Paulo Freire Um Menino de 100 Anos - Walter Kohan

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Paulo Freire:

um menino de 100 anos


Títulos da Coleção Ensaios

A escola dos sentimentos. 2018.


Giuseppe Ferraro

Manifesto por uma escola filosófica popular. 2018.


Maximiliano Lionel Durán; Walter Omar Kohan

(em quarentena)
Ensayos En Lectura. Inutilidad, soledad y conversación. 2020.
Carlos Skliar

filosofia para crianças: a (im)possibilidade de lhe chamar outra coisa.


2020.
Magda Costa Carvalho

Ensayos para una didáctica filosófica. 2020.


Alejandro Cerletti

entre apostas e heranças. contornos africanos e afro-brasileiros na


educação e no ensino de filosofia no brasil. 2020.
Wanderson Flor do Nascimento

Infancia y Género. Exclusiones que nos rondan. 2020.


Olga Grau Duhart

Interculturalidade, natureza e educação. Afetos filosóficos. 2020.


Juliana Merçon

A comunidade da infância. 2020.


David Kennedy

Paulo Freire: um menino de 100 anos. 2021.


Walter Omar Kohan

Crianças em filosofia. 2022.


Giuseppe Ferraro
Coleção Ensaios

(em quarentena)

Paulo Freire: um menino de 100 anos

Walter Omar Kohan

Prólogo: Magda Costa Carvalho e Simone Berle

NEFI Edições
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Reitor: Ricardo Lodi Ribeiro
Vice-Reitor: Mario Sergio Alves Carneiro
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Luís Antônio Campinho Pereira da Mota
Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPEd)
Coordenadora: Ana Chrystina Venancio Mignot
Vice-Coordenador: Guilherme Augusto Rezende Lemos
Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Coordenador: Walter Omar Kohan

Conselho Científico (NEFI/UERJ) Conselho Editorial (NEFI/UERJ)

Alejandro Ariel Cerletti, Univ Buenos Aires e Univ Nac Gral Sarmiento Alice Pessanha Souza de Oliveira
Alexandre Filordi de Carvalho, UNIFESP, Brasil Allan Rodrigues
Alexandre Simão de Freitas, UFPE, Brasil Arthur Henrique F. de Almeida
Barbara Weber, University of British Columbia Daniel Gaivota Contage
Beatriz Fabiana Olarieta, UERJ, Brasil Fabiana Martins
Carlos Bernardo Skliar, FLACSO, Argentina Felipe Froes Pereira Trindade
César Donizetti Leite, UNESP, Rio Claro, Brasil Marcelly Custodio de Souza
Claire Cassidy, University of Strathclyde, Escócia Ocimar Castro Maximo
Fabiana Fernandes Ribeiro Martins, (Colégio Pedro II, Brasil) Robson Roberto Lins
Gregorio Valera-Villegas, Univ. Experimental Simón Rodríguez, Venezuela Simone Berle
Gustavo Fischman, Arizona State University, Estados Unidos da América
Jason Wozniak, West Chester University, Estados Unidos da América Capa:
Juliana Merçon, Universidad Veracruzana, México Marcelly Custodio de Souza
Junot Cornelio Matos, UFPE, Brasil
Karin Murris, Cape Town University, África do Sul Diagramação:
Lara Sayão, Sedec RJ, Brasil Arthur Henrique F. de Almeida
Magda Costa Carvalho, Universidade dos Açores, Portugal Marcelly Custodio de Souza
Maria Reilta Dantas Cirino, UERN, Brasil Simone Berle
Marina Santi, Università degli Studi di Padova, Itália
Maristela Barenco Corrêa de Mello, UFF, Brasil Revisão técnica deste livro:
Maximiliano Durán, Universidad de Buenos Aires, Argentina Arthur Henrique F. de Almeida
Olga Grau, Universidad de Chile, Chile Magda Costa Carvalho
Óscar Pulido Cortés, Universidad Tecnológica y Pedagógica de Colombia
Paula Ramos de Oliveira, UNESP - Araraquara, Brasil
Pedro Pagni, UNESP - Marília, Brasil
Renato Noguera, UFRRJ, Brasil
Roberto Rondon, UFPB, Brasil
Rosana Fernandes, UFRGS, Brasil
Rosimeri de Oliveira Dias, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo, UNICAMP, Brasil
Virgínia Kastrup, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Walter Omar Kohan, UERJ, Brasil
Wanderson Flor do Nascimento, UnB, Brasil
“A comissão para avaliação cega dos trabalhos da Coleção Ensaios em 2021 foi integrada por Junot
Cornélio Matos e Magda Costa Carvalho.”
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Walter Omar Kohan

Paulo Freire: um menino de 100 anos. Walter Omar Kohan. - 1 ed. –


[2ª impressão]. Rio de Janeiro: NEFI, 2021 — (Coleção Ensaios: 10).

ISBN: 978-65-992767-1-2
1. Paulo Freire 2. Centenário Paulo Freire 3. Educação 4. Filosofia 5.
infância. I Título. II Série.
CDD 370.1

Índice para catálogo sistemático:


1. Educação: Filosofia 370.1
© 2022 Walter Kohan
© 2022 Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI/UERJ)
Site: http://filoeduc.org/nefiedicoes
Email: [email protected]
Apresentação da Coleção

O Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias da Universidade


do Estado do Rio de Janeiro (NEFI/UERJ), como qualquer grupo de
trabalho de uma universidade pública, dedica seus esforços ao ensino,
à pesquisa e à extensão da universidade fora dos seus muros. Seu foco
temático são as relações entre infância, educação e filosofia, tanto no
que diz respeito a experiências filosóficas com crianças e à formação
de professoras em escolas públicas quanto ao estudo e ao exercício
mais amplos possíveis da categoria de infância. Desde 2003 o NEFI tem
estabelecido parcerias de trabalho com grupos de distintos países e
acolhido as mais diversas pesquisas com muitas formas institucionais:
trabalhos de fim de curso, ou seja, monografias, dissertações e teses de
estudantes da UERJ, missões de estudo e de trabalho com outras insti-
tuições nacionais e internacionais; pesquisadores visitantes; estâncias
de pós-doutorado… o NEFI ensaia uma vida acadêmica outra, a errar
no duplo sentido de se equivocar e de vagar em busca dessa vida outra.
Assim, a Coleção “Ensaios” é um convite a ensaiar-se, na escri-
ta, na leitura, na vida. Os trabalhos que compõem esta coleção são
cheios de erros e de errância e chamam leitores e leitoras a ensaiar e
ensaiar-se na leitura e também na escrita, confiando no valor educativo
tanto do equivocar-se quanto do andar atento aos sinais do caminho.
Desde março de 2020 fomos surpreendidos por uma pandemia
que se alastra pelo Brasil ajudada pela indecência de um governo que
privilegia uma economia para poucos sobre a vida de todos. A pande-
mia colocou-nos também em evidência o sem sentido de uma forma
de vida que aceitávamos e vivíamos. Nas universidades públicas um
desafio nos foi colocado: precisamos inventar outras formas de vida
em comum, dentro e fora da universidade. O vírus tem nos entregado
a oportunidade de um tempo para pensar na vida que estamos vivendo
em nome da educação. Em que, pese a irresponsabilidade do gover-
no federal, alguns temos o privilégio de poder ficar em casa, como
suspendidos no tempo. Estávamos habituados a “não ter tempo”, a
ter tanto para fazer “em pouco tempo”, a ter que correr daqui para lá,
a “perder horas” no trânsito, a ocupar o tempo em exigências adminis-
trativas e burocráticas e, de repente, temos tempo para o esquecido,
como o cuidado quotidiano das filhas e dos mais velhos, e, sobretudo,
temos tempo para pensar a vida presente atravessada pela pandemia e
a vida que queremos viver quando a pandemia passar, se é que de fato
ela vai passar.
No NEFI pensamos que parte dessa tarefa diz respeito a ler,
escrever, estudar… com o cuidado que o momento merece e com a
atenção voltada para uma realidade devastadora como a imposta pelo
governo fascista que padecemos. E pensamos que a coleção Ensaios
poderia ser um espaço para fortalecer esse cuidado e essa aten-
ção, consolidando nossas bibliotecas. Por isso, convidamos amigas e
amigos a nos oferecer suas obras, suas tentativas, seus ensaios, entre
filosofia, educação e infância. É nesses tempos que a coleção “Ensaios”
encontra seu tempo “em quarentena”. Tempos de pensar em outras
formas de vida.

Walter Omar Kohan


Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Rio de Janeiro, abril de 2020
às meninas e meninos revolucionários de todas as idades; às e aos que
perderam sua vida com o vírus e a política da morte do (des)governo
Bolsonaro e às e aos sobreviventes, que não se cansam de sonhar.
à doçura e gentileza do povo nordestino de todas as idades.
Calvino, Ítalo. Posfácio. In: As aventuras de Pinóquio:
Aventuras de um boneco. Tradução de Ivo Barroso.
São Paulo: Cosac Naify, 2011. (Edição especial).
Agradecimentos

A Paulo Freire, por ter sido e vivido sempre Paulo Freire e assim
nos ajudar a esperançar com outros mundos;
A Elza Freire, por ter sido e vivido sempre Elza Freire, sem a qual
Paulo Freire não seria Paulo Freire;
A Madalena Freire, pelo seu sorriso inspirador;
A Fátima Freire, pela sua forma intensamente infantil de estar
comigo no (seu) mundo;
Ao Instituto Paulo Freire, em especial a Moacir Gadotti, Ângela
Antunes e Lutgardes Freire, pela sua forma amorosa de cuidar o “lega-
do” de Paulo Freire;
À Fabiana Martins pelo posfácio de Italo Calvino.
À universidade pública, que resiste às (des)políticas infames da
insensatez governante;
À FAPERJ e ao CNPq, permanentes apoiadores do meu trabalho;
Aos membros do Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias
(NEFI) da UERJ, que são fonte permanente de inspiração no pensamen-
to e na escrita;
À equipe de edições NEFI, em especial a Marcelly Custodio
e Simone Berle, duas forças da natureza que carregam com o
corpo este sonho;
Aos revisores deste texto, Arthur Henrique e Magda Costa
Carvalho, pelo seu trabalho cuidadoso e amoroso.
À Valeska, Giulietta e Milena que estão sempre presentes nas
minhas escritas, nos meus pensamentos e nas minhas vidas.
Sumário

Prólogo
Ouvidos de ouvir crianças: escutar das crianças tudo o que ainda não
sabemos..................................................................................................15
por Magda Costa Carvalho e Simone Berle

Nota Preliminar sobre os textos que compõem este livro.............21

Antes de mais nada: uma carta para Paulo Freire.............................. 25

Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino (Entrevista com


Isabela Pereira Lopes)........................................................................... 29

1. Paulo Freire e a (sua) infância educadora.................................... 47


A importância de perguntar-se...............................................................51
A educação entre iguais......................................................................... 55
O educador menino e a educadora menina.......................................... 58

2. A Pedagogia do oprimido e o amor.................................................65


Um recorrido pelo amor afirmado na Pedagogia do oprimido............. 67
Significados para o amor em diálogo com Alain Badiou...................... 70
Para terminar como a Pedagogia do oprimido: começando................ 73

3. Quantos anos tem Paulo Freire?.................................................... 77


Uma educação menina em direitos humanos.......................................81
A educação e o tempo da infância: quantas idades cabem numa
idade?......................................................................................................84
Afinal, quantos anos tem Paulo Freire?.................................................86

4. O que vale ser criança se nos falta infância? Um diálogo sonhado


entre Paulo Freire e Mia Couto..............................................................91
Primeiras palavras...................................................................................91
O tempo da infância em “O rio das quatro luzes”............................... 93
De infantia, luzes e corações.................................................................96
Paulo Freire e o tempo da (pré) escola............................................... 100
Para terminar… como sempre… começando................................... 104
5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda…
ou de como convidar um amiguinho inesperado para comemorar uma
vida infantilmente amorosa e revolucionária................................... 109
Antes de começar… infância................................................................ 110
Paulo, o Che e um menino inesperado: amor, infância e revolução.....111
Algumas objeções contra um menino danado e nada santo.............. 113
Dois meninos de esquerda................................................................... 116
Dois meninos amorosos........................................................................ 122
Para terminar, sem deixar de começar................................................126

6. Palavras infantis: uma homenagem a Osmar Fávero................. 131


Primeiras palavras................................................................................. 131
Sobre a memória e o tempo presentes num Brasil pandêmico..........133
Educar: viajar no tempo, em busca de outro(s) tempo(s)..................135
Voltar à primeira infância: Angicos.......................................................137
A infância em Angicos: Eneide............................................................. 140

7. Por que Paulo Freire comprometeu-se com a educação de jovens


e adultos e não de crianças?..............................................................143
Paulo Freire e a curiosidade..................................................................145
Um menino curioso num Congresso adulto de Leitura.......................147
Cartas de infância................................................................................. 149
Por que alfabetizar adultos em vez de alfabetizar crianças?..............152

8. Existe o “método Paulo Freire”?...................................................155


Considerações sobre o “método”.......................................................158
A palavra ‘método’ e algumas tradições dominantes.........................158
Método: curiosidade e compromisso político.....................................159
Formação: tornando-se o método que somos ...................................162
Considerações finais antimetódicas.....................................................165

9. “Tudo está em tudo” (J. Jacotot) e “leitura de mundo” (P. Freire):


premissas de dois meninos nada embrutecidos, errantes em uma
temporalidade igualitária................................................................... 169

10. Por que Paulo Freire mais do que nunca?.................................. 181

Referências bibliográficas.................................................................195
Ouvidos de ouvir crianças:
escutar das crianças tudo o que ainda não sabemos

Magda Costa Carvalho e Simone Berle

Aprendo com as crianças tudo o que os sábios ainda não sabem.


Clarice Lispector, 2019

Em 2019, um grupo de crianças foi convidado para participar de um even-


to que tinha como um dos eixos de diálogo “Os direitos das crianças”. No
auditório cheio de adultos, as crianças são recebidas para um momento
de partilha sobre os “Direitos das Crianças”. Do palco, Elisa, uma criança
de 4 anos, pega o microfone e de forma segura diz: mexer no armário. A
plateia de adultos ri, com muita graça, da fala da pequena Elisa. A menina
se cala e passa o microfone adiante.
Simone Berle, caderno de notas, 2021

A pequena narrativa de Elisa foi partilhada durante um encontro de


formação e planejamento de um grupo de professores e professoras
no Rio de Janeiro. A força das palavras de Elisa, assim como a pertur-
bação do seu silenciamento, têm nos acompanhado desde então.
Quando voltamos a essa força e a essa perturbação, outras vozes
ecoam em nós. Imediatamente nos encontramos com perguntas
ressoantes de quem se indigna conosco: “por que rimos das crianças?
Por que tomamos suas falas, seus pensamentos, suas lógicas e suas
descobertas como exóticas, divertidas, inóspitas e risíveis? Por que,
em um auditório repleto de pesquisadores das infâncias, uma afirma-
tiva lógica de uma criança provoca altas gargalhadas?” (Mello; Lopes;
Lima, 2021, p. 1).
E também logo recordamos Mangaliso Nxesi, menino sulafrica-
no de 10 anos que, enquanto questionava o Parlamento do seu País
sobre outro direito das crianças – o do voto –, foi acolhido com risadas
da audiência. “Só porque alguém tem uma idade diferente da de outra
pessoa, isso não significa necessariamente que deva ter menos acesso
às coisas por causa da sua idade ou de algo do género.” (Murris, 2020,

15
Prólogo

p. 72), dizia Mangaliso, perplexo ele próprio com o riso condescenden-


te que a sua fala recebia dos adultos presentes.
Os relatos da pequena Elisa e do pequeno Mangaliso nos dão a
ver o esforço que nós, adultos, temos que fazer para escutar as crian-
ças, mas também nos oferecem a oportunidade de percebermos a faci-
lidade que temos em encerrar essa escuta e como facilmente podemos
perder a oportunidade de escutarmos com seriedade o que as crianças
nos dizem. Rir assim, quando as crianças usam suas vozes, pode ser
uma forma de evitarmos sair dos nossos próprios lugares, de continuar-
mos agarrados às nossas certezas, e de insistirmos em ficar epistemoló-
gica e politicamente distantes delas.
Aquilo que as crianças ousam dizer pode ser inusitado, encan-
tador, patético até, mas é quase sempre entendido como inofensi-
vo (Murris, 2020, p. 82). Contudo, Elisa, quando manifesta que abrir
o armário é um direito das crianças, pode estar ensinando para nós,
adultos, a olhar – uma vez mais – para as miudezas, as banalidades e
até desimportâncias da vida cotidiana com mais amorosidade, partilha
e igualdade. E Mangaliso, quando se esforça por falar num espaço de
adultos, com uma argumentação de adultos e dirigido a adultos, revela
que aquilo que a sua fala está a denunciar é, afinal, um preconceito
estrutural e que, enquanto a idade estiver a seu desfavor, partirá para
a corrida sem qualquer hipótese de chegar à meta.
As situações vivenciadas pelas duas crianças nos levam para
a discussão que talvez seja uma das mais básicas e igualmente mais
inquietantes da educação (de crianças): o lugar de fala, a seriedade,
a legitimidade do dizer, se conquistam com tornar-se grande. Ainda
continuamos a voltar para o lugar da infância ingênua e da criança
incapaz de dizer o que pensa e sente. Ou, mais grave ainda, para o
juízo arraigado de que tudo o que os mais pequenos possam dizer
será sempre incompleto, infundado, irrelevante, e outras nega-
ções excludentes.
A filosofia (ocidental) tem acompanhado e, talvez, até justifica-
do essa negligência educacional, apurando sem pudor a tendência para
deixar de fora dos seus espaços-tempos a escuta dos mais pequenos
(não apenas dos cronologicamente pequenos, mas da pequenez nas
suas variadas expressões). Por um lado, porque, ao longo dos sécu-

16
Magda Costa Carvalho e Simone Berle

los, venceu como critério de fala um tipo de discurso logocentrado e,


portanto, todas as vozes pequenas, as que não cabem na produção de
um entendimento mental racionalmente comunicado, não se incluem
no grupo de quem merece ser escutado. E, por outro lado, porque a
escuta, ela própria, enquanto sentido específico de um corpo, no qual
se abre o mundo e onde ressoam experiências decisivas, foi menoriza-
da enquanto acesso a afetações importantes. Só fala quem sabe usar a
sua voz de uma forma bem determinada. E falar é sempre muito mais
uma questão de fixar o inteligível do dito, o lógico, do que de deixar
reverberar o audível e o sonoro do dizente.
Acontece que as duas coisas – a negligência das infâncias e o
olvido da escuta – não estão assim tão distantes como possa parecer,
porque o esquecimento dessa escuta leva, inevitavelmente, à invisibi-
lização de quem fala face àquilo que é dito. Desaprender a escutar é
apagar o sujeito que fala perante o tanto (ou o tão pouco) que esse
sujeito diz. Como se todas e todos disséssemos as coisas das mesmas
formas. Ou como se o ato de dizer algo não fosse já, numa dimensão
aquém da verbalização, a constituição mesma de um sujeito, o reenvio
a um si (Nancy, 2013).
Assim, educação e filosofia demasiadas vezes viraram costas
à escuta das crianças, dos menores, dos pequenos, das infâncias.
Quantas de nós, educadoras e educadores, já fomos Elisa reclamando
o poder minudente de mexer no armário? E quantos de nós já calamos
Mangaliso com nossos sonoros risos condescendentes?
É precisamente neste panorama educativo e filosófico, em que
nem as pessoas mais pequenas nem a escuta são comumente reputa-
das, que livros como Paulo Freire: um menino de 100 anos fazem um
caminho singular. Com a ousadia infantil que lhe é própria, o gesto
de Walter Kohan com esta publicação sobre o Patrono da Educação
Brasileira, no ano de seu centenário, parece-nos uma forma de se posi-
cionar face a perguntas que talvez precisemos continuar a seguir fazen-
do: a escuta é algo de que a filosofia seja realmente capaz? A escuta é algo
de que a educação verdadeiramente seja capaz? E uma relação educativa
e filosófica com a infância pode fazer-se sem escutá-la?
Em 2021, Paulo Freire faz 100 anos. Cem anos. Um menino
faz cem anos e a forma como suas palavras seguem nos ensinando

17
Prólogo

(ou como ainda precisamos seguir aprendendo com elas) nos leva a
perceber que Paulo Freire faz sem anos. E podíamos continuar brin-
cando com as palavras (gesto tão distintivo dos escritos de Walter
Kohan): tudo o que Paulo Freire faz hoje fá-lo sem anos. Em sua forma
infantil de fazer nascer – sempre e outra vez – a educação como práti-
ca de liberdade, mesmo em tempos tão áridos e escassos de alegria
e compaixão como os que agora vivemos, Paulo Freire escapa aos
ciclos cronológicos e torna-se imortal. Continua em estado nascente,
mesmo fazendo cem anos. Continua a fazer-nos nascer, sobretudo
fazendo sem anos.
Este livro pode ser um bonito exemplo do que afirmamos.
Paulo Freire: um menino de 100 anos é, ao mesmo tempo, uma forma
de celebrar uma vida extraordinária de amor, força e revolução através
da escuta dos mais pequenos. E Walter Kohan vai mostrando aos leito-
res e às leitoras, em cada um dos textos que compõem este volume,
algumas importantes pequenezes às quais devemos dar nossa aten-
ção enquanto educadoras e educadores. E talvez não seja tanto uma
questão de um “devermos” carregado de normatividade, quanto de
fazermos o exercício de pensarmos o quanto a nossa forma de viver a
educação pode mudar se atendermos a estes pormenores (pormaio-
res!). Escrever uma carta para Paulo Freire, fazer um passe de bola a
Diego Maradona, insistir sempre nas perguntas, brincar com versos de
poetas, obstinar-se na importância do amor, recordar as minudências
das vidas daqueles e daquelas com quem nos cruzamos. São gestos de
infância que permeiam a escrita de Walter. Esses gestos são igualmen-
te afirmações vivas de um pensador de fracturantes questões educati-
vas e filosóficas: o método, a educação popular, a literacia do mundo, a
igualdade, a revolução, a política, o tempo.
A educação no Brasil é uma criança que, como Elisa e
Mangaliso do começo do nosso texto, é frequentemente calada em
sua meninice, a meninice de pronunciar o mundo em suas primeiras
vezes. A educação, tal como reivindica Paulo Freire e, ecoando nele,
Walter Kohan, é um ato de criação e “porque é encontro de homens
que pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns
a outros” (Freire, 2020, p. 18). Sobretudo dos mais pequenos aos
“mais grandes”. Enquanto educandos e educandas, o ato de cora-

18
Magda Costa Carvalho e Simone Berle

gem que nos liberta é precisamente pronunciarmo-nos, compreen-


dermos quem somos no mundo e como nos transformamos com ele,
sem subjugar, sem ser subjugado. Portanto, aprendendo a pronun-
ciar a sua palavra ou a escutar-se a si mesmo aquém das palavras…
e a deixar-se escutar. Exercício que as vozes infantis que aqui foram
convidadas fizeram com grandeza.
Walter, ao colecionar em seus escritos diálogos, cartas, pensa-
mentos com e de Paulo Freire, faz (re)soar nas entrelinhas do presen-
te livro esta educação como prática de liberdade de pronunciamento
e de escuta, um exercício filosófico e infantil inspirador. É este o Paulo
Freire que Walter Kohan nos oferece. E a escrita de Walter sempre
é um convite delicado a dar a volta nas palavras, nos sentidos que
elas carregam, a mostrar que, afinal, tudo pode ser diferente. É uma
escrita de liberdade, enquanto experiência filosófica e educativa que
não deseja ensinar, mas insiste em convidar seus leitores e suas leito-
ras a ensaiarem a si mesmas e a si mesmos em outras escutas, em
outras escritas.
A escrita de Walter também é sem anos porque sempre nos
provoca a começar de novo, a nascer e a renascer com ele. E o livro que
temos em mãos não é diferente. O convite que recebemos das pala-
vras de Walter estendemos para cada uma e cada um de vocês. Como
a criança peralta que convida os amigos e as amigas para brincarem em
casa sem aviso prévio, nós convidamos cada um e cada uma de vocês
para uma escuta infantil como um reenvio a um si. Uma leitura em voz
alta com desejo único: uma escuta menina dos mais pequenos, ou do
que de mais pequeno há em cada uma de nós. Uma educação popular
que precisa afirmar-se, antes, em cada um e em cada uma.
Terminamos quase certas de que seja possível que neste volu-
me esteja presente, talvez, mais uma fagulha de esperança, mais um
sinal de que nunca é tarde para partejar a educação, a filosofia e a escri-
ta como igualdade; para afirmar uma vez mais que não se pensa entre
desiguais, que não há verdadeira escuta a não ser entre iguais, porque
uma escuta amorosa e revolucionária exige colocar todos em lugar de
igualdade. E reconhecer, como a infante Clarice, que afinal é tão fácil
captar as tantas coisas maravilhosas que as crianças dizem: “é só ter
ouvidos de ouvir crianças” (Lispector, 2019, p. 611). Desejamos que em

19
Prólogo

cada ser humano cresça um par destes ouvidos, com a maior urgência
possível. A mesma urgência do amor, da revolução, da escrita de Walter.

Referências:

Bajour, C. (2012). Ler nas entrelinhas. São Paulo: Pulo do gato.


Freire, P. (2020). Partir da infância: diálogos sobre educação. São Paulo:
Paz e terra.
Lispector, C. (2019). A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Editora
Rocco.
Mello, M. B. C. de; Lopes, J. J. M.; Lima, M. F. C. (2021). Por que rimos
das crianças? Linhas críticas, v.27, pp. 1-182021. DOI: 10.26512/
lc27202135191
Murris, K. (2020). The ‘Missing Peoples’ of critical posthumanism
and new materialism. In Navigating the Postqualitative, New
Materialist and Critical Posthumanist Terrain Across Disciplines.
London: Routledge, p. 62-84.
Nancy, J. L. (2013). À escuta. (parte I). outra travessia. Revista de
Literatura. 15, pp. 159-172.

20
Nota preliminar sobre os textos que compõem este livro

Demorei muito a escrever um livro sobre Paulo Freire até que em 2019
lançamos Paulo Freire mais do que nunca, na Editora Vestígio. Nesse
momento, Paulo Freire tinha 98 anos e ninguém pensava que o mundo
ia ser comovido pela pandemia de covid-19 no ano seguinte. Com a
pandemia (e o des-governo que a des-enfrentou no Brasil) e a proxi-
midade dos 100 anos de Paulo Freire, um número inusitado de ativi-
dades foi sendo organizado on-line, as inicialmente cativantes e hoje
difíceis de dosar lives. Nesse contexto, pensamos que publicar um livro
que reunisse algumas das minhas intervenções nessas lives, bem como
textos escritos neste período entre 2020 e 2021, seria uma forma bonita
de comemorar os 100 anos de Paulo Freire. Os textos foram publicados
como artigos em periódicos ou capítulos de livros e revisados e reto-
cados para esta edição. No caso de textos resultado de intervenções
orais, colocamos em nota a data do evento e mantivemos um certo
tom coloquial para preservar a sua vivacidade. Eis as fontes onde foram
publicados os capítulos deste livro:

“Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino” (Entrevista


com Isabela Pereira Lopes) foi publicado como “Sobre as meninices de
Paulo Freire mais do que nunca e as nossas.” em: Reflexão e Ação, v.
29, n. 3 (2021).
“Paulo Freire e a (sua) infância educadora” foi publicado em:
SILVA, Marta Regina Paulo da; MAFRA, Jason Ferreira (orgs.). Paulo
Freire e a educação das crianças. São Paulo: BT Acadêmica, 2020, p. 83-100.
“A Pedagogia do oprimido e o amor” foi publicado em: FREIRE,
Paulo. Pedagogia do oprimido. Edição especial. São Paulo: Paz e Terra,
2021, p. 31-44.
“Quantos anos tem Paulo Freire?” foi publicado em: Educação:
Teoria e Prática, Rio Claro, SP, v. 31, n. 64, 2021.
“O que vale ser criança se nos falta infância? Um diálogo sonha-
do entre Paulo Freire e Mia Couto” foi publicado em: Revista Estudos
Aplicados em Educação, São Caetano do Sul, SP, v. 6, n. 11, 2021, p. 9-20.
“Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquer-
da… ou de como convidar um amiguinho inesperado para comemorar

21
Nota Preliminar sobre os textos que compõem este livro

uma vida infantilmente amorosa e revolucionária” foi publicado em:


Estudos Universitarios, Recife, v.38, 2021, p. 153-192.
“Palavras infantis numa homenagem a Osmar Fávero” foi
publicado como “Palavras infantis numa homenagem a Osmar Fávero
a partir de algumas inspirações do sempre presente Paulo Freire” em:
FONTOURA, Helena Amaral da; TAVARES, Maria Tereza Goudard; LEITE,
Vania Finholdt Angelo (orgs.). Diálogos com Paulo Freire -100 anos-.
Reflexões freireanas em tempos de (pós) pandemia. Rio de Janeiro:
NAU, 2021, p. 155-168.
“Por que Paulo Freire comprometeu-se com a educação de
jovens e adultos e não de crianças?” foi publicado em: Ensino, Saúde e
Ambiente, vol. 14, número especial, 2021.
“Existe o ‘método Paulo Freire’?” foi publicado em: Revista
Debates em Educação, Maceió, v. 13, n. 32, Set./Dez., 2021.
“‘Tudo está em tudo’ (J. Jacotot) e ‘leitura de mundo’ (P.
Freire): premissas de dois meninos nada embrutecidos, errantes em
uma temporalidade igualitária” foi publicado em: CARVALHO, José
Sérgio de (org.). Jacques Rancière: Educação, política e emancipação.
Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 443-459.
“Antes que mais nada uma carta” e “Por que Paulo Freire mais
do que nunca?” estão inéditos em português.

Escrevo esta apresentação no meio de uma viagem maravilho-


sa pelo nordeste brasileiro, afirmando uma pedagogia filosoficamente
menina da pergunta, acolhendo e escutando perguntas que brotam
em escolas, assentamentos, grupos comunitários. Nesta semana, no
domingo 19 de setembro de 2021, Paulo Freire fez 100 anos, como
sugere o título do livro. Nestas terras, o tempo sente-se diferente: mais
intenso; menos extenso e 100 anos podem significar um tempo muito
curto, mas muito fundo. Estar aqui, na sua terra, faz Paulo Freire cres-
cer mais ainda em densidade como expressão de um povo que, atra-
vessado por variados descuidos e maus tratos, parece ter cultivado
uma gentileza docemente profunda para tornar viável a vida. Ontem
Dona Maria José perguntou, na associação comunitária de uma ocupa-
ção em Aracaju, Sergipe: “Por que os poderosos gostam de ver-nos
sofrer?”. Carrego na minha mochila muitas perguntas como essa que
Walter Omar Kohan

estão dando novos sentidos à minha escrita, ao meu pensamento, à


minha vida. Tomara que as perguntas que este livro carrega e convida a
viver ajudem leitores e leitoras a dar corpo a suas dores e anseios, com
a maravilhosa inspiração de um doce e gentil menino nordestino sem
idade, como seu povo.

Walter Omar Kohan


Recife, setembro de 2021

23
Antes de mais nada:
uma carta para Paulo Freire

à Nathercinha (Nathercia) Lacerda

Rio de Janeiro, 9 de agosto de 2021

Estimado Paulo,
Posso imaginar a dificuldade que você tem esse ano em ler tantís-
simas cartas que está recebendo de diferentes partes do mundo.
Naturalmente, é também uma boa dificuldade, uma espécie de alegria,
eu sei, sobretudo pelo seu gosto em receber e escrever cartas, pelo
carinho que esta forma de comunicação significa e pelo gesto extra-
ordinário de amor por você e sua vida que milhares de cartas sendo
escritas em todo o mundo lhe comunicam. Imagino você cansado e
ao mesmo tempo feliz por receber tantos gestos de amor e reconhe-
cimento. E, também, imagino você pensando em como responder a
tantas cartas… acertei?
Sinto que você também deve estar muito preocupado com a
situação atual no Brasil que nos machuca tanto, tão duramente, tão
rudemente indigna deste povo. Imagino você zangado, furioso, enfu-
recido. Você já estava com raiva quando a situação política era menos
grave, em um certo sentido, mesmo que nunca fosse tranquila. Porém,
o momento atual excede qualquer limite com este maldito governo e
sua política de morte contra o Brasil mais profundo. Sua absoluta falta

25
Antes de mais nada: uma carta para Paulo Freire

de respeito pela diferença, pela vida com dignidade, pelas necessida-


des de um povo que clama por justiça e dignidade. Mas também posso
imaginar você esperançoso, guerreiro, firme e sereno com sua palavra,
ajudando-nos a não desistir.
Quero enviar-lhe, com esta carta, um selo que fizemos em
homenagem a você no Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias
(NEFI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Já escreve-
mos uma carta coletiva para você no NEFI, que você deve ter recebido.
Mas acho que ainda não tínhamos feito este selo. Aqui vai, esperamos
que você goste:

O que você acha? Gostaríamos que nos dissesse se gostou com


suas próprias palavras. Vou lhe contar a ideia do desenho. Claro que nele
você pode ler, e muito provavelmente lerá, outras coisas. Mas quere-
mos que saiba alguns sentidos que animam esse desenho. Somos um
grupo de filosofias e de infâncias. Em outras palavras, tentamos reunir
filosofias e infâncias, no plural, como forças plurais. Sabemos que há
muitos preconceitos com uma e outra. Muitas pessoas pensam que a
filosofia é algo superior, próprio de pessoas muito sábias e idosas, e que
a infância é, ao contrário, algo inferior, próprio de pessoas de pouca
sabedoria e idade. Nós pensamos de maneira diferente. Acreditamos
que existem muitas filosofias e muitas infâncias e que ambas são forças
afirmativas e igualitárias que, quando se encontram, celebram o que
têm em comum: perguntas, curiosidade, o amor de querer saber e
pensar com outras e outros.

26
Walter Omar Kohan

Por isso, pensamos em você como um amigo e companheiro,


nosso, mas também de certas filosofias e infâncias. E pensamos em
oferecer-lhe este presente, modesto, alegre, menino, infantil, filosófi-
co, amoroso. Queremos comemorar seus 100 anos. E pensamos que
você ainda é uma criança, como sabiam muito bem aquelas pessoas
que lhe deram numa Biblioteca Municipal em Ponsacco, Pisa, Itália, a
honraria de “bambino permanente” (criança permanente) em março
de 1990, quando tinha 68 anos. Acreditamos, como eles, que a infância
não é uma idade, mas um modo (curioso, inquieto, encantado) de viver
a vida e por isso sentimos que seria um bom momento para celebrar
sua vida infantil, menina, amorosamente curiosa. E, também, pensamos
um desenho no qual você está de braços abertos, como sempre este-
ve, para receber qualquer um que quisesse falar com você. E você está
de pele escura, como aqueles que mais sofrem neste país. Sentimos
que você gostaria de se ver assim e o desenhamos na porta de uma
escola que chamamos NEFI. Porque pensamos que o NEFI é uma esco-
la, não no sentido de uma instituição, mas de uma forma de reunir as
pessoas para pensar em conjunto sobre o mundo em que vivemos e o
mundo em que gostaríamos de viver. Como você mesmo, Paulo, pois
você também foi uma escola. Por isso, tentamos reunir no desenho o
que somos e o que queremos ser: uma escola de vida, de filosofia e de
infância. E sua presença entre nós nos faz sentir a alegria menina que
era tão típica de seu trabalho e de sua vida.
Portanto, caro Paulo, despeço-me em nome de meus colegas
do NEFI/UERJ. Espero que você goste do desenho que fizemos para
celebrar os 100 anos de sua vida menina. Uma vida que continuará a ser
menina mesmo com 200, 300, 1000, ou com um milhão de anos. Porque
sua infância não é medida em anos, mas na intensidade presente na
sua vida. Espero que você também sinta estas palavras infantis próxi-
mas. Agradecemos a inspiração, a presença e a energia criativa neste
momento difícil que dará, certamente, origem a outros amanhãs. Que
você tenha um feliz aniversário de 100 anos de vida menina!… e até
outras filosofias e infâncias,

Amorosamente,
Walter Omar Kohan

27
Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino
(Entrevista com Isabela Pereira Lopes)

Isabela Lopes - Primeiro, gostaria de te agradecer por essa “entrevista-


-conversa-diálogo”, como tu mesmo te referes ao entrevistar pessoas
próximas de Paulo Freire. Dizer da minha gratidão por conhecer mais
de ti e conhecer mais de nosso “andarilho da utopia”, através de ti, a
partir da leitura de Paulo Freire mais do que nunca, da Editora Vestígio,
e Paulo Freire más que nunca, a versão em castelhano do livro, disponi-
bilizado gratuitamente pelo CLASCO – Conselho Latino-Americano de
Ciências Sociais1.
Como foi essa escolha, de um nome tão potente e convidati-
vo para o livro?
Walter Kohan - Começamos bem, porque não sei responder a
primeira pergunta! É engraçado, porque recebi muitas perguntas sobre
o livro, sobre o título inclusive, mas ninguém tinha me perguntado
como foi a escolha. E a verdade é que não me lembro. Espero não estar
fazendo injustiça com ninguém, mas não lembro embora não tenha
passado tanto tempo cronológico. Minha memória é muito seletiva.
Alguns detalhes lembro muito claramente e outras coisas simplesmen-
te apago. Tento lembrar, mas não consigo. Escrevi o livro durante meu
pós-doc em Vancouver, entre setembro de 2017 e agosto de 2018. Fui,

1
Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20200306042539/Paulo-
Freire-mas-que-nunca.pdf>.

29
Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino

basicamente, fazer isso naquela cidade canadense que tem algumas


coisas do Rio: escrever um livro sobre Paulo Freire. Levei livros na mala
e me dispus emocionalmente para isso. Agora, sinto que necessitei
sair do Brasil para escrever o livro que, por outro lado, também senti
que devia escrever em português. E fui escrevendo, lendo, pensan-
do, conversando com pessoas ao vivo e por escrito, assistindo vídeos,
entrando nos arquivos do Instituto Paulo Freire, apresentando as escri-
tas parciais a colegas, em eventos (pouco tempo depois que cheguei
em Vancouver, fui convidado a uma Jornada sobre Paulo Freire na
University of British Columbia e conheci pessoas significativas). Escrevi
primeiro o que depois iria ser o apêndice, partes da apresentação e do
epílogo, o capítulo sobre a igualdade, depois o capítulo sobre a infân-
cia, o capítulo sobre a vida, sobre o amor. Acho que o último foi sobre
a errância… e depois, claro, o epílogo e a apresentação… e quando
tinha o livro pronto, mandei para Rejane Dias, da Autêntica, e acho
que me ocorreu o título pelo momento que estávamos vivendo… mas
não consigo lembrar o momento em que surgiu o título… lembro, sim,
que a Rejane inicialmente me disse se poderíamos tirar uma palavra e
acrescentar outra. Ela propunha tirar “filosófica” e deixar como subtí-
tulo apenas “uma vida” e acrescentar “hoje”, antes de “mais do que
nunca”. Mas eu argumentei com ela que era melhor não colocar hoje,
porque isso colocaria o título numa dimensão cronológica do tempo
que justamente o livro tentava relativizar e que “filosófica” era impor-
tante manter, porque, de fato, não é uma biografia stricto sensu e sim
uma aproximação filosófica à vida de Paulo Freire, o que está justifica-
do em um capítulo do livro. Então, era importante manter filosófica,
inclusive porque a palavra “filosófica” tem um sentido positivo aqui
no Brasil. Neste momento, o livro está sendo publicado em inglês pela
Editora Bloomsbury2 e foi bastante conversado o título. Finalmente,
depois de várias idas e voltas, tiramos o equivalente a “mais do que
nunca”, que em inglês pode ser “more than ever”. Dizem que poderia
gerar alguma perplexidade e deixamos simplesmente “Paulo Freire. A
philosophical biography”. Alguns avaliadores externos sugeriam tirar

2
Disponível em: <https://www.bloomsbury.com/paulo-freire-9781350195981/>.

30
Walter Omar Kohan

“philosophical” ou substituí-lo por “intelectual”, mas finalmente ficou.


Na consideração do título em inglês surgiram coisas interessantes. Uma
tradução literal seria Paulo Freire more than ever. Interessante porque
em inglês, em vez de mais do que nunca, seria mais do que sempre. E
isso nos levaria a outra dimensão do tempo, um tempo literalmente
impossível porque não existe em khrónos mais do que sempre, já que
sempre é a totalidade do tempo. Mas parece que é uma expressão
não muito comum em inglês e alguns dos seis (sim, seis!) pareceristas
que avaliaram o livro sugeriram mudar esse título. Acabamos deixando
Paulo Freire: a philosophical biography, mais seco, mas também forte. O
subtítulo virou título. Gostei. Essa edição do livro sairá este mês (abril
2021) pela editora Bloomsbury, que publica muitas obras de Paulo Freire
em inglês, com um prólogo de Antonia Darder (que espero possamos
colocar em eventuais próximas edições do livro em português porque
oferece uma perspectiva singular do livro) e uma entrevista com Jason
Wozniak, um dos tradutores do livro. Jason é o diretor da LAPES (Latin
American Philosophy of Education Society). O outro tradutor é Sam
Rocha, professor da University of British Columbia, Canada.
IL: Li intensamente dois livros teus, nos quais, segundo Carlos
Skliar, tu fizeste “um gesto de hospitalidade com figuras educativas
cruciais para a América Latina”: Simón Rodríguez (em O mestre inven-
tor: relatos de um viajante educador) e Paulo Freire mais do que nunca.
Por que Simón? E por que Paulo Freire? Como foram essas escolhas? Ou
você foi escolhido por eles?
WK: Seguimos bem: é uma ótima pergunta. Difícil de respon-
der. Até que ponto escolhemos ou somos escolhidos pelos autores que
lemos e por tantas outras coisas… sobre o Simón Rodríguez tenho uma
resposta mais direta. Esse livro tem um grande responsável: meu amigo
Gregorio Valera-Villegas, professor da Universidade Experimental
Simón Rodríguez e da Universidade Central da Venezuela. Ele organiza
Colóquios Internacionais todos os anos. Sempre participo e, frequente-
mente, tinha apresentações sobre o grande Simón. Um dia perguntei
para Gregorio se tinha como conseguir as Obras Completas de Simón
para poder ler diretamente alguém que muito me interessava e ele fez
uma espécie de chantagem-desafio que eu achei superdivertido e insti-
gante: “consigo um exemplar das Obras – que estão esgotadas - se te

31
Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino

comprometes a escrever um livro sobre ele”. “Trato feito”, respondi,


quase sem pensar. E depois fiquei bastante tempo, pelo menos duran-
te um ano, para poder cumprir a promessa. E senti-me muito feliz,
porque a leitura do Simón é muito instigante. O Maximiliano Durán,
colega da Universidad de Buenos Aires e que é um grande estudioso
de Simón Rodríguez, também me estimulou muito de várias maneiras a
escrever O mestre inventor. E você não me perguntou sobre esse título,
mas é uma óbvia inspiração em O mestre ignorante que, nessa época,
líamos muito e era muito inspirador. Também a forma da escrita teve
essa inspiração. Era uma espécie de biografia filosófica, embora não
o disséssemos explicitamente no título do livro. Essa seria uma razão
mais evidente, direta, imediata para trabalhar Simón Rodríguez. Mas
há outras menos visíveis, imediatas, mais de fundo, como a busca por
figuras inspiradoras em nossa tradição de pensamento; uma busca por
figuras, em certo modo, opacadas, perseguidas, desnotadas. Paulo
Freire é uma figura singular e ocupa um lugar paradoxal. Por um lado,
é um mito, uma personagem extraordinária, habita o coração de cada
cantinho de América Latina, seu nome é sinônimo de amorosidade,
esperança, resistência; e, por outro lado, temos esse ataque grosseiro,
absurdo, literalmente idiota (a palavra “idiota” vem do grego ídios que
significa o particular, privado, em oposição ao koinós que é o comum,
público) ao seu nome por parte do atual governo brasileiro. Faz bastan-
te tempo que quero escrever sobre Paulo Freire. Cheguei ao Brasil, 5
dias depois de sua morte, como professor visitante da Universidade de
Brasília (UnB) em 7 de maio de 1997. Não tenho sido um “freireano”.
De fato, a Faculdade de Educação da UnB era muito freireana e cheguei
a orientar um trabalho de mestrado de crítica ao humanismo freireano
desde uma perspectiva nietzschiana. Não gosto das unanimidades. Mas
também não gosto das idiotices autoritárias; sempre percebi o grande
valor de Freire e, em 1999, convidei Moacir Gadotti para um Congresso
Internacional de filosofia para crianças, para ele oferecer uma perspec-
tiva freireana ao movimento. Desde então que queria escrever sobre
Paulo Freire e devo reconhecer que os mais recentes ataques sobre
Paulo Freire me fizeram sentir essa escrita como uma exigência. Não
para defendê-lo, porque não sou eu quem vai defender Paulo Freire e
também não me interessa entrar nessa lógica de ataque/defesa, mas

32
Walter Omar Kohan

sim para explorar a imensa riqueza filosófica do seu pensamento e de


sua vida e mostrar outras formas de afirmar seu pensamento e sua
vida. Como ele tantas vezes diz, só vale a pena se meter com ele para
recriá-lo ou para reinventá-lo. E isso tentei fazer no livro. Não sei se fui
bem-sucedido, mas sinto que precisamos demais pensar neste momen-
to e Paulo Freire é um excelente interlocutor para pensar o presente.
De modo que, como você sugere, de certo modo eu escolhi, mas, de
outro e talvez mais significativo modo, fui escolhido por eles e foi um
certo tempo que nos reuniu.
IL: Walter, você precisou analisar diversos livros, entrevistas e
conferências de Paulo Freire antes de “mais do que nunca”. Quais eram
suas leituras e proximidades/afastamentos com Freire? Segundo Carlos
Skliar você cavou “um buraco no já sabido para dar lugar ao ignorado”.
O que você encontrou de novo quando leu e releu Paulo Freire para sua
biografia filosófica?
WK: Então, menina, suas perguntas são muito difíceis e interes-
santes!!! Ou talvez difíceis e por isso mesmo interessantes. Difícil e em
certo modo incômoda (ou talvez incômoda e por isso difícil) porque
preferiria que fossem outros os que apontem o que o livro tem de novo,
se é que ele tem alguma coisa de novo. Eu tinha lido até viajar ao Canadá
para meu pós-doc as obras mais “conhecidas” de Freire, a Educação como
prática da liberdade, Pedagogia do oprimido, Pedagogia da Esperança e
Pedagogia da Autonomia, e alguma outra, para dar alguns exemplos.
Lembro-me agora que depois de chegar na UnB, como professor visitan-
te, em poucos meses abriu um concurso para o cargo de professor de
filosofia da educação e eu tive a sorte de encontrar num sebo, uma biblio-
teca com muitas obras de filosofia da educação e, várias de Paulo Freire,
e dentre elas um exemplar da primeira edição brasileira da Pedagogia
do oprimido, de 1974. Tinha as estudado para esse concurso na UnB e
depois quando fiz concurso para professor titular da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 2002. Lembro agora que, antes,
quando fiz meu doutorado, passei um semestre como assistente do
Matthew Lipman na Montclair State University e ali dei a disciplina de
Philosophical Orientation to Education. E essa disciplina tinha três textos
de leitura obrigatória: Emile de Rousseau, Democracy and Education de
John Dewey e Pedagogy of the oppressed de Paulo Freire. Estou falan-

33
Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino

do de 1995 (você era muito menina, risos). Ou seja, tinha dado aulas
sobre a Pedagogia do oprimido nesse momento, já faz 25 anos. Mas o
pós-doc é uma coisa extraordinária e ainda mais numa cidade como
Vancouver: você tem todo o tempo do mundo para ler, pensar, escre-
ver. Então levei meus livros, em papel e em arquivos, muitos vídeos e
passei horas e horas lendo, assistindo e escutando a Freire em várias
línguas. Li também alguns dos leitores de Freire, brasileiros e do exterior
– que são muitos, muitíssimos – e tentei encontrar um lugar para não me
perder nessa infinidade de páginas e páginas que se escrevem a diário
sobre Paulo Freire. Tentei escutá-lo atentamente e ser fiel à sua ideia de
tratar de reinventá-lo e não de segui-lo. Então, encontrei logo a infância,
que está sempre comigo, e, como a infância não é muito comumente
associada a Paulo Freire (não que não seja, mas relativamente a outras
ideias, digo), pronto: a infância não podia faltar… e tentei perceber em
que outras ideias Freire podia ajudar a pensar… claro que apareceram
muitas outras palavras… aí, o difícil foi escolher com quais ficaria para
escrever o livro. E como Freire é tão escrito e reescrito, tentei escrever
sobre algumas que não são tão comumente associadas a ele ou pelo
menos desde outra perspectiva…
IL: Bonita essa coisa de “escutar” Paulo Freire, pois foi assim
que te senti ao ler Paulo Freire mais do que nunca. Mas vamos prosse-
guir! Quero falar dos 5 princípios (ou inícios, ou começos, ou gestos
filosóficos, ou ainda razões para ler Paulo Freire hoje): vida, igualda-
de, amor, errância e infância. Como foi essa escolha? Qual deles você
mais gostou de “navegar”? E para quem te conhece de outras fren-
tes, parece ter um pouco da prática do “abecedário de infâncias” por
estas escolhas?
WK: Aqui também poderias me perguntar se fui eu que esco-
lhi os princípios ou eles que me escolheram, verdade? Pois, também
duvido… Talvez o único que não poderia não estar é infância, mas os
princípios são, em certo modo, arbitrários, eventuais. E, quem sabe,
também infância poderia ser outro. Também não me lembro muito
como eles foram surgindo, tentei sempre fugir às palavras mais esperá-
veis para pensar com Paulo Freire, tipo opressão, solidariedade, espe-
rança, autonomia, liberdade, criticidade… mas considerei outras…
deixa-me ver se me lembro de alguma: hospitalidade, por exemplo,

34
Walter Omar Kohan

amizade, sim, duvidei bastante entre amor e amizade (risos)… Claro,


se vemos o livro, parece ser que infância é onde me sinto mais à vonta-
de, é a parte mais volumosa, são quase como três capítulos em um e
poderia ter continuado escrevendo… e o que dizes do abecedário de
infâncias que fizemos com o CINEAD da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), coordenado por Adriana Fresquet, é interessante…
não tinha pensado nisso antes, mas, sim, parece que há algo de uma
criação conceitual com cada palavra e Paulo Freire é uma espécie de
intercessor, interlocutor, um companheiro para pensar, para viajar no
pensamento e na vida.
IL: Quem ainda não conhece o “abecedário” que inclusive utili-
zei na minha tese (Lopes, 2019), recomendo espreitar3. Mas me diga
uma coisa: parece ter semelhanças na vida, na igualdade, no amor, na
errância e na infância entre ti, Simón e Paulo Freire? As andanças pelo
mundo e o fazer escola parece ser o que liga vocês. Estou certa? E o que
mais liga vocês?
WK: Meninaaaa!!! Isso é mais do que uma pergunta, é um elogio
imenso… tomara seja assim… Maximiliano Durán me disse algo seme-
lhante quando leu o primeiro manuscrito do livro antes de sua publica-
ção. É claro que, num sentido, eu me sinto muito pequeno diante dessas
duas figuras gigantes. Mas em outro sentido, tento não dissociar o que
penso do que escrevo, do que vivo, de modo que minha escrita desses
autores não tem como não se refletir no meu pensamento e na minha
vida. Alguém poderia pensar que é um pouco injusto ou exagerado não
pretender dissociar o leitor do autor lido, mas eu penso que quando
escrevemos mais atentos à experiência do que à verdade, para dizê-
-lo com Foucault, é algo não apenas inevitável quanto necessário. Por
exemplo, eu não escreveria sobre um autor ou autora sobre quem não
me sentiria inspirado ou não escolheria um princípio que não estivesse
disposto a aceitar como um princípio para meu próprio pensamento
e minha vida. Você sabe que minha formação de base é na filosofia e
essa é uma discussão interessante que, em parte, atento no capítulo
sobre a vida. Porque na filosofia tem gente que passa a vida estudando

3
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NRNNlcNYImU&ab_channel=-
CINEADLECAV>.

35
Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino

a obra de um autor sem se preocupar em nada com a vida dele. E na


imagem dominante da filosofia que circula em nossas universidades,
para se formar você precisa saber muitas coisas sobre os pensamentos
dos filósofos (de modo também geral, brancos, europeus, homens),
mas quase nada sobre a vida deles. Às vezes é até melhor não misturar
a vida com a teoria se você quer se dar academicamente. Considero
problemática essa perspectiva da filosofia.
IL: Você percebe em suas pesquisas que as edições da Pedagogia
do oprimido de Paulo Freire em castelhano têm mais citações que a
edição em português. E afirma falando sobre Freire que ninguém é
profeta em sua terra. Você em seguida diz que essa é uma das questões
que o livro busca pensar. Pensando em ti, foi esta questão que trouxe
um filósofo argentino para o Brasil?
WK: Você consegue fazer todas as perguntas difíceis! E eu
tento ir para Freire ou Simón Rodríguez ou para a filosofia e você volta
sempre sobre mim. Tento fugir de mim e você me traz de novo na
pergunta seguinte… Freire é um caso interessante… por um lado, é
verdade, a Pedagogia do oprimido foi publicada primeiro em castelhano
numa editora uruguaia e depois em inglês nos Estados Unidos e só mais
tarde em português. Isso explica-se historicamente pela censura que a
ditadura impôs sobre Paulo Freire. Mas a errância da vida de Freire que
o levou a andarilhar pelo mundo inteiro, e em particular pela América
Latina, fez com que ele fosse muito popular em muitas regiões do
mundo, em algumas mais do que o Brasil. Sobre a cerimônia em que ele
recebe o doutorado honoris causa na UNICAMP em abril de 1988, Freire
refere-se com certa ironia: na época tinha recebido onze doutorados
honoris causa no exterior e três no Brasil. Diz inclusive “sou muito mais
conhecido fora do Brasil que dentro do Brasil”. E com muita alegria
menina, sorrindo, acrescenta: “Mas sou muito conhecido no Brasil e
sou muito querido. E eu gosto de ser querido. Eu preciso de ser amado
e sou amado.” “Resgate - Paulo Freire recebe título Honoris Causa na
Unicamp”4. No Brasil, a atual situação é ambígua porque se é verdade
que ele é odiado e reprochado como um dos responsáveis de todos os

4
Vídeo no canal YouTube da TV Unicamp: <https://www.youtube.com/watch?v=lhG-
tsDPKKNo>.

36
Walter Omar Kohan

males da educação brasileira, ele é e continua sendo amado e venerado


por centenas de milhares de educadores que sentem nele uma figura
quase mitológica. Mas para não fugir de tua pergunta, eu ainda gosta-
ria de saber por que vim ao Brasil… não é um protesto, mas uma dúvida
existencial, rs… já faz 23 anos. Ia ser por um ano… era 1997, eu tinha
acabado meu doutorado, estava um pouco cansado da vida numa urbe
como Buenos Aires e na UnB precisavam de um professor de filosofia
da educação ao mesmo tempo. Havia oportunidade de um projeto de
filosofia com crianças e formação de professores de escolas públicas
no Distrito Federal. Brasília não parecia muito atraente como modo de
vida, mas o projeto era muito desafiador, além de que era um contrato
de professor visitante de um ano só, e pensei que valia a pena a expe-
riência. Mas já fiquei por aqui. Brasília acabou sendo muito acolhedora;
fiz concurso na UnB nesse mesmo ano e em 2002 fiz concurso na UERJ.
Também não me perguntes por que saí de Brasília para o Rio.
IL: Como carioca e para sempre “uerjiana”, já que na UERJ fiz
meu doutorado, fui sua aluna, só acho que fizeste uma excelente esco-
lha, ao vir para o Rio, para a UERJ (risos). Os livros de Paulo Freire são
traduzidos em mais de vinte línguas. Sua escrita biográfica filosófica já
está se encaminhando para a terceira língua (português, castelhano
e, em breve, inglês). Você diz que cada nova tradução é uma “viagem
de aprendizagens”, já que foi uma nova oportunidade de pensar outra
vez e de viajar entre 2 mundos. Sobre isso tenho duas questões: se
nessas novas viagens no livro, você tem o desejo de mudar ou rees-
crever algo novo? E como foi a emoção de reescrever o livro em “sua
língua materna”?
WK: Essa pergunta, como todas as outras, é muito boa. Sim,
nessas semanas vai ser publicado o livro em inglês. Foi uma experiên-
cia fascinante trabalhar na edição. Porque os editores queriam que as
citações de Paulo Freire fossem das edições já publicadas e então isso
me permitiu descobrir o mundo das edições de Paulo Freire em inglês,
que é muito curioso. Por exemplo, na edição em inglês da Pedagogia do
oprimido falta o último parágrafo da edição em português, que termina
um parágrafo antes. E o último parágrafo aparece, levemente altera-
do, no prefácio do livro. Ainda não entendo a razão dessa mudança.
Gosto tanto desse final do livro e de que esteja assim no final… é um

37
Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino

final muito significativo para mim e que trabalho no capítulo sobre o


amor. Bem, na edição em inglês, esses parágrafos finais não apare-
cem como parte do livro, ou seja, se eu tivesse lido Paulo Freire em
inglês sem ler o prefácio, nunca teria pensado as coisas que pensei com
ele sobre o amor. Aconteceram coisas muito divertidas nesta revisão
que me permitiram aprender muito. Por exemplo, trabalho bastante
com uma ideia de Paulo Freire em Relatos à sombra desta mangueira
em que ele me inspira a pensar a infância como uma força re-invento-
ra de mundo. E eu estava procurando na edição em inglês desse livro
(que, entre parênteses, tem o título de Pedagogy of the Heart, ou seja,
Pedagogia do Coração, deixo os comentários para você e para os leito-
res, os “anglofalantes” fazem pedagogias de tudo!) e não encontrava,
estava com um PDF do livro e buscava as palavras em inglês e nada…
até que descubro que na edição em inglês traduzem mundo por futuro
e então aparece como “reinventora do futuro”. Imagina! Eu, que faço
toda essa abordagem para descronologizar Paulo Freire, fiquei arre-
piado quando li isso. Então, trabalhar com as traduções é fascinante,
aprende-se muito. Claro que trabalhar na tradução de meu livro para
o castelhano, minha língua materna, foi muito especial, por várias
razões. Senti isso no lançamento do livro em Buenos Aires e em La
Plata, na CTERA (Central dos Trabalhadores da Educação da República
Argentina) e na Universidad Nacional de La Plata. Na CTERA com Miguel
Duhalde, Carlos Skliar e Patricia Redondo, em uma das Jornadas
Paulo Freire, em setembro de 2019 para comemorar o 98º natalício de
Paulo Freire com representantes do sindicato de professores de toda
Argentina. Foi muito especial: o livro ainda só estava em português e
eu estava no lugar onde nasci, educadores e educadoras militantes do
país inteiro lendo um livro sobre Paulo Freire e também lendo Paulo
Freire numa língua que não é a deles nem a minha, mas com a qual
já me encontro irremediavelmente comprometido. Na Universidad de
La Plata apresentaram o livro Gabriela Dicker e Federico Brugaletta.
Gabriela hoje é Secretária de Avaliação e Informação Educativa do
Ministério de Educação argentino. Naquele momento, era reitora da
Universidad Nacional de General Sarmiento. Fez um elogio muito bonito
do livro, como um convite ao que significa ler. E Federico, que é profes-
sor na Universidad de La Plata, foi o tradutor do livro. É um estudioso

38
Walter Omar Kohan

e um apaixonado de Freire. Fez seu doutorado sobre a recepção da


Pedagogia do oprimido. Aprendi muitas coisas com ele enquanto revi-
sávamos a tradução. Traduzir é uma tarefa fascinante. E a tradução te
abre o mundo de uma nova língua. No caso de nosso livro, Federico fez
também o trabalho de colocar todas as citações de Freire segundo as
edições dos livros dele publicadas em castelhano e descobrimos juntos
que há livros de Freire em português que não existem como tais em
castelhano e também o contrário. É algo do mais habitual. Com perdão
da comparação, vejo isso passando com meus livros. Por exemplo, tem
livros meus em português, como Infância, estrangeiridade e ignorância
que é bastante diferente de seu equivalente castelhano (Infância, polí-
tica e pensamento) ou italiano (Infanzia e filosofia) e por aí vai… tem
a ver com o que te dizia antes: escrever se inspira em experienciar,
então cada escrita é uma nova experiência e a escrita vai te levando
por outros caminhos. Por isso, para mim é impossível se traduzir a si
próprio: sempre sai um outro livro, porque traduzir não é colocar o
mesmo livro em outra língua, mas viajar novamente no pensamento e
na escrita em uma outra língua. A edição em castelhano, além de estar
disponível para acesso livre na Librería de Autores Latinoamericanos y
Caribeños da CLACSO, tem algo que o original português não tem: um
prólogo precioso de Carlos Skliar e uma apresentação que escrevemos
para essa edição em castelhano com Federico Brugaletta. Um detalhe:
no primeiro semestre de 2020 foi o livro mais lido dessa Biblioteca da
CLACSO, com mais de 16.500 descargas (downloads), o que certamente
mostra o interesse que gera Paulo Freire em toda a América que fala
castelhano. Agora estou trabalhando com Silvia Bevilacqua na tradu-
ção do livro para o italiano que será publicada pela editora Mimesis.
Na verdade, é ela que está trabalhando, mas conversamos muito sobre
dúvidas que lhe surgem e é uma aventura fascinante. Se eu pudesse
trabalhar em outra coisa, acho que seria tradutor (risos).
IL: Uau! Parabéns! Sigamos… Você aborda, no início do livro, o
cenário sombrio em que o contexto político, educacional e ideológico
se encontra. É impressionante notar como, mesmo mais de 2 décadas
depois de sua morte, Paulo Freire assusta. Demonstra o quanto seus
escritos são de vanguarda para o momento atual que enfrentamos. Por
que Paulo Freire ainda desperta tanto medo, e usando suas próprias

39
Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino

palavras, ainda é um ferro quente no atual momento do Brasil? A ideo-


logia de Paulo Freire é uma ideologia do amor e também da pergunta.
Não seriam isso os pontos que assustam um governo e uma política
autoritária, como a que vivenciamos no Brasil?
WK: Penso que sim. Nesses pontos que tu tocas, talvez seja
mais evidente do que em quaisquer outros a oposição radical entre
Paulo Freire e seus inimigos: no amor e na pergunta, que é como dizer
no amor e na infância. Os governos autoritários detestam a infância
no sentido da curiosidade, da inquietação, das perguntas, do porquê,
tudo isso perturba, atrapalha, incomoda, faz perder tempo. E pode
provocar movimentos indesejados. Eu acrescentaria também a vida,
porque Paulo Freire é alguém que sempre está do lado da vida, e
sobretudo de uma vida digna, justa, bonita. E os governos autori-
tários, como o que temos hoje no Brasil, estão do lado da morte, a
naturalizam, a banalizam, a desprezam, sobretudo a vida dos e das
mais pobres, dos excluídos e das excluídas, que aqui no Brasil em sua
maioria são negras e negros, os oprimidos e as oprimidas, para dizê-lo
com Paulo Freire. E a morte entre nós tem cor, claro, porque é sobre-
tudo a morte das pessoas afrodescendentes que padecem da heran-
ça colonialista e escravista como ninguém. Então, claro, alguém como
Paulo Freire, que cuida de tudo o que é contrário e que está ao lado
dos que se trata de exterminar, gera uma combinação de ódio e medo
porque ajuda a empoderar, acordar, mobilizar, chamar a atenção,
insubordinar. Nada mais contrário a um governo autoritário que uma
pedagogia menina da pergunta, como a que afirmava Paulo Freire.
Vou te dar um exemplo mais concreto. Se assistes aquele vídeo da TV
UNICAMP sobre a cerimônia de entrega do doutorado honoris causa
a Paulo Freire, vídeo aliás bem curioso e interessante, falam, além do
Paulo Freire, Rubem Alves e Paulo Renato, que era então Reitor da
UNICAMP e depois foi ministro de educação de Fernando Henrique,
verás que nos comentários desse vídeo (em 31 de agosto de 2020)
aparecem dois comentários que sintetizam os dois sentimentos que
gera Paulo Freire. Um diz: “O maior pensador que tivemos. Parabéns,
Unicamp e ao professor (Post mortem).”. O outro afirma: “Um comu-
nista que ajudou a destruir a educação do Brasil.”. O primeiro pode
ser exagerado, mas o segundo mostra uma atitude comum: o uso da

40
Walter Omar Kohan

palavra comunista como um insulto e o despropósito injustificado e


inaceitável de responsabilizar Paulo Freire pelo estado da educação
no Brasil. Sobre a palavra comunista, que é tão bonita, enquanto pala-
vra, porque justamente diz respeito à coisa comum, temos nos expla-
nado bastante com M. Durán em Manifesto por uma escola filosófica
popular (2018)5. Chama a atenção que “comunista” seja usada como
um insulto, como alguns também utilizam a palavra “infantil” para
tirar importância ou valor de algo. É preciso muita má fé e desconhe-
cimento para responsabilizar Paulo Freire pelos problemas da educa-
ção brasileira. Se assim estamos tendo ele passado por aqui, imaginas
onde estaríamos sem ele?
IL: Você diz que chegou a cogitar escrever conversas de ficção
educativa com Paulo Freire, diálogos inventados. O que você gostaria
de perguntar ou falar para Paulo Freire após mais do que nunca? E o que
você acha que ele te responderia?
WK: Então, eu até tinha imaginado como seriam essas conver-
sas. Quem sabe um dia as escrevo. As organizaria por temas, perguntas
ou questões. E selecionaria alguns trechinhos dos livros, entrevistas,
palestras e depoimentos conservados de Paulo Freire e eu os conecta-
ria através de perguntas. Acho que ainda vou trabalhar nesse livro, sim,
porque é uma maneira de revisitar, reapresentar e reviver o pensamen-
to de Paulo Freire. Poderia colocar ou não as referências… talvez seja
mais interessante não colocar assim, os e as leitoras têm que buscar…
e algumas coisinhas vão surpreender mais de um… imagino alguém
dizendo ou perguntando: “Paulo Freire disse isso? Onde?”. O trabalho,
que é desafiador e interessante, tem basicamente três partes: escolher
os “temas geradores”, palavras, selecionar textos potentes de Paulo
Freire e inventar as perguntas que dialoguem com esses textos… pare-
ce fascinante, não parece? Preciso pensar se incluo ou não as palavras
de Paulo Freire mais do que nunca. Por um lado, parece lógico e até que
facilitaria a busca. Mas, por outro, parece mais desafiador trazer novas
palavras. Ou então, deixar alguma como a infância! Estou me empol-
gando, acho que começo esse livro semana que vem (risos)! Obrigado
por me lembrar da ideia.

5
Livro da Nefi Edições com descarga gratuita em filoeduc.org/editora

41
Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino

IL: Olha, temos um novo começo de uma nova história entre


ti e Paulo Freire? Amei! Mas voltando ao mais do que nunca, Mauricio
Langón registra muito bem que achou “particularmente suculento que
você coloque seus dentes no Paulo Freire”. Porque teu estudo atribui
ao “andarilho da utopia” um olhar outro para Paulo Freire. De onde
veio esse desejo de mergulhar filosoficamente em Paulo Freire?
WK- Bem, essa pergunta pela origem de um desejo é tão mara-
vilhosa quanto irrespondível. E mais ainda de um desejo de mergulho
filosófico. Quem sabe… deve ter tanta coisa aí no meio… uma psicana-
lista faria uma festa, uma socióloga, outra festa, uma filósofa outra…
e assim… mas gostaria de pensar que tem algo para além do pessoal
e que diz respeito a uma potência filosófica, pedagógica e política em
Paulo Freire que excede e muito o lugar em que tem sido colocado.
Porque quando se trata de pensar a educação, há que se ter uma visão
muito curta para deixar de lado a quem é considerado quase unanime-
mente, no mundo inteiro, o maior educador latino-americano de todos
os tempos. E o Brasil, que teve a “fortuna” de vê-lo nascer, diz que quer
expurgar a sua ideologia da educação brasileira. É demasiado absurdo
para ser real… Então, pensei que com o livro poderia contribuir para
que se perceba que as contribuições de Paulo Freire para pensar a
educação vão muito além de ser a favor ou contra um partido político e
inclusive ter uma ideologia política específica. Tão pouco tem a ver com
um partido ou uma ideologia política que os nomes para pensar a politi-
cidade da educação são vida, igualdade, amor, errância e infância. Nada
menos que infância numa coisa tão séria quanto a política, mas que
usualmente é colocada fora desse mundo. Então, o que tentei fazer
foi alargar, desde uma perspectiva filosófica, o que entendemos pela
politicidade da educação. Espero pelo menos ter estimulado a pensar
de outras maneiras a relação entre infância, educação e política.
IL: Sei que muito de Paulo Freire mais do que nunca foi escrito em
suas andanças pelo mundo, principalmente em Vancouver. Foi um exílio
que escolheste? Isso te aproximava ainda mais de um Paulo Freire que
também escreveu muitas de suas obras em exílios e/ou em viagens?
WK: Sim, num sentido. Eu senti necessidade de sair do Brasil
para escrever sobre Paulo Freire. Tinha intentado antes aqui e não tinha
conseguido. E queria escrever em português. Porque era Paulo Freire,

42
Walter Omar Kohan

porque ele não tinha podido publicar algumas obras em português pela
censura durante a ditadura e também como um modesto gesto de grati-
dão a este país que me deu tanto, dentro desse tanto, três filhas mara-
vilhosas… Então, muitos dias ficava horas e horas lendo, escutando e
assistindo palestras e entrevistas de Paulo Freire na aprazível e belíssi-
ma Vancouver, naquela biblioteca da mesma British Columbia University
em que Paulo Freire tinha estado quase 50 anos atrás. Então, foi um
“exílio” um pouco especial, nada forçado, ao contrário, um contex-
to privilegiado e extraordinário, estava só com minha filha Giulietta e
muito tempo para dedicar à leitura e à escrita. Agradeço meus colegas
do Departamento de Estudos da Infância da UERJ e ao CNPq que me
deram o apoio para isso. Claro que também não fiquei tão quieto em
Vancouver e já aprendi a me concentrar em aviões, aeroportos, e outros
lugares semelhantes… de Vancouver fiz várias viagens e sempre lia e
escrevia alguma coisa. Eu aprendi a fazer das viagens um modo de vida
e elas não me interrompem o que estou fazendo. Ao contrário, propi-
ciam novos estímulos. Ou seja, num sentido, um exílio escolhido e privi-
legiado, nada a ver com o verdadeiro exílio que alguém como Paulo
Freire teve que passar pela ditadura. Mas, em outro, quem sabe…
IL: No princípio da errância, você nos alerta que o “andarilho
da utopia” falava de sujar as mãos diante das barbáries do mundo, mas
sem jamais perder a ternura. Escrever esse livro foi um ato como este?
Sujar as mãos sem perder a ternura?
WK: Você é uma menina danada! E, como boa menina dana-
da, adora sujar as mãos. Eu confesso que também! Pelo menos foi o
caso desse livro com Paulo Freire. Não sei em que você está pensando
com “sujar” as mãos, talvez ter que dedicar energia e escrita a pessoas
que não merecem o esforço, que pretendem sujar (num sentido bem
menos interessante que nós estamos usando) um nome sem o mínimo
respeito e cuidado que esse nome merece. Sim, nesse sentido, tenho
tentado seguir o argentino mais famoso e mais estampado de todos.
Aliás, outro menino danado!
IL: Diego Maradona?
WK: Essa foi ótima, menina! Estava pensando no Che Guevara a
quem Paulo Freire cita várias vezes. Parece que Paulo Freire gostava de
jogar futebol nas ruas de Jaboatão, então certamente deveria gostar

43
Paulo Freire mais do que nunca, um livro menino

muito do grande Diego. Mas, em que pese a imagem que a grande


mídia tem construído aqui de Maradona, eu sinto que caberia também
ter dito Diego aqui, pois acho que, pelo menos nesse sentido (e não
só!), ele tem sido bastante fiel ao ditado do Che: sem perder a ternura
jamais6. Talvez por isso, colocamos neste livro um texto sobre a relação
entre Paulo e Diego.
IL: Entre os subtópicos dos 5 princípios onde tu navegaste por
águas diferentes, naquele relativo à infância, é a única em que você faz
uma pergunta: “Paulo Freire e a infância?” Por quê?
WK: Além de danada, você é uma menina muito esperta! E
percebe coisas que quase ninguém percebe. Que eu saiba, ninguém
tinha reparado nisso antes, nem eu! Mas é uma alegria que assim seja
porque é uma força do livro: pois a infância é pergunta ou a pergunta
é infância, então se algum capítulo tinha que conter essa pergunta era
o da infância. Também porque talvez seja o capítulo mais pergunta-
dor, mais questionador e que apresenta a meninice profunda de Paulo
Freire, a sua pedagogia menina da pergunta. Então que bom que esse
capítulo começa por uma pergunta, porque significa que começa meni-
namente, infantilmente. E o mais interessante é que foi sem querer,
porque só agora percebo, com a sua pergunta.
IL: Reparei isso, pois o princípio da infância foi meu favorito,
devo confessar. Tem ali um Paulo Freire desconhecido por mim, um
Paulo Freire com a potência própria da infância. O modo como ele
se refere à infância se aproxima de Manoel de Barros: “gargalhando
zombeteiramente”, “peraltices das almas”, “passarinhos manhece-
dores” e “saudade mansa” e também num valor por coisas desimpor-
tantes, como observar a neve caindo. Eis o princípio mais filosófico
dessa biografia?
WK: Eu diria que é o princípio mais filosófico para aqueles e
aquelas que consideramos a filosofia uma força infantil. E é também um
princípio político, como podemos perceber quando afirmas o seu “valor
por coisas desimportantes”. É também um princípio político pelo valor
de afirmar e cuidar do pequeno, desimportante, frágil, precário, eféme-

6
Esta entrevista foi realizada bem antes da morte do amado Diego, em 25 de no-
vembro de 2020. Sua presença e inspiração continuam, também, “mais do que nunca”.

44
Walter Omar Kohan

ro, insignificante, menor. E é também um princípio educacional porque


ele inspira não apenas uma educação da infância, mas uma infância da
educação, um novo início para ensinar e aprender juntos. De modo que
também é o princípio que eu mais gosto (risos). E, sim, aproxima Paulo
Freire de outros poetas e loucos que, como as crianças, dizem o que
pensam de forma prístina e sem pré-conceitos. Recentemente, escre-
vemos com Rosana Fernandes um artigo para um dossiê organizado
por Fabiana de Amorim Marcello na revista Educação e Pesquisa e colo-
camos a dialogar três figuras infantis: um educador (Paulo Freire), um
filósofo (Gilles Deleuze) e um poeta (Gustavo Rojas)7. Gustavo Rojas é
um poeta chileno contemporâneo, muito infantil, que honra o tempo
da infância em todas as idades, um tempo presente que é, também, o
tempo da educação e da escrita poética. Por isso tua aproximação é
muito feliz. Rojas inclusive inventou um conceito precioso em relação
ao tempo da infância: “reniñez”: um tempo que não passa, durativo,
atento e sensível à palavra do mundo.
IL: Você “termina” o livro, que, segundo Carlos Skliar, é “una
oportunidade entre lo inacabado y lo inacabable”, deixando que o
próprio Paulo Freire “fale”. Gostaria de pedir para você fazer o mesmo
aqui: trazer Paulo Freire para encerrar essa conversa e inaugurar outros
começos entre quem vai ler esta entrevista.
WK: Antes de terminar, quero te agradecer e te dizer que
gostei muito dessa entrevista, menina. Adorei as tuas perguntas infan-
tis, impróprias, inesperadas, pequenas. E lhe agradeço também que me
permita terminar com Paulo Freire que é uma forma de terminar infan-
tilmente, com esperança, alegria e um sorriso. E, também, com uma
pergunta; ou melhor, com um canto a uma pedagogia da pergunta.
Tomei teu convite literalmente e o que transcrevo é uma fala de Paulo
Freire numa outra entrevista na UNICAMP. O vídeo está disponível no
Canal de YouTube da TV Unicamp e começa dizendo “Video sem trata-
mento”. Nos comentários, afirma-se que a entrevista é de 1985, envol-
vendo o Instituto de Artes e a Faculdade de Educação da Unicamp,

7
O artigo “Tempos da infância: entre um poeta, um filósofo, um educador”, publi-
cado em Educ. Pesqui., São Paulo, v. 46, 2020, está disponível em: <https://www.scielo.
br/pdf/ep/v46/1517-9702-ep-46-e236273.pdf>.

45
enquanto Paulo Freire era professor da Faculdade de Educação da
UNICAMP. Eis o trechinho, que está no minuto 47 do vídeo8:
“Para mim, uma das coisas terríveis da educação que nós esta-
mos vivendo no Brasil – para falar só do Brasil, mas não é só aqui – é
que ela vem sendo, sobretudo, uma educação da resposta e não uma
educação da pergunta… da pergunta fundamental […] a impressão
que eu tenho é que, de modo geral, nós estamos entrando nas salas
com respostas cujas perguntas fundamentais se perderam no tempo e
a gente nem sabe quais foram elas e a gente chega e dá a resposta ao
educando e ele diz “Poxa, nem perguntei!”…
E como sou um menino danado, enquanto terminávamos esta
entrevista, recebi este vídeo e senti desejo de presenteá-lo aos leitores.
Não é de Paulo Freire, mas me faz muito pensar nele9.
Podemos terminar assim, com música coletiva, menina?

8
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5yRyAXPXHmA&feature=youtu.
be>. Acesso em: 29 de ago. 2020.
9
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EHaRdR98gt0>.
1. Paulo Freire e a (sua) infância educadora

Para Patricia Redondo, Arianne,


Silvia Rebagliati e Mariano

Quando pensamos na figura de Paulo Freire vem logo a imagem das


campanhas de alfabetização de adultos, a começar pela experiência
impactante de Angicos em Rio Grande do Norte, e o seu peregrinar em
campanhas alfabetizadoras de jovens e adultos pela África e a América
Latina; logo lembramos também de suas Pedagogias, em especial do
Oprimido, da Esperança, da Autonomia. Trata-se em geral de textos
escritos pensando e sentindo pessoas adultas, excluídas. São algumas
das grandes produções do idealizador da inserção dos enormes contin-
gentes de analfabetos no mundo das letras e, com ele, no mundo da
política. É nessa área de educação de jovens e adultos, popular, do
campo, junto aos Trabalhadores sem Terra e os movimentos sociais,
que o grande mestre pernambucano é mais claramente a grande refe-
rência não apenas no Brasil, mas também na América Latina e em
outros países do mundo.
No campo da educação das crianças, diferentemente, Paulo
Freire perde essa centralidade, o que, em certo modo, é lógico porque
ele não se ocupou especificamente da educação de crianças cronologi-
camente pequenas. Desde o início, seu foco era outro: as pessoas adul-
tas que estavam excluídas da vida política institucional, para que a sua
aprendizagem da leitura das palavras empoderasse a leitura do mundo

47
1. Paulo Freire e a (sua) infância educadora

que a precede; para a inserção dessas mesmas pessoas na socieda-


de política instituída; para que não só pudessem votar, mas também
participar ativamente da vida de uma democracia que merecesse esse
nome. Eis a politicidade da educação: em poucas palavras, a educação
entendida como uma porta de entrada, caminho e mais propriamente
um cenário da vida política; a leitura das palavras em diálogo com a
leitura crítica do mundo.
Contudo, há vários sintomas que permitem suspeitar dessa
aparente desatenção que Paulo Freire teria dedicado à infância, ou
melhor, de sua aparente desimportância para pensar a educação da
infância. Vejamos o primeiro indício, uma fotografia:

A fotografia10 foi tirada em Sobradinho, DF, durante a


Campanha Nacional de Alfabetização, em 1963. O alfabetizando soletra
a palavra tijolo; com uma mão, aponta para uma sílaba do quadro e
com a outra sustenta a sua filha com uma fralda que se confunde, pela
mesma cor, com a camisa do seu pai. A menina descansa no ombro
de quem parece ser seu pai. Dorme talvez. A posição de sua cabeça
espelha a do seu pai, na forma, na luminosidade, na direção aponta-
da. O homem, negro, robusto, sorridente, mostra a mesma firmeza

10
A fotografia está no livro Paulo Freire, anistiado político brasileiro, organizado pelo
Instituto Paulo Freire e a Comissão de Anistia. Ministério da Justiça. São Paulo: Editora
e Livraria Instituto Paulo Freire; Brasília, DF: Comissão de Anistia. Ministério da Justiça,
2012, p. 42.

48
Walter Omar Kohan

e entusiasmo para se alfabetizar que para segurar sua filha. O gesto


que a fotografia deixa perceber é de uma potência extraordinária. A
presença da menina também. Ela não parece pesar ao pai, muito pelo
contrário. Nela, o homem parece encontrar o equilíbrio e a força que
lhe permite apontar, sorridentemente, até o quadro. Impossível calar
algumas perguntas infantis: quem segura a quem? Onde está o sentido
da alfabetização desse homem? Quem está se alfabetizando?
Essa fotografia é um primeiro símbolo de que a infância está
muito presente na pedagogia de Paulo Freire, mesmo não aparecendo
tão visivelmente quanto nesta fotografia. Vejamos outras pegadas. Em
primeiro lugar, a importância que a infância cronológica de Paulo Freire
teve na sua maneira de pensar a educação. Quero dizer (ou lembrar):
o grande mestre da educação de adultos do Brasil e da América Latina
afirma uma e outra vez que se inspirou e foi profundamente marca-
do em suas ideias educacionais pelo modo em que ele foi alfabetizado
enquanto criança pelos seus pais. Com efeito, são diversos os relatos
nos quais Paulo Freire destaca (Freire, 2015; 2013; Freire; Guimarães,
1982) de que forma a maneira como ele foi alfabetizado, ainda criança,
com palavras do seu mundo infantil, esteve presente em suas ideias
sobre a alfabetização e em sua maneira de pensá-la e praticá-la como
educador de jovens e adultos.
Nesses vários relatos autobiográficos, inclusive no final da sua
vida, destaca que se passou muito tempo cronológico desde a sua infân-
cia, mas a lembrança é mais do que nítida: a mãe, Edeltrudes (Trudinha),
e o pai, Joaquim, à sombra de duas mangueiras, espaço livre e despre-
tensioso, no seu quintal (Freire; Guimarães, 1982). Paulo Freire não é
alfabetizado com a cartilha, mas com palavras de seu mundo, e sai de
casa para a escola já alfabetizado (Freire, 2015). Seu início na leitura das
palavras é prazeroso e brincalhão e a leitura das palavras inicia-se em
consonância com a leitura do próprio mundo.
Eis uma segunda suspeita: se esse início educacional, enquan-
to criança, marca Paulo Freire tão profundamente, como ele não teria
nada a dizer sobre a educação das crianças? Uma das vezes em que
a experiência da própria alfabetização é retomada por Paulo Freire
é muito significativa, para o presente texto, porque se trata de uma
intervenção num Congresso Brasileiro de Leitura, em Campinas, em

49
1. Paulo Freire e a (sua) infância educadora

novembro de 1981 (Freire, 1989). Perante educadores adultos, reafirma


a importância de recuperar sua relação com a leitura durante a infância
cronológica. Nesse texto, insiste em que a “leitura” de seu mundo foi
feita infantilmente, ou seja, que ele não foi “um menino antecipado em
homem, um racionalista de calças curtas” (Freire, 1989, p. 16), e que
seu pai e sua mãe alfabetizadores cuidaram para que sua “curiosida-
de de menino” não fosse distorcida por estar entrando no mundo das
letras: a decifração da palavra acompanhava “naturalmente” a leitu-
ra de seu próprio mundo. Na sua alfabetização, não havia espaço para
uma ruptura entre o mundo da vida e o mundo das letras.
Por outro lado, aparece ali mesmo e em tantos outros regis-
tros, um terceiro indício: impacta-nos a sua maneira de manter, entra-
dos os anos, a infância dentro de si mesmo, com as caraterísticas com
que ele pensa a infância: curiosidade, inquietação, criatividade. Paulo
Freire nunca abandona seu jeito menino de ser e de viver, ainda ou
sobretudo nos últimos anos de sua vida, o que lhe valeu, por exemplo,
o título de Menino permanente (Bambino permanente), a ele outorgado
pela Biblioteca Comunale de Ponsacco, Pisa, Itália, em 31 de março de
1990. À época, Paulo Freire estava com 68 anos, já faz muito tempo
que não era um menino cronológico. Mas a distinção faz pensar que a
infância habita em Paulo Freire segundo um outro tempo. Ou que Paulo
Freire habita na infância em outro tempo. Voltaremos sobre o tempo
da infância já perto do fim da presente escrita.
Num texto publicado como prefácio a um livro em inglês de
memórias sobre Paulo Freire (Wilson; Park; Colón-Muñiz, eds. 2010), sua
segunda esposa, Ana Maria (Nita) Araújo Freire, rende tributo a essa
relação íntima que durante toda sua vida o grande mestre pernambu-
cano manteve com a infância, o que o título desse texto capta de forma
clara e diáfana: “Paulo Freire, o eterno menino” 11. Desse modo, nascem
mais elementos para consolidar nossas suspeitas: como alguém que se
preocupou obstinadamente por alimentar a infância dentro de si, que
habita a infância para além da sua própria idade, poderia não ter nada a
nos dizer sobre a educação da infância?

11
O texto está publicado em inglês e em português. Cf. Wilson; Park; Colón-Muñiz,
eds. 2010, p. xix-xxvi.

50
Walter Omar Kohan

Certamente, não somos os primeiros a apresentar essa suspei-


ta e vários trabalhos têm mostrado nos últimos anos a importância de
Paulo Freire para a educação das crianças (Mafra, 2017; Peloso; Paula,
2011; Santos Neto; Silva, 2007). Eu mesmo já tenho apresentado algu-
mas ideias nesse sentido (Kohan, 2019). De fato, desde o seu título,
Paulo Freire: um menino de 100 anos, o presente livro mostra a necessi-
dade de pensar essa relação. Espero que ele provoque um sem-número
de entrelaçamentos.
Aqui busco recriar e relançar essa leitura que, quem sabe, possa
abrir outras portas para os interessados numa educação da infância
(ou teríamos que dizer, melhor, numa “infância da educação”?). Para
isso, apresentarei, a seguir, três pontos em que, penso, Paulo Freire
pode ser inspirador para essa educação da infância/infância da educa-
ção. Esses pontos são: a) a importância do perguntar(se); b) a educa-
ção entre iguais; c) o educador menino e a educadora menina. A seguir
desdobramos cada um desses pontos.

A importância de perguntar-se

O educando inserido num permanente processo de educação tem


de ser um grande perguntador de si mesmo.

P. Freire; A. Faundez, 2017, p. 74

Paulo Freire escreveu livros monográficos e também livros


dialógicos, que ele chama de “livros falados”. São os livros que surgem
da transcrição de uma conversa. Por isso, também resultam livros mais
vivos, curiosos, abertos e, nesse sentido, mais infantis. De passo, eis
uma contribuição também de Paulo Freire à infância e à escrita, na
forma da infantilidade – curiosidade, inquietude, abertura – do estilo
que seus livros falados apresentam. Neles, importam tanto, ou mais, as
perguntas que as respostas e a forma é também um conteúdo.
Um desses livros, Por uma pedagogia da pergunta, é talvez o
livro mais menino entre os livros meninos. Por um lado, porque se trata

51
1. Paulo Freire e a (sua) infância educadora

justamente da pergunta e o perguntar que é uma atividade propria-


mente infantil. Por outro, porque a infância ou meninice adquire um
carácter singular nesse livro. O diálogo tem lugar com o educador
chileno Antonio Faundez, seu sucessor no Departamento de Educação
do Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, Suíça. A conversa, reali-
zada em agosto de 1984, concentra-se no trabalho de Paulo Freire na
América Latina e na África, na tarefa de “descolonização das mentes e
dos corações”, como bem descreve Moacir Gadotti na apresentação
do livro (Freire; Faundez, 2017), pois uma vez expulso o colonizador de
fora, ainda é preciso o trabalho mais árduo: descolonizar nosso inte-
rior, tirar o colonizador que temos internalizado.
Para isso, é fundamental uma educação que seja ela mesma
curiosa e que alimente a curiosidade e o assombro de educadores e
educandos. A narração de uma anedota durante um encontro de
formação de educadores populares em área periférica de Buenos Aires
permite que Paulo Freire introduza a questão fundamental, vinda de
um morador de uma favela da periferia de Buenos Aires: o que significa
mesmo perguntar? (Freire; Faundez, 2017, p. 70). É a questão primeira,
principal, de toda a educação, porque é quando temos uma pergunta
que começamos a buscar saber e sair do lugar que habitamos. Por isso,
para Paulo Freire, o perguntar não pode ser apenas um jogo intelectu-
al, mas uma postura existencial e epistemológica que dá sentido à vida
de educadores e educandos quando vivem a pergunta, a indagação
e a curiosidade como partes deles mesmos e quando esse perguntar
permite iniciar um processo de conhecimento relacionado à transfor-
mação efetiva da própria realidade.
A questão, justamente, não seria introduzir “a hora das pergun-
tas” no currículo ou burocratizar e instrumentalizar didatizando o ato
de perguntar, mas “reconhecer a existência como um ato de pergun-
tar!” (Freire; Faundez, 2017, p. 74). Assim, os educadores curiosos,
perguntadores, respeitam toda e qualquer pergunta, por mais ingê-
nua que pareça, perguntas que partem de colocar em questão a expe-
riência cotidiana, a começar, diz Antonio Faundez, “dessas perguntas
corporais que o corpo nos faz” (Freire; Faundez, 2017, p. 71). São as
perguntas mais “óbvias” e, ao mesmo tempo, as mais potentes para
problematizar o que a existência em comum banalizou, naturalizou

52
Walter Omar Kohan

ou normalizou. Uma tal educação seria a raiz da transformação do


mundo, toda vez que essas perguntas que são colocadas para proble-
matizar os modos de existência naturalizados irão nutrir modos de
vida revolucionários, desconformes com aqueles modos de existência
tidos como normais.
Parafraseando Paulo Freire, quanto mais se pergunta, mais se
pergunta. Senão este próprio exercício de escrita e pergunta que o
diga: onde e quando nascem as perguntas na vida de um ser humano?
Qual é o momento da vida em que a curiosidade aflora com mais força
numa existência? Certamente, na infância. Porém essa resposta lança
novas perguntas: o que é a infância? Há infância ou infâncias? Todas as
infâncias vivem da mesma forma a pergunta e o perguntar? Uma escri-
ta pode ter infância?
É importante alimentar nas crianças seu gosto de perguntar,
como fazemos projetos de filosofia para crianças no mundo inteiro
(ver, por exemplo, Carvalho, 2020; Mendonça; Carvalho, 2019; Hawken,
2019; Paiva; Antunes, 2019). Porém, realidades como a brasileira
mostram que não são todas as crianças que têm condições de viver
uma vida infantil, curiosa, perguntadora e que, de fato, muitas pesso-
as descobrem as perguntas e o perguntar sendo adultas e, com isso,
experienciam a infância em uma idade não cronologicamente infantil.
Experimentamos isso num projeto de extensão na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ), desde 2007. Nesse projeto de filo-
sofia na escola (“Em Caxias a filosofia en-caixa?”), enquanto fazíamos
experiências de filosofia com turmas de EJA numa escola municipal em
Duque de Caxias, RJ, uma aluna com mais de setenta anos nos dizia
que, naqueles exercícios, tinha se feito perguntas pela primeira vez na
sua vida (Kohan; Wozniak, 2011).
Por essas razões, pensamos que uma educação de verdade é
uma educação na pergunta e no perguntar e, por isso, ela é também uma
educação infantil. Assim concebida, uma educação de verdade é também
uma educação infantil, não porque ela atenda a sujeitos cronologicamen-
te infantis, mas porque cuida da dimensão infantil da vida que pessoas,
de qualquer idade, através das perguntas e do perguntar, podem encon-
trar. Desse modo, uma pedagogia da pergunta devém uma pedagogia
da infância, para a infância, com a infância, desde a infância, através da

53
1. Paulo Freire e a (sua) infância educadora

infância. Não é uma pedagogia que toma a infância como seu objeto,
mas uma pedagogia que se inspira na infância, que toma da infância sua
força perguntadora e vive, assim, da potência de uma vida infantil; uma
educação que encontra, através das perguntas e do perguntar, a infanti-
lidade da vida através de uma pedagogia na e da infância.
Há, naquele mesmo livro falado (Freire; Faundez, 2017), pelo
menos outros dois aspectos que reforçam a importância da infância na
pedagogia freireana. Esses dois aspectos destacam, ao mesmo tempo,
outras dimensões do significado que a infância tem para a educação.
Vejamos quais são eles.
O primeiro aparece quando, repassando com Antonio Faundez
diversas experiências de alfabetização das classes populares na América
Latina, Paulo Freire lembra de várias experiências de alfabetização em
que os alfabetizadores, jovens, alfabetizam seus pais e mães. Com efei-
to, os mestres populares infantis, jovens, recriam a infantilidade de
uma educação comprometida com a transformação das condições de
vida. A minoridade educa a maioridade. Freire e Faundez apontam que,
nas classes populares, os maiores de idade adoram ser alfabetizados
pelos menores de idade, pelos que eles próprios trouxeram ao mundo.
Literalmente, a infância educa.
O segundo é quando Paulo Freire se refere à revolução nica-
raguense. A conversa acontece em agosto de 1984, no início de um
processo revolucionário que depois segue caminhos menos claros,
menos revolucionários, que talvez não tenham respeitado a opção do
povo nicaraguense, como pede Freire nesse diálogo com Faundez. Mas
na efervescência dos primeiros anos desse processo revolucionário, em
particular na revolução educacional e cultural que está acontecendo no
país centro-americano, Paulo Freire vê a revolução sandinista como um
“testemunho importante em torno de como reinventar uma socieda-
de” (Freire; Faundez, 2017, p. 235). E lembra seu depoimento ante o
povo nicaraguense, alguns anos atrás, de como essa revolução pare-
ce-lhe uma revolução menina, “pelas provas que estava dando de sua
curiosidade, de sua inquietação, de seu gosto de perguntar, por não
temer sonhar, por querer crescer, criar, transformar” (Freire; Faundez,
2017, p. 235). Lembra também seu pedido aos nicaraguenses para que
não deixem envelhecer a revolução e mantenham ela menina.

54
Walter Omar Kohan

Assim termina o livro Por uma pedagogia da pergunta: exaltan-


do a meninice da coisa mais séria que pode existir no mundo humano:
uma revolução. Assim Paulo Freire define o sentido principal de uma
educação revolucionária: o cuidado com a meninice da revolução, com
sua capacidade de se manter viva, engajada com a pergunta e com o
perguntar-se, seu não ter medo de sonhar, criar, transformar. A infân-
cia/meninice é o maior elogio de uma revolução, quase que uma condi-
ção essencial para que ela mantenha a sua força política e a sua capaci-
dade de se manter viva.
Das análises até aqui apresentadas podemos, então, perceber
alguns sentidos principais da infância/meninice para Paulo Freire, tanto
para a educação das crianças quanto para uma educação infantil de
pessoas de qualquer idade, num sentido da infância que extrapola as
crianças cronológicas. A infância cronológica costuma ser o momento
em que as perguntas nascem vivas, impulsivas, inquietas. Nesses casos,
uma das tarefas éticas e políticas de um educador ou educadora é gerar
as condições para que essas perguntas encontrem acolhida e sensibi-
lidade, para que elas possam ser compartilhadas com outras e outros
e desdobradas em muitas outras perguntas que ajudem a entender e
a colocar em questão o mundo que se vive. Quando as perguntas não
surgem ou a infância cronológica está obturada, a educadora cria as
condições para lembrá-la, recriá-la ou nascê-la, sem importar a idade
daquelas que encontra no seu caminho.

A educação entre iguais

As crianças costumam ser baixinhas e é muito tentador olhar


para elas de cima para baixo. A questão que importa, claro, não é apenas
física, mas antes cognitiva, epistemológica, ética, política: muitos adul-
tos pensam que, por virem de pessoas de tamanho menor, as pergun-
tas das crianças seriam expressão de sua fragilidade epistemológica
(não sabem) e/ou ético-política (não podem)… e, assim, colocam as
crianças num lugar de incapacidade, de des-importância ou até de
incontinência… poderíamos ampliar os adjetivos e, com eles, as dimen-
sões em que se manifesta esse olhar de cima para baixo em relação às

55
1. Paulo Freire e a (sua) infância educadora

perguntas das crianças. E a questão não diz apenas respeito às pergun-


tas, mas a tantas outras coisas: direitos, tempos, espaços. Infelizmente,
a educação é um dos dispositivos privilegiados para essa operação
empequenecedora do outro e da outra considerados menores.
A questão que estamos colocando diz respeito também aos
pressupostos políticos da educação na medida em que se trata de
perguntar-se se, de fato, vemos as crianças como seres com a mesma
capacidade e potência ou como seres menos capazes e potentes (com
menor poder de pensar, de conhecer, de agir, de partilhar um mundo
comum). Claro que o problema não diz respeito apenas às crianças,
mas também a todos aqueles sujeitos “colonizados” considerados
“menores”. Crianças aqui poderia querer simbolizar tantas outras
figuras colonizadas: indígenas, negros, pobres, sem terra, mulheres
e todas aquelas categorias carregadas de pré-conceito e desprezo.
Certamente, não se trata de uma questão relevante apenas para a
educação. Mas a temática deste livro é a educação da infância e, por
isso, nela nos concentramos.
A questão nos leva a uma espécie de condição que, penso,
Paulo Freire colocaria em relação com a educação das crianças. É um
problema que diz respeito a como nos deparamos frente a elas, como
as observamos, em que lugar as situamos. Poderíamos colocá-lo na
forma de uma pergunta: educamos as crianças a partir de uma confian-
ça na sua igual capacidade e potência ou desconfiamos do que elas
são capazes e podem? As educamos partindo de sua potência e capa-
cidade ou de um pré-conceito sobre sua presente incapacidade, o que,
em definitivo, as colocaria num lugar de impotência? É, mais uma vez,
uma questão política, um pressuposto político da educação. Para dizer
o que pensamos sobre essas questões em palavras simples: só honra-
mos uma pedagogia da pergunta quando colocamos as crianças como
iguais, em pé de igualdade, nem por cima nem por baixo.
Nesse sentido, Paulo Freire inscreve-se na tradição da escola
filosófica popular latino-americana surgida nos séculos XVIII e XIX. Um
nome destacado nessa tradição é o de Simón Rodríguez, para quem
não é a escola que forma os cidadãos, mas os cidadãos que fazem a
escola (Rodríguez, 2001). Rodríguez sabe que se a cidadania é coloca-
da como um objetivo, então ela nunca chegará porque será colocada

56
Walter Omar Kohan

fora dos que precisam tê-la para poderem estar na escola em pé de


igualdade. A igualdade de todos e qualquer um, independentemente
de sua idade (etnia, gênero, classe social etc.), é a condição de possi-
bilidade de uma educação emancipadora, popular, e não a sua finalida-
de. Quando partimos desse pressuposto verificamos que qualquer um
está em condições de aprender o que precisa aprender para tornar-se
quem é: apenas é necessário que se gerem as condições para que isso
seja possível. Todos podem igualmente aprender, como gosta de dizer
a educadora gaúcha Esther Pillar Grossi (2006).
No seu último livro, a Pedagogia da autonomia (Freire, 1997),
o andarilho da utopia é muito claro: “Ninguém é superior a ninguém”
(p. 119), afirmação apresentada como “uma das raras certezas das que
estou certo” (Freire, 1997, p. 119). Para um Freire de raras e excepcio-
nais certezas, a igualdade como princípio de uma educação popular é
uma dessas singulares certezas.
O que significa “Ninguém é superior a ninguém”? Que tipo de
superioridade (forma da desigualdade) é ali negada e que forma de
igualdade é ali, indiretamente, afirmada? Primeiro, um esclarecimen-
to: a verdade de “ninguém é superior a ninguém” supõe também a
verdade de “ninguém é inferior a ninguém”. Para além disso, a verda-
de dessas duas afirmações supõe também a verdade de uma terceira:
“todos somos iguais”. Pode parecer menos evidente, mas desprende-
-se com a mesma lógica que as duas outras afirmações: se não há supe-
riores e inferiores, então só podem haver iguais. Para perceber essa
conexão, vale a pena notar que a igualdade não se opõe à diferença,
mas à desigualdade. “Ninguém é superior a ninguém” e “ninguém é
inferior a ninguém” significam que não há e não pode haver desiguais
em educação, ou seja, que todos somos iguais. É justamente entre
iguais que emergem as diferenças interessantes.
Claro, as sociedades capitalistas em que habitamos vivem de
desigualdades e a afirmação de que todos somos iguais pode parecer
logicamente muito consistente, mas irreal. Nesse sentido, é preciso
situar o que Paulo Freire parece estar querendo dizer: não se trataria de
um princípio explicativo da realidade, mas de um princípio generativo:
se queremos afirmar uma educação revolucionária, transformadora,
precisamos começar por interromper essas desigualdades dominan-

57
1. Paulo Freire e a (sua) infância educadora

tes. É justamente a vivência da igualdade gerada por esse princípio que


pode provocar transformações no mundo social.
Assim, só entre iguais podem mostrar-se diferenças desejáveis.
Repito: a igualdade se opõe à desigualdade, mas ela é uma condição das
diferenças interessantes, aquelas que só se podem manifestar entre
iguais porque, entre desiguais, algumas diferenças se impõem sobre
outras, mas elas não conversam, não dialogam. Só os iguais conver-
sam. Entre desiguais há ordens, explicações, mandatos. O diálogo só
existe entre iguais que, na relação dialógica, explicitam e atendem às
suas diferenças.
De forma tal que a igualdade é um princípio infantil da educa-
ção, em particular quando se trata da educação das crianças. Mas não
só. Digo “infantil” porque ele questiona a normalidade das desigualda-
des naturalizadas nas relações pedagógicas institucionalizadas a qual-
quer idade, entre os que gostam de se colocar por cima dos outros e
justificam essa posição em relação a um mais (de saber, de poder, de
viver) que eles teriam em relação a outros sujeitos infantilizados no
sentido negativo da palavra, sem importar a sua idade.

O educador menino e a educadora menina

Há diversas formas em que Paulo Freire conserva e mantém


uma certa fidelidade à infância durante toda sua vida. Por um lado, a
infância mantém-se viva nele na sua maneira de pensar e sentir a educa-
ção que, segundo ele mesmo, esteve sempre espelhada na maneira
em que ele foi educado pelo seu pai e pela sua mãe quando ele era
criança, à sombra de uma mangueira, no quintal da casa da família no
bairro de Casa Amarela em Recife. Assim, Paulo Freire, o grande educa-
dor da educação popular de jovens e adultos, inspirou-se para pensar
essa educação na forma em que, menino, foi introduzido no mundo
das letras pela sua mãe e seu pai com palavras tomadas do seu mundo
infantil. Contando com essa inspiração, como seria possível que ele não
tivesse nada a nos dizer sobre a educação das crianças?
Por outro lado, Paulo Freire cuidou até os últimos dias de sua
vida de manter viva a infância nele. Essa presença da infância percebe-

58
Walter Omar Kohan

-se de muitas formas. Num sentido, no jeito menino de estar sendo, de


se relacionar com as palavras e as coisas, com as pessoas e o mundo;
na sua obstinação em questionar-se a si mesmo e aos outros. Essa sua
forma menina se expressa assim no seu modo curioso e inquieto de
ser, na sua paixão por perguntar e se perguntar pelas coisas do mundo
e da vida. Em outro sentido, ela expressa-se, também, pela sua ousadia
e afinco em sonhar e lutar, até o final da sua vida, por uma vida que
seja mais vida para todos os seres humanos, em particular os e as das
classes mais castigadas.
Dessa forma, Paulo Freire nasce e cresce mantendo-se menino,
vivo, curioso, atento, engajado sempre na construção de uma peda-
gogia menina, infantil, uma pedagogia menina da pergunta. A infância
não é, para o educador de Pernambuco, uma questão de idade, de ter
poucos anos, de quantificação do tempo. Para ele “ninguém é velho
só porque nasceu há muito tempo ou jovem porque nasceu há pouco”
(Freire, 2013, p. 97); o que determina o critério de velhice ou juventude
é a maneira como pensamos o mundo, se, como velhos, nos acomoda-
mos e deixamos de nos questionar a respeito dele ou se continuamos,
insatisfeitos e mobilizados, lutando para que o mundo se aproxime
de nossos sonhos.
Assim, uma vida curiosa, incansável, insatisfeita, mobilizada,
vivaz, esperançosa é uma vida infantil sem importar a idade cronoló-
gica de quem a vive. Uma vida infantil é uma vida que começa tudo de
novo ou que pensa que sempre é tempo para começar. Uma vida infan-
til é uma vida que vê um sinal de vida na inquietação e na mudança e um
sinal de morte na quietude e na falta de mudança.
Por isso, a infância não indica uma quantidade de tempo vivi-
do, mas uma forma de se relacionar com a vida no tempo a qualquer
idade. Em uma das cartas pedagógicas que compõem a Pedagogia da
indignação, já muito afastado da infância cronológica, com 75 anos,
Paulo Freire refere-se ao dinamismo da vida urbana, às transforma-
ções que ela exige para pessoas como ele, de mais de setenta anos,
e conclui: “É como se hoje fôssemos mais jovens do que ontem”
(Freire, 2000, p. 31).
Eis uma outra declaração precisa de infância, uma definição
aguda: a infância é, justamente, uma forma de experimentar o tempo

59
1. Paulo Freire e a (sua) infância educadora

à medida que passamos por ele. O tempo passa e, com ele, podemos
manter-nos ou aproximarmo-nos da infância se nossa vida se abre às
perguntas, às inquietações, às mudanças. Podemos viver uma vida
infantil já próximos da morte e podemos estar afastados da infância
mesmo pouco tempo depois de termos nascido.
De fato, Paulo Freire é um desses exemplos em que o percorrer
dos anos não o afasta, mas, ao contrário, o aproxima da infância (mais
ainda, já que, de fato, nunca se afastou dela). Ele mesmo afirma esse
compromisso numa palestra sobre Direitos Humanos, na Universidade
de São Paulo (USP), em junho de 1988, ou seja, com 66 anos: “Eu
acho que uma das coisas melhores que eu tenho feito na minha vida,
melhor do que os livros que eu escrevi, foi não deixar morrer o meni-
no que eu não pude ser e o menino que eu fui, em mim.” (Freire,
2001, p. 101). Prestemos atenção: não deixar o menino que fomos é
um tributo à infância e à nossa vida percebida como algo comum; não
deixar morrer o menino que não podemos ser é um tributo a todas
as infâncias, a todas as vidas concebidas como uma com-unidade e,
também, às possibilidades da infância e a vida ser de uma outra manei-
ra do que elas são.
Nesse gesto atento à infância percebemos, por um lado, a sensi-
bilidade de Paulo Freire, que nunca parece estar pensando apenas em si
mesmo, mas sempre sensível a outras vidas, em particular às excluídas,
oprimidas, esfarrapadas. Percebemos sua sensibilidade e também sua
generosidade no seu desejo de se envolver com a humanidade inteira
na esperança de que a humanidade encontre condições de vida mais
humanas para todos. Não basta manter o menino que fomos na própria
vida: é preciso também manter, cuidar, dar vida a todos os meninos
que não podemos, mas que poderíamos ser.
Percebemos nessa intervenção, também, uma postura do
educador em relação à educação da infância. Nessa afirmação de Paulo
Freire, a infância que nós, os educadores e as educadoras, usualmen-
te, colocamos fora de nós como o que precisa de ser educado, encon-
tra-se, dentro de nós. Não se trata de apenas nos ajudar a educar a
infância dos meninos e das meninas que encontramos na sala de aula,
quanto de uma infância que nos educa a nós mesmos, adultos e adul-
tas, dentro e fora das salas de aula. Mais ainda: ela é uma condição para

60
Walter Omar Kohan

que uma vida seja digna de ser vivida; é o que nos permite realizar “uma
das melhores coisas que podemos fazer de nossas vidas”.
Por isso, a infância para Paulo Freire perpassa e muito o hori-
zonte dos movimentos da cronologia. É verdade: Paulo Freire não se
ocupou explicitamente da educação das crianças cronológicas. Mas
o educador ou educadora que Paulo Freire quer para educar meninos
e meninas de todas as idades têm um caráter infantil sem o qual eles
não seria o que é. Essa infantilidade do educador ou educadora não diz
respeito ao seu número de anos ou a uma etapa da vida, mas a uma
forma de vida que ele caracteriza como curiosa, inquieta, com gosto de
perguntar e de querer crescer, criar, transformar e sem temer sonhar
(Freire; Faundez, 2017). Assim, uma educadora ou educador que se
preze não pode não ser infantil: um educador ou educadora de verda-
de é um educador infantil porque ele ou ela habitam a curiosidade, a
inquietação, o gosto de perguntar e criar que constituem a infância de
todas as idades.
Palavras para terminar começando: perguntando? Palavras
com perguntas, inquietação, sentido de proximidade e abertas para a
mudança. Escrita que ensaia um tempo de infância?
Buscamos, com um texto infantilmente simples, modesto,
leve, inquietar e inquietarmo-nos a respeito da relação de Paulo Freire
com a infância. Tentamos fazer isso na forma e no conteúdo com que
nossas preocupações encontraram a escrita; ou deveríamos dizer que
a escrita nos encontrou nessa forma? Seja como for, esperamos, assim,
ter afirmado uma escrita infantil, uma certa infantilidade da escrita,
ela mesma inquieta, incerta, curiosa tanto quanto as suas perguntas:
será que conseguimos algo dessa infantilidade esperada, almejada e,
através dela, avivar certa infância em nós e nos leitores desse texto
a respeito de uma figura tão educativamente infantil e infantilmente
educadora quanto a de Paulo Freire?
Como sabê-lo? Por que sabê-lo? Para que sabê-lo? Apenas feita
aquela pergunta, algo da infância que está pulsando em nós sacode-se
e grita na forma de novas perguntas: será que essas perguntas podem
(precisam) ser respondidas? Afinal, a infância pode ser localizada em
algum ponto fixo? Será que não há nela algo de inapreensível, uma
deixa que sempre escapa qualquer pretensão de captura ainda, ou

61
1. Paulo Freire e a (sua) infância educadora

sobretudo, aquelas buscas feitas em seu próprio nome, como a que


aqui estamos ainda fazendo? Ela pode ser capturada, reconhecida,
medida e continuar sendo (ainda) infância? Porque se o fosse, nesse
próprio gesto da captura, ela não estaria perdendo fatalmente algo do
seu caráter infantil?
Seja como for, a infância parece sempre sobreviver às preten-
sões de captura na forma de perguntas que teimam uma e outra vez
em mostrar a sua cara mais infantil ao mundo. As palavras que estão
sendo aqui escritas sem que eu possa detê-las que o digam: Paulo
Freire, educador da infância? O que estamos escrevendo? Não seria
mais interessante perguntar: Paulo Freire, infante da educação? Parece
que não queremos (ou podemos) entrar em razões: uma pergunta
mais infantil do que a outra. Seguimos, contudo, obstinadamente aten-
tos aos rastros de infância: Paulo Freire, infantilmente educador? Não
temos jeito: a infância parece nos desbordar, não poder nos abando-
nar; Paulo Freire, educativamente infantil? Mais uma vez, a infância só
cresce para dentro da infância: outra vez, uma pergunta mais infantil
do que a outra.
E pensar que a escrita começou com algumas suspeitas, uma
fotografia e algumas perguntas. Ou teríamos que dizer que este texto
começou bem antes, com um convite de um menino (Jason) e uma
menina (Marta) educadores? Quando e onde começamos a começar? As
perguntas não param. Eis a força primeira, geradora, imbatível da infân-
cia: uma força de nascimentos sem fim. Assim, aparecem novamente,
entre as perguntas, as partes quase adultas de nossa escrita infantil: a
importância do perguntar(-se); a igualdade como condição da educação
infantil; meninas e meninos que educam a qualquer idade.
Já é hora de terminar. O que estou escrevendo? Hora? Desculpe,
amigo leitor, infantil. Desculpe, Paulo Freire. Quis dizer: já é tempo de
terminar. Lembro-me agora de um poeta português que uma profes-
sora pintou numa camiseta que me foi oferecida depois que termina-
mos um curso sobre a infância, na Universidade dos Açores, essas ilhas
infantis no meio do Oceano infinito. A camiseta diz: “A minha vida não
tem idade. Tem tempo. E só por isso ainda é pequenina.”.
A palavra, infantil, leva na camisa o nome do poeta açoriano
Vitorino Nemésio. A frase poderia muito bem levar a assinatura do

62
Walter Omar Kohan

educador pernambucano Paulo Freire, que viveu uma vida sem idade e
cheia de tempo. O que significa dizer que viveu uma vida cheia de infân-
cia. Pois a infância que educa não tem idade nem se mede pela passa-
gem das horas, dos dias, dos anos… a infância educa em outro tempo,
um tempo próprio… de presença e presente. Um tempo infantil. Um
presente no tempo. Um tempo de pura presença.
O que está acontecendo conosco agora neste delírio de afir-
mar a infância e tirá-la do seu reino das perguntas, inquietas, curiosas?
O que está acontecendo com nossa escrita infantil? Felizmente, ainda
estamos a tempo de voltar a infância: ou melhor, sempre há um tempo
sem idades para podermos habitar a infância. Basta lembrar e atentar
para a infância do mundo. Ensaiamos esse tempo para terminar infan-
tilmente de escrever: o que faz afinal a infantilidade de uma escrita?
Sua forma? Sua vida? Seu tempo? Onde está presente a infantilidade da
escrita? Em que tempo vive uma escrita infantil? Sob que forma pode
se escrever uma vida infantilmente educadora como a de Paulo Freire?

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2. A Pedagogia do oprimido e o amor

Para Nora e Francisco Fuoco

Paulo Freire afirmou em uma das suas últimas entrevistas: “Eu gostaria
de ser lembrado como um sujeito que amou profundamente o mundo
e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas, a vida…”12. O depoimen-
to é importante porque marca um desejo profundo, último, sobre o
próprio legado: “Eu gostaria de ser lembrado” é uma forma de dizer
“assim quero que me recordem”, que me guardem no coração…
Esse desejo de lembrança se expressa na forma de alguém que amou
profundamente o mundo e os seres que o habitam. O elenco é expres-
samente detalhado e inclui além dos seres humanos, os reinos animal
e vegetal e parece, em seu caráter minucioso e pormenorizado, querer
dar conta das mais diferentes formas de vida, até culminar com a vida
mesma como membro do reino dos seres amados: a vida sem mais,
uma vida, qualquer vida, todas as vidas. Como se Paulo Freire afirmasse
que gostaria de ser recordado como alguém que amou toda e qualquer
expressão da vida neste mundo.
Esse desejo de uma lembrança puxou em mim uma outra
lembrança de um outro desejo: foi algo que me disse Lutgardes Costa

12
O depoimento está disponível em vários canais em Youtube. O Instituto Paulo
Freire, por exemplo, fez com ele um clip para o dia do meio ambiente: <https://www.
youtube.com/watch?v=J170pf5e5No&ab_channel=Inst.PauloFreire>. Acesso em: 15
jun. 2021.

65
2. A Pedagogia do Oprimido e o amor

Freire, o filho caçula de Paulo Freire, em uma entrevista que fizemos


presencialmente no Instituto Paulo Freire, em São Paulo, em novembro
de 2018, e que depois foi publicada como introdução ao meu livro Paulo
Freire mais do que nunca (Kohan, 2019). Durante a entrevista, Lutgardes
lembrava o tempo em que ele queria estudar música e temia que seu
pai pudesse pretender uma outra avenida para sua vida; mas, quando
conversaram, a resposta de Paulo Freire a esse desejo de Lutgardes de
tocar bateria e ser músico foi muito tranquilizadora para a preocupação
do filho: “tudo bem, meu filho. Você pode fazer o que você quiser. Mas
me prometa uma coisa: que isso que você vai fazer vai ser feito com
amor” (Kohan, 2019, p. 45). Lutgardes poderia estudar o que ele bem
entendesse; a questão não era o que ele estudaria, mas a forma em que
se dedicaria ao estudo, a paixão com que o faria: a condição era, então,
estudar amorosamente qualquer que fosse a matéria ou assunto a ser
estudado. Assim, o que importava não era o que estudaria, mas como
o faria e, mais especificamente, se estudaria ou não, qualquer coisa que
fosse, com amor.
Há, talvez, um fio comum entre as duas respostas, mas deixa-
remos isso por enquanto, porque vem uma outra lembrança: a de
que estamos escrevendo para uma edição especial de Pedagogia do
oprimido a convite da Editora Paz e Terra. E penso que um leitor aten-
to desta nova edição logo pode estar considerando: “tudo bem com
essas lembranças, até que são interessantes e simpáticas, mas o que
elas têm a ver com a Pedagogia do oprimido? Qual a conexão entre
a publicação desta nova edição e o fato de Paulo Freire ter declara-
do, numa entrevista pouco antes de morrer, ou seja, quase cinquenta
anos depois de ter escrito o original da Pedagogia do oprimido, que
ele queria ser lembrado como um sujeito que amou profundamen-
te as diferentes formas de vida que habitam o mundo e até a vida
mesma; e ainda uma outra lembrança de uma conversa com o filho
dele em que destacava que poderia estudar qualquer coisa, desde que
o fizesse com amor?
Pois bem, a pergunta – como todas as perguntas – é legítima e
merece ser expressa e escutada. E, como toda pergunta, quando escu-
tada atentamente, permitirá que iniciemos um caminho no pensamento
e na escrita e, neste caso, propiciará que nos conectemos com uma

66
Walter Omar Kohan

linha que percorre a Pedagogia do oprimido desde o seu início até o fim,
para lembrarmo-nos, talvez, que o amor é também um conceito prin-
cipal para ler e apreciar esse livro. Como (quase) todas as perguntas,
ela não tem uma resposta única e esperamos que o caminho que aqui
oferecemos não obstrua outros possíveis caminhos que o leitor possa
seguir por si próprio. De nossa parte, desdobraremos um ensaio para
traçar, em dois momentos, caminhos no pensar que essa pergunta nos
sugere. Num primeiro momento, relevaremos as principais passagens
em que aparece o amor na Pedagogia do oprimido: será uma espécie
de relevo descritivo dessas aparições; num segundo momento, inspi-
rados no Elogio ao Amor, do filósofo marroquino Alain Badiou, leremos
essas aparições do amor no livro que nos ocupa tentando perceber um
sentido significativo da maneira em que Paulo Freire concebe o amor.
Finalmente, tiraremos algumas considerações que recuperam ambos
os momentos, a partir de uma última e extraordinária aparição do amor
no final da Pedagogia do oprimido.

Um recorrido pelo amor afirmado na Pedagogia do oprimido

A palavra amor já aparece quase desde o início da Pedagogia do


oprimido, nas Primeiras Palavras, que Paulo Freire escreveu no Outono
de 1968, em Santiago do Chile. Ali é mencionado o amor em relação a
eventuais críticos do livro, que pensariam que a Pedagogia do oprimido
está perdida ao falar do amor quando se trata da libertação dos seres
humanos (Freire, 1970, p. 21). Ou seja, Paulo Freire sente a necessidade
de justificar porque escrever sobre o amor é necessário num livro que
se pretende revolucionário. É um sinal de que não era algo comum ou
esperado, assim como da importância fundamental que tem o amor
para o educador pernambucano.
Pode ser que alguém pense que a presença do amor nas
Primeiras Palavras do livro não seja o bastante. Alguns dados podem,
talvez, ajudar a esses que duvidam da importância do amor na Pedagogia
do oprimido: só a palavra amor aparece mais de trinta vezes no livro. Se
incluirmos o infinito amar, são quase quarenta aparições. Contudo, nós
mesmos alçaríamos a mão em sinal de protesto: muito dificilmente a

67
2. A Pedagogia do Oprimido e o amor

quantidade de vezes que um termo aparece pode ser, por si só, indica-
tivo de sua importância numa obra.
É preciso encontrar argumentos mais qualitativos e de maior
peso em nosso caminho. Vamos à presença do amor no conteúdo do
livro. Já no primeiro capítulo, o amor aparece como uma força que
acompanha a rebelião dos oprimidos que, paradoxalmente, poden-
do ser tão violenta quanto a violência da opressão que a provoca,
pode também inaugurar o amor, na medida em que, se liberando
da opressão, a classe oprimida libera também a classe opressora da
falta de humanidade, que está implícita num mundo opressor. Assim,
o amor é uma arma das oprimidas e dos oprimidos, que paradoxal-
mente alcança e afeta também as pessoas opressoras (Freire, 1970,
p. 46). Assim, o amor parece dotado de uma força extraordinária, a
maior delas sendo a das contradições da sociedade opressora que ele
consegue superar.
Na verdade, não é que não exista amor entre a classe opres-
sora; ele existe, mas encontra-se dentro de um mundo necrófilo, que
ama a morte e não a vida (Freire, 1970, p. 74); constitui, portanto, um
“amor às avessas” (Freire, 1970, p. 50), um contra amor, um anti-amor.
Haveria duas formas de expressão do amor: o amor à vida e, sobre-
tudo, a uma vida justa, digna e humana, que é sentido pelas classes
oprimidas; e o amor à morte, que ama controlar, mecanizar e tomar
posse da vida; dessa forma, oprime a vida e, portanto, mostra que ama
verdadeiramente a morte.
A necrofilia da classe opressora nos lembra a necropolítica,
termo trabalhado pelo pensador camaronês Achille Mbembe, para dar
conta de um poder que se exerce para determinar quem pode viver e
quem deve morrer. Mbembe descreve vários dispositivos do mundo
contemporâneo instaurados para provocar o aniquilamento de grupos
sociais específicos (Mbembe, 2018). A necropolítica afirma-se sobre a
necrofilia e a torna uma política do Estado de extermínio. Na necro-
política, o próprio Estado ama a morte: o que vivemos neste triste
presente em que o atual Governo Federal tem aproveitado a pandemia
do COVID-19 como uma oportunidade de aprofundar suas políticas da
morte; seu discurso trata de minimizar a importância e a letalidade do
vírus que mata; descuida ou diretamente ataca as políticas de cuidado

68
Walter Omar Kohan

e prevenção do contágio; retarda ou relativiza a importância da vacina-


ção em prol de tratamentos cientificamente comprovados como inócu-
os ou até perigosos. Em outras palavras, essa política ama e protege o
vírus que mata, especialmente quando ele se dirige à população negra,
pobre, LGBT, ou seja, ele ama o vírus porque mata as vidas que despre-
za. É uma covidfilia.
Sobre os efeitos buscados na classe oprimida das ações dos
que detêm uma consciência opressora e uma visão necrófila do mundo,
Paulo Freire acrescenta um parágrafo que parece estar descrevendo,
cinquenta anos antes, o estado atual das coisas no Brasil. Ele afirma:
“Na medida em que, para dominar, se esforçam por deter a ânsia de
busca, a inquietação, o poder de criar, que caracterizam a vida, os
opressores matam a vida.” (Freire, 1970, p. 50).
Assim, a sociedade opressora vive de um amor à morte que
se expressa também numa existência autômata, mecânica, irreflexi-
va. Por isso, para transformar uma sociedade não basta aprimorar as
condições materiais de existência, vencer a fome, satisfazer algumas
demandas materiais, aumentar o nível de consumo. Isso é necessário,
mas não é suficiente. É preciso bastante mais: uma vida que se atreva a
ousar, ativa e responsável para “criar e construir, para admirar e aven-
turar-se” (Freire, 1970, p. 59). A exigência, diz Freire, é radical: não há
emancipação possível se os seres humanos não percebem a si mesmos
como criadores de mundo e, para isso, é preciso amar o mundo e a
vida que o habita.
Nos termos da Pedagogia do oprimido, se a educação bancária
pressupõe e é resultado dessa necrofilia que está na base da socieda-
de opressora e se expressa numa relação vertical que nega a palavra
oprimida, a educação dialógica e a dialogicidade desdobram a amoro-
sidade que fundamenta uma sociedade sem opressores e oprimidos
e se expressa numa relação horizontal, igualitária e de confiança em
relação aos semelhantes. Assim, se o amor à morte sustenta uma socie-
dade reprodutora das desigualdades e da exploração, o amor à vida
se expressa no compromisso com a pronúncia e a luta por um mundo
mais justo, bonito, sem oprimidos nem opressores. Esse amor à vida,
diz Paulo Freire, é necessariamente um ato de coragem, liberdade e
diálogo (Freire, 1970, p. 94).

69
2. A Pedagogia do Oprimido e o amor

Numa nota de rodapé no capítulo terceiro do livro, Paulo


Freire faz uma conexão potente entre amor e revolução. Não há revo-
lução sem amor, afirma (Freire, 1970, p. 94), porque toda revolução é
humanizadora e, como tal, não pode não ser um ato de amor à vida.
Nessa nota, cita o Che Guevara, um amante da vida e, por isso, um
guerreiro revolucionário, que se comprometeu com a luta em favor
de uma sociedade menos opressora. Paulo Freire destaca uma passa-
gem de Che na qual ele afirma que, mesmo sob o “risco de parecer
ridículo, o verdadeiro revolucionário é animado por fortes sentimen-
tos de amor”13. Como Paulo Freire, Che também defende uma cone-
xão que, embora necessária e principal, é desestimada por muitas e
muitos participantes do campo revolucionário. Em outras palavras,
mesmo subestimado ou desconsiderado, o amor é uma condição de
uma verdadeira revolução: não há verdadeira revolução sem amor.
Isso vale para Paulo Freire, para Che Guevara e para todas e todos que
amem a vida e não a morte.

Significados para o amor em diálogo com Alain Badiou

Na seção anterior, destacamos a presença marcante que o


amor tem na Pedagogia do oprimido. Apreciamos como ele é uma
condição de uma vida que luta contra a opressão e por isso, também,
de uma vida revolucionária. Finalmente, percebemos os sentidos do
amor, como ele expressa, nos sujeitos revolucionários, o contrário do
que expressa nos opressores: um amor à vida (biofilia), em oposição
a um amor à morte (necrofilia). Contudo, qual o significado que pode-
mos outorgar a esse amor? Qual o conceito de amor com que podemos
ler sua insistente presença na Pedagogia do oprimido?
Para isso, vamos nos ajudar de um filósofo marroquino
contemporâneo, Alain Badiou, que escreveu um livro extraordinário
sobre o amor: o Elogio do Amor (Badiou; Troung, 2013). Trata-se, na

13
A citação do Che Guevara está numa nota de rodapé sem número na p. 94 da
Pedagogia do oprimido e é tomada da edição em castelhano das obras do Che: Ernesto
Guevara: Obra Revolucionária, México, Ediciones Era-S.A., 1967, pp. 637-38.

70
Walter Omar Kohan

verdade, de um livro falado, daqueles que Paulo Freire tanto gostava,


produto de um diálogo público sobre o amor realizado entre Alain
Badiou e Nicolas Troung, no Festival de Avignon, França, em 14 de
julho de 2008, posteriormente transcrito e publicado como livro. Na
apresentação do livro, Alain Badiou justifica a importância de um livro
dedicado a elogiar o amor. Inspirado na sua própria maneira de recon-
tar a República de Platão, recorda que “quem não começa pelo amor
nunca saberá o que é a filosofia”. (Badiou; Troung, 2013, p. 10).
Começar pelo amor parece ser uma condição para entender a
filosofia. Não é suficiente, mas necessário. Talvez porque o amor esteja
na própria palavra grega filosofia (de phílos: amor; amizade e sophía:
saber), traduzida ora como amor ao saber ou ora como saber do amor
(Ferraro, 2018). É verdade: como queira que seja lida, como amor à
sabedoria ou como sabedoria do amor, a palavra filosofia sugere que é
impossível estar na filosofia senão é porque se está também no amor.
Por isso, poderíamos dizer que os que amam a morte nunca poderão
estar dentro da filosofia e, ao contrário, a odeiam. O amor seria, então,
uma condição para estar na filosofia.
De modo que, para Alain Badiou, o amor é uma das condições
da filosofia: não há filosofia sem amor. Contudo, não é a única. A filo-
sofia tem, para o marroquino, outras três condições: o saber, a arte e a
militância, além do amor. Assim, um filósofo ou filósofa é “um cientis-
ta instruído, um amante da poesia, um militante político, mas também
deve assumir que o pensamento nunca é dissociável das violentas peri-
pécias do amor” (Badiou; Troung, 2013, p. 9).
Badiou alerta sobre os dois riscos principais que se abatem
sobre o amor. Um deles é tentar proteger o amor dos riscos que ele
poderia gerar: amar sem se arriscar; amar com segurança total. Para
Badiou, sendo o amor um interesse coletivo e aquilo que dá significa-
do e intensidade à vida, ele não poderia ser vivido sem riscos (Badiou;
Troung, 2013, p. 12). De modo interessante, Badiou coloca como exem-
plo a propaganda norte-americana de guerra “com morte zero”: por
um lado, uma guerra sem mortes não é guerra, assim como um amor
sem risco não é amor; por outro lado, a falta de mortes seria de um
lado só, a morte do “outro” pouco importa ou, ao contrário, importa
que seja feita cirurgicamente, sem mortes próprias: quanto mais rápido

71
2. A Pedagogia do Oprimido e o amor

e assepticamente o inimigo for eliminado, melhor; ou seja, a ausência


de risco de mortes apenas alcança a uma das partes em guerra, mas se
exacerba sobre a outra.
A segunda ameaça ao amor destacada por Badiou é negar-lhe
toda e qualquer importância. Pretende-se defender que amor não
passaria de uma espécie de hedonismo generalizado, uma das formas
do gozo, algo próprio da superfície que nada teria a ver com uma expe-
riência profunda da alteridade (Badiou; Troung, 2013, p. 13). As duas
ameaças consideram o amor um risco inútil: ele pode ser agradável e
prazeroso, algo consumível e ameno, confortável e seguro, que não
precisaria dos riscos e aventuras das paixões profundas.
Certamente, por trás dessas ameaças, existe uma concepção
do amor como algo funcional à sociedade de consumo que nos habi-
ta. Mas, para além dessa concepção banalizada, o que é o amor? Eis a
pergunta fundamental, como diria Paulo Freire. E é justamente sobre
essa pergunta, que está na base de muitas outras perguntas, que Alain
Badiou nos ajuda a pensar. A sua concepção do amor é extremamen-
te complexa, mas alguns dos elementos que nos oferece em Elogio ao
Amor ajudarão a perceber sentidos e significados atribuídos ao amor na
Pedagogia do oprimido.
O amor é, para o filósofo marroquino, “uma construção de
verdade” sobre uma pergunta bem específica: “o que é o mundo
quando o experimentamos a partir do dois e não do um? O que é o
mundo examinado, praticado e vivenciado, a partir da diferença e não
da identidade?” (Badiou; Troung, 2013, p. 20). Ou seja, o amor tem a
forma de uma pergunta e uma pergunta pode nos levar às profun-
dezas de andar pelos caminhos do pensamento. Ou, nos termos de
Paulo Freire, pode nos levar a uma pedagogia da pergunta, uma peda-
gogia amorosa da pergunta. Nos termos de Alain Badiou, o amor é
um desafio, uma aventura coletiva que pressupõe uma decisão, a de
viver a vida pelo prisma da diferença e não da identidade, a de ser mais
sensível ao plural que ao unitário, a de construir um mundo confiando
na potência da diferença. Certamente que o amor não exclui o desejo
sexual, mas vai muito além dele: é um projeto de vida em comum, cole-
tivo, uma forma de estar no mundo com outras e outros, um modo de
compartilhar mundo.

72
Walter Omar Kohan

Construção de verdade e de mundo: sair de si para a cons-


trução descentrada de um mundo comum. Um desdobramento do
mundo. Isso é o amor para Alain Badiou. Ou para dizê-lo com suas
palavras: “O amor é sempre a possibilidade de assistir ao nascimen-
to do mundo.” (Badiou; Troung, 2013, p. 22). Quando se ama nunca
há apenas um mundo. O amor é justamente a possibilidade, sempre
presente, de que um novo mundo nasça; por isso, o amor é revolu-
cionário e é um ato próprio de um militante político, artista e sábio
ao mesmo tempo.
Talvez, por isso, o amor tenha uma importância tão radical
na Pedagogia do oprimido e na vida e na obra de Paulo Freire. Talvez,
por isso, Paulo Freire tenha querido ser recordado como um ser que
amou profundamente a vida; que fez da vida um projeto amoroso,
coletivo, sensível à diferença e às pluralidades da vida. Também
talvez, por isso, tenha enfatizado para Lutgardes que poderia estu-
dar qualquer coisa contanto que o fizesse com o amor. Pela sua
condição de sábio, artista, militante político e, principalmente, pela
sua amorosidade radical.

Para terminar como a Pedagogia do oprimido: começando

Uma das frases mais bonitas da Pedagogia do oprimido é a


última, a frase final do livro. Começamos o presente texto com uma
lembrança de uma das últimas entrevistas de Paulo Freire. O termi-
namos com uma lembrança da última afirmação do livro que esta-
mos apresentando. Ela é uma espécie de legado, uma lembrança, um
lembrete, um frontispício de uma pedagogia por vir:

Se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos


que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos
homens [e mulheres] e na criação de um mundo em que seja
menos difícil amar. (Freire, 1970, p. 218).

73
2. A Pedagogia do Oprimido e o amor

Vamos dar atenção a essa frase com a qual Paulo Freire termina
o livro cuja reedição estamos comemorando com o presente texto.14
Já se passaram mais de 50 anos dessa escrita. Situemo-nos naquele
tempo. Paulo Freire já terminou quase de escrever a Pedagogia do
oprimido. É o fim de sua obra magna, que contém, antecipadamente,
o sentido principal de sua vida e sua obra. Ele está no Chile, exilado,
sentindo mais do que nunca a necessidade de uma revolução educa-
cional. Confia que o seu livro, escrito com enorme entusiasmo, terá
um papel importante nesse movimento. O que a frase final do livro
revela? Que, mesmo confiando no seu pensamento escrito no livro,
ele está mais confiante ainda na necessidade e no poder do amor.
Pois mesmo que seu livro não consiga fazer nada para transformar o
mundo, ele ainda continua confiando na criação de um mundo em que
seja menos difícil amar.
Paulo Freire tem experimentado, com seu próprio corpo, as
mazelas do mundo e sabe muito bem que esta é a pior maldade do
mundo contemporâneo: tornar, quase impossível, amar de verda-
de, amar como compromisso coletivo com a diferença, e não apenas
como forma de gozo ou consumo individual. Sabe também que talvez
nunca seja possível – ou mesmo desejável – habitar um mundo onde
seja fácil amar; mas descansa sua mais firme convicção na confian-
ça em um mundo em que amar seja menos difícil do que está sendo
em nossas sociedades do capital. O final do livro é um canto ao amor
tal como o definimos, com Alain Badiou, na seção anterior: ele é
sempre a confiança na possibilidade de que novos outros mundos
possam começar.

14
Recentemente, tive oportunidade de conferir as edições em inglês de muitos livros
de Paulo Freire quando revisei a tradução e as referências do meu livro Paulo Freire mais
do que nunca. Uma biografia filosófica, que acaba de ser publicado em inglês pela edi-
tora Bloomsbury, sob o título de Paulo Freire. A philosophical biography. Dentre muitas
outras coisas interessantes, percebi que, na edição em inglês da Pedagogia do opri-
mido, essa frase, a última da edição original em português, está suprimida. Contudo, ela
está incluída, embora parcialmente modificada, no prefácio que Paulo Freire escreve
para essa edição em inglês. A tradução da frase publicada em inglês é “ligeiramente”
diferente da original, no início e no final da frase. Comecemos pela diferença no final:
na edição inglesa diz “a world in which it will be easier to love”, cuja tradução mais
literal seria “um mundo em que seria mais fácil amar”. “Mais fácil” não é o mesmo que
“menos difícil”. E também o início da frase está alterado, pois o “se nada ficar dessas
páginas” não aparece na versão publicada em inglês.

74
Walter Omar Kohan

A educação, então, está principalmente ligada ao amor e, atra-


vés do amor, ao nascimento e à morte. Ainda mais, a educação pode
ser entendida como uma forma amorosa de gerar condições para que
novos mundos nasçam. “Quanto mais se ama, mais se ama”, Paulo
Freire afirmava ter aprendido de sua primeira esposa Elsa (In: Gadotti,
2001, p. 54). Isso pode ser especialmente significativo em momentos
de necrofilia e necropolítica como os atuais: propiciar começos ali
onde outros querem provocar terminações. Educar amorosamente
pela força amorosa da educação (ou pela força educativa do amor).
Por isso, a frase final da Pedagogia do oprimido tem um caráter amoro-
samente educador: ela parece uma tentativa de Paulo Freire fazer
do final do livro uma espécie de começo, o começo de um mundo
novo, outro, onde talvez seja menos difícil amar. Escrever amando,
amar escrevendo para, como já dizemos com Alain Badiou, assistir ao
nascimento do mundo.
Paulo Freire era, sem dúvida, uma pessoa de começos. Em
sua adorável conversa com Myles Horton, assim declara com orgulho:
“Eu estou sempre no começo, como você”. (Freire Horton, 2018, p.
78). Afirmando isto, ele quer mostrar precisamente que a educação,
enquanto prática amorosa, é também uma tarefa de começos: “Estou
convencido de que, para que possamos criar algo, precisamos começar
a criar. Não podemos esperar para criar amanhã, mas temos que come-
çar a criar”. (Freire; Horton, 2018, p. 56). Começar não só é necessário,
mas também urgente.
Estar sempre no início, criar no presente, é uma forma de acre-
ditar na possibilidade sem fim de um mundo novo. É isso que faz de
Paulo Freire um grande educador filósofo e é isso que faz de todos
os educadores filósofos criadores de novos mundos. É isso que pode
tornar um livro educativo: que, de sua leitura, nasçam novos mundos. É
isso que esperamos de uma nova edição de Pedagogia do oprimido, um
livro que parece obstinado em dar a ler um novo mundo. Que novos e
novos mundos continuem a nascer de sua leitura.

75
3. Quantos anos tem Paulo Freire?

Para Madalena Freire

Há perguntas de muito fácil resposta e outras de muito difícil resposta.


Entre as perguntas que são de muito fácil resposta existem algumas
que, uma vez respondidas, já não faz sentido continuar com elas, pois a
curiosidade que as alimenta fica satisfeita, à procura de outros interro-
gantes. Ao contrário, há outras perguntas que, mesmo quando obtêm
uma resposta rápida e contundente, seguem vivas, porque a resposta
não esgota a curiosidade que está na sua base.
“Quantos anos tem Paulo Freire?” é a pergunta que se propõe
para dar início à presente escrita. Não sei como os leitores e leitoras
irão se relacionar com ela; espero que estejamos perante um exemplo
desse último tipo de pergunta: aquelas que, mesmo respondidas, conti-
nuam vivas porque convidam a pensar sobre algo que nenhuma respos-
ta consegue dar. Serei ainda mais preciso. Num sentido, a pergunta que
dá título a este texto é de muito fácil resposta. Paulo Freire nasceu em
19 de setembro de 1921, de modo que, muito provavelmente, quando
este texto seja lido, Paulo Freire terá, pelo menos, 100 anos. Aliás, a
referida pergunta poderia ser formulada e respondida não apenas pela
quantidade de anos que tem Paulo Freire, mas também por outras
unidades de tempo: quantos meses, quantos dias, quantas horas,
quantos minutos… e também quantas décadas, quantos séculos. O
que mudaria seria apenas a unidade de medida e a consequente facili-

77
3. Quantos anos tem Paulo Freire?

dade ou dificuldade em estabelecer o número preciso dessas unidades


transcorridas desde a sua data de nascimento. Segundo uma dessas
medidas, justamente, daqui a pouco, Paulo Freire vai fazer 100 anos,
ou seja, um século. Os símbolos fazem deste número algo significativo
e, por isso, tantas (e merecidas) homenagens. A pergunta poderia ter
muitas outras unidades de medida e só mudaria o cálculo, o procedi-
mento para encontrar as respostas seria quase o mesmo.
Contudo, a nossa pergunta, esperamos, embora possa ser
respondida de modo mais ou menos simples, talvez não possa ser
esquecida tão rapidamente. Porque “quantos anos faz Paulo Freire?”
parece estar sugerindo algumas outras coisas para além de um número
de anos. Qualquer leitor ou leitora minimamente atento já deve estar
pensando que “algo mais” deve estar implícito na pergunta para que
ela mereça ser apresentada num artigo para um dossiê acadêmico em
homenagem a Paulo Freire. Com efeito, por que ou para que alguém
tomaria essa pergunta como título de um artigo se ela tivesse apenas
uma resposta tão rápida e categórica? Estaria aparecendo algo como
uma primeira suspeita de que Paulo Freire tivesse uma relação espe-
cial com o tempo das idades que justificasse fazer desta uma pergunta
central para comemorar, num texto acadêmico, os 100 anos do Patrono
da Educação Brasileira. Uma espécie de mistério, enigma, surpresa na
forma de contar o tempo de uma vida.
De modo que, se essa suspeita se confirmar, estamos ante
uma pergunta especial, que teria uma espécie de sobrevida perante as
pretensões de respondê-la. A questão pode parecer banal, mas nada
tem de banal, especialmente se lembrarmos que Paulo Freire pensa-
va que um dos problemas principais da educação brasileira é que ela
vem sendo uma educação da resposta e não uma educação da pergun-
ta (Freire; Faundez, 2017). Ou seja, no modo em que nos relacionamos
com a pergunta, haveria não apenas a questão do tema que a pergun-
ta levanta (o tempo de uma vida), mas também a forma em que nos
relacionamos com uma pergunta (qualquer que seja ela). Paulo Freire
considerava, precisamente, que, nessa relação se joga uma questão
fundamental de toda a prática educativa. Em outras palavras, o proble-
ma de uma educação da resposta é que, justamente, ela pode, nas
palavras do mestre pernambucano, “castrar a curiosidade necessária

78
Walter Omar Kohan

do educando que teria que se expressar na pergunta” (Freire, 1985,


s/p). Chegamos às salas de aula, diz o mestre pernambucano, com
respostas “cujas perguntas se perderam no tempo” e damos respostas
sem sequer escutar as perguntas dos nossos estudantes. Sendo assim,
essa pedagogia da resposta tem várias implicações negativas: a) ela
não mostra a conexão entre resposta e pergunta, ou seja, quais são
as perguntas que as respostas que ofereceremos tentaram responder;
b) ela não responde às perguntas que nossos estudantes podem ter
porque sequer escuta as perguntas; c) ela pode castrar a curiosidade
do educando que não encontra modos de expressão, pois suas pergun-
tas não são escutadas.
As perguntas se perderam no tempo, afirma Paulo Freire. E
essa afirmação nos lembra de nossa pergunta inicial: porque é por um
tempo que já nos estamos perguntando e também porque há muitas
formas de se perder no tempo. Há uma forma mais habitual de se
perder no tempo, que é quando não contamos bem o tempo ou não
temos uma percepção clara dele e, portanto, não sabemos situar-nos
claramente nele. Mas a expressão “perder-se no tempo” também
pode estar sugerindo que possamos estar dando uma importância
excessiva a um tipo de tempo ou a uma forma de experimentar o
tempo e estejamos perdendo, ao mesmo tempo (!), outras formas de
sentir ou experimentar o tempo. E isso também pode acontecer quan-
do respondemos a uma pergunta pelo tempo de uma vida. Voltaremos
a essa questão.
Numa pedagogia da pergunta, uma das questões centrais é
não castrar a curiosidade que está na base das perguntas, de qualquer
pergunta. Ao contrário, trata-se de, em primeiro lugar, escutar essas
perguntas e cuidar, alimentar, manter viva essa curiosidade que alimen-
ta toda e qualquer pergunta. Paulo Freire não apenas pensava isso,
como também praticava essa relação com as perguntas em todas as
ocasiões em que tinha oportunidade de se pronunciar ou de responder
a perguntas publicamente.
Nesse sentido, é bastante conhecido o exemplo que oferece,
no livro que estamos comentando, de uma situação curiosa, significati-
va, a partir de uma intervenção na sua primeira visita a Argentina, numa
periferia de Buenos Aires. Em ocasião de uma palestra fazendo parte

79
3. Quantos anos tem Paulo Freire?

de uma instância de formação, em vez de oferecer um discurso, Paulo


convida os moradores de um bairro periférico presentes a lhe fazerem
perguntas para darem assim sentido comum ao tempo compartilhado.
Rapidamente, um dos moradores afirma concordar com a ideia e faz o
que Paulo Freire chama de “a pergunta fundamental”: “o que significa
mesmo perguntar?” (Freire; Faundez, 2017, p. 70). Paulo relata como ele
tenta responder sem responder essas e outras perguntas que lhe são
colocadas (“Em lugar de responder sozinho tentei arrancar do grupo o
que lhe parecia ser perguntar”) e conclui que esse deveria ser um dos
pontos principais de qualquer formação de educadores: o que significa
perguntar evitando fazer dele um jogo intelectual e, ao contrário, uma
oportunidade de viver o espanto, a curiosidade, o encantamento e a
inquietação contidos no perguntar.
De modo que pode haver um mundo, ou muitos mundos, por
trás de uma pergunta e uma pedagogia da pergunta deve procurar
manter o máximo de mundos abertos em cada pergunta. Evitar as
respostas aparentemente fáceis e manter vivos os sentimentos inquie-
tos que cada pergunta pode esconder. Assim, isso então faremos neste
breve exercício de escrita. Ocupar-nos-emos de uma intervenção oral
de Paulo Freire, realizada numa Conferência na Universidade de São
Paulo (USP), no Ciclo de Palestras Direitos Humanos, a convite da
Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, na Faculdade
de Direito da USP, no Largo de São Francisco, São Paulo, no dia 2 de
junho de 1988. A palestra, intitulada “Direitos Humanos e educação
libertadora”, está reproduzida no livro Pedagogia dos sonhos possí-
veis, de Paulo Freire, com organização e apresentação de Ana Maria
Araújo Freire, publicado pela editora da UNESP (Freire, 2001, p. 93-103).
Apresentaremos inicialmente na seção “Uma educação menina em
direitos humanos” as principais ideias apresentadas nessa intervenção
pelo Patrono da Educação Brasileira e nos deteremos numa referência
que nos ajudará a pensar, numa segunda seção intitulada “A educa-
ção e o tempo da infância: quantas idades cabem numa idade?”, a rela-
ção entre a educação e o tempo das idades ou os diferentes tempos
que cabem numa idade. Finalmente, nas “Considerações Finais”, nos
ocuparemos da pergunta que temos colocado como principal desta
escrita: “Quantos anos tem Paulo Freire?”.

80
Walter Omar Kohan

Uma educação menina em direitos humanos

A palestra de Paulo Freire na Universidade de São Paulo tem


alguns elementos interessantes quanto a sua forma. Inicialmente,
Paulo gasta algum tempo em apresentar uma situação inusitada: um
certo medo que o acomete quando chega à universidade e vê o audi-
tório repleto de gente; felizmente, pedem para ele se dirigir à sala dos
professores e aguardar mais uns dez ou quinze minutos, enquanto
chegava ainda mais gente, o que lhe permite relaxar e pensar sobre
as sensações que está experimentando. Nesse momento, Paulo Freire
já é um conferencista experiente, está com 66 anos, já fez inúmeras
palestras em universidades do mundo inteiro e ainda sente um certo
medo e timidez diante de um auditório numeroso. O medo, afirma,
pode ser pedagógico porque mostra aos jovens que homens e mulhe-
res experientes, mais velhos e mais velhas, habituados e habituadas a
falar, mesmo assim não estão completamente seguros de si e ensina,
também, uma forma de se relacionar com o medo: exteriorizá-lo, fazê-
-lo palavra, compartilhá-lo e, dessa forma, aliviá-lo.
Já entrando no assunto da palestra, Paulo Freire parte, como
tantas outras vezes, da politicidade da educação. Com efeito, o primei-
ro direito humano é um direito humano negado para grande parte da
população brasileira: o direito à educação. A educação encontra em si
própria seu sentido político primeiro: o de dar-se a todas e todos aque-
les a quem ela é mesmo negada. E o direito à educação dá lugar à enun-
ciação de uma série de direitos fundamentais: o direito de comer, de
vestir-se, de estar vivo, de decidir, de trabalhar, de ser respeitado, de
dormir, de ter um travesseiro à noite para repousar, e, finalmente, o
direito de pensar, de perguntar, de caminhar, à solidão, à comunhão,
de estar com, de estar contra, de brigar, falar, ler, escrever, sonhar e
amar (Freire, 2001, p. 94-5). Deste modo, Paulo Freire apresenta a poli-
ticidade da educação como uma série de direitos que alguns adquirem
apenas pelo fato de nascerem na família em que nasceram, ao passo
que muitos outros têm que lutar arduamente para poder desfrutar
de alguns deles.
O que exige, então, a natureza política da educação das educa-
doras e dos educadores? A princípio, uma opção; um tomar partido; a

81
3. Quantos anos tem Paulo Freire?

ausência de indiferença ou neutralidade. Dado esse estado de situação


das sociedades que habitamos, à falta mais absoluta de igualdade no
fruir dos direitos humanos mais básicos, educar exige tomar partido a
favor ou contra certos sonhos, mas nunca ser indiferente. Um educador
ou educadora pode até se assumir como reacionário ou conservador,
no sentido de alguém que faz de sua tarefa educacional um compro-
misso para manter o estado das coisas. O que um educador não pode é
considerar que o que ele faz não tem nada a ver com a ordem política
do mundo que habita porque, de fato, fatalmente terá, seja para tentar
mantê-la ou transformá-la.
Assim, é crucial perceber a natureza política da educação porque
é ela que vai determinar a perspectiva que um educador ou educado-
ra adotará a respeito, por exemplo, dos direitos humanos. Também
vai permitir estabelecer os limites que a educação tem em relação à
transformação social. Efetivamente, neste texto, Paulo Freire é bastan-
te prudente sobre as possibilidades transformadoras da educação: a
educação, afirma, é limitada; mais ainda, ela não é a alavanca, o instru-
mento, a chave para a transformação social (Freire, 2001, p. 98). Claro
que, o que aparenta ser uma limitação torna-se, de fato, uma força
porque o poder transformador da educação surge quando ela percebe
que não pode tudo e que é bastante limitada; porque, justamente, não
podendo tudo, ela pode algo e é precisamente essa também a tarefa de
educadoras e educadores: perceber o que, quando, como, onde, com
quem é possível abrir espaços de transformação social, de modo que
a educação não é a chave, mas também ela não é impotente e acaba
sendo indispensável à transformação social. E parte da tarefa políti-
ca de educadoras e educadores (que Paulo Freire, nesta conferência,
menciona apenas com o feminino – “nós, educadoras” para provocar
o incômodo machista masculino dos que não se reconhecem na frase)
descobrir os espaços e organizar o que é possível fazer, mesmo que
seja um mínimo de transformação, em cada contexto.
Nesse aspecto, Paulo Freire oferece o que seria o sentido prin-
cipal de uma educação em direitos humanos desde uma perspectiva
progressistas ou libertadora: “aquela educação que desperta os domi-
nados para a necessidade da briga, da organização, sem manipulações,
com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder” (Freire,

82
Walter Omar Kohan

2001, p. 99). A questão da reinvenção do poder é por demais interes-


sante e coloca Paulo Freire do lado dos grupos que entendem a trans-
formação social não apenas a partir da tomada do poder, mas a partir
de um novo jogo ou exercício de poder, com uma participação maior,
mas também mais crítica e afetiva dos grupos populares tradicional-
mente excluídos. E resulta instigante porque Paulo Freire oferece uma
distinção entre libertação e liberdade que é interessante para pensar a
educação como ato político. O grande educador pernambucano afirma
que a educação tem mais a ver com a libertação do que com a liberdade
precisamente porque não há liberdade e a libertação seria o combate
para restaurar “a gostosura de ser livre que nunca finda, que nunca
termina e sempre começa” (Freire, 2001, p. 100). É muito bonita essa
referência à liberdade porque mostra também um certo caráter inaca-
bado da luta política e da educação que a acompanha, uma certa tarefa
de a manter sempre viva e, no início, a luta política pelo gosto da liber-
dade, ou seja, manter a luta política como uma luta infantil, menina;
uma luta que começa, mas nunca acaba.
Seu gosto pelos começos é algo que Paulo Freire repete em
muitas ocasiões. Por exemplo, na conversa com Myles Horton: “Eu
gostaria de dizer alguma coisa sobre meu começo – no qual ainda
estou, porque estou sempre no começo, como você.” (Freire; Horton,
2018, p. 78). Coloquemos bastante atenção: Paulo Freire não apenas
gosta, mas está sempre no começo. Esse estar sempre na infância, ser
um menino permanente. Permanecer menino, não deixar a infância,
seu tempo, sua forma de habitar o mundo: estar sempre no começo.
Ou antes, como neste texto. O relato que segue na conversa de Paulo
Freire com Myles Horton é a sua lembrança de menino “conectivo”,
usando a expressão mágica da conjunção, diz Paulo, para fazer a liga-
ção entre crianças de duas classes sociais diferentes: as que comiam
– pouco, mas comiam – e as que passavam fome. E a conexão estava
no brincar, na felicidade que o jogar futebol na rua oferecia igualmen-
te às crianças de todas as classes sociais. Na conexão se prolonga no
homem-menino numa educação em direitos humanos que sonha com
uma outra sociedade:

83
3. Quantos anos tem Paulo Freire?

Uma sociedade em que a gente tenha gosto de viver, de


sonhar, de namorar, de amar, de querer bem. Esta tem
que ser uma educação corajosa, curiosa, despertadora de
curiosidade, mantenedora de curiosidade, por isso mesmo
uma educação que, tanto quanto possível, vai preservando
a menina que você foi, sem deixar que a sua maturidade a
mate. (Freire, 2001, p. 101).

Assim, a sociedade sonhada é uma sociedade do sonhar, amar,


gostar de viver e isso para todos os seus integrantes e não apenas para
alguns privilegiados. E a educação para tal sociedade é sobretudo uma
educação curiosa e despertadora, mantenedora e alimentadora de
curiosidade; uma educação que preserva e mantém viva a nossa meni-
nice, portanto, uma educação menina da pergunta.

A educação e o tempo da infância: quantas idades cabem numa


idade?

Na sua palestra, Paulo Freire manifesta cansaço, um fim de


gripe que se manifesta na forma de uma forte tosse, e expressa uma
certa necessidade de descansar que fará que, algo raríssimo nele, se
escuse de não conversar depois de sua palestra. Talvez por isso, pelo
seu estado gripal, na sua fala vai se aproximando cada vez mais da
infância. Já no início, ele se mostrara menino, apresentando-se, no
momento, “velho” de 66 anos, com o mesmo medo das almas pena-
das que o acometia, em cada noite, em sua meninice de poucos anos
em Recife, presentes como elas estavam nas permanentes conversas
dos mais velhos. Contudo, com o decorrer da sua palavra, a infância ou
meninice se torna cada vez mais presente até que, tendo já palestrado
sobre a educação em direitos humanos, faz uma espécie de declara-
ção de amor à infância: “Eu acho que uma das coisas melhores que eu
tenho feito na minha vida, melhor do que os livros que eu escrevi, foi
não deixar morrer o menino que eu não pude ser e o menino que eu fui,
em mim.” (Freire, 2001, p. 101).
Paulo Freire fez muitas coisas boas na vida e ele sabe muito
bem disso. Dá, inclusive, testemunho da tolice da falsa modéstia. Sabe
do seu compromisso com a alfabetização das classes populares e das
campanhas de alfabetização em que participou nos mais recônditos

84
Walter Omar Kohan

lugares do mundo. Escreveu uma vasta obra, com livros traduzidos


para mais de vinte línguas e, dentre eles, a Pedagogia do oprimido, o
livro mais citado no mundo na área de educação. De modo que não
são poucas as coisas boas que Paulo Freire fez na sua vida. Porém, ele
considera que há algo melhor que ele tem feito e é não deixar morrer,
dentro dele, o menino que ele foi e o menino que ele não poder ser;
ou seja, a mais ampla meninice, tanto a vivida quanto a não vivida. E a
seguir faz um depoimento sobre a sua relação com as idades que mere-
ce ser considerado sem muita pressa:

Sexagenário, vejam como essa palavra já soa mal. Eu disse de


propósito para ver como a história é isso. Na minha infância
eu lia um jornal, Diário de Pernambuco ou Jornal do Comércio.
E saía: faleceu, ontem, o sexagenário fulano de tal, féretro
não sei quê… Hoje em dia, a geração jovem não conhece
essa palavra. Tem que consultar o dicionário. Mas, sexage-
nário, tenho sete anos; sexagenário, eu tenho quinze anos;
sexagenário, amo a onda do mar, adoro ver a neve caindo,
parece até alienação. Algum companheiro meu de esquerda
já estará dizendo: Paulo está irremediavelmente perdido. E
eu diria a meu hipotético companheiro de esquerda: Eu estou
achado: precisamente porque me perco olhando a neve cair.
Sexagenário, eu tenho 25 anos. Sexagenário, eu amo nova-
mente e começo a criar uma vida de novo. (Freire, 2001, p.
101).

Há uma primeira reflexão sobre a palavra “sexagenário”, uma


dessas palavras que era bastante habitual na juventude de Paulo Freire
e que depois caiu um pouco em desuso. É quase que um protesto habi-
tual, nostálgico, de um sexagenário que sente o passar do tempo no
desuso de algumas palavras que lhe são caras. É uma espécie de lamen-
to inicial. Contudo, a seguir lança uma profunda provocação sobre sua
relação intensa, sendo ele sexagenário, com todas as idades.
Talvez seja oportuno relembrarmo-nos do título do presente
texto: “Quantos anos tem Paulo Freire?” A pergunta se mostra oportu-
na porque parece que Paulo Freire não se percebe apenas com o núme-
ro de anos ditado pela sua idade. Ou seja, ele tem, no momento da
conferência, 66 anos, é um sexagenário. Mas parece que não é apenas
um sexagenário. Ele tem também muitas outras idades. De modo que
a nossa pergunta seria respondida pelo próprio Paulo Freire de muitas
formas: ele tem 66 anos, mas também tem 7 anos, 15 anos, 25 anos.

85
3. Quantos anos tem Paulo Freire?

Acaso enlouqueceu ou estava muito afetado pela gripe para dizer que
tinha todas essas idades ao mesmo tempo?
Certamente, não. Paulo Freire quer dizer que numa mesma
idade cronológica podem conviver muitas possibilidades de existência
humana. A infância mais uma vez ganha destaque. Como um menino,
sentindo-se no tempo de menino, ele adora se perder no tempo, a onda
do mar e ver a neve cair, brincar de boneco de neve; a sua experiência
de tempo extrapola a idade que ele tem. Ele vive muitos tempos numa
idade só. Assim, consegue ter algumas experiências de um tempo
infantil em que nos perdemos no tempo de brincar, de se perder no
tempo, esquecer o tempo do relógio, durante uma experiência lúdica
ou estética. No campo da militância política, alguns vêem isso como um
perigo, uma perda, um sem sentido. Para outros, como Paulo Freire, é
sinônimo de uma política meninamente revolucionária, portanto curio-
sa, inquieta, perguntadora.

Afinal, quantos anos tem Paulo Freire?

É tempo (momento ou idade?) de retomar nossa pergunta


inicial: quantos anos tem Paulo Freire? O que parecia uma pergunta de
resposta simples e única tornou-se uma pergunta de muitas respostas.
Paulo Freire, com 66 anos, afirma que ele não só tem 66 anos, mas
também muitas outras idades simultaneamente. Oferece o que pare-
cem ser apenas exemplos para problematizar as respostas únicas e
aparentemente indubitáveis. Como se ele tivesse infinitas idades numa
mesma idade, num tempo só. Ou como se ele se sentisse habitando
muitos tempos numa idade só.
A poesia é uma forma de revelação de mistérios que pode nos
ajudar a pensar a pergunta que nos ocupa e a confusão de idades e
tempos em que parecemos estar envolvidos. Mia Couto, poeta moçam-
bicano, fez uma bela intervenção no Congresso de Leitura (COLE) em
Campinas em 2007, intitulada “Quebrar armadilhas”, num evento em
que também soube participar Paulo Freire (no III COLE, em 1981). A
forma como Mia Couto pensa a tarefa da poesia não é completamen-
te afastada de como Paulo Freire pensa a educação: “Compete-nos

86
Walter Omar Kohan

desarmadilhar o mundo para que ele seja mais nosso e mais solidário.”
(Couto, 2009, p. 95). Desarmadilhar: verbo que surge de uma curiosi-
dade, uma inquietação, uma infância. Na palestra, o poeta propõe uma
série de armadilhas a serem quebradas ou desarmadas: a armadilha da
língua, a armadilha de nosso próprio olhar, a armadilha da realidade, a
armadilha da identidade e a da hegemonia da escrita. Assim, ensinar a
ler é ensinar a transpor o imediato, a escolher entre sentidos visíveis e
invisíveis, a pensar, no sentido de cuidar e curar, de uma terapia que nos
ajuda a sair de nós mesmos, da identidade que temos construído e que
nos ata a uma imagem única de nós próprios. O poeta não a mencio-
na explicitamente, mas poderíamos incluir o desejo de livrarmo-nos da
armadilha do tempo das idades.
Precisamente, uma das armadilhas que precisamos quebrar
diz respeito ao tempo linear, quantitativo, produtivo, que opera como
uma emboscada nas instituições educacionais; com efeito, elas estão
governadas pelos programas, diretrizes curriculares e planificações,
que se desdobram em semestres, anos, períodos, como bem marcam
os fluxogramas e cronogramas; elas contam um tempo sem presen-
te, pois é a numeração do movimento e sua ordenação em passado
e futuro, resultando no tempo das idades, aquele com que medimos
também a temporalidade de uma vida e a organizamos em etapas ou
fases: o que são 66 anos afinal? 66 movimentos de um ano… O que é
um ano? 365 movimentos de um dia… O que é um dia? 24 movimentos
de uma hora… O que é uma hora? 60 movimentos de um minuto… O
que é um minuto? Etc. etc. etc. Sob essa lógica, nossa experiência vital
está limitada a contar movimentos qualitativamente indiferenciados e
sem graça. Tempo numerado, quantificado, desqualificado. Com efei-
to, esse tempo, que os gregos chamavam de khrónos (Kohan, 2004), é
apenas movimento numerado… e nada mais. É um tempo sem quali-
dade porque justamente cada movimento precisa ser qualitativamente
indiferenciado para poder medir a quantidade dos movimentos, e não
sua qualidade. É um tempo muito útil, que organiza a vida e as insti-
tuições, que permite planejar e dosificar, mas que reduz a vida a uma
sequência sucessiva, consecutiva e irreversível.
Mia Couto fala, em “Quebrar Armadilhas”, de um outro tempo,
circular, próprio da rica cosmogonia rural africana. E conta um episó-

87
3. Quantos anos tem Paulo Freire?

dio de um menino de rua que atravessou a cidade para entregar-lhe


um livro que tinha a sua foto na capa; o menino tinha visto o livro nas
mãos de uma estudante à saída da escola e, como tinha a fotogra-
fia de Mia Couto, pensou que lhe pertencia e que tinha sido roubado
dele. E acrescenta:

Lembrei aqui o episódio do menino de rua porque tudo come-


ça aí, na infância. A infância não é um tempo, não é uma idade,
uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não
é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos
surpreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo
se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio senti-
mento do Tempo. A verdade é que mantemos uma relação
com a criança como se ela fosse uma menoridade, uma falta,
um estado precário. Mas a infância não é apenas um está-
gio para a maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta,
permanece viva dentro de nós. (Couto, 2009, p. 103-4).

Tudo começa na infância, diz o poeta. A infância não é uma


idade, mas um tempo ou, em todo o caso, a idade em que aprende-
mos o sentimento do tempo. Um tempo circular não linear como o
que governa, e somos ensinados a medir nossas vidas, nas instituições
educativas. Na infância, não aprendemos o tempo do relógio, mas a
sentir propriamente o tempo: por isso na infância nunca é demasia-
do tarde, porque não existe “tarde” no tempo de infância. Na infân-
cia aprendemos a importância de esperar, de chegar junto, de brin-
car inteiramente, sem pensar em outra coisa e sem olhar muito para
o relógio porque, se o fizermos, seríamos presos de uma angústia de
sentir o tempo passar demasiadamente rápido, que nos impediria brin-
car no tempo presente da infância. Aprendemos a nos inquietar com o
mundo, a nos surpreender, a nos deixar encantar.
Esse sentimento de tempo que aprendemos na infância é
absolutamente essencial para educar, a qualquer idade, pessoas de
qualquer idade. Talvez, por isso, Paulo Freire considerava que uma
das melhores coisas que tinha feito em sua vida era manter vivo esse
sentimento de tempo menino dentro de si. Manter vivo o menino
que foi e que não pôde ser era manter viva uma curiosidade, um
encantamento, um sentimento de que nunca é demasiado tarde,
sentimento que ele próprio na sua idade menina nem sempre pôde

88
Walter Omar Kohan

experimentar. Talvez por isso sentia que habitava simultaneamen-


te muitas idades.
Quantos anos tem Paulo Freire? Qual é a sua idade? Qual o seu
tempo? Se em 1988 a pergunta pelos anos de Paulo Freire tem mais de
uma resposta, quantas respostas terá essa mesma pergunta em 2021,
já passados mais de 24 anos de sua morte, e prestes a se cumprirem
100 anos do seu nascimento? Quantas idades e quantos tempos cabem
em 100 anos de uma vida meninamente educadora? Quantas perguntas
cabem numa pergunta? Como Paulo Freire, adoro estar nos começos e
por isso sinto uma alegria intensamente menina de poder terminar este
texto com muitas perguntas, ou seja, com muitos começos para poder
seguir pensando.

89
4. O que vale ser criança se nos falta infância?
Um diálogo sonhado entre Paulo Freire e Mia Couto

Para Fátima Freire

Assim,
tudo o que sou
já fui
na criança que sonhou ser tudo.
Mia Couto, 2011, p. 19

Primeiras palavras

Para os demais seres marinhos,


o inteiro oceano
não é mais que um pátio de infância.
Mia Couto, 2011, p. 37

Paulo Freire escreveu muitos livros que ele mesmo chamava de “fala-
dos”, livros que recolhem conversas vivas com interlocutores presen-
tes. Devo dizer que a voz do educador pernambucano parece-me
soar mais alta nesses livros falados que nos livros tradicionais, de
uma única voz e escritos em certo silêncio, talvez porque o próprio
Paulo Freire se inscreve numa cultura fortemente oral e a sua rela-
ção com a palavra falada tem uma força que não se compara à da

91
4. O que vale ser criança se nos falta infância?

palavra escrita. Claro que é difícil manter essa força quando a fala é
transcrita, mas, em contraposição, permanece a possibilidade de uma
certa energia gerativa que leitoras e leitores podem sentir na forma
de uma interlocução possível se colocando como partes igualmente
“falantes” e à escuta de uma conversa ainda em aberto que vai muito
além das páginas lidas. Essas conversas parecem ter uma potência
gerativa singular.
É o caso de Por uma pedagogia da pergunta (conversa com
Antonio Faúndez: Freire; Faúndez, 2017) e O caminho se faz caminhan-
do (conversa com Myles Horton: Freire; Horton, 2018), dois dos meus
livros favoritos de Paulo Freire; favoritos entre os favoritos, os livros
falados. Porque, claro, há diferenças entre os livros falados. Em alguns,
as vozes não soam com a mesma força e parecem mais monólogos
com a forma de conversa. Mas, naqueles, a conversa vibra. Trata-se
de interlocutores diferentes, de origens distintas, que desenvolvem
trabalhos singulares e que têm em comum afirmarem conversas de
igual para igual com Paulo Freire, com histórias e ideias para contar
que não apenas complementam e querem ouvir o pensamento freire-
ano, mas que também o fazem vibrar mais fortemente, o problema-
tizam, lhe exigem se repensar uma e outra vez: ambos os interlocu-
tores têm igualmente coisas a dizer e abrem as conversas para linhas
diversas a partir das quais as leitoras e os leitores podemos pensar
em distintas direções à medida que caminhamos com a leitura. São
conversas que lamentamos quando o livro termina, por saboreá-las
tanto que ficamos com esse gostinho de querer mais, de sentir um
certo desgosto quando chega um final que parece sempre prematuro,
antes do tempo.
Quando lemos esses exemplos concretos de conversas que
efetivamente tiveram lugar, ficamos também fantasiando outras
conversas fictícias, que não tiveram lugar na realidade, mas que
imaginamos de forma tal que, em certo modo, acontecem e se
desdobram em nossa imaginação. Podem ser personagens de outros
tempos e lugares, mais próximas, mais distantes. A questão é fazer
vibrar a vida, o pensamento. No caso de Paulo Freire, é o que senti-
mos quando encontramos intercessores fecundos, profícuos, que
ampliam nosso modo de pensar algumas palavras às quais o mestre

92
Walter Omar Kohan

das utopias deu singular atenção. Como ele já não está entre nós, o
que nos resta é mediar esses encontros e, como nesse caso, escre-
vê-los de maneiras distintas, escutando as vozes que ressoam em
nossa imaginação.
É isso então que faremos neste texto, que escreveremos escu-
tando uma conversação imaginária e imaginada entre Paulo Freire e
Mia Couto, o escritor moçambicano, em torno da palavra “infância”.
Sentimos que dessa conversa a própria infância sai enriquecida, forta-
lecida, enaltecida. E também as nossas escritas e as nossas vidas que
andam sempre em busca de motivos para se reinventar. O que faz
de um texto escrito uma conversação? Não é uma pergunta fácil de
responder. Uma maneira de buscar respostas seria pela forma externa
do texto. Outra, a que aqui exploraremos, é na própria composição das
ideias tecidas e apresentadas. De modo que o presente texto não será
formalmente uma conversação, mas uma conversação singular o atra-
vessará e, esperamos, convidará leitores e leitoras para outras conver-
sações, outros pensamentos e outras vidas.

O tempo da infância em “O rio das quatro luzes”

Não são as criaturas que morrem.


É o inverso:
só morrem as coisas.
As criaturas não morrem
porque a si mesmas se fazem.
E quem de si nasce
à eternidade se condena.

Mia Couto, 2011, p. 27

Mia Couto é um escritor moçambicano muito difícil de enqua-


drar ou classificar, em particular em relação ao lugar que tem a infân-
cia na sua escrita, nas suas histórias, nos seus poemas. Seus textos
não são de “literatura infantil” e, contudo, a infância está (quase)
sempre presente neles. Afirma algo assim como uma infantilidade da
literatura, estão escritos para serem lidos por leitoras e leitores infan-

93
4. O que vale ser criança se nos falta infância?

tis de todas as idades. Também é um autor cada vez mais citado em


textos educacionais15.
Daremos atenção ao conto “O rio das quatro luzes”, de Mia
Couto16, que tem uma epígrafe adaptada de um provérbio moçambi-
cano: “O coração é como a árvore – onde quiser volta a nascer” (Couto,
2013, p. 129). Uma epígrafe oferece sempre palavras que se colocam
antes das palavras que a epígrafe apresenta, mas que só podem ser
lidas propriamente depois de ler essas mesmas palavras que ela ante-
cede. Por isso, deixamos descansar essas palavras e as retomaremos
uma vez apresentado o conto que elas anunciam.
No conto, tudo começa quando um menino expressa à sua mãe
seu desejo infantil de fazer parte, dentro de um caixão, de um cortejo
fúnebre. Ele quer ser enterrado para sentir o privilégio de ter alguém
que chore por ele. Só de manifestar esse desejo o menino parece reali-
zá-lo, pois a mãe rompe em choro pelo seu desejo de morte. Contudo,
pouco sabemos do sentimento do menino perante a tristeza de sua
mãe. O que o conto nos apresenta é como ela reage ao desejo menino
de morte: de forma autoritária. Proíbe-lhe que continue a pensar em
coisas como essa. E mais tarde conta para o pai que, imediatamente,
visita o menino de noite no seu quarto querendo desconvencê-lo de
seu desejo de participar, como morto, de um cortejo fúnebre. Com o
pai, o menino dá novas palavras ao seu desejo, insiste nele e em não
querer ser mais criança, em almejar envelhecer muito rápido para ficar
mais velho que seu próprio pai. O pai reage também autoritariamente,
como a mãe: não escuta seu filho e reforça a proibição materna introdu-
zindo Deus como criador do milagre da vida, mas também como vigia

15
Dentre os textos que lemos para escrever o presente artigo estão: Marques (2012);
Hillesheim (2013). Juliano (2018); Pereira; Magalhães; Almeida (2019); Skliar; Brailovsky
(2021).
16 Betina Hillesheim faz uma bela leitura em termos educacionais deste conto a partir
de inspirações fortemente deleuzianas. Seu último parágrafo, conclusivo, é muito ins-
pirador: “Uma educação que faça do devir uma afirmação, não buscando explicar ou
interpretar, mas tão só experimentar. Uma educação que roube a infância, tal como
o Avô que, afinal, não havia feito nenhuma troca com Deus (mesmo porque não se
tratava de um objeto passível de troca) e, trapaceando junto com o menino, desobe-
dece ao tempo cronológico e esquiva-se do corpo e do juízo. Uma educação do riso, da
dança, dos folguedos. Enquanto isso, o menino distrai-se nos brincados.” (Hillesheim,
2013, p. 620).

94
Walter Omar Kohan

moral dos que se atrevem a não aceitar o presente da vida. O menino


não quer saber da história de Deus e a conversa acaba com a ameaça
paterna de esquecer o desejo de morrer ou sofrer o castigo divino. O
desejo menino é negado, reprimido, ameaçado.
Então, o menino acode ao avô, que o acolhe de forma diferen-
te. O avô propõe-lhe uma parceria. Pelas leis da vida, o avô deveria
morrer primeiro e o menino bem depois. Ele, então, proporia a Deus
inverter os termos e que quando chegasse a sua hora de morrer fosse
o menino e não ele a morrer. O avô apresenta como simples o que qual-
quer adulto acharia impossível: alterar a ordem da vida e da morte. Mas
o menino acha o impossível extraordinário. Basta a palavra do avô e a
sensação de que seu desejo não é proibido, mas acolhido. Com essa
palavra, o acordo fica selado: na hora de o avô morrer, seria o menino
que morreria. O menino ficou ansioso esperando a morte do avô, que
de fato se tornaria a sua morte e a sua felicidade de participar de um
cortejo fúnebre. E enquanto esperavam que Deus aceitasse o pedido, o
avô começou a introduzir o menino no mundo da infância, que nenhum
outro adulto tinha possibilitado. Assim, menino e avô entraram nas
grutas junto ao rio, perseguiram juntos borboletas, adivinharam pega-
das de bichos e os dois se meninizaram. O avô também tentou ensinar
algo de infância para os pais do menino:

Uma certa tarde, o avô visitou a casa dos seus filhos, sentou-se
na sala e ordenou que o seu neto saísse. Queria falar, a sós,
com os pais da criança. E o velho deu entendimento: crianci-
ce é como amor, não se desempenha sozinha. Faltava aos
pais serem filhos, juntarem-se miúdos com o miúdo. Faltava
aceitarem despir a idade, desobedecerem ao tempo, esquivar-
-se do corpo e do juízo. Esse é o milagre que um filho oferece
– nascemos em outras vidas. E mais nada falou. (Couto, 2013,
p. 131).

Os pais não atentaram para a grandiosidade do ensinamento e


deixaram passar a oportunidade, nunca tarde, de uma vida propriamen-
te infantil. O avô deixa ver que há pelo menos duas infâncias, a das idades
e a das borboletas, as pegadas, as grutas. A mãe e o pai do menino,
presos na primeira, a infância das idades, não podiam viver a segunda,
a infância desobediente do tempo. Assim, deixaram de aceitar o convite
que um filho ou filha nos oferece cada vez que nasce um novo ser no

95
4. O que vale ser criança se nos falta infância?

mundo: nascer novamente com a nova vida que nascemos. Para aceitar o
convite é preciso um certo desprendimento e também desaprendimen-
to, desprender-se das idades, desaprender aprendizados que nos pren-
dem a uma vida que não queremos já para nós e o mundo, desobedecer
ao tempo instituído pelo sistema social que habitamos para poder viver,
com os recém-chegados, uma outra infância. Como diz um outro poeta,
Manoel de Barros: “Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.”
(Barros, 2000, p. 9). E vale notar um detalhe importante: a infância sem
idade é uma experiência coletiva, conjuntiva, conectiva.
No decorrer do conto, o avô, antes de morrer, pede aos seus
filhos, o pai e a mãe do menino, para que digam ao neto que ele mentiu,
que nunca fez pedido nenhum a nenhum Deus. E o conto termina afir-
mando que o menino não precisou de tal mensagem, que “sentiu rever-
ter-se o caudal do tempo” (Couto, 2013, p. 132) e que os seus olhos “se
intemporaram em duas pedrinhas”.
Assim, o conto nos ensina que a infância é, evidentemente, uma
forma de reverter-se a passagem do tempo, ou de intemporar-se. É o
contrário do que muitos nos dizem: longe de se enquadrar dentro dos
limites de uma idade, a infância exige, antes, se livrar do tempo indi-
vidual das idades e encontrar cúmplices de todas as idades (e os avôs
são ótimos para isso!) para habitar o tempo da brincadeira coletiva, do
amor, da arte e, quem sabe?, o tempo da educação.

De infantia, luzes e corações


Tanto o Tempo
morava em nós
que dispensávamos futuro.

Mia Couto, 2011, p. 25

Podemos agora retomar a epígrafe do conto “O rio das quatro


luzes”. Lembremos, antes, o que dizíamos no início da seção anterior:
a epígrafe é uma palavra primeira que só pode ser lida plenamente por
último, uma vez lidas as palavras que ela antecede. Não temos como
não transportar a imagem da epígrafe para o início e o final da vida,

96
Walter Omar Kohan

porque a infância é usualmente considerada como a primeira etapa da


vida, o início da vida, quase como uma epígrafe da vida adulta. Mas
talvez exista uma infância que esteja ainda antes ou em outro tempo e
anteceda o nascimento de uma vida.
J.-F. Lyotard (1989) chamou a essa infância de infantia: a diferen-
ça entre o que pode e não pode ser dito, o indizível, algo perdido que
habita, imperceptivelmente, o dizível como sua sombra, seu lembrete,
um não dito que obra como uma condição para que algo com sentido
possa ser dito. Essa infantia atravessa também o que estamos escre-
vendo como sua condição e sentido, pois, segundo Lyotard, a memória
dessa diferença entre o dizível e o indizível, entre a não determinação
da qual fomos arrancados para nascer e a determinação que significou o
nascimento, é a tarefa política da escrita, do pensamento, da literatura,
das artes. Essa tarefa política é resistir ao esquecimento da infantia, de
que estamos constituídos por essa diferença que nunca nos abandona;
resistir a um sistema de desenvolvimento, progressivo, totalizante, que
quer apagar essa diferença, que não deixa nada fora e tudo o absorve
em sua lógica, como o capitalismo que nos habita com seu tempo line-
ar, produtivo, efetivo, sequencial, consumível. Essa tarefa política signi-
fica também resistir à necessidade de estar sempre correndo atrás do
tempo, de fazer só um bom uso, produtivo, dele; de sermos unicamente
eficientes e eficazes na forma de percorrer essa linha extensiva, sucessi-
va, consecutiva, irreversível de movimentos cronológicos que constitui a
imagem sistémica preferida do tempo (Kohan, 2004). Significa também
habitar outros tempos, infantis, improdutivos, aquele tempo remoto da
indeterminação abandonada a um movimento em que o passado nem
sempre antecede o presente, e o futuro pode não sucedê-lo.
Então, também para isso, escrevemos: para recordarmos que
somos infância. E brincamos de fazer isso com a escrita infantil de Mia
Couto, porque, para que nasça uma vida, qualquer vida, é necessário
um outro tempo de infância antes da infância das idades. Uma outra
infância antes da infância, para que uma vida humana recorde o inuma-
no que faz parte indissolúvel dela; e essa infância só poderia ser lida
no final da vida. Talvez, por isso, só o avô acolhe o desejo de morte do
menino e o convida para viver a infância. Talvez, por isso, o fragor da
vida nos afasta da infância e precisamos sentir a proximidade da morte

97
4. O que vale ser criança se nos falta infância?

para poder retornar à infância que a vida hospeda e que esquecemos


na experiência do tempo acanhada pelo sistema.
Contudo, antes da epígrafe tem ainda outras palavras no conto:
o seu título. E quem sabe possamos dizer alguma palavra sobre o título
“O rio das quatro luzes” antes de entrar na epígrafe que inicia o texto,
porque os rios não parecem estar iluminados, a não ser que sejam olha-
dos com luminosidade. A luz dos rios está em como os iluminamos (ou
escurecemos). Isso talvez os torne rios de luzes. E quando são dois
rostos que olham um rio, cada um com dois olhos luminosos, então o
rio pode se tornar um rio de quatro luzes. De forma que, talvez, o títu-
lo sugira uma forma de olhar infantil para os rios. Uma luminosidade
própria daquela experiência temporal. E, quem sabe, essa luminosida-
de possa olhar não só para os rios.
É chamativo que as coisas que aparecem primeiro, como os
títulos e epígrafes, só possam ser lidos no final. E as coisas que apare-
cem no final talvez devam ser lidas à luz das que estão no início. Como
na vida de um ser humano, em que a vida de um avô ou de uma avó
talvez só possa ser lida à luz da vida de um menino ou de uma menina.
Assim como, neste conto, a vida de um menino só possa ser lida à luz da
vida do seu avô, porque parece que precisamos de toda uma vida para
olhar com certa luminosidade para a infância, como se precisássemos
nos aproximar do fim da vida para poder olhar a luminosidade do seu
início. Como no círculo, em que o ponto que escolhemos para início é
o mesmo do final… assim como escolhemos começar, assim podemos
estar escolhendo como terminar? E ainda quando parece que já termi-
namos, estamos a tempo de começar? O avô parece estar dizendo aos
pais do menino que é sempre tempo para começar.
Assim, chegamos à epígrafe do início: “O coração é como a árvo-
re – onde quiser volta a nascer”, que providencia uma certa luz para ler
a história do menino que queria morrer, porque a vida, como a infância
e o coração, volta a nascer onde (e quando?) quiser, diz a epígrafe. E
para voltar a nascer é preciso morrer. Por isso, a morte, que na adultez
é temida, horrorizada e castigada, na infância-meninice, sem idade, é
desejada, porque é uma condição para voltar a nascer. Por que o meni-
no via isso assim? Será que, para ele, o morto nascia em cada lágrima
que o chorava?

98
Walter Omar Kohan

Afirmamos, em algumas linhas acima, que a tarefa política da


escrita é recordar que somos infância, aquela infância que nasce antes
de nascermos. E enquanto escrevemos recordamos que recordar tem
a mesma etimologia de coração. Nas duas palavras está a palavra lati-
na cor, de origem indo-europeia, de modo que recordar seria “voltar a
passar pelo coração” e, sensíveis à epígrafe, voltar a passar pela possi-
bilidade de retornarmos o tempo antes de (nosso) tempo: o tempo do
estarmos prestes a nascer onde (e quando) quisermos.
Recordamos, também, a Solange Noronha, que relacionou,
hoje (sim, hoje!), numa aula do Mestrado em Filosofia para Crianças,
da Universidade dos Açores, essa infância que nasce antes de nascer-
mos com o primeiro exílio que Paulo Freire diz ter sofrido. Com efeito,
em vários textos, Paulo Freire refere-se a três exílios. Dois são bastan-
te conhecidos: o segundo, quando sua família se muda de Recife para
Jaboatão na esteira da crise econômica; o terceiro, o mais conhecido,
no exterior, após a ditadura de 1964. Mas o primeiro é o mais surpre-
endente: “o tempo de gestação no útero de sua mãe”, lembra Ana M.
Freire (Freire, 2000, p. 51). Hoje, tínhamos lido “O rio das quatro luzes”
e depois de termos apreciado as ideias aqui referidas de Lyotard sobre
a infância como uma dívida anterior ao nosso nascimento, Solange afir-
mou: “como o primeiro exílio de Paulo Freire”. Não era uma aula sobre
Paulo Freire. Fiquei emocionado com a conexão.
Em outro conto de Mia Couto, “Línguas que não sabemos que
sabíamos” (Couto, 2009), uma mulher em fase terminal de doença, já
muito perto da morte, pede ao marido que lhe conte uma história em
língua desconhecida para apaziguar as insuportáveis dores da doença.
As palavras, inicialmente balbuciantes do marido, têm sucesso e ela
adormece. Essas palavras a levaram a um conforto anterior à vida. E
Mia Couto comenta:

Na nossa infância, todos nós experimentamos este primeiro


idioma, o idioma do caos, todos nós usufruímos do momen-
to divino em que a nossa vida podia ser todas as vidas e o
mundo ainda esperava por um destino. James Joyce chama-
va de “caosmologia” a esta relação com o mundo informe e
caótico. Essa relação, meus amigos, é aquilo que faz mover a
escrita, qualquer que seja o continente, qualquer que seja a
nação, a língua ou o género literário. Eu creio que todos nós,
poetas e ficcionistas, não deixamos nunca de perseguir esse

99
4. O que vale ser criança se nos falta infância?

caos seminal. Todos nós aspiramos regressar a essa condição


em que estivemos tão fora de um idioma que todas as línguas
eram nossas. Dito de outro modo, todos nós somos impossí-
veis tradutores de sonhos. Na verdade, os sonhos falam em
nós o que nenhuma palavra sabe dizer. O nosso fito, como
produtores de sonhos, é aceder a essa outra língua que não
é falável, essa língua cega em que todas as coisas podem ter
todos os nomes. O que a mulher doente pedia é aquilo que
todos nós queremos: anular o tempo e fazer adormecer a
morte (Couto, 2009, p. 12).

O que faz mover a escrita, diz Mia Couto, é uma relação com a
língua própria da infância. Uma(s) língua(s) antes da língua, as línguas
da infância. Nessa(s) língua(s), afirmamos uma vida em que todas as
vidas parecem possíveis, em que todos os mundos têm seu lugar. Esse
mundo infantil é o que faz mover a escrita no sentido de que toda a
escrita aspira regressar a essa condição em que todas as línguas eram
nossas, antes que uma língua se consolide como a única língua possível,
porque todas as línguas significam todos os sonhos, todos os mundos,
todas as utopias. Eis também a dimensão política da tarefa de escre-
ver (e de pensar, perguntar, criar). O que a mulher queria, diz o poeta,
é anular o tempo e fazer adormecer a morte; ou, poderíamos acres-
centar, apressar a morte para poder voltar ao estado antes do nascer.
Como queria o menino do rio das quatro luzes, como queria Paulo
Freire quando foi forçado sair do útero de sua mãe. Como qualquer
escritor, educador, artista sensível à infância quer.

Paulo Freire e o tempo da (pré) escola

Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?

100
Walter Omar Kohan

Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores noturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba do tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.

Mia Couto, 2011, p. 112-114

No livro Partir da infância, Sérgio Guimarães e Paulo Freire dialo-


gam sobre educação e logo desde o início da conversa surge a pergun-
ta de por onde começar: “Vamos partir de onde?” (Freire; Guimarães,
2011/1982, p. 30). Sérgio propõe partir da infância e, interessantemente,
coloca a partida em forma de pergunta: “Da Infância? Provavelmente,
não?”. E Paulo Freire responde:

101
4. O que vale ser criança se nos falta infância?

Eu acho. A gente poderia fazer assim uma espécie de balanço,


não da infância enquanto infância minha ou tua tomada como
objeto de reflexão nossa, nem para refazê-la em termos de
história aqui, ou se contar a história da infância! Eu falaria da
infância enquanto escolaridade, por exemplo.

“Não da infância enquanto infância minha ou tua” parece


bastante claro. Paulo Freire não quer começar pela infância como
biografia, como sua infância concreta e particular, mas pensar na
“infância enquanto escolaridade”. Parece também muito claro que
não se trata de fazer história desta ou aquela infância. Pode não
parecer tão claro o que significa essa infância enquanto escolarida-
de; contudo, gostaria de lembrar os leitores e leitoras que escola é
uma palavra que deriva do grego skholé, que originariamente signi-
fica “tempo livre”; ou seja, Paulo Freire pode estar se referindo à
infância enquanto modo mais livre de experimentar o tempo e não à
infância enquanto tempo vivido, pessoal e histórico. A continuidade
do diálogo ajuda-nos porque Sérgio pergunta como foi a sua entrada
na escola e quando Paulo ficou sabendo que a escola existia, ao que
Paulo responde:

[Eu tenho impressão de que], para responder a essas pergun-


tas, eu teria que primeiro me rever no momento que proce-
deu a ida à escola, mas que foi já um momento de aprendi-
zagem, sistemática, se eu quase posso dizer assim. Foi o
momento preciso em que me alfabetizei, com meus pais, à
sombra das árvores do quintal da casa em que nasci (Freire;
Guimarães, 2011/1982, p. 30).

É muito interessante porque, quando queremos começar algo,


parece que a infância nos remete a um antes do começo. Como com as
epígrafes. Já aconteceu conosco várias vezes no presente texto. Pois!
Aqui, mais uma vez. Aliás, Paulo Freire era alguém que também gosta-
va dos inícios, de estar no começo: “Eu gostaria de dizer alguma coisa
sobre meu começo – no qual ainda estou, porque estou sempre no
começo, como você.” (Freire; Horton, 2018, p. 78). Percebamos bem:
não é apenas gostar, é estar sempre no começo. Estar sempre na infân-
cia, ser um menino permanente como souberam perceber os membros
da Biblioteca Municipal de Ponsacco, que assim o premiaram com 68
anos (A.M.A. Freire, 2010).

102
Walter Omar Kohan

Voltemos à conversa com Sérgio Guimarães. Paulo Freire nos


diz que, para começar pela infância, é preciso ir para o antes da esco-
la. Há uma escola antes da escola, uma pré-escola, que, no caso de
Paulo, deu-se no quintal da casa em que nasceu. Uma escola quintal, à
sombra das árvores. Uma escola com o tempo do jardim, das árvores,
dos pássaros, da natureza e sem o tempo da instituição. Recordemos:
o tempo da natureza é cíclico, circular, ele sempre retorna; a diferen-
ça do tempo institucional que segue uma linha reta com movimentos
sucessivos, consecutivos e irreversíveis. Paulo descreve o espaço da
pré-escola quintal como “livre e despretensioso”, muito livre e simples.
Tinha o que era necessário: o som dos pássaros, o cheiro das manguei-
ras, gravetos para escrever no chão de terra batida; um pai e uma mãe
que tinham tempo para escutar as palavras da criança. Nesse espaço
também não tinha o que pode atrapalhar a experiência de tempo infan-
til: um relógio que marque as horas, um calendário, um programa, uma
avaliação, uma normativa: porque o tempo da aprendizagem é o tempo
cíclico e presente da natureza, antes que o tempo linear composto de
passado e futuro da instituição escolar.

Para terminar… como sempre… começando

Só tenho palavras
para o indizível.
Só tenho voz
para emudecer.
Só trago nome
para o que nunca nasceu.
Uma única certeza
demora em mim:
o que em nós já foi menino
não envelhecerá nunca.
Mia Couto, 2011, p. 95

Não há nada que não tenha um começo.


Isabel

103
4. O que vale ser criança se nos falta infância?

Chegamos ao final deste texto. Ao que deveria ser um final.


Sinto-me compelido, ainda no final, a resgatar os inícios. Recordo o
percurso do texto e a necessidade de voltar a começar surge com toda
sua força: as epígrafes! São várias neste texto, uma para cada seção. E
não tenho me referido a elas até agora. Felizmente estamos a tempo
e não está mal que seja no final, na medida em que, como dissemos,
as epígrafes são escritas no início, mas entendidas por último. O caso
é que queremos escutá-las, senti-las. Precisamos voltar a esses inícios
antes do início de cada seção.
As epígrafes deste texto estão todas (menos uma) tomadas de
um mesmo livro: o Tradutor de Chuvas, de Mia Couto. Trata-se de um
livro de poemas, talvez a escrita literária mais infantil. Desse livro esco-
lhemos alguns versos para colocar no início de cada seção. Eles dizem
respeito ao que antecedem, claro, e não queremos aqui explicá-los ou
interpretá-los. Apenas recordar o que esses inícios podem abrir e o que
nossa escrita pode ter também inaugurado. E ficar com essa sensação
de que sempre é possível começar. Ou recomeçar.
Há uma única exceção: nesta seção, logo aqui em cima, em que,
além da anunciada epígrafe de Mia Couto, sentimos a necessidade de
acrescentar uma outra epígrafe: uma frase de Isabel que, com 9 anos,
afirmou que nada escapa a um começo… e pareceu-nos importante
incluir aqui essa afirmação para recordar o que uma criança disse quan-
do era ainda mais criança (?!); também porque é algo assim como uma
celebração da arte de começar e também uma epígrafe das epígrafes.
Ademais, é uma inspiração para esta parte do texto, pois ela nos impele
a pensar nos inícios das epígrafes que temos escolhido para começar,
apresentar, cada parte do presente texto.
Dentre as epígrafes aqui apresentadas, há uma epígrafe das
epígrafes, um início dos inícios do texto, a epígrafe do texto intei-
ro: tudo o que sou já fui na criança que sonhou ser tudo. É de uma
força extraordinária e ilumina todas as nossas seções, toda a nossa
escrita. Inclusive a seção sobre Paulo Freire, porque se retomamos
essa passagem ali referida do diálogo com Myles Horton, em que
Paulo diz que ambos estão no começo, leremos que Paulo relacio-
na o começo ao sonhar e aos sonhos e conta seu primeiro sonho
de criança. Quem sabe, o que estamos escrevendo seja nada mais e

104
Walter Omar Kohan

nada menos do que isso: um sonho de criança, um sonho da criança


que sonhou ser tudo.
Podemos, então, entrar nas epígrafes de cada seção. Uma de
cada vez. A primeira, Primeiras Palavras, título enganoso e promissor
ao mesmo tempo, situa o espaço da escrita, onde serão desdobra-
das as próximas seções do texto. E a epígrafe faz notar justamente
uma infância que extrapola não só a infância entendida como uma
etapa da vida humana, como também a infância da humanidade, pois
a epígrafe está referida a uma infância que diz respeito aos seres
marinhos que ocupam o oceano inteiro e fazem desse oceano “um
pátio de infância”. Começamos bem a seção: estamos num pátio de
infância. Será a escrita, como um oceano, um pátio de infância para
as letras e as palavras?
Uma vez apresentado o texto, começamos explorando um
conto de Mia Couto: “O rio das quatro luzes”. É um conto singular,
curioso, em que um menino deseja desfilar como um morto para
poder sentir a tristeza que o morto gera. E a epígrafe justamente
nos ajuda a pensar no significado da morte, em formas de relação
com a morte e nos significados possíveis de mortes que não seriam
mortes. Fins que seriam começos? E sugere uma forma de nascimen-
to e feitura de si mesmo que estão mais próximos da eternidade do
que da morte. Haverá algo de fuga da morte e da busca da eterni-
dade em nossa relação com a escrita e a leitura? Só de perguntá-lo
ficamos arrepiados.
“De infantia, luzes e corações” é uma seção dedicada a uma
primeira aproximação às epígrafes, através do conto de Mia Couto
e de uma certa busca conceitual por pensar as relações entre infân-
cia e tempo e a tarefa política que significa, na escrita, na educação e
nas artes, não esquecer que somos uma infância antes da infância das
idades. Assim, a epígrafe chama a atenção sobre uma certa oposição
entre tempo e futuro. Ou, para dizê-lo de outra maneira: parece que há
um tempo, quem sabe justamente o tempo da infantia, que não neces-
sita do futuro para sentir o tempo passar. Certamente, é um tempo
interior ou anterior, um tempo que mora em nós, como uma recorda-
ção, uma deixa, uma pegada que podemos recuperar, quem sabe?, a
qualquer idade.

105
4. O que vale ser criança se nos falta infância?

A seção “Paulo Freire e o tempo da (pré) escola” tem a epígra-


fe mais extensa, o poema mais alongado. Aparecem nele algumas
das temáticas já consideradas e mais algumas: uma mãe que habita o
tempo das idades tentando dar razões a um filho que está num tempo
sem idades. É um poema riquíssimo, povoado de lua e luares, lençóis
que beijam, doenças na forma de tristezas, forças da vida e de uma
suspeita: é o amor ou sua falta que nos fazem estar na posse ou na
ausência do tempo.
Assim chegamos à última epígrafe, a epígrafe menos epígra-
fe? Ou a que epigrafa menos? Quem sabe? É, como todas as outras,
muito bonita. E de uma potência singular. Talvez por isso deixamos ela
por último: porque reúne palavras e ideias que fomos espalhando pelo
texto: o indizível; a voz que emudece; o que nunca nasceu; é uma única
certeza, demorada, sem tempo, permanente: há um tempo menino
que não sofre o passo do tempo; há uma vida menina que precisamos
manter sempre viva; a nossa meninice nunca envelhece.
E parece que nada resta dizer depois da última epígrafe.
Arribamos mesmo ao indizível. À infância. Só nos resta agradecer. Aos
nossos interlocutores primeiros: Mia Couto e Paulo Freire, que espera-
mos ter feito conversar meninamente. Aos nossos leitores e às nossas
leitoras que, se chegaram até aqui, é porque sentiram que este texto
de certa maneira recordou algo de sua infância. E, finalmente, um final
que nos relança ao início, agradecer à infância por nos ajudar a encon-
trar novos sentidos políticos, estéticos, literários, existenciais à arte
menina de educar.

106
5. Diego e Paulo, dois meninos danados,
amorosos, de esquerda…
ou de como convidar um amiguinho inesperado
para comemorar uma vida infantilmente
amorosa e revolucionária17

Para Sergio Kohan,


Alejandro Cerletti, Gustavo Ruggiero, Maximiliano Durán,
Luis Ángel Castello, Pedro Lespada, Nicolás Galetti,
Guillermo Tagliaferri, Héctor e Dante Palma, e
Giuseppe Ferraro.

[…] en una revolución verdadera, a la que se le da todo, de la cual no


se espera ninguna retribución material, la tarea del revolucionario de
vanguardia es a la vez magnífica y angustiosa. Déjeme decirle, a riesgo
de parecer ridículo, que el revolucionario verdadero está guiado por
grandes sentimientos de amor. Es imposible pensar en un revoluciona-
rio auténtico sin esta cualidad.
Ernesto Che Guevara, 1978, p. 21-22

Antes de começar… infância

Confesso-lhes que pensei, pensei e pensei sobre o que e como


escrever este texto. Vivemos um momento político, social e econômico

17
Agradeço a Anelice Ribetto e Magda Costa Carvalho por sugestões e correções a
uma versão primeira deste texto.

107
5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda...

muito difícil no Brasil; um tempo terrível, angustiante, em que pade-


cemos uma política de extermínio por parte de um governo genocida
com uma crueldade poucas vezes vista, em particular com a popula-
ção mais pobre, negra, oprimida. Os números de mortes não param de
crescer e, o que é mais angustiante, também não diminui essa combi-
nação cruel de cinismo, descaso e negacionismo. O Brasil está sendo
hoje território de um projeto de extermínio. Claro que há resistências e
movimentos que nos mantêm vivos e esperançados. E por isso escreve-
mos e damos a ler, para resistir à morte e esperançar com outras vidas
e outros mundos.
É extraordinária a sensação de estar antes de começar e, ao
mesmo tempo, começando. Começar sem começar. Começar antes
de começar. Começar, sempre começar. Uma sensação puramente
infantil em que todas as línguas e as histórias parecem possíveis de
serem contadas. E quando estamos começando antes de começar
com meninas e meninos tão infantis como os que nos estão acom-
panhando, em especial com um “menino permanente ou eterno”
como Paulo Freire, a sensação de possibilidade, potência e alegria
é ainda mais intensa18. E assim escrevemos, experimentando um
tempo presente, duradouro, brincando de escrever com nossos
amigos infantis.

Paulo, o Che e um menino inesperado: amor, infância e


revolução

O intelectual precisa saber que a sua capacidade crítica não é


superior nem inferior à sensibilidade popular.

Paulo Freire; Antonio Faundez, 2017, p. 58

18 Estou aludindo, claro, ao depoimento da segunda esposa de Paulo, Ana Maria


(Nita) Araújo Freire, que faz um belo tributo a essa relação íntima que o grande mestre
pernambucano manteve com a infância durante toda sua vida num belo texto, intitu-
lado “Paulo Freire, o eterno menino”. O texto está publicado como prefácio a um livro
de memórias sobre Paulo Freire em inglês (Wilson; Park; Colón-Muñiz, 2010). Na home-
nagem a essa intensidade e intimidade com que Paulo Freire viveu meninamente toda
a sua vida, Nita Freire sinaliza como ele teria “anunciado um novo, que só meninos de
caráter puro, sério, de adulto, podem fazer” (p. xxv). Nesse mesmo texto, Nita Freire
lembra o prêmio de “menino permanente” recebido por Paulo Freire da Biblioteca
Comunale di Ponsacco, em Pisa, Itália, em 31 de março de 1990.

108
Walter Omar Kohan

Há pelo menos dois tempos que atravessam a obra e a vida


de Paulo Freire: o tempo linear com que contamos os processos
historiográficos e o tempo circular da infância, da arte, do amor; o
tempo adulto que transcorre e o tempo da infância que permane-
ce; o tempo crescido dos estabelecimentos educativos e o tempo
de se alfabetizar à sombra de uma mangueira, no quintal da Casa
do bairro de Casa Amarela na Recife natal; o tempo móbil, numera-
do, calendarizado em passado e futuro das instituições sociais e o
tempo presente da leitura que lê mundos e palavras. Pensei que este
texto poderia ser uma boa oportunidade de retomar e repensar essa
dupla temporalidade que atravessa a oposição entre o fundante e o
presente; entre o tempo dos 100 anos e de uma vida que não parece
possível de ser quantificada no tempo das idades; uma vida que habi-
ta, neste presente mais do que nunca, uma temporalidade infantil
que permanece entre nós.
Neste tempo de começos, pensei que a minha melhor home-
nagem a Paulo Freire seria oferecer-lhe uma escrita amorosa. E, ao
mesmo tempo, essa seria uma condição para qualquer escrita ensaiada
como homenagem: escrever amorosamente. E então lembrei-me de
um conterrâneo meu, Ernesto Che Guevara, de um dos seus textos, que
coloquei como epígrafe do presente texto, em que afirma que o amor é
também a condição de um verdadeiro revolucionário.
E lembrei-me que Paulo Freire cita esse mesmo texto do Che
Guevara mais de uma vez. Por exemplo, o cita numa nota de rodapé de
A Pedagogia do oprimido, para justificar que toda verdadeira revolução
nasce do amor e só pode ser um ato amoroso (Freire, 2018b, n. 45, p.
189). Também o faz na Pedagogia da Tolerância, para elogiar o Che, a
quem qualifica nesse contexto de um pedagogo da revolução (Freire,
2018a, p. 131). E perguntei-me se, assim como, segundo Che Guevara, o
verdadeiro revolucionário é necessariamente um ser amoroso, o verda-
deiro amor não seria também necessariamente um ato revolucionário.
E continuei me perguntando sobre as diversas formas de ser revolu-
cionário e de ser amoroso e das possíveis combinações entre ambas.
E perguntei-me o que pensaria Paulo Freire dessa exigência feita ao
amor. E voltei a sentir a alegria de um começo cheio de curiosidade
infantil e também de compromisso político.

109
5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda...

E logo pensei na infância, que é algo tão importante para Paulo


Freire. Pensei nos amores infantis, na amorosidade infantil e na infan-
tilidade do amor. Pensei também nas relações entre amor, revolução
e infância. Uma revolução verdadeira não é apenas amorosa; ela é
também menina, e a meninice revolucionária não tem a ver com uma
idade ou número de anos, mas com a força para viver algo tão sério
quanto uma revolução de forma curiosa, inquietamente infantil, e sem
medo de sonhar, criar, transformar. Pensei então que Paulo Freire
muito provavelmente concordaria em chamar Che Guevara de um
menino amorosamente revolucionário. E que a meninice é mesmo uma
potência revolucionária de qualquer vida e que, nas vidas educadoras,
ela vive alimentando e alimentando-se de revolucionárias pedagogias,
pedagogias meninas, pedagogias da pergunta.
E de tanto pensar em meninice, amor e revolução, me veio uma
lembrança forte de um menino amoroso e revolucionário que senti
que poderia se fazer presente neste texto para o dossiê, pelo seu cará-
ter imprevisto, intempestivo (outra vez o tempo!) e surpreendente. E
também porque foi chegando quase sem querer, sem pensar muito,
apenas atentando para a sensibilidade dos meninos revolucionários
que a povoavam. Senti que valia a pena experimentar esse caminho
pela estranheza que poderia gerar, mais ainda num país como o Brasil,
em que esse menino não é tão amado como em outras terras e até
circula em torno dela uma certa reputação degradada, propagada
em especial pelas mídias dominantes. E como essa escrita ela própria
sente-se menina, amorosa e revolucionária, pareceu-me que essa peral-
tagem menina merecia ser escutada e acolhida.
Eis então que a escrita acolhe esse outro menino, Diego
Armando Maradona. Imagino a surpresa, estranheza, espanto de
muitos leitores e leitoras! O quê??? Diego Maradona e Paulo Freire???
Como seria possível? Ele pirou? O que tem a ver um com o outro? Eles
não seriam, na verdade, opostos? Essa ideia só podia vir mesmo de um
argentino… Sinto todas essas vozes. Não são sem fundamento nem
sem graça. Porém, sugiro aos leitores e leitoras se acalmarem e respira-
rem fundo. E dar um certo tempo (!) à presente escrita. Sei que estou
pedindo algo impossível, algo que ninguém tem: tempo. Mas talvez o
que esteja mesmo pedindo, mais do que a entrega de uma quantida-

110
Walter Omar Kohan

de de tempo, é uma certa atenção a um outro tempo para além do


dominante em nossas vidas: o tempo, por exemplo, de uma verdadei-
ra experiência da leitura, esse tempo lento, paciente, demorado que
transcorre quando lemos pelo prazer de ler sem esperar nada mais e
nada menos do que leitura da leitura. O mesmo tempo de brincar, criar
e amar. Esse tempo circular, presente, duradouro. Peço aos leitores e
às leitoras que recordem (recordar: voltar a passar pelo coração) seu
tempo de infância.

Algumas objeções contra um menino danado e nada santo

Los pueblos lo guardarán a Diego en sus corazones, y de-


mostrarán, una vez más, que los humildes entienden de la
gratitud, que es una forma de la ética, mucho más que los
profesionales de la información.
Sandra Russo, 2020, s/p

Enquanto esperamos que esse tempo nos arremeta, vamos a


considerar algumas objeções ao meu menino19. Elas poderiam ser de
diversos tipos. Alguém poderia sugerir que Diego Maradona e Paulo
Freire habitavam mundos muito diferentes e dedicaram suas vidas a
atividades distintas: um dedicou sua vida ao futebol e o outro à educa-
ção. Não deveríamos relacionar Maradona com Pelé (ou Messi ou
Garrincha, Ronaldo, enfim, poderiam ser outros nomes, mas sempre
nomes dentro do mundo do futebol) e Paulo Freire com Gramsci,
Pestalozzi, Maria Montessori ou outros nomes, mas sempre dentro do
mundo acadêmico ou intelectual? O que o futebol e a educação têm a
ver um com a outra?
Entendo e não desconsidero estas questões. Mas, para dizer
a verdade, encontro pouco sentido nelas… Por que devemos manter-

19
E peço desculpas às meninas leitoras porque parece que só encontro meninos
amorosos e revolucionários. É um defeito de formação já percebido e que estou me
esforçando para superar.

111
5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda...

-nos dentro de campos fechados como se fossem compartimentos


estanques e sem conexão com outras formas de habitar a vida social?
Por que pensar ou desenhar conexões de uma forma estreita e compar-
timentada e não de outra mais ampla e interconectada? Também
poderíamos simplesmente nos perguntar “por que não problematizar
e considerar as diversas dimensões e atores da vida social da forma
que consideramos interessante?”, como cada vez que alguém apare-
ce querendo interromper uma linha de pensamento ou de escrita…
porque sempre que alguém diz que “isso não deveria ser pensado ou
escrito”, o pensamento e a escrita sofrem. Por que não considerar a
pertinência de uma conexão depois de essa conexão ser feita, em vez
de antes? Afinal, as ideias mais inusitadas costumam vir das conexões
menos esperadas e previsíveis, de modo que não estou muito preocu-
pado em que não seja uma conexão esperável ou habitual entre habi-
tantes de campos distintos; ao contrário, isso parece ser mais um estí-
mulo do que um impedimento.
Porém poderiam existir outras objeções, talvez mais sérias.
Outras pessoas poderiam replicar que ambos tinham formas de vida
muito distintas, que Diego Maradona e Paulo Freire se relacionavam
de forma bastante diferente com a sociedade de consumo, o dinheiro,
as tentações do capital. De forma alguma pretendo negar essas (ou
outras) diferenças nos modos de vida desses dois meninos. No entan-
to, gostaria de destacar algumas intercessões que atravessam essas
diferenças: uma origem pobre em comum que incluiu a experiência da
fome e das privações em si mesmos e nos seres queridos em casa; uma
relação igualmente generosa com as pessoas da mesma classe social a
partir do momento em que eles podem viver uma vida mais abastada; e
um reiterado e repetido retorno aos lugares e pessoas de origem assim
que as condições o permitem.
Claro que as objeções poderiam não parar por aí; alguém
poderia questionar, por exemplo, como seria possível entrelaçar uma
pessoa defensora da ética nas práticas educativas e na vida em geral
com uma pessoa viciada em drogas. Aqui as coisas tornam-se ainda
mais complexas e interessantes; e este menino que está começan-
do a escrever sorri porque sabe que tem aí muito pano para manga,
porque no Brasil a mídia hegemônica tem construído uma imagem

112
Walter Omar Kohan

de Diego Maradona como uma espécie de demônio e mau exemplo


moral para a juventude. É bom notar que, agindo dessa forma, a mídia
trata o problema das adições como um problema moral individual e
não como uma questão de saúde e educação públicas. Também é
importante perceber e pensar que Diego Maradona é apenas o que
essa mídia careta e conservadora oferece como sua imagem. Seria
mais ou menos como seguir a imagem que os defensores da Escola
sem Partido (ESP) fazem de Paulo Freire. Alguém lendo estas palavras
conseguiria aceitar, por exemplo, a descrição ideologicamente menti-
rosa que Thomas Giuliano oferece do Patrono da educação brasileira
em alguns dos seus textos e intervenções?20 Vamos ver essas ques-
tões mais de perto.
Por exemplo, em audiência pública na Câmara dos Deputados
em março de 2017, T. Giulliano cita em forma descontextualizada e
isolada um trecho do Terceiro Capítulo da Pedagogia do oprimido
(“Uma primeira condição a ser cumprida é que necessariamente devem
representar situações conhecidas pelos indivíduos cuja temática se
busca o que as faz reconhecíveis nelas possibilitando, desta forma, que
nelas se reconheçam”, 2018/1970, p. 38) e, sem mais, tira a seguinte
conclusão: “É desrespeitoso julgar que todo aluno dentro de uma sala
de aula tenha obrigatoriedade de conhecer cocaína, conhecer loló e
não conhecer o colo de sua mãe…”21. Acreditar que este testemunho
ofuscado e cego pela sua própria ideologia – e que conecta a necessi-
dade estabelecida pelo mestre pernambucano de partir de situações
conhecidas pelos educandos a um suposto conhecimento obrigatório
de cocaína – tem alguma coisa a ver com Paulo Freire é mais ou menos
como pensar que o retrato da mídia dominante de Diego Maradona

20
Thomas Giulliano é autor do livro Desconstruindo Paulo Freire, promovido pelo site
www.historiaexpressa.com.br). No Boletim da Liberdade ele oferece entrevista a Diego
Casagrande sobre Paulo Freire; em anos recentes, Guilliano foi uma das vozes falidas
que pediam o cancelamento do título de Patrono da Educação Brasileira outorgado a
Paulo Freire por Lei do Congresso em 2012. Disponível em: <boletimdaliberdade.com.
br>. Acesso em: 22 set. 2017.
21
O depoimento está na audiência pública na Câmara dos Deputados do PL 7180/14
- Escola Sem Partido em 21/03/2017: <https://www.youtube.com/watch?v=FAS6T78rB-
v8&abchannel=C%C3%A2maradosDeputados>. Acesso em: 02 abr. 2021.

113
5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda...

como um cocainômano pode nos ajudar a perceber o valor e sentido de


uma vida como a de Diego Maradona.22
Não pretendo que o leitor ou a leitora mudem sua forma de
pensar que talvez tenha sido construída ao longo de bastante tempo.
Mais uma vez, o tempo. Desta vez um tempo medido em quantidade de
tempo. Apenas quero lembrar-lhes, leitores e leitoras, que estou espe-
rando que encontrem tempo. Não um tempo medido em quantidade,
mas um tempo de infância. Fiquem atentas e atentos pelas dúvidas
que possam surgir na recordação daquele tempo do brincar, o mesmo
tempo do pensar, perguntar, criar e amar.

Dois meninos de esquerda

O nosso sonho é o de criar uma sociedade em que uma minoria não


explore as maiorias. Criar uma sociedade em que, por exemplo,
perguntar seja um ato comum, diário…

Paulo Freire; Antonio Faundez, 2017, p. 109

Enquanto confio que esse tempo já tenha chegado ou esteja


começando a chegar, quero logo chamar a atenção sobre um forte
ponto em comum entre Diego Maradona e Paulo Freire. Os dois pensa-
vam que o que faziam era um ato político: jogar bola e educar. E por
isso foram amados e odiados. E, quase sem querer, veio outra coisa
junta em comum: ninguém era indiferente a eles; despertavam e ainda
despertam os amores e ódios mais acirrados, mas dificilmente geram
indiferença. Isso talvez tenha a ver com ambos assumirem a dimensão
política de suas ações e perceberem a si próprios como atores políticos
que tomavam posição constantemente no contexto em que estavam

22
Certamente, Diego Maradona era adito à cocaína. Isso não faz dele um vilão, mas
antes uma vítima de um problema social muito grave. Maradona nunca negou sua
adição e nunca drogou-se para tirar alguma vantagem esportiva; ao contrário, em re-
petidas vezes ele se lamenta, alerta aos jovens sobre os perigos do vício e inclusive se
pergunta em diálogo com o cineasta sérvio Emir Kusturika “você se imagina o jogador
que eu tivesse sido senão tivesse consumido cocaína?” (Documentário “Maradona by
Kusturika”, 2008).

114
Walter Omar Kohan

vivendo. Seus amigos e inimigos são coincidentes: os primeiros são os


amigos do povo; os segundos são os inimigos do povo.
Estamos ainda começando a escrever e, a partir deste início
recém percebido, os pontos em comum não param de aparecer: além
de os dois pensarem-se como agentes políticos, também compartilha-
vam uma mesma posição política: eram, digamos, de “esquerda”. Sei
do valor de algumas palavras e das dúvidas que algumas delas geram.
Poderíamos usar inclusive outras palavras para exemplificar essa coin-
cidência: “comunistas”, “socialistas”, “progressistas” ou até mesmo
uma palavra que já usamos: “revolucionários”. Contudo, preferimos a
expressão “de esquerda”. Mas o que é ser de esquerda?
Às vezes, recordar a origem de algumas palavras, a sua mais
tenra infância, ajuda a entendê-las. Pois bem, parece que os primeiros
usos com sentido político das palavras “esquerda” e “direita” remontam
à Revolução Francesa, em 1789, e eles são bastante elucidativos, pois os
que estavam à esquerda do Presidente da Assembleia Nacional eram
justamente os revolucionários, enquanto os que estavam à sua direita
eram os conservadores, os partidários da monarquia. Os que estavam à
esquerda estavam inconformados, revoltados com o estado das coisas;
eram partidários do movimento; já os que estavam à direita queriam
mantê-lo; eram partidários da quietude. Ou seja, Diego e Paulo teriam
sentado do mesmo lado, à esquerda do Presidente da Assembleia.
Diego e Paulo também compartilhavam admirações e aprecia-
ções: afirmativas sobre as revoluções cubana e sandinista, por exemplo.
Diego não era um intelectual; portanto, não escrevia e citava o Che, mas
tinha ele tatuado na pele (como também tinha uma tatuagem de Fidel
Castro) e lembrava dele amorosamente23. Admirava a revolução cuba-
na, seu sistema de saúde, seus logros em educação e na eliminação da
pobreza. Em diversas ocasiões, manifestou seu apoio ao mesmo Partido
dos Trabalhadores (PT) que Paulo Freire ajudou a fundar e mais recente-
mente solidarizou-se com Dilma, quando ela sofreu o golpe, e com Lula,
quando ele foi impedido de concorrer às eleições de 2018.

23
Diego Maradona visitou várias vezes Fidel Castro em Cuba, onde inclusive fez vá-
rios tratamentos de saúde. Tinha grande admiração pessoal e política pelo líder cubano
a quem se referia como um segundo pai. O destino acabou unindo-os no dia da morte:
25 de novembro (Fidel Castro, de 2016; Diego Maradona, de 2020).

115
5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda...

Imagem 1: Diego Maradona Imagem 2: Junto a Evo Morales Imagem 3: Quando arreceavam os pe-
apoiando a Candidatura de Lula na Marcha contra o Neoliberalis- didos de impeachment contra Dilma
em 2018. Na legenda do twitter mo em 2005. em 2016, no Facebook de Diego lia-se:
do Diego lia-se: “Diego soldado “Quero enviar o meu apoio à Sra. Pre-
de Dilma e Lula”. sidente Dilma Rousseff, meu coração
está contigo”.

Quando Diego Maradona morreu, com sessenta anos, no


dia 25 de novembro de 2020, o mundo ficou mais triste. Amigos e
parceiros de Paulo Freire, como Lula e Dilma, também ficaram tris-
tes. “Foi um gigante do futebol, da Argentina e de todo o mundo,
um talento e uma personalidade única”, disse Lula. “Maradona foi
um incansável defensor dos pobres, da luta contra a desigualdade
na Argentina, no Brasil e em toda a América Latina”, lembrou Dilma.
Dentro e fora da Argentina, Diego Maradona sempre se posicionou
politicamente; e sempre o fez do mesmo lado: dos trabalhadores,
explorados, excluídos.
Diego Maradona, dentro e fora dos gramados, foi um militante
dos mais castigados, debilitados, oprimidos. O mestre de Fiorito tentou
proteger os direitos dos futebolistas, como trabalhadores, e por várias
vezes arriscou criar sindicatos de futebolistas, enfrentando a FIFA em
diversas ocasiões em defesa de colegas menos conhecidos e com menos
poder para defender seus direitos. Também participou de diversas mani-
festações políticas nas ruas em diversos países do mundo: na Bolívia,
para apoiar seu reclamo de saída ao mar; na Venezuela, para exigir o fim
do bloqueio estadunidense; em Meio Oriente, para apoiar o povo pales-
tino e condenar a ocupação do Estado de Israel. A lista de suas mani-
festações políticas seria interminável. Muitas vezes, Maradona costeava
do próprio bolso viagens de apoio a causas políticas de esquerda. Em
seus anos de jogador do Napoli, foi um símbolo de esperança na luta
do Sul pobre contra o Norte rico e foi a única vez na história do futebol
italiano que um time ao sul da capital italiana conquistou o campeona-
to italiano. Contudo, talvez a mais chamativa das suas manifestações

116
Walter Omar Kohan

foi em novembro de 2005, quando, junto a figuras como Evo Morales e


Hugo Chávez, liderou a multitudinária Marcha contra o Neoliberalismo
e o Tratado de Livre-Comércio e a III “Cúpula dos povos” pela unidade
latino-americana, em Mar del Plata, na Argentina.
Desde uma perspectiva mais conceitual, podemos também
buscar ajuda de uma filósofa ou filósofo para uma análise mais apro-
fundada da expressão “de esquerda”. Para isso, acudimos a Gilles
Deleuze, que diz que ser de esquerda é uma questão de percepção
(Deleuze, 2001/1997, “G como Gauche (esquerda)”): quem é de esquer-
da percebe como mais importante o comum, geral, coletivo; e como
menos importante o individual. Bem, é essa percepção que une Paulo e
Diego: por um lado, uma certa percepção da relação entre o individual
e o coletivo. Para simplificar, digamos que, para alguém de esquerda,
o foco é no universo, depois no planeta Terra, depois no continente
americano, depois em nossos países, em nossa cidade, em nossa vizi-
nhança e, no final, só no final, no indivíduo. Alguém de esquerda pensa
que o importante é o todo, o coletivo, o comum, o povo… No futebol,
diríamos que alguém de esquerda está preocupado com o sucesso ou
insucesso do time e não tanto com sua sorte pessoal; ou então, com
a turma, o bairro, a comunidade… O particular, o individual, só está
depois do coletivo. Não é que não tenha importância; claro que tem,
mas, para alguém de esquerda, como Diego e Paulo, o mais importante
é sempre o coletivo.
Claro, o caminho da percepção pode ser muito diferente do
caminho do que é importante: não começamos a perceber o todo:
alguém começa a ver o mundo desde suas origens para ver para além
desse contexto, e não ao contrário. É por isso que nenhum dos dois
nunca pode se separar de suas origens, de seu povo, de sua aldeia,
e ambos retornaram sempre que possível a Fiorito, a favela que viu
nascer Diego, e ao Recife, cidade natal de Paulo. Os dois conseguiram
se conectar de maneira extraordinária com o todo por não se nega-
rem e levarem sempre consigo sua particularidade. E, à medida que
crescem (em idade, mas também em percepção dos atravessamentos
do mundo social), eles passam a ser mundanos; sem deixarem de se
sentir parte de sua aldeia, eles passam a estar cada vez mais atentos
a um campo mais amplo, um pouco além da própria aldeia… Diego é

117
5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda...

argentino e Paulo é pernambucano, mas ambos percebem e habitam o


mundo muito além dessas fronteiras. Paulo costumava dizer, quando
voltou do exílio:

Antes de tornar-me um cidadão do mundo, eu era e sou cida-


dão do Recife, a que cheguei a partir do meu quintal num
certo bairro do Recife, o de Casa Amarela. Quanto mais enrai-
zado na minha localidade, tanto mais possibilidades tenho
de me espraiar, de me mundializar. Ninguém se torna local a
partir do universal. O caminho é o inverso. Eu não sou primei-
ro brasileiro (a não ser legalmente) para depois ser recifense.
Sou primeiro recifense, pernambucano, nordestino. Depois,
brasileiro, latino-americano, gente do mundo. (Freire, 2013,
p. 41).

Quanto mais enraizadas em nossa localidade, mais possi-


bilidades de nos tornarmos mundanos. Quanto mais sensíveis às
nossas origens, mais força para voar por outros mundos. Diego e
Paulo levaram seus primeiros mundos com eles ao redor do mundo.
Apresentaram-se ao mundo com seus mundos presentes neles.
Nunca se desprenderam deles. Ambos nasceram num contexto em
que sentiram fome, mas também alegria: a alegria de jogar bola na
rua, ainda de noite e sem muita luz na várzea em Fiorito, Província
de Buenos Aires; ou nas ruas de Jaboatão dos Guararapes, com
umas bolas que sequer eram bolas… Ambos viveram num mundo
deste lado, no Sul, um mundo colonizado, explorado, oprimido… e,
a partir desta experiência, aprenderam também a ser habitantes de
um mundo muito maior e – aqui vem um sentido preciso de ser de
esquerda – se posicionaram sempre e de todas as formas possíveis
contra este estado de coisas. Ambos se posicionaram, tomaram parti-
do, nunca se eximiram. Na Argentina, Diego esteve sempre do lado
das mães e avós da Praça de Maio, condenando os crimes da ditadura;
repudiando as políticas neoliberais do governo Macri e defendendo
os aposentados, sem teto e outras formas de exclusão; assim como
Paulo defendia até em seus últimos depoimentos as marchas dos Sem
Terra em 1997 e também dos que não têm escola, dos que não podem
amar, dos desobedientes.
Ser de esquerda é, precisamente, ser desobediente, incomoda-
do e incomodante. Diego e Paulo eram dois meninos desobedientes,

118
Walter Omar Kohan

incomodados e incomodantes. Eles nunca se acomodaram ou fizeram


cálculos econômicos ou políticos na hora de denunciar e combater a
fome, a opressão, a miséria… e aqui, talvez, encontremos num novo
sentido do ser de esquerda: eles também sentiram as forças afirma-
tivas que habitam este estado próprio de nossa realidade colonizada,
atropelada, explorada, esfarrapada: as potências afirmativas na cultura
popular, a valorização da música, da arte, da dança, do amor… Eles
sentiram-se sempre parte daquela mistura de dor e alegria que emana
destas terras… e fizeram um corpo das forças afirmativas que nos habi-
tam e com esse corpo denunciaram e lutaram contra o poder que opri-
me onde quer que se expresse: num campo de futebol, numa escola,
nas instituições que nos desgovernam…. sem desesperançar e sem
perder a ternura jamais, como diria aquele outro menino argentino já
citado nestas palavras.
Diego e Paulo sempre estiveram de um mesmo lado, “deste
lado”, do Sul, suleando, como diria Paulo (Freire, 2014)24, e com aque-
les que estão deste lado. Não se trata de uma questão de identidade,
nascimento ou geografia. Há um Sul na Europa, em Nápoles, o Sul do
Sul no Norte, precisamente onde Diego encontra sua outra casa e
sua política contra o Norte opressor. Há também um Sul na Ásia, em
Bangladesh, onde comemoram como em Fiorito os gols contra os
ingleses, especialmente o gol com a mão que quebra as regras contra
um opressor que usa o direito para perpetuar sua opressão; há um Sul
na Oceania, na África: há um Brasil na Guiné Bissau, na Tanzânia, em
Cabo Verde, na Nicarágua, onde Paulo se encontra em casa. Onde for
necessário, haverá um sul para recriar a alegria ou recriar uma leitura
mais sensível e atenta do mundo e da própria história.
É por isso que Diego e Paulo são de esquerda, revolucionários,
porque nunca deixaram de sentir e habitar o mundo a partir da pobre-
za, da marginalidade e de necessidades coletivas vividas na infância
cronológica; porque sempre privilegiaram o coletivo para denunciar,

24
Nas notas à Pedagogia da Esperança, Anita Freire afirma a respeito do termo “suleá-
-los” que “Paulo Freire usou esse termo que na realidade não consta dos dicionários da
língua portuguesa, chamando a atenção dos leitores(as) para a conotação ideológica
dos termos nortear, norteá-la, nortear-se, orientação, orientar-se e outras derivações.”
(Freire, 2014, p. 294, n. 15).

119
5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda...

questionar e objetar aquele estado de coisas que se expande muito


além de seu lugar de pertencimento. Por isso geram tantas emoções,
adesões e simpatias nos lados mais distantes do mundo… Há, portan-
to, uma “comunalidade” em Diego e Paulo, no sentido de algo comum
que qualquer um, sim, qualquer um que esteja deste lado – não geográ-
fica, mas existencialmente –, em qualquer lugar do mundo, pode sentir
e compartilhar…

Dois meninos amorosos

Siempre le tuve muchísimo miedo a mi muerte, pero


hoy ya no… ¡Porque sé que ese va a ser el momento
que voy a volver a verte y abrazarte de nuevo!
Dalma Maradona, 2020

Da política ao amor, há apenas um passo. Os dois – Paulo e


Diego – amavam o que faziam, a vida política que levavam. Amavam-
na com um amor infantil, sensível à infância; por isso, foram vidas
cheias de infância. De um lado, um menino eterno, permanente, que
troca cartas desde seu exílio em Santiago do Chile com sua amiga mais
nova, Nathércia Lacerda, sua sobrinha-prima de nove anos que mora
no Rio de Janeiro (Lacerda, 2016). Paulo sofreu a ditadura na própria
carne e, a partir do exílio, trocava com ela uma correspondência infan-
til, em que escrevia sobre suas experiências de menino-adulto no
mundo surpreendente e diferente da sua nova realidade e transmitia
um cuidado extraordinário com a experiência, própria e alheia, de ser
criança e também uma amorosidade pela infância que se traduz nas
recomendações de preservar uma vida infantil, curiosa e inquieta, em
todas as idades.
Do outro lado, um menino que, mesmo profissional do fute-
bol, vai ao treinamento com as flores que a filha mais velha, Dalma
Maradona, tinha colocado em suas meias.

120
Walter Omar Kohan

Imagem 4: Na primeira foto, Dalma, a filha mais velha,


Imagem 5: Na segunda foto, durante o treina-
coloca margaridas nas meias do pai antes de ele ir para
mento, Diego correndo com as margaridas nas
o treinamento em Napoli.
meias anteriormente colocadas pela Dalma
(seguido pelo companheiro no time, o brasilei-
25
ro Careca).

As imagens são eloquentes. Na primeira, a intimidade de uma


25

relação e uma brincadeira infantil: a menina coloca flores na vestimenta


do pai; mais precisamente, nas meias que cobrem suas pernas, uma das
partes principais do corpo de um jogador de futebol, com as quais ele
chuta a bola; a mesma bola sobre a qual Diego está sentado enquan-
to Dalma adorna suas pernas. Uma outra bola está também na cena
tapando parte do corpo da Dalma. Ele parece muito concentrado na
atividade da menina. Não está distraído ou molesto. Ao contrário, está
participando da mesma atividade e acompanha com muita seriedade o
feito da filha. Na outra imagem, Diego está correndo no treinamento,
no estádio San Paolo, com as meias decoradas por Dalma. É uma forma
de levar a menina consigo, mas também de manter o amadorismo na
vida profissional, de cuidar da amorosidade no trabalho, de dar lugar à
infância, no mundo sério dos adultos; é, por fim, uma forma de mostrar
amor à infância e de habitar uma vida amorosamente infantil. Quando
Diego morreu, em novembro passado, a mesma Dalma, já com idade
adulta, mas ainda na infância, publicou uma carta de despedida com a
primeira dessas fotos e, entre outras coisas, afirmou: “Não foi preciso
muito para amá-lo. […] A vida é curtinha, então nos vemos em breve.

25
Essas e outras fotos sobre essa amorosa cena encontram-se em: <https://www.
parati.com.ar/la-secuencia-y-la-historia-detras-de-la-foto-mas-tierna-que-dalma-mara-
dona-eligio-para-despedir-a-su-papa/>.

121
5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda...

Vou trazer-lhe margaridas para decorar suas meias de jogador e, por


favor, olhe para mim novamente com aquele amor que se percebe na
foto, te amo para sempre!”26.
Os meninos Diego e Paulo, cada um ao seu jeito e nos seus
contextos, mantêm uma relação muito intensa com a infância. Por um
lado, como temos visto, com a infância das crianças. Sabemos como
Paulo considerava que uma das melhores coisas que ele fez na sua vida
foi “manter vivo o menino que não pude ser e o menino que eu fui,
em mim”, como afirma em junho de 1988, com 66 anos, durante uma
palestra sobre “educação e direitos humanos” na Universidade de São
Paulo (Freire, 2001, p. 101). E logo acrescenta que, com sessenta anos,
ainda vive uma vida infantil e faz uma interessante referência aos seus
companheiros de esquerda:

[…] Algum companheiro meu de esquerda já estará dizendo:


Paulo está irremediavelmente perdido. E eu diria a meu hipo-
tético companheiro de esquerda: Eu estou achado: precisa-
mente porque me perco olhando a neve cair. (Freire, 2001,
p. 101).

Que não se enganem alguns que se pensam de esquerda: a


infância, como o amor, diz-nos Paulo Freire, não pode ser esquecida
numa vida revolucionária. Uma vida revolucionária é também uma vida
infantil. Como a vida de Diego, treinando com as margaridas que a
pequena Dalma tinha colocado em suas meias. Ou, como mostra Diego
em outra extraordinária experiência, com Ali Turganbekov, um garoto
do Cazaquistão que nasceu sem pernas e que tem um sonho: conhe-
cer Diego Maradona27. Eles se encontram, Diego o acaricia, o beija, o
abraça… o abraça e joga com seus bonés, com sua aparência, com seu
corpo… mas, como duas boas crianças, ambos queriam jogar bola e
então isso fazem… falam idiomas diferentes, mas se entendem… brin-
cam com outra criança, com corpo “normal”, com pernas… em uma

26
A carta completa foi publicada na conta de Instagram de Dalma, dalmaradona, em
27 de novembro de 2020.
27
O vídeo que filma o encontra está disponível em algumas versões no YouTube. Por
exemplo: <https://www.youtube.com/watch?v=t6fA_7zGqbc&ab_channel=RTenEs-
pa%C3%B1ol>.

122
Walter Omar Kohan

parte da brincadeira, Diego e Ali jogam no mesmo time e o outro meni-


no vai para o gol. Diego traça diversas estratégias – “dentro e fora das
regras” – para que Ali faça um gol. Desenfreado, exultante, exagerado.
É uma criança. Quando Ali chuta, Diego o aplaude… Distrai o goleiro
para marcar um gol quase como se fosse com a mão aos piratas ingle-
ses. Em outra parte do encontro, Diego lança a bola para Ali com as
mãos para que Ali possa marcar um gol de cabeça… Diego não para
até que Ali marque um gol e comemora os gols que os dois fazem no
outro menino como se fossem gols de uma final de Copa do Mundo; de
certo modo, o são…
Em todo o vídeo, Diego está inteiro brincando, sério, amoro-
samente, intensamente… Diego não é mais uma criança cronológica,
tem 57 anos, está acima do peso, fora de forma, acima da idade, acima
de tudo… homem de excessos, Diego já passou faz muito tempo da
idade da infância e, mesmo assim, permite-se brincar e nada mais que
brincar, porque ainda habita uma infância sem idade… inteiramen-
te, como uma criança, inteiramente presente, em um tempo presen-
te, ele oferece toda sua presença como um presente à criança que
sonhou em conhecê-lo. Ele está nesse tempo presente que, espero,
meus leitores e leitoras estejam já sentindo. Há um detalhe muito
significativo. No fim da brincadeira, Diego marca um gol contra Ali e o
grita fervorosamente. Parte da mesma mídia que o apresenta como
um “mau-exemplo” fez, inclusive, barulho nas redes cortando só esse
trecho do vídeo e criticando Diego por esse gol e sua comemoração
perante o menino. Mas é justamente o contrário, depois da acolhi-
da amorosa, na hora de brincar, Diego não subestima o menino, não
chuta lentamente ou se deixa fazer um gol porque Ali não tem pernas;
nada disso: o trata como um igual. Diego Maradona, o melhor jogador
do mundo, considera um menino cazaque sem pernas como um igual.
Eis uma forma amorosamente revolucionária de se relacionar com um
menino diferente.
Como disse Dalma, não era preciso muito para amar Diego,
assim como não é preciso muito para amar Paulo escrevendo menina-
mente cartas para uma menina em meio a uma vida muito agitada ou
amar qualquer outro ser que vive menina ou infantilmente a vida: de
forma irreverente, inquieta, inesperada, incomum, sonhadora, curio-

123
5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda...

sa, errante, amorosa, terna, frágil, intensa, brincalhona. Como Diego


mesmo confessou um dia: “De todos os apelidos que me foram dados,
aquele que mais gosto é Pelusa porque me leva de volta à infância”28.
Como bem disse o menino, a força de um nome está em nos levar de
volta à infância.

Para terminar, sem deixar de começar

Não apenas estamos sendo e temos sido seres inacaba-


dos, mas nos tornamos capazes de nos saber inacabados,
tanto quanto nos foi possível saber que sabíamos o
saber que não sabíamos ou saber que poderíamos saber
melhor o que já sabíamos ou produzir o novo saber. E é
exatamente porque nos tornamos capazes de nos saber
inacabados que se abre para nós a possibilidade de nos
inserir numa permanente busca.

Paulo Freire, 2013, p. 131

Há alguns outros aspectos que aproximam Diego e Paulo que


gostaria de mencionar, mesmo que já não tenhamos espaço para desdo-
brá-los como mereceriam. Um deles é que Diego e Paulo são artistas e
têm vivido artisticamente suas vidas. Não estou querendo dizer com
isso que eles têm a técnica de um artista; o que quero afirmar é que eles
fazem da vida uma forma de arte, uma arte que é contestada, rebel-
de, insurgente na busca de novas formas de viver não apenas para si
mesmos, mas, sobretudo, para as oprimidas e os oprimidos. Vivem em
campos diferentes: esporte e educação, mas vivê-los artisticamente os
une. Quero dizer também com isso que eles são artistas por não segui-
rem modelos, por fazerem o que sua arte pede deles e não o que se
espera deles; são artistas, também, por quebrarem moldes, esperarem

28
“De los apodos, el que más me gustó es Pelusa, porque me devuelve a la infancia.
Me acuerdo de Fiorito, cuando jugaba por el sandwich y la Coca. Aquello era más puro.”.
Ver: <https://www.pagina12.com.ar/301632-maradona-60-anos-60-historias-60-frases>.
Acesso em: 02 abr. 2021.

124
Walter Omar Kohan

o que não se pode esperar e é por isso que eles mesmos inventam,
são personagens de sua própria história e de uma história muito maior,
vivem sua história como uma história de muita gente; muita gente vive
na vida deles… são artistas do povo, de uma vida popular… são artis-
tas que brigam, lutam, trabalham obstinadamente em sua obsessão
de sonhos de mundos melhores, mais bonitos, menos injustos… eles
sonham e criam a partir desses sonhos: jogar na Copa do Mundo, ser
campeão, acabar com o analfabetismo… esses são, para alguém de
sua condição, sonhos impensáveis, impossíveis, e essa impossibilidade
é uma força que alimenta sua fome inventiva. E também sua potência
amorosa e revolucionária.
Outro aspecto que valeria a pena ser desdobrado em ambos é
o desejo de errância que um e outro vão cultivando e afirmando nas
suas vidas. Eles não ficam parados! Não há maneira de detê-los. São
errantes que vagam pelo mundo, sem se estabelecerem em nenhum
lugar… eles voltam para casa e precisam continuar viajando porque,
como dissemos no início, o lugar deles é o mundo. Incansáveis, na
viagem errante, levam consigo sua gente, sua terra, sua comida,
seu sotaque, sua cultura. É verdade, eles nem sempre sabem para
onde estão indo. Às vezes, porque precisam sair de alguns lugares
mais do que desejam chegar em outros. É o que acontece com Paulo
por um curto período em La Paz, na Bolívia, e depois em Santiago
do Chile, ao ter que sair do Brasil para o exílio. Ou o que acontece
com Diego ao chegar em Napoli para, na verdade, fugir de Barcelona.
Eles sabem que em alguns momentos precisam sair de onde estão,
porque, assim como geram amor no povo, geram ódio nos inimigos
do povo… não são indiferentes, assim como nada lhes é indiferente:
com eles ou contra eles; “fora daqui!”; “eles corrompem os jovens,
são um mau exemplo”; “comunistas!”, dizem seus inimigos, porque
ambos trazem ideias estranhas para a sociedade ocidental, patriar-
cal, classista, racista, machista e homofóbica que seus inimigos ainda
querem defender.
Lembro agora de uma outra coincidência. “Diego era um
homem inacabado”, escrevia uma psicanalista argentina, amado por
ter vencido a adversidade da sua origem social, mas também por
nunca ter pretendido ser o que não foi ou nunca ter negado o que

125
5. Diego e Paulo, dois meninos danados, amorosos, de esquerda...

foi29. Poderíamos dizer que também Paulo não pretendeu ser o que
não foi e nos ajudou a pensar essa condição de Diego de inacabamen-
to como uma condição de qualquer ser humano. Paulo chamava isso
de vocação – epistemológica e ontológica – por ser mais, por conhe-
cer mais. Diego não teve uma educação institucionalizada extraordi-
nária, mas teve essa vocação cultivada na educação profunda de uma
vida familiar amorosa, algo também coincidente com o menino Paulo,
como narra em suas diversas autobiografias. Como Paulo, Diego
viveu essa condição de inacabado com uma intensidade singular. Eles
sempre quiseram mais, nada os satisfazia. Lutavam. Conseguiam.
Voltavam a lutar. Não conseguiam. Voltavam. Conseguiam. Caíam.
Levantavam-se novamente. Mais uma vez, sempre queriam mais. E
nunca se davam por vencidos.

Imagem 6: Maradona em Napoli, 1984, o dia que Imagem 7: Círculo de Cultura, Angicos, 1963.
Diego jogou num campo de várzea para ajudar uma In: Brandão, Carlos Rodrigues. Paulo Freire,
criança doente. Educar para transformar: fotobiografia. São
30
Paulo: Mercado Cultural, 2005, p. 55.

30Poderíamos continuar. Gostaríamos de continuar. Mas também

já temos o bastante. Temos o amor, a infância, a revolução. O que mais


poderíamos necessitar? Talvez, para terminar começando, seja interes-
sante recordar o início desta escrita. Quando estávamos na infância do
antes do começo. Estávamos no tempo presente do brincar, pergun-
tar, criar, amar. Encontramos algumas perguntas e uma outra pergunta
irrompe agora com força quando já estamos próximos a terminar: o que
conecta Diego e Paulo? Como antes de começar, não queremos respon-
der. Gostamos muito do menino Paulo e de sua pedagogia meninamen-

29
Trata-se de Sonia Bleichmar, morta em 2007. Quem se refere a esse testemunho de
forma brilhante é Sandra Russo (2020).
30
Disponível em: <https://www.futbolsapiens.com/columnas-fs/maradona-entrenar-
-en-el-barro-entrenar-en-alegria/>.

126
Walter Omar Kohan

te revolucionária da pergunta. Sem respondê-la, oferecemos algumas


palavras para pensá-la: Política? Amor? Infância? Arte? Errância? De
tanto pensá-la, a pergunta se tornou muitas perguntas. E com muitas
perguntas já não temos apenas perguntas, mas um mistério.
Precisamos encontrar uma forma de terminar. E não está fácil.
Entre tantos meninos amorosos e revolucionários, quem pode querer
terminar? Só mesmo meninamente. Com alguma peraltagem. Sei! Os
leitores e leitoras vão terminar. Ou não. Podem decidir continuar. Ou
voltar a começar. Ou voltar a antes de começar. Ou seguir sonhando,
como Diego, Paulo, e esse tanto de meninos e meninas amorosas, revo-
lucionárias, artistas infantis que, ainda em tempos tristes como os que
vivemos hoje no Brasil, teimam em não deixar de lutar, sonhar, espe-
rançar. E por isso leem e escrevem. Perguntam e pensam. E amam e
afirmam a vida, mesmo em tempos em que governa a morte.

127
6. Palavras infantis: uma homenagem a Osmar Fávero31

Para Fabiana Fernandes Ribeiro Martins e Fafá

Primeiras palavras

Sinto-me alegre, orgulhoso, lisonjeado de participar desta mesa de


diálogos e de pensamento… com Jane Paiva e Nilda Alves, colegas
do ProPEd/UERJ que admiro e aprecio muito para pensarmos juntos o
hoje… Agradeço imensamente a Helena Fontoura pela oportunidade
de estarmos aqui reunidos comemorando os cem anos de Paulo Freire,
mesmo que seja remotamente, e também para homenagear o gran-
de educador Osmar Fávero. Como disse agora Nilda, é uma excelen-
te oportunidade também de estarmos encontrando-nos para pensar,
a partir de Paulo Freire, o hoje, o presente… vivemos um momento
extremamente complexo e difícil… um tempo tão cheio de descaso
e desapreço pela vida, vidas que têm cor, classe social, gênero, que
as políticas da morte que estamos padecendo têm como seu principal
alvo. Mas claro que também há muitas micropolíticas afirmando a vida
e nos atravessando, muitas resistências e o encontro de hoje certamen-

31
Intervenção em Mesa para o Evento “Pensar Paulo Freire em tempos de Angicos
e no “De pé no chão também se aprende a ler”, em Natal - Uma homenagem ao pro-
fessor Osmar Fávero. Pensar Paulo Freire hoje” (FFP/UERJ, 19/5/2021).

129
6. Palavras infantis: uma homenagem a Osmar Fávero

te nos permitirá homenagear duas dessas vidas afirmativas, amorosa-


mente educadoras, como são as de Osmar Fávero e Paulo Freire.
É muito importante que tenhamos assistido esses vídeos,
recuperados graças ao trabalho de Osmar, sobre dois acontecimen-
tos de alfabetização em Rio Grande do Norte na primeira parte dos
anos 1960: a campanha “De pé no chão também se aprende a ler” e
o já mítico curso de Angicos, uma cidade com 75% de analfabetismo à
época… O primeiro vídeo, em torno de uma campanha criada em Natal
em fevereiro de 1961, sendo Djalma Maranhão Prefeito e Moacyr de
Góes Secretário de Educação; o segundo, mais pontual, no tempo e no
espaço, um projeto de extensão da Universidade de Recife com apoio
político do Governo do Estado de Rio Grande do Norte e financeiro da
Aliança para o Progresso (do governo dos Estados Unidos), coorde-
nado por Paulo Freire com participação de alunos de vários cursos da
universidade como monitores que alfabetizaram 300 jovens e adultos
em curso de 40 horas entre janeiro e abril de 1963. Nilda já destacou a
importância desse trabalho de arquivo e de memória e também nos
apresentou algumas das principais diferenças entre as duas experiên-
cias, ambas inspiradas, diferentemente, em Paulo Freire…
A partir do seu impacto, o curso de Angicos prolongou-se no
Plano Nacional de Alfabetização que, a convite do então Ministro da
Educação, Paulo de Tarso Silva, Paulo Freire desenhou para alfabeti-
zar entre cinco e seis milhões de analfabetos só no primeiro ano do
plano em 1964, o que significava que esses alfabetizados passariam a
votar e com isso se alteraria significativamente o quadro político do
sistema representativo de governo. Isso não seria aceito pelas forças
conservadoras e, certamente, foi a razão principal para que esse Plano,
assim como a Campanha “De pé no chão…”, do Rio Grande do Norte,
fossem interrompidos pela Ditadura Militar em abril de 1964, apenas
três meses após seu início oficial. Sabemos o que veio depois do Golpe
de 64 e ainda padecemos esses efeitos. E temos sofrido mais recen-
temente outros Golpes, menos explícitos, igualmente reacionários e
violentos, reações conservadoras perante certa ampliação da vida polí-
tica e econômica por parte da população mais excluída.
Depois do golpe de 64, Paulo Freire foi encarcerado e quan-
do recuperou sua liberdade teve que se exilar, contra a sua vontade,

130
Walter Omar Kohan

porque sua vida corria perigo. Foi um longo périplo, uma extensa anda-
rilhagem, viagem errante, quase durante dezesseis anos, andando por
Bolívia, Chile, Estados Unidos, Suíça… na verdade, essas foram suas
sedes, porque suas viagens educadoras só tinham como limite os limi-
tes do mundo. Paulo Freire firmou-se internacionalmente como um
nome quase que inevitável quando se tratava de alfabetizar o povo,
em particular nas repúblicas independizadas de Portugal na África e
também em outros contextos quando as condições políticas perce-
biam essa alfabetização como uma necessidade, como na Nicarágua da
revolução sandinista.
Nesse sentido, talvez ainda não tenhamos refletido suficiente-
mente sobre esse carma, trauma, golpe a nossa história como povo,
que a vida de Paulo Freire representa simbolicamente: uma Ditadura
colocou na cadeia e obrigou o coordenador de um plano nacional de
alfabetização a se exilar. Pouco importam as excusas ideológicas, as
acusações de comunismo, marxismo e outras semelhantes. Esse fato, a
interrupção de um programa de alfabetização e a perseguição aos seus
idealizadores e coordenadores, nu e cru, despojado das suas máscaras,
mostra as caras de um regime político ditatorial inimigo da educação
do povo. O que importava era impedir a participação de certas cama-
das da população brasileira no sistema representativo de governo e,
mais amplamente, sua incorporação na sociedade brasileira em condi-
ções menos desfavoráveis. No Brasil, a ditadura e as forças que repre-
senta – que, lamentavelmente, continuam vivas e até conseguem se
fazer eleger para governar – são inimigas da educação e da participa-
ção política plena, igualitária, do povo.

Sobre a memória e o tempo presentes num Brasil pandêmico

Jane acaba de nos deleitar com sua apresentação, rigorosa,


séria, comprometida com a educação popular. Considero sua inter-
venção um canto à memória da educação popular no Brasil. Sabemos
que a Ditadura também livrou uma batalha para apagar os testemu-
nhos dessas experiências alfabetizadoras de palavras e de mundo. Nos
testemunhos que apresentaremos, alunas do curso de Angicos dizem

131
6. Palavras infantis: uma homenagem a Osmar Fávero

que a maioria delas queimou ou escondeu os cadernos do curso pelas


possibilidades de a polícia as encontrar em posse desses cadernos. É
algo estarrecedor… repito: a polícia prendia os portadores de cader-
nos alfabetizadores. A imagem é de uma brutalidade desassossegado-
ra. Ficamos sem ar, só de pensá-lo.
Por isso, parte da luta política diz respeito ao resgate desses
registros e assim ganham ainda mais força as palavras de Jane, que
enfatizou muito claramente a importância da preservação da memória
e o trabalho incansável, nessa direção, de Osmar Fávero. Jane falou-
-nos também de como esse trabalho permite-nos transitar entre os
mares do passado e do futuro. Sem a barca da memória, nos disse, não
há viagem que conduza a bom porto.
Justamente gostaria de pensar com vocês, inspirados em Paulo
Freire, algumas questões relativas ao presente. E quando afirmo o presen-
te, estou pensando em vários sentidos diferentes da palavra “presente”.
Há um sentido mais habitual em que o presente é o que está entre o
passado e o futuro, como uma dobradiça, janela ou limite, uma espécie
de lugar de passagem para o futuro que, antes de se tornar passado,
passa pelo presente. Talvez a esse sentido se referia Jane quando chama-
va a navegar entre os mares do passado e do futuro. O presente como
hoje, agora, momento atual. Um tempo que passa.
Como temos vivido esse tempo-passagem? Durante a pande-
mia, a passagem do tempo tem se acelerado intensamente. De início,
parecia que a pandemia suspendia o tempo, e podíamos experimentá-lo
passar até com certa lentidão insuspeita em relação aos tempos ante-
riores. Os que podíamos manter-nos em casa sentíamos que, de certo
modo, estávamos protegidos da vertigem com que passa o tempo da
vida social, inclusive das instituições pedagógicas. Tinham-se mitigado
os prazos, as cobranças, as exigências. Estávamos num momento de
exceção. O mundo parou. Eram também tempos de certa esperança
em efeitos positivos que a pandemia poderia trazer; cogitamos que ela
poderia ser um tempo para tornar-nos melhores como humanidade em
relação ao meio ambiente e em relação a nós mesmos. Por exemplo,
a imagem da Bahia de Guanabara recobrando vida nos inspirava certa
esperança. A pandemia nos levou também a uma sensação de infância,
de ausência de palavras e de uma certa ingenuidade, perante uma nova

132
Walter Omar Kohan

realidade que habitávamos pela primeira vez. Nossas palavras já não


davam conta do mundo; precisávamos de novas palavras, novos senti-
dos; surgiram muitas novas perguntas.
Contudo, essas sensações de expectativa e esperança duraram
pouco tempo; pelo menos no Brasil, tivemos logo que sair da infância
violentados pelas políticas negacionistas, anti-ambientalistas e racis-
tas de um governo que rapidamente mostrou que tentaria se valer da
pandemia para intensificar suas políticas da morte e contava para isso
com aliados em diversos estamentos da vida social e política. Os privi-
légios e as desigualdades se intensificaram: o desemprego, a preca-
riedade, o descuido com a educação e a saúde pública, quando deve-
riam ter sido cuidadas como nunca antes, castigou mais duramente os
excluídos de sempre.
E o tempo voltou a acelerar, igual ou mais do que antes. A
situação econômica, social e política foi se agravando e a retomada
das atividades, presencial ou remotamente, para os que trabalhamos
nas instituições educativas, nos foi devolvendo gradativamente um
tempo ainda mais acelerado do que estava, se acaso isso fosse possí-
vel. O presente voltou a revestir-se de um caráter efêmero, instantâ-
neo, fugaz: o tempo parecia passar e continua passando cada vez mais
depressa… e cada vez nos sentimos mais cansados, exigidos, pressio-
nados perante a ausência cada vez mais nítida de um presente infantil,
um presente que dure, um tempo que não passe.

Educar: viajar no tempo, em busca de outro(s) tempo(s)

Para manter vivo esse tempo infantil em nós e encontrar esse


sentimento de um tempo próprio em que estamos inteiramente, com
todo nosso corpo e nossa atenção, como quando brincamos na infân-
cia cronológica, Paulo Freire nos diz que é preciso viajar para o antes
da escola (Freire; Guimarães, 2011/1982). Para recordar esse sentimen-
to, precisamos viajar até uma escola antes da escola, uma pré-escola,
que, no caso de Paulo, deu-se no quintal da sua casa no bairro de Casa
Amarela em Recife, onde nasceu e foi criado. Há uma escola quintal,
à sombra das mangueiras, onde teve lugar a sua primeira experiência

133
6. Palavras infantis: uma homenagem a Osmar Fávero

propriamente educativa. Há uma escola com o tempo de um quintal, das


árvores, dos pássaros, da natureza; uma escola com um outro tempo
que o tempo da instituição, com um outro presente que não o presen-
te efêmero, instantâneo das instituições educacionais. E Paulo Freire
diz-nos que essa primeira experiência educativa inspirou nada menos
que todas as suas ideias sobre educação. De modo que Paulo Freire,
que não se dedicou especialmente à educação das crianças cronoló-
gicas, guarda na sua memória lembranças de sua infância cronológica
que considera valiosas, necessárias para a educação em suas diversas
dimensões e extensões. E nelas se inspira para pensar a educação de
todas as idades.
Essa lembrança da infância da escola na vida de Paulo Freire
me traz uma outra lembrança que não quero esconder pela sua cone-
xão com a trama que estou lhes apresentando e pelo que ela pode nos
fazer pensar. Também porque talvez nos ajude a pensar em outros
sentidos para a memória. Paulo Freire refere-se, mais de uma vez em
suas autobiografias, a três exílios que ele teria sofrido (Freire, 2000).
Dois são bastante conhecidos: o terceiro é o mais conhecido dos três
e já me referi a ele neste texto; é o exílio do país, no exterior, esses
quase dezesseis anos de errância forçada após a ditadura de 1964. O
segundo é também conhecido, quando sua família se muda de Recife
para Jaboatão na esteira da crise econômica no início dos anos trinta.
Paulo Freire não queria sair de Recife e sente o deslocamento a uma
casa bem menos provida, num lugar mais pobre, interiorano, como um
exílio. Contudo, o exílio mais surpreendente, impressionante e extraor-
dinário é o primeiro exílio, nas suas palavras: “o tempo de gestação no
útero de sua mãe”, lembradas por Ana M. Freire (Freire, 2000, p. 51). O
primeiro exílio é o nascimento, a viagem forçada ao tempo cronológico
da vida e a perda do tempo da vida no tempo que não passa dentro
do útero materno.
Então, também para isso escrevemos: para recordarmos o
primeiro exílio. Também para isso é necessário aprender a ler e escre-
ver. O que Paulo Freire lembra desse tempo infantil no quintal? Dentre
outras coisas, o lembra como um tempo “livre e despretensioso”,
muito livre e simples. Tinha o que era necessário para aprender: o som
dos pássaros, o cheiro das mangueiras, gravetos para escrever no chão

134
Walter Omar Kohan

de terra batida; um pai e uma mãe que escutavam, com muita aten-
ção e paciência, as perguntas e as palavras do menino curioso por ler o
mundo. Não havia hora marcada para acabar com as perguntas. Nessa
pré-escola, o menino Paulo Freire sentia o tempo passar muito deva-
gar e também não tinha o que pode atrapalhar a experiência de tempo
infantil de um menino ou menina: um relógio que marque as horas, um
calendário, um programa, uma avaliação, uma normativa, um prazo
para aprender isto ou aquilo, porque o tempo da aprendizagem é o
tempo presente, durativo, antes do tempo linear que, na instituição
escolar, presencial ou remota, corre cada vez com mais pressa do futu-
ro para o passado; esse mesmo tempo que, paradoxalmente, dizem
que prepara para um futuro que ele próprio teima em antecipar tirando
o tempo do presente. Escuto seu apelo para manter viva a nossa meni-
nice como uma chamada a tentarmos lentificar o tempo, a cuidarmos
de não apressarmos os processos que precisam de um outro tempo, de
um tempo próprio que exige um presente que dure.

Voltar à primeira infância: Angicos

Voltaremos sobre o presente e, como um exemplo da impor-


tância da memória, quero que voltemos ao tempo de Angicos, uma
espécie de memória infantil. Neste caso, quero voltar a escutar a pala-
vra de duas alunas desse curso-experiência, hoje duas senhoras de
vida bem vivida que nos trazem lembranças preciosas a respeito desse
tempo-espaço fundacional, mito para a educação popular. São elas
Maria Gildenora e Francisca do Brito e quero me deter em dois trechi-
nhos com depoimentos delas em dois vídeos realizados com alunos e
monitores daquele curso. Inicialmente, demos atenção ao que diz dona
Maria Gildenora no primeiro depoimento32:

Eu tinha 18 anos quando eu estudei com Paulo Freire. Agora


eu tenho 67. Meu nome é Maria Gildenora Costa de Araújo,
conhecida por Maria do Perrego… moro na Manuel Cossa…

32
Notas de uma aluna: <https://www.youtube.com/watch?v=BOW-4CBne-w>.
Acesso em: 23 maio de 2021.

135
6. Palavras infantis: uma homenagem a Osmar Fávero

costuro muito… eu estudei com Paulo Freire… eu não sabia


de nada quando eu fui para a escola… a escola que apareceu
era Paulo Freire… aí o povo dizia assim, e minha mãe dizia:
“não deixa ela ir estudar com Paulo Freire”… porque ele era
do tempo da ditadura e dessas coisas… aí eu era uma pessoa
muito medrosa… que no outro tempo a gente tinha medo
das coisas… mas aí a gente ia para a escola aí quando chega-
va lá ele chegava… só não lembro o nome da professora, mas
era lá na casa, na antiga casa da velha Zia Nana, que era lá no
Alto da Alegria, lá na casa da avó de João Maria Pinheiro… a
gente estudava lá… eu estudei… e hoje eu dou graças a Deus
do que eu “seio” a Paulo Freire… “seio” ler e “seio” escre-
ver… “seio” sair… “seio” entrar e “seio” sair…

É muito potente este primeiro testemunho… destaco apenas


alguns elementos que me chamam a atenção… dona Maria Gildenora
se apresenta, diz a sua idade, o seu nome, onde ela mora, o que ela
faz… e diz que estudou com Paulo Freire… não se lembra o nome da
professora (alfabetizadora), mas sim que estudou com Paulo Freire;
mais ainda, ela diz que a escola era Paulo Freire: “a escola era Paulo
Freire”… muito forte essa imagem: não era a escola de Paulo Freire; a
escola era Paulo Freire, tal a identidade entre a escola e Paulo Freire.
Também chama a atenção que não era uma escola que acontecia
numa escola, num prédio escolar, mas era uma escola que acontecia
numa casa, a casa da avó de João Maria Pinheiro… e é também muito
bonita essa conjugação do verbo saber, “seio”, muito infantil no senti-
do potente da palavra; trata-se, à primeira vista, de um erro, mas de
um desses erros potentes e educadores porque nos faz errar, viajar
no pensamento e nos permite habitar outros mundos; porque Dona
Gildenora conjuga o verbo saber como outros verbos que terminam em
-er, como crer e ler… eu creio, eu leio e por que não então eu seio? E o
seio é também bonito porque ecoa o corpo feminino e essa parte do
corpo em que se encontram as mamas e que é a fonte do alimento dos
seres que nascem no mundo. A fonte principal, primeira de vida. Sabe
do que importa, do que nutre a infância, faz palavra do corpo a língua
de Dona Gildenora. Isso também nos faz pensar esse “erro” gramatical
no seu testemunho.
Também quero apresentar um testemunho breve de dona
Francisca do Brito, colega de Maria Gildenora no mesmo curso de
Angicos; a dona Francisca refere-se de forma muito marcante também
ao curso e ao Paulo Freire:

136
Walter Omar Kohan

Começou assim: apareceu um jipe aí na rua, na cidade, anun-


ciando essas escolas, essa escola que ia ter, aí mamãe disse:
“você não vai não, se você for, quando seu pai chegar vou
fazer ele te dar uma surra”; E eu disse: “e eu me importo?”…
me ajuntei mais meu irmão e disse: “vamos simbora” […] eu
aprendi logo antes de completar as 48 horas. Eu já sabia ler,
já escrevia. E aí foi o tempo que chegou essa notícia que o
homem tinha sido exilado, que o homem tinha sido preso… aí
pronto, aí acabou-se a escola… muita gente com medo escon-
deu o caderno, escondeu tudo… eu não escondi nada… Eu
não queimei nada, eu deixei escondido.33

Também é um testemunho muito potente, como todos os das


que participaram daquele curso. Algumas coisas que chamam a aten-
ção: Francisca diz que começou quando um jipe passava anunciando
essas escolas pela cidade e iam dentro os estudantes que visitavam as
moradias para conhecer o universo vocabular dos alfabetizandos; mais
uma vez aparece a interdição da família. Nos dois casos, a família se
opõe à participação das jovens no curso, na escola. Não estão muito
claros os motivos, mas parece que esse curso de alfabetização, essa
escola ambulante, gerava medo e despertava suspeitas no próprio
mundo familiar dos analfabetos, oprimidos. Há algo de muito inte-
ressante aí e talvez tenha a ver com o fato de que a família percebe a
presença da escola como um risco, uma ameaça: a escola pode tirar as
filhas do controle familiar, pode levá-las para outro mundo, desconhe-
cido. E a família reage ameaçando. Claro que as ameaças são vãs e nos
dois casos há algo de sedutor na escola que gera um desejo muito mais
forte que o medo pelas ameaças da família. As gerações mais novas
sentem uma atração muito forte pela escola e não temem as represá-
lias. Tanto a Francisca de Brito quanto a Maria Gildenora teimam e vão
para a escola proibida sem medo de apanhar, movidas por uma força
um pouco misteriosa que ainda se percebe nas suas palavras.
Dona Francisca conta-nos também que aprendeu rápido, antes
de completar as 48 horas; não sabemos se ela está se referindo a um
tempo cronológico (depois de dois dias do curso) ou se está confundin-
do o tempo do curso (e então haveria que escutar 40 horas onde ela

33
Vídeo “Metodologia Paulo Freire revoluciona povoado no sertão” do Repórter
Brasil, em: <https://www.youtube.com/watch?v=KGmcm651jO8>. Acesso em: 23 maio
2021.

137
6. Palavras infantis: uma homenagem a Osmar Fávero

diz 48 horas), mas, em qualquer caso, interessa notar que ela apren-
de a ler e escrever com muita propriedade e antes do tempo estipula-
do, que já era bastante curto para tamanho objetivo. E depois ela nos
narra o triste final da escola e, mais uma vez, aí aparece a identificação
de Paulo Freire com a escola… Paulo Freire era, na percepção e nos
sentimentos das e dos alfabetizandos do curso de Angicos, uma esco-
la, porque, quando ele foi preso e foi exilado, “acabou-se a escola”. A
prisão e o exílio de Paulo Freire significaram o fim da escola, como se,
de certo modo, a própria escola tivesse sido primeiro presa e depois
exilada. Paulo Freire era mesmo uma escola, pelo menos isso pensa-
vam os que estudavam na escola de Paulo Freire. Diáfana percepção de
dona Francisca. Mas o que é uma escola?
A escola propicia um tempo que liberta do tempo produti-
vo para poder ler o mundo com outros e outras e sonhar com outros
mundos. Por isso, Paulo Freire era uma escola, porque sua presença em
Angicos trouxe a possibilidade de experimentar um tempo livre inusi-
tado até sua chegada. Talvez isso foi Angicos para os seus habitantes:
a possibilidade de parar o tempo para entenderem o mundo e pensar
em outros mundos.
É nesse sentido que a experiência de Angicos recria uma expe-
riência profundamente igualitária e democrática, no sentido que J.
Rancière (2016) outorga à palavra, porque aí governavam os incom-
petentes, os analfabetos liam e os ignorantes sabiam; os alunos ensi-
nam e os professores aprendem; uma experiência na qual qualquer um
pode aprender, porque quem ensina confia na sua igual capacidade e
não ensina o que o outro não sabe; mas, sim, transmite sua confiança
em que o outro pode aprender o que deseja e necessita aprender.
Eis uma força política da escola, que escapa completamente
aos seus idealizadores, defensores e também aos seus detratores; algo
que nenhuma ditadura conseguirá jamais apagar por mais que quei-
me todos os cadernos de classe e encarcere todos os seus habitantes;
uma força que atravessa aqueles que a habitam, que obtura qualquer
pretensão de totalização ou clausura, uma força que nos faz lembrar,
quando estamos na escola, que somos infantia.

138
Walter Omar Kohan

A infância em Angicos: Eneide

Em 20 de maio de 2021, tem lugar um dos Círculos de Cultura


organizados pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd)
para comemorar os 100 do nascimento de Paulo Freire. Nesse dia, o
círculo de cultura foi cuidado pelo Núcleo de Estudos de Filosofias e
Infâncias (NEFI-UERJ) e contou com a presença de Eneide de Araújo
Melo, que se/nos apresenta como professora.34 Afirma que alfabetizar
é o que mais gosta. Faz um exercício de memória: ela tinha seis anos em
1963 e era a única criança no curso de Angicos. Talvez, por isso, seu pai
não se opôs a que ela participasse no curso; ao contrário, comprou-lhe
uma calça comprida para protegê-la dos pernilongos e outros insetos
que encontraria no caminho. A monitora da Eneide foi Valquíria Félix,
formada em Direito na UFRN e hoje juíza aposentada, a quem admirou
profundamente. Lembra que o final das aulas foi repentino e surgiu o
rumor de que quem participou do curso seria preso e, portanto, era
necessário queimar os cadernos, os livros, as cartilhas com as palavras
geradoras de cada dia e as aulas de politização. Eneida escondeu o
material na cama da mãe e conseguiu mantê-lo por algum tempo, até
que sua mãe o encontrou e o queimou. No dia em que terminou o curso
de Angicos, Eneide teve que ler em voz alta uma oração na presença do
presidente João Goulart, para “com-provar” que ela realmente havia
sido alfabetizada. O presidente deu-lhe uma caneta para que ela pudes-
se ler apontando. Ela iniciou a leitura e quando o presidente se sentiu
satisfeito, solicitou que ela parasse, mas ela não lhe obedeceu, parou
apenas quando encontrou o ponto final, pois foi assim que aprendeu
com a Valquíria. Depois, o presidente perguntou a Eneide qual prêmio
gostaria de receber pelo aprendizado da leitura, e ela pediu uma bolsa
para ir para escola. Na sua trajetória de professora, Eneide quis aplicar
o que aprendeu, de Paulo Freire, com as crianças. E conta uma anedo-
ta que dá o que pensar: quando Paulo Freire foi receber o prêmio de
cidadão ilustre de Angicos, em 1993, ele perguntou para ela se, nesse
momento, o presidente lhe perguntasse novamente o que ela gostaria

34
O círculo está gravado no Canal de YouTube do NEFI: <https://www.youtube.com/
watch?v=7vG4tTHb-SQ>. Acesso em 23 maio 2021.

139
6. Palavras infantis: uma homenagem a Osmar Fávero

de ganhar de prêmio, o que ela responderia. E ela respondeu que ela


já não iria querer nada pessoal, que ela queria salário digno para todos
os professores, ao que Paulo Freire respondeu batendo no ombro e
dizendo: “você é muito levada, viu?”.
Dona Eneida nos oferece também um presente em outro senti-
do da palavra: algo que se entrega sem esperar nada em troca. Eneide,
a única criança de Angicos, nos diz que teimou em manter viva duran-
te toda a vida a sua curiosidade e inquietação infantis. Evidentemente
Angicos foi uma escola. Uma escola que se faz presente e presença,
num tempo que desborda o hoje, e nos ajuda a esperançar com tempos
e outros mundos. Eneide, a infante de Angicos, lembra-nos que Angicos
é uma escola de infância: não pela idade de seus alunos, mas pela sua
força perene de resistência.

140
7. Por que Paulo Freire comprometeu-se com a educação de
jovens e adultos e não de crianças?

para Edna Olímpia da Cunha e Vanise Dutra Gomes e, com elas,


para as crianças de todas as idades que têm conformado o
projeto “Em Caxias a filosofia en-caixa?”

O título deste texto é uma pergunta: por que Paulo Freire comprome-
teu-se com a educação de jovens e adultos e não de crianças? Ela expres-
sa uma curiosidade sobre o Patrono da Educação Brasileira. Escrever
sobre essa pergunta tem a pretensão de provocar o pensamento antes
de propriamente respondê-la. Mesmo que tendemos a pensar que as
perguntas precisam ser respondidas da forma mais segura e definiti-
va possível, o sentido principal deste texto não é responder, de forma
acabada, à pergunta que nos colocamos. Dito de outra forma, vamos
tentar responder à pergunta do título, mas sem respondê-la comple-
tamente, de uma forma que acabe a inquietação que movimenta essa
pergunta. Ainda com outras palavras, vamos respondê-la de uma
maneira em que a pergunta, mesmo respondida, mereça ser mantida,
pensada, considerada. E que também dê lugar a outras perguntas.
Seremos ainda mais concretos e explícitos: nossa pergunta
começa por “Por que” e as perguntas que começam por “por que”
chamam respostas de tipos muito diversos: razões, causas, motivos,
fundamentos. Quando o “por que” está dirigido a alguém – e mais
ainda alguém que já não está vivo –, como neste caso, uma resposta

141
7. Por que Paulo Freire comprometeu-se com a educação de jovens e adultos e não de
crianças?

que pretendesse responder de forma acabada exigiria uma profunda


pesquisa biográfica, histórica, documental. Mas não é o nosso caso:
queremos estabelecer uma outra relação com a pergunta. Não preten-
demos responder por que, de fato, Paulo Freire ocupou-se de uma faixa
etária e não de outra, mas o que nos pode fazer pensar que ela tenha
se ocupado da educação de jovens e adultos sendo que ele também
outorgava à infância uma importância fundamental, como temos visto
neste livro. Os porquês de uma vida são tão infinitos quanto as ques-
tões que essa vida pode nos fazer pensar.
A questão que nos ocupa não é sem importância. A relação que
estabelecemos com as perguntas cobra ainda mais relevância tratan-
do-se do autor (junto ao chileno Antonio Faundez) do livro Por uma
pedagogia da pergunta. Nesse livro, os dois amigos insistem sobre
o valor fundamental, educativo e político, do perguntar: com efeito,
aprender a perguntar é considerado um ato profundamente democrá-
tico (Freire; Faundez, 2017, p. 66) e essa consideração é seguida por um
delicioso intercâmbio sobre a sorte das perguntas nas práticas educati-
vas entre Antonio e Paulo, que transcrevo:

Antonio: No ensino esqueceram-se das perguntas, tanto o


professor como o aluno esqueceram-nas, e no meu enten-
der todo conhecimento começa pela pergunta. Começa pelo
que você, Paulo, chama de curiosidade. Mas a curiosidade é
uma pergunta! Tenho a impressão (e não sei se você concor-
da comigo) de que hoje o ensino, o saber, é resposta e não
pergunta.

Paulo: Exato, concordo contigo inteiramente! E isto que eu


chamo de “castração da curiosidade”. O que está aconte-
cendo é um movimento unilinear, vai de cá pra lá e acabou,
não há volta, e nem sequer há uma demanda; o educador, de
modo geral, já traz a resposta sem se lhe terem perguntado
nada!

A educação esqueceu das perguntas e, sobretudo, da curiosida-


de que está na base do perguntar. Ou como Faundez afirma: “a curiosi-
dade é uma pergunta!”. É justamente essa curiosidade que a presente
escrita não apenas não pretende castrar, como também ficaria lisonjea-
da se conseguisse alimentar e cuidar. A pergunta (curiosidade) que nos
anima é: o que levou Paulo Freire a se dedicar à alfabetização de jovens
e adultos em vez da alfabetização de crianças? Por que, afinal, alguém

142
Walter Omar Kohan

com uma relação tão extraordinária com a infância (Mafra; Silva, 2020)
não se ocupou da alfabetização infantil e, sim, da de jovens e adultos?
A curiosidade é algo muito próprio da infância, de modo que discorrer
sobre o valor que a curiosidade tem para Paulo Freire pode ser uma boa
maneira de começar a pensar em nossa pergunta inicial.

Paulo Freire e a curiosidade

Para Paulo Freire, a curiosidade tem um valor extraordinário: é


o motor das perguntas e, com elas, do pensamento, pois todo o pensar
começa no perguntar. Trata-se de uma aprendizagem fundamental,
não apenas para estudantes, mas, sobretudo, para educadores: o de
não relacionarmo-nos com a pergunta apenas como um jogo inte-
lectual, mas viver a pergunta, viver a indagação, viver a curiosidade,
testemunhá-la ao estudante. O problema que, na verdade, se coloca ao
professor é o de, na prática, ir criando com os alunos o hábito, como
virtude, de perguntar, de “espantar-se”. (Freire; Faundez, 2017, p. 70).
Viver a pergunta; perguntar-se e não apenas perguntar ou
lançar perguntas ao mundo. Deixar-se afetar e atravessar, no próprio
pensamento e na própria vida, pelas perguntas que o mundo lança a
nós. Viver perguntando-nos. É para isso que gostaria de convidar as
leitoras e os leitores neste breve exercício de escrita: a vivermos o
perguntar, a espantarmo-nos com a pergunta, a vivermos a curiosidade
que sustenta uma pergunta.
No contexto da conversa que estou transcrevendo entre
Antonio Faundez e Paulo Freire, o mestre pernambucano conta uma
anedota curiosa, significativa, a partir de uma intervenção sua na sua
primeira visita à Argentina, em Buenos Aires. Prestes a fazer uma
palestra, em vez de oferecer um discurso, Paulo convidou os mora-
dores de um bairro periférico de Buenos Aires a fazerem perguntas.
Rapidamente, um dos moradores diz que achava uma ótima ideia e fez
o que Paulo Freire chama de “a pergunta fundamental”: “o que signi-
fica mesmo perguntar?” (Freire; Faundez, 2017, p. 70) e mostra como
ele tentava manter viva a curiosidade que estava por trás dessa e das
outras perguntas que surgiram (“Em lugar de responder sozinho tentei

143
7. Por que Paulo Freire comprometeu-se com a educação de jovens e adultos e não de
crianças?

arrancar do grupo o que lhe parecia ser perguntar”). É algo assim que
gostaríamos de propor para a nossa pergunta.
A questão da curiosidade é central na vida e na obra de Paulo
Freire, e essa centralidade se manifesta de diversas maneiras. Por um
lado, ele considera a curiosidade ontológica – o querer “ser mais”
– como constitutiva de uma vida humana (Freire, 2014), uma voca-
ção que toda prática educativa deveria respeitar, preservar e culti-
var. Por outro lado, manter viva a própria curiosidade – que, muitas
vezes, é identificada com a infância ou meninice – é uma condição
para os educadores e educadoras de todas as idades, ele mesmo em
primeiro lugar.
Não apenas na educação a curiosidade menina é vital. O livro
que estamos lendo, em que Paulo e Antonio narram suas errâncias
provocadas pelo exílio, termina com um sonoro elogio da revolução
sandinista. Paulo relembra a sua primeira visita a Manágua, em novem-
bro de 1979, quando, perante um grande grupo de militantes que
foram ao seu encontro no Ministério de Educação, compartilhava-lhes
a impressão que tinha da revolução sandinista: uma revolução menina!
E assim justifica sua impressão:

Menina, não porque recém-“chegada”, mas pelas provas que


estava dando de sua curiosidade, de sua inquietação, de seu
gosto de perguntar, por não temer sonhar, por querer cres-
cer, criar, transformar. Disse também naquela tarde quente
que era necessário, imprescindível que o povo nicaragüense,
lutando pelo amadurecimento de sua revolução, não permi-
tisse porém que ela envelhecesse, matando em si a menina
que estava sendo. Voltei lá recentemente. A menina continua
viva, engajada na construção de uma pedagogia da pergunta.
(Freire; Faundez, 2017, p. 230-1).

Prestemos atenção: menina não pelo pouco tempo de vida,


mas pela forma curiosa e inquieta de viver. Assim, a curiosidade e a
inquietação de uma vida menina importam também nada menos que
numa revolução, algo tão necessário entre nós. Manter viva uma revo-
lução é manter viva sua curiosidade, sua inquietação, seu perguntar-se
o que é e como ser uma revolução que mereça esse nome. A pedagogia
da pergunta é a forma educacional de vivermos vidas individuais e cole-
tivas curiosas e inquietas.

144
Walter Omar Kohan

A curiosidade é, para Paulo Freire, um valor educacional inego-


ciável, irrenunciável. O acompanha a vida inteira e a recria cada vez
que ele se conecta com sua própria infância. Por exemplo em Cartas a
Cristina, quando afirma algo que aparece também de modo semelhan-
te em outros escritos: “Voltar-me sobre minha infância remota é um ato
de curiosidade necessário”. (Freire, 2015, p. 41). Ou seja, aparece aqui
uma dupla curiosidade: a curiosidade de se encontrar com o momen-
to da vida em que nasce a curiosidade. A vida de Paulo Freire é uma
vida muito curiosa desde menino. Por que é uma curiosidade necessá-
ria retomar a infância? Porque se aprende dela; porque compreendê-
-la permite entender o próprio Paulo Freire adulto, maduro que, por
exemplo, já na infância pensava que o mundo tinha que ser mudado;
e também porque, como o destaca em diversos relatos (Freire, 2015;
2013; Freire; Guimarães, 1982), a maneira como ele foi alfabetizado,
ainda criança, com palavras do seu mundo infantil, esteve presente em
suas ideias sobre a alfabetização e em sua maneira de pensá-la e prati-
cá-la como educador de jovens e adultos.

Um menino curioso num Congresso adulto de Leitura

Quero dar atenção a uma conhecida intervenção de Paulo


Freire no 3º Congresso de Leitura em Campinas, em novembro de
1981. Essa intervenção deu lugar a um livro, muito lido, muito citado:
A importância do ato de ler (Freire, 2011). Paulo Freire tinha chega-
do recentemente do exílio; todos e todas queriam ouvi-lo, tocá-lo,
senti-lo. Lerei com calma essa intervenção à busca de signos que nos
permitam pensar a nossa pergunta. Parece mais do que esperável;
afinal, é um congresso de leitura e Paulo Freire se reencontra com
educadores de todas as idades que estão muito curiosos para escu-
tar a sua palavra.
O início surpreende. Paulo Freire afirma que raramente se
permitiu abrir ou encerrar um Congresso. Não diz por quê. Faria mais
sentido, para um menino, não gostar de encerrar eventos. Mas gostar
de abri-los pareceria bem próprio de sua presença menina. Esclarece
que aceitou fazê-lo da maneira “menos formal possível”. Parece mais

145
7. Por que Paulo Freire comprometeu-se com a educação de jovens e adultos e não de
crianças?

compreensível essa afirmação inicial para justificar a forma de uma fala


mais informal. Um recurso menino, afinal. Faz sentido.
Os primeiros parágrafos são sempre muito marcantes. No caso
de “A importância do ato de ler” não é diferente. Depois de alertar
sobre o caráter meninamente informal da intervenção, vem um pará-
grafo de princípios. Nele, Paulo Freire refere-se a sua preparação para
a fala, a sua escrita do texto que ora está lendo. Lembra seus princí-
pios mais caros: a compreensão crítica do ato de ler que não se esgota
na decodificação da palavra escrita, mas se alonga na inteligência do
mundo; a leitura do mundo precede a leitura da palavra; compreender
um texto exige perceber as relações entre texto e contexto… e ainda
nesse primeiro parágrafo aparece a necessidade de ir até à infância,
a retomada das experiências mais remotas: “a retomada da infância
distante, buscando a compreensão do meu ato de ‘ler’ o mundo parti-
cular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória – me
é absolutamente significativa.” (Freire, 2011, p. 20).
O texto segue com um exercício de memória, pelo Bairro de
Casa Amarela em Recife, até chegar naquele momento ainda ante-
rior à leitura da palavra. Paulo Freire enfatiza mais de uma vez a
importância de re-criar e re-viver essa experiência mundana infantil.
Com algumas árvores o menino Paulo tinha uma intimidade que só
se tem com gente. A descrição do seu primeiro mundo é feita com
muito carinho e cuidado, em tom literário: inclui nomes de pássaros
– sanhaçu, olha-pro-caminho-quem-vem, bem-te-vi, sabiá –; cores e
formas de frutas que iam mostrando diversos estágios de amadure-
cimento e o próprio sentido de verbos como amolegar; os diversos
animais que compunham o mundo familiar. O relato é também povo-
ado de certos medos das almas penadas que precisavam da escuri-
dão para aparecer.
Paulo Freire também destaca que sua curiosidade menina de
compreender o mundo não fez dele um adulto em miniatura; não fez
ele perder a sua meninice, ao tempo em que seus próprios pais iam
introduzindo-o no mundo das palavras. Outras lembranças acompa-
nham o relato e chegam até sua primeira vida como professor de língua
portuguesa. Surgem também críticas à exigência de muitos professo-
res de leituras mecânicas focadas na quantidade de páginas e não na

146
Walter Omar Kohan

experiência da leitura, uma crítica ao que Paulo Freire chama de “magi-


cização” da palavra (2011, p. 27).
Finalmente, Paulo Freire destaca que a alfabetização de adultos
é um ato político e de conhecimento, portanto, criador. Nesse mesmo
sentido, igualitário. O alfabetizado não é mais do que o analfabeto.
Só pode ler e escrever o que o outro pode sentir, perceber e dizer.
Alfabetizar-se, ler e escrever a palavra é um ato de criação em que a
leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra, e esta implica a
continuidade daquela. Esse processo provoca a releitura (e reescrita)
permanentes da palavra e do mundo: leitura da leitura anterior. Paulo
Freire não o menciona aqui, mas a pergunta tem ali também um papel
extraordinário como tradutora das inquietações e curiosidades que as
novas leituras do mundo trazem em relação à leitura anterior e, dessa
forma, como motora do pensamento.

Cartas de infância

Nathercia Lacerda publicou seis cartas que Paulo Freire escre-


veu para ela nos tempos do exílio em Santiago do Chile, enquanto escre-
via a Pedagogia do oprimido. A obra é linda e muito cuidada (Lacerda,
2016): as seis cartas de Paulo Freire estão datilografadas e fotografadas
conforme o manuscrito original e ilustradas com imagens, desenhos e
fotos do tempo das cartas. A correspondência começa em 1967, quan-
do ela tinha 9 anos e ele 45, e termina um par de anos depois. Paulo
Freire estava, nesse tempo, em Santiago do Chile e só a última carta foi
escrita a partir de Cambridge, EUA, para onde tinha se mudado recen-
temente. Transcrevo um trecho da terceira carta:

A cidade está ficando cheia de flores, de tôdas as côres. O


jardim da nossa casa azul está com a grama toda verdinha.
As roseiras começam a abrir suas rosas. A gente olha para as
roseiras e parecem gente rindo. Meninos rindo, com a pure-
za do riso das crianças. Se os homens grandes, as pessoas
grandes pudessem ou quisessem rir como as roseiras, como
as crianças, não lhe parece que o mundo seria uma coisa
linda? Mas eu acredito que um dia, com o esforço do próprio
homem, o mundo, a vida vão deixar que as pessoas gran-
des possam rir como as crianças. Mais ainda – e isto é muito

147
7. Por que Paulo Freire comprometeu-se com a educação de jovens e adultos e não de
crianças?

importante – vão deixar que todas as crianças possam rir.


Porque hoje não são todas as que podem rir. Rir não é só abrir
ou entreabrir os lábios e mostrar os dentes. É expressar uma
alegria de viver, uma vontade de fazer coisas, de transformar
o mundo, de amar o mundo e os homens, sômente como se
pode amar a Deus. (Lacerda, 2016, p. 57-8).

As cores, as flores, o riso. Parece o mundo animado da casa de


Recife que relatamos. Já passou a idade cronológica infantil, mas a inti-
midade de Paulo Freire com a natureza mantém-se viva e faz que ela
pareça gente: por isso, as rosas riem com pureza, como uma criança.
É preciso sorrir como as roseiras para que o mundo seja mais bonito.
Paulo Freire faz, nesse trecho, uma pergunta retórica a Nathercinha,
uma pergunta que não pergunta, mas sugere: você não acha que se as
pessoas grandes pudessem ou quisessem rir como as roseiras, como
as crianças, o mundo seria uma coisa linda? A pergunta parece retórica
porque contém ou espera uma resposta afirmativa que ela já sabe: não
é uma pergunta para saber, mas de alguém que já sabe. Contudo, é uma
pergunta que faz pensar e que contém outras perguntas de resposta
nada fácil: por que as pessoas grandes não querem rir? Por que elas não
podem rir? Por que elas não riem como riem as crianças? É a parte mais
dura, mais crítica da carta. E logo depois Paulo parece querer fazer rir
Nathercinha e se mostra confiante, esperançoso.
Há vários aspectos principais que me importa destacar nesta
carta. O primeiro é que a infância aparece como um horizonte dese-
jável: são as crianças que riem e os adultos que poderiam habitar o
mundo infantilmente; não são as crianças que precisam se transformar
em adultos, mas os adultos que poderiam se inspirar em certas manei-
ras infantis de habitar o mundo. O segundo aspecto é que não são
todas as crianças que vivem uma vida infantil. O riso é uma marca de
infância e nem todas as crianças podem rir. Há, portanto, muitas crian-
ças sem infância. Mas há também muita infância para além das crian-
ças. Um mundo desejado não é apenas aquele em que todos os adultos
riam como riem as crianças, mas um mundo em que todas as crianças
possam rir e não como agora em que só algumas crianças podem fazê-
-lo. Um terceiro aspecto diz respeito a uma certa esperança que a carta
transmite, uma confiança em que, com esforço, esse mundo onde a
infância e seu riso sejam um direito de todos os seres humanos será

148
Walter Omar Kohan

alcançado, é um mundo sonhável. Finalmente, um último aspecto signi-


ficativo: rir tem várias camadas; há um rir aparente, superficial, figura-
tivo e há, também, um rir nas profundezas, em que rir é uma alegria
de viver, uma vontade de fazer coisas, transformar o mundo e amar o
mundo e os seres humanos. Rir é mais do que uma aparência no rosto:
é uma força da infância, uma potência transformadora do mundo. É
preciso que todos os seres humanos, de todas as idades, possam sorrir
igual a todas as crianças para que o mundo fique mais bonito de verda-
de, ou seja, mais justo, mais alegre, mais cheio de vida. Há, portanto,
duas transformações de que o mundo necessita: que todas as crianças
riam – e não só algumas como agora – e que todos os seres humanos
riam como riem as crianças. É preciso uma infância do mundo para que
todas as vidas sejam vidas de verdade, de alegria, de curiosidade, de
amor. O mundo precisa de uma infância para tornar-se um mundo mais
mundo para todas as pessoas de todas as idades.
Por isso, é preciso que todos cuidemos de nossa meninice e
não deixemos ela morrer. Isso afirma Paulo a Nathercinha já desde a
primeira carta:

É uma coisa boa, Natercinha, que a gente nunca deixe de ser


menino. Os homens atrapalham as coisas, complicam tudo.
Não sei se você vai entender isso que vou lhe dizer. Mamãe
e papai lhe explicam melhor. Cresça, mas nunca deixe morrer
em você a Natercinha de hoje, que começa a descobrir o
mundo, cheia de curiosidade. Se os homens não deixassem
morrer dentro deles o menino que eles foram, se compreen-
deriam melhor. (Lacerda, 2016, p. 50-1).

Na escrita da primeira parte dessa primeira carta, Paulo Freire


tinha relatado seu encantamento no seu primeiro encontro com a
neve, experiência menina, ainda aos 45 anos: a alegria menina de brin-
car de boneco de neve. Aproveita para dizer que a meninice ou infância
é algo que todos os seres humanos precisamos conservar. A menina é
quem “começa a descobrir o mundo, cheia de curiosidade”. É isso que
precisamos manter viva: a curiosidade na descoberta do mundo. Até
nos compreenderíamos melhor, o mestre pernambucano sugere.
Importa-me também destacar algo como fundo das cartas.
Paulo Freire escreve para Nathercinha, como uma igual, uma amiga
importante à qual precisa se dedicar tempo e cuidado, mesmo com

149
7. Por que Paulo Freire comprometeu-se com a educação de jovens e adultos e não de
crianças?

todas as ocupações do tempo em que está escrevendo a Pedagogia


do oprimido. Há apenas um trechinho em que Paulo Freire parece se
esquecer da infância e fala como “gente grande”, quando afirma que
o pai e a mãe de Nathercinha poderão lhe “explicar melhor” o que ele
está afirmando, pressupondo que há coisas que uma menina não pode
entender por si própria. Em qualquer caso, é uma carta de muito cuida-
do, respeito e amorosidade com a infância.

Por que alfabetizar adultos em vez de alfabetizar crianças?

Na seção anterior, percebemos a profunda relação de Paulo


Freire com a infância, no cuidado e respeito que ele mostra na comu-
nicação com uma criança de nove anos (o que se verifica, também,
no mais conhecido epistolário de Cartas a Cristina, Freire, 2015). Paulo
Freire também manteve uma potente relação com sua própria infância,
considerando que visitá-la era necessário para forjar suas ideias sobre
alfabetização e também manifestando a importância fundamental de
todas as pessoas manterem viva a infância sem importar a idade. Sendo
tão significativa a infância para Paulo Freire, por que ele não se dedicou
à alfabetização de crianças, e sim de pessoas jovens e adultas?
A leitora e o leitor já sabem que não pretendemos responder
terminantemente essa pergunta. Mas também sabem que não preten-
demos evitá-la. O que queremos é mantê-la viva, fazer surgir, quem
sabe, outros questionamentos. Esperamos que isso provoque esta últi-
ma seção de nosso texto.
Paulo Freire distinguia duas infâncias: a das idades e a da curio-
sidade. Ele vivia, ao mesmo tempo, em diversos tempos. Distingamos
dois tempos principais: por um lado, a) o tempo do relógio e do calen-
dário, o das instituições educativas, dos programas e cronogramas; por
outro, b) o tempo da infância, do brincar e do perguntar; são os tempos
que os antigos gregos chamavam de khrónos e aión (Kohan, 2004). O
primeiro é um tempo sem presente, pois é a numeração do movimen-
to e sua ordenação em passado e futuro, o movimento que já passou
(passado) e o que ainda está por vir (futuro). Nesse tempo, o presen-
te é apenas instante, dobradiça, agora; já o segundo é um tempo sem

150
Walter Omar Kohan

movimento, puro presente, duração. Como na citação que acabamos


de oferecer, Paulo Freire considera o segundo tempo essencial para
a vida: trata-se daquele tempo em que uma criança brinca, um artista
cria, os amantes amam.
O que acontece com o tempo de infância na escola? O perde-
mos? Ele fica restrito aos recreios/intervalos? A escola é uma palavra
multifacetada: sua etimologia remete a um tempo livre, skholé, próprio
do brincar no presente, tempo liberado das exigências sociais de produ-
tividade. Contudo, no seu andar histórico, a escola como instituição, as
instituições escolares têm sido tomadas por um tempo regrado, disci-
plinado, produtivo. Pode a escola acolher o tempo da infância? Pode a
escola cuidar ou recordar o sentimento do tempo que aprendemos na
infância? A infância não é uma idade, é uma forma de estar no tempo,
de sentir o tempo que, precisamente, as educadoras e educadores de
todas as idades precisamos manter viva: com encantamento e surpre-
sa. Paulo Freire chamava esse tempo de curiosidade e preocupou-se
em mantê-la sempre viva dentro de si. Também alertou para a impor-
tância de qualquer ser humano manter esse tempo vivo dentro de si a
qualquer idade.
Há demasiadas crianças e adultos entre nós que não têm moti-
vos para sorrir. E que além de terem seus direitos negados, têm seu
tempo de infância proibido. Vidas negadas, renegadas que resistem à
política de extermínio que vem sendo praticada sobre elas. Vidas com
seus direitos roubados e, dentre eles, o seu direito à infância. Vidas
que escutam persistentemente – e assim passam a acreditar – que já
é tarde demais para ler a palavra. Se esse roubo de infância é cruel
com as crianças porque lhes impede de viver uma vida infantil, é ainda
mais desumano com os adultos, porque os afasta cada vez mais do que
poderia ser uma condição para transformar suas próprias vidas. Quanto
mais cronologicamente afastados da infância, mais forte o tamanho do
roubo e mais necessário e desafiador o trabalho educacional de recu-
perar a infância, de sentir, contra todos os discursos que a negam,
que ainda não é demasiado tarde. Que essa janela, fechada, pode ser
reaberta. Nunca é demasiado tarde, parecia pensar Paulo Freire, tal
sem compromisso com a infância. Paulo Freire amava as crianças, mas
talvez amava mais ainda a infância sem idade, essa curiosidade que

151
7. Por que Paulo Freire comprometeu-se com a educação de jovens e adultos e não de
crianças?

está na base de toda pergunta e, assim, de toda transformação. Talvez


por isso dedicou-se à alfabetização das pessoas que já estão longe da
infância cronológica e precisavam de um menino conectivo e conjun-
tivo para lembrar que, em qualquer momento da vida, nunca é tarde
para ler a palavra, reler o mundo, e sonhar com outros mundos.

152
8. Existe o “método Paulo Freire”?

Para Laura Agratti e Olga Grau

Estamos vivendo uma guerra sangrenta no Brasil. Não é uma guerra


recente; ao contrário, faz parte do projeto colonizador imposto há
mais de cinco séculos em nossa América (ou, de uma vez por todas,
deveríamos chamá-la Abya Yala, o nome dessas terras que antecedia à
invasão europeia, em lugar de reproduzir o nome de um invasor?). As
comunidades indígenas, negras e, em geral, as mais empobrecidas são
as que dão o mais duro testemunho desta guerra. Elas também são as
que resistem com mais dignidade e fortaleza.
O aspecto mais específico do atual momento brasileiro é a viru-
lência desta guerra, seu caráter ostensivo e brutal, já que o atual gover-
no de Jair Bolsonaro não faz nenhum esforço para esconder seu desejo
de exterminação. Pelo contrário, ele faz da afirmação da morte uma
autopromoção, seja na sua pulsão armamentista, seja na sua criminal
negação da gravidade da pandemia para a saúde pública. Descrevamos,
em palavras simples, inspiradas em Foucault (2006), a política atual da
administração bolsonarista: um dispositivo de exercer o poder gover-
namental para fazer morrer e não deixar viver. Esse é o dispositivo que
nos governa atualmente.
Faz parte desta política um absoluto desprezo pela educação
e saúde públicas, campos povoados por desigualdades que, em vez
de combatê-las, as estimula a partir de uma lógica meritocrática e

153
empresarial; a falta de respeito à gestão democrática em todos seus
níveis; a militarização da escolarização; a absoluta carência de sensi-
bilidade para os problemas endêmicos da educação e saúde neste
país. Pelo contrário, com a pandemia, a situação tornou-se muito
mais grave e preocupante devido às condições precárias do sistema
público de saúde e das escolas públicas fechadas durante meses e
agora reabertas sem políticas de cuidado e vacinação apropriadas, e
sem que a população mais pobre tenha mínimas condições de conec-
tividade e acesso.
Neste contexto, Paulo Freire ocupa uma posição curiosa,
erigido em inimigo por uma administração que tem colocado até
agora só economistas como ministros da educação. Já durante sua
vida, Paulo Freire havia respondido aos discursos conservadores
que se opunham à reconhecer a dimensão política da educação e
hostilizavam qualquer pretensão de transformação social através da
educação. Desde 2016, com a deterioração da situação política no
Brasil, esta posição em relação ao seu trabalho – que sempre este-
ve presente – tornou-se muito mais incisiva; no golpe e nas mani-
festações antidemocráticas contra o governo de Dilma, aparece-
ram bandeiras odiosas contra o professor pernambucano, seguidas
de vozes nas redes sociais que culpavam Paulo Freire por todos os
problemas da educação brasileira e o tornavam um símbolo não mais
do divino, mas do diabólico.
Assim, o odiado Paulo Freire passou a ser parte do programa
governamental de J. Bolsonaro pela negativa: “expurgar a ideologia
de Paulo Freire da educação brasileira”, programa que acabou sendo
eleito em 2018. Paulo Freire continua sendo considerado um inimigo
explícito dos funcionários do regime. Algumas perguntas restam em
nós: como é possível que esse programa tenha sido o mais votado até
mesmo pelo povo oprimido? Para além das paixões tristes e alegres
despertadas pelo educador das utopias, podemos superar o discurso
do ódio e considerar qual seria o valor de sua vida e de seu trabalho
para pensar em nosso devastado presente educacional? Em que medi-
da, neste ano de comemoração do centenário de Paulo Freire, sua obra
e sua vida podem nos ajudar a pensar problemas ou questões relevan-
tes de nosso presente?
Paulo Freire é mais um exemplo em que coincidem tantas
semelhanças entre o governo atual e a ditadura de 1964: ambos
pretendem expulsar Paulo Freire, o idealizador de um Plano Nacional
de Alfabetização, da realidade educacional brasileira. Um educador
popular é considerado inimigo. Ele já não está vivo entre nós; então a
expurgação ideológica ocupa o lugar da prisão e do exílio. Mas a rela-
ção é a mesma: ditaduras não gostam de educadores do povo nem de
um povo letrado.
É precisamente a uma destas questões – relativa ao letramen-
to do povo – que vou me referir neste pequeno ensaio: é preciso um
método para alfabetizar e, de um modo mais amplo, para educar? Em
outras palavras, é necessário, preciso ou conveniente que um educa-
dor ou educadora adote um método específico, predeterminado, para
realizar a sua tarefa? A figura de Paulo Freire pode ser interessante
para pensar essa questão por vários motivos. Como é sabido, Paulo
Freire criou um método de alfabetização, conhecido como “o méto-
do Paulo Freire”. Ele tem gerado muitas práticas e estudos. Há muita
coisa escrita sobre esse método. Ele aparece aludido frequentemente
nos ataques e nas defesas do educador de oprimidos. Contudo, a tese
que defenderemos neste texto é a de que, mesmo que por razões
práticas e contextuais ele tenha proposto um método, sua forma
de se relacionar com esse e outros métodos ajuda a problematizar
a ideia de método e sinaliza que cada educador deveria procurar e
encontrar seu próprio método, seu próprio caminho, antes de aplicar
o método criado por outro, até mesmo o método Paulo Freire. Há
implicações políticas na exigência de que docentes adotem um certo
método. Essa exigência atravessa propostas autoproclamadas demo-
cráticas ou autoritárias e são essas implicações que, esperamos, este
texto ajude a repensar.
Dessa forma, se este texto tem algum valor poderia ser o de
nos ajudar a pensar sobre os desdobramentos políticos que se seguem
de algum caminho ou caminhos pedagógicos, e também os efeitos polí-
ticos derivados da relação que mantemos com os caminhos que segui-
mos quando educamos. Assim, se entendemos método no sentido
amplo do caminho, a questão que Paulo Freire nos ajuda a pensar não
é tanto “método sim ou método não” – já que sempre temos que cami-

155
8. Existe o “método Paulo Freire”?

nhar por algum caminho –, mas como nos relacionamos com o método/
caminho, as formas de caminhar na educação e as implicações políticas
que essa determinação traz para o exercício docente.

Considerações sobre o “método”

A palavra “método” e algumas tradições dominantes

A etimologia da palavra “método” é grega: o dicionário dessa


língua diz que méthodos é uma palavra composta da preposição metá
(entre, depois; além) e o substantivo hodós (caminho) com o sentido de
busca, procura, substituição e, derivado deles, busca de conhecimen-
to, investigação, forma de investigar, sistema (Liddell; Scott; James,
1966). Na modernidade europeia, um número significativo de filósofos,
talvez por causa de sua proximidade com as ciências naturais, dedicou
obras ao método. Um deles foi F. Bacon, que, no século XVII, publicou
o Novum Organum, que poderia ser traduzido como Novo Método e
que buscava um novo instrumento, mais empírico e menos especula-
tivo para a filosofia. Talvez o mais conhecido destes trabalhos seja o
Discurso do Método de R. Descartes (originalmente intitulado “Discurso
sobre o método para conduzir bem a razão na busca da verdade na
ciência”), que, para muitos, foi um marco para o que deveria ser enten-
dido como investigação filosófica legítima, baseado em suas quatro
regras: evidência, análise, ordem e enumeração (Descartes, 2001).
Desta forma, o método foi entendido como a única maneira de aces-
sar conhecimentos certos e verdadeiros; um procedimento com etapas
claramente definidas e sequenciadas.
Quase todas as correntes contemporâneas da filosofia euro-
peia, algumas das quais influenciaram fortemente Paulo Freire, ques-
tionam a imagem cartesiana do método. A filosofia hermenêutica,
por exemplo, se opõe a este valor do método científico como garan-
tia de verdade, rejeitando sua aplicabilidade universal. Por exemplo,
Hans-Georg Gadamer, em Verdade e Método, enfatiza a importância
das humanidades que resistem à hegemonia do conceito cartesiano
de método. A este conceito de método, Gadamer opõe a noção de

156
Walter Omar Kohan

Bildung, com o sentido de uma formação cultural processual (Gadamer,


1999). Poderíamos multiplicar as referências em outras correntes de
pensamento, mas talvez seja mais interessante ir diretamente ao
conceito de método.

Método: curiosidade e compromisso político

Freire não escreveu um texto dedicado exclusivamente ao


“método”, embora ele se refira a ele em várias obras, especialmente
desde seu primeiro período, e muitos autores próximos a ele escreve-
ram livros sobre seu método (Brandão, 1981; ver também a entrada
“método” em Streck; Redin; Zitkoski, 2018). Já no exílio, coordenan-
do o setor de Educação do Conselho Mundial de Igrejas em Genebra,
Suíça, Paulo Freire realizou várias campanhas de alfabetização, particu-
larmente em países africanos de colonização portuguesa e em alguns
países latino-americanos. Por razões complexas, a aplicação do méto-
do nestas campanhas ofereceu “resultados” contrastantes; em algu-
mas, pouco expressivos em termos quantitativos, algo que Paulo Freire
nunca negou, mas, pelo contrário, debateu e escreveu a respeito (por
exemplo, ver Freire 2007 [1997] e 2010 [1992]).
É bem conhecido que Paulo Freire, além de seus livros mono-
lógicos, escreveu vários livros em diálogo e deu inúmeras entrevistas.
Na verdade, ele preferiu esta forma de escrita, e, a seguir, vamos nos
ocupar de uma destas entrevistas, que se concentra precisamente
na questão do método. A entrevista foi conduzida por Nilcéa Lemos
Pelandré, que, na época, estava fazendo sua pesquisa de doutorado
sobre os efeitos a longo prazo do chamado método Paulo Freire.
Nilcéa, que é professora de Metodologia de Ensino na
Universidade Federal de Santa Catarina, começa a entrevista argumen-
tando que há muito debate sobre os aspectos filosóficos e políticos do
método Paulo Freire, mas que ela preferiria se concentrar nos efeitos
do método sobre os níveis de leitura e escrita daqueles que foram ensi-
nados a ler e escrever por ele. Porém, apesar de seus esforços, a entre-
vista concentra-se mais no que mais interessa a Freire: precisamente os
aspectos filosófico-políticos do método, que ela mesma abre com sua
primeira pergunta sobre os princípios cardeais do método, em termos

157
8. Existe o “método Paulo Freire”?

filosóficos, políticos e pragmáticos. Devido à sua importância, transcre-


verei a primeira parte da longa resposta de Paulo Freire:

Eu começaria a responder sua pergunta fazendo umas consi-


derações que me parecem, do ponto de vista epistemológi-
co, importantes. Considerações em torno da expressão que
você usou, e que não é só você que usa, todos usam, quando
me perguntou sobre ‘o método’. Eu preferiria dizer que não
tenho método. O que eu tinha, quando muito jovem, há 30
anos ou 40 anos, não importa o tempo, era a curiosidade de
um lado e o compromisso político do outro, em face dos rene-
gados, dos negados, dos proibidos de ler a palavra, relendo o
mundo. O que eu tentei fazer, e continuo fazendo hoje, foi ter
uma compreensão que eu chamaria de crítica ou de dialéti-
ca da prática educativa, dentro da qual, necessariamente, há
uma certa metodologia, um certo método. (Pelandré, 2014,
p. 14).

Vale a pena prestar atenção a cada detalhe da resposta. Em


primeiro lugar, Paulo Freire assinala que ele precisa fazer conside-
rações importantes do ponto de vista epistemológico: “Eu preferiria
dizer que não tenho método”. E então justifica e dá outros nomes ao
que se chamou de método em sua juventude: a curiosidade e o compro-
misso político. Estes são conceitos importantes que estão situados em
lugares diferentes do processo educativo em relação ao método. Se
o método está presente mais no meio do processo, no interior dele, a
curiosidade está mais fortemente implicada no início e o compromisso
político guia a viagem educacional desde o final, como um horizonte.
Se o método tem a ver com a forma como educamos, a curiosidade
fala da razão ou motivo pelo qual educamos e o compromisso políti-
co se refere ao sentido ou para quê o fazemos. Se a curiosidade é um
princípio do qual partimos e que nos impulsiona a andar, o método é
uma forma de transitar, andar, e o compromisso político alude ao signi-
ficado de educar.
Assim, Paulo Freire deixa muito claro que sua principal preo-
cupação sempre foi com questões de princípios e sentidos de educar,
muito mais do que com questões de caminhos, métodos ou metodolo-
gias. É claro que ele tinha um método no sentido de que era necessá-
rio caminhar de alguma forma, mas – e este esclarecimento também é
muito significativo – era mais um método de saber (epistemológico) do
que de ensinar (pedagógico). Por que este esclarecimento é importan-

158
Walter Omar Kohan

te? Porque mostra que, para Paulo Freire, se era necessário antecipar
um determinado caminho ou forma de saber, ele não era necessário
por razões pedagógicas, para ensinar, mas por razões epistemológicas,
já que era uma forma de produzir conhecimento: o método era mais
epistemológico do que pedagógico.
Vamos deter-nos um pouco mais nessas duas coisas que Paulo
Freire afirmou ter quando era jovem: curiosidade e compromisso polí-
tico. E antes de entrarmos nelas, notaremos um detalhe: “não importa
o tempo”. Paulo Freire parece querer nos alertar para o fato de que
esta questão, situada em sua juventude, vai além dos tempos; que, na
verdade, ele a levanta em relação à sua juventude porque está sendo
questionado sobre aquele tempo, o tempo de suas campanhas de alfa-
betização; mas, na realidade, é uma questão que está relacionada a
qualquer tempo no campo da alfabetização, e não apenas ao tempo de
suas campanhas de alfabetização.
Vejamos, então, esses dois componentes do “jovem” Freire:
curiosidade e compromisso político. A primeira é uma condição para
que educadores e educadoras de todas as idades eduquem pessoas de
qualquer idade. Freire o diz da maneira mais diversa possível, em seus
textos, em suas Cartas a Cristina (Freire, 2015) e a Nathercia (Lacerda,
2016), em sua vida. Talvez no livro falado com Antonio Faundez, Por
uma pedagogia da pergunta, é onde ele o faz da forma mais explícita e
claramente: educar significa, sobretudo, alimentar a curiosidade que
está na base de cada pergunta, por isso é necessária uma pedagogia
da pergunta e não da resposta (Freire; Faundez, 2017). Sem curiosi-
dade não há conhecimento, não há educação, nada que valha a pena.
Também neste texto, a curiosidade precisa ser cuidada e nutrida e está
associada ao modo de vida de uma menina. É por isso que a infância
ou meninice, entendida como uma possibilidade de existência e não
como uma etapa da vida, é antes algo que educa e não algo a ser educa-
do, como temos argumentado amplamente em outros lugares (Kohan,
2019). Uma vida educadora cuida para manter viva essa curiosidade e
inquietação infantil, a fim de educar pessoas de todas as idades.
Por outro lado, o compromisso político com os “renegados,
negados, proibidos de ler a palavra, relendo o mundo” é outro compo-
nente insubstituível e não negociável dos educadores de todas as

159
8. Existe o “método Paulo Freire”?

idades. É a educação como política: uma política que não é definida


por um dogma particular, mas por um estar junto a um sujeito políti-
co caracterizado por sua negação. É uma posição política ao educar.
Há um sujeito político que foi roubado de sua condição existencial
e política; um sujeito que não pode ser quem é, que é impedido de
realizar sua vocação para conhecer e ser mais. Portanto, qualquer
prática educacional que mereça este nome precisa se colocar como
sentido que esse sujeito impedido, oprimido e negado pode se tornar
quem ele ou ela é.
Paulo Freire deu nomes diferentes a este compromisso. Mesmo
nas linhas que seguem o parágrafo transcrito, ele esclarece: “Prefiro
me entender como um homem curioso e pesquisador de uma certa
concepção democrática, radical e progressiva da prática educacional”.
Ou seja, que o compromisso político com os negados é aqui chamado de
concepção democrática, radical e progressista da prática educacional.
Não estamos tão preocupados agora com estas nuances. O que impor-
ta é perceber que a questão do método específico para educar é secun-
dária à curiosidade e ao compromisso político que move uma prática
educacional, aos princípios e sentidos que inspiram esse caminho.

Formação: tornando-se o método que somos

Na continuação dessa mesma primeira resposta na entrevista,


Freire desenvolve um pouco mais estas afirmações, alterando ligeira-
mente a apresentação. Ele oferece três fundamentos da prática educa-
cional: a) toda prática educacional é política; b) toda prática educacional
é projetada fora de si mesma para um amanhã aberto e problemáti-
co; c) toda prática educacional é cognitiva, ou seja, um processo de
conhecimento composto de assuntos igualmente legítimos, trate-se de
educadores ou aprendizes. E então ele sugere transferir esta análise
para a alfabetização, para a qual ele faz uma distinção entre gramática
e linguagem: a gramática, suas regras, é a única coisa que pode ser ensi-
nada; a linguagem, por outro lado, é aprendida socialmente; portan-
to, a alfabetização é um ato criativo e, estritamente falando, ninguém
ensina ninguém a ler e escrever. É por isso que não pode haver nenhum
método para alfabetizar.

160
Walter Omar Kohan

Porque não exista antecipadamente um método, não signi-


fica que o alfabetizador ou alfabetizadora não precise saber algu-
mas das coisas necessárias para uma passagem tranquila por este
caminho: por exemplo, que para alfabetizar é necessário partir da
linguagem cotidiana dos alfabetizandos e alfabetizandas, resultado
de uma leitura do mundo que precede a leitura da palavra; que a
proximidade cultural entre alfabetizador(a) e alfabetizando(a) faci-
lita o processo; que o reconhecimento do conhecimento dos(as)
alfabetizandos(as) o(a)s encoraja a olhar mais além; também não
significa que não existam requisitos linguísticos, nem limitações
fonéticas para o processo de alfabetização. Finalmente, a ausência
de um método também não significa que não existam técnicas que
possam auxiliar neste processo. O que Paulo Freire quer significar é
que nenhuma técnica pode ser auto-contida ou considerada aplicá-
vel a qualquer contexto ou imutável, e que cada educador(a)/alfabe-
tizador(a) precisa se relacionar criativamente com qualquer técnica
que ele ou ela opte por praticar.
Outro aspecto que Paulo Freire considera importante tornar
explícito é a formação de alfabetizadores e alfabetizadoras. Ele é muito
claro a este respeito: “a formação contínua se baseia na reflexão sobre
a prática. É pensando criticamente na prática que se destila desta práti-
ca a teoria que já se conhece ou não” (Pelandré, 2014, p. 20); em outras
palavras, a formação precisa ser mais política e filosófica do que meto-
dológica ou técnica.
Se até este ponto Paulo Freire tem sido muito claro sobre a
subordinação do método à sua dimensão política e filosófica, torna-
-se ainda mais claro quando Nircéa pergunta se ele aplicou sua teoria
em sua administração como Secretário de Educação da cidade de
São Paulo. Por causa da importância da resposta, transcrevo, abaixo,
uma parte dela:
Nós trabalhamos seguindo muita gente, não necessariamente
Paulo Freire. Dizíamos sempre que não havia necessidade de seguir
Paulo Freire, nem João, nem ninguém. A exigência é que fosse aplicada
uma pedagogia progressista. O que importava era saber se o educador
tinha uma cultura dialógica e aberta, respeitosa com o povo. No fundo,
cada educador é um método. Não tem que estar bitolando.

161
8. Existe o “método Paulo Freire”?

Vamos prestar muita atenção. Na primeira parte de sua respos-


ta, Paulo Freire tinha apresentado o Movimento de Educação de Adultos
(MOVA) de São Paulo, criado durante sua administração, e tinha falado
de suas parcerias com os movimentos populares dos subúrbios de São
Paulo. Ele também tinha mencionado como a administração sucessiva
e reacionária de Paulo Maluf colocou um fim a esse trabalho político.
Em seguida, ele passou a se referir afirmativamente à sua administra-
ção. Mais uma vez, Paulo Freire não fala de métodos ou técnicas: ele
afirma que as orientações para as práticas educacionais eram plurais
durante sua administração e que a exigência era que os educadores e
educadoras aplicassem uma pedagogia progressista, palavra que ele
já havia utilizado no início da entrevista para se referir ao significado
político da prática educacional, como democrático e radical. E ele expli-
cita sua compreensão desta exigência a partir de considerações episte-
mológicas, filosóficas e políticas: uma cultura de diálogo e abertura, de
respeito ao povo. Então, Paulo Freire termina sua resposta com uma
declaração extraordinária: “No final, cada educador é um método”,
seguido de um esclarecimento: “não tem que estar bitolando”.
Paulo Freire parece querer passar de um extremo para o outro.
Diante das culturas autoritárias, presentes inclusive no meio educacio-
nal, perante a rigidez daqueles que aplicam receitas rígidas, unifica-
doras e totalizadoras, ele exige uma maleabilidade metodológica em
termos de coerência política, filosófica e epistemológica de uma práti-
ca pedagógica. O que importa no ato educativo está muito mais nestas
dimensões que na unidade metodológica.
Entretanto, há algo mais: “Cada educador é um método”. Isto
significa que não podemos separar quem alfabetiza de como alfabeti-
za, porque cada pessoa alfabetizadora se faz e se encontra na forma
que encontra para afirmar seu compromisso epistemológico, filosófi-
co e político numa educação emancipatória. Não há como separar o
método de alfabetização da pessoa alfabetizadora. Além disso, não há
nenhum método de alfabetização fora de uma existência alfabetizado-
ra. “Cada educador é um método”. É por isso que a tarefa de encontrar
o próprio caminho é insubstituível para aqueles e aquelas que dedi-
cam suas vidas à educação popular, porque, dessa forma, que só cabe
em quem a encontrou a partir de um processo dialógico e reflexivo,

162
Walter Omar Kohan

estará refletida a especificidade com que essa vida educadora busca


realizar seu compromisso epistemológico, filosófico e político com a
educação popular.
“Cada educador é um método”. Toda vez que afirmamos algo,
não afirmamos outras coisas. Vejamos o que esta frase não afirma, o
que ela poderia ter afirmado sobre a relação entre cada educador(a)
e o método que Paulo Freire preferiu não afirmar, entre tantos outros
possíveis. Primeiro, a questão do gênero que, sabemos, era sensível a
Paulo Freire e também por isso estamos explicitando em nosso texto,
mesmo que trave ou torne mais emaranhada a sua leitura. Segundo,
Paulo Freire poderia ter afirmado algo oposto e mais radical: “Cada
educador (ou educadora) não é um método”. Em certo sentido, são
frases opostas: a primeira identifica cada educador (e educadora) com
um método; a segunda nega esta identificação. Entretanto, em outro
sentido, ao lê-las, as frases tornam-se mais próximas se o “um” tem
o sentido de numeral, unidade: ao identificar cada educador com um
método, o método se multiplica para cada educador, e assim cada
educador não é um método único. Finalmente, vejamos outras varian-
tes de verbos que Paulo Freire poderia ter usado no lugar do verbo ser:
“Cada educador tem (aplica, procura, encontra, assume, busca, desco-
bre, inventa, cria, concebe, traça, esboça, delineia, projeta) um (seu)
método”. Nenhuma dessas frases seria necessariamente falsa para
Paulo Freire. Pelo contrário, talvez o educador pernambucano consi-
derasse todas elas como verdadeiras ou com sentidos interessantes.
Cada uma delas enfatiza uma dimensão diferente na relação de cada
educador(a) com um método.
Contudo, nenhum verbo, como o verbo “ser”, mostra a
impossibilidade de separar o método de seu executor: não há
nenhum método fora de uma existência que o cubra com significados
epistemológicos, filosóficos e políticos; o método está na dimensão
ontológica do ser educador ou educadora. Mesmo assim, talvez exis-
ta um verbo que, imaginamos, seja ainda mais consistente e atento
a essa dimensão democraticamente aberta e errante na relação de
cada educador e educadora com seu método. Por isso, se tivermos
que reescrever essa frase diríamos: “cada educador e educadora está
um método”. Dessa forma estaríamos indicando uma relação menos

163
8. Existe o “método Paulo Freire”?

fixa e mais aberta às trajetórias dessas vidas educadoras na sua rela-


ção com um método.

Considerações finais antimetódicas

Como durante toda sua vida, mesmo mais de 20 anos após sua
morte, Paulo Freire continua a dividir águas. Estamos nos aproximan-
do do 100º aniversário de seu nascimento e as águas estão se tornan-
do cada vez mais agitadas e turbulentas. O mesmo sucede com seu
“método”: há aqueles que o deificam e aqueles que o defenestram.
Aqueles que o consideram milagroso (com o método Paulo Freire seria
logo resolvido o analfabetismo no Brasil) e aqueles que o acham errado
e perigoso e, portanto, que deveria ser expurgado da educação brasi-
leira. Neste breve ensaio, tentamos tomar outro caminho: olhar para
Paulo Freire como um companheiro a fim de problematizar a forma
como a questão do método pode ser pensada neste momento; não
tanto para entender seu método e defendê-lo ou condená-lo, mas para
pensar como ele pode nos inspirar a levantar algumas perguntas sobre
a forma como cada educador se relaciona ou poderia se relacionar com
sua própria forma de viver uma vida educadora. Os leitores e as leitoras
deste texto poderão dizer acerca da força ou da fraqueza deste exercí-
cio para pensar sua própria relação com o método.
Descobrimos uma inspiração: “cada educador é um método”.
O verbo “ser” pode ter o valor de uma identidade, uma qualidade, uma
possibilidade, uma dimensão, uma contingência, um risco, uma aposta,
uma ousadia. E tantas outras coisas. Sugerimos uma leve nuance: “Cada
educador ou educadora está um método”. O novo verbo indicaria uma
relação mais provisória, mutável (livre?) com o método. Em qualquer
caso, a frase também mostra uma inseparabilidade e uma condição:
não há método fora de quem o coloca em prática. Mais do que isso,
na educação popular, talvez praticar um método signifique todas essas
coisas juntas: (re)criá-lo, inventá-lo, vivê-lo, ser ele, estar ele. E mais
algumas que deixo as leitoras e os leitores imaginarem. Neste sentido,
devido à inseparabilidade entre o método e seu praticante, inventar
um método faz parte da invenção de si como educador ou educadora:
inventar um método faz parte da tarefa artística de educar, parte de

164
Walter Omar Kohan

inventar a si mesmo(a) educador(a). Não há método (invenção de) sem


invenção de si.
Estas considerações filosóficas e políticas, que podem parecer
abstratas e descontextualizadas, também podem nos ajudar a pensar
sobre nossas práticas educacionais nestes tempos de tanta hostilidade
e precariedade nas condições do trabalho pedagógico. Destas afirma-
ções, pode-se deduzir como consequência que a ânsia contemporânea
por métodos pré-determinados, eficientes e objetivos que nos ajudem
a empreender nosso caminho educacional, bem como a obsessão por
avaliações padronizadas para medir nosso trabalho pedagógico, pode
ser uma forma de nos desviar de uma dimensão insubstituível em uma
vida educativa: a tarefa artística de encontrar nossa própria forma de
educar. Questionar esta urgência e a necessidade de encontrar um
método seguro também pode nos ajudar a pensar no que colocamos
de lado quando o fazemos, e também nos princípios e sentidos que
damos à nossa tarefa: é possível que um método possa nos garantir
bons “resultados”, mas, ao mesmo tempo, ferir algo da curiosidade
que sustenta nossa busca? O que estamos ensinando além das coisas
que acreditamos ensinar quando nos mostramos seguindo um caminho
já determinado por outros e não estando em busca de nosso próprio
caminho? Que política cognitiva afirmamos e abrimos no espaço educa-
cional disponível quando aplicamos uma estratégia metodológica defi-
nida de antemão?
A questão do método nos leva a perguntar “como?”: “como
explicar este programa?”, “como alfabetizar esta pessoa incapaz de
aprender ou ler alguma coisa?”, “como fazer com que tal pessoa saiba
tal coisa”? “Como fazer…?”. As exigências de um sistema educacional,
com suas exigências de planejar, objetivar, medir, avaliar, reforçam
nossa preocupação com os “como…”.
Ao mesmo tempo, esta exigência talvez nos faça perder de
vista outras perguntas, aquelas que começam com “por que?”: “por
que pressupomos que alguém é incapaz de aprender e não pensamos
que talvez sejamos nós incapazes de ensinar?”, “por que prestamos
atenção ao que atendemos em nossa prática?”, “por que estamos tão
obcecados com a busca de um método?”, “por que nos perguntamos
o que perguntamos?”, “por que não nos perguntamos o que não nos

165
8. Existe o “método Paulo Freire”?

perguntamos?”. E também perguntas pelo “para quê?”: “para que alfa-


betizar?”, “para que medir e avaliar tanto em vez de escutar e aten-
tar?”, “para que dedicar uma vida inteira à educação?” etc. Estou dando
apenas alguns exemplos de perguntas. Não há perguntas que sejam em
si mesmas necessárias ou indispensáveis e outras que sejam descartá-
veis ou superficiais; adequadas ou inadequadas; importantes ou banais.
Mas pode ser significativo considerar quais perguntas poderiam ser
mais sensíveis e coerentes com nossos compromissos e significados
filosóficos e políticos para acompanhar as nossas práticas educadoras.
Perceber os princípios e sentidos que Paulo Freire afirma para a
educação popular no lugar do método pode nos ajudar a rever as ques-
tões que somos encorajados a expressar e pensar cotidianamente; por
exemplo, prestar atenção às questões de “por que?” e “para quê?” que
são tão frequentemente deslocadas ou consideradas inúteis diante da
urgência das questões do “como”. Basicamente, é uma questão de nos
perguntarmos o que precisamos nos perguntar a nós mesmos, porque
assim como cada educador ou educadora é ou está sendo seu método,
cada educador ou educadora é ou está sendo também as suas pergun-
tas, as perguntas que se atreve a viver, em seu corpo, em seus sonhos,
em sua vida educativa.
Dessa forma, em última análise, a questão do método está rela-
cionada a uma pedagogia (infantil ou menina) da pergunta. Deixemos
isso claro imediatamente: a pedagogia (infantil ou menina) da pergun-
ta não é um método. Ela sugere princípios e sentidos para educar e
posiciona a educadora ou educador como alguém que está permanen-
te e infantilmente perguntando-se pelos sentidos de sua prática.
Chegou a hora de terminar. Nada melhor do que terminar com
perguntas. Porque se as perguntas são uma infância para o pensa-
mento, uma espécie de convite para o pensamento nascer, terminar
com perguntas significa que estamos terminando por começar, que
estamos fazendo do fim um começo, um convite, um novo começo.
Ajudamos a pensar, com Paulo Freire, sobre o método? Ou ajudamos
a pensar, com o método, sobre Paulo Freire? Ou ajudamos a pensar
sobre nós mesmos? Ou ajudamo-nos a pensar-nos nós mesmos? As
perguntas continuam surgindo: “Afirmamos um método?”, “recriamos
uma pergunta?”, “temos ou não temos sido um método?”, “o estamos

166
Walter Omar Kohan

sendo?”, “temos ou não sido uma pergunta?”, “temos (re)inventado


a nós mesmos?”, “honramos uma pedagogia (infantil ou menina) da
pergunta?”. Quem sabe, uma pedagogia menina da pergunta tenha
algumas qualidades contagiantes.

167
9. “Tudo está em tudo” (J. Jacotot) e “leitura de mundo” (P. Freire):
premissas de dois meninos nada embrutecidos, errantes em uma
temporalidade igualitária35

Para Conceição Seixas e, com ela, para as e os colegas do


Departamento de Estudos da Infância (DEDI) da Faculdade de Educação
da UERJ

Agradeço imensamente o convite e a oportunidade à Anyele, a Zé


Sérgio, a Thiago, à toda equipe, técnica e acadêmica, da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, que está fazendo o evento;
às pessoas que estão agora assistindo e com as quais, depois, pude-
mos conversar. É também uma alegria estar com Beatriz, com quem
coincidiu de estarmos juntos um tempinho no laboratório das lógicas
contemporâneas da filosofia, em Paris 8, com Jacques Rancière, Patrice
Vermeren e Stéphane Douailler, meu querido supervisor da Habilitation
pour diriger des recherches (HDR).
Estamos no Colóquio “Educação, política e emancipação no
pensamento de Jacques Rancière”, organizado em São Paulo, Brasil. E já
que estamos no Brasil, quero falar, além de Jacques Rancière, de Paulo
Freire. Ou, para me expressar melhor, gostaria de compartilhar alguns

35
Intervenção no Colóquio Internacional “Educação, Política e Emancipação no pen-
samento de Jacques Rancière”, na Faculdade de Educação da USP em março de 2021.
Agradeço a Rita Márcia Furtado, Carlos Alberto da Silva, Silvia Mariela Moreno, Carlos
Roberto Da Silva Machado e Suzana Lopes De Albuquerque durante a própria live pelas
sugestões de título. Tomei várias delas e as combinei no título proposto.

169
9. “Tudo está em tudo” (J. Jacotot) e “leitura de mundo” (P. Freire)

pensamentos inspirados em um e em outro e numa possível conversa a


três. Quero convidar Paulo Freire para essa conversa por várias razões:
- Ontem houve mais de 1.900 mortos no Brasil pela Covid. Foi
o dia com mais mortos desde o início da pandemia. Isso significa, mais
ou menos, 80 mortes por hora, ou seja, mais de um morto por minuto.
Quando eu terminar esta fala, haverá mais umas 50 mortes. E, ao que
tudo indica, as mortes vão aumentar. É a necropolítica de um governo
que foi eleito com um programa que visava extirpar a ideologia de Paulo
Freire da educação brasileira36;
- Porque os dois, Rancière e Freire, passaram por elementos
comuns na sua formação, como por exemplo, o catolicismo e o marxismo;
- Porque tem havido diversas tentativas de aproximação entre
Jacotot e Freire; o próprio Rancière referiu-se a essa relação em mais
de uma ocasião, por exemplo, quando veio ao Brasil para participar do
lançamento da edição em português de O mestre ignorante, na UERJ em
2002; e depois numa entrevista intitulada “A atualidade de O mestre igno-
rante”, para um Dossiê que organizamos com Jorge Larrosa, sob a temá-
tica “Liberdade e igualdade em educação. A respeito de O mestre igno-
rante, publicamos na revista Educação & Sociedade (v. 24, n. 82, 2003).
Considero relevante trazer, para este texto, alguns outros elementos
para pensar essa relação que possam, inclusive, tensionar as próprias
palavras de J. Rancière a respeito dessa relação.
Há um sentido adicional para trazer aqui Paulo Freire:
María Beatriz Greco acaba de nos lembrar que, para Jacques
Rancière, a igualdade é um ato, uma confirmação, uma verificação, uma
atualização que se constata com palavras que circulam num mundo
sensível e compartilhado. Assim, a política e a educação pensam-se a
partir do desdobramento de um princípio: “todos os seres humanos são
igualmente inteligentes” e se ocupam de verificar esse princípio.
Jan Masschelein nos dizia na Palestra de Abertura, do presente
evento, que a escola é o desdobramento de um outro princípio: “qual-

36
Enquanto reviso o texto, menos de um mês após a minha intervenção, infelizmente
os prognósticos se cumpriram. Temos tido dias com mais de 3 mil mortes (ontem, 26 de
março de 2021, mais de 3.600, ou seja, o dobro do que já era trágico) e a situação, com o
descaso do poder público, só se tem agravado dia após dia. Quando reviso novamente
o texto, em setembro de 2021, as mortes passaram de 585 mil. Sem palavras.

170
Walter Omar Kohan

quer um pode aprender qualquer coisa”. Só há escola quando há estu-


dantes que podem, igual e livremente, aprender em comunhão com
educadores que buscam verificar esse princípio. Por isso, dizia Jan,
incitam seus estudantes a tentar, uma e outra vez. “Tenta”. E se não
der certo: “Tenta de novo”. Não importa o que digam fora da escola.
Não importa que, sobretudo, estudantes das classes populares tenham
escutado, tantas vezes, que não podem, que não têm jeito, que não tal
coisa, “não é para elas ou eles”. Ao contrário, nesses casos é ainda mais
importante afirmar e verificar o princípio da igual capacidade de apren-
der de todos os seres humanos. A confiança na igual capacidade é cega,
no sentido de incondicional, absoluta, inegociável, por isso a insistên-
cia infinita em não desistir jamais, sempre tentar ainda ou, sobretudo,
quando tudo parece indicar o contrário.
Se vocês me perguntam quais exemplos podemos encontrar
historicamente no Brasil de experiências pedagógicas de igualdade,
nesse sentido de experiências que partam da igual capacidade de estu-
dantes de aprender e busquem verificá-la, eu diria que talvez existam
muitas; mas tem uma que todos aqui devem conhecer e também, por
isso, quero que faça parte de nossa consideração: o mítico curso de alfa-
betização que Paulo Freire coordenou em Angicos em 1963, que ante-
cedeu o seu Plano Nacional de Alfabetização, que iria ser abortado pela
ditadura em abril de 1964, apenas três meses após ser oficialmente lança-
do, em janeiro de 1964. Também, por isso, quero trazer aqui Paulo Freire.
Pelo sintoma que pode significar pensar em seus inimigos políticos, em
1964 e no presente.
Vou retomar essa experiência de alfabetização de Angicos quando
estivermos perto do final desta apresentação, mas antes quero fazer algu-
mas considerações sobre a relação entre Rancière e Paulo Freire e, para isso,
começarei pelo próprio testemunho de Rancière sobre Freire.37

37
Deixo entre parêntese a questão, que logo vai aparecer no testemunho de Rancière,
a respeito da relação Rancière-Jacotot que, em alguns sentidos, se assemelha à relação
Sócrates-Platão: falamos de Jacotot, quase exclusivamente, a partir do testemunho de J.
Rancière, como falamos de Sócrates, quase exclusivamente, a partir do testemunho de
Platão (como de fato Rancière e tantos outros o fazem). Quero dizer que nos referimos
a Jacotot como uma das personagens conceituais de Rancière ou estamos pensando no
par Jacotot-Rancière mesmo que ora escrevamos só Rancière ou só Jacotot.

171
9. “Tudo está em tudo” (J. Jacotot) e “leitura de mundo” (P. Freire)

Rancière recebe, naquela entrevista já mencionada, uma


pergunta direta sobre a relação entre Jacotot e Freire e afirma que a
primeira coisa que vem à cabeça é uma semelhança: a distância, diz
Rancière, de Freire em relação ao mote positivista na bandeira brasi-
leira, “ordem e progresso”, que Rancière percebe como uma “trans-
posição da relação de Jacotot para com os educadores progressistas
– oposição entre uma concepção da educação destinada a ordenar a
sociedade e um pensamento da emancipação que vem interromper
essa harmonia suposta entre a ordem progressiva do saber e a ordem
de uma sociedade racional progressiva.” (Rancière, 2003, p. 198).
Neste ponto, não estou muito de acordo com Rancière; não
vejo aqui grande semelhança: Freire era um educador progressista que
confiava na educação como caminho para as transformações sociais.
Pode ser que o processo histórico passe por momentos de retroces-
so; pode ser que a educação não possa tudo – e, de fato, Paulo Freire
mudou a forma de pensar essa relação em diversos momentos de sua
vida –, mas o educador pernambucano estava longe de uma postu-
ra mais anarquista como a de Jacotot. Freire pensou e militou para
que a educação estivesse a serviço da transformação do estado das
coisas e não de sua reprodução. Isto no Brasil, quando coordenava o
logo extinto Plano Nacional de Alfabetização ou nas Campanhas de
Alfabetização organizadas desde o Estado e o Conselho Mundial de
Igrejas ou, ainda, como secretário de educação de São Paulo. Só isso
mostra que a forma em que ele se relacionava com a educação estatal
e também a maneira como pensava a educação em relação ao social é
muito distante de Jacotot.
A seguir, nessa mesma resposta, Rancière apresenta algumas
distâncias entre Jacotot e Freire: a primeira, que Jacotot pensava numa
emancipação individual muito afastada de algo como a conscientiza-
ção; que a emancipação afirmada por Jacotot era individual e não social.
Claro que também Rancière aponta uma aproximação, no sentido de
que toda emancipação social à la Freire supõe uma emancipação indi-
vidual à la Jacotot. Em algum sentido, não haveria incompatibilidade,
mas, sim, complementariedade ou sucessão entre essas duas formas
de pensar a emancipação. A emancipação pensada por Jacotot seria
uma condição para a emancipação almejada por Freire.

172
Walter Omar Kohan

Finalmente, na medida em que a educação de Paulo Freire


supõe algo como um método, como um conjunto de meios para
instruir os pobres como pobres, há uma grande distância com o “méto-
do” Jacotot, que não é um método, que é como a reprodução de uma
relação ou dispositivo fundamental, mas que recusa qualquer institu-
cionalização de um “método”, qualquer idéia de um sistema que seja
específico à educação do povo. (Rancière, 2003, p. 199).
É verdade que, para Jacotot, não há método; ou que o méto-
do é o do aluno (Rancière, 2003, p. 26). Porém, penso que aqui
Rancière lê muito rapidamente Paulo Freire. Se bem é verdade que
existe um método Paulo Freire, e que Paulo Freire escreveu sobre
o seu método, também não acho que o método Paulo Freire seja
um método. Da mesma forma, Jacotot escreveu sobre o método e
seu pensamento é conhecido como um método, mas não por isso
deve ser reduzido a um método. Rancière parece ter lido com mais
intensidade Jacotot que Freire. Não é uma queixa, claro, senão uma
constatação bastante óbvia. Para mostrar a relação de Paulo Freire
e o método, vou citar dois trechinhos do próprio Paulo Freire. E já
que estamos com uma entrevista de J. Rancière, iremos a uma entre-
vista de P. Freire. Um pertence a uma entrevista com Nilcéa Lemos
Pelandre, que na época estava fazendo sua pesquisa de doutorado
na Faculdade de Educação da USP sobre os efeitos a longo prazo do
método Paulo Freire.
Nilcea, que é professora de Metodologia de Ensino na
Universidade Federal de Santa Catarina, quer saber os efeitos do méto-
do Paulo Freire sobre os níveis de leitura e escrita daqueles que foram
ensinados a ler e escrever por ele. E Paulo Freire responde:

Eu começaria a responder sua pergunta fazendo umas consi-


derações que me parecem, do ponto de vista epistemológi-
co, importantes. Considerações em torno da expressão que
você usou, e que não é só você que usa, todos usam, quando
me perguntou sobre “o método”. Eu preferiria dizer que não
tenho método. O que eu tinha, quando muito jovem, há 30
anos ou 40 anos, não importa o tempo, era a curiosidade de
um lado e o compromisso político do outro, em face dos rene-
gados, dos negados, dos proibidos de ler a palavra, relendo o
mundo. (Pelandre 2014, p. 14).

173
9. “Tudo está em tudo” (J. Jacotot) e “leitura de mundo” (P. Freire)

É muito rico este testemunho. Reparemos em alguns detalhes.


“Eu preferiria dizer que não tenho método”. E dá outros nomes ao que
se chamou de método em sua juventude: a curiosidade e o compro-
misso político. Digamos de passo que está se referindo aos anos de
Angicos sobre os que voltaremos mais adiante. “E não é que mais tarde
tenha adotado um método: umas linhas depois, na mesma entrevis-
ta, ele afirma que continua valendo o mesmo que em sua juventude,
mesmo depois de 30 ou 40 anos. Paulo Freire deixa claro que sua prin-
cipal preocupação sempre foi com questões de princípios e sentidos
de educar, muito mais do que com questões de caminhos, métodos ou
metodologias. De modo que, aqui, onde Rancière vê uma diferença,
penso que há uma grande proximidade.
Porque, justamente, Jacotot e Freire estão preocupados
com os princípios e os sentidos de educar, não com métodos ou
caminhos… Em seu prefácio à edição brasileira do Mestre Ignorante,
Rancière apresenta Jacotot “como uma dessas dissonâncias que, em
certos momentos, talvez seja preciso escutar ainda, para que o ato de
ensinar jamais perca inteiramente a consciência dos paradoxos que lhe
fornecem sentido” (Rancière, 2002, p. 9). Não quero chamar atenção
da palavra “consciência”, curiosamente utilizada por Rancière nesta
referência; em todo o caso, entendo essa frase como se afirmasse que
o ato de educar não pode ser apenas pedagógico, mas que é, sobretu-
do, um ato filosófico e político. Ou, para dizê-lo diferentemente, que
a educação só pode ser filosófica e política. É mais ou menos o que
Freire diz quando afirma que não tinha método, mas apenas curiosi-
dade e compromisso político. Ou seja, que pensava o ato de educar
como um ato filosófico e político e não apenas pedagógico. Isto colo-
caria Freire e Jacotot do mesmo lado e, por exemplo, Jan Masschelein
em lado oposto.
Claro que a proximidade entre Freire e Jacotot-Rancière é
sempre ambígua, duvidosa. E, de forma alguma, nego que existam
dessemelhanças profundas. Por exemplo, Patrice Vermeren, na sua
palestra, considera dois aspectos do anti-humanismo de Rancière e
um deles atinge diretamente Paulo Freire: para Rancière, dizia Patrice,
o problema é se desembaraçar da natureza humana para alcançar as
lutas empíricas, fora de toda teoria da educação, e, por isso, questio-

174
Walter Omar Kohan

nava o lugar do humanismo nas lutas políticas. Nesse caso, estaria na


calçada oposta a Paulo Freire, que quer fazer de uma teoria humanista
da educação uma ferramenta para as lutas empíricas. O mesmo pode-
ria ser afirmado de algumas categorias identitárias muito fortes no
pensamento freireano, sendo que um dos esforços do pensamento de
Rancière é justamente afirmar uma política des-identitária. E o desen-
tendimento poderia ser aprofundado em muitas direções, claro.
Contudo, prefiro pensar na potência dos encontros. E gosta-
ria de dizer algo mais sobre esses dois componentes do “jovem”
Freire: curiosidade e compromisso político. Manter viva a primeira é
uma condição para que educadores e educadoras de todas as idades
eduquem pessoas de qualquer idade. Freire o diz das maneiras mais
diversas possíveis, em suas várias autobiografias, como nas Cartas a
Cristina (Freire, 2008 [1994]) e a Nathercia (Lacerda, 2016); no livro fala-
do com Antonio Faundez, Por uma pedagogia da pergunta, em que o faz
da forma mais explícita e clara: educar significa, sobretudo, alimentar
a curiosidade que está na base de cada pergunta, por isso é necessária
uma pedagogia da pergunta e não da resposta (Freire; Faundez, 2017).
Como se ensina a curiosidade? O método é o de cada quem, mas viver
a curiosidade na própria prática pedagógica parece ser, para Paulo
Freire, uma condição para que cada educadora ou educador percorra
seu próprio caminho.
Aliás, Por uma pedagogia da pergunta é um livro muito significa-
tivo e pouco atentado de Freire. Ele termina com um grande elogio da
revolução sandinista, e isso porque é uma revolução menina, curiosa,
que não sabe o que é ser uma revolução… que afirma um compro-
misso irrenunciável com os oprimidos e mantém aberto os sentidos
do que significa uma revolução. Nada menos que uma revolução que
não se sabe a si mesma e que precisa se perguntar sempre o que é ser
uma revolução. É uma questão, a meu ver, extraordinária em Freire,
que aqui não podemos desdobrar, mas que problematiza alguns
mitos associados aos sentidos políticos que Paulo Freire outorgava à
educação. É também intrigante essa afirmação potente da infância ou
meninice em quem de fato se dedicou à educação de pessoas jovens e
adultas, não infantes cronológicos. E mais intrigante ainda que afirme
que manter viva uma certa infância ou meninice, uma curiosidade e

175
9. “Tudo está em tudo” (J. Jacotot) e “leitura de mundo” (P. Freire)

inquietação infantil, é uma condição para educadores e educadoras


de pessoas de todas as idades. Não podemos entrar aqui nessa ques-
tão, mas quero, pelo menos, deixar como provocação a ideia de que
Paulo Freire e Jacotot são duas figuras infantis: ambos afirmam uma
infância não cronológica na vida dos educadores como uma condição
para o mestre ignorante ou o alfabetizador de jovens e adultos. Em
que sentido são infantis? Vou apenas deixá-lo sugerido: na sua forma
estrangeira de pensar e habitar o ato de educar; numa certa reivindi-
cação da não palavra, da não fala; e num certo tempo, infantil, fora
do tempo social, produtivo, cronometrado que afirmam para a expe-
riência educativa.
Ainda sobre o método, em outro texto, Freire afirma que a
transformação propiciada por uma educação libertadora não é uma
questão de método, mas “de estabelecer uma relação diferente com o
conhecimento e com a sociedade” (Freire; Shor, 1986, p. 28). Ou então,
mais explícita e detalhadamente:

Daí que jamais nós tenhamos detido no estudo de métodos


e de técnicas de alfabetização de adultos em si mesmos, mas
no estudo deles e delas enquanto a serviço de e em coerência
com uma certa teoria do conhecimento posta em prática, a
qual, por sua vez, deve ser fiel a uma certa opção política.
Neste sentido, se a opção do educador é revolucionária e
se sua prática é coerente com sua opção, a alfabetização de
adultos, como ato de conhecimento, tem, no alfabetizando,
um dos sujeitos deste ato. Desta forma, o que se coloca a tal
educador é a procura dos melhores caminhos, das melhores
ajudas que possibilitem ao alfabetizando exercer o papel de
sujeito de conhecimento no processo de sua alfabetização.
O educador deve ser um inventor e um reinventor constante
desses meios e desses caminhos com os quais facilite mais e
mais a problematização do objeto a ser desvelado e finalmen-
te apreendido pelos educandos (Freire, 1978, p. 12-3).

Não há método determinado para o(a) educador(a) revolucio-


nário(a). Antes, há um compromisso com uma política revolucionária
que exige uma prática educadora consistente com esse compromis-
so: a que afirma a igual potência inventiva dos seres humanos, que
faz do(a) educador(a) alguém capaz de possibilitar certos caminhos,
a partir de inventar e reinventar seu próprio caminho. Educar é uma
tarefa inventiva, artística, para Freire e para Jacotot.

176
Walter Omar Kohan

A leitura da palavra supõe a leitura do mundo, afirma Freire. E


seu compromisso é com os que têm proibida a leitura do mundo atra-
vés da leitura da palavra. É mais ou menos como a situação que vivemos
no Brasil, em que um Ministério da Educação tentou proibir ou inibir a
leitura do mundo de alguns professores universitários. Que prova mais
nítida de que estamos em ditadura?
Claro que, quando chegamos ao compromisso político, as
coisas se tornam muito mais complexas. O fato de que Rancière e
Freire compartilhem algumas palavras pode não significar muita coisa;
o exemplo mais óbvio é a palavra democracia. Para Rancière, a demo-
cracia é a suspensão do instituído, o governo dos incompetentes; e o
sistema democrático de partidos e representação seria mais da ordem
da polícia que da política (Rancière, 2016). Não há política na demo-
cracia representativa a não ser justamente quando essa ordem é inter-
rompida ou suspendida. Ao contrário, é justamente esse sentido que
a democracia tem para Paulo Freire: a ordem justa das instituições. De
fato, a experiência de alfabetização em Angicos tinha o valor de intro-
duzir os alfabetizados no mundo dessa política representativa, pois os
analfabetos não votavam. E foi essa também a razão da prisão e do
exílio de Paulo Freire. Seu Programa Nacional de Alfabetização alteraria
o cenário das eleições se ele tivesse alcançado suas metas. As finalida-
des políticas tinham a ver também com intervir no sistema representa-
tivo de governo. Sua luta política é para modificar as relações de força
na democracia instituída. Para Rancière, Paulo Freire dá uma luta poli-
cial, não política.
Mas quando damos mais atenção a algo, as coisas (sempre) são
mais complexas do que parecem em primeira instância. São inegáveis
os efeitos políticos na subjetivação dos participantes das experiências
de alfabetização; os efeitos políticos dessa experiência de igualdade
que esses cursos oferecem. Digamos que, na micropolítica e não na
macropolítica, para usar categorias alheias tanto a Rancière quanto a
Freire, a força política de uma experiência excede as intenções e objeti-
vos dos que as impulsionam. Também os efeitos micropolíticos de uma
prática vão muito além do que entende por política quem a propõe.
Paulo Freire pode ter pensado alguns sentidos políticos para suas expe-
riências de alfabetização, mas os efeitos políticos dessas mesmas expe-

177
9. “Tudo está em tudo” (J. Jacotot) e “leitura de mundo” (P. Freire)

riências extrapolam seu pensamento. Pode Paulo Freire ter pretendido


alcançar efeitos que Rancière chamaria da ordem da polícia e, mesmo
assim, alcançar efeitos políticos impensados?
Isto nos leva a outra dimensão. Podemos estabelecer muitas
diferenças entre Rancière ou Jacotot e Freire ao nível do seu pensamen-
to, dos seus escritos. Porém, há um outro nível de análise que revela,
ao mesmo tempo, uma outra proximidade. Freire, Rancière e Jacotot
têm em comum uma certa incomodidade com a figura tradicional do
intelectual e com a forma dominante de habitar as instituições acadê-
micas. Neste mesmo evento, Patrice Vermeren falava-nos da tensão
com que Rancière se relaciona com a academia filosófica na França;
a mesma tensão viveu Paulo Freire com a academia educacional no
Brasil, inclusive na mesma Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo. Desde uma perspectiva mais afirmativa, poderíamos dizer
que ambos são críticos de um certo modo de habitar a universidade; a
ambos incomoda uma determinada relação da Universidade com seu
fora; uma certa clausura da Universidade; eles compartilham um certo
olhar afirmativo para o fora dos muros dela e uma necessidade de se
relacionar com esse fora, não desde a lógica de quem detém o saber,
mas desde uma posição de escuta. Poderíamos dizer que ambos habi-
tam e recriam uma universidade popular. De um modo mais amplo,
ambos são educadores, filósofos, pensadores, populares e escutam
com muita atenção os saberes do povo. Por exemplo, Rancière se colo-
ca à escuta do trabalho do artesão na sua oficina ou dos proletários
que habitam a noite estudando, de uma maneira impensada para um
intelectual universitário parisiense em sua bolha; o ensino universal é
um método do povo. Da mesma forma, Freire afirma que as principais
lições de sua vida foram dadas por proletários, por exemplo no SESI
de Recife, segundo narra na Pedagogia da esperança (2014), quando
um operário, depois de escutar sua fala, dá-lhe uma das maiores lições
de sua vida, uma “lição de classe”; ou, numa favela em Buenos Aires,
quando é surpreendido pela pergunta de um homem do povo que lhe
formula a primeira de todas as perguntas: “o que significa perguntar?”
(Freire; Faundez, 2017).
E, ainda nessa dimensão política, há um ponto em comum no
que eu chamaria de anti-socratismo, tanto de Rancière quanto de Freire.

178
Walter Omar Kohan

Sócrates irrita muito Jacotot e Rancière porque é justamente um traidor


da ignorância. Melhor, é tudo menos um mestre ignorante. Faz valer seu
pretenso saber, acreditou no oráculo que diz que está por cima de todos
os atenienses. Não pergunta para saber, mas porque sabe e para que os
outros saibam o que ele acha que sabe: que ele é o mais sábio, de fato, o
único sábio na cidade, mesmo que seja por saber que não sabe. O conte-
údo do seu saber engana, mas sua posição em relação ao saber é inequí-
voca: é um mestre anti-ignorante. Sócrates faz do seu saber – que batiza
com o nome de filosofia – um poder para ser mestre. O faz em nome da
filosofia que ele mesmo cria enfrentando-a à política. Nada mais distante
do mestre ignorante, mas também nada mais distante de um(a) alfabeti-
zador(a) popular que pergunta a quem se está alfabetizando para saber
e porque considera que o analfabeto ou analfabeta é portador(a) de um
saber legítimo, de igual valor a qualquer outro: um saber que o educador
ou educadora ignora e deseja saber. Não há um saber a transmitir de cima
para baixo, sequer um saber de não saber como quer Sócrates, porque
o que Paulo Freire justamente impugna é que a educação tenha a ver
com a transmissão de um saber, mesmo que esse saber tenha o nome
de um saber de não saber. Sócrates seria um educador bancário mesmo
que seu saber tivesse a forma de um saber de não saber. O problema de
Sócrates, tanto para Freire quanto para Rancière/Jacotot, é que Sócrates
não escuta o povo, ele acreditou no oráculo e se acha o único a saber
alguma coisa de valor. Educa, filosofa apenas para que todos os outros
saibam o que ele já sabe.
Há alguns outros elementos interessantes em comum entre
Jacotot/Rancière e Freire. Menciono rapidamente alguns porque não
posso entrar em todos. Tanto Jacotot quanto Freire são mestres viajan-
tes, errantes, que vivem a experiência do exílio numa terra estrangeira,
onde se fala uma outra língua, e que essa experiência é decisiva nas
suas descobertas. Não haveria Jacotot sem a experiência em Louvain;
Freire escreveu a Pedagogia do oprimido no Chile e, de fato, ela foi
publicada primeiro em inglês e castelhano e só depois em português.
E sua errância pelo mundo impacta decisivamente o seu pensamento.
Trata-se apenas de exemplos, mas poderíamos sugerir que Jacotot e
Freire se inventam a si mesmos em viagens errantes ou que as viagens
são decisivas para seus pensamentos e suas vidas.

179
10. Por que Paulo Freire mais do que nunca?

Para Carlos Skliar

[…] en una revolución verdadera, a la que se le da todo, de la cual no


se espera ninguna retribución material, la tarea del revolucionario de
vanguardia es a la vez magnífica y angustiosa. Déjeme decirle, a riesgo
de parecer ridículo, que el revolucionario verdadero está guiado por
grandes sentimientos de amor. Es imposible pensar en un revoluciona-
rio auténtico sin esta cualidad.
Ernesto Che Guevara, 1978, p. 21-22.

[…] sempre digo que a única maneira que alguém tem de apli-
car, no seu contexto, alguma das proposições que fiz é exata-
mente refazer-me, quer dizer, não seguir-me. Para seguir-me, o
fundamental é não seguir-me.
Paulo Freire. In: Freire; Faundez, 2017, p. 60

Vivemos em tempos de horror, de desprezo pela vida, especialmen-


te por vidas que estão marcadas, excluídas, violentadas, descontadas
por causa de sua raça, gênero, classe social, cultura. São vidas que
têm cores, histórias, culturas que, de uma forma ou outra, contestam
o mundo que se pretende consolidar e a narrativa que o acompanha.
Achile Mbembe deu um nome ao nosso tempo: necropolítica, ou “[…]
a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição
material de corpos humanos e populações” (Mbembe, 2018, p. 10-11).
No Brasil, a necropolítica articula poderes, mídia e instituições e resul-

181
10. Por que Paulo Freire mais do que nunca?

ta por momentos asfixiante pelo caráter exagerado, grotesco e arre-


piante dessa política da morte que se tem instalado entre nós. O que
mais dói é que não se trata apenas de uma política de um governo, mas
ela parece ser acompanhada por uma parte da população, inclusive a
que mais a padece.
Contudo, o problema é mais fundo. Infelizmente, não esta-
mos sós e não se trata apenas do Brasil nem do mundo material. Uma
outra dimensão que acompanha a necropolítica é o império do digital
e a privatização das vidas que circulam nesse mundo. Nos termos de
Shosana Zuboff (2019), é o capitalismo de vigilância em seu apogeu,
uma forma inédita de exercer o poder que acaba supeditando a polí-
tica à economia e, mais especificamente, os sistemas de governo
formalmente democráticos a uma lógica imposta pelo próprio capi-
tal através das grandes redes sociais privadas. Acreditamos que nos
refugiamos nas redes, que ganhamos reconhecimento e escolhemos
muita coisa no mundo virtual, quando, na verdade, contribuímos para
um sistema que consolida a formação de sujeitos consumidores, obje-
tivando maximizar o lucro colocando em risco a vida humana e a do
próprio planeta.
Nesse contexto, no título deste pequeno texto, o leitor notará
que existe uma expressão temporal: “mais do que nunca”. E também
comecei este escrito me referindo aos tempos em que vivemos. Que
tempo sugere a expressão “mais do que nunca”? Que relação exis-
te entre o tempo sinalizado pelo “mais que nunca” e os tempos que
vivemos em relação a Paulo Freire? Por que “Paulo Freire mais do que
nunca” nestes tempos atuais de necropolítica e sujeitos sujeitados às
redes sociais de consumo?
A princípio, o tempo contido na expressão “mais do que nunca”
parece um tempo óbvio, porque “nunca” é a ausência total de tempo,
nenhum tempo, zero tempo, portanto, “mais do que nunca” seria qual-
quer tempo: um segundo, um minuto, uma hora, um dia, um mês, um
ano, um século, até um décimo de segundo, qualquer quantidade de
tempo seria mais do que nunca sendo “nunca” zero tempo. Contudo, a
expressão “mais do que nunca” parece expressar que um certo tempo
parece mais significativo que qualquer um dos outros tempos; algo assim
como se dissesse: “neste tempo como em nenhum outro tempo”.

182
Walter Omar Kohan

A expressão está também no título de um livro que publiquei


recentemente38 e, quando estávamos traduzindo a expressão para o
inglês, sentimos algo estranho porque “mais do que nunca” se tornou,
em inglês, “mais do que sempre” (more than ever) e então o jogo se
tornou ainda mais sério porque que tempo é “mais do que sempre”?
Não parece nada óbvio. Pelo contrário, se “mais do que nunca” resul-
ta qualquer tempo, “mais do que sempre” sugere um tempo impossí-
vel porque “sempre” é o tempo inteiro, a completude do tempo: que
tempo seria então mais tempo do que a totalidade do tempo?
Na expressão “mais do que nunca” (ou “mais do que sempre”),
parece também faltar uma outra palavra temporal: “hoje” ou “agora”…
Entretanto, tanto “hoje” quanto “agora” denotam um tempo um
tanto esquivo: quando é agora? Agora? Não, porque agora já passou…
Agora? Também não, porque agora é já um outro agora; assim, agora
nunca é o mesmo agora, basta pronunciá-lo que ele passa a ser parte
do passado, sendo substituído por um outro agora; que, por sua vez,
é substituído por um outro e assim sucessivamente, sem nunca esse
movimento se deter; agora, por exemplo, não é mais o mesmo tempo
que quando escrevi a primeira palavra desta frase; o mesmo acontece
com “hoje”, só que a duração de hoje é um pouco maior (24 horas; se
cada hora tem 60 minutos e cada minuto 60 “agoras”, então cada hora
tem 360 agoras e um dia inteiro tem aproximadamente 8640 agoras; é
só uma questão de quantidade maior); mas, amanhã, quando eu revisar
este texto, já será outro “hoje”; e, para os leitores deste texto, “hoje”
terá se movido ainda mais. E assim sucessivamente: cada dia hoje deixa
de ser hoje e se torna ontem. E amanhã passa a ser hoje. Assim anda
o tempo, um tipo de tempo pelo menos. Ele está instalado no futuro,
esperando o presente chegar e logo se torna passado. Assim costuma
ser entendido o tempo: o presente seria um presente móvel e o hoje
que é o presente desta escrita será um passado no presente de cada
leitura: cada experiência de leitura estará em um outro “hoje”, que
hoje é futuro e que logo depois da leitura se tornará passado. Assim
entendida, a vida humana começa com muito futuro e pouco passa-

38
Kohan, Walter. Paulo Freire mais do que nunca. Uma biografia filosófica. Belo
Horizonte: Vestígio, 2019.

183
10. Por que Paulo Freire mais do que nunca?

do e seu passado vai crescendo e seu futuro diminuindo. O presente é


apenas um agora, o limite entre o passado e o futuro, uma dobradiça
que propicia a passagem de um para outro.
Este tempo é, de certa forma, um tempo paradoxal: o “hoje”
do “agora” (ou o “agora” do “hoje”) num futuro próximo deixará de
ser presente e engrossará o passado. É um presente que é futuro até se
tornar passado, daí seu caráter paradoxal: de certa forma, nunca está
presente ou nunca permanece no presente. O presente, nesse tempo,
dura pouco: um instante (agora) ou 24 horas (hoje). Em todo caso, é um
presente efêmero porque passa rápida e inevitavelmente. Então uma
das formas em que poderia ser lido o título deste escrito é que, neste
presente que está passando agora ou hoje, como em nenhum outro
momento ou dia presente, Paulo Freire é muito importante; que ele é
mais importante “atualmente” (agora, hoje ou como seja interpretado
o momento “atual”) do que nunca, no Brasil e em outros lugares, por
algumas razões que apresentarei a seguir.
A primeira dessas razões é por ele ter enfatizado, como poucos,
que a educação é política e que o trabalho dos educadores é um traba-
lho político. Isto é importante hoje mais do que nunca diante dos
ataques à educação pública por governos conservadores como o do
Brasil (mas não só) porque restitui à educação um poder, uma potência
que ninguém pode tirar. Porque a educação é política não significa que
ela deva estar relacionada a um partido político, ao sistema institucio-
nalizado de governo ou a qualquer projeto político específico. Ou seja,
a educação não está – e não pode ou não deveria estar – relacionada,
enquanto política, a um modo de entender e fazer política. Ao afirmar
que a educação é política, Paulo Freire significa algo mais importante,
interessante e radical: que educar significa viver politicamente, cons-
truir pólis, gerar comunidade, exercer o poder de uma certa forma ao
praticar relações educativas. Essa forma pode ser solidária, igualitá-
ria, amigável, cooperativa, atenta, sensível, democrática e libertado-
ra como ele tanto gostava ou, ao contrário, pode ser uma forma que
faça um desserviço ao povo e à comunidade, e seja praticada de forma
autoritária, hierárquica, competitiva, desatenta, embrutecedora. Paulo
Freire chamava à primeira educação de problematizadora e à segun-
da de bancária. Também poderia ser de muitas outras formas. Hoje,

184
Walter Omar Kohan

mais do que nunca, precisamos de uma educação problematizado-


ra que abra os sentidos do mundo que habitamos. Contudo, a forma
dessa educação permanece aberta nos seus sentidos políticos e faz
parte dela não afirmar um modo ou projeto único, dominante e acaba-
do de comunidade.
A segunda razão para que hoje (ou agora) seja Paulo Freire
mais sentido do que nunca é por ele ter pensado não apenas em uma
educação problematizadora, mas por tê-la vivido. Em outras palavras,
por não dissociar a vida do pensamento, as ideias da prática. Entendo
a politicidade da educação em cinco princípios39, o primeiro dos quais
é precisamente a vida. Com isto quero dizer que uma educação políti-
ca como a defendida por Freire afirma uma vida filosófica que nunca
deixa de se questionar: por que vivemos desta maneira e não de outra?
Portanto, uma educação filosófica (que Freire chamou de “problema-
tizadora”, “emancipadora”, “libertadora” ou “transformadora”) toca
e afeta politicamente a vida individual e coletiva, nutre os poderes de
viver, a partir do exercício de questionar, com outros, o sentido da
própria vida individual e coletiva. Nesse sentido, a filosofia não é enten-
dida como um sistema de pensamento, mas como um fazer da vida
um problema filosófico, e a educação é uma terra muito propícia para
esse exercício. É também, nesse sentido, que entendo a importância de
Paulo Freire no momento (uma outra palavra tempo) presente.
A terceira razão é por Paulo Freire ter sustentado a igualdade
como um princípio pedagógico irrenunciável, o que significa que todas
as vidas são igualmente aprendentes, que todas as vidas têm igual
poder para aprender e viver. Em sociedades tremendamente desiguais
como as nossas, a igualdade educativa é um princípio para enfren-
tar discursos da incapacidade e da deficiência, como os que afirmam
coisas tais como: “não são capazes”, “não nasceram para isso”, “não
estão preparadas”. São discursos que clausuram o futuro de alguns e
algumas (claro, sempre são clausuradas as mesmas vidas, oprimidas,
excluídas, aquelas vidas que não contam para o discurso dominante).
Ao contrário, para Paulo Freire, o futuro educacional de todas e todos

39
Desdobrei cada um desses princípios num capítulo do livro já citado na nota de
rodapé anterior (Kohan, 2019).

185
10. Por que Paulo Freire mais do que nunca?

está em aberto e qualquer pessoa pode aprender qualquer coisa se


lhe forem oferecidas as condições para fazê-lo, e esta é uma dimen-
são insubstituível da tarefa política da educação: oferecer as condições
para que todas e todos possam aprender o que são igualmente capa-
zes de aprender e desejam aprender; rejeitar o discurso da incapacida-
de ou da impotência, muitas vezes instalado entre as próprias colegas.
Esse princípio é mais importante do que nunca num tempo em que a
educação fica sujeita às forças do mercado, e a educação pública e a
formação de educadores desatendidas, descuidadas e desprotegidas
como estão sendo atualmente entre nós.
A quarta razão está no amor, não entendido apenas como um
sentimento ou afeto entre pessoas, mas também como uma forma de
politização, de habitar politicamente o mundo e mais especificamente
a educação. Paulo Freire afirmou que “quanto mais se ama, mais se
ama” (In: Gadotti, 2001, p. 54), o que significa que o amor é uma força
generativa, vital para expandir, enriquecer, tornar a vida mais bela e
justa. O amor educativo é um amor pelas pessoas que participam do
ato educativo, mas também pelo mundo, pela vida, pela posição que
ocupamos quando educamos. O amor alimenta a vontade transfor-
madora de mundo que movimenta a educação pública e popular, tão
desconsiderada entre nós. É também um amor que vive da diferença, a
expande; finalmente, o amor é uma espécie de confiança e de esperan-
ça irrenunciável de que, através de uma educação problematizadora,
um outro mundo pode sempre nascer; que o mundo sempre pode ser
de uma outra forma, ou de que sempre podem caber novos mundos,
mundos diferentes, no mundo que habitamos.
Encontramos uma outra razão, inspirada na vida e na obra de
Paulo Freire, na ideia de errância. Efetivamente a politização da educa-
ção também se manifesta em seu errar ou vagabundear, no duplo senti-
do de vidas educativas que valorizam positivamente o errar e o cami-
nhar como formas de vagabundear, andarilhar, mover-se pelo mundo,
que vem uma in-quietude no trabalho docente… sem antecipar um
destino final para essa viagem docente. O errar tem, pelo menos, um
duplo sentido: erramos quando nos equivocamos e erramos quando
nos deslocamos sem antecipar o sentido do deslocamento. Ambas
as formas de errar são importantes e parte do trabalho docente diz

186
Walter Omar Kohan

respeito a transformar essas duas formas de errar em oportunidades


de aprendizagem e de ensino; alguns pensam que ensinar é trazer os
outros e as outras ao próprio conhecimento; seriam as outras e os
outros que não sabem que precisariam de se deslocar até ao saber
docente. Pensamos diferentemente: ensinar significa deslocar-se,
vagar pelo mundo sem antecipar o significado da viagem, tornando os
alunos e alunas companheiros de uma viagem que é sentida e enca-
minhada na própria estrada. Viajar de verdade exige andar atento aos
sentidos que a própria viagem propicia, com um destino aberto para a
viagem. Também por isso a viagem educacional é política, porque ela
se abre aos mundos outros do mundo que surgem durante a viagem
pedagógica. Essa viagem também supõe que o mundo está aberto e,
ao mesmo tempo, abre o mundo; assim, a “errância educacional” dá
origem a outro mundo na sua própria errância; mundo que não pode-
mos e não devemos antecipar para que seja efetivamente um mundo
novo surgido na e da viagem coletiva, comunitária, compartilhada.
Finalmente, a importância de Paulo Freire tem a ver com a sua
relação com a infância, a sua extraordinária infantilidade. Nesse senti-
do, Paulo Freire mostrou que a infância não é apenas algo a ser educa-
do, mas algo que educa. Por isso, a politicidade da educação é também
uma forma de relação com a infância: em educação não se trata apenas
(ou sobretudo) de educar a infância para que os infantes abandonem
a infância, mas de estarmos atentos e atentas a ela, escutá-la, cuidá-
-la, mantê-la viva, vivê-la nas crianças e também em nós, adultos.
Tradicionalmente, a educação é pensada desde a lógica da formação da
infância para um certo tipo de adultez. Aqui, a pensamos, ao contrário,
como uma escuta da e na infância, uma viagem infantil.
Paulo Freire, que não se dedicou especialmente à educação da
infância cronológica, a das crianças pequenas, manteve uma relação
singular com sua própria infância e com todas as infâncias: sempre
cuidou de manter vivas, em sua própria vida, a curiosidade, a inquie-
tação, a intensidade, a sensibilidade e a atenção tão próprias de uma
vida infantil. A vida infantil parecia-lhe inspirar condições que qualquer
educador e educadora deveriam ter o cuidado de manter vivas durante
toda a sua vida para educar pessoas de diferentes idades. É por isso
que uma educação política é uma educação infantil, uma educação nas

187
10. Por que Paulo Freire mais do que nunca?

infâncias, pelas infâncias, atenta e sensível às infâncias; é por isso que


Paulo Freire afirmou uma pedagogia infantil da pergunta: uma errân-
cia educativa movida pelo poder de estranhamento da infância em sua
atenção, sensibilidade, curiosidade, inquietude e presença. Por isso,
não há educação sem infância(s) mas infância(s) na educação.
Claro que, ao pensarmos com e através da(s) infância(s),
também somos levados a pensarmos com e através do(s) tempo(s),
e então retornam com toda a sua força as nossas curiosidades e estra-
nhezas infantis geradas pelas expressões “mais do que nunca” e “mais
do que sempre”, porque, assim como vimos que “agora” e “hoje”
passam e estão, “(quase) sempre”, no futuro ou no passado e “(quase)
nunca” no presente, há também uma infância que passa como aquele
tempo. É a infância dos anos de idade que para todos os adultos é algo
próprio do passado, já vivida. É a infância cronológica, a dos estágios de
desenvolvimento, o futuro mais próximo do nascimento, que é medido
pelo relógio, o calendário, o número de anos, a idade, a quantidade de
tempo vivido, as fases ou etapas da vida. É uma infância que ocupa um
tempo que passa e que, para mim e os leitores e leitoras desse texto, já
é coisa do passado. Quase como o agora e o hoje, embora ela dure, nos
dias de hoje, muito mais anos que em outros tempos passados. Essa é a
infância que educamos, dizemos nós, para uma sociedade melhor, para
formar os “cidadãos do futuro” nas instituições que criamos para isso,
com seus privilégios e dissabores.
Mas existem outras infâncias e, dentre elas, uma outra infância,
assim como existe um outro tempo. Uma infância que é precisamen-
te uma forma de habitar o tempo, muito diferente da forma adulta.
Porque, assim como há um tempo que passa, há um outro tempo que
não passa. Assim como há uma forma de pensar, sentir e habitar o
tempo com números e quantidades e de organizá-los em partes (como
passado e futuro e o presente no meio deles), há uma outra forma que
tem mais a ver com intensidades, qualidades e ardores. É o tempo,
por exemplo, do brincar, que vivemos tão intensamente na infância, e
que nos faz sentir, quando brincamos, como se o tempo não passasse,
como se o tempo fosse puramente presente, sem passado nem futuro.
É também o tempo da experiência da arte, do amor, do pensamento,
da pergunta. Assim, amar exige suspender e esticar o presente ou, dito

188
Walter Omar Kohan

de outra maneira, existe um outro tempo quando amamos com essa


intensidade infantil; pois não se pode amar infantilmente olhando para
o relógio, assim como não se pode brincar ou criar ou perguntar “por
que?” cronometrados por minutos ou segundos. Só se ama no presen-
te, como só se brinca no presente. Se aquela primeira infância, crono-
lógica, é a que educamos em nossas instituições; essa outra infância,
a do tempo presente, que é também um modo de viver o tempo, é
a infância que nos educa, que educa a nós educadores e educadoras,
pedindo-nos que estejamos presentes no presente. Pede-nos que habi-
temos a educação como um ato de presença para além da passagem
do tempo cronológico, das horas e dias, dos agoras e dos hojes. Essa
infância convida-nos a habitar o tempo de educar em um outro presen-
te, não efêmero.
Esse presente temporal nos convida a pensar também na polis-
semia da palavra “presente”. Porque ela significa um tempo (que pode
ser mais ou menos efêmero), mas também uma presença, um estar-
mos presentes, uma forma de presença que educa nessa sua forma de
se relacionar com o presente. Finalmente, a palavra presente também
nos lembra de um regalo, uma forma de doação, algo que se oferece
gratuitamente, sem esperar algo em troca; o presente estabelece uma
forma de relação não mercantil, não necessariamente retribuída, sem
permuta ou intercâmbio.
Por isso, como afirma Ernesto Che Guevara na carta-texto que
nos serve de primeira epígrafe: alguém “verdadeiramente” educador
é uma espécie de revolucionário, sem estar à espera de trocas, e isso
torna a sua tarefa ao mesmo tempo magnífica e angustiante. Não há
aqui uma idealização ou romantização da, sabemos, duríssima tare-
fa docente. Essa condição não diz respeito às condições materiais
da profissão docente que defendemos e afirmamos, mas a um certo
amadorismo (nem incompatível nem em oposição àquela) e que tem
relação com a sua amorosidade tal como acabamos de apresentar e
que o próprio Che Guevara afirma no mesmo texto da epígrafe: é
impossível pensar um autêntico revolucionário (educadora ou educa-
dor) sem a sua amorosidade. A educação como presente é algo que
se oferece em si mesmo, amorosamente, graciosa e gratuitamente,
num ato que encontra sentido e valor em si mesmo. Nas condições que

189
10. Por que Paulo Freire mais do que nunca?

são as nossas, convivem na figura educadora sua profissionalidade e


seu amadorismo; e, sem essa última condição, a educação renuncia-
ria pouco menos que a si mesma. Também, por isso, a politicidade da
educação manifesta-se na sua amorosidade.
Podemos, então, voltar às nossas expressões iniciais “mais do
que nunca” e “mais do que sempre”. Elas parecem referir-se a dois
tempos ou duas experiências de tempo muito diferentes. A primeira
remete a um tempo medido em quantidades: mais ou menos tempo,
um tempo que passa, irremediavelmente, que não se detém, quase
sem outro presente que a efemeridade de um instante. “Mais do que
sempre” habita um outro tempo ou uma outra experiência temporal.
É um tempo literalmente impossível como parece ser também impossí-
vel deter a passagem do tempo no primeiro sentido proposto. Porém,
esse tempo, que na experiência cronológica parece impossível de ser
vivido como presente, torna-se, ao mesmo tempo, um tempo necessá-
rio, imprescindível para certas experiências que só podem acontecer se
for possível sentir que o tempo não passa, como brincar, amar, artistar,
pensar e, quem sabe, educar.
A própria expressão “ao mesmo tempo” que acabamos de
registrar mostra o caráter paradoxal da questão que estamos escre-
vendo. Porque, literalmente, é impossível que existam dois tempos
que sejam um tempo só na lógica da sequência cronológica. Como
o tempo passa, anda, um segundo não pode estar no mesmo tempo
que outro segundo. O movimento cronológico é sequencial, consecu-
tivo, sucessivo: não pode haver, nesse tempo, dois tempos ao mesmo
tempo. Contudo, se não houver dois segundos no mesmo segundo,
dois tempos no mesmo tempo, não poderíamos pensar, viver, pois
nenhuma de nossas ações poderia ter um mínimo de continuidade.
Assim, que existam dois tempos ao mesmo tempo é impossível, mas
também necessário.
Paulo Freire habitava e habita este outro tempo, impossível e
necessário. Ele disse que todos os educadores precisam cuidar e manter
viva aquela experiência infantil do tempo, aquele tempo presente de
brincadeiras e questionamentos curiosos para estarem presentes na
relação pedagógica, para fazer daquela relação um presente e uma
presença, algo que não passa. Se o tempo de uma educação cronoló-

190
Walter Omar Kohan

gica é medido como uma linha, o tempo que não passa toma a forma
de uma figura circular na qual o fim encontra o início. Como os círculos
culturais do movimento cultural popular. Paulo Freire também mostrou
como a educação habita estes dois tempos, o tempo que passa, que
marca a infância como uma etapa da vida, e o que não passa, que abre
uma infância como força inspiradora e mobilizadora da vida.
Assim, chegamos ao final deste breve texto. Espero que o leitor
ou leitora o tenha lido num tempo presente. Se assim for, ele ou ela terá
sentido, em algum momento, que o tempo parou de passar; talvez se
tenha sentido presente na leitura e, quem sabe, recebeu esta escritura
e a leitura por ela provocada como um presente, sem pensar na sua
utilidade ou serviço. Nesse caso, como em um círculo, permitimo-nos
voltar uma vez mais ao início, à questão do título: “Por que Paulo Freire
mais do que nunca?”. Vale a pena notar, se ainda não o fizemos, que
se trata de uma pergunta infantil, nos dois sentidos da palavra: uma
pergunta que começa por “por que?”, como aquelas que nos fazemos
quando crianças de uma certa idade, mas também uma pergunta que
nos fazemos quando queremos deter o tempo e entender ou proble-
matizar por que algo está sendo da forma que está sendo.
Espero que a leitora ou leitor sintam que, de alguma forma,
este texto, que está chegando ao seu final, responde a esta pergunta
sem respondê-la. Que temos pensado e escrito sobre ela, mas também
que a deixamos em aberto para voltarmos a pensar sobre ela. Que os
pensamentos aqui afirmados não se esgotam nem acabam a pergunta.
Ao contrário, ela fica mais aberta agora do que inicialmente. As tentati-
vas de pensar a pergunta têm a fortalecido e, sobretudo, nossa potên-
cia infantil de perguntar. Em certo sentido, assim estaríamos fazendo
algo muito infantil: de um fim a um início, algo impossível num tempo
e, talvez, necessário em outro tempo.
Estes são tempos muito difíceis em que vivemos. Nesses
tempos, manter vivo o significado de algumas perguntas pode se
tornar necessário para a sobrevivência. E em qualquer tempo, passa-
do ou futuro, será sempre possível manter algumas perguntas vivas
no presente. Talvez também por isso Paulo Freire mais do que nunca:
por fazermos pensar que uma educação atenta e à escuta da infância
é algo necessário e impossível. Assim, pensar com Paulo Freire sobre

191
10. Por que Paulo Freire mais do que nunca?

a politização da educação torna-se uma possibilidade e uma oportuni-


dade: nunca desistir de trabalhar por uma educação que acompanhe
um outro mundo, mais belo, amoroso, solidário, menos injusto e feio
do que aquele em que vivemos. Algo impossível e necessário, como
responder às perguntas que nos inquietam.

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