você
pega o seu carro na garagem e vai para Ribeirão. Hoje você vai ficar sob os
meus cuidados e da Cândida. Ela vai adorar rever você.
Chegamos ao condomínio onde Carlos morava com a esposa,
Cândida. Na minha infância e adolescência, passei muitos dias naquela casa
junto com meu avô. Quando chegamos, Cândida me abraçou e perguntou
preocupada:
— O que houve, Miguel? Você está bem? Eu soube que você foi
hospitalizado.
— Agora está tudo bem.
Depositei um beijo em sua testa. Sempre tive muito carinho por
Cândida.
— Acho que é mal de amor — Carlos comentou, rindo.
— Não me diga que você foi fisgado?
— Completamente — admiti. — Mas levei um grande pé na bunda.
— Você deve ter aprontado alguma, Miguel — rebateu Carlos.
— Admito que errei feio. Aliás, desde que eu voltei ao Brasil, eu só
tenho feito merda. Consegui magoar as duas pessoas que eu mais amo nessa
vida.
— Isso inclui o seu avô? — Cândida perguntou.
— Sim — admiti.
— O velho Hernandez perdoaria qualquer atitude sua, Miguel —
disse Carlos.
— Tem coisas na vida que não tem perdão.
— Miguel, eu já vivi muito e sei que há momentos em que a gente
se perde. Momentos que nos fazem duvidar do nosso próprio valor, que nos
fazem acreditar que talvez não sejamos suficientes. Nesses momentos,
precisamos estar perto das pessoas certas. Pessoas que nos segurem firme
quando tudo desmorona, e que nos levantem quando esquecemos como
fazer isso por conta própria. Você precisa de uma âncora, e essa âncora se
chama Raul Hernandez. O médico não sugeriu que você tirasse uns dias
para descansar? Por quê você não vai para a Espanha ficar uns dias com o
seu avô? Garanto que ia ser muito bom para vocês dois.
— Ele me odeia — afirmei.
— Não. Ele te ama muito, Miguel — rebateu Carlos.
— Ele não está na Espanha.
— Como não? — Cândida perguntou.
Contei tudo. Desde o dia da morte do meu pai, quando voltei para
Ribeirão, até o sofrimento e apatia do meu avô vivendo o luto pela morte do
filho. Falei sobre a minha mãe e meu tio sugerindo que ele estava doente,
dos dois o interditando judicialmente e colocando-o em um asilo
involuntariamente, da minha omissão e descaso diante de toda aquela
situação, e das acusações do meu avô da última vez em que estivemos
juntos, além de Letícia.
Enquanto eu contava, lágrimas caíam da minha face. Quando
terminei, vi também lágrimas nos olhos de Carlos e Cândida.
— Eu sou um merda, um infeliz.
Carlos levantou, e começou a andar de um lado para o outro da sala.
— Eu preciso ver o Hernandez. Eu preciso falar com ele.
— Ele não quer ver ninguém.
— Mas a mim ele vai querer. Amanhã quando você for para
Ribeirão, eu vou com você.
— Vocês devem me achar um crápula.
— Não, Miguel. Não se julgue assim. É visível o seu
arrependimento. Você tem que se livrar dessa culpa. Sempre é tempo de se
olhar com mais amor, avaliar o que fez de errado, criar novos sonhos e
recomeçar — Cândida disse me abraçando.
Me senti acolhido naquela casa, com aquelas pessoas.
— Cândida tem razão, Miguel. Não se culpe tanto. Os grandes
culpados são aqueles dois gananciosos. Enrico nunca me enganou, e a sua
mãe...
— Eu sei. Hoje eu consigo enxergar o quanto ela é uma pessoa
tóxica.
— Sim. Desculpe por estar falando dela, afinal é sua mãe, mas ela
sempre gostou de manipular as pessoas. Enquanto estava vivo, seu pai
conseguia controlar um pouco os seus impulsos, mas após a morte dele, o
lado dominador dela se evidenciou. Várias vezes, o Hernandez me
confidenciou que não suportava mais a convivência com ela, e quando
disseram que ele tinha ido passar uma temporada na Espanha, eu achei que
ele tinha decidido se afastar daquele ambiente nocivo.
— Eu também não suporto mais morar ao lado deles. Fui hoje à
empresa, justamente buscar a chave de um dos apartamentos. Quero me
mudar o mais breve possível.
— Faz muito bem — disse Cândida.
Fomos jantar, e mesmo sem vontade, me forcei a comer alguma
coisa. Desabafar com aqueles amigos de tantos anos, me fez muito bem.
Pela primeira vez depois de várias semanas, consegui dormir mais relaxado.
No dia seguinte, Carlos e eu fomos até a empresa. Peguei a chave de
um dos apartamentos e peguei meu carro na garagem. Carlos me seguiu até
Ribeirão com o seu carro.
Quando chegamos em frente ao Perfect Village, ele perguntou:
— Vem comigo, Miguel?
— Não. Ainda não é o momento — respondi.
— Se você permitir, eu vou conversar com o seu avô sobre a nossa
conversa de ontem, e ver como ele reage em relação a uma aproximação
com você.
— Ok.
Fui para casa, enchi duas malas, e quando já estava saindo, fui
interpelado pela minha mãe.
— O que é isso, Miguel? Para onde você vai?
— Embora.
— Não faça isso, meu filho, não me deixe sozinha, por favor.
— Tchau, mãe. A gente se fala.
Cheguei no apartamento, arrumei as roupas no armário, tomei um
banho e me senti bem. Não feliz, mas em paz. Decidido a fazer as pazes
comigo, com a vida, com meu avô e reconquistar Letícia.
CAPÍTULO 25

Fiquei muito tensa no momento em que o avião decolou. Nervosa


mesmo, tremendo, mas depois de alguns minutos, consegui relaxar. A
comissária de bordo me entregou um fone de ouvido e eu pude escolher um
filme para assistir. Assim o tempo passou. Dormi, acordei e depois de mais
de dez horas, o avião estava aterrissando no Aeroporto El Prat de
Barcelona.
Segui as pessoas até a área de desembarque, peguei minha mala e
passei pela imigração sem problemas. Quando passei pelo portão de saída,
fiquei sem saber para onde ir. Era um vai e vem intenso de pessoas
transitando por ali. Fiquei parada, assustada, até que vi um homem com
uma placa, escrito nela o meu nome. Ufa! Seu Raul e Seu Carlos pensaram
em tudo. Acenei para ele, que imediatamente pegou minha mala e, com
gestos, pediu para que eu o acompanhasse. Pegamos um elevador que nos
levou a uma garagem. Ele se posicionou em frente a um carro tipo SUV
preto, colocou minha mala no bagageiro, e eu me acomodei. Partimos.
Como cheguei pela manhã, através da janela do automóvel, pude ter
uma noção da cidade. Parecia tudo muito lindo e organizado, mas percebi
que o frio intenso fazia com que as pessoas andassem apressadas e
encolhidas. Juan, o motorista, ia passando pelos lugares e falando um pouco
sobre eles, mas confesso que mesmo com as aulas de espanhol que Seu
Raul me ministrou, ele falava rápido demais e eu pouco entendia. Teria que
estudar muito.
Entendi quando ele falou que faltava pouco para chegarmos ao
bairro Pedralbes. Quando pesquisei sobre Barcelona, li que esse bairro
estava localizado em uma das zonas mais privilegiadas da cidade. Quando
depois de rodarmos aproximadamente trinta minutos o carro parou, olhei
maravilhada para a mansão luxuosa. Só o terreno era gigantesco, todo
arborizado e de frente para um lago. A casa estava localizada próxima a
montanha Sant Pere Màrtir e tinha uma vista panorâmica da cidade. Tudo
lindo demais.
Assim que Juan tirou a minha mala do bagageiro, uma senhora
magra, de estatura mediana e olhos expressivos, saiu de dentro da casa com
um sorriso nos lábios e veio nos encontrar.
— Letícia, não é?
Assenti também sorrindo.
— Me chamo Carmen e sou a governanta da casa. Muito prazer em
conhecê-la.
A cumprimentei feliz e aliviada ao mesmo tempo.
— A senhora é brasileira! — exclamei. — Que maravilha. Estava
receosa de encontrar somente pessoas que falassem espanhol.
— Sim, Letícia. Eu nasci no Brasil. Mas vamos entrar. A viagem foi
longa e você deve estar cansada e faminta.
Entrei na casa, e “uau!”. Era simplesmente fantástica. Juan, o
motorista, levou minha mala para o andar superior da casa e eu fiquei com
Carmen no salão com vista para o jardim. Ela pediu que eu me aproximasse
de uma mesa que estava cheia de guloseimas.
— Como ainda é cedo, eu preparei um lanche para você. Depois de
comer, pode descansar até o horário do almoço.
— Mas é muita coisa, dona Carmen. Não precisava se preocupar.
— Me chame apenas de Carmen.
Assenti. Depois de sentarmos à mesa, ela continuou:
— Letícia, não se preocupe com o idioma. Aos poucos você vai
pegando.
— A senhora fala bem o espanhol? Mora aqui há muitos anos?
— Há oito anos. Desde que meu marido faleceu.
— Eu sinto muito — falei.
Depois ela me contou que seu marido, Luiz, era espanhol e muito
amigo de Seu Raul. Quando os negócios começaram a prosperar, Seu Raul
chamou Luiz para ajudá-lo, e ele foi de vez para o Brasil. Carmen era uma
das funcionárias que trabalhavam na empresa em São Paulo. Os dois se
conheceram, se apaixonaram, acabaram se casando e tiveram um filho.
Foram vinte e um anos de uma união feliz. Quando o marido faleceu, ela
decidiu ir para a Espanha encontrar com o filho que estudava em Madri.
Ficou lá por dois anos, até que Seu Raul pediu que ela se mudasse para
Barcelona, pois precisava de alguém de confiança para administrar a casa.
Ela foi.
— E você, Letícia. O que fez você sair do Brasil e vir parar na
Espanha?
Não sabia se podia contar, confiar. Precisava conhecê-la melhor.
Quando Seu Carlos entrasse em contato, eu iria perguntar sobre Carmen.
Perguntar se poderia falar a verdade sobre Seu Raul.
— Eu pretendo estudar e trabalhar — falei a primeira coisa que me
veio à cabeça.
— Aqui, com certeza você terá muitas oportunidades. Você é muito
jovem. Seus pais a apoiaram?
— Eu sou órfã. Um amigo me apoiou e eu vim para cá.
— Amigo ou namorado?
— Amigo. Na verdade, um benfeitor, anjo da guarda. Eu passei por
uma grande decepção amorosa e precisava me afastar.
— Vocês romperam? É definitivo?
— Para mim sim. Ele mentiu e me magoou demais.
Meus olhos se encheram de lágrimas ao pensar em Miguel.
— Não fique assim, Letícia. Vai ser bom para você passar um tempo
aqui. Vai poder se distrair um pouco, conhecer novos lugares, novas
pessoas.
— Sim.
Carmen sugeriu que eu descansasse. Quando entrei no quarto, nem
acreditei. Era enorme e decorado com muito bom gosto. Tomei um banho e
me deitei um pouco. Acabei adormecendo. Acordei com batidas na porta.
Era Carmen me chamando para almoçar. Estava sem fome, mas não queria
fazer desfeita.
Almoçamos juntas, e depois ela me levou para conhecer todos os
recantos daquela enorme propriedade, que contava com uma infraestrutura
inacreditável com piscina, sauna, quadra de tênis, sala de ginástica e até um
cinema. Fora o paisagismo que era belíssimo. Fiquei encantada com tudo o
que vi.
— Você vai adorar conhecer a cidade, Letícia. Aqui há muitas
opções para uma pessoa jovem como você.
— Eu sei que vou adorar, mas eu nunca fui muito de sair.
— Eu vou pedir ao meu filho que leve você para conhecer a cidade.
— Ele mora aqui? Eu pensei que ele morava em Madri.
— Ele mora lá e aqui. Atualmente ele está aqui, sob a minha
supervisão. Até quando eu não sei. Ele é imprevisível. — Carmen riu.
Estava realmente cansada. Me sentindo um pouco indisposta. Acho
que foi a viagem. Pedi licença a Carmen e fui para o quarto. Dormi a tarde
toda. Quando vi, já passavam das sete da noite. Tomei um banho, coloquei
um jeans, uma camiseta e uma jaqueta por cima. A casa tinha aquecimento
central e, apesar do frio que fazia lá fora, a temperatura ambiente era
perfeita.
Enquanto descia as escadas, ouvi vozes. Me aproximei da sala de
estar e encontrei Carmen conversando com um rapaz.
— Oi Letícia. Que bom que acordou. Deixa eu te apresentar o meu
filho. Pietro, essa é Letícia, a amiga de Carlos e Cândida. Ela vai passar
uma temporada aqui, em Barcelona.
— Prazer — falei estendendo a mão para Pietro.
Ele me olhou de cima a baixo. Era um rapaz alto, magro, tez clara,
cabelos castanhos claros e olhos verdes. Uma barba rala emoldurava o seu
rosto. Era muito bonito. Ele pegou minha mão e falou olhando bem dentro
dos meus olhos:
— Encantado, Letícia.
— Bem, vamos que o jantar está pronto — disse Carmen.
Pietro abriu um vinho e me ofereceu uma taça. Eu neguei com a
cabeça.
— Você não bebe? — perguntou.
— Não estou acostumada a beber, e hoje me senti um pouco
indisposta. É melhor evitar.
— Deve ser o fuso horário. Amanhã você já vai estar acostumada.
— Sim — respondi.
— Pietro, falei com Letícia que você a levaria para conhecer a
cidade.
— Com muito prazer. Podemos começar amanhã mesmo que é
sábado e não tenho trabalho.
— Você trabalha com o quê? — perguntei.
— Eu sou arquiteto — respondeu Pietro.
— Por acaso, foi você quem projetou essa casa?
— Não. Os meus projetos são bem mais modestos.
— E você? Minha mãe disse que você veio para a Espanha com
intenção de trabalhar e estudar? O que pretende?
— Bem, de início eu preciso estudar o idioma. Um amigo me
ensinou o básico. Aqui eu pretendo aperfeiçoar.
— Aqui existem ótimas escolas de idiomas que oferecem imersão.
Você consegue aprender em três meses.
— Que maravilha. É disso que eu preciso. Depois eu penso em
entrar para uma universidade.
— E o que você gostaria de fazer?
— Eu prestei o vestibular para enfermagem no Brasil. Esse é o meu
grande sonho.
— Enfermagem é uma carreira muito bonita — comentou Carmen.
— Eu sempre quis ser enfermeira e, no meu último emprego, eu
percebi o quanto eu gosto de cuidar das pessoas.
— E onde você trabalhava, Letícia? — Pietro perguntou.
— Em um residencial para idosos, em Ribeirão. Eu era cuidadora de
idosos.
— Eu tenho alguns amigos que moram em Ribeirão. Você conhece
os gêmeos Greg e Cauã?
— Não — respondi.
— A Rilana, filha do juiz da cidade...
— Também não.
— O Miguel voltou a morar lá. — comentou Carmem, e eu tremi.
— Desse eu quero distância — disse Pietro.
— Meu Deus! Nem parece que vocês eram os melhores amigos um
do outro...
— Falou tudo. Éramos os melhores amigos. Pra mim, ele não passa
de um canalha, mãe.
— Tudo isso por causa de uma mulher...
— De uma mulher? — perguntei.
— Miguel é neto do velho Hernandez, que é o dono dessa casa. Por
terem a mesma idade, ele e Pietro cresceram juntos. Eram unha e carne.
Durante a faculdade, os dois moraram juntos em São Paulo na cobertura da
família Hernandez. Pietro cursou arquitetura e Miguel, medicina. Após se
formarem, os dois vieram juntos para Madri, até que conheceram uma
moça. Pietro se apaixonou por ela, os dois começaram a namorar, mas a
moça terminou o namoro com Pietro para ficar com Miguel. Foi só isso.
— Só isso, mãe? Ela era a minha namorada e eu peguei os dois na
cama. Esse Miguel é um traíra, um sedutor barato. Não tem sentimentos,
não respeita a ninguém. Vive de mentiras para iludir as mulheres e, quando
consegue conquistá-las, usa, abusa e as descarta como se fossem lixo.
Comecei a me sentir mal ouvindo aquilo. Um bolo se formou na
minha garganta. Vontade de vomitar. Pedi licença e corri para o banheiro
mais próximo. Vomitei horrores. As lágrimas caindo, o coração acelerado.
Não conseguia imaginar Miguel assim. O Miguel que eu idealizei, era um
anjo. O meu amor. Não queria pensar nele com outras mulheres. Parecia
que eu ia morrer. Carmen bateu na porta.
— Letícia, tudo bem?
— Sim Carmen, já estou saindo.
Passei uma água no meu rosto e saí. Pietro estava ao lado da mãe.
— Ficamos preocupados, Letícia.
— Eu fiquei um pouco enjoada, mas estou bem agora.
— É melhor você ir se deitar um pouco. Amanhã estará mais
descansada.
— Isso. Amanhã se prepare para conhecer Barcelona. Vou levar
você para fazer um tour completo.
— Ótimo — disse.
Fui para o meu quarto com o coração cheio de mágoa e tristeza. As
palavras de Pietro não saíam da minha cabeça:
“...quando consegue conquistá-las, usa, abusa e as descarta como
se fossem lixo.”
Certamente era isso que ele faria comigo: me descartar como se eu
fosse um lixo. Pietro o descreveu bem. Um sedutor, capaz de tudo para
conquistar uma mulher. Na certa, já me esqueceu. Deve estar com outra.
Uma nova conquista, um novo desafio. Fui dormir com a certeza de que a
minha decisão de me afastar foi acertada e que eu teria que esquecê-lo a
qualquer custo.
CAPÍTULO 26

Estava na sala da administração do hospital, checando os exames de


alguns pacientes, quando Thaís apareceu.
— Miguel, como você está? Eu soube que você teve um piripaque.
Coitadinho. Só porque a novinha te deu o fora? Mas não fica assim. Vamos
marcar hoje às cinco na sala de descanso que eu te consolo — disse em tom
de deboche.
— Sai daqui, Thaís.
Ela saiu de perto rindo. Fausto, que também estava na sala,
perguntou:
— Nós todos ficamos preocupados. O que aconteceu, cara?
— Eu sofri um desmaio, mas o médico que me atendeu me
tranquilizou. Disse que foi uma crise de ansiedade.
— Você está abatido. Deu para descansar esses dias? Está se
alimentando bem? Precisa de um ombro amigo?
Olhei para ele com carinho. Fausto era um cara incrível.
— Vamos tomar um café na lanchonete. Lá podemos conversar com
calma — Ele disse já saindo. O segui.
Sentamos em uma mesa discreta na lanchonete do hospital, e
pedimos dois cafés. Desabafei.
— Está tudo uma merda. Eu levei um pé na bunda da Letícia e não
estou sabendo lidar com isso. Nunca sofri tanto na vida.
— Miguel, você gosta dessa moça de verdade ou você está assim
apenas por orgulho ferido?
— Eu a amo como jamais amei qualquer mulher na vida.
— O que você está esperando que não vai atrás dela?
— Ela sumiu. O celular só vai para a caixa postal. Já procurei as
pessoas que eram suas conhecidas, já fui a todos os lugares possíveis, e
ninguém sabe dela, ou não querem me falar. A última vez que a vi, foi em
São Paulo, no dia em que passei mal
— E o que ela foi fazer em São Paulo?
— É exatamente isso que eu estou tentando descobrir. Eu a vi saindo
do mesmo prédio onde funciona a empresa da minha família. Quando me
viu, ela saiu correndo e eu fui atrás.
— Conseguiu falar com ela?
— Ela não quer mais saber de mim.
— E você conseguiu saber o que ela foi fazer naquele prédio?
— Não. Por incrível que pareça, quando solicitei as gravações
daquele dia, para ver onde ela tinha ido, fui informado de que houve uma
pane no sistema e as imagens foram perdidas.
— Que estranho, Miguel...
— Bom saber que não sou só eu que achei isso estranho. Lembra do
Carlos Pérez? Acho que você chegou a conhecê-lo uma vez lá em casa.
Fausto assentiu.
— Pois é. Acho que isso teve o dedo dele. Ele está me escondendo
alguma coisa.
— Mas o que a Letícia teria a ver com o Carlos Pérez?
— O Carlos era o melhor amigo do meu avô, e a Letícia era a
cuidadora dele.
— Peraí! Tem alguma coisa errada. O seu avô não estava na
Espanha?
— Isso é o que todos pensam.
Contei tudo para Fausto sobre a armação da minha família, e de
como enganei Letícia esse tempo todo, omitindo que meu avô era um dos
residentes do asilo onde ela trabalhava.
— Miguel, que história... eu não sei nem o que lhe dizer depois de
ouvir isso tudo.
— Estou fodido, Fausto. Não sei mais o que fazer. Eu me humilhei
para ela na frente de todos. Pedi, implorei, me ajoelhei, supliquei para que
ela me perdoasse, que voltasse para mim, e ela disse que me odiava...
— Calma, Miguel. Dê tempo ao tempo.
— Eu estou me sentindo um merda, e ainda vem a Thaís me
sacanear dizendo que “a novinha me deu o fora”. Vontade que eu tenho é de
esganar essa mulher!
— Mas é sério que você se importa com o que essa mulher diz?
Foda-se ela e quem mais zombar da sua dor. Que cultura é essa onde a dor
masculina não pode ter voz? Será que o homem não pode ser vulnerável?
Homens também choram, se sentem inseguros, frágeis, amam, se
emocionam, sofrem, têm medo. Isso se chama preconceito, Miguel. Se está
doendo, seja homem e sinta essa dor.
— Obrigada — suspirei.
— Miguel, só me responde uma coisa. O que você pretende fazer
em relação ao seu avô? Pelo que eu me lembre, ele sempre foi um homem
saudável, inteligente, cheio de atitude, energia e disposição. Vai passar o
resto da vida sozinho, abandonado em um asilo?
— O Carlos foi visitá-lo e está determinado a tirá-lo de lá. Está
consultando advogados para saber como pode fazer isso de maneira correta.
Talvez precise da assinatura de um parente, e eu já me dispus a assinar. Ele
só quer manter tudo em sigilo para que minha mãe e meu tio só descubram
no momento certo.
— E você não pretende ir lá? Conversar com o seu avô? Talvez ele
seja a única pessoa que saiba onde a Letícia está. Já pensou nisso?
— Já pensei, mas eu não quero que ele pense que eu estou indo lá só
por causa dela.
— Eu compreendo. Mas não espera muito para se reconciliar com o
seu avô. Acho que você está precisando do colo de alguém. Uma vez eu li
uma frase que me marcou muito e eu nunca esqueci: “Colo colam cacos”.
Pense nisso.
Estava bem adaptado ao apartamento novo. Era amplo, com três
quartos sendo duas suítes. Tinha contratado uma moça que vinha três vezes
na semana para fazer a limpeza, as refeições e organizar tudo.
Em um domingo, eu convidei Susana para almoçar comigo e
conhecer o apartamento novo.
— Adorei o lugar, Miguel. Ele já veio decorado?
— Sim. Se dependesse de mim... eu sou um fracasso quando o
assunto é decoração.
— Isso a gente deixa para o Pietro. — Susana comentou. — Ele que
sempre teve jeito para isso. Um olhar clínico para arquitetura, construção e
decoração. Vocês têm se visto?
— Não. Faz mais de quatro anos que não nos falamos.
— Nossa, Miguel. Aconteceu alguma coisa entre vocês? Desde que
eu me lembre, não existia Miguel sem Pietro e Pietro sem Miguel.
— Aconteceu um mal-entendido quando estávamos morando em
Madri. Ele se apaixonou por uma garota e eles começaram a namorar. Um
dia, ela me procurou dizendo que os dois tinham terminado. Disse que na
verdade era de mim que ela gostava. Eu nem estava muito interessado, mas
acabamos transando. Ele chegou e pegou nós dois juntos na cama. Surtou.
— Ah, Miguel, isso não se faz...
— Não foi culpa minha. A desgraçada mentiu. Disse que eles não
estavam mais juntos. Se eu soubesse que ela ainda estava com ele, nunca
chegaria nem perto. O pior é que eu perdi uma amizade por causa de uma
vagabunda.
— Que triste. Mas ele continua morando na Espanha?
— Acho que sim. A mãe dele toma conta da casa do meu avô em
Barcelona. Você se lembra daquela casa?
— Casa não, mansão. Claro que me lembro. Passamos umas férias
lá, lembra? Pietro, eu e você.
— Bons tempos.
Após o almoço, ficamos conversando mais um pouco, mas quando
deu três horas eu disse a Susana.
— O papo está muito bom, mas agora eu tenho um compromisso
inadiável.
— Hum, não vai me dizer que esse coração já foi preenchido
novamente?
— Sim e não.
— Como assim, Miguel?
— Não do jeito que você está pensando, mas eu estou apaixonado
por uma garotinha que todo domingo espera ansiosa pela minha visita.
— Quem é ela?
— Vamos lá comigo? Acho que você vai adorar conhecê-la.
Susana concordou, e fomos juntos até o Lar Seara de Paz. Quando
me viu, Clarinha gritou:
— Tio Miguel!
A abracei, erguendo-a em meu colo. Ela gargalhava enquanto eu
fingia morder a sua barriguinha. Depois, falei:
— Clarinha, eu quero que você conheça a tia Susana.
Com um sorriso no rosto, Susana a abraçou e depositou vários
beijos no rostinho dela, dizendo:
— Como você é linda, Clarinha.
— Tia Susana, você gosta de bonecas? Eu tenho um monte que o tio
Miguel me deu.
— Eu adoro.
— Então vamos lá na minha caminha pra ver.
Enquanto elas saíam de mãos dadas para ir até o alojamento das
crianças, aproveitei para sondar os funcionários a respeito de Letícia.
Ninguém sabia de nada. Uma tremenda frustração.
Quando as duas retornaram, não estavam mais sozinhas. Vivian, a
outra criança que eu havia operado depois do acidente com aquela van, se
juntou a elas para brincar. Notei que Susana ficou encantada por Vivian. As
três ficaram jogando bola, depois Susana leu para elas e fomos lanchar
juntos. Para a tristeza das meninas, nos despedimos. No carro, Susana
perguntou:
— Qual a história dessas meninas, Miguel?
— Assim como a história de Letícia, a história delas não é nada
bonita. Vivian foi achada recém-nascida na rua, em uma caixa de papelão
ao relento e trazida para cá. Ela tem sete anos. Clarinha veio pelas mãos da
própria mãe. Ela alegou que não tinha condições de sustentar, e preferiu dar
a filha para adoção.
— Meu Deus! Quando eu penso em tantas mulheres que desejam ter
filhos e não conseguem...
Susana estava com os olhos marejados de lágrimas.
— Letícia amava Clarinha demais. Sonhava em adotá-la um dia, e
eu embarquei nesse sonho junto com ela. Agora, acabou — lamentei.
— Mas isso ainda pode ser possível, Miguel.
— Eu já estou perdendo as esperanças.
— Não pense assim. Vocês ainda serão uma família. Os três.
Sorri. Susana continuou:
— Eu estava conversando com uma das moças que trabalham no
local sobre a Vivian. Ela disse que a probabilidade de ela ser adotada, é
muito pequena. Os adotantes chegam em busca de crianças menores de
cinco anos e brancas. Vivian é negra, e já tem sete anos — lamentou
Susana.
— É uma pena. Foi o que aconteceu com Letícia. Ela disse que só
ficou disponível para adoção aos nove anos e, por esse motivo, não havia
pretendentes para adotá-la. Ela morou no abrigo até completar dezoito.
Susana ficou pensativa. Ela havia perdido uma filha, e aquela visita
ao orfanato só de meninas, mexeu demais com ela. A levei em casa e assim
acabou o meu domingo.
A semana começou sem novidades. Angustiado, decidi contratar
uma agência de investigação para saber do paradeiro de Letícia. Indiquei
todos os lugares onde ela poderia ser encontrada. Eles estavam monitorando
o Lar Seara de Paz, o Perfect Village, a ONG Preparando Vidas, a casa das
amigas Ana Lúcia e Lisete, a empresa da minha família em São Paulo e até
a casa de Carlos e Cândida. Se por acaso ela aparecesse em um desses
locais, eu seria avisado imediatamente.
Por falar em Carlos, ele estava muito empenhado em obter a
anulação da curatela dada a meu tio Enrico, para gerir o patrimônio do meu
avô. Os advogados estavam agora correndo atrás de provas e justificativas
para a anulação, como relatórios médicos. A ação judicial para revogação
de uma curatela era chamada de “ação de levantamento de interdição”. Eu,
como familiar, tive que assinar o pedido. Como meu avô era completamente
são, seria fácil comprovar que ele tinha habilidade para tomar decisões
autônomas e administrar de maneira efetiva sua vida pessoal e seus ativos.
O pior, é que depois de julgada a ação, o curador, no caso meu tio, teria que
prestar contas. Todos nós sabíamos que durante esses quase três anos, com a
cumplicidade da minha mãe, ele usou e abusou dos bens do meu avô.

Três meses se passaram. Três meses sem notícias de Letícia. Passava


dias e noites sonhando com a voz dela sussurrando ao meu ouvido, com o
beijo longo e doce na minha boca. Queria que ela estivesse aqui, contando-
me histórias, encantando-me com o seu sorriso, com o seu olhar, com o seu
toque. Queria que ela estivesse aqui, me dizendo o quanto me amava e
desejava.
Às vezes, era difícil continuar. O trabalho me anestesiava. Estava
trabalhando sem descanso. Me sentia muito sozinho. Uma noite, tive um
pesadelo horrível com o meu avô. Aquilo me deixou abalado. Liguei para
Carlos para obter notícias, mas como ele não atendeu, assim que
amanheceu, peguei o meu carro e fui até São Paulo. Cheguei por volta de
oito da manhã na casa de Carlos e Cândida. Toquei a campainha uma, duas,
três vezes. Já ia desistindo, quando a porta se abriu. Não acreditei quando vi
meu avô ali, na soleira da porta. Há mais de três anos não nos víamos. Ele
me olhou surpreso, mas com uma intensidade que me desarmou. A emoção
tomou conta de mim. Nesse momento, me vi menino diante do homem que
sempre foi meu amigo, meu companheiro. O homem que eu injustamente
desprezei. Com os olhos banhados em lágrimas, arrependido e
envergonhado, pedi:
— Me perdoa, vô.
Seu Raul Hernandez, abriu seus braços num gesto de puro amor, e
foi ali que eu entendi a frase:
“Colo colam cacos”.
CAPÍTULO 27

O que dizer de Barcelona? Me encantei por todos os lugares por


onde passei e por tudo o que vi.
Quanto mais Pietro me mostrava, mais eu me encantava. Não seria
nenhum exagero afirmar que Barcelona era um destino turístico completo.
A cidade era riquíssima do ponto de vista arquitetônico, repleta de
ruazinhas charmosas e pra lá de animadas, praças, museus interessantes,
monumentos, belas praias, bons restaurantes, vida noturna agitada e muito
mais.
E falar das belezas de Barcelona, de arquitetura, e não mencionar o
gênio Antoni Gaudí é algo praticamente impossível. Isso porque, entre os
principais feitos do famoso mestre, estão nada mais nada menos do que a
imponente catedral da Sagrada Família, um dos símbolos da cidade.
Além de conhecer a Sagrada Família, Pietro me levou ao Palácio da
Música Catalã, depois percorremos o Bairro Gótico e diversas ruas
encantadoras para caminhar sem pressa e sem destino. Fizemos ainda um
passeio pela Rambla, que era a avenida mais turística da cidade e onde
ficava o Mercado da Bogueria, cheio de delícias locais para experimentar e
comprar. Ainda fomos até o Museu Picasso e ao Parque Ciutadella, um dos
mais procurados espaços verdes da cidade.
Acabamos o passeio conhecendo a orla de Barcelona, com destaque
para a praia da Barceloneta, a mais animada faixa de areia da cidade. Eu,
que nunca havia estado em uma praia antes, nem mesmo no Brasil, fiquei
extasiada. Na hora pensei em Miguel. Ele dizia que todas as minhas
primeiras experiências seriam ao lado dele. Uma vez, comentei que meu
sonho era conhecer a praia, e ele prometeu que, no meu aniversário, iríamos
viajar para o Rio de Janeiro. Miguel, quanta saudade...
Sentamos para almoçar em um restaurante típico que servia a
famosa paella de frutos do mar. Estava com fome e comi com gosto, mas
logo fui ficando enjoada. Aquele cheiro... Pedi licença para Pietro e fui até
o banheiro. Passei muito mal. Quando voltei para a mesa, ele perguntou:
— Está tudo bem, Letícia?
— Está sim.
— Você está me parecendo um pouco pálida.
— Ainda deve ser efeito do fuso horário — disfarcei.
Não queria ficar me queixando, e passar uma imagem a Pietro de
pessoa doente.
— Você aceita uma bebida?
— Não, Pietro, obrigada.
Estava louca para sair daquele restaurante. Não estava suportando
aquele cheiro, mas não queria ser indelicada, afinal, Pietro estava sendo
muito gentil e prestativo em me levar para conhecer a cidade.
— E então, Letícia. Está gostando do passeio?
— Muito. A cidade é magnífica.
— Eu adoro Barcelona. Essa era a cidade natal do meu pai.
— Mas você trabalha em Madri, não é?
— Na verdade, eu trabalho por conta própria em regime home
office. Vivo viajando. Tenho clientes em vários lugares da Espanha, mas
estou sempre dividido entre Madri e Barcelona: Madri por causa de amigos
e aqui por causa da minha mãe.
— Mas você nasceu no Brasil, não é? Nunca mais voltou?
— Assim como você, vim para cá com o propósito de estudar e fui
ficando. Quando meu pai faleceu, minha mãe decidiu se mudar para cá,
então não havia mais motivos para eu voltar ao Brasil.
— Mas quando você veio, já sabia falar o idioma?
— Sim. Meu pai só falava espanhol em casa. Aprendi desde muito
pequeno. Na infância, eu até confundia as palavras. Constantemente
misturava o português com o espanhol. Eu e Miguel éramos motivo de
chacota na escola por causa disso.
Quando ele tocou no nome de Miguel, meu coração acelerou.
— Miguel é o amigo que te decepcionou? — perguntei.
— Sim. Nós éramos muito amigos. Na adolescência, éramos um trio
inseparável: eu, ele e Susana.
— Susana?
— Era a namorada de Miguel. Os dois eram vizinhos e muito
apaixonados um pelo outro. Eu jurava que eles se casariam um dia. Susana
era linda e muito gente boa. Quando a família dela se mudou para a
Alemanha, Miguel nunca mais foi o mesmo. Começou a se misturar com
uma turma da pesada. Bebia, se drogava e fazia muita merda. Saía com
várias mulheres, mas nenhuma o prendia. Para ele, todas eram descartáveis,
não passavam de um passatempo.
— Nossa, então ele devia amar demais essa moça, a Susana — disse
já com um nó se formando na minha garganta.
— Sim. Quando viemos morar em Madri, ele foi até Frankfurt, na
Alemanha, só para vê-la. Voltou depois de alguns dias arrasado, dizendo
que a relação tinha acabado de vez. Aí continuou agindo como um babaca
com as mulheres.
Meu Deus! Então era isso? Miguel era apaixonado por Susana e
nunca a esqueceu. Eu fui apenas mais uma das mulheres descartáveis que
passaram pela sua vida, um passatempo...
— Mas por que estamos aqui perdendo o nosso tempo falando sobre
Miguel?
— Não sei — respondi, segurando a vontade de chorar.
— Na segunda-feira eu vou levá-la para conhecer um curso de
idiomas. É bom que você tenha o domínio da língua. Vai poder ter mais
autonomia.
— Mas eu não quero te dar trabalho, Pietro.
— Não vai ser trabalho nenhum. Mas e você?
— Eu o quê?
— Linda desse jeito, deve ter deixado uma legião de apaixonados no
Brasil.
— Eu tive apenas um namorado. Achei que ele estivesse
apaixonado, mas me enganei. Ele mentiu para mim, me enganou.
— Mais um Miguel da vida. O mundo está cheio desses canalhas.
Mas você é muito novinha. Ainda vai conhecer alguém que te dê valor, que
te ame de verdade. Quantos anos você tem, Letícia?
— Vou fazer dezenove daqui a duas semanas.
— Não me diga? Vou anotar na minha agenda. Temos que
comemorar.
Na segunda-feira, Pietro me acompanhou até o curso de idiomas. As
aulas seriam três vezes na semana em horário integral. Fiz logo a minha
matrícula. Seria muito bom preencher meu tempo.
Pietro era uma ótima companhia. Como eu não conhecia ninguém
na cidade além dele e de Carmen, ele fez questão de me apresentar a seus
amigos. Apesar de entender muito pouco do idioma, foi muito bom ver o
estilo de vida dos espanhóis. Eram pessoas muito amáveis e divertidas.
Me comunicava sempre com Seu Carlos através do celular. Ele me
mantinha informada sobre Seu Raul. Fiquei muito feliz ao saber que ele
estava fazendo de tudo para tirá-lo da casa de repouso. Não via a hora de
Seu Raul poder voltar a sua vida normal. Queria muito que um dia
pudéssemos morar juntos: eu, ele e Clarinha. Nunca esquecia da minha
garotinha. Ana Lúcia sempre ia visitá-la e me mandava fotos dela.
Da última vez que esteve no Lar Seara de Paz, Ana Lúcia fez uma
chamada de vídeo e eu pude falar com Clarinha.
— Letícia! — Ela gritou quando me viu.
— Ah, que saudade que eu estou de você, meu amor.
— Eu também tô com saudade. Quando você vem me ver? Eu quero
te mostrar a minha bonequinha nova.
— Logo, logo eu vou aí te ver. Mas quer dizer que você tem uma
bonequinha nova?
— A tia Susana me deu. Ela trouxe uma boneca pra mim e uma pra
Vivian.
— E quem é a tia Susana?
— A namorada do tio Miguel.
Gelei. Estava sentada em uma mesa no espaçoso jardim, e me senti
desfalecer. Ana Lúcia disse:
— Clarinha, dá tchau pra Letícia.
— Tchau, Letícia.
Não consegui nem responder. Ana Lúcia tentou me acalmar:
— Calma, Letícia. Você sabe como é criança. Vê um homem e uma
mulher juntos e pensa logo que são namorados. Vai ver é apenas uma
amiga.
— Não, Ana. Susana é o nome da mulher que Miguel mais amou
nessa vida. A única mulher que ele amou de verdade. Para ele, eu não
passava de um passatempo. Agora, ela voltou da Alemanha e eles estão
juntos.
Chorei convulsivamente. Carmen se aproximou bem nessa hora:
— Letícia, o que aconteceu? Por quê está chorando desse jeito?
— Eu estou falando com minha amiga no Brasil e bateu saudades.
Me despedi de Ana e desliguei o celular. Mesmo assim, não parava
de soluçar.
— Não fique assim. Sei que você deve estar se sentindo sozinha,
sem amigos. A barreira do idioma atrapalha muito, mas quando suas aulas
começarem, você fará novos amigos.
Tomei uma água e depois fui para o meu quarto. Como pude me
enganar tanto! O pior é que eu pensava nele dia e noite. Essa noite mesmo,
ele surgiu nos meus sonhos, cheio de desejo. Havia fome em seus olhos,
ousadia em sua pegada. Mãos e boca tomaram posse do meu corpo. Beijos e
carícias despertaram o tesão adormecido em mim. Senti a boca salivar.
Queria abocanhar, morder, degustar, fazê-lo refém dos meus desejos. Olhei
para ele com um olhar dengoso e ao mesmo tempo perverso. Ele sorriu de
um jeito safado, como quem pagava para ver. Beijei seus lábios, desci pelo
pescoço deixando uma trilha molhada de beijo, mordida e lambidas um
pouco abaixo do umbigo. Voltei a olhar em seus olhos como uma gata no
cio. Agarrei seu membro e abocanhei gulosa. Miguel gemeu, eu gemi.
Acordei suada, molhada. Chorei.
Hoje é o dia do meu aniversário. Dezenove anos. Carmen preparou
um café da manhã especial e Pietro apareceu com flores. Agradeci muito
pelo carinho dos dois. Mais tarde, fomos almoçar em um restaurante na
cidade. O garçom trouxe um bolo e cantamos parabéns. Apesar de tudo,
estava feliz na companhia desses novos amigos.
Após o almoço, fomos caminhar na orla. Estávamos conversando,
quando senti uma cólica muito forte. Tão forte, que eu parei e me contorci
colocando a mão na barriga. Senti um líquido descendo pelas minhas coxas.
Quando vi, era sangue.
— Letícia! — ouvi Carmen gritar e depois não vi mais nada.
Quando acordei, estava em uma cama de hospital.
— O que houve? — perguntei.
— Você teve uma hemorragia e desmaiou — disse Carmen.
— Mas o que eu tenho? É algo grave?
Carmen e Pietro se entreolharam. Uma médica entrou e disse algo
em espanhol que deu para eu entender.
— Necesitas reposar.
— Por quê? O que eu tenho? Eu estou muito doente? — perguntei,
nervosa.
— Estás embarazada — respondeu a médica.
— Embaraçada? O que é isso? — perguntei olhando para Carmen e
Pietro.
— Você está grávida, Letícia — respondeu Carmen.
CAPÍTULO 28

Fiquei alguns minutos abraçado ao meu avô em um pranto


convulsivo, até que ele se afastou e disse:
— Vamos entrar, Miguel.
Quando entramos, ele foi até a cozinha, pegou um copo de água e
me entregou. Bebi com avidez. Quando me recuperei um pouco, perguntei:
— Eu não sabia que você tinha saído daquele asil... do Perfect
Village.
— Não saí. O advogado que Carlos contratou conseguiu uma
concessão junto ao juiz para que eu passasse os finais de semana fora do
asilo. — Meu avô frisou bem a palavra “asilo”.
— O Carlos não me avisou sobre isso...
— Eu pedi que ele não avisasse a ninguém, Miguel.
Assenti. Sabia que não seria fácil. A perda de confiança nunca passa
em vão. Teria que lutar muito para reconstruir aquela relação. Vendo que eu
me mantinha calado, meu avô continuou:
— Eu gostaria de lhe agradecer. O Carlos me contou que você
assinou o pedido para que os advogados pudessem entrar com a ação para
anular a minha interdição judicial. Vai ser difícil para você se explicar com
a sua mãe. Ela não vai entender. Vai ser travada uma grande batalha.
— Eu estou preparado, vô. Eu errei muito com o senhor e me
arrependo demais por isso. Naquela época, eu estava tão absorto em mim,
que não percebi o que minha mãe e meu tio estavam pretendendo. Fui
omisso. Deixei as coisas acontecerem. Me sinto muito culpado. Eu deveria
ter tomado a frente da situação, reagido, mas fui um grande covarde.
— Miguel, pare de olhar para o que passou com as lentes da crítica e
do arrependimento. Entenda, isso não vai ajudar em nada. Uma vez que
você já identificou onde errou e o que não pode repetir mais em sua vida, o
melhor a fazer é encher a alma de gratidão pelos aprendizados e tocar o seu
barco. Não é fácil olhar para trás e ter consciência de tudo o que fez de
errado. Isso causa revolta, dor, constrangimento e raiva. Se perdoe. Não
tinha como você pensar, naquela época, com a cabeça que você tem hoje.
Você vai continuar errando, todos nós iremos. Mas que sejam erros novos,
para que você tenha novas oportunidades de crescer.
Me mantive de cabeça baixa, as lágrimas caindo.
— Ainda que você tenha permitido, entenda que você estava, de
alguma forma, sem imunidade emocional. Hoje o contexto é outro. Perdoe-
se pelas escolhas que te fizeram sofrer, isso é fundamental para que você
caminhe em paz pela vida e atraia as pessoas e circunstâncias que você
merece.
— Você não odeia as pessoas que fizeram isso com você, vô?
— Eu já tive muita raiva, Miguel. Me achava injustiçado, mas
depois percebi que às vezes é melhor seguir com a mente tranquila e o
coração limpo. Não pensar em odiar quem um dia te fez sofrer, mas ter
maturidade o suficiente para perdoar e permitir que a vida siga seu fluxo.
Sem peso, sem dor, sem mágoa. O importante é olhar para nós mesmos,
reconhecer nossas fragilidades, os pontos a serem corrigidos e melhorar.
— E o que o senhor pretende fazer quando tudo for resolvido? Vai
voltar para Ribeirão? Reassumir os seus negócios?
— Isso eu ainda não decidi. Talvez eu passe uma temporada na
Espanha. Não foi isso o que eles espalharam por aí? Que eu morava na
Espanha?
— Sim, vô. Foi isso mesmo o que eles disseram, mas eu gostaria
muito que o senhor viesse morar comigo.
— Naquela mansão, junto com sua mãe e seu tio?
— Não. Eu estou morando sozinho, em um dos apartamentos no
centro. Não aguentei toda aquela opressão.
— Fez muito bem, Miguel.
— Eu estou me sentindo muito sozinho desde que a Letíc...
— Letícia. — Meu avô concluiu. — Engraçado que estávamos
falando há pouco de pessoas que ferem, e agora de pessoas que curam.
Letícia... ela foi o sol que iluminou os dias nublados da minha vida.
— Os meus também, vô. Você sabe onde ela está?
Ele não me respondeu, apenas perguntou:
— Diga a verdade, Miguel. O que você sente por essa moça?
— Eu a amo demais. Sei que errei muito com ela, menti, mas eu
nunca sofri tanto na minha vida. Eu estou ficando louco, não consigo viver
longe dela. Acredite em mim, por favor.
— Eu acredito, Miguel. Até porque, é impossível não se apaixonar
por Letícia. Ela me lembra demais a sua avó. Linda, inteligente, sensata,
discreta, amiga, sensível, delicada e muito generosa. Ela me conquistou
com sua meiguice, o sorriso aberto e o seu olhar sincero.
— Ela é perfeita demais. Eu preciso encontrá-la. Já não sei mais o
que fazer, onde procurar. Eu contratei uma empresa de investigação, mas
até agora, eles não encontraram nenhuma pista dela. Ela desapareceu sem
deixar vestígios — comentei.
— E caso você a encontre, o que pretende?
— Eu quero tudo com ela. Eu quero pedir perdão, provar que a amo.
Quero casar com ela.
— Miguel, quando a Letícia me contou que vocês estavam
namorando, eu fiquei muito preocupado. Ela era uma moça pura, ingênua e
você um homem vivido, que nunca quis se envolver, nunca levou nenhum
relacionamento a sério. Fiquei com muito medo de você magoá-la, mas ao
mesmo tempo tive esperanças de que ela pudesse resgatar tudo o que você
tinha de melhor: a sua integridade, a sua generosidade e benevolência.
— Eu sei que não a mereço, que estraguei tudo, mas o amor dela me
transformou em um novo homem, vô. Sem ela, tem sido tudo muito
doloroso. Cada dia que passa é de esperança e também de desilusão. Me
sinto vazio, incapaz. Queria saber o que fazer, o que dizer para ela me
perdoar.
— Eu gosto da Letícia como se ela fosse a minha neta. Desejo para
ela tudo de melhor, assim como desejo a você. Se você a ama do jeito que
diz, mostre a ela esse novo homem em que você se transformou, mostre o
quanto você mudou. Uma mudança concreta de atitude vale mais do que
mil palavras e mil perdões.
— E como ela vai saber que eu mudei estando longe, vô?
— Ela saberá.
Ali tive a prova de que ele sabia onde Letícia estava. Carlos e
Cândida chegaram e se surpreenderam ao me ver lá.
— Miguel, que surpresa!
Levantei do sofá onde estava sentado junto com o meu avô para
cumprimentá-los.
— Tive um pressentimento. Alguma coisa me dizia que eu precisava
vir aqui hoje. Olha a surpresa! — disse.
— Bom saber que vocês dois se entenderam.
Me aproximei e dei um beijo na testa do meu avô, que sorriu.
Ficamos mais um tempo conversando. Almoçamos juntos e só fui embora
no final da tarde. Antes de ir, pedi ao meu avô:
— Vô, se tiver qualquer notícia de Letícia, por favor me avise. Eu
estou muito desesperado.
— Sossega, Miguel. Tudo chega no tempo certo. Não se apresse.
Ela precisou se afastar. Às vezes precisamos de silêncio para organizar
nossos pensamentos e decidir por qual caminho seguir. A água quando está
agitada, fica turva e não nos permite enxergar se há algo importante dentro
dela. Não desanima. Os ventos fortes só surgem para mostrar como nossa
base é forte. Ela partiu porque precisava de tempo. Vamos dar esse tempo a
ela. Letícia é uma joia rara, cheia de valores fortes e inabaláveis. Espero
que o que eu vou lhe dizer agora, sirva de consolo: ela também te ama e
isso nunca vai mudar.
Assenti. Nos despedimos com um abraço. Estava muito feliz.
Fui visitar minha mãe. Quando cheguei, ela se encontrava possessa.
— Aconteceu alguma coisa, perguntei?
— Não seja cínico, Miguel. Eu nunca esperei isso de você. Trair a
própria família... eu estou muito decepcionada.
— Eu não sei do que você está falando.
Nesse momento, meu tio entrou na sala.
— Olha quem chegou: o traíra. Está satisfeito? O que o seu avô lhe
prometeu? Colocar você como único herdeiro no testamento? Pois saiba
que isso jamais irá acontecer.
— Eu não quero dinheiro nenhum do meu avô. Eu não preciso de
nada, além da amizade dele.
— Mas como você é dissimulado, Miguel. Eu te conheço muito
bem. Você não dá ponto sem nó. Tudo o que faz é premeditado, tem sempre
um interesse por trás.
— Não me julgue por você.
— Já sei. Você deve ter se unido àquela “putinha esperta” que
cuidava do meu pai no asilo, para juntos darem o golpe certeiro. Como esse
seu filho é esperto, Celeste.
— Limpa a sua boca antes de falar de Letícia. Ela não é da sua laia e
eu exijo respeito.
— Calma, Miguel. Essa mulher virou mesmo a sua cabeça. Não foi
à toa que ela chegou aqui nos ameaçando. Você não consegue enxergar que
ela arquitetou um plano, usando você para nos tirar da jogada com a
intenção de se apoderar de todos os bens do seu avô? Ela é perigosa, meu
filho. Pode até atentar contra a sua vida para ficar com tudo. Afaste-se dessa
mulher, Miguel, por favor.
— Eu vim até aqui para visitar você, mãe, mas estou vendo que foi
um erro. Eu vou me afastar sim, mas de vocês. Tchau!
Saí furioso. Minha vida tinha virado um verdadeiro inferno. Parecia
que eu não tinha paz em lugar algum. Fui para casa, tomei banho, fiz um
lanche rápido e segui para mais um plantão no hospital. Estava tão
sobrecarregado, que estava amadurecendo a ideia de pedir demissão e ficar
só com a clínica. Era muita pressão e eu sentia que precisava diminuir o
ritmo.
Assim que cheguei, tive que ir direto para o centro cirúrgico. Um
menino de dezessete anos deu entrada com a perna esmagada depois de um
acidente de moto. Quando entrei no centro cirúrgico, Fernando, o residente,
já tinha assumido. Fiquei à espreita, esperando para ver o que acontecia ali,
sem querer me envolver muito, mas quando vi que a equipe se preparava
para uma amputação, tive que intervir.
— Não. Vamos tentar tudo antes de chegar a esse extremo.
— Doutor Hernandez, nós já fizemos a análise pré-operatória e...
— Dá para recuperar essa lesão na artéria.
— Mas pode haver uma isquemia. Podemos perder esse paciente na
mesa cirúrgica...
— Vou assumir o risco. Não posso condenar um rapaz assim tão
jovem a ter uma vida pela metade. Se há chances, eu vou tentar. A
amputação será a última alternativa aqui.
Fernando me olhou com incredulidade e se afastou. Eu assumi.
Foram mais de sete horas de cirurgia, mas eu consegui. Ao final, todos os
colegas que estavam no centro cirúrgico me aplaudiram. Um momento de
superação.
O dia já amanhecia quando retornei para casa. Estava exausto. Não
aguentava mais nada. Despertei por volta de meio-dia com o meu celular
tocando. Quando atendi, alguém da firma de investigação se identificou:
— Alguma informação nova? — perguntei, nervoso.
— Sim. Consta nos dados da Polícia Federal um passaporte emitido
em caráter de urgência em nome de Letícia Prado.
— Ela embarcou para algum lugar?
— Isso é o que estamos tentando descobrir. Qualquer coisa o
manteremos informado.
Letícia? Passaporte? Onde foi que ela se meteu?
CAPÍTULO 29

Grávida de nove semanas. Era difícil acreditar que tinha um


serzinho se formando dentro de mim. Meu filho. Quando ouvi seu coração
bater mais forte junto com o meu, foi uma alegria sem fim. Eu me dei conta
de que não estava mais sozinha e, naquele momento, eu encontrei a paz que
tanto procurava. Nada mais importava. Tudo o que era escuro ficou repleto
de luz e vida. Já éramos um do outro. Já era amor.
Fiquei hospitalizada durante três dias. Tive um descolamento de
placenta e quase perdi o meu bebê. Teria que ficar no mínimo quinze dias
de repouso absoluto. Quando voltei para casa, Carmen e Pietro me
encheram de cuidados. Gratidão por ter essas pessoas em minha vida.
Após o período de repouso, Carmen me chamou para conversar:
— Letícia, o Carlos já sabe sobre a sua gravidez. Me desculpe, mas
eu tive que contar, afinal você chegou aqui através dele e eu não podia
ocultar essa informação.
— E o que ele falou? — perguntei, nervosa.
— Ele pediu para que eu desse a você todo o suporte necessário,
mas que você deveria contar tudo para o pai dessa criança.
— Não! Pede por favor para ele não contar nada! — disse quase
gritando.
— Calma, você não pode se alterar desse jeito. Foi apenas uma
sugestão do Carlos. Mas Letícia, apesar de vocês não estarem mais juntos,
você não acha que o pai tem o direito de saber?
— Não, Carmen. Eu vou criar o meu filho sozinha.
— Letícia, uma gravidez traz direitos e deveres tanto para a mãe
quanto para o pai, desde o primeiro momento. Omitir a gravidez, implica
em violação ao direito à paternidade. Esse rapaz com quem você se
envolveu, talvez não tenha sido bom e honesto com você, mas poderá ser
diferente no papel de pai. Existe ainda a questão de um filho querer saber
sobre suas origens biológicas, o que é perfeitamente natural e esperado. Há
também o ponto de vista financeiro. O pai tem obrigações. Ele tem que
dividir com você a responsabilidade para com a criança.
— Eu tenho que pensar sobre isso. Eu quis fugir dele e agora...
— Ele é um homem violento?
— Não. De jeito nenhum. Eu fugi porque a decepção foi muito
grande. Ele chegou a me procurar, mas eu sabia que não daria mais certo e
achei melhor me afastar.
— Você poderia considerar dar uma segunda chance a ele. Ainda
mais agora, com a criança.
— Não há segundas chances para aquilo que um dia te causou dor e
sofrimento. Não há segundas chances para aquilo que um dia te
despedaçou. Além disso, eu descobri que ele não está mais sozinho. Ele
voltou com a mulher que sempre amou. Deve estar feliz, e eu não quero
atrapalhar.
— Bem, você ainda tem longos seis meses para pensar. O
importante agora é cuidar bem dessa criança que merece receber todo o
amor do mundo.
Assenti. Mesmo tentando evitar, pensava em Miguel o tempo todo.
Ficava sempre imaginando como seria se nós ainda estivéssemos juntos.
Como seria bom dividir esse momento com ele. Compartilhar as
experiências, as mudanças no meu corpo, fazer planos, sonhar. A minha
memória guardava tudo: o olhar, o beijo, o toque, o amor feito, o cheiro, a
vontade, o sentir. A memória me levava sempre até ele.
Uma coisa já estava certa: se fosse um menino, eu daria o nome de
Francisco, como o pai de Miguel. Uma vez, ele comentou que se tivesse um
filho homem, daria a ele o nome do pai. Acho também que Seu Raul ficaria
feliz pelo bisneto ter o nome do filho que ele tanto amava e admirava.
Seu Raul... Será que Seu Carlos já havia contado a ele que eu estava
grávida? Qual seria a sua reação? Será que ficaria feliz sabendo que eu lhe
daria um bisneto? Queria muito estar perto dele agora. Ouvir os seus
conselhos. Seu Raul era um homem muito sábio e sensato.

O tempo passava depressa e minha barriga crescia a olhos vistos. Os


enjoos e o mal-estar dos primeiros meses haviam passado e eu adorava estar
grávida. A cada mês, tirava foto do meu barrigão e enviava para Ana Lúcia
e Seu Carlos. Quando foi confirmado que seria um menino, enviei o vídeo
do ultrassom para Seu Carlos, pedindo que ele mostrasse para Seu Raul
com o seguinte recado: Francisco está chegando!
Após receber minha mensagem, Seu Carlos fez uma chamada de
vídeo e para a minha surpresa, Seu Raul apareceu no visor. Quanta saudade!
Ele estava com os olhos marejados de lágrimas e disse que, assim que as
coisas se resolvessem, iria para a Espanha ficar comigo e com o bisneto, sua
verdadeira e única família. Me emocionei muito falando com ele. Puro
amor.
Pietro se mostrava cada vez mais presente. Toda semana vinha
repleto de presentes para Francisco. Estava muito entusiasmado com a
minha gravidez. O quartinho do meu filho estava ficando muito lindo, todo
em tons de azul e bege. Como arquiteto, Pietro planejou tudo nos mínimos
detalhes.
Frequentava o curso de idiomas três vezes na semana, e meu
espanhol ficava melhor a cada dia. Minha turma era formada por doze
alunos, todos estrangeiros, inclusive alguns brasileiros. Pietro fazia questão
de me levar e me buscar no curso e era só cuidados. Cheio de mimos,
carinho e atenção. Tanto, que todos achavam que ele era o pai do meu bebê.
Isso me incomodava demais e, por isso, achei melhor dar um basta:
— Pietro, você não precisa ter esse trabalho de me levar e me buscar
no curso. Eu posso muito bem pegar o metrô. Não há riscos.
— Mas não é trabalho nenhum. Enquanto eu estiver aqui, não me
custa nada. Eu prefiro que seja assim. Eu não quero que nada aconteça com
você e com o bebê.
— Eu sei me proteger, Pietro.
— Eu me importo com você. Talvez por isso, eu tenha essa
necessidade de cuidar de você.
— Eu agradeço pelo carinho.
— Não é apenas carinho. É mais, Letícia. Eu queria dizer o quanto
você é especial para mim.
Pietro falou isso olhando nos meus olhos e me pegou de surpresa.
Fiquei muito sem graça, sem saber o que dizer. Ele continuou:
— Eu não consigo entender como um homem é capaz de desprezar
uma mulher como você. Desculpe, mas esse homem, pai do seu filho, deve
ser um tremendo de um babaca. Eu não sou santo, Letícia, mas eu sempre
fui sincero com as mulheres. Nunca enganei ninguém, sempre respeitei a
todas. Na minha visão, as relações tem que ser às claras: se você só quer
sexo, deixe isso claro, se quer um relacionamento, deixe isso claro, se quer
alguém com quem passar bons momentos, deixe isso claro. Apenas não use
as pessoas. Eu queria muito ter a chance de um dia poder mostrar a você o
que é um relacionamento de verdade.
— Pietro, eu admiro você demais, mas como amigo. Eu não quero e
não pretendo me relacionar novamente com ninguém.
— Eu entendo, Letícia, mas você ainda é muito jovem, está
desiludida. Eu sei que mais cedo ou mais tarde você vai abrir esse coração
novamente e eu espero que a próxima pessoa que entrar na sua vida, faça
com que você acredite novamente no amor. Que essa próxima pessoa não te
faça promessas vãs. Que seja alguém disposto e maduro, para te dar o amor
que você merece.
Ele pegou nas minhas mãos, e ainda olhando dentro dos meus olhos,
prosseguiu:
— Que seja uma pessoa que te fortaleça, ao invés de fazer você
colocar em xeque o seu próprio valor e sua capacidade de amar e ser amada.
Que seja uma pessoa que você não precise fazer força para que ela fique ou
demonstre afeto. Que isso venha no ritmo natural que une os corações.
Desejo isso para a próxima pessoa que aparecer em sua vida: que seja leve,
que seja eu!
— Pietro, eu...
— Não se sinta pressionada, Letícia. Eu só queria te dizer o quanto
você é importante para mim e eu espero que um dia você consiga me olhar
com outros olhos.
Além de lindo, Pietro era um homem maravilhoso. Se fosse em
outras épocas, em outras circunstâncias... Acontece que eu ainda amava
Miguel e eu era fiel a esse sentimento. Para mim, amar era ser leal mesmo
quando o outro não estava perto, era ser fiel mesmo quando o outro não
podia ver, era ser igual na ausência e na presença. Para mim, a fidelidade
era um compromisso comigo, com o meu sentimento.
No sétimo mês de gestação, tive uma surpresa maravilhosa quando
os amigos do curso fizeram um chá de bebê para Francisco, com muitas
guloseimas, presentes e brincadeiras. Me diverti demais. Também comi
demais e dancei feliz com todos. Quando Pietro chegou para me buscar, eu
estava exausta. Fomos direto para casa. Tomei um banho e só pensava em
me deitar. Carmen fez uma sopa e trouxe para mim no quarto, mas eu não
tinha ânimo nem para comer. Fui dormir.
No meio da noite, acordei com muita cólica. Tive medo porque da
outra vez tive aquela hemorragia horrível e quase perdi o meu bebê. Esperei
um pouco para ver se amanhecia, mas a dor se intensificou e acabei
acordando Carmen e Pietro.
Preocupados, os dois me acompanharam até o hospital. Ao me
examinar, a médica constatou que as dores eram contrações. Fiquei nervosa,
afinal estava com trinta e duas semanas de gestação. A médica me deu um
medicamento para segurar as contrações e me manteve internada. Sua
intenção era me monitorar, para ver se conseguia esperar para fazer o parto
em uma ou duas semanas. Fiquei desesperada. Será que meu bebê iria ficar
bem? Chorei demais. Carmen e Pietro foram incansáveis em me consolar.
Duas semanas depois, a médica suspendeu a medicação e
imediatamente as contrações voltaram. Dessa vez, insuportáveis. Como o
bebê já estava em posição, ela me levou para a sala de parto e Francisco
nasceu de parto normal em menos de uma hora. Quando ouvi meu bebê
chorar, senti um alívio imenso e pensei logo em Miguel, em como eu queria
que ele estivesse ali, comigo.
A enfermeira o colocou no meu colo por alguns minutos, mas logo
ele teve que ir para a UTI Neonatal. Fiquei chocada. Apesar de pequeno, ele
parecia tão bem, tão normal. A médica informou que aquele era um
procedimento padrão. Ele teria que passar por alguns exames e se tudo
estivesse bem, amanhã mesmo estaríamos liberados. Rezei demais para que
São Miguel Arcanjo e São Francisco de Assis protegessem o meu bebê.
Apesar de cansada do parto, nem consegui dormir de tanta aflição,
sabendo que ele estava longe de mim. Mas, logo ao amanhecer, ele chegou,
e ali eu prometi ao meu menino que jamais iríamos nos separar.
CAPÍTULO 30

Respiro, recordo, renasço...


Todos os meus sonhos encontram Letícia. A falta que ela me faz,
ultrapassa todos os limites da minha alma e dilacera o meu coração. Não
imaginei que fosse assim, que doesse tanto sentir falta do amor e da
presença de alguém. Não sabia como reverter essa situação. Não
vislumbrava existir qualquer solução.
Ninguém descobriu nada sobre a emissão do passaporte. Não
adiantava eu perguntar nem a Carlos nem a meu avô, porque eles não
contariam nada. Vivia na esperança constante de um reencontro. A única
certeza que eu tinha, era que Letícia me amava e, por isso, eu nunca iria
desistir. Desistir dela seria admitir que tudo aquilo que tivemos foi pouco, e
eu sentia que ainda teríamos o nosso final feliz.
Já fazia um ano desde que Letícia se foi. Minha vida se resumia ao
trabalho, e eu raramente saía de casa. Meu apartamento se tornara meu
refúgio. Os amigos reclamavam da minha ausência, mas eu não tinha ânimo
para nada. Às vezes, o pessoal do hospital se reunia no “De Plantão” e me
chamava. Ficava apenas o tempo suficiente para beber um chope e depois ia
embora.
Susana era uma companhia constante. Ela, que voltou ao Brasil para
uma temporada pequena, acabou ficando. Acho que era a única que ainda
conseguia me aturar com os meus lamentos. Todos os domingos,
almoçávamos juntos e depois íamos visitar as crianças no abrigo. Clarinha
era um bálsamo na minha vida. Os momentos ao seu lado eram repletos de
alegria, como se cada sorriso dela curasse um pouco da dor que eu
carregava. Susana também estava muito envolvida com Vivian. Uma tarde,
quando voltávamos do abrigo, ela disse:
— Estou pensando em adotar Vivian.
— É sério, isso?
— Sim. Desde a primeira vez em que a vi, senti uma forte ligação
com ela. É como se já nos conhecêssemos. Ela é minha filha, Miguel.
Estive falando hoje com a Verônica, a assistente social do abrigo, e ela me
passou todas as informações para entrar com o processo de adoção.
— Mas você se acha capaz de cuidar de uma criança sozinha? Não é
muita responsabilidade?
— Sim, realmente é muita responsabilidade, mas eu me sinto
totalmente preparada. Tenho condições de oferecer uma educação adequada
a ela, uma vida com conforto e segurança. Só de pensar em tê-la comigo, eu
já me sinto plenamente feliz. Existem amores que a gente escolhe, outros
escolhem a gente e eu acho que fui escolhida.
— Engraçado é que Letícia tinha a mesma convicção em relação a
Clarinha. Ela a via como se fosse sua própria filha. Agora, com a ausência
dela, eu me pergunto: o que será dessa criança?
— A Clarinha ainda nem completou quatro anos. Ainda tem muitas
chances de ser adotada.
— Adotada?
— Sim, Miguel. Adotada por alguém que cuide e zele por ela,
alguém que dê todo o amor que ela precisa.
Aquilo mexeu demais comigo. Nunca tinha passado pela minha
cabeça a possibilidade de Clarinha ser adotada por outra pessoa além de
mim e Letícia. Sempre pensei nela fazendo parte da nossa vida. Não. Eu
não ia permitir isso. Seríamos uma família, Clarinha, Letícia e eu.
No dia seguinte, fui procurar Verônica. Falei com ela sobre o meu
interesse em adotar Clarinha. Ela me informou tudo sobre a adoção
monoparental, que é quando um adulto adota uma criança ou adolescente
sem a necessidade de um cônjuge ou companheiro, e me orientou sobre os
trâmites legais. Falou ainda dos desafios de ser um pai solo. Disse que eu
tinha que estar preparado e muito consciente, pois não seria nada fácil
conciliar meu tempo com as responsabilidades dos cuidados com uma
criança, afinal, eu não teria uma companheira para dividir as tarefas.
Mesmo assim, estava decidido a ir em frente.
A partir daquele dia, enfrentei uma verdadeira maratona. Tive que ir
na Vara da Infância e Juventude dar entrada nos papéis e entregar todas as
certidões, frequentei cursos de apoio à adoção, passei por visitas de
assistentes sociais e por entrevistas. O processo foi longo, mas quando
finalmente minha habilitação para adoção saiu, eu chorei de pura emoção.
Clarinha iria ser minha filha.
Demorou longos cinco meses para que eu conseguisse a guarda
provisória dela e quando finalmente a levei para casa, bateu uma tremenda
insegurança. Meu maior medo era de não conseguir dar conta. Quando me
vi sozinho tendo que aprender a alimentar, dar banho, vestir e pentear os
cabelos da minha filha, me apavorei. Com a indicação de Verônica,
contratei uma das moças que eram cuidadoras do abrigo, para tomar conta
de Clarinha enquanto eu estava no trabalho. Eu virava plantões e tinha que
ter alguém de confiança em casa.
Susana também estava sempre por perto. Ela também estava com a
guarda provisória de Vivian e nos ajudávamos mutuamente. Para facilitar,
colocamos as meninas na mesma escolinha e, como Susana tinha mais
disponibilidade que eu, as levava e buscava na escola.
Quando eu chegava do trabalho, Clarinha me aguardava ansiosa
para contar cada detalhe do seu dia. Sua alegria era contagiante. Contava
sobre a professora, os coleguinhas, as brincadeiras e as tarefas. Tudo era
uma grande novidade. Sempre trazia os desenhos que fazia em aula. Os
desenhos eram sempre iguais: um homem, uma mulher e uma menina no
meio dos dois. Quando perguntava, ela dizia que era eu, ela e Letícia.
Crianças sabiam das coisas.
Minha vida ganhou um novo sentido. Meus amigos que já eram
pais, sempre me disseram que o sorriso de um filho renova as energias,
acalma o coração e ameniza qualquer dor. Agora, eu compreendia esse
amor. Clarinha era a minha prioridade, minha maior motivação para seguir
em frente. Queria sempre poder proporcionar o melhor para que ela pudesse
se desenvolver com saúde, bem-estar e segurança.
Assim que soube da minha “loucura”, minha mãe me chamou para
conversar. Veio com um discurso pronto:
— Miguel, apesar de eu achar tudo isso um absurdo, seria
importante que você agilizasse o seu casamento com Susana. Ela também
adotou “aquela” garotinha e vocês poderiam unir as crianças em uma só
família. A sociedade vê com muito bons olhos pessoas caridosas e
benevolentes. Vocês iriam até ditar moda.
— Mãe, eu não fiz nenhuma caridade. Adoção é um ato de amor e
de entrega.
— Tudo bem, Miguel. Mas una o útil ao agradável. Case-se com
Susana. Crianças precisam de um pai e de uma mãe.
— Mãe, põe uma coisa de vez na sua cabeça: Susana e eu somos
apenas amigos. Ela foi buscar as crianças na escola e eu pedi que ela viesse
direto para cá. Quero muito que você conheça a minha filha.
— Ah, Miguel. Eu não tenho nenhuma paciência com crianças. Não
me obrigue a ser simpática e nem pense que eu vou tomar conta da sua
filha. Contrate uma boa babá.
— Eu não vou pedir nada disso a você, mãe. Eu só quero que você a
conheça e a trate bem.
Assim que eu disse isso, Susana chegou com Clarinha e Vivian.
— Papai! — Clarinha correu para os meus braços.
— Oi, meu amor. Como foi na escola?
— Foi bom. Eu trouxe um desenho pra vovó.
— Ah, é? Então vai lá entregar a ela.
Eu e Susana nos entreolhamos, enquanto Clarinha se aproximava da
minha mãe.
— Olha, vovó. Eu fiz pra você de presente.
Minha mãe a olhou, pegou o desenho da sua mão e sorriu. Depois
colocou Clarinha sentada em seu colo e disse:
— Que lindo esse desenho. Eu adorei. Você está com fome? Quer
comer um pedaço de bolo?
— Eu quero, vovó. Vivian, a vovó vai dar bolo! — minha filha
gritou, e minha mãe me olhou com um sorriso nos lábios.
Como não amar? Fiquei muito feliz. Não queria nunca que minha
mãe rejeitasse a minha filha, afinal, as duas eram parte de mim. Clarinha
era uma mini “Fadinha” como a mãe. Encantava a todos. Era alegre,
esperta, falante, adorava cantar e dançar. Estava fazendo aulas de balé e
vivia ensaiando dentro de casa. Dizia que quando crescesse, seria bailarina
e também médica, como o papai.
Meu avô também se encantou por ela. Finalmente as questões
jurídicas quanto a sua interdição foram resolvidas e ele estava
provisoriamente hospedado na casa dos amigos Carlos e Cândida em São
Paulo. Dizia que ainda estava decidindo quais rumos iria tomar. Nossa
relação ficava cada dia melhor. Aos poucos, fomos resgatando a nossa
amizade e companheirismo.
Toda vez que nos víamos, eu perguntava por Letícia. Ele dizia que
não sabia nada dela. Aquilo me torturava demais, pois eu tinha plena
certeza de que se alguém sabia do paradeiro dela, esse alguém era o meu
avô.
Em um sábado, Cândida me ligou convidando para um churrasco na
casa deles no dia seguinte. No domingo de manhã, arrumei Clarinha, peguei
sua mochila rosa com brinquedos e outras coisas que ela nunca largava, e
partimos de carro para São Paulo. Quando chegamos, encontrei meu avô
no quarto. Eu e Clarinha fomos até lá. Bati na porta, e ele pediu que
entrássemos. Clarinha se jogou em seus braços, cheia de alegria.
— Biso! — gritou.
Meu avô a pegou no colo e, enquanto os dois conversavam, observei
na cabeceira da cama, dois porta-retratos com a fotografia de um bebê.
Estranhei. Peguei um dos porta-retratos na minha mão e perguntei:
— De quem é esse bebê, vô?
Senti que ele ficou surpreso, meio sem jeito.
— É de uma das cuidadoras do Perfect Village. Ela teve um bebê e
fez questão de me enviar as fotos da criança.
— Entendi. Hoje vou tirar uma foto sua e da Clarinha, colocar em
um porta-retratos para o senhor deixar no seu quarto também.
Ele assentiu. Enquanto Carlos cuidava do churrasco e Cândida e
Clarinha se entretinham na cozinha, eu e meu avô ficamos conversando no
jardim da casa.
— Miguel, eu estou muito orgulhoso de você. É surpreendente a sua
mudança. Você cresceu, amadureceu, está mais humilde, equilibrado e
sereno. A paternidade te fez muito bem.
— É verdade, vô. A Clarinha me fez enxergar a vida de outra forma.
Só não posso dizer que sou plenamente feliz, porque me falta o amor.
Imediatamente ele mudou de assunto com receio que eu o
pressionasse quanto ao paradeiro de Letícia, como fiz por diversas vezes.
Estava dando almoço para Clarinha, quando comentei que, na próxima
semana, eu iria para a Espanha participar de um congresso e que estava
muito preocupado por ter que deixá-la sozinha.
— Espanha? — questionou meu avô.
— Sim, vô. O congresso será em Madri.
Ele me olhou pensativo e depois de alguns instantes, perguntou:
— Vai para Barcelona, também?
— Dessa vez, não vai dar. Eu estou com a agenda cheia e, nas horas
vagas, vou aproveitar para rever os amigos que deixei em Madri.
— Pois eu gostaria muito que você fosse em Barcelona, Miguel.
Nesse momento, percebi o olhar interrogativo de Carlos para o meu
avô.
— Por quê? — perguntei.
— Porque eu precisava que você desse uma olhada na minha casa
em Barcelona. Estou pensando em passar uma temporada lá, mas gostaria
que você verificasse se está tudo certo ou se precisa de algum reparo.
— Reparo? Vô, aquela mansão é muito bem cuidada pela Carmen.
Eu tenho certeza que o senhor não deveria se preocupar com isso.
— Pois me faça esse favor, Miguel. Vá até lá e veja se está tudo sob
controle.
— Se der, eu vou.
— Me prometa que você vai — insistiu.
Aquilo parecia ser tão importante para ele, que não tive como negar.
— Eu prometo, vô. Eu vou à sua casa em Barcelona.
CAPÍTULO 31

Apesar de prematuro, Francisco era um bebê muito saudável. Os


primeiros meses foram de adaptação. A amamentação foi um processo
muito difícil, pois como ele não sabia sugar, tive que alimentá-lo através de
uma sonda. Com a orientação de uma enfermeira do hospital, conheci essa
técnica que também é chamada de translactação ou relactação. Consiste em
utilizar uma sonda para transportar o leite até a boca do bebê, enquanto ele
suga o leite e o peito ao mesmo tempo. O processo é muito lento. Ele levava
quase duas horas para sorver todo o conteúdo e era muito desgastante.
Eu estava sempre cansada, olhos vermelhos, sono atrasado. Carmen
foi uma verdadeira mãe para mim, me ajudando em todos os momentos.
Desde os primeiros dias de vida, Francisco não aceitava dormir no berço, só
no colo. Mesmo extremamente cansada, entendi que era apenas uma fase,
um processo necessário para ele e fui me apegando no “vai passar”.
Demorou uns três meses até acertar a agenda, entender o sono de Francisco
e ajustar as sonecas.
Enquanto crescia, Francisco ficava cada dia mais parecido com
Miguel: os olhos, a boca e o jeito de sorrir. Era lindo demais. Todos os
meses, tirava fotos do meu bebê e enviava para Ana Lúcia, Lisete e Seu
Carlos, que disse que Seu Raul se emocionou muito ao ver as imagens do
bisneto pela primeira vez. Ele também achou que Francisco era a cara de
Miguel.
Fiquei radiante ao saber que Seu Raul tinha saído do Perfect Village
e que conseguiu resgatar sua plena cidadania. Ele era um homem capaz,
cheio de vida e saúde e merecia todo o respeito, carinho, atenção e
valorização. Seu Carlos me contou o quanto a ajuda e empenho de Miguel
foram fundamentais para que o processo desse certo. Disse também que os
dois estavam em um processo de reconciliação. Mesmo longe, sempre torci
para que isso acontecesse. Acho que os dois mereciam isso. Quando há
perdão, tudo se renova. A fé, a alma, o amor, a paz interior. Até o espírito
rejuvenesce. Aliviam-se os corações com novas esperanças e alegrias para
recomeçar.
Apesar de tudo, eu só desejava o bem de Miguel. Não conseguia
esquecer. Aliás, não queria esquecer. Trazia nos olhos a saudade de tudo o
que deixamos de viver juntos. As lembranças vinham sem que eu pudesse
controlar o pensamento. Pensava em seu olhar penetrante, erótico, safado.
Um olhar que me envolvia, me dissolvia, me acalentava, me atormentava,
me transformava e me deixava acesa, transtornada. Um olhar guloso,
sensual, aquém do bem, além do mal.
Às vezes pensava em voltar. Apresentar para ele o nosso filho, fruto
do nosso amor, mas segundos depois pensava nele com a tal Susana e a
raiva vinha com tudo. Pensava nas mentiras, no fingimento dele quando
dizia que me amava, que nunca nos separaríamos e que seríamos sempre
um só.
Pietro estava cada vez mais empenhado em me conquistar. Adorava
a companhia dele e era muito grata por tudo o que ele fazia pelo meu filho.
Ele se comportava como um verdadeiro pai para Francisco e o bebê
também o adorava. Mesmo assim, não queria me envolver. Me esquivava
sempre quando ele tentava uma aproximação mais íntima.
Em uma manhã, enquanto estávamos fazendo um piquenique no
parque da cidade junto com Francisco, Pietro começou a falar:
— Letícia, eu queria muito aliviar o seu cansaço, poder entrar dentro
desse seu coração e mostrar que ainda há quem valha a pena.
— Pietro...
— Queria ter chegado em outros tempos na sua vida. Poder fazer
você esquecer de todas as coisas ruins pelas quais passou.
— Pietro, eu estou feliz. Eu tenho meu filho, tenho a sua amizade e
da sua mãe. Isso me basta.
— Mas eu quero mais, Letícia. Quero poder mostrar a você o quanto
eu sou sincero e fiel. Eu não posso mudar o seu passado e suas decepções,
mas eu posso fazer você voltar a acreditar num futuro bonito, pois quando
eu conheci você, eu passei a acreditar nisso.
Ele suspirou e disse me surpreendendo:
— Case comigo, Letícia. Vamos ser uma família. Eu quero registrar
o Francisco como meu filho. Esquece o passado de uma vez. Vamos seguir
juntos daqui para a frente.
— Pietro, eu gosto demais de você. Eu te considero um homem
maravilhoso, bonito, honesto, íntegro, mas como eu já disse, eu não me
sinto preparada para entrar em nenhum relacionamento agora. A única coisa
que eu quero nesse momento é cuidar do meu filho. Vê-lo crescer saudável
e com segurança.
— Mas você não acha importante que o Francisco tenha um pai?
— Ele tem um pai, Pietro.
— Um pai ausente? É isso que você deseja para o seu filho?
— Ele não sabe da existência dele por pura covardia minha, mas um
dia eu vou ter coragem de contar toda a verdade pelo bem do meu filho. Ele
tem o direito de saber quem é o pai.
A partir desse dia, senti que minha relação com Pietro ficou um
pouco estremecida. Ele se mantinha frio e distante. Foi para Madri e ficou
lá por mais de um mês. Quando voltou, senti que ainda estava um pouco
magoado comigo. Só respondia através de monossílabos. Com Francisco,
continuava igual, tratando o meu filho com muito carinho. Carmen notou
que algo não ia bem entre a gente e questionou:
— O que aconteceu entre você e Pietro, Letícia?
— Nada demais — respondi.
— O meu filho gosta muito de você. Sem querer te influenciar, mas
acho que já é tempo de você esquecer o passado e recomeçar a sua vida ao
lado de um homem bom, que goste de você de verdade.
— Eu também gosto demais do Pietro, mas...
Graças a Deus, o meu celular tocou, me tirando daquela saia justa.
Era Ana Lúcia. Me afastei para atender.
— Oi Ana, quanta saudade! — disse.
— Eu também, amiga. Como está o meu afilhado?
— Cada dia mais lindo, gordinho, esperto e bagunceiro.
— Letícia, eu tenho que te contar uma coisa. Eu fiquei até indecisa
se contava ou não, mas eu achei que o mais justo seria você saber.
— O que aconteceu? — perguntei nervosa.
— É sobre a Clarinha. Ela foi adotada.
— O quê?!
Fiquei atônita. Sem reação. A minha Clarinha...
— Pois é. Há um tempo eu não ia no abrigo por conta de
compromissos de trabalho. No último domingo eu tive uma folga e, quando
cheguei, ela não estava. Quando eu perguntei, me contaram essa novidade.
— Ana, eu lamento por mim, porque eu sempre nutri o desejo de um
dia poder adotá-la, sempre senti um amor incondicional por ela, como se ela
fosse a minha filha, mas ao mesmo tempo, eu fico muito feliz em saber que
a vida dela vai ser diferente da minha. É muito triste viver num abrigo.
Agora ela vai ter o carinho de uma família de verdade.
— Sim, eu concordo com você, mas não é só isso...
— Como assim, não é só isso?
— Ela foi adotada pelo Miguel.
— O Miguel?!
— Sim, segundo as “tias” que trabalham lá no abrigo, o Miguel e a
Susana adotaram a Clarinha e também a Vivian.
Tive que procurar um lugar para sentar, pois minhas pernas ficaram
bambas, meus olhos ficaram turvos.
— Letícia, você está aí? — Ana perguntou, preocupada.
— Si...Sim — consegui balbuciar.
— Pois é, amiga. Desculpe contar isso assim, mas não tem outro
jeito. Tira esse homem da sua cabeça de vez.
— Meu Deus, Miguel agora tem uma família completa. A família
que nós dois sonhamos em construir um dia, ele construiu com outra
mulher. A mulher que ele sempre amou.
— Amiga, eu sei que você está sofrendo, mas a sua vida agora é aí
na Espanha. Esquece o Miguel. Reconstrua a sua vida. Você não disse que o
Pietro pediu você em casamento e que quer registrar o Francisco como filho
legítimo? Pois eu acho que está na hora de você considerar esse pedido. O
Miguel está feliz. Construiu a família dele. Você também tem que construir
a sua.
Quando terminamos a ligação, corri para o quarto de Francisco aos
prantos. Ele dormia e eu fiquei ali, observando o meu bebê e curtindo a
minha dor. Era como se eu estivesse vivendo um verdadeiro luto. Luto pelo
amor despedaçado e pelos sonhos destroçados. Luto por mim, por
Francisco, por Clarinha e por Miguel.
Era difícil respirar. Meu corpo estava frágil, parecia estar vazio de
tudo. Era difícil abrir mão de tudo o que foi sonhado a dois. Abandonar o
projeto de uma vida juntos.
Passei três dias me sentindo fraca, doente. Sabia que Ana Lúcia
estava com a razão. Eu tinha que reagir, reconstruir a minha vida pelo meu
bem e do meu filho. Estava determinada a esquecer Miguel. Encarar a
realidade era o único caminho possível para uma vida autêntica e realizada
de verdade.

Miguel... Acabou. Hoje eu desisti da nossa história, do seu sorriso,


de nós. Hoje eu desisti de tentar arrumar o que não tem mais conserto,
decidi dar adeus às virgulas e colocar um ponto final e definitivo nessa
história. Mais do que isso: hoje eu encerrei o nosso capítulo. Na verdade,
hoje eu parei mesmo foi de ler o nosso livro.
— Pietro, podemos conversar?
— Claro, Letícia.
Fomos para um canto do jardim, à beira da piscina.
— Pietro, eu pensei muito em tudo o que você me disse e estou
decidida a recomeçar.
Os olhos dele brilharam.
— Quer dizer que você vai me dar uma chance?
Assenti. Ele pegou minhas mãos e as beijou, emocionado.
— Letícia, você não sabe o quanto eu esperei para ouvir isso de
você. Eu te amo e nunca vou te decepcionar.
— Pietro, nós podemos tentar, mas eu preciso que você seja paciente
comigo. Vamos devagar, deixar as coisas acontecerem no seu devido tempo.
Eu só queria que você soubesse que eu decidi dar uma chance para mim, me
libertar e deixar as coisas fluírem naturalmente entre nós.
— Isso para mim já é muito, meu amor.
A partir desse dia, eu e Pietro estávamos “nos conhecendo melhor”.
Saíamos bastante sozinhos e eu me sentia cada vez mais à vontade na
presença dele. Ele não era afoito como Miguel; nunca me agarrou, nem
forçou uma situação. Respeitava o meu momento. Uma noite, quando
chegamos em casa após irmos jantar, eu é que tomei a iniciativa e dei um
selinho nele antes de ir para o meu quarto. Foi estranho. Encarar algo novo
era assustador. Cheguei no quarto e chorei abraçada ao meu bebê.
Naquela noite, sonhei novamente com Miguel. Acordei suada,
molhada, gemendo. Miguel...
Meu “namoro” era bem adolescente: mãos dadas, um selinho aqui,
outro ali, cinema, exposições, passeios com Carmen e com Francisco. Nada
além disso.
Pietro foi para Sevilla e, quando voltou, estava feliz da vida. Tinha
trabalhado duro em um projeto gigantesco e finalmente havia fechado o
contrato. Durante meses eu testemunhei o seu empenho nesse projeto e
também fiquei muito feliz e orgulhosa.
Estava na cozinha, quando ele me abraçou por trás, dizendo:
— Essa noite, nós vamos comemorar.
Concordei e me arrumei com esmero. Estava linda. Coloquei um
vestido preto maravilhoso e sexy, salto agulha, um batom vermelho, fiz
escova nos meus cabelos longos e uma maquiagem marcante. Quando me
viu, Pietro ficou deslumbrado.
— Você é a mulher mais linda que eu conheci na vida, Letícia.
— Obrigada — falei.
Fomos jantar, conversamos e bebemos um vinho gostoso. A noite
estava perfeita, mas eu não queria demorar, pois deixei Francisco aos
cuidados de Carmen e ele não dormia até que eu o colocasse no berço.
— Podemos ir, Pietro? — perguntei.
— Mas já? Eu pensei que esta noite nós íamos poder ficar mais
tempo juntos. Talvez dormir em algum lugar.
— Vamos deixar para outro dia.
Cavalheiro como sempre, ele assentiu. Fomos para casa em um
clima muito gostoso. Assim que Pietro estacionou o carro na garagem,
seguimos para a casa rindo e conversando. As luzes estavam todas acesas,
sinal de que Francisco estava aprontando. Estranhamos um carro parado em
frente à casa. Assim que Pietro abriu a porta principal me dando passagem e
eu entrei, estanquei. Achei que estava delirando. Meu corpo tremeu, meu
coração disparou, as lágrimas rolaram, as forças se esvaíram. Miguel estava
em pé na sala, segurando Francisco em seu colo.
CAPÍTULO 32

Por que será que meu avô queria tanto que eu fosse para Barcelona?
Conhecia o velho Hernandez e aquela história da casa precisar de reparos,
era sem pé nem cabeça, pura conversa. Prometi que iria, mas não sabia se
conseguiria cumprir com a promessa. O congresso de ortopedia e
traumatologia que eu iria participar, tinha a duração de quatro dias e
planejei ficar ao todo sete dias em Madri. Não queria ficar tanto tempo
afastado de Clarinha.
Até o dia da minha viagem, passei por um grande sofrimento por ter
que ficar longe dela. Havia combinado que ela ficaria na casa da Susana.
Sabia que ela cuidaria da minha filha como se fosse sua, mas meu coração
estava muito apertado. Por sugestão de Susana, Clarinha preparou vários
desenhos para que eu pudesse levar comigo na mala. Como eram mais
borrões do que desenhos, eu sempre perguntava o que ela havia desenhado.
Dessa vez, ela respondeu:
— É a nossa família, papai.
Um dos desenhos era eu, Letícia e ela no meio, o outro era ela e
Vivian de mãos dadas, o outro era o “biso Raul” sentado na cadeira, outro
era “tio Carlos e tia Cândida”, o outro “tia Susana”, o outro “vovó Celeste”
e o outro ela disse que era o bebê da foto do quarto do “biso” com a
chupetinha na boca. Achei graça naquilo. Ela era mesmo muito esperta.
Na véspera da viagem, Clarinha me ajudou a arrumar a minha mala.
Aquilo para ela foi uma verdadeira farra. Queria que eu colocasse tudo o
que havia no meu closet dentro. No dia do meu embarque, quando fui levá-
la até a casa de Susana, enchi sete balões coloridos e pendurei na parede
próxima à cama que ela ocuparia no quarto de Vivian. Pedi que, todos os
dias ao acordar, ela estourasse um dos balões até o último, que marcaria o
dia em que o papai iria voltar.
Ela chorou, eu chorei. Embarquei.
Voltar a Madri foi muito bom. Foram quase quatro anos longe e
confesso que estava com saudades. Morei mais de cinco anos na capital da
Espanha e foi uma experiência enriquecedora. Madri oferecia uma
variedade de estilos de vida, desde a agitação das grandes cidades até a
tranquilidade das regiões costeiras e vilarejos. A abundância de sol e
temperaturas agradáveis favoreciam um estilo de vida ao ar livre, com
muitas atividades sociais e esportivas ao longo do ano. A vida cultural era
vibrante e diversificada, refletida em suas tradições, festivais e gastronomia.
A música, a dança e a arte também desempenhavam papéis significativos na
vida cotidiana. A culinária era variada e rica: desde tapas e paella até jamón
ibérico e churros. Os mercados locais como o Mercado San Miguel, eram
locais populares para explorar e experimentar a culinária local. Além da
vida noturna agitada com bares, restaurantes e boates.
Assim que cheguei ao aeroporto de Barajas, fui até a locadora de
automóveis e peguei o carro que aluguei ainda quando estava no Brasil.
Segui em direção ao apartamento que morei durante três anos em
companhia de Pietro. Assim que cheguei, fui tomar um banho e deitei
apenas para descansar, pois não consegui dormir. Comecei a lembrar dos
meus tempos naquele apartamento, quando eu não tinha responsabilidade
com nada e nem com ninguém. Era uma vida mundana, regada a muitas
farras, bebidas e mulheres.
Pietro sempre foi mais centrado e na dele, mas quase sempre me
acompanhava em minhas loucuras. Aquele apartamento foi palco de várias
festas com muita devassidão. O “surubão”, como minhas festas eram
conhecidas, começava à noite e só terminava pela manhã com todo mundo
caindo de bêbado e desmaiando em qualquer espaço. O sexo era sem
limites. Fazíamos de tudo ali.
Depois que Pietro conheceu Dulce e se apaixonou por ela, as
festinhas passaram a ser só minhas. Depois do mal-entendido, quando ele
me pegou na cama com Dulce, Pietro se mudou e nunca mais nos falamos.
Uma pena. Sentia muita falta dele, pois éramos amigos desde criança.
Fiquei tão puto com aquela mulher que a expulsei do meu apartamento e
nunca mais a vi. Meses depois conheci Martina em uma boate e ficamos
juntos até eu voltar ao Brasil. Martina era como eu, sem limites. Nosso
relacionamento era aberto. Ela gostava de sexo, de experimentar, de gozar.
Gostava de homens e mulheres. Curtimos muito enquanto estávamos juntos.
Quem diria que eu me tornaria um responsável pai solo?
Já passavam das duas da tarde quando eu me levantei e fui dar um
giro pela cidade. Parei no Clos Madrid, um dos meus restaurantes favoritos.
Tratava-se de um restaurante premiado com uma cozinha mediterrânea de
primeira. Era um dos lugares ideais para os amantes de refeições lentas e
menu degustação, além de oferecer uma carta de vinhos excepcional.
Quando voltei para o apartamento, liguei para Susana, pois queria
falar com Clarinha antes que ela dormisse. Minha menina cantou uma
musiquinha para eu dormir bem. Linda demais.
No dia seguinte, acordei cedo para participar do congresso. Foi
gratificante encontrar velhos amigos, e também professores da época em
que fiz a especialização. As palestras começavam pontualmente às dez
horas, parava para o almoço às treze, retornava às quinze e ia até às vinte
horas. Os quatro dias foram assim, intensos, mas não podia reclamar. Tinha
que estar sempre atualizado quanto às últimas tendências, novas tecnologias
e imagens.
Quando o congresso terminou, foi a vez de relaxar. Nos reunimos
em um bar, e relembramos os velhos tempos. Quem não se lembrava do
“surubão”? Difícil esquecer. Para minha surpresa, em um desses encontros,
Martina, minha ex, apareceu. Foi muito bom revê-la. Estava mais linda do
que eu me lembrava. Estava morando em Segóvia, cidade vizinha a Madri,
mas tinha vindo especialmente para rever os amigos. Ao final, disse que
não havia reservado hotel, e praticamente se convidou para passar a noite
no meu apartamento.
Não achei nada demais, afinal, o apartamento era grande e ela era
uma velha amiga. Acontece que Martina estava cheia de más-intenções.
Assim que entramos, foi logo me agarrando, abrindo a minha calça e
tirando o meu pau para fora. Estava há mais de um ano sem transar com
ninguém. Me aliviava sozinho, pensando sempre na minha “Fadinha”, mas
ali a coisa esquentou. Martina colocou meu pau na boca e eu não consegui
segurar. Foi tesão acumulado, incubado, sei lá. Só tesão. Ela queria mais,
mas eu a convenci que não seria bom para nenhum de nós. Ela não insistiu.
Foi dormir em um dos quartos vagos, e eu no meu. Quando acordei,
Martina já havia ido embora deixando um bilhete com seu número de
telefone:
“Você está ainda mais gostoso.”
Ri. Martina. Boa garota!
Todos os dias, Susana me enviava um vídeo de Clarinha estourando
um dos balões. Ela estava ansiosa pela minha volta. Pensando nela, fui a um
shopping comprar presentes para ela, Vivian, Susana, meu avô, Carlos e
Cândida. “Nossa família”, como Clarinha disse. Só faltava Letícia e aquele
bebê que eu não sabia quem era.
Faltavam dois dias para eu pegar meu voo de volta para o Brasil.
Lembrei da promessa feita ao meu avô. No final da tarde, me dirigi até o
aeroporto e comprei uma passagem para o primeiro voo com destino a
Barcelona. Meu plano era passar a noite lá, pela manhã verificar como
estava o estado da casa e voltar para Madri à tarde.
Enviei para Carlos uma selfie subindo no avião com uma
mensagem:
Eu: Partiu Barcelona!
Quando visualizou, Carlos digitou:
Carlos: Boa sorte!
Não entendi. Que porra era aquela?
O voo de Madri para Barcelona tinha duração de uma hora e quinze
minutos. Logo, estava de volta a cidade onde passei várias férias na minha
infância e adolescência. A casa do meu avô era magnífica e foi ponto de
encontro da família durante muitos verões.
Aluguei um carro assim que cheguei no aeroporto e parti para a casa
de meu avô. Não avisei a Carmen que estaria chegando, pois resolvi de
última hora. Esperava que ela estivesse em casa, pois eu não tinha as
chaves. Por ser sexta-feira, o trânsito estava infernal. Demorei quase uma
hora para chegar.
Ao entrar no imenso terreno todo arborizado, as memórias vieram
com tudo. Parecia que eu estava vendo meu pai ali, na beira daquele lago,
pescando, se divertindo, forte e saudável. As lágrimas vieram com tudo.
Esperei um pouco para me recuperar de tanta emoção antes de sair do carro.
As luzes da casa estavam todas acesas, sinal de que havia alguém. Toquei a
campainha. Segundos depois Carmen apareceu abrindo a porta, e surpresa
exclamou:
— Miguel!
Nos abraçamos forte. Carmen sempre foi uma figura muito presente
e marcante na minha vida.
— Ei, tia Carmen! Saudades.
— Deixa eu olhar para você, Miguel. Meu Deus! Bonito como
sempre. Mas entra. Não preciso nem dizer que a casa é sua.
Entrei. Por alguns instantes olhei tudo ao redor. Cada pedacinho
daquele lugar me trazia memórias.
— Miguel, por que você não avisou que vinha? Eu mandaria alguém
te buscar no aeroporto.
— Eu não sabia que viria. Estava em Madri e decidi de última hora.
— Vai ficar muitos dias?
— Não. Vou embora amanhã. No domingo tenho um voo marcado
de volta ao Brasil.
— Ah, que pena. O Pietro e a namorada estão aqui. Seria bom que
você pudesse ficar mais tempo, e acabar de vez com essa birra que há entre
vocês.
— Pietro está aqui? Pensei que ele estivesse morando em Madri.
— Ele fica lá e cá. Agora mais aqui, por causa da namorada.
— Entendi. Mas tia, essa birra foi ele quem começou. Eu não tenho
nada contra ele. Por mim, nós nunca tínhamos brigado. Sinto muito a falta
dele.
— Sim, meu filho. É muito bom ouvir isso. Vocês agora são dois
homens maduros, já passaram dos trinta. Têm mais é que acabar de vez com
essas atitudes infantis.
Assenti.
— E você, Miguel. Casou? Está namorando?
— Não casei e nem estou namorando. Mas eu tenho uma filha.
— Não me diga! — Carmen colocou as duas mãos na boca em
espanto.
— Sim. Ela já tem quase quatro anos e é a coisa mais linda do
mundo — disse, orgulhoso.
— E seu avô, sua mãe, seu tio Enrico?
— Estão todos bem.
Não sabia se Carmen estava a par de que meu avô passou todo esse
tempo internado em um asilo. Achei melhor não comentar. De repente,
ouvimos um choro de bebê. Carmen pediu licença e correu para um dos
quartos que ficavam próximos da sala onde estávamos.
Quando voltou, veio com um bebê no colo. No primeiro momento,
não percebi nada, até porque a criança tinha acabado de acordar, e estava
com o rostinho enfiado no pescoço de Carmen.
— Temos um bebê em casa? — perguntei.
— Sim, temos um bebê em casa — disse Carmen, virando o bebê
para eu ver o seu rosto.
Quando olhei para ele, fiquei atônito.
— Peraí! Eu conheço essa criança — afirmei espantado.
Era o mesmo bebê das fotos espalhadas pelo quarto do meu avô.
— Esse é o Francisco — disse Carmen.
— Francisco?
Me aproximei deles e, como se eu fosse um ímã, o bebê se jogou em
meus braços.
— Ih, parece que ele gostou de você, Miguel.
Fiquei olhando espantado e perguntei:
— Essa criança é filho de quem?
Antes que Carmen pudesse responder, ouvimos vozes e o som da
porta se abrindo.
— Eles chegaram! — Carmen exclamou.
Fiquei olhando para a porta com o bebê no meu colo, e quando ela
se abriu, eu pensei que eu estivesse sonhando. Era Letícia. Ficamos
parados, olhando incrédulos um para o outro, com a respiração em
suspenso. Lágrimas já despontavam dos olhos verdes de Letícia. Reparei o
quanto estava linda, com um vestido preto e sensual. Pietro entrou, surpreso
ao me ver ali. Foi ele quem rompeu o silêncio:
— Oi, Miguel. Como vai? Eu não sabia que você viria.
Olhei para ele sem conseguir falar. Depois olhei para ela novamente
e consegui balbuciar.
— E...Eu... Letícia...
Ela veio correndo como um furacão e arrancou o bebê dos meus
braços.
— Larga o meu filho!
— Seu filho?!
Letícia não conseguiu me encarar. Desviou o olhar e ali eu entendi
tudo. Francisco... Meu filho.
Comecei a rir e chorar ao mesmo tempo exclamando:
— Meu filho! Porra, é meu filho! O meu filho!
— Mas o que está acontecendo aqui? Letícia?! — Pietro perguntou.
Letícia não respondeu. Ficou soluçando com Francisco em seus
braços.
— O que está acontecendo é que essa criança é meu filho —
afirmei.
— Vocês já se conheciam? — Carmen perguntou espantada
Ela continuava calada, aos prantos, abraçada ao nosso filho.
— Como é que eu não pensei nisso antes? Meu avô, Carlos, o
passaporte... Letícia, eu te procurei por toda parte e você esse tempo todo
aqui, em Barcelona, na casa do meu avô...
— Vai embora, Miguel — pediu chorando.
— Sim. Vamos embora. Eu, você e o nosso filho.
— Ei, alto lá, Miguel. Você não pode chegar assim, do nada, achar
que o Francisco é seu filho e querer que a Letícia vá com você — disse
Pietro.
— Eu não “acho” que o Francisco é meu filho. Eu tenho certeza que
ele é meu filho e eu vou levar ele e a minha mulher comigo — disse
decidido.
— Sua mulher? Ah, essa é boa — debochou.
— Sim. A minha mulher.
— Então foi esse o babaca que te enganou e mentiu pra você? Só
podia ser! — Pietro falou se dirigindo a Letícia.
— Escuta aqui, Pietro, esse assunto não lhe diz respeito.
— Pois saiba que tudo o que se refere a minha namorada me diz
respeito.
Ouvindo ele falar assim, a minha vontade foi dar um soco na cara
dele. Só não fiz em respeito a Carmen, a Letícia e ao meu filho. Decidi
ignorar o comentário dele.
— Letícia, vamos embora. Arruma as suas coisas e as do Francisco,
e vamos agora mesmo para Madri.
— Eu vou ficar aqui, Miguel — respondeu choramingando.
— Está certo. Já está tarde, eu entendo. Essa noite ficaremos aqui,
mas amanhã cedo nós vamos embora.
— Isso quem decide é ela — disse Pietro em tom desafiador.
— Sim, quem decide é ela. Amor, você vai comigo amanhã cedo
para Madri e domingo nós voltamos para o Brasil — disse, olhando para
Letícia.
— Pare com isso, Miguel. As coisas não são mais assim — ela
conseguiu reagir e falar.
— Amor, você sabe que não existe outra alternativa para nós. Foi
por isso que o meu avô insistiu tanto para que eu viesse até Barcelona.
— Seu Raul?
— Sim, Letícia. O meu avô. Eu vim para participar de um congresso
em Madri e ele me fez prometer que viria aqui. Ele queria que a gente se
encontrasse.
— Você está mentindo.
— Eu não estou mentindo. Você é quem mentiu. Até quando achou
que ia esconder ele de mim? — disse, apontando para o bebê no colo dela.
— Eu vou subir. Tenho que colocar ele para dormir — disse
desconcertada.
— Eu vou subir com você.
— De jeito nenhum — Pietro se colocou na minha frente — Você
entendeu que a Letícia é minha namorada e que ela não quer mais papo com
você? Pare de insistir! Perdeu, playboy!
— Pietro, eu não quero perder a paciência com você. Sai da minha
frente.
— Pelo amor de Deus, parem com isso, meninos. Letícia, sobe. Põe
o Francisco para dormir e vai você também descansar. Miguel, amanhã
vocês dois conversam — disse Carmen, tentando conciliar.
Letícia subiu às pressas com o meu filho no colo. Fiquei possesso,
mas não iria enfrentar Carmen. Era mesmo melhor deixar para amanhã. Os
ânimos estavam exaltados e a conversa seria bem longa. A única certeza
que tinha era que teria minha mulher de volta. Seríamos uma família de
verdade: eu, Letícia, Clarinha e Francisco.
CAPÍTULO 33

Miguel ali. Como encarar aquilo? Eu não estava preparada. Eram


muitos sentimentos misturados: surpresa, confusão, raiva, mágoa, medo,
dor, ciúme, amor, saudade, desejo. Foi um choque. Não consegui falar, não
consegui ficar perto, não consegui ficar longe. O cheiro do perfume, a
lembrança do toque nos lábios, do roçar da pele...
Estava tudo fácil demais, simples demais. Era como seguir uma
receita: a gente se afasta e cada um vai tocando a sua vida. A gente se afasta
e, depois de um tempo, finge que superou, que não sente mais nada e até
arrisca andar de mãos dadas com um novo amor. A gente se afasta e guarda
tudo dentro do peito, escondendo o sentimento dentro de um potinho e
fazendo de conta que tudo aquilo não existe mais.
E aí a gente vai levando até quando suportar, com a lembrança do
verdadeiro amor que escapou por entre os dedos. A gente vai porque o
orgulho não nos permite voltar atrás, porque já nos machucamos demais. A
gente vai, mas a saudade fica. A gente vai, com a certeza de nunca mais
sentiremos nada parecido.
E agora, meu Deus, como vai ser? Eu não quero voltar, mas e se ele
quiser tirar o meu filho de mim? Ele tem dinheiro, é poderoso, pode muito
bem fazer isso. Miguel mente, engana, trapaceia. Vai querer me iludir
novamente. Ele acha que ainda sou a mesma menina ingênua que acreditava
em tudo o que ele dizia. Acha que eu não sei que ele tem uma nova família,
que está feliz com o seu único e verdadeiro amor.
E Seu Raul? O quanto eu pedi para que ele não contasse nada…
Mas eu entendo. Miguel tem um poder de persuasão incrível. Enganou o
avô, e ele acabou cedendo.
Amamentei meu filho, e ele finalmente conseguiu dormir. Coloquei
o bebê no berço e fui para o meu quarto, que era contíguo ao dele. Tomei
um banho, vesti meu pijama, coloquei algumas gotas do floral na boca para
relaxar, e fiz uma oração. Demorei a pegar no sono, mas felizmente
consegui.
Acordei no meio da madrugada com o chorinho de Francisco.
Levantei e fui correndo até o seu quarto. Quando cheguei, encontrei Miguel
com ele no colo, consolando e ninando o nosso filho. Parei na porta e fiquei
apreciando os dois. Confesso que por muitas vezes eu imaginei aquela cena.
Pai e filho juntos, interagindo, se conhecendo, se amando.
Assim que me viu, Miguel fez um sinal de silêncio. Entendi que
Francisco tinha adormecido em seus braços. Fui me aproximando devagar.
Ele o colocou de volta ao berço e ficamos muito tempo ali parados, em
silêncio, na beira do berço, velando o sono do nosso filho.
Nos olhamos profundamente. Não consegui suportar, e antes que eu
chorasse na frente dele, voltei para o meu quarto. Assim que entrei
fechando a porta atrás de mim, Miguel entrou.
— Sai daqui, Miguel — disse já chorando.
— Amor...
— Sai daqui, por favor — pedi.
Ele foi se aproximando, e me abraçou por trás.
— Miguel, por favor...
— Letícia. Eu não aguento mais de tanta saudade. Eu não aguento
mais de tanto amor, de tanto tesão. Já esperamos demais.
Miguel foi esfregando o seu corpo no meu, a barba deslizando no
meu pescoço, beijando a minha nuca. As mãos coladas à minha cintura,
subindo até os meus seios. Senti dentro de mim o desejo despontando, uma
vontade imensa de ter a sua boca na minha. Mesmo sabendo do perigo que
poderia existir dentro do seu abraço, era difícil resistir.
— Me larga, Miguel! — disse, tentando escapar.
— Não faz isso, amor.
— Miguel, não insista, por favor. Amanhã nós conversamos.
Ele assentiu, mas antes de sair tocou sua boca na minha, lambeu
uma lágrima que caía do meu rosto, e disse.
— Eu amo você demais, Letícia. Acredita em mim, por favor.
Ele saiu e eu tranquei a porta. Não consegui dormir. Francisco
acordou cedo, olhei no celular e vi que não eram nem seis horas da manhã.
Chorou um pouquinho no berço antes que eu fosse até o seu quarto. Ele
mamou, e depois ficou brincando, rindo, se erguendo no berço, fazendo
gracinha e emitindo sons. Aproveitei que ele estava entretido com seus
brinquedos, e fui tomar um banho. Depois desci com ele, o coloquei na
cadeirinha de refeição e fui fazer o café. Não demorou muito e Carmen
surgiu na cozinha. Ela deu um beijo em Francisco e depois se aproximou,
me abraçando.
— Bom dia, Letícia. Como você passou a noite?
— Mal dormi tentando assimilar tudo.
— Imagino. Desculpe perguntar, filha, mas por que você não nos
contou que conhecia o Miguel?
— Porque eu estava tentando esquecer.
— Você sabia que essa casa pertencia à família dele?
— Sim, eu sabia, mas o Seu Raul me garantiu que eu poderia ficar
sossegada, porque o Miguel nunca aparecia aqui.
— O Raul Hernandez? E de onde você o conhece?
Contei tudo para Carmen. Desde o dia em que eu saí do orfanato
onde vivia, do meu encontro com o Seu Raul, que se tornou o meu benfeitor
e anjo da guarda, do meu encontro com Miguel, do nosso namoro, das
mentiras, da humilhação que eu passei na casa dele com a mãe e o tio me
chamando de golpista e me expulsando da casa, do meu encontro com Seu
Carlos que providenciou a minha vinda para Barcelona.
Disse também que eu nunca tive intenção de esconder Francisco de
Miguel. Pensei em contar inúmeras vezes, mas, quando soube que ele havia
se casado com a mulher que fora o grande amor de sua vida e que os dois
tinham adotado duas crianças, formando uma família feliz, precisei de mais
um tempo para revelar a verdade, pois não queria atrapalhar a vida dele.
— Que estranho, Letícia, pois quando eu perguntei, o Miguel
afirmou que era solteiro e que nem namorada tinha. Disse apenas que tinha
uma filha.
— Ele mente, Carmen. Miguel diz o que lhe convém para iludir e
ludibriar as pessoas.
— Eu concordo com você — disse Pietro, entrando na cozinha. —
Miguel sempre foi assim. Não passa de um canalha, sem escrúpulos.
— Calma, Pietro. Também não é assim. O Miguel tem seus defeitos
como todos nós, mas não pode ser crucificado desse jeito. Eu acho que você
e ele tem muito o que conversar, Letícia.
— Eu não acredito, mãe. Você está a favor desse cara e contra mim?
— Eu não sou contra nem a favor de ninguém. Eu só acho que eles
têm uma situação mal resolvida e precisam conversar, afinal existe uma
criança envolvida no meio disso tudo.
— Pois eu e Letícia estamos namorando, e eu não vou permitir esse
cara em torno dela.
— Pietro, a situação aqui é delicada. Você tem que ter calma e
maturidade, meu filho. O Miguel sempre vai fazer parte da vida da Letícia,
afinal, eles têm um filho juntos, e filho é um elo eterno.
Pietro saiu batendo a porta. Ouvi o barulho de seu carro se
afastando.
— Tudo o que eu não queria era magoá-lo, Carmen. Ele não merece
isso. Eu só preciso conversar com o Miguel para saber as intenções dele
com relação ao nosso filho. Tenho medo que ele o tire de mim — comecei a
chorar.
— Ele não vai fazer nada disso, Letícia. Você é uma excelente mãe.
Ele não teria nenhum motivo para agir assim. Se acalme, por favor.
Assenti. Estava dando uma frutinha na boca de Francisco, quando
Miguel apareceu.
— Bom dia!
Meu Deus! Ele estava lindo demais, com uma calça de moletom
cinza e uma camiseta branca. Desviei o olhar, e continuei alimentando meu
filho. Ele se aproximou dizendo:
— Oi, filhão! Sentiu falta do papai?
Francisco começou a se agitar na cadeirinha, querendo ir para o colo
dele. Não era possível. Miguel era um sedutor, um conquistador nato.
Ninguém conseguia ficar imune aos seus encantos.
Ele pegou Francisco no colo e, antes que eu pudesse pensar, me deu
um selinho.
— Bom dia, amor da minha vida.
— Pare com isso, Miguel, por favor.
Ele riu. Carmen só observava.
— Estou morrendo de fome — disse, sentando-se à mesa com
Francisco em seu colo. Pegou um pedaço de pão e pediu:
— Amor, pode colocar um pouco de café com leite na minha xícara?
Era muita cara de pau! Não aguentei tanto cinismo e saí da cozinha
indo até o jardim. Sentei em um banquinho que havia de frente para o lago
e fiquei ali, tentando me acalmar. Não conseguia parar de chorar. Miguel
tinha vindo só para tirar a minha paz. Depois de alguns minutos ele
apareceu:
— Letícia...
— Nem vem, Miguel! Chega de me atormentar! — gritei.
— Mas meu amor...
Coloquei as mãos nos meus ouvidos, mas Miguel se ajoelhou na
minha frente, pegou minhas mãos, as tirou de cima dos meus ouvidos e
depois as beijou dizendo:
— Letícia, nós precisamos conversar. Eu sei o quanto eu errei,
menti, enganei, feri, magoei. Reconheço as minhas faltas, todas as minhas
falhas, sei que sou culpado, mas eu quero te pedir que me perdoe. Eu te
amo. Por favor, perdoe as minhas fraquezas. Há pessoas que nos fazem
mudar de caminho. Você mudou o meu, Letícia. Eu sou um novo homem.
Esqueça todo o passado e vamos recomeçar. Volta comigo, amor. Volta pra
mim.
— É impressionante. Você acha mesmo que é só aparecer aqui e
dizer: “Eu errei, me perdoe” e que está tudo bem? Simples assim?
— Sim. Eu te amo, você me ama. Simples assim. O nosso amor é
algo único e verdadeiro. Você é minha e eu sou seu para sempre.
— Miguel, eu não sou mais aquela menina ingênua que um dia você
conheceu. A menina que acreditava em cada palavra que você dizia, sem
questionar. A menina que corria atrás das suas migalhas, que se contentava
com pouco, com restos e com sobras. Você brincou demais com os meus
sentimentos e, quando eu me dei conta de que eu não passava de mais um
troféu para a sua estante, de mais um nome na lista do “Doutor Sedução”,
parei de me iludir e de fantasiar. Não acredito mais em suas palavras doces,
nas suas mentiras, no seu fingimento, nas suas trapaças. Não acredito mais
em você. Espero que a gente possa manter uma relação cordial por causa do
Francisco, nosso filho. Fora isso, eu não tenho mais nada a ver com você.
— Isso não é verdade, Letícia. Você sabe que não é. Você está
falando isso por causa do Pietro? Que merda é essa de namoro?
— O Pietro é um bom homem. Tem sido um grande companheiro.
Ele é muito leal e verdadeiro.
— Companheiro, leal e verdadeiro. Como um cãozinho... Ah, faça-
me um favor...
— Eu não vou admitir que você fale mal do Pietro. Eu sei muito
bem o que você aprontou com ele no passado.
— O que houve foi um mal-entendido, e é lógico que agora ele vai
querer usar isso contra mim, querendo te envenenar.
— Miguel, vamos parar por aqui. A minha vida pessoal não
interessa a você, e a sua também não me interessa. Vai embora e seja feliz
com a sua “família”.
Frisei bem a palavra família.
— A minha família é você e o Francisco, e eu só vou embora daqui
com vocês. Vem comigo, amor. Estou louco de saudade do calor do seu
abraço, de me sentir no centro do seu mundo, da química que existia entre
nós, de tudo o que fizemos e do que ficou por fazer.
Ele me agarrou e eu gritei:
— Me larga, eu já falei. Volta para a sua mulher e suas filhas!
— Do que você está falando? Minha mulher é você!
— Miguel, eu não vou ficar aqui me desgastando, ouvindo as suas
mentiras. Chega, vai embora, por favor.
— Letícia, amanhã eu vou estar voltando para o Brasil. Infelizmente
eu tenho compromissos de trabalho e não posso faltar. Tenho três cirurgias
agendadas para a próxima semana, além de outros compromissos. Eu vou
comprar a sua passagem e a do Francisco para o mesmo voo e vou te
esperar amanhã no aeroporto de Madri para voltarmos ao Brasil e reiniciar a
nossa vida de onde parou.
— Eu não vou, Miguel.
— Pois saiba que mesmo que você insista em dizer que não existe
mais um caminho para nós, eu nunca vou desistir de você.
Miguel saiu de perto e peguei meu celular para ligar para Seu
Carlos. Não demorou muito e ele atendeu.
— Oi Seu Carlos, eu gostaria de falar com o Seu Raul. Ele está por
perto? Pode falar?
— Aconteceu alguma coisa, Letícia? Você está parecendo muito
nervosa.
— Aconteceu sim. O Miguel apareceu aqui.
— Ah, é isso!
— O senhor também sabia?
— Olha, eu vou passar o celular para o Hernandez. É melhor você
conversar com ele.
Esperei alguns segundos até seu Raul atender.
— Olá, minha neta. Como está o meu bisneto?
— O Francisco está muito bem, mas eu só queria saber por que o
senhor fez isso comigo, Seu Raul?
— Letícia, se é sobre o Miguel, eu fiz porque achei que já estava na
hora de vocês dois se entenderem.
— Mas, Seu Raul, depois de tudo o que ele fez?
— Sim, ele errou, mas se redimiu. Ele mudou, reconheceu suas
falhas, suas fraquezas, pediu desculpas.
— E o senhor acha que é assim, que é só dizer que se arrepende,
pedir desculpas, para a gente esquecer tudo de ruim que a pessoa fez?
— Letícia, eu sei que você ainda está magoada, mas só te peço que
dê uma chance para ele mostrar que realmente mudou. O sofrimento fez
com que ele amadurecesse. O Miguel é um novo homem. Cresceu, evoluiu,
tem novos projetos, sonhos e planos, e isso inclui você e o Francisco.
— Seu Raul, o Miguel é o pai do Francisco, e isso nunca vai mudar.
Quanto a mim, não temos mais a mínima chance. Deixa que ele seja feliz
junto à família dele.
— A família dele é você e o Francisco. Mas tudo tem o seu
momento certo. Tenho certeza que vocês ainda vão ser muito felizes juntos.
Nos despedimos. Não adiantava falar com Seu Raul; percebi que ele
defendia o neto com unhas e dentes. “Ele mudou…” A mim, ele não engana
mais.
Deixei que Francisco passasse o resto do dia com o pai e me recolhi
ao quarto. Nem desci para almoçar. Carmen trouxe o meu bebê para mamar
e depois o levou de volta para poder ficar mais um pouco com Miguel. No
final da tarde, bateram na porta. Quando abri, era Miguel com Francisco em
seus braços.
— Eu vim me despedir. Ainda tenho que resolver algumas coisas
em Madri e arrumar minha bagagem. Amanhã estarei aguardando vocês
para embarcarmos juntos para São Paulo.
— Eu já falei que não vou, Miguel.
— Eu vou ficar te esperando. Sempre.
Ele se despediu de Francisco e pediu:
— Posso te dar um abraço?
— Não — respondi.
Ele assentiu e saiu. Vendo-o partir, peguei o meu bebê no colo e
chorei convulsivamente abraçada a ele.
Não posso sentir o seu abraço. Não posso sentir o seu calor. Não
posso te ver, te tocar, te sentir. Simplesmente não posso. Mas queria...
CAPÍTULO 34

Letícia não apareceu. Eu já esperava por isso. Mesmo assim estava


feliz. Sabia que era só uma questão de tempo. Logo ela iria cair em si e
voltar para mim. Voltar a fazer parte da minha vida, desta vez para sempre.
E Francisco? Foi a maior surpresa que eu já tive na vida. O meu
maior presente. Nunca esperei por aquilo. Meu filho era lindo, esperto e a
minha cara. Só lamentei por não ter participado de tudo desde o início.
Gostaria muito de ter estado perto de Letícia durante a gravidez, de ter me
envolvido com os preparativos para a chegada do bebê, de ter segurado sua
mão no momento do parto, de ter visto meu filho nascer e poder ficar perto
desde o primeiro instante. Mas, quando ela voltasse, faríamos outro filho.
Isso era certo. Queria uma casa cheia de crianças.
E o danado do meu avô que sabia de tudo e armou toda aquela
situação para que eu descobrisse a verdade? Tinha que agradecer muito a
ele. Entendi a sua posição. Ele precisava ter certeza de que eu estava pronto
e que merecia receber aquela dádiva. Minha mulher, meu filho...
A única coisa que me deixou puto foi Pietro. O idiota estava se
achando. Batendo no peito, chamando Letícia de namorada. Se achando o
fodão, querendo tomar o meu lugar junto a Letícia e ao meu filho. Ele que
fosse o fodão com outra, não com a minha mulher! Só de pensar nos dois
juntos, já fazia com que eu me enfurecesse. Letícia era minha. Só minha.
No momento em que a vi, fiquei sem palavras. Vontade de agarrar,
de abraçar e não largar nunca mais. Bateu uma saudade enorme, dolorosa e
ardente do cheiro, do sorriso, da gargalhada, da paixão que compartilhamos.
Letícia se manteve distante, mas percebi que era só fachada. Senti que ela
ficou tão abalada quanto eu. Agora estávamos longe novamente, mas
esperava que fosse por pouco tempo.
Cheguei ao aeroporto de Guarulhos por volta das oito horas da
manhã, fui até a cobertura tomar um banho, peguei meu carro na garagem e
fui para Ribeirão. Fui direto para a casa da Susana. Estava morrendo de
saudades da minha pequena. Quando cheguei, ela ainda estava dormindo.
Fiquei observando seu sono e imaginei como seria no dia em que estivesse
com a minha família completa.
Enquanto Clarinha dormia, contei para Susana os últimos
acontecimentos. Ela ficou perplexa por saber que Letícia estava esse tempo
todo em Barcelona, acobertada por meu avô e mais perplexa ainda quando
eu disse que eu tinha um filho: Francisco, o bebê das fotos do quarto do
meu avô. Contei também a Susana sobre Pietro.
— Pietro e Letícia, namorados?
— Não. Isso é coisa da cabeça lunática dele. Viu uma mulher bonita,
sozinha, frágil e achou que podia se dar bem. Letícia não quer nada com
ele. Ela me ama.
— E por que ela não veio com você?
— Aí é que está! Ela ainda está reticente quanto a isso. Magoada,
ferida.
— Ela sabe sobre a Clarinha?
— Se sabe, não falou nada. Aliás, nós pouco conversamos. Ela ficou
bem arredia, trancada no quarto. Não tive oportunidade de falar. De
qualquer forma, não quero envolver a Clarinha nisso. Não quero usá-la para
fazer com que Letícia volte. Por mais que eu a queira aqui, perto de nós,
aprendi que não devo me impor. Não devo forçar uma situação. Letícia virá
quando quiser, no tempo dela. Eu a quero por inteiro, convicta de que quer
ser feliz comigo.
— Você está certo, Miguel. Mas como vai ser sem o Francisco
perto?
— Eu vou esperar esse mês, se ela não vier, eu vou lá ver meu filho.
Susana se aproximou e me abraçou.
— Muito feliz por você. Quem diria, hein? Papai em dose dupla!
— Pois é. Quem diria...
Quando Clarinha acordou e me viu, veio correndo para os meus
braços. Que saudades que eu estava da minha garotinha. Fizemos o ritual e
estouramos juntos o último balão preso à parede. Ela pulava de alegria.
Depois foi a hora de abrir a mala e entregar os presentes. Ela e Vivian
estavam ansiosas por isso. Adoraram tudo. Pensei em Francisco. Já ia
arrumar o quartinho dele. Encher de brinquedos. Melhor: iria comprar uma
casa. Minha intenção era formar uma grande família com o meu amor.
— Papai, eu não quero ir pra casa. Quero ficar aqui com a Vivian.
— Nós temos que ir sim. Você não está com saudades do seu
quartinho, dos seus brinquedos?
— Tô, mas a gente pode trazer tudo pra cá.
— E quando a mamãe chegar?
— Mamãe?
— Sim, a Letícia. Ela vai chegar e vai trazer o bebê. Não era isso o
que você queria?
— Oba! A mamãe vem com o bebê! — Ela começou a bater palmas.
— Vem sim. Agora você tem um irmãozinho e o nome dele é
Francisco.
— Francisco? Mas cadê ele?
— Eu já falei. Ele vai chegar junto com a mamãe e nós temos que ir
pra casa preparar tudo para quando eles chegarem.
— Eu quero ir, papai.
Fomos para casa e, já no dia seguinte, fomos ao shopping comprar
tudo o que precisávamos para decorar o quarto de Francisco. Susana e
Vivian nos acompanharam. Clarinha queria comprar tudo o que havia na
loja. Ela estava muito entusiasmada com a chegada do irmão. Me
perguntava toda hora quando eles chegariam. Para acalmá-la, resolvi fazer a
mesma brincadeira com os balões. Comprei um pacote de balões coloridos
e falei que todos os dias iríamos pendurar um balão na parede da sala e
estourar no final do dia. Quando Letícia e Francisco chegassem, nós
estouraríamos todos juntos o último balão. Ela adorou.
A semana passou rápido. Fiz três cirurgias difíceis e, como passei
uma semana fora, tive também que cumprir todos os plantões no hospital.
Os amigos me chamaram para um chope no “De Plantão”, e eu fui para
contar as novidades.
— Estou pensando em comprar uma casa — comentei.
— Acha necessário? O seu apartamento é enorme, Miguel — disse
Vitor e os outros concordaram com a cabeça.
— A família cresceu. Eu descobri que tenho um filho.
Os três me olharam com cara de espanto.
— Eu sabia que um dia isso iria acontecer. Do jeito que você é
devasso, até que demorou para uma mulher bater na sua porta com um filho
no colo. Já fez o teste de DNA? — perguntou Jaime.
— Não precisa. Além da criança ser a minha cara, a mãe é alguém
que eu confio demais.
— E quem é a mãe dessa criança? Nós conhecemos ou é fruto de
uma foda inconsequente? — Foi a vez de Fausto perguntar.
— Letícia, o amor da minha vida.
— O quê?!! — Todos falaram ao mesmo tempo.
Contei tudo. Da insistência do meu avô para que eu fosse até
Barcelona, do nosso reencontro, de Francisco e de como eu estava feliz e
ansioso para que eles chegassem.
— Miguel, que histórica. Estou impressionado. A Letícia em
Barcelona. Seu avô é um grande estrategista. Arquitetou tudo.
— Meu avô realmente é incrível. Amanhã vou a São Paulo para
agradecê-lo por tudo.
No sábado peguei minha filha e rumamos para São Paulo. Quando
cheguei, dei um longo abraço em meu avô e Clarinha entregou para ele um
embrulho de presente.
— Para mim? — ele perguntou dando um beijo nela.
— É sim, biso. Um presente bem lindo que o papai comprou.
Quando ele abriu, sorriu. Era um porta-retratos com a minha foto
com Francisco no colo.
— Quando Letícia retornar, nós vamos tirar uma foto completa da
família — disse.
Ele assentiu. Ficamos conversando com Carlos e Cândida. Falei dos
meus planos de comprar uma casa.
— Miguel, eu sei que você não quer mais morar na mansão e nem
eu quero tirar a sua mãe de lá. Deixa a Celeste ser feliz do jeito dela, mas
agora que você falou, lembrei daquela casa que eu tenho próxima ao lago.
Sei que não fica muito próxima ao centro, mas o terreno é enorme, a área
construída também é grande e sólida. Seu pai, quando estava vivo, adorava
ir lá para pescar. Talvez precise de uma reforma, mas acho que é o lugar
ideal para você e sua família.
Adorava aquela casa. Lembro que sempre ia lá acompanhar meu pai
durante suas pescarias.
— Está falando sério, vô? Você cederia aquela casa para mim?
— Para você não. Há muito tempo eu tenho pensado em colocar um
dos meus imóveis em nome da Letícia. Garantir o futuro dela. Aquela casa
será dela. Se você quiser morar lá, trate de conquistar o que é seu.
— Você acha que ela volta, vô?
— Tenho certeza. Prepare a casa, Miguel. Transforme aquilo em um
verdadeiro lar. Um lar de amor, felicidade, respeito e compreensão. Faça a
Letícia feliz.
— Eu vou fazer, vô. Eu prometo.
No domingo, foi dia de visitar minha mãe. Quando eu disse que
tinha um filho e que a mãe era Letícia, ela se enfureceu.
— Eu sabia que ela não passava de uma golpista. Ela planejou tudo
nos mínimos detalhes e você e seu avô caíram como um patinho. Quanto ao
seu avô, eu nem me surpreendo, porque ele não passa de um velho gagá,
mas você meu filho, cair no golpe da barriga de uma oportunista...
— Mãe, para de falar asneira. A Letícia é a única mulher nesse
mundo que poderia ser a mãe dos meus filhos. Eu estou muito feliz.
— Pois eu não quero essa mulher aqui! Os meus netos serão sempre
bem-vindos, mas essa mulher nunca! — esbravejou.
O que era para ser um domingo feliz, não passou de frustração.
Minha mãe quando colocava uma coisa na cabeça, era difícil de tirar. Teria
que ter muito tato e paciência para lidar com toda aquela situação.
Segunda-feira. Hoje o dia pareceu interminável. Tentei afastar os
pensamentos com o trabalho, mas foi difícil me concentrar. Letícia não saía
dos meus pensamentos. Uma semana se passou e nenhuma notícia. Me
comunicava por mensagem apenas com Carmen, que todos os dias me
enviava notícias de Francisco.
Na segunda semana resolvi agir. Enviei uma mensagem para o
celular de Letícia, dando um ultimato a ela.
Dia 1 de 30: Quero você aqui, deitada ao meu lado. Quero o seu
corpo nu, colado ao meu. Quero sentir a sua respiração no meu ouvido.
Quero ouvir você dizer baixinho o meu nome. Quero tudo aquilo que
sonhamos um dia ser. Quero você de volta para mim em trinta dias.
Dia 2 de 30: Quero o seu corpo, o seu toque, o seu beijo, mas não
esqueça de trazer também as suas palavras. São elas que provocam os meus
sentidos. São elas que fazem com que o seu toque faça o meu corpo
estremecer.
Dia 5 de 30: Hoje é sexta-feira 13. Azar? Azar é não ter os seus
lábios colados aos meus, não ter as suas mãos percorrendo o meu corpo,
não sentir o seu calor junto ao meu, não ouvir os seus gemidos. Volta!
Dia 12 de 30: Queria ter a oportunidade de te dar todos os orgasmos
que ainda não foram possíveis. Cometer todas as loucuras que tinha
imaginado para nós. Queria que hoje, o seu corpo estivesse enrolado ao
meu. Que nossos lábios se chocassem como sempre o fizeram, naquele
frenesi de saliva e línguas. Todos estes desejos ainda podem ser realizados.
É só seguirmos o coração.
Dia 17 de 30: Hoje eu não quero que você diga que me ama. Não
quero falar da minha vida ou da sua. Hoje não estou com paciência para
isso. Há dias assim! Hoje eu só quero a paixão dos seus beijos ardentes. Só
quero me aquecer no seu calor. Hoje só estou com vontades e desejos...
Volta para mim, meu amor.
Dia 20 de 30: Vem! Precisamos falar olhos nos olhos, sem medo de
expressar nossos desejos e as mais loucas fantasias. Sim! Aquelas que vêm
nos atormentando há dias. Só vem!
Dia 23 de 30: Há uma urgência de sentir a sua pele queimar na
minha. Um desejo de colar a minha boca na sua. Há um frenesi que me
percorre o corpo à velocidade da luz e essa vontade louca de te amar sem
fim. Volta pra mim!
Dia 29 de 30: Mesmo longe, você está sempre nos meus
pensamentos. Tesão só de lembrar de nós dois juntos. Sei que você lembra
de cada orgasmo que te provoquei. Ou, pelo menos, quero acreditar que
sim. Quero acreditar que você e o seu corpo, sentem a mesma saudade que
eu. Diz que sim!
Estava perdendo as esperanças. Todos os dias, enviava uma
mensagem com a contagem regressiva, mas Letícia nem se dava ao trabalho
de visualizar. Clarinha fazia questão de pendurar um balão colorido na
parede esperando pela mãe e pelo irmão. No final do dia, sentia que ela
ficava triste. Percebi que, o que começou como uma brincadeira, estava
fazendo mal para ela.
— Meu amor, acabou a brincadeira do balão.
— Mas a mamãe não vem? E o meu irmãozinho, papai?
— Vamos fazer assim: quando você estiver de férias na escola nós
vamos lá na Espanha para você conhecer o seu irmãozinho, ok?
— Mas e o quartinho dele? Ele não vem dormir aqui?
Aquilo me doeu. Abracei minha garotinha e a consolei até que
pegasse no sono. Fui para a cama e mal consegui dormir. Às cinco horas,
levantei e fui para a esteira correr. Tinha que suar para aliviar toda aquela
tensão. Corri por mais de uma hora. Tomei um banho, preparei o café, e só
então fui abrir o meu celular. Levei um susto ao ver uma mensagem de
Letícia. Abri com o coração aos pulos. Havia uma foto de um cartão de
embarque de Barcelona para São Paulo com o nome dela e de Francisco
impressos, e uma mensagem que dizia:
Dia 30 de 30: SIM.
CAPÍTULO 35

Foram dias difíceis. Quando Miguel se foi, bateu uma angústia, um


vazio, uma tristeza. Só de pensar que ele estava voltando para a vida feliz
dele junto da mulher e das filhas, me dava uma dor profunda na alma. E
Clarinha? Na certa já havia me esquecido. Tinha uma nova mãe. Eu sei que
estava sendo egoísta, mas não tinha como evitar. Sonhei tanto com ela na
minha vida, na vida que eu idealizei junto com Miguel...
Ele era tão ridículo, que nem foi capaz de admitir que estava com
outra. Ainda ficou tentando fazer com que eu acreditasse que me queria de
volta, que eu era importante, que me amava, que havia mudado, que era um
novo homem. Me queria de volta para quê? Para ser sua amante? Pois que
ele soubesse que eu nunca mais seria “a iludida” como aquela Thaís me
chamou.
Quando ele se foi, chamei Pietro para conversar. Ele parecia muito
magoado. Não era para menos.
— Eu achei que você confiasse em mim, Letícia.
— Pietro, me desculpa por nunca ter te contado nada sobre o
Miguel.
— Eu devia ter desconfiado. Sempre quando eu ou minha mãe
tocávamos no nome dele, você ficava nervosa. Por que você não nos contou
que o conhecia? Como se só isso não bastasse, ele ainda é o pai do
Francisco.
— Pietro, me perdoe. Quando eu cheguei aqui, eu estava muito
magoada. Eu fiquei muito decepcionada com ele, e só queria esquecer.
— É só o que ele sabe fazer: enganar e magoar as pessoas.
Eu continuei:
— Quando descobri todas as mentiras, eu quis me afastar, ficar
longe, e foi então que o Seu Raul sugeriu que eu viesse para Barcelona. Eu
nunca podia imaginar que estava grávida.
— Eu já tinha raiva do Miguel, agora eu tenho ódio — disse Pietro.
— Não fale assim, Pietro. A Carmen comentou que vocês dois eram
amigos desde a infância. Não vale a pena guardar tanta mágoa.
— Você está falando isso por quê? Foi só ele chegar e se aproximar
para que toda a sua mágoa acabasse e você o perdoasse?
— Não, Pietro. Eu ainda trago as mágoas dentro do meu coração,
mas o caso de vocês é diferente. O Miguel disse que tudo não passou de um
grande mal-entendido.
— Antes ele não passava de um mentiroso, agora você acredita nas
palavras dele?
— Se eu acreditasse, eu teria ido embora com ele.
— E por que não foi? Afinal, vocês têm um filho juntos.
— O Miguel tem uma família. Ele tem uma mulher e duas filhas.
— O quê? Disso eu não sabia.
— Pois é. A Susana voltou e eles estão juntos. Formaram uma linda
família.
— A Susana voltou para o Brasil?! — exclamou, surpreso — Eu
falei há pouco mais de um ano com um amigo em comum, e ele me contou
que ela ainda morava na Alemanha e que havia ficado viúva. Então, ela
voltou ao Brasil para ficar junto do seu grande amor.
Ouvir Pietro falando assim, me causou uma tristeza tão grande que
eu não consegui segurar as lágrimas. Pietro me olhou com frieza e disse:
— O cara te engana, te destrói, só traz incertezas, dúvidas e
insegurança, e você ainda chora por ele. Lamenta por ele estar feliz com
outra...
— Pare de falar assim, Pietro. O que eu tive com o Miguel foi muito
intenso. Eu sonhei, fiz planos. Não é do dia para a noite que a gente
esquece. Ninguém manda nos sentimentos.
Ele não deu trégua e continuou com a voz bem irritada:
— Sabe o que me entristece, Letícia? É saber que você merece
alguém melhor. Não me conformo em ouvir você dizer que tem sentimentos
por uma pessoa que só fez você chorar. Pense bem, esse homem não é para
você. É um cafajeste que adora sacanear os outros. Enfim.... A única coisa
que eu espero de você, é que, no final disso tudo, você não diga que eu não
te avisei.
— Pietro, a única coisa que eu quero é viver em paz com o meu
filho.
A conversa acabou. Pietro estava muito magoado. Acho que meu
namoro acabou antes mesmo de começar. Tudo por culpa de Miguel.
No final da tarde, Pietro arrumou as malas, se despediu da mãe, deu
um beijo em Francisco e saiu sem me olhar. Aquilo me deixou muito
deprimida. Nunca quis magoá-lo. Carmen notou e veio falar comigo.
— Letícia, não liga para o Pietro. Ele é daqueles que se apaixonam
fácil, mas, daqui a pouco, ele conhece outra pessoa e esquece. Estou
falando de paixão, que é o caso dele. O caso do Miguel é diferente. Eu
enxerguei amor nos olhos dele. Se eu fosse você, voltaria para o Brasil.
— Eu não vou negar que o amo, Carmen, mas o Miguel me fez
muito mal, e ele agora tem outra família. Eu nunca vou impedi-lo de ver o
filho, mas eu não vou voltar por causa dele, para ficar com ele. Desejo que
ele seja feliz.
Carmen assentiu. Na semana seguinte, comecei a receber mensagens
de Miguel através do celular. Seu Carlos deve ter passado o meu número
para ele. Decidi ignorar e não abri nenhuma mensagem para não cair em
tentação.
A saudade invadia. O ciúme me atormentava. O tesão me consumia.
Estava sempre imaginando nós dois. Imaginava Miguel me tocando do jeito
que sempre fazia, com a ponta dos dedos, descendo por todo o meu corpo,
dispensando atalhos e percorrendo o caminho mais longo das minhas curvas
até encontrar a fonte inundada do meu sexo, e sem medo de se afogar, sua
língua habilidosa mergulhava fundo e me fazia delirar, gemer e gritar, até
gozar.
Mente traiçoeira a minha. Chega! Nunca mais quero pensar nele.
Tenho que procurar uma ocupação o quanto antes. Só vou esperar Francisco
completar um ano, para me matricular na faculdade de enfermagem e
realizar o meu grande sonho. Também tinha que sair mais. Ver gente, ver
vida. Arrumei meu bebê e pedi a Seu Juan, o motorista, que nos levasse até
o shopping. Passei a tarde inteira passeando com Francisco e foi muito
bom. Consegui distrair um pouco.
As mensagens de Miguel não paravam de chegar. Resolvi dar um
ponto final naquilo. Liguei para o celular de Seu Carlos com a intenção de
falar com Seu Raul.
— Seu Raul, por favor, peça para o seu neto parar de me enviar
mensagens. Eu não leio e nem vou ler, porque tudo o que vem dele não me
interessa.
— Você está certa, minha neta. Eu já cansei de falar com o Miguel
que é para ele não insistir mais.
— O senhor falou? — perguntei perplexa.
— Sim. Já disse para ele desistir, pois um dia, o melhor dele será
suficiente para alguém, e não será porque ele mudou, será porque alguém
vai enxergar o que sempre existiu dentro dele sem máscaras, sem esforço
para agradar. Eu disse que ele precisa se libertar desse amor que o machuca
tanto. Que ele ainda é jovem, e eu tenho certeza que vai aparecer alguém
que vai gostar dele do jeito que ele é, alguém que o valorize, alguém que
não peça para que ele seja mais ou menos, mas que seja apenas ele. Alguém
que pense: “É isso. Esse é o melhor que eu sempre procurei”.
Com irritação na voz, eu disse:
— É, Seu Raul. Parece que o seu neto está enganando o senhor mais
uma vez, pois ele já encontrou essa pessoa compreensiva, resiliente,
companheira e que o aceita do jeito que é. Ele está muito feliz com a única
mulher que ele amou na vida. O que ele quer, é me fazer voltar para ficar
perto do Francisco, mas eu já disse que ele não precisa se preocupar. Eu
nunca vou impedir ele de se aproximar do filho.
— A única mulher que ele amou foi você, Letícia.
— Eu sei que ele e a Susana estão juntos — afirmei.
— A Susana? É claro que não.
— Sim, Seu Raul. Eu sei que eles tiveram um namoro na
adolescência e que depois que ela foi embora, o Miguel nunca a esqueceu.
Ela voltou e eles reataram. Adotaram a Clarinha e a Vivian e estão vivendo
uma vida muito feliz — falei choramingando.
— Posso saber quem foi a pessoa que contou isso para você?
— As “tias” do abrigo contaram para a minha amiga, Ana Lúcia.
Elas souberam que o Miguel e a Susana adotaram as duas crianças e
formaram uma família.
— É verdade. A Susana e o Miguel estão muito felizes com as
filhas. Formaram uma verdadeira parceria.
— E mesmo assim o senhor ainda diz para eu voltar? Eu estou
decepcionada com o senhor, Seu Raul.
— Letícia, a Susana é a mãe da Vivian. O Miguel é o pai da
Clarinha. Eles são apenas dois grandes amigos que adotaram as crianças
separadamente. O Miguel é um pai solo maravilhoso, tem se saído muito
bem cuidando da filha, mas assim como o Francisco precisa do pai, a
Clarinha precisa da mãe. A sua família espera por você aqui. Está
esperando o quê para voltar?
Miguel adotou Clarinha, sozinho? Meu Deus! Eu não conseguia
parar de chorar depois de ouvir aquilo. Me arrependi de tê-lo julgado tão
severamente. Ele sabia do meu amor por aquela criança e, mesmo sem
saber se um dia nos encontraríamos novamente, tomou a decisão de adotá-
la. Por ela, por mim, por nós...
Abri as mensagens no meu celular e li uma por uma. Na primeira,
Miguel me deu um ultimato para voltar em trinta dias e, dali por diante, fez
uma contagem regressiva. Enquanto lia a mensagem “Dia 25 de 30”, já
estava totalmente rendida e decidida a voltar. Falei com Carmen, que me
encorajou, e comprei minha passagem e de Francisco. No dia do meu
embarque, Carmen e Seu Juan nos levaram até o aeroporto. Carmen chorou
ao se despedir de mim e de Francisco. Ela o viu nascer e ficou muito
apegada ao meu bebê.
Após despachar as malas e fazer o check-in, verifiquei meu celular e
vi que Miguel havia enviado mais uma mensagem:
Dia 29 de 30: Mesmo longe, você está sempre nos meus
pensamentos. Tesão só de lembrar de nós dois juntos. Sei que você lembra
de cada orgasmo que te provoquei. Ou, pelo menos, quero acreditar que
sim. Quero acreditar que você e o seu corpo, sentem a mesma saudade que
eu. Diz que sim!
Fiquei rindo sozinha que nem uma boba. Tirei uma foto do cartão de
embarque e enviei para ele com a mensagem:
Dia 30 de 30: SIM.
CAPÍTULO 36

ELA DISSE SIM! ELA DISSE SIM!


Levantei da cama aos pulos. A primeira coisa que fiz foi verificar o
horário da chegada do voo em São Paulo: oito horas e cinco minutos. Teria
que sair de Ribeirão de madrugada, pois não queria me atrasar. Não
consegui mais dormir. Arrumei a mochila de Clarinha e coloquei algumas
roupas. Fiz o mesmo para mim. Minha intenção era ficar um ou dois dias
em São Paulo até que Letícia e Francisco pudessem descansar e se
acostumar com o fuso horário antes de voltarmos para Ribeirão.
Às cinco e meia da manhã, acordei Clarinha. Ela reclamou, mas
quando eu disse que iríamos buscar a mãe e o irmão, ela despertou de vez.
Dei um banho nela, preparei seu leite, assei o pão de queijo que ela gostava
e, às seis e quinze, saímos de casa.
Chegamos ao aeroporto de Guarulhos às sete e meia da manhã.
Estava nervoso. Vi no painel que o voo estava um pouco atrasado.
Aproveitei e fui até uma floricultura que fica dentro do aeroporto. Comprei
o buquê de rosas vermelhas mais lindo que encontrei. Clarinha quis
comprar um balão em formato de coração para entregar à mãe e outro azul
com um ursinho para presentear o irmão.
Oito horas. Oito e quinze. Às oito e quarenta e cinco o painel avisou
que o voo havia pousado. Meu coração paralisou. Tanto que eu esperei por
isso...
Trinta e cinco minutos depois, os passageiros começaram a sair pelo
portão do desembarque. Meu coração parecia explodir de tanta ansiedade.
Até que vi Letícia empurrando Francisco em um carrinho de bebê. Quando
nos viu, ela parou. Colocou a mão sobre a boca e chorou. Lágrimas também
rolaram pelo meu rosto, e eu fui ao seu encontro, dei um beijo na testa do
meu filho, entreguei a ela o buquê de flores e perguntei:
— Por que demorou tanto?
Nos abraçamos chorando, nos beijando, nos adorando. Letícia pegou
Clarinha no colo e a beijou emocionada. Mãe e filha, finalmente juntas.
Francisco se agitava no carrinho. O peguei no colo dizendo:
— Vamos embora, filhão.
Enquanto um funcionário do aeroporto empurrava o carrinho com as
malas, Clarinha foi empurrando o carrinho de bebê. Com Francisco em meu
colo, peguei a mão de Letícia e fomos caminhando até o estacionamento.
Clarinha estava radiante. Foi cantando músicas para Francisco até
chegarmos na cobertura. Assim que entramos, Letícia comentou olhando
para mim:
— Quantos bons momentos passamos aqui...
— Sim, meu amor. Vamos ter mais ótimos momentos juntos.
Estava ansioso para ter um momento a sós com Letícia, mas as
crianças precisavam de atenção. Pedi um almoço para nós de um
restaurante que eu adorava e, depois, Letícia foi descansar, pois disse que
não conseguiu dormir durante o voo.
Francisco também dormiu, mas parecia que Clarinha estava elétrica.
Ligada nos 220 volts. Ela cismou que queria fazer um bolo para cantar
parabéns pela volta da mamãe e do irmão. Para ela, tudo precisava ter bolo
e parabéns. E lá fui eu para a cozinha... Pois é, até isso. Com minha
pequena em casa, tive que aprender a me virar e até aprendi a cozinhar. A
minha especialidade era o bolo de pão de ló. Com a ajuda da minha
assistente, fiz o bolo e coloquei a massa no forno. Quando Letícia acordou
por volta das quatro da tarde, o lanche já estava pronto.
— Que cheirinho delicioso — disse sorrindo.
Me aproximei e dei um longo beijo em sua boca.
— Eu e o papai fizemos o bolo, mamãe.
Letícia se abaixou para pegar Clarinha no colo. Vi lágrimas em seus
olhos.
— A coisa que eu mais desejava na vida, era um dia ouvir você me
chamando de mamãe. Diz de novo.
— Mamãe, mamãe, mamãe, mamãe — Clarinha repetiu várias
vezes.
As duas começaram a gargalhar. Francisco choramingou e fomos os
três verificar se ele havia acordado. Letícia o pegou no colo e começou a
amamentá-lo. Clarinha ficou observando, e depois de um tempo perguntou:
— Por que ele tá chupando o seu peitinho, mamãe?
— Porque aqui sai o leite que a mamãe dá pra ele.
— Eu também quero o leite da mamãe, pode?
— Eu também quero — disse olhando para Letícia com cara de
safado.
Ela ignorou o meu comentário e respondeu para Clarinha.
— Como os bebês não sabem comer direito, eles sugam o leitinho
da mamãe. Mas como você já sabe comer tudo direitinho, não precisa.
— Eu como tudinho direitinho, mamãe. Mas e o papai? —
perguntou inocente.
— Ele também sabe comer direitinho — respondeu Letícia.
— Depois eu vou mostrar para a mamãe o quanto eu sei comer tudo
bem direitinho. Não vejo a hora de comer tudinho — disse.
Letícia sorriu piscando um olho para mim. O dia foi longo. As
crianças demoraram para pegar no sono, principalmente Clarinha, agitada
com tanta novidade. Fez Letícia ler várias histórias, até conseguir dormir.
Quando nos vimos sozinhos, exclamei:
— Finalmente, tenho você só para mim. — Fechei a porta do quarto
com um chute.
Letícia sorriu sensualmente. Linda pra caralho. Sem conseguir mais
resistir, puxei-a pelo braço contra o meu corpo. Depois, a peguei no colo e
Letícia cruzou as pernas enlaçando a minha cintura. Tomei a sua boca em
um beijo cheio de saudade e desejo.
— Você é minha... só minha!
Fui levando-a comigo até a cama sem parar de beijar sua boca.
Desci até o pescoço e libertei os seus seios. Fiquei alguns segundos
apreciando os seios fartos, diferente do que me lembrava. Ela se tornou mãe
e estava mais linda e deliciosa do que nunca. Não resisti e levei um de seus
seios até a boca. Letícia se contorcia enquanto eu os sugava e me deliciava
com o néctar que saía deles.
Levei uma das mãos até sua coxa e fui subindo até chegar a sua
calcinha que estava encharcada. Comecei a esfregar o clitóris de leve,
aumentando o prazer e arrancando gemidos cada vez mais altos. Ela se
levantou um pouco e ergueu a minha camiseta até conseguir retirá-la.
Correu suas unhas pelo meu peito e abdômen. Meus músculos se
contraíram.
Afastei a sua calcinha para o lado e intensifiquei o toque.
— Estou louco para te comer. Para sentir você.
— Me come, Miguel. Eu também não aguento mais de vontade de
você.
Aquele foi o sinal. Fiquei doido. Labaredas de tesão, faíscas de
desejos começaram a subir pelo meu corpo. Parecia um vulcão em iminente
erupção, bicho selvagem enjaulado que saliva loucamente pelo simples
toque da pele com pele.
Coloquei um dedo dentro dela. Ela estava tão excitada que gozou
em segundos. Letícia pegou no meu pau e disse com a voz rouca:
— Quero ele na minha boca!
— Depois amor, agora eu vou meter ele bem fundo na sua boceta.
Não aguento mais esperar.
Tirei sua calcinha por completo e depois me despi. Letícia abriu as
pernas ao máximo e disse:
— Vem, invade, penetra. Vem se esgotar no meu corpo. Eu quero
muito. Quero tudo.
E eu fui... Seu corpo era água que acalmava a minha sede, era o
antídoto para o meu prazer, era loucura, era querer. Ficamos na cama
totalmente enfeitiçados um pelo outro. Nos amamos, sorrimos, brincamos.
Para sempre ela. Pra sempre eu.
Não consigo traduzir em palavras a intensidade do que estou
sentindo.
Me descontrolei quando as mãos de Miguel tocaram o meu corpo,
quando senti a sua sede por mim. Como sempre, ele usou todos os seus
trunfos de sedução. Sabia me desarmar com facilidade e sem manobras.
Suas mãos percorriam o meu corpo e provocavam um desejo insano, me
fazendo estremecer.
Miguel sugou meus seios e se fartou com o néctar que saía deles.
Depois, afastou minha calcinha, tateando a minha boceta sedenta. Meu gozo
foi instantâneo. Quando ele tirou a minha calcinha por completo, implorei:
— Vem, me come. Eu quero tudo.
Minhas palavras pareciam o sinal que ele precisava para agir. Abri
as pernas totalmente e Miguel pressionou a cabeça do seu pau contra a
minha entrada. Ele estava numa fome descomunal, duro, ereto e começou a
me invadir com estocadas firmes e precisas. Eu o suguei deliciosamente.
Em poucos segundos, gozei novamente. Miguel inverteu nossas posições e
eu tomei conta, cavalgando em seu pau feito uma esfomeada. Seu pau
entrava e saía com força e velocidade. Nossos corpos provocavam barulhos.
Eu gemia, gritava, chorava. O prazer tomava conta, os gemidos deixando de
ser contidos e passando a ser vorazes. Nossos gozos chegaram em espasmos
fortes. Estávamos juntos. Agora e para sempre.

Hoje é o dia do meu casamento. Não sei definir ao certo o


sentimento que está invadindo meu ser: um misto de felicidade, expectativa
e muito amor. Desde que voltei da Espanha, estou morando com Miguel no
apartamento no centro da cidade de Ribeirão. Era uma moradia provisória,
pois Miguel estava reformando uma linda casa à beira de um lago para
abrigar nossa família.
Quando fui visitar a casa, fiquei impressionada. Ela era exatamente
do tamanho da nossa felicidade, do tamanho da nossa família. O mais
surpreendente foi quando Seu Raul nos chamou e me entregou um
documento. Quando abri, não acreditei: era a escritura daquela casa que ele
colocou no meu nome. Chorei abraçada a ele. Era meu avô, meu amigo,
meu conselheiro, meu benfeitor, meu protetor. Só gratidão!
A mãe de Miguel não aceitou a nossa união. Fiquei triste por ele,
mas esperava que no futuro os dois pudessem se entender, assim como
Miguel se entendeu com o avô. O tempo sempre era o melhor remédio.
Estava pronta. Sentia-me linda e radiante. Ao primeiro som de “Ave
Maria” de Schubert, Clarinha e Vivian entraram na igreja jogando pétalas
de rosas. Seu Raul me levou até o altar e me entregou nos braços de Miguel.
Na hora dos votos, Miguel foi o primeiro a falar:
“Meu amor, lutamos tanto por nossa história, respeitamos o tempo
um do outro, fomos ruptura e cola. Tivemos a certeza de que nada ia ser
diferente do que merecíamos. Aos poucos, construímos nosso mundo. Um
mundo onde só há amor. E não há, nem nunca haverá, amor como este. E
agora vou me casar com você. Como eu sempre quis, como sempre desejei,
acreditei e confiei, pois jamais abriria mão de me casar como o amor da
minha vida. Agora e até o fim, seremos marido e mulher.”
Chorei emocionada, mas era a minha vez de declarar o meu amor
diante de todos.
Podiam ser outras pessoas, podia ser outro casal. Poderiam ser dois
desconhecidos, mas somos nós. Eu te escolhi, e você me escolheu. Vejo a
nossa história, os nossos sonhos e, acima de tudo, vejo duas pessoas que se
encontraram e se perderam uma na outra. Vejo amor. O maior amor de
todos. Estar com você é a sorte de ter um amor feito de brisa fresca, que
respira o melhor do mundo, que transpira e transborda loucura e doçura,
risos e colos, soluços amparados e sonhos compartilhados. Você é minha
bússola, meu guia, meu rumo, meu norte. Eu te escolhi porque te amo,
Miguel, e te escolheria mil vezes. Agora e para sempre.
A festa foi linda, maravilhosa. Todos os nossos amigos
compareceram. Susana, Ana Lúcia e Lisete foram as madrinhas. Fausto,
Jaime e Vitor os padrinhos. A maior surpresa foi ver Carmen e Pietro na
cerimônia. Na hora dos cumprimentos aos noivos, ele me abraçou dizendo:
— Você é a noiva mais linda e radiante que eu já vi. Seja feliz.
Depois, ele olhou para Miguel, e os dois se abraçaram. Meus olhos
ficaram marejados ao ver os dois resgatando a velha amizade. Nada mais
lindo do que o perdão.
Deixei as crianças aos cuidados de Susana e Lisete e fomos passar
alguns dias no Rio de Janeiro em lua de mel. Miguel reservou uma suíte no
hotel Copacabana Palace, e eu fiquei deslumbrada com a “Cidade
Maravilhosa”. As praias, a paisagem, o verde, o contraste entre o mar e as
montanhas. Surreal!
Chegamos à suíte após mais um dia intenso. Miguel me abraçou por
trás e me brindou com o sussurro da sua voz no meu ouvido.
— Hoje eu quero me fartar de você.
Enquanto a jacuzzi enchia, nos despimos aos beijos. Miguel entrou
na banheira e me chamou. Me juntei a ele e agarrei seu corpo molhado,
passando as mãos por seus músculos relaxados e descendo em direção ao
seu pau. Miguel não parava de me beijar. Comecei a manipulá-lo. Era uma
delícia sentir o quanto era grande e grosso. Faminta, coloquei tudo na boca
saciando a minha vontade. Miguel gemia, e sem eu esperar, começou a
foder a minha boca até penetrar a minha garganta. Engasguei.
— Tudo bem? — perguntou.
— Sim, vem mais.
Agarrei as suas coxas e ele introduziu novamente o pau na minha
boca. Depois de mais algumas estocadas, ele disse:
— Eu quero te comer olhando em seus olhos.
Fiquei excitada até o limite, e tudo se transformou quando ele me
penetrou. O orgasmo chegou me estremecendo. Miguel gozou e ficamos
apenas olhando um nos olhos do outro.
Ele me olhou e, sem palavras, disse o quanto me amava, me
desejava e o quanto o nosso amor alimentava a sua alma. Eu o olhei e, sem
palavras, disse que a nossa cumplicidade e ternura, andavam de mãos
dadas. Uma atração gigante e magnética nos puxava, nos unia, e eu sabia
que ficaríamos ligados para toda a vida.
EPÍLOGO

“Quando se vê, já são seis horas!


Quando se vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já terminou o ano...”
O tempo passa muito rápido, e quando se vê...
5 anos depois…
Hoje foi um dia especial: o dia da minha formatura. Nunca pensei
que seria tão feliz. Subi ao palco quando fui chamada, cumprimentei os
professores, abracei os amigos, mas meus olhos buscavam pela minha
família, que me aguardava ansiosa. Minha família. Meu mundo. Miguel
estava com Arthur no colo, enquanto Francisco e Clarinha estavam de mãos
dadas com o bisavô Raul. Todos felizes e orgulhosos.
Quando a cerimônia terminou, fui ao encontro dos meus amores.
Assim que me viu, Arthur praticamente se jogou no meu colo. Nunca vi um
garotinho tão apegado à mãe como ele. Ele se aconchegou em meus braços
enquanto meu amor beijava meus lábios com paixão. Em um segundo,
fomos envolvidos por um abraço coletivo como tantos que já tivemos
nesses anos. Abraço de amor verdadeiro.
No mês em que completamos um ano de casados, recebemos um
grande presente. A guarda definitiva de Clarinha saiu. Foi uma enorme
alegria. Quando recebemos a sua certidão de nascimento, choramos
abraçados a ela. Definitivamente era a nossa filha: Maria Clara Prado
Hernandez.
Miguel era um ótimo marido e um ótimo pai. Trabalhava muito,
dividindo-se entre o hospital e a clínica, mas todo seu tempo disponível era
para a família. Miguel era um ótimo filho, pois, mesmo Celeste ainda não
aceitando o nosso casamento, ele nunca a abandonou. Sempre ia visitá-la
levando as crianças, e ansiava pelo o dia em que ela estaria presente em
nossas vidas. Miguel era um ótimo neto. Seu Raul estava morando conosco
em nossa casa no lago, e era nosso grande amigo, companheiro e
conselheiro. Era uma pessoa muito querida por todos e amava demais os
bisnetos.
Susana se tornou uma grande amiga e era muito presente em nossas
vidas. Gostávamos dela como se fosse alguém da família. Vivian estava
linda: esperta, inteligente e feliz ao lado da mamãe e do papai. É, papai,
pois, depois de ter vindo ao meu casamento com Miguel, as visitas de Pietro
ao Brasil se tornaram constantes. Logo, eu e Miguel começamos a
desconfiar de que havia algum interesse por trás disso tudo. Não deu outra:
algum tempo depois, ele e Susana assumiram que se amavam. Ele voltou
definitivamente para o Brasil e, atualmente, moram em São Paulo. Uma
família linda e feliz.
Assim que retornei ao Brasil, quis voltar aos estudos. Não queria
ficar parada. Tive que fazer novamente o vestibular e passei de primeira.
Logo quando iniciei a faculdade, fui estagiar na clínica de Miguel. Foi um
período de grande aprendizado.
No quarto período da faculdade, descobri que estava grávida de
Arthur e, assim que ele nasceu, optei por trancar o período para dar plena
atenção ao meu bebê. Só voltei aos estudos um ano depois, quando
convenci Lisete a vir trabalhar na minha casa para me dar apoio com as
crianças. Ela era minha amiga e pessoa de extrema confiança. Assim, pude
me dedicar mais aos estudos e realizar o meu sonho de ser enfermeira.
Seu Raul e eu conversávamos muito sobre tudo o que passamos.
Não com vitimismo, pois nunca nos sentimos vítimas de nada, mas
refletindo sobre a situação de tantas pessoas que sofrem abandono,
violência, medo e insegurança. Foi assim que nasceu a Fundação Raul
Hernandez, com o objetivo de promover bem-estar e autoestima para
pessoas em situação de vulnerabilidade social, incluindo crianças,
adolescentes, jovens, adultos e idosos A Fundação, espalha amor para todos
os necessitados e busca proporcionar uma melhor qualidade de vida para
pessoas carentes.
Além do patrocínio do Grupo Hernandez, a Fundação recebia
doações de pessoas físicas e jurídicas para diversas causas. Através dessa
corrente do bem, conseguimos vários voluntários prontos para servir ao
próximo. Contávamos com assistência médica, odontológica, nutricional,
psicológica e educacional. Fazíamos também parcerias com várias empresas
da região, criando um banco de oportunidades voltado a atender, orientar e
encaminhar ao mercado de trabalho pessoas em busca de emprego,
conectando profissionais e empresas. Também oferecíamos cursos
profissionalizantes para jovens e estágios remunerados.
Eu trabalhava na Fundação como enfermeira voluntária. Me sentia
muito grata por conseguir ajudar tantas pessoas, por fazer parte de tantas
vidas e por poder contar minha experiência. O começo da minha vida foi de
abandono e solidão. Tive alguns percalços, mas nunca desanimei. Sempre
acreditei que eu seria capaz de mudar as coisas, acreditando que o amor tem
e precisa ser compartilhado com todos.
A festa de formatura aconteceu em um salão de um hotel em São
Paulo. Estava me sentindo linda, com um vestido verde esvoaçante, feito
exclusivamente para a ocasião. Meu amor também estava lindo. Um
verdadeiro príncipe.
Eu e Miguel dançamos a noite toda. A música era pura vibração, e
nossa pele se procurava e não se separava, deixando apenas espaço para o
suor que se misturava e logo evaporava com o calor e a fricção. Em seus
braços, eu me sentia como se o mundo desaparecesse sob os meus pés. Uma
sensação de paz e liberdade.
E pensar que quase desistimos…
Nesses cinco anos, aprendemos que nem todas as relações são
simples, mas que o amor sempre vale a pena. Com tantos percalços,
obstáculos e mudanças de cenários, superamos tudo com resiliência e
chegamos ao nosso destino. Somos felizes, crescemos juntos, expandimos
nossos horizontes e aprendemos o verdadeiro significado de amar.
FIM
AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, por sempre colocar tudo no seu devido lugar;


Ao meu anjo protetor, por nunca me abandonar;
Aos meus pais (in memoriam): pelo amor, pela vida e pelo
direcionamento da minha personalidade;
Ao meu amor, Sergio Mendes, por tudo;
Aos leitores, pelo carinho de sempre;
E a todos aqueles que me deram suporte para que este livro se
materializasse.

A luz de Deus nunca falha!


SOBRE A AUTORA:

S.G. MENDES nasceu no Rio de Janeiro em uma época anterior à


internet e às redes sociais — um tempo de leitura-raiz. Movida por uma
curiosidade insaciável, sempre confiscava os gibis, livros, revistas, e jornais
dos irmãos mais velhos. Lia todos os gêneros, decorava histórias e construía
o seu próprio mundo. Até que foi fisgada pelos romances, encantando-se a
cada página lida. Como a leitura dialoga com diversos elementos, nada mais
natural do que se encantar também pela escrita. E foi entre um rascunho e
outro que a mágica aconteceu. Esse processo de ser transportada para
dentro de cada personagem é lindo e intenso, provoca encantamento,
alimenta, dá prazer e transporta para outros mundos.
Bem-vindos ao mundo de S.G. MENDES!
@sgmendesautora

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