Paulo Freire Um Menino de 100 Anos - Walter Kohan
Paulo Freire Um Menino de 100 Anos - Walter Kohan
Paulo Freire Um Menino de 100 Anos - Walter Kohan
(em quarentena)
Ensayos En Lectura. Inutilidad, soledad y conversación. 2020.
Carlos Skliar
(em quarentena)
NEFI Edições
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Reitor: Ricardo Lodi Ribeiro
Vice-Reitor: Mario Sergio Alves Carneiro
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Luís Antônio Campinho Pereira da Mota
Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPEd)
Coordenadora: Ana Chrystina Venancio Mignot
Vice-Coordenador: Guilherme Augusto Rezende Lemos
Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Coordenador: Walter Omar Kohan
Alejandro Ariel Cerletti, Univ Buenos Aires e Univ Nac Gral Sarmiento Alice Pessanha Souza de Oliveira
Alexandre Filordi de Carvalho, UNIFESP, Brasil Allan Rodrigues
Alexandre Simão de Freitas, UFPE, Brasil Arthur Henrique F. de Almeida
Barbara Weber, University of British Columbia Daniel Gaivota Contage
Beatriz Fabiana Olarieta, UERJ, Brasil Fabiana Martins
Carlos Bernardo Skliar, FLACSO, Argentina Felipe Froes Pereira Trindade
César Donizetti Leite, UNESP, Rio Claro, Brasil Marcelly Custodio de Souza
Claire Cassidy, University of Strathclyde, Escócia Ocimar Castro Maximo
Fabiana Fernandes Ribeiro Martins, (Colégio Pedro II, Brasil) Robson Roberto Lins
Gregorio Valera-Villegas, Univ. Experimental Simón Rodríguez, Venezuela Simone Berle
Gustavo Fischman, Arizona State University, Estados Unidos da América
Jason Wozniak, West Chester University, Estados Unidos da América Capa:
Juliana Merçon, Universidad Veracruzana, México Marcelly Custodio de Souza
Junot Cornelio Matos, UFPE, Brasil
Karin Murris, Cape Town University, África do Sul Diagramação:
Lara Sayão, Sedec RJ, Brasil Arthur Henrique F. de Almeida
Magda Costa Carvalho, Universidade dos Açores, Portugal Marcelly Custodio de Souza
Maria Reilta Dantas Cirino, UERN, Brasil Simone Berle
Marina Santi, Università degli Studi di Padova, Itália
Maristela Barenco Corrêa de Mello, UFF, Brasil Revisão técnica deste livro:
Maximiliano Durán, Universidad de Buenos Aires, Argentina Arthur Henrique F. de Almeida
Olga Grau, Universidad de Chile, Chile Magda Costa Carvalho
Óscar Pulido Cortés, Universidad Tecnológica y Pedagógica de Colombia
Paula Ramos de Oliveira, UNESP - Araraquara, Brasil
Pedro Pagni, UNESP - Marília, Brasil
Renato Noguera, UFRRJ, Brasil
Roberto Rondon, UFPB, Brasil
Rosana Fernandes, UFRGS, Brasil
Rosimeri de Oliveira Dias, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo, UNICAMP, Brasil
Virgínia Kastrup, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Walter Omar Kohan, UERJ, Brasil
Wanderson Flor do Nascimento, UnB, Brasil
“A comissão para avaliação cega dos trabalhos da Coleção Ensaios em 2021 foi integrada por Junot
Cornélio Matos e Magda Costa Carvalho.”
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
ISBN: 978-65-992767-1-2
1. Paulo Freire 2. Centenário Paulo Freire 3. Educação 4. Filosofia 5.
infância. I Título. II Série.
CDD 370.1
A Paulo Freire, por ter sido e vivido sempre Paulo Freire e assim
nos ajudar a esperançar com outros mundos;
A Elza Freire, por ter sido e vivido sempre Elza Freire, sem a qual
Paulo Freire não seria Paulo Freire;
A Madalena Freire, pelo seu sorriso inspirador;
A Fátima Freire, pela sua forma intensamente infantil de estar
comigo no (seu) mundo;
Ao Instituto Paulo Freire, em especial a Moacir Gadotti, Ângela
Antunes e Lutgardes Freire, pela sua forma amorosa de cuidar o “lega-
do” de Paulo Freire;
À Fabiana Martins pelo posfácio de Italo Calvino.
À universidade pública, que resiste às (des)políticas infames da
insensatez governante;
À FAPERJ e ao CNPq, permanentes apoiadores do meu trabalho;
Aos membros do Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias
(NEFI) da UERJ, que são fonte permanente de inspiração no pensamen-
to e na escrita;
À equipe de edições NEFI, em especial a Marcelly Custodio
e Simone Berle, duas forças da natureza que carregam com o
corpo este sonho;
Aos revisores deste texto, Arthur Henrique e Magda Costa
Carvalho, pelo seu trabalho cuidadoso e amoroso.
À Valeska, Giulietta e Milena que estão sempre presentes nas
minhas escritas, nos meus pensamentos e nas minhas vidas.
Sumário
Prólogo
Ouvidos de ouvir crianças: escutar das crianças tudo o que ainda não
sabemos..................................................................................................15
por Magda Costa Carvalho e Simone Berle
Referências bibliográficas.................................................................195
Ouvidos de ouvir crianças:
escutar das crianças tudo o que ainda não sabemos
15
Prólogo
16
Magda Costa Carvalho e Simone Berle
17
Prólogo
(ou como ainda precisamos seguir aprendendo com elas) nos leva a
perceber que Paulo Freire faz sem anos. E podíamos continuar brin-
cando com as palavras (gesto tão distintivo dos escritos de Walter
Kohan): tudo o que Paulo Freire faz hoje fá-lo sem anos. Em sua forma
infantil de fazer nascer – sempre e outra vez – a educação como práti-
ca de liberdade, mesmo em tempos tão áridos e escassos de alegria
e compaixão como os que agora vivemos, Paulo Freire escapa aos
ciclos cronológicos e torna-se imortal. Continua em estado nascente,
mesmo fazendo cem anos. Continua a fazer-nos nascer, sobretudo
fazendo sem anos.
Este livro pode ser um bonito exemplo do que afirmamos.
Paulo Freire: um menino de 100 anos é, ao mesmo tempo, uma forma
de celebrar uma vida extraordinária de amor, força e revolução através
da escuta dos mais pequenos. E Walter Kohan vai mostrando aos leito-
res e às leitoras, em cada um dos textos que compõem este volume,
algumas importantes pequenezes às quais devemos dar nossa aten-
ção enquanto educadoras e educadores. E talvez não seja tanto uma
questão de um “devermos” carregado de normatividade, quanto de
fazermos o exercício de pensarmos o quanto a nossa forma de viver a
educação pode mudar se atendermos a estes pormenores (pormaio-
res!). Escrever uma carta para Paulo Freire, fazer um passe de bola a
Diego Maradona, insistir sempre nas perguntas, brincar com versos de
poetas, obstinar-se na importância do amor, recordar as minudências
das vidas daqueles e daquelas com quem nos cruzamos. São gestos de
infância que permeiam a escrita de Walter. Esses gestos são igualmen-
te afirmações vivas de um pensador de fracturantes questões educati-
vas e filosóficas: o método, a educação popular, a literacia do mundo, a
igualdade, a revolução, a política, o tempo.
A educação no Brasil é uma criança que, como Elisa e
Mangaliso do começo do nosso texto, é frequentemente calada em
sua meninice, a meninice de pronunciar o mundo em suas primeiras
vezes. A educação, tal como reivindica Paulo Freire e, ecoando nele,
Walter Kohan, é um ato de criação e “porque é encontro de homens
que pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns
a outros” (Freire, 2020, p. 18). Sobretudo dos mais pequenos aos
“mais grandes”. Enquanto educandos e educandas, o ato de cora-
18
Magda Costa Carvalho e Simone Berle
19
Prólogo
cada ser humano cresça um par destes ouvidos, com a maior urgência
possível. A mesma urgência do amor, da revolução, da escrita de Walter.
Referências:
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Nota preliminar sobre os textos que compõem este livro
Demorei muito a escrever um livro sobre Paulo Freire até que em 2019
lançamos Paulo Freire mais do que nunca, na Editora Vestígio. Nesse
momento, Paulo Freire tinha 98 anos e ninguém pensava que o mundo
ia ser comovido pela pandemia de covid-19 no ano seguinte. Com a
pandemia (e o des-governo que a des-enfrentou no Brasil) e a proxi-
midade dos 100 anos de Paulo Freire, um número inusitado de ativi-
dades foi sendo organizado on-line, as inicialmente cativantes e hoje
difíceis de dosar lives. Nesse contexto, pensamos que publicar um livro
que reunisse algumas das minhas intervenções nessas lives, bem como
textos escritos neste período entre 2020 e 2021, seria uma forma bonita
de comemorar os 100 anos de Paulo Freire. Os textos foram publicados
como artigos em periódicos ou capítulos de livros e revisados e reto-
cados para esta edição. No caso de textos resultado de intervenções
orais, colocamos em nota a data do evento e mantivemos um certo
tom coloquial para preservar a sua vivacidade. Eis as fontes onde foram
publicados os capítulos deste livro:
21
Nota Preliminar sobre os textos que compõem este livro
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Antes de mais nada:
uma carta para Paulo Freire
Estimado Paulo,
Posso imaginar a dificuldade que você tem esse ano em ler tantís-
simas cartas que está recebendo de diferentes partes do mundo.
Naturalmente, é também uma boa dificuldade, uma espécie de alegria,
eu sei, sobretudo pelo seu gosto em receber e escrever cartas, pelo
carinho que esta forma de comunicação significa e pelo gesto extra-
ordinário de amor por você e sua vida que milhares de cartas sendo
escritas em todo o mundo lhe comunicam. Imagino você cansado e
ao mesmo tempo feliz por receber tantos gestos de amor e reconhe-
cimento. E, também, imagino você pensando em como responder a
tantas cartas… acertei?
Sinto que você também deve estar muito preocupado com a
situação atual no Brasil que nos machuca tanto, tão duramente, tão
rudemente indigna deste povo. Imagino você zangado, furioso, enfu-
recido. Você já estava com raiva quando a situação política era menos
grave, em um certo sentido, mesmo que nunca fosse tranquila. Porém,
o momento atual excede qualquer limite com este maldito governo e
sua política de morte contra o Brasil mais profundo. Sua absoluta falta
25
Antes de mais nada: uma carta para Paulo Freire
26
Walter Omar Kohan
Amorosamente,
Walter Omar Kohan
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Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino
(Entrevista com Isabela Pereira Lopes)
1
Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20200306042539/Paulo-
Freire-mas-que-nunca.pdf>.
29
Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino
2
Disponível em: <https://www.bloomsbury.com/paulo-freire-9781350195981/>.
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Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino
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Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino
do de 1995 (você era muito menina, risos). Ou seja, tinha dado aulas
sobre a Pedagogia do oprimido nesse momento, já faz 25 anos. Mas o
pós-doc é uma coisa extraordinária e ainda mais numa cidade como
Vancouver: você tem todo o tempo do mundo para ler, pensar, escre-
ver. Então levei meus livros, em papel e em arquivos, muitos vídeos e
passei horas e horas lendo, assistindo e escutando a Freire em várias
línguas. Li também alguns dos leitores de Freire, brasileiros e do exterior
– que são muitos, muitíssimos – e tentei encontrar um lugar para não me
perder nessa infinidade de páginas e páginas que se escrevem a diário
sobre Paulo Freire. Tentei escutá-lo atentamente e ser fiel à sua ideia de
tratar de reinventá-lo e não de segui-lo. Então, encontrei logo a infância,
que está sempre comigo, e, como a infância não é muito comumente
associada a Paulo Freire (não que não seja, mas relativamente a outras
ideias, digo), pronto: a infância não podia faltar… e tentei perceber em
que outras ideias Freire podia ajudar a pensar… claro que apareceram
muitas outras palavras… aí, o difícil foi escolher com quais ficaria para
escrever o livro. E como Freire é tão escrito e reescrito, tentei escrever
sobre algumas que não são tão comumente associadas a ele ou pelo
menos desde outra perspectiva…
IL: Bonita essa coisa de “escutar” Paulo Freire, pois foi assim
que te senti ao ler Paulo Freire mais do que nunca. Mas vamos prosse-
guir! Quero falar dos 5 princípios (ou inícios, ou começos, ou gestos
filosóficos, ou ainda razões para ler Paulo Freire hoje): vida, igualda-
de, amor, errância e infância. Como foi essa escolha? Qual deles você
mais gostou de “navegar”? E para quem te conhece de outras fren-
tes, parece ter um pouco da prática do “abecedário de infâncias” por
estas escolhas?
WK: Aqui também poderias me perguntar se fui eu que esco-
lhi os princípios ou eles que me escolheram, verdade? Pois, também
duvido… Talvez o único que não poderia não estar é infância, mas os
princípios são, em certo modo, arbitrários, eventuais. E, quem sabe,
também infância poderia ser outro. Também não me lembro muito
como eles foram surgindo, tentei sempre fugir às palavras mais esperá-
veis para pensar com Paulo Freire, tipo opressão, solidariedade, espe-
rança, autonomia, liberdade, criticidade… mas considerei outras…
deixa-me ver se me lembro de alguma: hospitalidade, por exemplo,
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Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NRNNlcNYImU&ab_channel=-
CINEADLECAV>.
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4
Vídeo no canal YouTube da TV Unicamp: <https://www.youtube.com/watch?v=lhG-
tsDPKKNo>.
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Livro da Nefi Edições com descarga gratuita em filoeduc.org/editora
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porque ele não tinha podido publicar algumas obras em português pela
censura durante a ditadura e também como um modesto gesto de grati-
dão a este país que me deu tanto, dentro desse tanto, três filhas mara-
vilhosas… Então, muitos dias ficava horas e horas lendo, escutando e
assistindo palestras e entrevistas de Paulo Freire na aprazível e belíssi-
ma Vancouver, naquela biblioteca da mesma British Columbia University
em que Paulo Freire tinha estado quase 50 anos atrás. Então, foi um
“exílio” um pouco especial, nada forçado, ao contrário, um contex-
to privilegiado e extraordinário, estava só com minha filha Giulietta e
muito tempo para dedicar à leitura e à escrita. Agradeço meus colegas
do Departamento de Estudos da Infância da UERJ e ao CNPq que me
deram o apoio para isso. Claro que também não fiquei tão quieto em
Vancouver e já aprendi a me concentrar em aviões, aeroportos, e outros
lugares semelhantes… de Vancouver fiz várias viagens e sempre lia e
escrevia alguma coisa. Eu aprendi a fazer das viagens um modo de vida
e elas não me interrompem o que estou fazendo. Ao contrário, propi-
ciam novos estímulos. Ou seja, num sentido, um exílio escolhido e privi-
legiado, nada a ver com o verdadeiro exílio que alguém como Paulo
Freire teve que passar pela ditadura. Mas, em outro, quem sabe…
IL: No princípio da errância, você nos alerta que o “andarilho
da utopia” falava de sujar as mãos diante das barbáries do mundo, mas
sem jamais perder a ternura. Escrever esse livro foi um ato como este?
Sujar as mãos sem perder a ternura?
WK: Você é uma menina danada! E, como boa menina dana-
da, adora sujar as mãos. Eu confesso que também! Pelo menos foi o
caso desse livro com Paulo Freire. Não sei em que você está pensando
com “sujar” as mãos, talvez ter que dedicar energia e escrita a pessoas
que não merecem o esforço, que pretendem sujar (num sentido bem
menos interessante que nós estamos usando) um nome sem o mínimo
respeito e cuidado que esse nome merece. Sim, nesse sentido, tenho
tentado seguir o argentino mais famoso e mais estampado de todos.
Aliás, outro menino danado!
IL: Diego Maradona?
WK: Essa foi ótima, menina! Estava pensando no Che Guevara a
quem Paulo Freire cita várias vezes. Parece que Paulo Freire gostava de
jogar futebol nas ruas de Jaboatão, então certamente deveria gostar
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Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino
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Esta entrevista foi realizada bem antes da morte do amado Diego, em 25 de no-
vembro de 2020. Sua presença e inspiração continuam, também, “mais do que nunca”.
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7
O artigo “Tempos da infância: entre um poeta, um filósofo, um educador”, publi-
cado em Educ. Pesqui., São Paulo, v. 46, 2020, está disponível em: <https://www.scielo.
br/pdf/ep/v46/1517-9702-ep-46-e236273.pdf>.
45
enquanto Paulo Freire era professor da Faculdade de Educação da
UNICAMP. Eis o trechinho, que está no minuto 47 do vídeo8:
“Para mim, uma das coisas terríveis da educação que nós esta-
mos vivendo no Brasil – para falar só do Brasil, mas não é só aqui – é
que ela vem sendo, sobretudo, uma educação da resposta e não uma
educação da pergunta… da pergunta fundamental […] a impressão
que eu tenho é que, de modo geral, nós estamos entrando nas salas
com respostas cujas perguntas fundamentais se perderam no tempo e
a gente nem sabe quais foram elas e a gente chega e dá a resposta ao
educando e ele diz “Poxa, nem perguntei!”…
E como sou um menino danado, enquanto terminávamos esta
entrevista, recebi este vídeo e senti desejo de presenteá-lo aos leitores.
Não é de Paulo Freire, mas me faz muito pensar nele9.
Podemos terminar assim, com música coletiva, menina?
8
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5yRyAXPXHmA&feature=youtu.
be>. Acesso em: 29 de ago. 2020.
9
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EHaRdR98gt0>.
1. Paulo Freire e a (sua) infância educadora
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1. Paulo Freire e a (sua) infância educadora
10
A fotografia está no livro Paulo Freire, anistiado político brasileiro, organizado pelo
Instituto Paulo Freire e a Comissão de Anistia. Ministério da Justiça. São Paulo: Editora
e Livraria Instituto Paulo Freire; Brasília, DF: Comissão de Anistia. Ministério da Justiça,
2012, p. 42.
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O texto está publicado em inglês e em português. Cf. Wilson; Park; Colón-Muñiz,
eds. 2010, p. xix-xxvi.
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A importância de perguntar-se
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infância. Não é uma pedagogia que toma a infância como seu objeto,
mas uma pedagogia que se inspira na infância, que toma da infância sua
força perguntadora e vive, assim, da potência de uma vida infantil; uma
educação que encontra, através das perguntas e do perguntar, a infanti-
lidade da vida através de uma pedagogia na e da infância.
Há, naquele mesmo livro falado (Freire; Faundez, 2017), pelo
menos outros dois aspectos que reforçam a importância da infância na
pedagogia freireana. Esses dois aspectos destacam, ao mesmo tempo,
outras dimensões do significado que a infância tem para a educação.
Vejamos quais são eles.
O primeiro aparece quando, repassando com Antonio Faundez
diversas experiências de alfabetização das classes populares na América
Latina, Paulo Freire lembra de várias experiências de alfabetização em
que os alfabetizadores, jovens, alfabetizam seus pais e mães. Com efei-
to, os mestres populares infantis, jovens, recriam a infantilidade de
uma educação comprometida com a transformação das condições de
vida. A minoridade educa a maioridade. Freire e Faundez apontam que,
nas classes populares, os maiores de idade adoram ser alfabetizados
pelos menores de idade, pelos que eles próprios trouxeram ao mundo.
Literalmente, a infância educa.
O segundo é quando Paulo Freire se refere à revolução nica-
raguense. A conversa acontece em agosto de 1984, no início de um
processo revolucionário que depois segue caminhos menos claros,
menos revolucionários, que talvez não tenham respeitado a opção do
povo nicaraguense, como pede Freire nesse diálogo com Faundez. Mas
na efervescência dos primeiros anos desse processo revolucionário, em
particular na revolução educacional e cultural que está acontecendo no
país centro-americano, Paulo Freire vê a revolução sandinista como um
“testemunho importante em torno de como reinventar uma socieda-
de” (Freire; Faundez, 2017, p. 235). E lembra seu depoimento ante o
povo nicaraguense, alguns anos atrás, de como essa revolução pare-
ce-lhe uma revolução menina, “pelas provas que estava dando de sua
curiosidade, de sua inquietação, de seu gosto de perguntar, por não
temer sonhar, por querer crescer, criar, transformar” (Freire; Faundez,
2017, p. 235). Lembra também seu pedido aos nicaraguenses para que
não deixem envelhecer a revolução e mantenham ela menina.
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à medida que passamos por ele. O tempo passa e, com ele, podemos
manter-nos ou aproximarmo-nos da infância se nossa vida se abre às
perguntas, às inquietações, às mudanças. Podemos viver uma vida
infantil já próximos da morte e podemos estar afastados da infância
mesmo pouco tempo depois de termos nascido.
De fato, Paulo Freire é um desses exemplos em que o percorrer
dos anos não o afasta, mas, ao contrário, o aproxima da infância (mais
ainda, já que, de fato, nunca se afastou dela). Ele mesmo afirma esse
compromisso numa palestra sobre Direitos Humanos, na Universidade
de São Paulo (USP), em junho de 1988, ou seja, com 66 anos: “Eu
acho que uma das coisas melhores que eu tenho feito na minha vida,
melhor do que os livros que eu escrevi, foi não deixar morrer o meni-
no que eu não pude ser e o menino que eu fui, em mim.” (Freire,
2001, p. 101). Prestemos atenção: não deixar o menino que fomos é
um tributo à infância e à nossa vida percebida como algo comum; não
deixar morrer o menino que não podemos ser é um tributo a todas
as infâncias, a todas as vidas concebidas como uma com-unidade e,
também, às possibilidades da infância e a vida ser de uma outra manei-
ra do que elas são.
Nesse gesto atento à infância percebemos, por um lado, a sensi-
bilidade de Paulo Freire, que nunca parece estar pensando apenas em si
mesmo, mas sempre sensível a outras vidas, em particular às excluídas,
oprimidas, esfarrapadas. Percebemos sua sensibilidade e também sua
generosidade no seu desejo de se envolver com a humanidade inteira
na esperança de que a humanidade encontre condições de vida mais
humanas para todos. Não basta manter o menino que fomos na própria
vida: é preciso também manter, cuidar, dar vida a todos os meninos
que não podemos, mas que poderíamos ser.
Percebemos nessa intervenção, também, uma postura do
educador em relação à educação da infância. Nessa afirmação de Paulo
Freire, a infância que nós, os educadores e as educadoras, usualmen-
te, colocamos fora de nós como o que precisa de ser educado, encon-
tra-se, dentro de nós. Não se trata de apenas nos ajudar a educar a
infância dos meninos e das meninas que encontramos na sala de aula,
quanto de uma infância que nos educa a nós mesmos, adultos e adul-
tas, dentro e fora das salas de aula. Mais ainda: ela é uma condição para
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que uma vida seja digna de ser vivida; é o que nos permite realizar “uma
das melhores coisas que podemos fazer de nossas vidas”.
Por isso, a infância para Paulo Freire perpassa e muito o hori-
zonte dos movimentos da cronologia. É verdade: Paulo Freire não se
ocupou explicitamente da educação das crianças cronológicas. Mas
o educador ou educadora que Paulo Freire quer para educar meninos
e meninas de todas as idades têm um caráter infantil sem o qual eles
não seria o que é. Essa infantilidade do educador ou educadora não diz
respeito ao seu número de anos ou a uma etapa da vida, mas a uma
forma de vida que ele caracteriza como curiosa, inquieta, com gosto de
perguntar e de querer crescer, criar, transformar e sem temer sonhar
(Freire; Faundez, 2017). Assim, uma educadora ou educador que se
preze não pode não ser infantil: um educador ou educadora de verda-
de é um educador infantil porque ele ou ela habitam a curiosidade, a
inquietação, o gosto de perguntar e criar que constituem a infância de
todas as idades.
Palavras para terminar começando: perguntando? Palavras
com perguntas, inquietação, sentido de proximidade e abertas para a
mudança. Escrita que ensaia um tempo de infância?
Buscamos, com um texto infantilmente simples, modesto,
leve, inquietar e inquietarmo-nos a respeito da relação de Paulo Freire
com a infância. Tentamos fazer isso na forma e no conteúdo com que
nossas preocupações encontraram a escrita; ou deveríamos dizer que
a escrita nos encontrou nessa forma? Seja como for, esperamos, assim,
ter afirmado uma escrita infantil, uma certa infantilidade da escrita,
ela mesma inquieta, incerta, curiosa tanto quanto as suas perguntas:
será que conseguimos algo dessa infantilidade esperada, almejada e,
através dela, avivar certa infância em nós e nos leitores desse texto
a respeito de uma figura tão educativamente infantil e infantilmente
educadora quanto a de Paulo Freire?
Como sabê-lo? Por que sabê-lo? Para que sabê-lo? Apenas feita
aquela pergunta, algo da infância que está pulsando em nós sacode-se
e grita na forma de novas perguntas: será que essas perguntas podem
(precisam) ser respondidas? Afinal, a infância pode ser localizada em
algum ponto fixo? Será que não há nela algo de inapreensível, uma
deixa que sempre escapa qualquer pretensão de captura ainda, ou
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educador pernambucano Paulo Freire, que viveu uma vida sem idade e
cheia de tempo. O que significa dizer que viveu uma vida cheia de infân-
cia. Pois a infância que educa não tem idade nem se mede pela passa-
gem das horas, dos dias, dos anos… a infância educa em outro tempo,
um tempo próprio… de presença e presente. Um tempo infantil. Um
presente no tempo. Um tempo de pura presença.
O que está acontecendo conosco agora neste delírio de afir-
mar a infância e tirá-la do seu reino das perguntas, inquietas, curiosas?
O que está acontecendo com nossa escrita infantil? Felizmente, ainda
estamos a tempo de voltar a infância: ou melhor, sempre há um tempo
sem idades para podermos habitar a infância. Basta lembrar e atentar
para a infância do mundo. Ensaiamos esse tempo para terminar infan-
tilmente de escrever: o que faz afinal a infantilidade de uma escrita?
Sua forma? Sua vida? Seu tempo? Onde está presente a infantilidade da
escrita? Em que tempo vive uma escrita infantil? Sob que forma pode
se escrever uma vida infantilmente educadora como a de Paulo Freire?
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2. A Pedagogia do oprimido e o amor
Paulo Freire afirmou em uma das suas últimas entrevistas: “Eu gostaria
de ser lembrado como um sujeito que amou profundamente o mundo
e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas, a vida…”12. O depoimen-
to é importante porque marca um desejo profundo, último, sobre o
próprio legado: “Eu gostaria de ser lembrado” é uma forma de dizer
“assim quero que me recordem”, que me guardem no coração…
Esse desejo de lembrança se expressa na forma de alguém que amou
profundamente o mundo e os seres que o habitam. O elenco é expres-
samente detalhado e inclui além dos seres humanos, os reinos animal
e vegetal e parece, em seu caráter minucioso e pormenorizado, querer
dar conta das mais diferentes formas de vida, até culminar com a vida
mesma como membro do reino dos seres amados: a vida sem mais,
uma vida, qualquer vida, todas as vidas. Como se Paulo Freire afirmasse
que gostaria de ser recordado como alguém que amou toda e qualquer
expressão da vida neste mundo.
Esse desejo de uma lembrança puxou em mim uma outra
lembrança de um outro desejo: foi algo que me disse Lutgardes Costa
12
O depoimento está disponível em vários canais em Youtube. O Instituto Paulo
Freire, por exemplo, fez com ele um clip para o dia do meio ambiente: <https://www.
youtube.com/watch?v=J170pf5e5No&ab_channel=Inst.PauloFreire>. Acesso em: 15
jun. 2021.
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2. A Pedagogia do Oprimido e o amor
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Walter Omar Kohan
linha que percorre a Pedagogia do oprimido desde o seu início até o fim,
para lembrarmo-nos, talvez, que o amor é também um conceito prin-
cipal para ler e apreciar esse livro. Como (quase) todas as perguntas,
ela não tem uma resposta única e esperamos que o caminho que aqui
oferecemos não obstrua outros possíveis caminhos que o leitor possa
seguir por si próprio. De nossa parte, desdobraremos um ensaio para
traçar, em dois momentos, caminhos no pensar que essa pergunta nos
sugere. Num primeiro momento, relevaremos as principais passagens
em que aparece o amor na Pedagogia do oprimido: será uma espécie
de relevo descritivo dessas aparições; num segundo momento, inspi-
rados no Elogio ao Amor, do filósofo marroquino Alain Badiou, leremos
essas aparições do amor no livro que nos ocupa tentando perceber um
sentido significativo da maneira em que Paulo Freire concebe o amor.
Finalmente, tiraremos algumas considerações que recuperam ambos
os momentos, a partir de uma última e extraordinária aparição do amor
no final da Pedagogia do oprimido.
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2. A Pedagogia do Oprimido e o amor
quantidade de vezes que um termo aparece pode ser, por si só, indica-
tivo de sua importância numa obra.
É preciso encontrar argumentos mais qualitativos e de maior
peso em nosso caminho. Vamos à presença do amor no conteúdo do
livro. Já no primeiro capítulo, o amor aparece como uma força que
acompanha a rebelião dos oprimidos que, paradoxalmente, poden-
do ser tão violenta quanto a violência da opressão que a provoca,
pode também inaugurar o amor, na medida em que, se liberando
da opressão, a classe oprimida libera também a classe opressora da
falta de humanidade, que está implícita num mundo opressor. Assim,
o amor é uma arma das oprimidas e dos oprimidos, que paradoxal-
mente alcança e afeta também as pessoas opressoras (Freire, 1970,
p. 46). Assim, o amor parece dotado de uma força extraordinária, a
maior delas sendo a das contradições da sociedade opressora que ele
consegue superar.
Na verdade, não é que não exista amor entre a classe opres-
sora; ele existe, mas encontra-se dentro de um mundo necrófilo, que
ama a morte e não a vida (Freire, 1970, p. 74); constitui, portanto, um
“amor às avessas” (Freire, 1970, p. 50), um contra amor, um anti-amor.
Haveria duas formas de expressão do amor: o amor à vida e, sobre-
tudo, a uma vida justa, digna e humana, que é sentido pelas classes
oprimidas; e o amor à morte, que ama controlar, mecanizar e tomar
posse da vida; dessa forma, oprime a vida e, portanto, mostra que ama
verdadeiramente a morte.
A necrofilia da classe opressora nos lembra a necropolítica,
termo trabalhado pelo pensador camaronês Achille Mbembe, para dar
conta de um poder que se exerce para determinar quem pode viver e
quem deve morrer. Mbembe descreve vários dispositivos do mundo
contemporâneo instaurados para provocar o aniquilamento de grupos
sociais específicos (Mbembe, 2018). A necropolítica afirma-se sobre a
necrofilia e a torna uma política do Estado de extermínio. Na necro-
política, o próprio Estado ama a morte: o que vivemos neste triste
presente em que o atual Governo Federal tem aproveitado a pandemia
do COVID-19 como uma oportunidade de aprofundar suas políticas da
morte; seu discurso trata de minimizar a importância e a letalidade do
vírus que mata; descuida ou diretamente ataca as políticas de cuidado
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2. A Pedagogia do Oprimido e o amor
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A citação do Che Guevara está numa nota de rodapé sem número na p. 94 da
Pedagogia do oprimido e é tomada da edição em castelhano das obras do Che: Ernesto
Guevara: Obra Revolucionária, México, Ediciones Era-S.A., 1967, pp. 637-38.
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Vamos dar atenção a essa frase com a qual Paulo Freire termina
o livro cuja reedição estamos comemorando com o presente texto.14
Já se passaram mais de 50 anos dessa escrita. Situemo-nos naquele
tempo. Paulo Freire já terminou quase de escrever a Pedagogia do
oprimido. É o fim de sua obra magna, que contém, antecipadamente,
o sentido principal de sua vida e sua obra. Ele está no Chile, exilado,
sentindo mais do que nunca a necessidade de uma revolução educa-
cional. Confia que o seu livro, escrito com enorme entusiasmo, terá
um papel importante nesse movimento. O que a frase final do livro
revela? Que, mesmo confiando no seu pensamento escrito no livro,
ele está mais confiante ainda na necessidade e no poder do amor.
Pois mesmo que seu livro não consiga fazer nada para transformar o
mundo, ele ainda continua confiando na criação de um mundo em que
seja menos difícil amar.
Paulo Freire tem experimentado, com seu próprio corpo, as
mazelas do mundo e sabe muito bem que esta é a pior maldade do
mundo contemporâneo: tornar, quase impossível, amar de verda-
de, amar como compromisso coletivo com a diferença, e não apenas
como forma de gozo ou consumo individual. Sabe também que talvez
nunca seja possível – ou mesmo desejável – habitar um mundo onde
seja fácil amar; mas descansa sua mais firme convicção na confian-
ça em um mundo em que amar seja menos difícil do que está sendo
em nossas sociedades do capital. O final do livro é um canto ao amor
tal como o definimos, com Alain Badiou, na seção anterior: ele é
sempre a confiança na possibilidade de que novos outros mundos
possam começar.
14
Recentemente, tive oportunidade de conferir as edições em inglês de muitos livros
de Paulo Freire quando revisei a tradução e as referências do meu livro Paulo Freire mais
do que nunca. Uma biografia filosófica, que acaba de ser publicado em inglês pela edi-
tora Bloomsbury, sob o título de Paulo Freire. A philosophical biography. Dentre muitas
outras coisas interessantes, percebi que, na edição em inglês da Pedagogia do opri-
mido, essa frase, a última da edição original em português, está suprimida. Contudo, ela
está incluída, embora parcialmente modificada, no prefácio que Paulo Freire escreve
para essa edição em inglês. A tradução da frase publicada em inglês é “ligeiramente”
diferente da original, no início e no final da frase. Comecemos pela diferença no final:
na edição inglesa diz “a world in which it will be easier to love”, cuja tradução mais
literal seria “um mundo em que seria mais fácil amar”. “Mais fácil” não é o mesmo que
“menos difícil”. E também o início da frase está alterado, pois o “se nada ficar dessas
páginas” não aparece na versão publicada em inglês.
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3. Quantos anos tem Paulo Freire?
Acaso enlouqueceu ou estava muito afetado pela gripe para dizer que
tinha todas essas idades ao mesmo tempo?
Certamente, não. Paulo Freire quer dizer que numa mesma
idade cronológica podem conviver muitas possibilidades de existência
humana. A infância mais uma vez ganha destaque. Como um menino,
sentindo-se no tempo de menino, ele adora se perder no tempo, a onda
do mar e ver a neve cair, brincar de boneco de neve; a sua experiência
de tempo extrapola a idade que ele tem. Ele vive muitos tempos numa
idade só. Assim, consegue ter algumas experiências de um tempo
infantil em que nos perdemos no tempo de brincar, de se perder no
tempo, esquecer o tempo do relógio, durante uma experiência lúdica
ou estética. No campo da militância política, alguns vêem isso como um
perigo, uma perda, um sem sentido. Para outros, como Paulo Freire, é
sinônimo de uma política meninamente revolucionária, portanto curio-
sa, inquieta, perguntadora.
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desarmadilhar o mundo para que ele seja mais nosso e mais solidário.”
(Couto, 2009, p. 95). Desarmadilhar: verbo que surge de uma curiosi-
dade, uma inquietação, uma infância. Na palestra, o poeta propõe uma
série de armadilhas a serem quebradas ou desarmadas: a armadilha da
língua, a armadilha de nosso próprio olhar, a armadilha da realidade, a
armadilha da identidade e a da hegemonia da escrita. Assim, ensinar a
ler é ensinar a transpor o imediato, a escolher entre sentidos visíveis e
invisíveis, a pensar, no sentido de cuidar e curar, de uma terapia que nos
ajuda a sair de nós mesmos, da identidade que temos construído e que
nos ata a uma imagem única de nós próprios. O poeta não a mencio-
na explicitamente, mas poderíamos incluir o desejo de livrarmo-nos da
armadilha do tempo das idades.
Precisamente, uma das armadilhas que precisamos quebrar
diz respeito ao tempo linear, quantitativo, produtivo, que opera como
uma emboscada nas instituições educacionais; com efeito, elas estão
governadas pelos programas, diretrizes curriculares e planificações,
que se desdobram em semestres, anos, períodos, como bem marcam
os fluxogramas e cronogramas; elas contam um tempo sem presen-
te, pois é a numeração do movimento e sua ordenação em passado
e futuro, resultando no tempo das idades, aquele com que medimos
também a temporalidade de uma vida e a organizamos em etapas ou
fases: o que são 66 anos afinal? 66 movimentos de um ano… O que é
um ano? 365 movimentos de um dia… O que é um dia? 24 movimentos
de uma hora… O que é uma hora? 60 movimentos de um minuto… O
que é um minuto? Etc. etc. etc. Sob essa lógica, nossa experiência vital
está limitada a contar movimentos qualitativamente indiferenciados e
sem graça. Tempo numerado, quantificado, desqualificado. Com efei-
to, esse tempo, que os gregos chamavam de khrónos (Kohan, 2004), é
apenas movimento numerado… e nada mais. É um tempo sem quali-
dade porque justamente cada movimento precisa ser qualitativamente
indiferenciado para poder medir a quantidade dos movimentos, e não
sua qualidade. É um tempo muito útil, que organiza a vida e as insti-
tuições, que permite planejar e dosificar, mas que reduz a vida a uma
sequência sucessiva, consecutiva e irreversível.
Mia Couto fala, em “Quebrar Armadilhas”, de um outro tempo,
circular, próprio da rica cosmogonia rural africana. E conta um episó-
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Um diálogo sonhado entre Paulo Freire e Mia Couto
Assim,
tudo o que sou
já fui
na criança que sonhou ser tudo.
Mia Couto, 2011, p. 19
Primeiras palavras
Paulo Freire escreveu muitos livros que ele mesmo chamava de “fala-
dos”, livros que recolhem conversas vivas com interlocutores presen-
tes. Devo dizer que a voz do educador pernambucano parece-me
soar mais alta nesses livros falados que nos livros tradicionais, de
uma única voz e escritos em certo silêncio, talvez porque o próprio
Paulo Freire se inscreve numa cultura fortemente oral e a sua rela-
ção com a palavra falada tem uma força que não se compara à da
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4. O que vale ser criança se nos falta infância?
palavra escrita. Claro que é difícil manter essa força quando a fala é
transcrita, mas, em contraposição, permanece a possibilidade de uma
certa energia gerativa que leitoras e leitores podem sentir na forma
de uma interlocução possível se colocando como partes igualmente
“falantes” e à escuta de uma conversa ainda em aberto que vai muito
além das páginas lidas. Essas conversas parecem ter uma potência
gerativa singular.
É o caso de Por uma pedagogia da pergunta (conversa com
Antonio Faúndez: Freire; Faúndez, 2017) e O caminho se faz caminhan-
do (conversa com Myles Horton: Freire; Horton, 2018), dois dos meus
livros favoritos de Paulo Freire; favoritos entre os favoritos, os livros
falados. Porque, claro, há diferenças entre os livros falados. Em alguns,
as vozes não soam com a mesma força e parecem mais monólogos
com a forma de conversa. Mas, naqueles, a conversa vibra. Trata-se
de interlocutores diferentes, de origens distintas, que desenvolvem
trabalhos singulares e que têm em comum afirmarem conversas de
igual para igual com Paulo Freire, com histórias e ideias para contar
que não apenas complementam e querem ouvir o pensamento freire-
ano, mas que também o fazem vibrar mais fortemente, o problema-
tizam, lhe exigem se repensar uma e outra vez: ambos os interlocu-
tores têm igualmente coisas a dizer e abrem as conversas para linhas
diversas a partir das quais as leitoras e os leitores podemos pensar
em distintas direções à medida que caminhamos com a leitura. São
conversas que lamentamos quando o livro termina, por saboreá-las
tanto que ficamos com esse gostinho de querer mais, de sentir um
certo desgosto quando chega um final que parece sempre prematuro,
antes do tempo.
Quando lemos esses exemplos concretos de conversas que
efetivamente tiveram lugar, ficamos também fantasiando outras
conversas fictícias, que não tiveram lugar na realidade, mas que
imaginamos de forma tal que, em certo modo, acontecem e se
desdobram em nossa imaginação. Podem ser personagens de outros
tempos e lugares, mais próximas, mais distantes. A questão é fazer
vibrar a vida, o pensamento. No caso de Paulo Freire, é o que senti-
mos quando encontramos intercessores fecundos, profícuos, que
ampliam nosso modo de pensar algumas palavras às quais o mestre
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Walter Omar Kohan
das utopias deu singular atenção. Como ele já não está entre nós, o
que nos resta é mediar esses encontros e, como nesse caso, escre-
vê-los de maneiras distintas, escutando as vozes que ressoam em
nossa imaginação.
É isso então que faremos neste texto, que escreveremos escu-
tando uma conversação imaginária e imaginada entre Paulo Freire e
Mia Couto, o escritor moçambicano, em torno da palavra “infância”.
Sentimos que dessa conversa a própria infância sai enriquecida, forta-
lecida, enaltecida. E também as nossas escritas e as nossas vidas que
andam sempre em busca de motivos para se reinventar. O que faz
de um texto escrito uma conversação? Não é uma pergunta fácil de
responder. Uma maneira de buscar respostas seria pela forma externa
do texto. Outra, a que aqui exploraremos, é na própria composição das
ideias tecidas e apresentadas. De modo que o presente texto não será
formalmente uma conversação, mas uma conversação singular o atra-
vessará e, esperamos, convidará leitores e leitoras para outras conver-
sações, outros pensamentos e outras vidas.
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4. O que vale ser criança se nos falta infância?
15
Dentre os textos que lemos para escrever o presente artigo estão: Marques (2012);
Hillesheim (2013). Juliano (2018); Pereira; Magalhães; Almeida (2019); Skliar; Brailovsky
(2021).
16 Betina Hillesheim faz uma bela leitura em termos educacionais deste conto a partir
de inspirações fortemente deleuzianas. Seu último parágrafo, conclusivo, é muito ins-
pirador: “Uma educação que faça do devir uma afirmação, não buscando explicar ou
interpretar, mas tão só experimentar. Uma educação que roube a infância, tal como
o Avô que, afinal, não havia feito nenhuma troca com Deus (mesmo porque não se
tratava de um objeto passível de troca) e, trapaceando junto com o menino, desobe-
dece ao tempo cronológico e esquiva-se do corpo e do juízo. Uma educação do riso, da
dança, dos folguedos. Enquanto isso, o menino distrai-se nos brincados.” (Hillesheim,
2013, p. 620).
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Uma certa tarde, o avô visitou a casa dos seus filhos, sentou-se
na sala e ordenou que o seu neto saísse. Queria falar, a sós,
com os pais da criança. E o velho deu entendimento: crianci-
ce é como amor, não se desempenha sozinha. Faltava aos
pais serem filhos, juntarem-se miúdos com o miúdo. Faltava
aceitarem despir a idade, desobedecerem ao tempo, esquivar-
-se do corpo e do juízo. Esse é o milagre que um filho oferece
– nascemos em outras vidas. E mais nada falou. (Couto, 2013,
p. 131).
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4. O que vale ser criança se nos falta infância?
mundo: nascer novamente com a nova vida que nascemos. Para aceitar o
convite é preciso um certo desprendimento e também desaprendimen-
to, desprender-se das idades, desaprender aprendizados que nos pren-
dem a uma vida que não queremos já para nós e o mundo, desobedecer
ao tempo instituído pelo sistema social que habitamos para poder viver,
com os recém-chegados, uma outra infância. Como diz um outro poeta,
Manoel de Barros: “Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.”
(Barros, 2000, p. 9). E vale notar um detalhe importante: a infância sem
idade é uma experiência coletiva, conjuntiva, conectiva.
No decorrer do conto, o avô, antes de morrer, pede aos seus
filhos, o pai e a mãe do menino, para que digam ao neto que ele mentiu,
que nunca fez pedido nenhum a nenhum Deus. E o conto termina afir-
mando que o menino não precisou de tal mensagem, que “sentiu rever-
ter-se o caudal do tempo” (Couto, 2013, p. 132) e que os seus olhos “se
intemporaram em duas pedrinhas”.
Assim, o conto nos ensina que a infância é, evidentemente, uma
forma de reverter-se a passagem do tempo, ou de intemporar-se. É o
contrário do que muitos nos dizem: longe de se enquadrar dentro dos
limites de uma idade, a infância exige, antes, se livrar do tempo indi-
vidual das idades e encontrar cúmplices de todas as idades (e os avôs
são ótimos para isso!) para habitar o tempo da brincadeira coletiva, do
amor, da arte e, quem sabe?, o tempo da educação.
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4. O que vale ser criança se nos falta infância?
O que faz mover a escrita, diz Mia Couto, é uma relação com a
língua própria da infância. Uma(s) língua(s) antes da língua, as línguas
da infância. Nessa(s) língua(s), afirmamos uma vida em que todas as
vidas parecem possíveis, em que todos os mundos têm seu lugar. Esse
mundo infantil é o que faz mover a escrita no sentido de que toda a
escrita aspira regressar a essa condição em que todas as línguas eram
nossas, antes que uma língua se consolide como a única língua possível,
porque todas as línguas significam todos os sonhos, todos os mundos,
todas as utopias. Eis também a dimensão política da tarefa de escre-
ver (e de pensar, perguntar, criar). O que a mulher queria, diz o poeta,
é anular o tempo e fazer adormecer a morte; ou, poderíamos acres-
centar, apressar a morte para poder voltar ao estado antes do nascer.
Como queria o menino do rio das quatro luzes, como queria Paulo
Freire quando foi forçado sair do útero de sua mãe. Como qualquer
escritor, educador, artista sensível à infância quer.
Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
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Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores noturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba do tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.
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Só tenho palavras
para o indizível.
Só tenho voz
para emudecer.
Só trago nome
para o que nunca nasceu.
Uma única certeza
demora em mim:
o que em nós já foi menino
não envelhecerá nunca.
Mia Couto, 2011, p. 95
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5. Diego e Paulo, dois meninos danados,
amorosos, de esquerda…
ou de como convidar um amiguinho inesperado
para comemorar uma vida infantilmente
amorosa e revolucionária17
17
Agradeço a Anelice Ribetto e Magda Costa Carvalho por sugestões e correções a
uma versão primeira deste texto.
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E peço desculpas às meninas leitoras porque parece que só encontro meninos
amorosos e revolucionários. É um defeito de formação já percebido e que estou me
esforçando para superar.
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Thomas Giulliano é autor do livro Desconstruindo Paulo Freire, promovido pelo site
www.historiaexpressa.com.br). No Boletim da Liberdade ele oferece entrevista a Diego
Casagrande sobre Paulo Freire; em anos recentes, Guilliano foi uma das vozes falidas
que pediam o cancelamento do título de Patrono da Educação Brasileira outorgado a
Paulo Freire por Lei do Congresso em 2012. Disponível em: <boletimdaliberdade.com.
br>. Acesso em: 22 set. 2017.
21
O depoimento está na audiência pública na Câmara dos Deputados do PL 7180/14
- Escola Sem Partido em 21/03/2017: <https://www.youtube.com/watch?v=FAS6T78rB-
v8&abchannel=C%C3%A2maradosDeputados>. Acesso em: 02 abr. 2021.
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22
Certamente, Diego Maradona era adito à cocaína. Isso não faz dele um vilão, mas
antes uma vítima de um problema social muito grave. Maradona nunca negou sua
adição e nunca drogou-se para tirar alguma vantagem esportiva; ao contrário, em re-
petidas vezes ele se lamenta, alerta aos jovens sobre os perigos do vício e inclusive se
pergunta em diálogo com o cineasta sérvio Emir Kusturika “você se imagina o jogador
que eu tivesse sido senão tivesse consumido cocaína?” (Documentário “Maradona by
Kusturika”, 2008).
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Diego Maradona visitou várias vezes Fidel Castro em Cuba, onde inclusive fez vá-
rios tratamentos de saúde. Tinha grande admiração pessoal e política pelo líder cubano
a quem se referia como um segundo pai. O destino acabou unindo-os no dia da morte:
25 de novembro (Fidel Castro, de 2016; Diego Maradona, de 2020).
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5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda...
Imagem 1: Diego Maradona Imagem 2: Junto a Evo Morales Imagem 3: Quando arreceavam os pe-
apoiando a Candidatura de Lula na Marcha contra o Neoliberalis- didos de impeachment contra Dilma
em 2018. Na legenda do twitter mo em 2005. em 2016, no Facebook de Diego lia-se:
do Diego lia-se: “Diego soldado “Quero enviar o meu apoio à Sra. Pre-
de Dilma e Lula”. sidente Dilma Rousseff, meu coração
está contigo”.
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5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda...
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Nas notas à Pedagogia da Esperança, Anita Freire afirma a respeito do termo “suleá-
-los” que “Paulo Freire usou esse termo que na realidade não consta dos dicionários da
língua portuguesa, chamando a atenção dos leitores(as) para a conotação ideológica
dos termos nortear, norteá-la, nortear-se, orientação, orientar-se e outras derivações.”
(Freire, 2014, p. 294, n. 15).
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Essas e outras fotos sobre essa amorosa cena encontram-se em: <https://www.
parati.com.ar/la-secuencia-y-la-historia-detras-de-la-foto-mas-tierna-que-dalma-mara-
dona-eligio-para-despedir-a-su-papa/>.
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26
A carta completa foi publicada na conta de Instagram de Dalma, dalmaradona, em
27 de novembro de 2020.
27
O vídeo que filma o encontra está disponível em algumas versões no YouTube. Por
exemplo: <https://www.youtube.com/watch?v=t6fA_7zGqbc&ab_channel=RTenEs-
pa%C3%B1ol>.
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28
“De los apodos, el que más me gustó es Pelusa, porque me devuelve a la infancia.
Me acuerdo de Fiorito, cuando jugaba por el sandwich y la Coca. Aquello era más puro.”.
Ver: <https://www.pagina12.com.ar/301632-maradona-60-anos-60-historias-60-frases>.
Acesso em: 02 abr. 2021.
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o que não se pode esperar e é por isso que eles mesmos inventam,
são personagens de sua própria história e de uma história muito maior,
vivem sua história como uma história de muita gente; muita gente vive
na vida deles… são artistas do povo, de uma vida popular… são artis-
tas que brigam, lutam, trabalham obstinadamente em sua obsessão
de sonhos de mundos melhores, mais bonitos, menos injustos… eles
sonham e criam a partir desses sonhos: jogar na Copa do Mundo, ser
campeão, acabar com o analfabetismo… esses são, para alguém de
sua condição, sonhos impensáveis, impossíveis, e essa impossibilidade
é uma força que alimenta sua fome inventiva. E também sua potência
amorosa e revolucionária.
Outro aspecto que valeria a pena ser desdobrado em ambos é
o desejo de errância que um e outro vão cultivando e afirmando nas
suas vidas. Eles não ficam parados! Não há maneira de detê-los. São
errantes que vagam pelo mundo, sem se estabelecerem em nenhum
lugar… eles voltam para casa e precisam continuar viajando porque,
como dissemos no início, o lugar deles é o mundo. Incansáveis, na
viagem errante, levam consigo sua gente, sua terra, sua comida,
seu sotaque, sua cultura. É verdade, eles nem sempre sabem para
onde estão indo. Às vezes, porque precisam sair de alguns lugares
mais do que desejam chegar em outros. É o que acontece com Paulo
por um curto período em La Paz, na Bolívia, e depois em Santiago
do Chile, ao ter que sair do Brasil para o exílio. Ou o que acontece
com Diego ao chegar em Napoli para, na verdade, fugir de Barcelona.
Eles sabem que em alguns momentos precisam sair de onde estão,
porque, assim como geram amor no povo, geram ódio nos inimigos
do povo… não são indiferentes, assim como nada lhes é indiferente:
com eles ou contra eles; “fora daqui!”; “eles corrompem os jovens,
são um mau exemplo”; “comunistas!”, dizem seus inimigos, porque
ambos trazem ideias estranhas para a sociedade ocidental, patriar-
cal, classista, racista, machista e homofóbica que seus inimigos ainda
querem defender.
Lembro agora de uma outra coincidência. “Diego era um
homem inacabado”, escrevia uma psicanalista argentina, amado por
ter vencido a adversidade da sua origem social, mas também por
nunca ter pretendido ser o que não foi ou nunca ter negado o que
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5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda...
foi29. Poderíamos dizer que também Paulo não pretendeu ser o que
não foi e nos ajudou a pensar essa condição de Diego de inacabamen-
to como uma condição de qualquer ser humano. Paulo chamava isso
de vocação – epistemológica e ontológica – por ser mais, por conhe-
cer mais. Diego não teve uma educação institucionalizada extraordi-
nária, mas teve essa vocação cultivada na educação profunda de uma
vida familiar amorosa, algo também coincidente com o menino Paulo,
como narra em suas diversas autobiografias. Como Paulo, Diego
viveu essa condição de inacabado com uma intensidade singular. Eles
sempre quiseram mais, nada os satisfazia. Lutavam. Conseguiam.
Voltavam a lutar. Não conseguiam. Voltavam. Conseguiam. Caíam.
Levantavam-se novamente. Mais uma vez, sempre queriam mais. E
nunca se davam por vencidos.
Imagem 6: Maradona em Napoli, 1984, o dia que Imagem 7: Círculo de Cultura, Angicos, 1963.
Diego jogou num campo de várzea para ajudar uma In: Brandão, Carlos Rodrigues. Paulo Freire,
criança doente. Educar para transformar: fotobiografia. São
30
Paulo: Mercado Cultural, 2005, p. 55.
29
Trata-se de Sonia Bleichmar, morta em 2007. Quem se refere a esse testemunho de
forma brilhante é Sandra Russo (2020).
30
Disponível em: <https://www.futbolsapiens.com/columnas-fs/maradona-entrenar-
-en-el-barro-entrenar-en-alegria/>.
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6. Palavras infantis: uma homenagem a Osmar Fávero31
Primeiras palavras
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Intervenção em Mesa para o Evento “Pensar Paulo Freire em tempos de Angicos
e no “De pé no chão também se aprende a ler”, em Natal - Uma homenagem ao pro-
fessor Osmar Fávero. Pensar Paulo Freire hoje” (FFP/UERJ, 19/5/2021).
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porque sua vida corria perigo. Foi um longo périplo, uma extensa anda-
rilhagem, viagem errante, quase durante dezesseis anos, andando por
Bolívia, Chile, Estados Unidos, Suíça… na verdade, essas foram suas
sedes, porque suas viagens educadoras só tinham como limite os limi-
tes do mundo. Paulo Freire firmou-se internacionalmente como um
nome quase que inevitável quando se tratava de alfabetizar o povo,
em particular nas repúblicas independizadas de Portugal na África e
também em outros contextos quando as condições políticas perce-
biam essa alfabetização como uma necessidade, como na Nicarágua da
revolução sandinista.
Nesse sentido, talvez ainda não tenhamos refletido suficiente-
mente sobre esse carma, trauma, golpe a nossa história como povo,
que a vida de Paulo Freire representa simbolicamente: uma Ditadura
colocou na cadeia e obrigou o coordenador de um plano nacional de
alfabetização a se exilar. Pouco importam as excusas ideológicas, as
acusações de comunismo, marxismo e outras semelhantes. Esse fato, a
interrupção de um programa de alfabetização e a perseguição aos seus
idealizadores e coordenadores, nu e cru, despojado das suas máscaras,
mostra as caras de um regime político ditatorial inimigo da educação
do povo. O que importava era impedir a participação de certas cama-
das da população brasileira no sistema representativo de governo e,
mais amplamente, sua incorporação na sociedade brasileira em condi-
ções menos desfavoráveis. No Brasil, a ditadura e as forças que repre-
senta – que, lamentavelmente, continuam vivas e até conseguem se
fazer eleger para governar – são inimigas da educação e da participa-
ção política plena, igualitária, do povo.
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de terra batida; um pai e uma mãe que escutavam, com muita aten-
ção e paciência, as perguntas e as palavras do menino curioso por ler o
mundo. Não havia hora marcada para acabar com as perguntas. Nessa
pré-escola, o menino Paulo Freire sentia o tempo passar muito deva-
gar e também não tinha o que pode atrapalhar a experiência de tempo
infantil de um menino ou menina: um relógio que marque as horas, um
calendário, um programa, uma avaliação, uma normativa, um prazo
para aprender isto ou aquilo, porque o tempo da aprendizagem é o
tempo presente, durativo, antes do tempo linear que, na instituição
escolar, presencial ou remota, corre cada vez com mais pressa do futu-
ro para o passado; esse mesmo tempo que, paradoxalmente, dizem
que prepara para um futuro que ele próprio teima em antecipar tirando
o tempo do presente. Escuto seu apelo para manter viva a nossa meni-
nice como uma chamada a tentarmos lentificar o tempo, a cuidarmos
de não apressarmos os processos que precisam de um outro tempo, de
um tempo próprio que exige um presente que dure.
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Notas de uma aluna: <https://www.youtube.com/watch?v=BOW-4CBne-w>.
Acesso em: 23 maio de 2021.
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Vídeo “Metodologia Paulo Freire revoluciona povoado no sertão” do Repórter
Brasil, em: <https://www.youtube.com/watch?v=KGmcm651jO8>. Acesso em: 23 maio
2021.
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6. Palavras infantis: uma homenagem a Osmar Fávero
diz 48 horas), mas, em qualquer caso, interessa notar que ela apren-
de a ler e escrever com muita propriedade e antes do tempo estipula-
do, que já era bastante curto para tamanho objetivo. E depois ela nos
narra o triste final da escola e, mais uma vez, aí aparece a identificação
de Paulo Freire com a escola… Paulo Freire era, na percepção e nos
sentimentos das e dos alfabetizandos do curso de Angicos, uma esco-
la, porque, quando ele foi preso e foi exilado, “acabou-se a escola”. A
prisão e o exílio de Paulo Freire significaram o fim da escola, como se,
de certo modo, a própria escola tivesse sido primeiro presa e depois
exilada. Paulo Freire era mesmo uma escola, pelo menos isso pensa-
vam os que estudavam na escola de Paulo Freire. Diáfana percepção de
dona Francisca. Mas o que é uma escola?
A escola propicia um tempo que liberta do tempo produti-
vo para poder ler o mundo com outros e outras e sonhar com outros
mundos. Por isso, Paulo Freire era uma escola, porque sua presença em
Angicos trouxe a possibilidade de experimentar um tempo livre inusi-
tado até sua chegada. Talvez isso foi Angicos para os seus habitantes:
a possibilidade de parar o tempo para entenderem o mundo e pensar
em outros mundos.
É nesse sentido que a experiência de Angicos recria uma expe-
riência profundamente igualitária e democrática, no sentido que J.
Rancière (2016) outorga à palavra, porque aí governavam os incom-
petentes, os analfabetos liam e os ignorantes sabiam; os alunos ensi-
nam e os professores aprendem; uma experiência na qual qualquer um
pode aprender, porque quem ensina confia na sua igual capacidade e
não ensina o que o outro não sabe; mas, sim, transmite sua confiança
em que o outro pode aprender o que deseja e necessita aprender.
Eis uma força política da escola, que escapa completamente
aos seus idealizadores, defensores e também aos seus detratores; algo
que nenhuma ditadura conseguirá jamais apagar por mais que quei-
me todos os cadernos de classe e encarcere todos os seus habitantes;
uma força que atravessa aqueles que a habitam, que obtura qualquer
pretensão de totalização ou clausura, uma força que nos faz lembrar,
quando estamos na escola, que somos infantia.
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O círculo está gravado no Canal de YouTube do NEFI: <https://www.youtube.com/
watch?v=7vG4tTHb-SQ>. Acesso em 23 maio 2021.
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7. Por que Paulo Freire comprometeu-se com a educação de
jovens e adultos e não de crianças?
O título deste texto é uma pergunta: por que Paulo Freire comprome-
teu-se com a educação de jovens e adultos e não de crianças? Ela expres-
sa uma curiosidade sobre o Patrono da Educação Brasileira. Escrever
sobre essa pergunta tem a pretensão de provocar o pensamento antes
de propriamente respondê-la. Mesmo que tendemos a pensar que as
perguntas precisam ser respondidas da forma mais segura e definiti-
va possível, o sentido principal deste texto não é responder, de forma
acabada, à pergunta que nos colocamos. Dito de outra forma, vamos
tentar responder à pergunta do título, mas sem respondê-la comple-
tamente, de uma forma que acabe a inquietação que movimenta essa
pergunta. Ainda com outras palavras, vamos respondê-la de uma
maneira em que a pergunta, mesmo respondida, mereça ser mantida,
pensada, considerada. E que também dê lugar a outras perguntas.
Seremos ainda mais concretos e explícitos: nossa pergunta
começa por “Por que” e as perguntas que começam por “por que”
chamam respostas de tipos muito diversos: razões, causas, motivos,
fundamentos. Quando o “por que” está dirigido a alguém – e mais
ainda alguém que já não está vivo –, como neste caso, uma resposta
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7. Por que Paulo Freire comprometeu-se com a educação de jovens e adultos e não de
crianças?
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com uma relação tão extraordinária com a infância (Mafra; Silva, 2020)
não se ocupou da alfabetização infantil e, sim, da de jovens e adultos?
A curiosidade é algo muito próprio da infância, de modo que discorrer
sobre o valor que a curiosidade tem para Paulo Freire pode ser uma boa
maneira de começar a pensar em nossa pergunta inicial.
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7. Por que Paulo Freire comprometeu-se com a educação de jovens e adultos e não de
crianças?
arrancar do grupo o que lhe parecia ser perguntar”). É algo assim que
gostaríamos de propor para a nossa pergunta.
A questão da curiosidade é central na vida e na obra de Paulo
Freire, e essa centralidade se manifesta de diversas maneiras. Por um
lado, ele considera a curiosidade ontológica – o querer “ser mais”
– como constitutiva de uma vida humana (Freire, 2014), uma voca-
ção que toda prática educativa deveria respeitar, preservar e culti-
var. Por outro lado, manter viva a própria curiosidade – que, muitas
vezes, é identificada com a infância ou meninice – é uma condição
para os educadores e educadoras de todas as idades, ele mesmo em
primeiro lugar.
Não apenas na educação a curiosidade menina é vital. O livro
que estamos lendo, em que Paulo e Antonio narram suas errâncias
provocadas pelo exílio, termina com um sonoro elogio da revolução
sandinista. Paulo relembra a sua primeira visita a Manágua, em novem-
bro de 1979, quando, perante um grande grupo de militantes que
foram ao seu encontro no Ministério de Educação, compartilhava-lhes
a impressão que tinha da revolução sandinista: uma revolução menina!
E assim justifica sua impressão:
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7. Por que Paulo Freire comprometeu-se com a educação de jovens e adultos e não de
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Cartas de infância
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crianças?
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empresarial; a falta de respeito à gestão democrática em todos seus
níveis; a militarização da escolarização; a absoluta carência de sensi-
bilidade para os problemas endêmicos da educação e saúde neste
país. Pelo contrário, com a pandemia, a situação tornou-se muito
mais grave e preocupante devido às condições precárias do sistema
público de saúde e das escolas públicas fechadas durante meses e
agora reabertas sem políticas de cuidado e vacinação apropriadas, e
sem que a população mais pobre tenha mínimas condições de conec-
tividade e acesso.
Neste contexto, Paulo Freire ocupa uma posição curiosa,
erigido em inimigo por uma administração que tem colocado até
agora só economistas como ministros da educação. Já durante sua
vida, Paulo Freire havia respondido aos discursos conservadores
que se opunham à reconhecer a dimensão política da educação e
hostilizavam qualquer pretensão de transformação social através da
educação. Desde 2016, com a deterioração da situação política no
Brasil, esta posição em relação ao seu trabalho – que sempre este-
ve presente – tornou-se muito mais incisiva; no golpe e nas mani-
festações antidemocráticas contra o governo de Dilma, aparece-
ram bandeiras odiosas contra o professor pernambucano, seguidas
de vozes nas redes sociais que culpavam Paulo Freire por todos os
problemas da educação brasileira e o tornavam um símbolo não mais
do divino, mas do diabólico.
Assim, o odiado Paulo Freire passou a ser parte do programa
governamental de J. Bolsonaro pela negativa: “expurgar a ideologia
de Paulo Freire da educação brasileira”, programa que acabou sendo
eleito em 2018. Paulo Freire continua sendo considerado um inimigo
explícito dos funcionários do regime. Algumas perguntas restam em
nós: como é possível que esse programa tenha sido o mais votado até
mesmo pelo povo oprimido? Para além das paixões tristes e alegres
despertadas pelo educador das utopias, podemos superar o discurso
do ódio e considerar qual seria o valor de sua vida e de seu trabalho
para pensar em nosso devastado presente educacional? Em que medi-
da, neste ano de comemoração do centenário de Paulo Freire, sua obra
e sua vida podem nos ajudar a pensar problemas ou questões relevan-
tes de nosso presente?
Paulo Freire é mais um exemplo em que coincidem tantas
semelhanças entre o governo atual e a ditadura de 1964: ambos
pretendem expulsar Paulo Freire, o idealizador de um Plano Nacional
de Alfabetização, da realidade educacional brasileira. Um educador
popular é considerado inimigo. Ele já não está vivo entre nós; então a
expurgação ideológica ocupa o lugar da prisão e do exílio. Mas a rela-
ção é a mesma: ditaduras não gostam de educadores do povo nem de
um povo letrado.
É precisamente a uma destas questões – relativa ao letramen-
to do povo – que vou me referir neste pequeno ensaio: é preciso um
método para alfabetizar e, de um modo mais amplo, para educar? Em
outras palavras, é necessário, preciso ou conveniente que um educa-
dor ou educadora adote um método específico, predeterminado, para
realizar a sua tarefa? A figura de Paulo Freire pode ser interessante
para pensar essa questão por vários motivos. Como é sabido, Paulo
Freire criou um método de alfabetização, conhecido como “o méto-
do Paulo Freire”. Ele tem gerado muitas práticas e estudos. Há muita
coisa escrita sobre esse método. Ele aparece aludido frequentemente
nos ataques e nas defesas do educador de oprimidos. Contudo, a tese
que defenderemos neste texto é a de que, mesmo que por razões
práticas e contextuais ele tenha proposto um método, sua forma
de se relacionar com esse e outros métodos ajuda a problematizar
a ideia de método e sinaliza que cada educador deveria procurar e
encontrar seu próprio método, seu próprio caminho, antes de aplicar
o método criado por outro, até mesmo o método Paulo Freire. Há
implicações políticas na exigência de que docentes adotem um certo
método. Essa exigência atravessa propostas autoproclamadas demo-
cráticas ou autoritárias e são essas implicações que, esperamos, este
texto ajude a repensar.
Dessa forma, se este texto tem algum valor poderia ser o de
nos ajudar a pensar sobre os desdobramentos políticos que se seguem
de algum caminho ou caminhos pedagógicos, e também os efeitos polí-
ticos derivados da relação que mantemos com os caminhos que segui-
mos quando educamos. Assim, se entendemos método no sentido
amplo do caminho, a questão que Paulo Freire nos ajuda a pensar não
é tanto “método sim ou método não” – já que sempre temos que cami-
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nhar por algum caminho –, mas como nos relacionamos com o método/
caminho, as formas de caminhar na educação e as implicações políticas
que essa determinação traz para o exercício docente.
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te? Porque mostra que, para Paulo Freire, se era necessário antecipar
um determinado caminho ou forma de saber, ele não era necessário
por razões pedagógicas, para ensinar, mas por razões epistemológicas,
já que era uma forma de produzir conhecimento: o método era mais
epistemológico do que pedagógico.
Vamos deter-nos um pouco mais nessas duas coisas que Paulo
Freire afirmou ter quando era jovem: curiosidade e compromisso polí-
tico. E antes de entrarmos nelas, notaremos um detalhe: “não importa
o tempo”. Paulo Freire parece querer nos alertar para o fato de que
esta questão, situada em sua juventude, vai além dos tempos; que, na
verdade, ele a levanta em relação à sua juventude porque está sendo
questionado sobre aquele tempo, o tempo de suas campanhas de alfa-
betização; mas, na realidade, é uma questão que está relacionada a
qualquer tempo no campo da alfabetização, e não apenas ao tempo de
suas campanhas de alfabetização.
Vejamos, então, esses dois componentes do “jovem” Freire:
curiosidade e compromisso político. A primeira é uma condição para
que educadores e educadoras de todas as idades eduquem pessoas de
qualquer idade. Freire o diz da maneira mais diversa possível, em seus
textos, em suas Cartas a Cristina (Freire, 2015) e a Nathercia (Lacerda,
2016), em sua vida. Talvez no livro falado com Antonio Faundez, Por
uma pedagogia da pergunta, é onde ele o faz da forma mais explícita e
claramente: educar significa, sobretudo, alimentar a curiosidade que
está na base de cada pergunta, por isso é necessária uma pedagogia
da pergunta e não da resposta (Freire; Faundez, 2017). Sem curiosi-
dade não há conhecimento, não há educação, nada que valha a pena.
Também neste texto, a curiosidade precisa ser cuidada e nutrida e está
associada ao modo de vida de uma menina. É por isso que a infância
ou meninice, entendida como uma possibilidade de existência e não
como uma etapa da vida, é antes algo que educa e não algo a ser educa-
do, como temos argumentado amplamente em outros lugares (Kohan,
2019). Uma vida educadora cuida para manter viva essa curiosidade e
inquietação infantil, a fim de educar pessoas de todas as idades.
Por outro lado, o compromisso político com os “renegados,
negados, proibidos de ler a palavra, relendo o mundo” é outro compo-
nente insubstituível e não negociável dos educadores de todas as
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Como durante toda sua vida, mesmo mais de 20 anos após sua
morte, Paulo Freire continua a dividir águas. Estamos nos aproximan-
do do 100º aniversário de seu nascimento e as águas estão se tornan-
do cada vez mais agitadas e turbulentas. O mesmo sucede com seu
“método”: há aqueles que o deificam e aqueles que o defenestram.
Aqueles que o consideram milagroso (com o método Paulo Freire seria
logo resolvido o analfabetismo no Brasil) e aqueles que o acham errado
e perigoso e, portanto, que deveria ser expurgado da educação brasi-
leira. Neste breve ensaio, tentamos tomar outro caminho: olhar para
Paulo Freire como um companheiro a fim de problematizar a forma
como a questão do método pode ser pensada neste momento; não
tanto para entender seu método e defendê-lo ou condená-lo, mas para
pensar como ele pode nos inspirar a levantar algumas perguntas sobre
a forma como cada educador se relaciona ou poderia se relacionar com
sua própria forma de viver uma vida educadora. Os leitores e as leitoras
deste texto poderão dizer acerca da força ou da fraqueza deste exercí-
cio para pensar sua própria relação com o método.
Descobrimos uma inspiração: “cada educador é um método”.
O verbo “ser” pode ter o valor de uma identidade, uma qualidade, uma
possibilidade, uma dimensão, uma contingência, um risco, uma aposta,
uma ousadia. E tantas outras coisas. Sugerimos uma leve nuance: “Cada
educador ou educadora está um método”. O novo verbo indicaria uma
relação mais provisória, mutável (livre?) com o método. Em qualquer
caso, a frase também mostra uma inseparabilidade e uma condição:
não há método fora de quem o coloca em prática. Mais do que isso,
na educação popular, talvez praticar um método signifique todas essas
coisas juntas: (re)criá-lo, inventá-lo, vivê-lo, ser ele, estar ele. E mais
algumas que deixo as leitoras e os leitores imaginarem. Neste sentido,
devido à inseparabilidade entre o método e seu praticante, inventar
um método faz parte da invenção de si como educador ou educadora:
inventar um método faz parte da tarefa artística de educar, parte de
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9. “Tudo está em tudo” (J. Jacotot) e “leitura de mundo” (P. Freire):
premissas de dois meninos nada embrutecidos, errantes em uma
temporalidade igualitária35
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Intervenção no Colóquio Internacional “Educação, Política e Emancipação no pen-
samento de Jacques Rancière”, na Faculdade de Educação da USP em março de 2021.
Agradeço a Rita Márcia Furtado, Carlos Alberto da Silva, Silvia Mariela Moreno, Carlos
Roberto Da Silva Machado e Suzana Lopes De Albuquerque durante a própria live pelas
sugestões de título. Tomei várias delas e as combinei no título proposto.
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9. “Tudo está em tudo” (J. Jacotot) e “leitura de mundo” (P. Freire)
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Enquanto reviso o texto, menos de um mês após a minha intervenção, infelizmente
os prognósticos se cumpriram. Temos tido dias com mais de 3 mil mortes (ontem, 26 de
março de 2021, mais de 3.600, ou seja, o dobro do que já era trágico) e a situação, com o
descaso do poder público, só se tem agravado dia após dia. Quando reviso novamente
o texto, em setembro de 2021, as mortes passaram de 585 mil. Sem palavras.
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Deixo entre parêntese a questão, que logo vai aparecer no testemunho de Rancière,
a respeito da relação Rancière-Jacotot que, em alguns sentidos, se assemelha à relação
Sócrates-Platão: falamos de Jacotot, quase exclusivamente, a partir do testemunho de J.
Rancière, como falamos de Sócrates, quase exclusivamente, a partir do testemunho de
Platão (como de fato Rancière e tantos outros o fazem). Quero dizer que nos referimos
a Jacotot como uma das personagens conceituais de Rancière ou estamos pensando no
par Jacotot-Rancière mesmo que ora escrevamos só Rancière ou só Jacotot.
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10. Por que Paulo Freire mais do que nunca?
[…] sempre digo que a única maneira que alguém tem de apli-
car, no seu contexto, alguma das proposições que fiz é exata-
mente refazer-me, quer dizer, não seguir-me. Para seguir-me, o
fundamental é não seguir-me.
Paulo Freire. In: Freire; Faundez, 2017, p. 60
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10. Por que Paulo Freire mais do que nunca?
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Kohan, Walter. Paulo Freire mais do que nunca. Uma biografia filosófica. Belo
Horizonte: Vestígio, 2019.
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10. Por que Paulo Freire mais do que nunca?
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Desdobrei cada um desses princípios num capítulo do livro já citado na nota de
rodapé anterior (Kohan, 2019).
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10. Por que Paulo Freire mais do que nunca?
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gica é medido como uma linha, o tempo que não passa toma a forma
de uma figura circular na qual o fim encontra o início. Como os círculos
culturais do movimento cultural popular. Paulo Freire também mostrou
como a educação habita estes dois tempos, o tempo que passa, que
marca a infância como uma etapa da vida, e o que não passa, que abre
uma infância como força inspiradora e mobilizadora da vida.
Assim, chegamos ao final deste breve texto. Espero que o leitor
ou leitora o tenha lido num tempo presente. Se assim for, ele ou ela terá
sentido, em algum momento, que o tempo parou de passar; talvez se
tenha sentido presente na leitura e, quem sabe, recebeu esta escritura
e a leitura por ela provocada como um presente, sem pensar na sua
utilidade ou serviço. Nesse caso, como em um círculo, permitimo-nos
voltar uma vez mais ao início, à questão do título: “Por que Paulo Freire
mais do que nunca?”. Vale a pena notar, se ainda não o fizemos, que
se trata de uma pergunta infantil, nos dois sentidos da palavra: uma
pergunta que começa por “por que?”, como aquelas que nos fazemos
quando crianças de uma certa idade, mas também uma pergunta que
nos fazemos quando queremos deter o tempo e entender ou proble-
matizar por que algo está sendo da forma que está sendo.
Espero que a leitora ou leitor sintam que, de alguma forma,
este texto, que está chegando ao seu final, responde a esta pergunta
sem respondê-la. Que temos pensado e escrito sobre ela, mas também
que a deixamos em aberto para voltarmos a pensar sobre ela. Que os
pensamentos aqui afirmados não se esgotam nem acabam a pergunta.
Ao contrário, ela fica mais aberta agora do que inicialmente. As tentati-
vas de pensar a pergunta têm a fortalecido e, sobretudo, nossa potên-
cia infantil de perguntar. Em certo sentido, assim estaríamos fazendo
algo muito infantil: de um fim a um início, algo impossível num tempo
e, talvez, necessário em outro tempo.
Estes são tempos muito difíceis em que vivemos. Nesses
tempos, manter vivo o significado de algumas perguntas pode se
tornar necessário para a sobrevivência. E em qualquer tempo, passa-
do ou futuro, será sempre possível manter algumas perguntas vivas
no presente. Talvez também por isso Paulo Freire mais do que nunca:
por fazermos pensar que uma educação atenta e à escuta da infância
é algo necessário e impossível. Assim, pensar com Paulo Freire sobre
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Brandão, Carlos Rodrigues. Paulo Freire, educar para transformar:
fotobiografia / Carlos Rodrigues Brandão. São Paulo: Mercado
Cultural, 2005, p. 27.
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