Infância, Juventude E Mídia: Olhares Luso-Brasileiros

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INFÂNCIA, JUVENTUDE E MÍDIA

OLHARES LUSO-BRASILEIROS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
Reitor
José Jackson Coelho Sampaio

Vice-Reitor
Hidelbrando dos Santos Soares

Editora da UECE
Erasmo Miessa Ruiz

Conselho Editorial
Antônio Luciano Pontes
Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes
Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso
Francisco Horácio da Silva Frota
Francisco Josênio Camelo Parente
Gisafran Nazareno Mota Jucá
José Ferreira Nunes
Liduina Farias Almeida da Costa
Lucili Grangeiro Cortez
Luiz Cruz Lima
Manfredo Ramos
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Marcony Silva Cunha
Maria do Socorro Ferreira Osterne
Maria Salete Bessa Jorge
Silvia Maria Nóbrega-Therrien

Conselho Consultivo
Antônio Torres Montenegro (UFPE)
Eliane P. Zamith Brito (FGV)
Homero Santiago (USP)
Ieda Maria Alves (USP)
Manuel Domingos Neto (UFF)
Maria do Socorro Silva Aragão (UFC)
Maria Lírida Callou de Araújo e Mendonça (UNIFOR)
Pierre Salama (Universidade de Paris VIII)
Romeu Gomes (FIOCRUZ)
Túlio Batista Franco (UFF)
Organizadores
Alexandre Barbalho
Lidia Marôpo

INFÂNCIA, JUVENTUDE E MÍDIA


OLHARES LUSO-BRASILEIROS

1ª Edição
Fortaleza - CE

2015
INFÂNCIA, JUVENTUDE E MÍDIA
OLHARES LUSO-BRASILEIROS
© 2015 Copyright by Alexandre Barbalho e Lidia Marôpo
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Editora da Universidade Estadual do Ceará – EdUECE


Av. Dr. Silas Munguba, 1700 – Campus do Itaperi – Reitoria – Fortaleza – Ceará
CEP: 60714-903 – Tel: (085) 3101-9893
Internet: www.uece.br – E-mail: [email protected]

Editora filiada à

Coordenação Editorial
Erasmo Miessa Ruiz

Diagramação
Léo de Oliveira Alves

Capa
Léo de Oliveira Alves

Revisão de Texto
Editora da UECE

Bibliotecária responsável:
Vanessa Cavalcante Lima - CRB 3/1166ão

I43 Infância, juventude e mídia: olhares luso-brasileiros/ Alexandre


Barbalho, Lidia Marôpo (orgs.). − Fortaleza: EdUECE, 2015.
288p.
ISBN: 978-85-7826-136-8
1. Comunicação midiática para crianças e adolescentes. 2. Estudo da
recepção da comunicação. 3. Novas mídias. I. Título.
CDD: 304
Sumário

Apresentação ......................................................................................... 9

Eixo 1.
Perspectivas conceituais para estudos sobre infância, juventude e mídia

“Para não dizer que não falei de flores” ou a incapacidade de pensar a


infância e a inutilidade dos discursos teóricos sobre urgências............... 12
Raquel Paiva

Para uma teoria crítica dos media. Pensada em função dos problemas
sociais da infância ................................................................................ 20
João Pissarra Esteves

Eixo 2.
Representação das crianças e/ou jovens na mídia

A representação do jovem nas campanhas sobre prevenção da Aids do


Ministério da Saúde ............................................................................. 44
Juciano de Sousa Lacerda
Sueli Alves Castanha

Representações de crianças e jovens nas notícias: o cenário português .... 64


Lidia Marôpo
Liliana Pacheco
Eixo 3.
Consumo/audiência/recepção de produtos midiáticos por crianças e/ou
jovens

Do consumo à produção de mídia por estudantes de escola pública em


Fortaleza - Brasil .................................................................................. 77
Mauro Michel El Khouri
Luciana Lobo Miranda

Memórias em segunda mão: lembranças juvenis de um salazarismo


ficcionado ............................................................................................ 95
Bruno Carriço dos Reis

Eixo 4.
Políticas e regulação dos produtos midiáticos voltados a crianças e/ou
jovens

Publicidade como ferramenta estratégica da propaganda infantojuvenil no


Brasil: quem regula afinal? ................................................................ 112
Patrícia Gonçalves Saldanha

A comunicação comercial de alimentos e bebidas para crianças em


Portugal: entre a regulação e a auto-regulação ................................... 132
Ana Jorge

Eixo 5.
Práticas de cidadania midiática por parte de crianças e/ou jovens

Juventude, sociabilidade e cidadania: consumo e usos da internet entre


jovens mulheres em uma instituição de acolhimento ........................... 147
Denise Cogo
Márcia Bernardes
Cidadania mediática: a internet implica uma revolução dos costumes? .... 165
Maria José Brites

Eixo 6.
Práticas de sociabilidade de crianças e/ou jovens por meio das novas
mídias

Sociabilidades juvenis e o uso de dispositivos móveis na cidade .......... 181


Amanda Nogueira de Oliveira
Alexandre Almeida Barbalho

Nós na rede. Pré-adolescentes e socialização digital............................ 194


Cristina Ponte

Eixo 7.
Educação para a mídia voltada para crianças e/ou jovens

Rádio educativo - percepções a partir dos estudantes do Programa Mais


Educação .......................................................................................... 212
Edgard Patrício

Educação para os media em Portugal: um caminho a fazer-se ............. 229


Manuel Pinto
Cristiane Parente

Eixo 8.
Análise de programas/produtos midiáticos voltados para crianças e/ou
jovens

Programação infantil da TV Brasil: uma análise sobre a questão da


qualidade .......................................................................................... 242
Inês Sílvia Vitorino Sampaio
Andrea Pinheiro Paiva Cavalcante
Explicar o mundo às crianças: análise de espaços noticiosos dirigidos ao
público infantojuvenil ......................................................................... 257
Sara Pereira
Joana Fillol
Patrícia Silveira

SOBRE OS/AS AUTORES/AS................................................................. 278


Apresentação

A proposta dessa coletânea é promover o debate sobre a relação entre a in-


fância, a juventude e a mídia, a partir de temas geradores que nos permitam
refletir sobre as realidades brasileira e portuguesa. Apesar de falarem o mesmo
idioma e de terem um background histórico e cultural comum, Brasil e Portugal
apresentam realidades bem diferentes no que concerne à situação da infância e
da juventude.
O Brasil tem uma população de mais de 200 milhões de habitantes e, embora
apresente melhorias gradativas nos últimos anos em quase todos os indicadores
sociais, luta ainda para resolver problemas básicos como o acesso à educação
pública de qualidade e os altos índices de pobreza, mortalidade e trabalho in-
fantil e violência.
Portugal tem 10 milhões de habitantes, uma das mais baixas taxas de mor-
talidade de crianças do mundo e apenas problemas pontuais de exploração do
trabalho infantil. No entanto, os indicadores de pobreza infantil e de abandono
escolar são dos mais elevados no contexto europeu. Além disso, o país tem uma
das mais baixas taxas de natalidade do mundo e enfrenta um acelerado processo
de envelhecimento da população.
Em contraponto a estas realidades díspares, os dois países compartilham
a vivência da intensificação dos fluxos de comunicação, comum às chamadas
sociedades em rede. Neste processo, novas e antigas mídias têm vindo a de-
sempenhar um papel central na maneira como as crianças e jovens interpretam
o mundo, nos seus processos de socialização e na forma como são percebidos
socialmente.
O debate sobre a constituição das crianças e jovens enquanto sujeitos sociais,
nesta perspectiva, passa necessariamente pela discussão da relação destes com a
mídia, levando em consideração seus direitos de proteção, provisão e participa-
ção, sob os mais variados aspectos: desde a representação midiática à recepção;
desde as políticas de regulação de produtos midiáticos destinados a crianças e
jovens às práticas de sociabilidade destes por meio das novas mídias; desde a
análise de produtos midiáticos destinados ao público infanto-juvenil às práticas
de cidadania midiática e de educação para a mídia.

9
Levando em consideração estes diversos aspectos, foram convidados pes-
quisadores/as brasileiros/as e portugueses/as para que discutissem oito eixos
temáticos com base nos seus interesses específicos de pesquisa:
1. Perspectivas conceituais para estudos sobre infância, juventude e mídia.
2. Representação das crianças e/ou jovens na mídia.
3. Consumo/audiência/recepção de produtos midiáticos por crianças e/
ou jovens.
4. Políticas e regulação dos produtos midiáticos voltados a crianças e/
ou jovens.
5. Práticas de cidadania midiática por crianças e/ou jovens.
6. Práticas de sociabilidade de crianças e/ou jovens por meio das novas
mídias.
7. Educação para as mídias voltada para crianças e/ou jovens.
8. Análise de programas/produtos midiáticos voltados para crianças e/
ou jovens.
Os contributos refletem a maturidade de pesquisadores/as de referência na
área ou a renovação trazida por jovens estudiosos das relações entre crianças,
jovens e mídia. Cada capítulo revela também as diferenças entre o português fa-
lado no Brasil e em Portugal, como também a interseção entre os dois, no casos
de vários dos/as autores/as que mantêm ligações com ambos os países. Optamos
por respeitar as escolhas de cada um: com ou sem acordo ortográfico e com
diferentes terminologias (por exemplo, ‘mídia’ (BR) ou ‘media’ (PT)). Com esse
rico conjunto de reflexões, o leitor pode cotejar ambas as realidades e retirar
suas próprias conclusões. É esse o intuito. Boa Leitura.

Alexandre Barbalho
Lidia Marôpo
Organizadores

***

Essa coletânea só foi possível por conta de meu estágio pós-doutoral na Uni-
versidade Nova de Lisboa, entre setembro de 2013 e agosto de 2014, para o qual
contei com uma Bolsa CAPES/Estágio Sênior (Alexandre Barbalho).

Esse livro foi co-financiado pelo Mestrado Profissional em Planejamento e Polí-


ticas Públicas da UECE e pelo Instituto Politécnico de Setúbal.

10
Eixo 1.
Perspectivas conceituais para estudos
sobre infância, juventude e mídia
“Para não dizer que não falei de flores” ou a
incapacidade de pensar a infância e a inutilidade
dos discursos teóricos sobre urgências

Raquel Paiva

“Os lugares mais quentes do Inferno são reservados aos que, em tempo
de grandes crises morais, mantêm-se neutros”. Esta frase do poeta florentino
Dante Alighieri, numa das passagens em que define o inferno na sua “Divina
Comédia”, tem sido, ao longo dos tempos, utilizada com os objetivos mais varia-
dos. Talvez pela força dramática, presente em tão curta estrofe, da denuncia do
acovardamento. E é exatamente por reconhecer essa carga dramática que cabe
numa reflexão sobre a infância, temática que, tão logo evocada, parece ser fonte
de neutro consenso.
No entanto, um tópico discursivo com aparência de bloco monolítico cos-
tuma guardar camadas contraditórias. De uma maneira geral, escondem-se sob
a face do senso comum as mais divergentes opiniões e, principalmente, as mais
antagônicas ações. E se este tema é a infância e a adolescência, então a nossa era
certamente se caracteriza por externalizar o mais histérico amor e o mais virulen-
to ódio como faces de uma mesma moeda.
O interesse aqui não é fazer uma historiografia da infância, principalmente
por se acreditar que este é um material já fartamente produzido, como também
não se quer elencar todas as inúmeras novas e antigas legislações que visam a
proteger a infância. O que se pretende aqui é discutir de que maneiras uma so-
ciedade pode produzir discursos e práticas tão antagônicas assim como um real
tão absurdamente distante das narrativas oficiais.
Este é o motivo inicial pelo qual se relaciona a frase de Dante com o trata-
mento dispensado à infância e adolescência: Tentar demonstrar como são radi-
calmente antagônicos discursos e práticas e, em especial, conseguir avançar o
argumento de que a excessiva idealização – máscara frequente da neutralidade
frente aos problemas e às tensões reais – tem contribuído para o quadro atual
de descuido concreto com a infância.
Antes, porém, é necessário levar em conta que, no cenário da idealização
total, buscar um pensamento crítico configura-se como algo preocupante. Talvez

12
seja esta a razão mesmo porque o volume e a profundidade das reflexões sejam
tão reduzidos. Refletir sobre algo idealizado e dado por normatizado significa
investir contra dogmas. Ganha-se muito pouco com isto.
Separando-se idealisticamente da infância, o adulto tende a ver-se como
uma criança decaída e assim projeta sobre o filho todas as esperanças não cum-
pridas para si mesmo. No entanto, nada parece mais daninho que olhar para a
criança e para a adolescência como se estivéssemos contemplando um lugar que
perdemos ao nos tornarmos adultos –– uma candura a ser preservada a todo
custo. A infância conceituada por esse olhar não é definitivamente vista em sua
concretude, é uma ilusão produzida pela mentalidade adulta.
Totalmente exposta à produção midiática (à produção adulta, portanto), a
criança perdeu há muito a condição “infantil”, isto é, a formação ponderada de
uma autodisciplina capaz de incutir-lhe progressivamente o sentido da libera-
ção pessoal. Isso é bem o contrário da “independência” veloz outorgada pela
produção adulta: Aos 8, 9, 10 anos a criança assimila as mais variadas cenas
de violência, sexo, guerras e intrigas, supostamente compreendendo do que se
trata. O grau de exposição aos produtos varia desde os diretos (sendo a tevê e a
dramaturgia os principais) até às músicas, aos filmes e aos espetáculos.
De uma maneira geral esta exposição direta dá-se pela oralidade. Muito
pouco é restrito ao impresso. O acesso às redes sociais, intensificado nos últi-
mos anos, também atua como um difusor desse material erotizado e violento.
É amplo e público o espectro da violência. Mas a decisão quanto ao que se
pode ver e ter acesso tende a restringir-se à esfera privada: tem ficado, já que
vivemos num sistema democrático, a cargo da eleição e da jurisprudência
dos pais.
São muitas as questões a se levantar aqui. Inicialmente, a própria qualifica-
ção da mídia como parte de um sistema democrático. Nas esporádicas discus-
sões sobre a regulamentação da produção midiática, os “libertários” defendem
a produção e difusão do que quer que seja; os “conservadores” afiançam que os
grupos responsáveis pelo gerenciamento das narrativas integram um sistema
interessado apenas no lucro, sem qualquer compromisso além da indução ao
consumo. Esta frágil polarização tem sido responsável pelo parco desenvolvi-
mento intelectual da temática.
Ao lado do problema da mídia, não se pode deixar de reconhecer a inca-
pacidade dos pais no que tange ao gerenciamento educativo. Conceitos como
“obediência” e “autoridade” ainda podem transitar em discursos teóricos, mas já
perderam a sua validade na prática. De uma maneira geral, as crianças do nos-
so tempo tendem a desconhecer as regras de convivência. Apesar de inúmeras

13
razões discutíveis, partem da própria área da educação vozes que atribuem o
problema à incapacidade dos pais de educarem.
É verdade que não faltam aqueles capazes de admitir que o momento atual
se caracteriza pelo sentimento de que é fácil ter filhos, em especial em países
como o Brasil, onde as crianças podem ser levadas em qualquer lugar, basta que
estejam acompanhadas por seus pais.
De fato, é fácil ter, mas difícil educar, uma vez que educar significa formar,
proibir, coibir, mostrar, criticar, dirigir, apontar tarefas reconhecidas como pou-
co simpáticas e de certa forma banidas por uma população que já enfrenta dia-
riamente excessiva carga horária de trabalho e exigências. Conceder, permitir,
deixar, consentir e aceitar revela de maneira decisiva a fraca postura dos pais
atuais, afogados em inúmeras atividades diárias. E assim se formam pessoas que
no âmbito da escola, a segunda alternativa de modulação educativa, são marca-
das muito mais pela quebra que pela obediência às regras.
A escola reclama da permissividade dos pais, os pais reclamam que as es-
colas não cumprem seu papel. Os filhos vão crescendo e tendo outros filhos e
outros e outros, no ciclo interminável de uma sociedade hedonista e sem ne-
nhuma preocupação com a convivialidade, com o outro e com o cuidado de si.
É de certa maneira natural, neste cenário de descaso generalizado que
aqui e ali a face mais horripilante desse desleixo se faça visível. São as crianças
abandonadas em carros, são as crianças mortas pelos próprios pais ou
responsáveis, são as crianças vitimizadas pela violência sexual. Mas também são
as crianças gerando atos violentos umas contra as outras, contra os adultos e
contra os bens coletivos. São as crianças vivendo 24 horas em torno da compra
de objetos, cometendo atos lícitos e ilícitos para tê-los.
Essa face horripilante não é, todavia, uma máscara descarnada. Ela pertence
a todos nós. Ela pertence a cada um de nós que permanece calado, neutro ou
que defende a naturalização do descumprimento das regras. É difícil escrever
sobre o assunto. É difícil falar sobre a questão. A exacerbação do sensório em
torno das narrativas sobre a infância é muito intensa e se enfraquecem assim os
discursos racionais, sejam pedagógicos ou legais.
Também o sistema punitivo não sabe mais de que maneira se comportar
neste cenário. Nada parece fazer sentido diante dos rostinhos meigos e dó-
ceis que todos visualizamos em tempo integral nos anúncios comerciais e na
espetacularização da mídia. Mas esta não é a infância. Esta não é a infância
real, e enquanto não conseguirmos nos livrar dessas máscaras continuaremos
gerando uma sociedade órfã. Sim, trata-se de uma sociedade órfã porque já
não podemos mais ser pais, não somos mais capazes do ato da educação. O ato
da procriação nos basta. Da procriação de nossas próteses para o consumo.

14
Reconhecer a incapacidade para a criação de um ambiente ético aqui e agora
significa reconhecer que se abriu mão da ética do futuro, que é a responsabilida-
de pela cadeia geracional. Implica também admitir que os caminhos adotados
até então não levam a lugar algum, mas que talvez novas redescrições possam
ser produzidas sem que precisemos passar pelo portal do apagamento. Se for-
mos capazes de minimamente gerenciar os acessos, admitindo o lado não riso-
nho que a proibição engendra e visualizando o verdadeiro afeto no cuidado e
acompanhamento do outro, talvez possamos reverter essa aceleração para o fim.
Um ponto de partida viável talvez seja o de proceder à revisão (ou redescre-
ver) de pontos ancorados no senso comum como indiscutíveis.

1. Revisão: “Não é verdade que as crianças e adolescentes fazem


coisas erradas porque querem reverter as regras”

Crianças fazem coisas erradas por inúmeras razões, querem testar quem deu
a ordem é a mais comum delas. Mas também é verdade que muitas vezes não
sabem que estão fazendo a coisa errada e assim, de uma hora para outra se veem
cometendo uma infração e tidas como infratoras.
Há poucos anos um grupo de adolescentes de periferia (entre 15 e 18 anos)
foi levado para um canal de televisão no Rio de Janeiro. Iam visitar as instala-
ções da central de produção de jornalismo e assim serem incentivadas a produ-
zir seus próprios conteúdos.
A intenção da organização não governamental gerenciadora do projeto com
a emissora era das melhores possíveis. Mas um incidente colocou o projeto
em banho-maria. No dia da visita agendada, ao chegarem na sede da emissora,
uma das jovens foi impedida de entrar por estar vestida com uma roupa que
foi considerada inadequada para um local de trabalho. Foi deixada dentro da
van, com a vigilância do motorista e de vigilantes da empresa. (Ninguém sabe
o que aconteceu, também porque jovem nunca tem fala - e direito à produção
de discurso não é apenas poder falar.) Tudo terminou numa enorme confusão
a moça gritando na porta da emissora, os colegas interrompendo a visita e o
projeto engavetado.
A historinha prosaica poderia ter outro fim. Bastaria que a jovem soubesse
que aquela roupa que ela usa, incentivada principalmente pela mídia, não é
roupa de gente “decente”, não é roupa para ir a algum lugar diferente daquele
que ela frequenta, ou seja, não é roupa para ir a um lugar tido como sério,

15
de gente séria e de trabalho. Mas para se visualizar essa inadequação alguém
teria que ter sido o responsável para dar a ordem. No Rio de Janeiro? Cidade
cosmopolita e antiga corte? Quem vai querer parecer um representante ta-
libânico? Ordem não dada. Diretriz não falada e confusão armada por pura
inocência da menina de 15 anos, que simplesmente desconhecia essa realida-
de, Nunca ninguém havia dito que pudesse existir uma adequação de roupa e
local. Aliás, aquela minúscula saia, de menos de dois palmos foi mesmo uma
doação de uma das “tias” em momento de caridade. E o grupo recusado só não
foi maior naquele dia porque as colegas se disseram com frio e preferiram usar
a calça comprida ao invés da diminuta sainha.
A impressão de que a criança e o adolescente já sabem de tudo também é
uma forma de delegar a qualquer outra instância, em especial à mídia, não ape-
nas o caráter informativo, mas também formativo.

2. Revisão : “A criança que tem ofertas restritas tem um universo


restritivo”

Fernanda e Bernardo, alunos do primeiro ano, recém-alfabetizados, são


exemplos de um claro contraste.
Fernanda tem gosto por tecnologia, redes sociais, e com sete anos já era
consultora dos avós para inúmeros procedimentos informáticos. Os pais têm
cargos muito importantes, trabalham muito, e normalmente Fernanda fica com
a empregada. Nos finais de semana os pais contratam folguistas, porque estão
muito cansados e têm os compromissos sociais, os amigos etc.... Quando ela não
está no tablet vendo filme ou nas redes sociais, está vendo novela. Sozinha ou
com a empregada.
Os pais de Bernardo também trabalham fora. Ele tem horário estendido no
colégio, faz inglês, judô e flauta. Detesta flauta, tenta faltar sempre. Mas acaba
indo. Os avós se revezam para buscá-lo no colégio. Revezam-se para levá-lo ao
dentista e normalmente ficam em casa até que um dos pais chegue. Muitas vezes
fica sozinho com a empregada que também não pode sair tarde porque tem que
pegar os filhos no colégio. Semanalmente, Bernardo tem um livro novo para
ler, da biblioteca do colégio, ou da livraria, que frequenta com os pais. Os pais
acompanham a leitura, discutem o tema. Toda noite antes de dormir Bernardo
lê. É obrigatório.
Resultado do contraste: Há dois meses, a mãe da Fernanda foi chamada na
escola porque ela não está fazendo os deveres e quando faz são muito errados.

16
Não consegue fazer nenhuma redação. Os pais já pensam em mudar de colégio
no próximo ano, porque esse está muito exigente.
A entrada na fase escolar é um momento lúdico e o acesso a atividades pode
ser pesado para a criança. São muitas responsabilidades, muitas tarefas é o argu-
mento de alguns educadores e psicólogos e endossada por familiares. Entretan-
to, essa é uma das grande mutações cognitivas das novas gerações. Comprova-
damente podem dar conta de muitas tarefas e até realizá-las simultaneamente.
Certamente, de todos os males, a ociosidade é a pior delas. Mas o acesso e o
consumo da produção midiática sem acompanhamento crítico dos pais tem
sido responsável pela circulação de uma impressão que informação desconexa
é o mesmo que conhecimento. E isso tanto por parte da criança que apreende
ideias desconexas sem juízo de valor, como por parte dos pais que, ao ouvirem
a criança repetir essas partes, imaginam que elas já possuem compreensão e
contextualização.

3. Revisão: “Diante da incapacidade de lidar com a formação, os


responsáveis inserem a criança em outra faixa etária expondo-a a
situações com as quais ela não sabe e nem pode lidar”

Talvez, se fosse possível valorar dentre os males produzidos principalmente


pelo acesso irrestrito à produção midiática este certamente seria o vencedor.
Não é apenas o aspecto visível que é o mais cruel: as crianças vestidas de mulhe-
res, com maquiagem, roupas e gestual adulto. Entra aí o acesso a bebidas e ao
cigarro, mas também a situações que aos 10, 11 anos simplesmente não se sabe
contextualizar. O exemplo é dentre as estruturas narrativas a que maior força
retórica possui e a ausência de figuras parentais educadoras presentes e reais
deixa um vazio cada vez mais preenchido pelas produções midiáticas. Para ficar
dentro da temática atual, tem-se uma horda de zumbis, jovens e infantis, zumbis
atrás de vestir, comer, comprar, fazer o que os colegas fazem uns conectados
com os outros, em tempo integral, graças aos novos celulares.
Neste ambiente, pelo menos no Brasil, gerações de 13 anos frequentam festas
ploc, raves, normalmente com o consentimento e incentivo dos próprios pais e
responsáveis. Neste ambiente, crianças vão a shows para adultos, com linguagem
e temática adultas. E claro que entendem, compreensões parciais, sem qualquer
gerenciamento crítico. E neste ambiente também todas as atividades lúdicas ou
não próprias para a faixa etária específica se tornam enfadonhas e motivo de
desdém coletivo, por parte dos pais, responsáveis e das próprias crianças.

17
4. Pensamento “debole”

Na realidade, poderiam ser listados inúmeros comportamentos que deve-


riam ser revistos. Do uso excessivo dos celulares ao preenchimento do tempo
livre com jogos e conectividade total. Mas uma vez traçado esse quadro, acredi-
ta-se que para além da mera crítica é importante a postura propositiva. O cui-
dado de si e do pertencimento, prerrogativas da estrutura comunitária devem
ser exploradas.
O ponto de partida é a compreensão de que o cuidado geracional significa o
cuidado consigo mesmo. A infância é a parte mais frágil da existência de alguém,
ela deve ser cuidada, zelada, em tempo integral. Até que aquela pessoa possa
ser capaz de cuidar de si mesma e tenha adquirido capacitação para cuidar das
demais pessoas. A infância não deve ser idealizada como aquela parte melhor
de nós mesmos que nunca conseguimos realizar. Esse tem sido o maior erro
da atualidade: a idealização da infância. E, consequentemente, a anulação da
criança real.
As crianças, jovens e adolescentes em pouco tempo serão adultos e respon-
sáveis pelos seus próprios atos. A obrigação moral de cada um de nós é for-
mar essas pessoas para que possam buscar saídas melhores para o mundo que
criamos. A obrigação moral que temos uns para com os outros e para com a
coletividade é prepararmos essas pessoas para que sejam capazes de construir
e edificar sociedades mais humanas, mais preocupadas com a vida ao redor de
si mesmas.
Definitivamente, será isso ou a barbárie. E talvez porque seja tão difícil dis-
sertar teoricamente sobre esse tema deveríamos mesmo pedir ajuda aos poetas,
escritores, músicos para que façam um esforço de produção de redescrições de
novas crianças, novos jovens e de novas e urgentes interações capazes de preen-
cher o nosso vazio e ineficiente território teórico para o tema. A sugestão da
palmada pelo Papa Francisco pode ser entendida como uma redescrição dos
clichês idealísticos.
Retornando a Dante: ainda que a motivação para escrever este texto tenha
sido a de tentar ficar distante dos lugares mais quentes do inferno, a responsabi-
lidade sobre esta questão é coletiva. E esta é uma questão que está no primeiro
lugar da lista das urgências.

18
Referências bibliográficas

Este texto não tem citações, mas não seria correto com o leitor não apontar
os caminhos que foram trilhados para a sua elaboração. Há autores que são bá-
sicos para a construção dessas ideias.

1. Jean Baudrillard – diversos livros do pensador francês poderiam ser citados e


mencionados neste texto, de “Sistema dos objetos”, passando por “Economia
simbólica da Morte”, “Estratégias fatais”, que é um livro pelo qual eu tenho
muito apreço porque vejo desenhadas ali, como que prenunciadas muitas
das situações que depois constatamos diariamente no quotidiano da atuali-
dade. E enfim a “Transparência do Mal”.
2. Richard Rorty – este filósofo pragmatista americano é para mim uma refe-
rência já há alguns anos, desde 1995, quando o filósofo Gianni Vattimo me
recomendou algumas de suas leituras. Os escritos de Rorty tem a lucidez
necessária para a nossa época, a seleção de temas urgentes e necessários está
enunciada em inúmeros de seus textos, onde discute a educação, religião,
ética, política, literatura, jornalismo. O meu favorito sempre foi “Contingên-
cia, ironia e solidariedade”.
3. Gianni Vattimo – este filósofo italiano foi meu co-orientador de doutorado.
Sua obra, escrita e conferências, muitas delas filmadas e gravadas, traz a cla-
reza que só o verdadeiro filósofo pode ter. Vattimo é profundo e ao mesmo
tempo singelo, explicativo e didático. Impossível não se apaixonar pela sua
leitura, pelos seus inventivos conceitos, como o “pensiero debole” que baliza
a obra de tantos de nós.
4. Muniz Sodré – o pensador brasileiro é certamente um dos maiores expoentes
da atualidade e o mais importante na área da comunicação. Tem apontado
direções para reflexão para todos nós e trazido, ao longo dessas quatro dé-
cadas de profícua produção uma obra criativa e que mescla brasilidade e
instigantes questionamentos da atualidade. Toda a sua obra é referência para
este e outros trabalhos desde o “Monopólio da fala” até o recente “A ciência
do comum”.
5. Inúmeros outros autores tem me servido de referência, Boaventura, Dewey,
MacIntyre, Taylor, meus colegas, meus alunos e toda a produção quotidiana
de notícias.

19
Para uma teoria crítica dos media. Pensada em
função dos problemas sociais da infância

João Pissarra Esteves

1.

A já longa história dos estudos sociais da comunicação está pontuada de


momentos de diálogo com outras disciplinas dos quais resultaram, por vezes,
impulsos e viragens epistemológicas decisivas em termos de orientação de pes-
quisa. O exemplo talvez mais notável pode ter sido a mudança de rumo que
a sociologia da comunicação registou, por volta de finais da década de 60 do
século passado, no seu estudo dos efeitos dos media, com a afirmação de uma
perspetiva cognitivista (para a compreensão desses mesmos efeitos) e o fim da
mass communication research (empirismo) como paradigma dominante das
pesquisas. As causas que concorreram para essa viragem são diversas e bastante
complexas, mas entre elas está, certamente, “a chegada de novas aproximações
teóricas a esta área da investigação social” que tiveram por origem domínios
disciplinares tão diversos como a sociofenomenologia, a etnometodologia e
vários tipos de sociofilosofias (quase sempre estas a partir de estudos sobre a
opinião pública) (SAPERAS, 1987, p. 35).
Mais recentemente, um novo e importante capítulo destes diálogos interdis-
ciplinares começou a ser escrito, agora tendo os estudos sobre crianças como in-
terlocutor privilegiado. A aprovação da Convenção Sobre os Direitos da Crian-
ça, pelas Nações Unidas em 1989, foi um marco fundamental da aproximação
destas duas áreas de estudo, não apenas devido à enorme projeção que um do-
cumento jurídico internacional desta importância trouxe ao reconhecimento
das crianças enquanto sujeitos de direitos, com todo o aparato comunicacional a
esse facto normalmente associado, mas sobretudo porque a própria Convenção,
em diversos dos seus artigos, pontua claramente uma interpelação direta dos
media (MARÔPO, 2013, pp. 38-39). Numa dupla perspetiva: enquanto alerta
para a necessidade de vigilância dos direitos das crianças na linguagem e dis-

20
cursos dos media, mas também em resultado do importante papel que passou
a ser reconhecido aos media numa difusão mais ampla desses mesmos direitos
junto da sociedade em geral. Na formulação certeira de T. Hammarberg, o que
está em jogo é o duplo papel dos media de proteção e de promoção dos direitos
das crianças (1997, pp. 243-244); ou, de forma mais incisiva ainda:

a nossa era de globalização e avanço tecnológico significa que os media têm


agora uma maior capacidade de influenciar os valores e o modo de pensar
das pessoas do que em qualquer outro momento anterior da história da ci-
vilização. Isto representa uma oportunidade única para aproveitar o poder
e a influência dos media de ajudarem na implementação dos direitos das
crianças tal como estes estão enunciados na Convenção dos Direitos do
Criança, a convenção internacional de direitos humanos mais ratificada da
história (TOBIN, 2004, p. 139).

Esta nova plataforma de diálogo produziu já resultados importantes tanto


para os estudos da infância como para os estudos comunicacionais, mas mui-
to mais ainda há a esperar. Para os estudos de comunicação, as crianças são
um elemento novo extremamente desafiador: um grupo social cuja situação de
marginalidade não é apenas de ordem política, mas também, em larga medi-
da, a nível de pesquisa social – com a exceção muito particular dos trabalhos
realizados no âmbito da psicologia. Só a título de exemplo, um dos desafios
mais importantes que esta nova frente de diálogo trouxe à comunicação diz
respeito à questão das identidades: o desafio de compreender a construção e
reconhecimento simbólicos da infância como uma forma de identidade social
propriamente dita. A discussão sobre identidades não é uma absoluta novidade
no âmbito dos estudos de comunicação, mas o caso específico das crianças veio
trazer uma série de novos problemas à área: problemas de ordem teórica, epis-
temológica e, inclusive, de metodologias de investigação. Tudo parte de uma
noção de infância concebida como figura identitária que não se resume a uma
“mera fase natural da vida dos seres humanos, mas como uma construção sim-
bólica de caráter social” (MARÔPO, 2008, p. 173); o que coloca em equação o
inusitado problema de uma “identidade que não está a ser construída, direta-
mente, pelo grupo em questão” (Ibidem), mas por outros que, de alguma forma
(na verdade, de múltiplas formas e em função de interesses muito diversos),
falam em seu nome e assumem a sua representação.
Contudo, o objetivo a que aqui nos propomos posiciona-se mais a partir do
outro lado do tabuleiro do diálogo científico em questão – do lado da comuni-

21
cação. E quando pensamos em operacionalizar algo relacionado com comuni-
cação que possa levar algum contributo relevante para os estudos da infância,
nada se apresenta mais prioritário do que uma teoria dos media – pelas razões
que, de forma sumária, a seguir resumimos.
A relação do mundo das crianças – e seus problemas – com a comunicação é,
nos dias de hoje, extraordinariamente extensa, profunda e intricada, para poder
se circunscrever a alguma forma de comunicação em exclusivo, ou ocorrência
social específica. No entanto, mesmo tratando-se do que se pode designar uma
relação social total, é evidente que o seu aspeto mais desafiante diz respeito muito
em especial aos media – tendo em atenção a importância que estes dispositivos
de mediação simbólica entretanto assumiram nas atuais sociedades complexas
e pluralistas. Como logo de início as palavras de Tobin deixaram marcado, por
parte dos estudos de infância parece existir uma certa consciência desta situa-
ção, mas o seu domínio dos instrumentos de conhecimento adequados à perfeita
compreensão desta importância dos media para as crianças já não é assim tão
evidente – aliás, o que está em causa neste desafio não é apenas uma questão de
compreensão, mas também (e talvez sobretudo) de praxis.
Os media assumem-se, no presente, como um verdadeiro dispositivo co-
municacional, com uma presença tão fundamental quanto complexa nas mais
diversas áreas sociais – de que as crianças, por conseguinte, não se encontram
excluídas. Neste sentido, o conhecimento da sua realidade e possibilidades
constitui um desafio primordial, muito em particular para todos aqueles que,
em relação à situação das crianças no mundo atual, assumem um pensamento
crítico e uma preocupação emancipatória. Porque, afinal, pode muito bem ser
o domínio de um conhecimento mais seguro nesta área e sobre estas matérias o
que faz a grande diferença: entre manter a cumplicidade com uma comunicação
que se serve sobretudo das crianças para fins a estas estranhos, como é regra nos
dias de hoje na indústria dos media, e contribuir para uma comunicação que
pode ser posta ao serviço dessas mesmas crianças de forma consequente.

2.

Comecemos por uma ressalva, que serve ao mesmo tempo como clarificação
conceptual: sobre o termo media. A utilização que aqui será feita desta expres-
são pode não ser epistemologicamente a mais rigorosa (medium, em termos
antropológicos, como qualquer tipo de extensão do homem – física, sensorial,

22
mental – que serve para estabelecer uma certa relação com o mundo), mas apro-
xima-se do seu sentido hoje em dia mais comum: os dispositivos tecnológicos
de mediação simbólica da experiência, associados às sociedades modernas e
cujo desenvolvimento se tem revelado imparável até ao presente. Não é que es-
tes dois sentidos do termo sejam antitéticos, ou sequer mutuamente exclusivos;
e também não é caso de considerar que algum deles seja estranho, por assim
dizer, aos problemas habitualmente colocados pelos estudos sobre crianças. O
segundo sentido é, aliás, um caso particular do primeiro; para além de se poder
também considerar o habitual imbricamento entre estes dois tipos de media –
como o exemplo da língua torna evidente (a sua utilização é por assim dizer
imperativa para qualquer medium moderno, por mais sofisticado e tecnológico
que seja). A razão da nossa escolha pelo sentido de media hoje mais próximo
do entendimento comum justifica-se só em função de uma certa preocupação
com os problemas das crianças: a consideração destes com um assunto público,
que reclama um sentido forte de cidadania, não apenas no que diz respeito à
forma da sua discussão, mas, sobretudo, quanto ao tipo de respostas para esses
mesmos problemas. Tendo em atenção, pois, o papel que os media (enquanto
dispositivos comunicacionais) hoje assumem em termos de processamento, e
mesmo construção, do espaço público, da opinião pública e da própria comuni-
cação pública, em sentido mais geral.
A aproximação aos media pelo sentido mais comum não impede o assumir
de uma perspetiva crítica sobre os mesmos. O nosso ponto de partida é a bem
conhecida tese de Jürgen Habermas sobre a “refeudalização da esfera pública
burguesa”, com a subversão do princípio da publicidade, a deriva da opinião pú-
blica enquanto ficção constitucional, a dissolução sociopsicológica deste mesmo
conceito e a coalizão media-indústria da cultura ao serviço do conformismo so-
cial (HABERMAS, 2012 [1962], pp. 257 e sg.s). Teremos em atenção a evolução
do pensamento deste mesmo autor, que mais recentemente o levou a reconside-
rar alguns princípios da sua posição inicial (HABERMAS, 1992, pp. 421-461),
sem chegar a pôr em causa, porém, a ideia principal quanto aos media: a sua or-
ganização na base de interesses particulares torna-os grandes responsáveis pelo
lançamento da comunicação pública numa crise propriamente endémica, com
o extraordinário reforço do seu aparato técnico-instrumental a não encontrar
correspondência na capacidade de representação plural dos interesses sociais,
enquanto a sua margem de liberdade e autonomia se retrai.
De acordo com este diagnóstico, o quadro comunicacional correspondente
não pode deixar de condicionar a discussão pública relativa à situação social
das crianças (o diagnóstico dos seus problemas, as opiniões e propostas sobre

23
os mesmos, etc.). Falamos de Habermas, mas ele não é a única referência crítica
sobre os media: antes e também depois dele (do seu trabalho pioneiro a que
fizemos referência), muitos outros autores vieram corroborar e desenvolver essa
mesma ideia de uma crise da comunicação pública enquanto erosão cívica. E
quase todos, também, apontam no mesmo sentido quanto a causas: é a transfor-
mação dos media (a imprensa num primeiro momento) que traz a deterioração
do estatuto do indivíduo enquanto membro do espaço público e interlocutor da
comunicação pública. Alguns exemplos, só a título de ilustração: Tocqueville
(1981 [1840], pp. 17-18) começou por se referir a esta erosão ao falar de um di-
vórcio entre crítica e opinião, já mais recentemente, Pierre Bourdieu (1984, pp.
222-235) enunciou provocatoriamente o fim da opinião pública e, mais próximo
de nós, Adriano Duarte Rodrigues (1985: 12) refere-se ao membro do espaço
público hoje como um mero consumidor de mensagens mediáticas.
A teoria dos sistemas sociais é um outro quadro de pensamento (neste caso
não assumidamente crítico) que pode ser útil neste diagnóstico, ao identificar
os media funcionais dinheiro e poder como dispositivos de regulação por ex-
celência das sociedades complexas dos nossos dias (p. ex., LUHMANN, 1982,
pp. 138-165; pp. 190-225). A estes media funcionais, os media de comunicação
não podem ficar também indiferentes: o dinheiro e o poder são os veículos
que empurram a comunicação pública para a esfera do mercado e do Estado –
os quais, embora diferenciando-se nos seus processos de operação, convergem
substancialmente a nível de resultados, pois ambos contribuem para manter a
comunicação pública cada vez mais na órbita dos media e promover o seu di-
vórcio da política (esta entendida num sentido forte do termo, como “processo
de formação da vontade, para o qual se torna necessário um envolvimento do
cidadão comum”) (HALLIN, 1985, p.134). Este é o motivo pelo qual o sentido
político que os problemas das crianças hoje reclamam quase nunca conseguir
encontrar resposta a nível das representações mediáticas. Quando se trata de
crianças, os media afastam-se da política recorrendo a estereótipos que consa-
gram a sua representação “sentimentalizada”, num registo entre o emocional e
o espetacular: lançando mão de todo o tipo de artifícios que por um simples
jogo de sentimentos pode eficazmente captar a atenção. Tudo facilmente assim
se pessoaliza, se descontextualiza, é reduzido a acontecimentos discretos, dra-
matizados quanto baste, num fechamento compulsivo do sentido do universo
infantil – a compreensão das crianças e dos seus problemas – que, no limite,
põe em causa o próprio caráter propriamente público e racional das estruturas
da comunicação pública.
Esta (des)formatação da comunicação pública é, por um lado, resultado de
um certo tipo de quadros sociais cognitivos, mas ela própria produz também os

24
seus efeitos a este nível: a designação para este circuito (fechado) pode muito
bem ser o de função ideológica dos media. Contra ela, de um modo geral, se têm
afirmado os estudos das crianças, para além, de forma ainda mais assertiva, um
grande número de organizações e associações da sociedade civil com interven-
ção nesta área: contra a lógica de exclusão social que a afirmação do estereótipo
sempre pressupõe – exclusão de pontos de vista sociais divergentes, mas tam-
bém das próprias crianças na plenitude da sua identidade e enquanto sujeitos
de direitos. A reversibilidade deste estado de coisas exige que se comece por pôr
em questão as próprias estruturas de significação dominantes, que hoje, devi-
do à sua estreita dependência dos media, quase sempre apresentam um caráter
não-público; no entanto, esta mudança, tendo diretamente a ver com os media,
não é concebível de um ponto de vista meramente interno (a estes): ela depende
de outras mudanças também necessariamente profundas que terão de ocorrer a
nível de cultura política (BOHMAN, 2000, p. 212). Isto significa, de facto, uma
validação do projeto emancipatório que põe em movimento tanto os estudos
sobre crianças, como as ações cívicas em geral neste domínio.

3.

A trama ideológica que envolve questões relacionadas com crianças é hoje


em grande medida tecida a partir de representações simbólicas que nos che-
gam através dos media: essas “imagens nas nossas cabeças” que condensam, de
modo geral, o conhecimento sobre a realidade que nos rodeia – para utilizar a
célebre formulação de Walter Lippmann, já com quase um século e que contri-
buiu decisivamente para o lançamento dos estudos comunicacionais dos media
(apesar da ingenuidade própria das primeiras formulações, que aqui advogava
já um relevante poder social dos media, mas que considerava ainda como mera-
mente instrumental, como se depreende do preito do autor às “opiniões públicas
que devem ser organizadas para a imprensa (…) e não pela imprensa”) (LI-
PPMANN, 1960 [1922], p. 32). Os conteúdos propriamente ditos das notícias,
dos programas de entretenimento, das ficções, dos anúncios comerciais, etc. são
o que mais de imediato nos vem à mente quando pensamos neste trabalho ideo-
lógico dos media; esquecendo quase sempre o facto de toda essa construção de
sentido começar muito antes: primeiro, com a seleção daquilo que se vai tratar
(do que se fala ou se mostra) e, depois, com a escolha de um certo ângulo de
abordagem desses assuntos – os processos fundamentais dos media de agenda-
-setting e framing.

25
O agenda-setting relacionado com a construção da agenda dos media con-
siste numa operação básica de gestão, relativa à administração do tempo e da
atenção enquanto bens escassos. Deste ponto de vista, é uma operação que se
subordina a um critério de eficácia. Mas o funcionamento dos media em geral (e
a construção das suas agendas) não se rege apenas por este critério: vale também
uma exigência de legitimidade, que decorre do significado político atribuído
aos media nas nossas sociedades. A conjugação destes dois critérios torna ne-
cessário estabelecer um certo equilíbrio entre abertura e fechamento: a eficácia
(associada às limitações de tempo e de atenção) compele a um certo fechamento
das agendas, enquanto a legitimidade requer abertura (em respeito às exigên-
cias de pluralismo). Na forma da crise da comunicação pública anteriormen-
te referida, este equilíbrio vê-se rompido: o fechamento das agendas impõe-se
(em nome da eficácia), através do recurso a formatos de tipo “infomercial” ou
“infotainment” (DAHLGREN, 1987, p. 28) – o discurso que hoje é tendencial-
mente hegemónico nos media mainstream, em que as tradicionais fronteiras
de géneros (notícias, publicidade, entretenimento, etc.) se esbatem. Falamos de
fechamento na medida em que este tipo de formato discursivo é excludente: de
atores sociais, de temas, de formas de abordagem e mesmo de certos conteúdos
específicos – não necessariamente por razões políticas (de primeira ordem, ou
intencionais, pelo menos), mas simplesmente em nome da eficácia (as combina-
tórias “ideais” de tempo-atenção).
A democraticidade dos media é quase sempre pensada em termos de um
equilíbrio das diferentes vozes presentes, esquecendo as ausentes: aquelas a que,
por uma razão ou outra, foi negado o próprio direito de representação. E é exa-
tamente isso que está em causa no tipo de fechamento referido, que é também
o que afeta de forma muito comum a representação das crianças através dos
media: não é que não se fale delas – aliás, a sua presença nos media nunca terá
sido tão intensa como hoje – é sim a forma como se fala, o modo como as crian-
ças são, quase sempre, simplesmente “processadas” em termos comerciais e de
diversão, em detrimento de uma perspetiva política focada nos seus problemas
de um ponto de vista cívico e nos seus direitos. É o princípio de legitimidade
dos media que aqui está posto em causa, o que o torna assim um problema po-
lítico que passa a dizer respeito a toda a sociedade; e sabemos, por outro lado,
que este tipo de problema não é exclusivo das crianças: muitos outros grupos
sociais são alvos potenciais (e reais) de exclusão (underrepresentation) ou de
representações deturpadas (misrepresentation) por parte dos media. Só que as
dificuldades das crianças para forçar uma correção destas situações são incom-
paravelmente maiores, atendendo à sua condição de vulnerabilidade estrutural
ou constituinte por assim dizer; devido ao fator idade e por se encontrarem em
processo de desenvolvimento (físico e psíquico), a tensão inerente às exigências

26
modernas da cidadania como universalidade será vivida pelas crianças sempre
de forma incomensuravelmente mais aguda – “a universalidade da cidadania
no sentido de inclusão e participação de qualquer um em tensão com os outros
dois sentidos de universalidade embutidos no pensamento político moderno: a
universalidade como generalidade e a universalidade como tratamento igual”
(YOUNG, 1989: 251). Ao contrário da generalidade das situações em que se
verifica um condicionamento de acesso ao espaço público, no caso das crianças
não há política de redistribuição de recursos que possa colocá-las num plano
de perfeita igualdade com os demais cidadãos. É também bastante sintomático
desta vulnerabilidade, aliás, o facto de as crianças serem o grupo em relação ao
qual a aceitação de “direitos especiais” é por um lado mais fácil, mas ao mesmo
tempo a aplicação destes se mostra mais difícil – a nível dos media, mas também
em todos os outros sentidos.

4.

Esta crise da comunicação pública tem raízes profundas, quer a nível da


situação institucional dos media nas sociedades ocidentais, quer sobretudo, e de
forma mais abrangente, a nível do próprio modelo de desenvolvimento destas
sociedades (as ambivalências do processo da modernidade). Embora esta seja
uma questão que não é possível aqui aprofundar, importa tê-la em mente para
compreender a posição de uma certa complacência assumida pelas ciências so-
ciais, e as ciências da comunicação em particular, perante o problema; ou mais
até, de acordo com Todd Gitlin (2002 [1978], pp. 107-151), que considera que
durante o longo período de vigência do chamado paradigma dominante (mode-
lo de estudos dos media que corresponde à liderança intelectual e institucional
de Paul Lazarsfeld), o que esteve em jogo foi pura e simplesmente uma subor-
dinação da pesquisa a interesses sociais hegemónicos (o administrativismo, a
orientação comercial e uma difusa ideologia de social-democracia). A mani-
pulação e a propaganda, que condicionaram fortemente o funcionamento dos
media, tornaram-se assim a referência epistemológica por excelência dos seus
próprios estudos, estreitando consequentemente de forma drástica a margem de
manobra de qualquer perspetiva crítica alternativa; esta situação corresponde,
talvez, ao período de maior dificuldade em dar alguma visibilidade nos media
aos problemas da infância numa perspetiva cívica e política.
Este bloqueio a nível de pesquisa acaba por influenciar o próprio comporta-
mento dos atores sociais na sua relação com os media: favorece a nível de prá-

27
ticas quotidianas uma ideia reificada dos media, que em muitas situações acaba
mesmo por inibir aquelas vozes que reclamam mudanças e desejam afirmar-se
como alternativas. O preço a pagar pela visibilidade mediática é, habitualmente,
muito elevado: “quanto mais as preocupações e valores dos movimentos sociais
coincidirem com as preocupações e valores das elites políticas e mediáticas,
mais fácil será a sua incorporação nos enquadramentos mediáticos estabele-
cidos” (GITLIN, 1989, p. 284). À semelhança de muitos outros ativistas sociais
(estudantes, mulheres, minorias étnicas, sexuais, etc.), os defensores dos direitos
das crianças também nem sempre compreenderam que o sucesso da sua ação
está estreitamente dependente de uma outra batalha cívica fundamental: a dos
media – batalha que também diz respeito aos próprios e de modo prioritário.
Claro que há ambivalências e fissuras nos media mainstream que podem ser
exploradas, mas é pouco provável que isso seja suficiente para conseguir afirmar
de modo consequente um novo olhar sobre as crianças. Em algum momento, o
quadro vigente de funcionamento dos media imporá os seus limites e fará valer
a sua lei: a ideologia e o estereótipo voltarão à tona, ao mesmo tempo que sobre
os reais problemas das crianças tombará um pesado manto de silêncio – na for-
ma peculiar de uma ideologia que se afirma hegemónica ao conseguir “absorver
e domesticar os valores conflituais, as respetivas definições de realidade e as
suas reivindicações” (Ibidem: 256). Como em outros domínios que envolvem
direitos, a presença dos sujeitos desses direitos nos media não é garantia da sua
defesa ou respeito; em muitas situações, pelo contrário, a visibilidade mediá-
tica não é mais do que a outra face da moeda do silêncio: quando se rege pelo
estereótipo, que repetido incessantemente pode até conduzir à chamada “com-
passion fatigue” (MOELLER, 1999) – um sentimento que não foi formulado a
pensar nas questões das crianças, mas que se refere a situações (de guerra, fome,
catástrofes, etc.) em que quase sempre as crianças são as primeiras (e principais)
vítimas.

5.

Os estudos sobre crianças (e o ativismo social sobre esta causa de um modo


geral) têm a aprender com uma perspetiva crítica dos media, mas o inverso não
é menos verdade. O programa desta perspetiva inclui o escrutínio dos limites
de uma planificação e controlo generalizados dos media, o que conduz necessa-
riamente às diferentes formas de resistência social neste domínio, entre as quais
figuram aquelas mais diretamente relacionadas com os direitos das crianças.

28
Sem dúvida, esta é uma das muitas faces do imenso caleidoscópio que é hoje o
grande Público, na qual se vê refletido um certo contexto social informal da ex-
periência simbólica – neste caso, precisamente, aquilo que poderíamos designar
como um Mundo de Vida da infância (das suas mais extraordinárias fantasias,
aos problemas mais cruéis, em toda a diversidade da condição humana inerente
a este grupo etário num mundo muito diferenciado – e desigual – como é o dos
nossos dias). O húmus deste Mundo da Vida é a intercompreensão linguística
(comum às formas de vida coletiva em geral), da qual se alimenta a resistência
às estratégias de aprisionamento que têm como origem os media; e a sua forma
mais comum de manifestação nos dias de hoje é uma sociedade civil vibrante,
que por ação dos novos movimentos sociais e formas de identidade se assume
de um modo politicamente combativo e volta a equacionar a sua aspiração de
autonomia como uma prioridade (COHEN; ARATO, 1995, pp. 29-30).
A vibração da sociedade civil, porém, não se manifesta de forma contínua,
pelo que a perceção do seu movimento se torna também mais difícil. Determina-
dos momentos ou acontecimentos concentram o sentimento de estranheza dessa
revelação, como aconteceu bem recentemente, por exemplo, com a entrega do
Prémio Nobel da Paz de 2014 a Kailash Satyarthi e a Malala Yousafzai – dois fer-
vorosos ativistas dos direitos das crianças, cuja base de intervenção está, precisa-
mente, numa vastíssima rede de organizações e associações voluntárias da socie-
dade civil à escala planetária. Por sua vez, a intervenção dos media perante este
acontecimento é também reveladora da ambiguidade intrínseca que os constitui:
o discurso dos direitos das crianças fez-se então ouvir de forma mais sonora, mas
ainda assim não mais do que de forma ocasional e sem pôr minimamente em
cheque o registo habitual – the show must go on. Assim se revela a verdadeira face
de Janus dos media: na sua abertura e fechamento, em simultâneo, à sociedade
civil, enquanto dispositivos de controlo/poder e, ao mesmo tempo, redes pelas
quais podem também fluir (ocasionalmente) manifestações de contestação e de
resistência social.

6.

Alguns autores têm-se apressado a ler nesta ambivalência dos media – e na


forma paradoxal da linguagem e discursos que a traduzem – um sentido de
simulacro, que tomam como sinal denegatório da modernidade (BAUDRIL-
LARD, 1981). É bem possível, porém, que este ponto de vista se apresente algo
redutor, tendo em atenção o seu discutível enquadramento social dos media:

29
primeiro, a nível de estrutura do espaço público atual e, em termos mais gerais,
também a nível de estrutura das próprias sociedades complexas e pluralistas dos
nossos dias. Por outro lado, parece existir igualmente uma interpretação equí-
voca do próprio conceito de modernidade, na medida em que se desconsidera
os potenciais autorreflexivos que continuam a manifestar-se aos mais diferentes
níveis sociais. De um modo geral, entre os que professam o esgotamento da
modernidade há como que um alheamento em relação às diferentes manifes-
tações de presença (e persistência) da modernidade no nosso quotidiano – de
que a preocupação com as crianças e os seus direitos é, por certo, um dos casos
mais notáveis. Mas ainda assim, é tão só um exemplo entre tantos outros que
poderiam ser citados a título de formas que tornam manifesta a força de uma
modernidade que continua a fazer o seu caminho: pela conjugação de uma ideia
universalista de liberdade, que se assume precisamente como valor axial do pro-
jeto da modernidade e nos autoriza a definir este, mais do que como um projeto
inacabado, sobretudo como um “projeto interminável” (WELLMER, 1990, pp.
250-251).
Complexidade (funcional) e pluralismo (cultural) são pilares fundamentais
do atual processo de desenvolvimento, não necessariamente incompatíveis, po-
rém, com a matriz de modernidade das nossas sociedades. Bem pelo contrário,
se tivermos em conta que o princípio de governabilidade normalmente reivin-
dicado pelas forças mais ativas da sociedade civil continua a ser de cariz demo-
crático e a apontar para uma autotransformação de tipo emancipatório – pelo
menos no que à ação dos movimentos sociais em torno da causa das crianças diz
respeito não parece haver qualquer espécie de dúvida. Aliás, se a ideia de direi-
tos das crianças é já em si inquestionavelmente moderna, toda a mobilização so-
cial no sentido de impor pragmaticamente essa ideia de modo mais consequen-
te só pode ser entendida como um fator de atualização e aprofundamento dessa
mesma modernidade: no esforço para robustecer a consciência social quanto
a problemas realmente de interesse público, no apelo franco à participação da
opinião pública na discussão desses problemas, na construção de uma vontade
política sobre os mesmos numa base cívica.

7.

Estas palavras de confiança não descuram os desafios com que o mundo


ocidental hoje se depara, a começar pela deriva neoliberal, que nas suas diversas
variantes ideológicas (pré ou pós-modernistas) se assume abertamente hostil

30
à ideia de modernidade. A tensão daqui resultante atravessa por assim dizer
toda a sociedade e, neste sentido, está também presente a nível do universo dos
media, onde assume a forma de uma disputa semântica em torno da noção de
“Quarto Poder”.
Os termos gerais dessa disputa podem ser tipificados do seguinte modo: de
um lado, um registo mais próximo do significado original da expressão, que ser-
viu para sinalizar uma presença relevante dos media (imprensa) no quadro de
uma representação política altamente prestigiada do espaço público, de outro,
a forma disruptiva que o termo vem assumindo mais recentemente, com a cada
vez maior rejeição de um qualquer seu vínculo de caráter público (que vai da
recusa do controlo público dos media, até uma atitude mais ostensiva por parte
destes de hostilização do próprio espaço público). Entre os vários aspetos que
contribuem para esta deriva do conceito de quarto poder, um que diz muito es-
pecialmente respeito à problemática dos direitos das crianças: a (des)igualdade
de acesso aos media. Ou seja, a constatação de que a ausência da problemática
das crianças nos media se fica a dever, em primeiro lugar, ao silenciamento de
que as próprias vítimas são alvo – as crianças que veem os seus direitos violados
das mais diferentes formas – e, também, os promotores desses direitos de um
modo geral. Trata-se do problema típico da recusa (ou uma maior dificuldade)
do acesso aos media a mais uma “minoria” que, ao juntar-se a tantas outras
minorias em condição semelhante, acaba assim por engrossar as fileiras de uma
imensa maioria da sociedade para quem os media se apresentam como um ob-
jeto inacessível; o que aqui temos, em termos gerais, é a seguinte situação: de
fora dos media, os cidadãos, seja a título individual seja em termos coletivos
(no contexto de organizações e associações mais ou menos espontâneas e in-
formais), por dentro dos media, o restrito círculo dos seus profissionais, quase
sempre acompanhados com grande proximidade pelas várias elites sociais (polí-
ticas, económicas, artísticas, desportivas, etc.) institucionalmente reconhecidas.
Falamos aqui de diferenças de estatuto relacionadas com comunicação, mas
devemos ter presente que a questão é obviamente mais vasta: o que distingue
(e afasta) os diferentes grupos sociais tem a sua origem e exerce os seus efeitos
num raio de ação que se situa muito para além das questões de comunicação e
dos media. É certo que os media se transformaram entretanto em verdadeiras
instituições, investidas de um poder social que lhes permite, por exemplo, con-
ferir reconhecimento de estatuto àqueles a que os próprios concedem o direito à
palavra; mas quase sempre a sua lógica de operação já pressupõe que este direito
é concedido em função de um estatuto previamente atribuído; só em condições
muito especiais (e excecionais), os media investem de poder quem não tem já

31
poder – e não devemos esquecer que o grande problema que subjaz à discussão
dos direitos das crianças é exatamente este: o generalizado e crítico desempode-
ramento deste grupo social.

8.

A pergunta que se impõe face a este tipo de distribuição irregular do poder


de influência (por via de um acesso assimétrico aos media) é mesmo a seguin-
te: a quem pertence hoje realmente o quarto poder? Considerando o exposto,
a resposta está dada. E o sentido da questão será pouco mais do que retórico:
serve sobretudo para dar voz a uma suspeita, a qual se torna presente sob a
forma de um número crescente de preocupações éticas e morais relacionadas
com o funcionamento dos media. Sendo verdade que estes não estão inocentes
perante o reforço cada vez maior dos centros de poder nas nossas sociedades,
ao mesmo tempo constata-se também que à sua volta se vem organizando uma
certa preocupação social relacionada com esta mesma situação, a começar pelo
próprio corpo social dos media (e dentre todos os seus profissionais, os jorna-
listas de modo mais especial). Talvez não seja sempre muito consistente (nem
coerente) este movimento, sobretudo quando reveste a forma de uma ideologia
profissionalizante mais auto justificativa do que realmente potenciadora de uma
transformação das condições de funcionamento dos media (CURRAN, 1991,
pp. 98-100); ainda assim, não deixa de ser um sinal importante de desconforto
com a presente situação, do mesmo modo que a pressão social no sentido de
um reforço da constitucionalização do chamado quarto poder. Referimo-nos
neste caso à exigência de um enquadramento jurídico mais rigoroso no que diz
respeito aos media, tal como tem vindo a ser exigido com determinação, mes-
mo que de forma difusa, pela opinião pública – e a que as próprias autoridades
políticas não se têm mostrado indiferentes.
Estas movimentações podem também ser interpretadas como uma reafir-
mação de modernidade das nossas sociedades, no que significam de um esforço
de auto reflexão do espaço público: sobre as suas próprias condições internas
de funcionamento, no que aos media em especial diz respeito, e numa perspeti-
va de valorização das suas energias regeneradoras. São movimentações para as
quais não encontramos uma explicação convincente nem no velho paradigma
da manipulação (dos media), nem nas mais recentes narrativas pós-modernas
(sobre a implosão do espaço público). O importante trabalho simbólico que se
desenvolve a nível da receção escapa normalmente ao foco de atenção de qual-

32
quer destas perspetivas, a devida valorização desse lugar onde as mensagens
dos media são submetidas a práticas discursivas complexas, com possibilidade
de atrair e agregar as energias utópicas dispersas na sociedade. Curiosamente,
ficamos a dever a um confesso simpatizante de uma certa argumentação pós-
-moderna uma das contribuições mais decisivas sobre esta matéria: referimo-
-nos a Stuart Hall e à sua ideia da receção enquanto âmbito próprio de uma
produção de sentido (1999, pp. 51-61). A hipótese de as mensagens dos media
poderem ser objeto de reapropriações simbólicas por parte dos recetores colide
abertamente com as imagens quer de um público fantasmagórico (manipulado)
(LIPPMANN, 1925), quer de um público-simulacro (BAUDRILLARD, 1981, p.
42); mas a sua importância, porém, é decisiva para os ativistas dos direitos das
crianças de um modo geral, que veem nessa hipótese, precisamente, a confirma-
ção da possibilidade de se definir um posicionamento crítico face aos media e,
na sequência, a própria transformação destes.
A afirmação dos direitos das crianças não é compatível com a imagem de
um público fantasma ou simulacro. Requer, pelo contrário, a intervenção de
um Mundo da Vida na plenitude das suas fontes de sentido. E entre estas im-
porta considerar, certamente, uma certa experiência crítica de relacionamento
com os media, que assume a forma de processos de receção ativos, onde se en-
contram presentes negociações de sentido (entre destinadores e destinatários)
capazes de gerar leituras adversariais das mensagens difundidas pelos media –
nomeadamente daquelas que de algum modo se mostram lesivas para as crian-
ças, ou tão só revelam uma indiferença pelos seus direitos.
A sugestiva afirmação de que, hoje, “a esfera pública está de acordo que a
esfera pública se encontra em apuros” (GITLIN, 1998, p. 170) leva-nos a con-
siderar que o escrutínio crítico cada vez mais presente sobre o funcionamento
dos media é sinal de alguma vitalidade do espaço público. Como já referimos,
as matérias relacionadas com as crianças contam-se entre os motivos desse es-
crutínio, mas são uma entre muitas mais; podendo, além disso, todas elas, no
seu conjunto, apresentar formas muito heterogéneas. Ainda assim, é possível
descortinar uma motivação fundamental de caráter normativo que ordena por
assim dizer este impulso crítico, e que traduziríamos pela ideia, “simplesmente”,
de democratização dos media – o reforço do compromisso destes em termos
democráticos no que diz respeito ao seu funcionamento. Ainda tomando o caso
das questões da infância, é bem evidente a estreita correspondência entre o ati-
vismo crítico que se vem manifestando nesta área e todas as funções atribuídas
aos media em termos democráticos (BLUMLER; GUREVITCH, 1995, p. 97): 1.
Um supervisionamento do meio sociopolítico, assegurado pelo relato de todas

33
as matérias relativas à infância que possam afetar de algum modo o bem-estar
dos cidadãos (e das próprias crianças em primeiro lugar); 2. A construção de
uma agenda pública de que as questões da infância façam parte; 3. A construção
de plataformas de discussão abertas aos porta-vozes e ativistas em geral dos
direitos das crianças (e – o maior desafio – também às próprias crianças); 4. O
estabelecimento de um diálogo aberto e plural com os detentores do poder, aos
mais diversos níveis, sobre estas matérias; 5. O exercício de uma accountability
correspondente; 6. A mobilização cívica em torno dos problemas das crianças,
recorrendo aos media para fornecer incentivos à aprendizagem e participação
dos cidadãos; 7. A defesa da lealdade pública dos media, contra todas as forças
exteriores que ameacem pôr em causa a sua isenção e integridade, nomeada-
mente no tratamento das questões da infância; 8. A exigência do respeito por
cada um dos membros da audiência, no seu sentido mais universal, mas onde se
incluem as próprias crianças (enquanto cidadãos em formação).

9.

O entrelaçamento das questões da infância com a democracia estabelece-se


em dois planos: enquanto prática de avaliação crítica dos media (da sua realida-
de presente) e enquanto motivo inspirador para uma reorganização dos atuais
complexos mediáticos (no futuro). Esta perspetiva oferece-nos uma visão com-
preensiva do espaço público nos dias de hoje bastante promissora: tendo em
atenção (e valorizando) a sua génese democrática, mas também ao mesmo tem-
po, em função de um certo ponto de vista prospetivo (relacionado com o futuro
dessa mesma democracia). Ambos os planos, por sua vez, comportam a dupla
dimensão constituinte do espaço do público: a fáctica, relacionada com as estru-
turas objetivas da comunicação pública, e a normativa, definida em termos sim-
bólicos pelo sentido político (e ético-moral) atribuído a essas estruturas. Em-
bora complementares, estas duas dimensões estabelecem entre si uma relação
que é sempre em certa medida tensional: simbólico e realidade pressupõem-se
e estabelecem entre si uma influência recíproca, mas sem nunca pôr em causa
a irredutibilidade de cada um dos termos. Este dualismo determina uma forma
especial de equacionar, em termos científicos e de pesquisa, a transformação do
espaço público dos nossos dias: esta não pode ser concebida em termos de uma
operação de planificação (social engineering), mas apenas como um exercício
exploratório relacionado com as formas de vida – com o qual se procura iden-

34
tificar possibilidades de regeneração das presentes condições de existência, sem
nunca, porém, pretender (ou poder) impô-las.
Muito simplificadamente, podemos ilustrar este esquema interpretativo do
seguinte modo, a partir do caso da problemática infantil que temos vindo a
acompanhar: o plano empírico (ou fáctico) é definido pelo conjunto de pro-
blemas relacionados com as condições objetivas de existência das crianças nos
nossos dias, o plano normativo consiste no ordenamento jurídico consagrado
pela Convenção Sobre os Direitos das Crianças (mais a sua transcrição para as
legislações nacionais, etc.) e a tensão entre estes dois planos estabelece o campo
de possibilidades que se abrem para alcançar uma conformação mais adequada
da realidade a este regime jurídico (recordamos que se trata do tratado interna-
cional de direitos humanos mais ratificado da história, vinculando precisamen-
te 194 Estados até este momento). Embora ilustrativa, esta aplicação assume,
como é evidente, uma forma bastante simplificada, nomeadamente não proble-
matizando as tensões que desde longa data atravessam o domínio dos direitos
das crianças – a disputa entre protecionistas e liberacionistas, de que a própria
Convenção se assumiu já como um compromisso (ROSEMBERG; MARIANO,
2010, pp. 699-705).
A proposta teórica da democracia deliberativa apresenta uma forte coe-
rência com a hipótese de transformação do espaço público que acabámos de
equacionar. Preconiza a necessidade (e admite a possibilidade) de interromper
a conversão de poder administrativo e poder económico em influência política,
contando com a comunicação como meio de apoio essencial para esse objetivo;
a ideia consiste em promover uma regeneração comunicacional da generalidade
das estruturas do espaço público, do mundo da vida das relações informais quo-
tidianas, às associações e organizações coletivas (incluindo partidos políticos),
passando pelos próprios media. Da convergência e entretecimento de todos es-
tes planos, poderá ganhar forma a possibilidade de se “constituir uma opinião
e vontade do público a partir da sua própria perspetiva”, por oposição àquela
ação dirigida ao público a partir de fora, que tem em vista “influenciar este com
o objetivo de manutenção do poder político constituído e que apenas pretende
extorquir do espaço público a lealdade de uma população reduzida a massa”
(HABERMAS, 1998, p. 460).
Nesta perspetiva, os media assumem um relevo eminentemente comuni-
cacional. É por meio da linguagem que eles estabelecem o seu enraizamento
profundo a nível do mundo da vida e constroem uma rede de ligações com
as demais estruturas (comunicacionais) deste mesmo mundo. E assim pode-

35
mos também acrescentar um novo capítulo aos estudos de agenda-setting, a que
já antes nos referimos, especificando agora mais rigorosamente o processo de
construção da agenda política. Na verdade, a diversidade de processos que esta
construção envolve: os modelos hoje em dia mais comuns que pressupõem uma
certa supremacia do sistema político, seja o de construção interna (estritamente
confinado à esfera governamental e que nem chega a reclamar a intervenção
da agenda pública), seja o de mobilização (que já requerendo uma presença
desta, a mantém no entanto sob estrito controlo governamental), devem ser
contrastados como o chamado modelo de iniciativa externa (da responsabili-
dade de “grupos exteriores à estrutura governamental”, ou seja, da sociedade
civil), (COBB; ROSS; ROSS, 1976, p. 127-137). Para ilustrar este modelo de
construção da agenda política, mais uma vez o ativismo em torno dos direi-
tos das crianças pode ser convocado em nosso auxílio: como o próprio nome
indica, está aqui em causa uma construção da agenda a partir do exterior do
sistema político, mais propriamente, com base no apoio de uma opinião pública
– que as organizações em geral da infância não só constituem, mas cuja ação é
também mobilizadora de setores mais amplos da sociedade. A ação dos media
pode muito bem estar também envolvida neste tipo de construção da agenda,
mas de um modo perfeitamente distinto do que acontece com os outros dois
modelos: a elaboração temática tem por origem o plano da linguagem quoti-
diana (a conversação, nos contextos informais de debate e dos contactos sociais
espontâneos), o que significa que os media se apresentam essencialmente como
caixa-de-ressonância do mundo da vida – dos problemas das crianças que a esse
nível se manifestam – e não como dispositivos de poder funcional que procu-
ram o mundo da vida só com objetivos de dominação (a utilização de crianças
para fins políticos, económicos ou de outro tipo).
É impossível predizer a eficácia que uma receção crítica dos media pode
ter na consagração dos direitos das crianças: na organização dos conteúdos do
próprio discurso dos media, em primeiro lugar, e na difusão desses mesmos
direitos pela sociedade – de acordo com a hipótese que prevê uma “função
pedagógica de mediação que converte os textos contemporâneos dos media
numa forma eficaz de educação moral” (CHOULIARIKI, 2008, p. 832). Mas do
que não há dúvidas é que os media não podem ficar indiferentes à reação das
suas audiências, por maior que seja o distanciamento crítico que estas assumam
em relação aos padrões institucionalizados. Em virtude da sua natureza
comunicacional e de o seu funcionamento pressupor algum tipo de relação
social (entre sujeitos humanos ativos),

36
os media, por mais poderosos que se tenham tornado, têm de manter algo
semelhante a um diálogo com o público; existe sempre, portanto, um certo
grau de abertura, de dupla dimensão no processo de comunicação: quando
surge um público ativo que desafia os limites do discurso político, os me-
dia não o podem ignorar, sem porem em perigo a sua própria legitimidade
(HALLIN, 1985, p. 143).

Boas “notícias”, pois, para os ativistas, mas sem entusiasmos excessivos. Se os


media “não podem ignorar” os seus públicos, o alcance dessa reação é incerto.
Depende da acutilância da crítica que lhe dá origem; e pode muito bem aconte-
cer que os ativistas não tenham força suficiente, só por si, para alcançar os resul-
tados desejados – e necessários, de um ponto de vista de direitos das crianças.
Antes de os media poderem assumir-se como um aliado das crianças – ou um
instrumento ao serviço dos seus direitos –, é necessário que eles mesmos sejam
considerados como um campo de batalha desses direitos; e as possibilidades de
sucesso nessa batalha dependem, muito provavelmente, já de outras lutas ante-
riores: onde está em jogo a conquista do coração da sociedade civil para a causa
das crianças e dos seus direitos.

10.

A ideia de uma indistinção entre medium e sujeito tornou-se uma espé-


cie de bordão da crítica à comunicação moderna (à sua racionalidade). É uma
ideia contudo perigosa, que importa ponderar bem em todo o seu significado:
enquanto posição de princípio que assume uma desqualificação do humano e
aponta para o resultado inevitável de uma impossibilidade última da própria
comunicação. Numa outra ocasião discuti o enquadramento filosófico deste
problema (ESTEVES, 2005, p. 37), mas por agora fixemo-nos em alguns aspetos
mais propriamente comunicacionais, relacionados com o funcionamento dos
media nas nossas sociedades.
De um ponto de vista cívico (e crítico), a noção de cyborg enquanto amál-
gama de medium e sujeito (tecnologia e organismo) será pouco menos que
trágica, na medida em que torna indiscerníveis os significados variáveis que o
funcionamento dos media pode assumir: muito em especial, a diferença entre
um registo dos media de tipo propagandístico-manipulativo (tendente a um
fechamento de sentido) e um registo capaz de promover uma produção regular

37
de poder legítimo através da linguagem (numa abertura comunicacional dos
media ao mundo, à vida e à experiência). Recorrendo a uma outra fórmula bem
conhecida, diremos que os media não são em si ideologia, podem sim ser ge-
radores de ideologia(s) (THOMPSON, 1992, p. 269); e o desafio crítico que daí
resulta consiste, pois, na compreensão das condições dessa possibilidade: o que
(ou como se) favorece e o que (ou como se) pode inibir a ideologização dos
media? À transcendência dos dispositivos (sobre os indivíduos) capaz de deter-
minar o sentido dos media contrapõe-se, de um ponto de vista cívico (e crítico),
a ideia de uma imanência comunicacional: as estruturas da comunicação pú-
blica não podem deixar de ser objeto de uma apropriação social, que é o lugar
propriamente do humano e onde se define, em cada momento, a forma concreta
que reveste a comunicabilidade da experiência.
Nestes termos, e no contexto das nossas sociedades democráticas, para uma
neutralização da deriva ideológica dos media, é legítima a invocação da pro-
teção institucional fornecida pelo Estado de Direito, mas não é certo que este
recurso só por si seja suficiente. Torna-se igualmente indispensável a convoca-
ção de uma experiência vibrante de liberdade, perfeitamente impregnada aos
mais diferentes níveis da cultura quotidiana. Podemos pensar nesta experiência
como uma ilustração da circularidade entre media e mundo da vida a que antes
nos referimos, a propósito do ativismo em torno das questões da infância, e que
torna evidente como o futuro do espaço público depende menos dos media em
si do que das condições sociais concretas que definem um sentido geral para a
comunicação pública (à qual é previsível que os próprios media de algum modo
se acomodarão).

11.

O ambiente das sociedades democráticas proporciona condições favoráveis


para a atuação dos movimentos cívicos, mas podemos também afirmar que o
futuro da nossa democracia se encontra em larga medida nas mãos desses mo-
vimentos – considerando a dinâmica que os mesmos podem imprimir à socie-
dade civil.
Os direitos da infância são hoje uma das questões socias mais importantes à
volta da qual a sociedade civil vem consolidando um certo recrudescimento, em
ligação estreita à democracia estabelecida, num duplo sentido: por um lado, as
respostas para os problemas das crianças encontram nos valores democráticos

38
um motivo de inspiração, por outro lado, essas respostas, na medida em que
operacionalizadas em termos práticos, tornam-se elas próprias um importante
elemento de reforço da democracia. As crianças necessitam da democracia para
fazer valer os seus direitos, mas elas retribuem com muita generosidade tudo
aquilo que recebem. Podemos dizer que as organizações sociais e as associações
voluntárias que se ocupam dos problemas das crianças e dos seus direitos se
encontram hoje na primeira linha da sociedade civil, considerando o contri-
buto relevante que a esta emprestam em termos de revitalização cívica; desig-
nadamente através de duas operações em que se encontram envolvidas: 1. Um
exercício de delimitação mais rigorosa das fronteiras do Estado – como resul-
tado do duplo movimento definido por John Keane, de “expansão da liberdade
e igualdade sociais, e de reestruturação e democratização do próprio Estado”
(1988, p. 14), no quadro do que este mesmo autor passou a designar por uma
democracia monitória (KEANE, 2013, pp. 79 e sg.s); e 2. o incentivo a uma ação
social responsável – que pressupõe um espírito cívico forte, apoiado em garan-
tias constitucionais, padrões associativos e coragem cívica (OFFE, 1992, p. 81).
O envolvimento da comunicação com estes processos é por demais impor-
tante, tanto a montante como a jusante, por assim dizer. De uma sociedade ci-
vil dinâmica, fortemente mobilizada à volta dos seus movimentos cívicos, no
cumprimento de um programa que visa afirmar uma (a sua) maior autonomia,
quer em relação ao Estado, quer em relação ao sistema económico, resultam
certamente condições mais favoráveis para desenvolvimento da comunicação
pública; mas, por outro lado, como já referimos a propósito dos movimentos
que atuam na área da infância, a comunicação pública é um recurso também in-
dispensável para pôr em marcha esta dinâmica: uma comunicação solidamente
enraizada no mundo da vida, que, nos nossos dias, não pode dispensar o con-
tributo fundamental dos media, se aspira de facto a vir a exercer uma influência
política relevante.
É certo que esta influência política tem uma definição imprecisa e até de certo
modo fluida, em função da dinâmica essencialmente aberta e pluralista que lhe
dá origem – a nível da sociedade civil, do espaço público (que emana da anterior)
e da comunicação pública (que é por assim dizer o seu veículo). Mas nada obsta
a que o quadro político da sua definição continue a ser o das nossas sociedades
democráticas, de matriz liberal e representativa; na medida em que este modelo,
por um lado, é tributário de uma validade social amplamente reconhecida e,
por outro, continua a dispor de grande potencial de aperfeiçoamento – como as
noções de democracia deliberativa e de democracia monitória, antes referidas,
tornam evidente. Cohen e Arato (1995, pp. 15 e sg.s) falam de uma “conceção

39
de autolimitação” da sociedade civil neste quadro político que importa ter em
consideração, se quisermos compreender de forma mais precisa os limites do
poder que está ao seu alcance. Corresponde essa autolimitação, genericamente,
ao traçado das fronteiras que delimitam o âmbito próprio de existência dessa
mesma sociedade civil – ou o que podemos também considerar como os limites
da sua autonomia. De um lado, o mundo da vida, cujas estruturas materiais e
simbólicas alimentam e asseguram a permanente regeneração da sociedade civil,
mas que nunca a esta poderá ser reduzido; de outro lado, o Estado, que define
propriamente os limites da intervenção política (legítima) da sociedade civil, ou
seja, da capacidade de influência da vontade política numa base comunicacional
(através de processos de opinião); e por último, os sistemas funcionais da
sociedade, investidos de competências técnicas próprias (hoje absolutamente
indispensáveis em termos de funções de regulação e planeamento sociais), mas
cuja legitimidade última (da sua própria existência e funcionamento) depende
da sociedade civil – do seu controlo político.
Como referimos, este quadro (de autocontenção da sociedade civil) corres-
ponde, em linhas gerais, ao presente modelo de democracia das nossas socie-
dades, o qual, com toda a certeza, não é nenhuma verdade política irrefutável
e irrevogável – também, certamente, para muitos daqueles que têm dedicado
boa parte das suas energias cívicas à causa das crianças. Mas o que importa
realçar – até para estes – é a ampla margem de progressão que este quadro po-
lítico ainda oferece para o desenvolvimento dos direitos cívicos em geral (e os
das crianças em particular); a partir do reconhecimento de uma capacidade de
influência legítima da responsabilidade da sociedade civil, num sentido lato, ou
seja, enquanto esforço de construção da sociedade em termos gerais, numa base
reflexiva e comunicacional (tendo no espaço público e na comunicação pública
os seus meios operacionais por excelência).
As crianças de todo o mundo muito podem esperar ainda destas condições,
mas na medida em que são também os seus problemas que neste momento es-
tão a ajudar a despertar a sociedade civil, a elas devemos já agradecer esse seu
inestimável contributo para o aperfeiçoamento da nossa democracia.

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42
Eixo 2.
Representação das crianças e/ou jovens
na mídia
A representação do jovem nas campanhas sobre
prevenção da Aids do Ministério da Saúde1

Juciano de Sousa Lacerda


Sueli Alves Castanha

1 Juventude, sexualidade e Aids no Brasil

Um desafio que encontramos ao pesquisar a representação do jovem nas


campanhas de prevenção da Aids foi definir o conceito de juventude. Para fins
de classificação a OMS assume o critério cronológico, categorizando em três
grupos a faixa etária entre 10 e 24 anos, nestes limites: adolescente correspon-
de à faixa etária de 10 a 19 anos; juventude, à faixa etária entre 15 a 19 anos e,
pessoas jovens, à faixa etária entre 10 a 24 anos.2 Outra forma de classificar pela
faixa etária, segundo Campos e Barbalho (2011), é a da Secretaria Nacional de
Juventude (SNJ) e do Conselho Nacional de Juventude (Conjuve), organismos
criados em 2005, que definiram como jovens os que se encontram na faixa etá-
ria entre 15 e 29 anos. Segundo Campos e Barbalho (2011), essa perspectiva foi
adotada na proposta de Estatuto da Juventude, discutida na Câmara dos Depu-
tados, com três faixas de classificação: de 15 a 17 (jovem-adolescente), de 18 a
24 anos (jovem-jovem) e de 25 a 29 anos (jovem-adulto). Esses critérios vêm
sendo utilizados na construção de políticas públicas de saúde direcionadas aos
jovens e adolescentes.
A adoção de critérios cronológicos restringe a concepção de adolescente en-
quanto sujeito social, por considerar mais o aspecto biológico, em relação aos
aspectos psicossociais e culturais. A limitação etária através de critérios cro-
nológicos contribui no planejamento de ações dirigidas a um grupo específico
1
O presente capítulo faz parte do projeto de pesquisa “Usos e apropriações das campa-
nhas midiáticas de prevenção das DST/Aids entre adolescentes e jovens do bairro de Mãe
Luiza, Natal-RN” (Propesq-UFRN/Pibic-CNPq, 2013-2015).
2
Ministério da Saúde (Brasil). Marco Legal: saúde, um direito de adolescentes. Brasília:
Ministério da Saúde, 2005.

44
(HORTA, 2007). Porém, muito mais que uma limitação etária, os outros as-
pectos devem ser observados. Para fins de ações e estratégias de saúde, a única
semelhança ser a idade, não constitui variável suficiente para formação de um
grupo. Mais do que limite etário, o contexto social, seus espaços de convivência,
sua forma de ser jovem devem ser considerados.
Buscando ultrapassar essa limitação, apoiamo-nos na proposta de Margulis
e Urresti aplicada na investigação produzida por Campos e Barbalho (2011).
Segundo estes pesquisadores, Margulis e Urresti apresentam uma recategoriza-
ção do conceito de juventude que, em vez de isolar o aspecto da faixa etária, que
denomina “idade cronológica”, o relaciona a um conjunto de outros aspectos:
“a questão geracional, a moratória social e a moratória vital” (CAMPOS; BAR-
BALHO, 2011, p. 1). Desta forma, além da questão cronológica (faixa etária)
importam também para compreender ou para conceituar a juventude, segundo
Margulis e Urresti: 1) situar a herança cultural e as formas de pensar, sentir e
agir de cada contexto histórico particular, ou seja, de cada geração de jovens; 2)
considerar a “moratória social”, ou seja, o período em que se adia ou se posterga
a entrada nas responsabilidades da vida adulta, que varia segundo as classes
sociais; 3) e pensar a juventude como um período em que há um sentimen-
to de distância de questões como a morte, velhice e doenças, caracterizando
uma “moratória vital” que produz a sensação de invulnerabilidade e segurança
(CAMPOS; BARBALHO, 2011, p. 3).
Outra perspectiva importante para pensar a juventude é sua representação e
ação no campo político, social e cultural. Embora mundialmente a população de
adolescentes e jovens, entre 10 e 24 anos, corresponda a 28% da população mun-
dial e, segundo dados do censo do IBGE de 2010, tenhamos no Brasil mais de 51
milhões de jovens com idade entre 15 e 24 anos, equivalente a 27% da população
brasileira,3 é possível compreender a juventude como uma “potência minoritária”.

Compreender os jovens como potências minoritárias é entender que o seu


devir apresenta-se como uma linha de fuga, numa sociedade modelada pe-
los valores daquilo que se estabelece como “adulto”, “maduro” – em especial,
se esse devir comunga com outros, como o negro, o feminino, o homos-
sexual, além de questões de classe – as diferenças entre as juventudes das
quais fala Bourdieu (BARBALHO, 2006, p.9-10).
3
PORTAL BRASIL. Cidadania e Justiça: Juventude é tema do Dia Mundial da População
2014. [on line] . 22/07/2014, Disponível em: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justi-
ca/2014/07/juventude-e-tema-do-dia-mundial-da-populacao-2014 Acesso em 15 dez 2014.

45
Nessa perspectiva, o conceito de juventude é também um conceito cultural
que nos tempos recentes tem se constituído como uma forma de resistência e de
contra afirmação de valores hegemônicos. É possível perceber, historicamente,
que diferentes grupos e tribos juvenis foram se configurando, em cada contexto
geracional e de moratória social e vital, constituindo identidades e espaços de
luta simbólica e efetiva, garantindo aos movimentos juvenis a existência como
culturas juvenis minoritárias ou, em certa medida, subalternas, como explica
Caccia-Bava:

A rebeldia juvenil pode ser identificada nos anos cinquenta, do século pas-
sado: “as culturas juvenis apareceram, desde a segunda guerra mundial,
como [manifestação de] rebeldes em defesa da inovação”. Já nos anos no-
venta em diante tornaram-se fontes de resistência à globalização, integran-
do-se aos movimentos antiglobalização. Tanto uma como outra se associam
à condição de subalternidade da maioria da juventude nos países latino-a-
mericanos. Nesse sentido, a noção de culturas juvenis pode ser reconhe-
cida, dominantemente, como culturas subalternas, uma vez que os temas
relacionados às manifestações dos jovens são ainda periféricos, do ponto
de vista político nacionais ou público estatais hegemônicos. Na tradição
gramsciana estas são consideradas como as culturas dos setores dominados
(CACCIA-BAVA, 2004, p. 45).

Uma dimensão da politização das minorias, no tensionamento com os mo-


delos hegemônicos, é a disputa simbólica pelo direito ao uso do próprio corpo.
A rebeldia juvenil também se manifestou através do corpo, de diferentes for-
mas, em cada momento histórico nos últimos 60 anos. Abramovay (2004, p. 68)
destaca a iniciação sexual como um ritual forte na vida de indivíduos e grupos
sociais, “pois é normatizada de acordo com parâmetros sobre a juventude, ciclo
privilegiado na simbologia de consumo, mitificada por meio da valorização do
corpo e da saúde perfeita”. Tal valorização, explica a autora com base em Fou-
cault, representaria o controle exercido de maneira sutil sobre os corpos e a
sexualidade.
A sexualidade envolve uma dimensão importante na vida de mulheres e ho-
mens, nas diferentes etapas da vida. Muito mais do que prática sexual, expressa
pelo coito, a sexualidade possui aspectos amplos, que envolvem desejos, satis-
fação, afetividade, sentimentos de prazer. A partir deste enfoque, a sexualida-
de influencia as manifestações humanas em seu ciclo de vida, do nascimento à
morte (VITIELLO, 1997). A sexualidade, como formação cultural, também é
uma prática de sociabilidade e construção de identidades.

46
A cultura delimita alguns percursos identitários para diferentes grupos. E o
jovem, gregário por definição, encontra e constrói novos papéis por meio da
socialização com seus pares, exercendo, pela sexualidade, uma forma prepon-
derante de sociabilidade e de construção da identidade. A identidade se vai
delineando e redefinindo em processos dialéticos em vários encontros com
o outro, quando são confrontados valores, crenças, emoções (ABRAMOVAY,
2004, p. 69).

No contexto da “moratória social”, o confronto com valores, crenças e emo-


ções se dá num processo de ambiguidade e polissemia do que significaria a ini-
ciação sexual como “rito de passagem”. Em muitos casos, a iniciação sexual pre-
coce no interstício adolescente-jovem – entre 15 e 17 anos (cf. Tab. 01) – é vista
como uma estratégia de construção de uma autonomia ou de reconhecimento
pelos pares do grupo ao qual o adolescente/jovem pertence. Paradoxalmente,
essa atitude “adulta” entra em choque com as ritualidades situadas no ambiente
de dependência econômica familiar.

Em se tratando de jovens, a iniciação sexual é socialmente percebida como


um rito de passagem, cujos contornos ainda não estão claramente defini-
dos. Passagem para quê? Considera-se que a criança é dependente de uma
cultura nucleada na família. Mas os adolescentes/jovens ao se iniciarem na
sexualidade, passam a ser considerados, pelo menos nesse aspecto, como
adultos. O jovem vive a ambiguidade de ser então sexualmente adulto e
em situações de dependência nas dimensões econômicas e familiares, entre
outras (ABRAMOVAY, 2004, p. 69).

47
TABELA 01 – Média de idade da primeira relação sexual dos alunos do ensino
fundamental e médio, por sexo, segundo indicação dos alunos e capitais de
Unidades da Federação – 2000

Média de idade da primeira


relação sexual
Capital
Sexo
Masculino Feminino
Belém 14,1 16,0
Cuiabá 13,9 15,7
Distrito Federal 14,2 15,7
Florianópolis 15,5 15,5
Fortaleza 14,3 15,8
Goiânia 14,4 15,7
Maceió 14,2 15,4
Manaus 13,9 15,1
Porto Alegre 14,1 15,0
Recife 14,2 15,6
Rio de Janeiro 14,4 15,2
Salvador 13,9 15,6
São Paulo 14,1 15,2
Vitória 13,4 15,6

Fonte: ABRAMOVAY, 2004, p. 70 – Dados da Avaliação das Ações de Prevenção de


DST/Aids e Uso Indevido de Drogas nas Escolas, UNESCO, 2001.

Notas da autora: Foi perguntado aos alunos: Você tinha quantos anos quando transou
pela primeira vez?

48
Temos assim um contexto de “moratória social” em que a iniciação sexual
precoce se caracteriza como afirmação/descoberta de si para jovens das gerações
contemporâneas. Cuja “moratória vital” de se crer “invulnerável” é reforçada pelo
distanciamento dos modelos de juventude das gerações que viram seus ídolos
morrerem por causa da Aids.4 Paradoxalmente esse contexto e suas relações com-
plexas podem ter sido um dos fatores do aumento da incidência da Aids entre
jovens. Segundo o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério
da Saúde, o Brasil registrou 686.478 casos de aids de 1980 até junho de 2013. So-
mente no ano de 2012 houve notificação de 39.185 casos da doença. Vale destacar
que a taxa de incidência de aids no país foi de 20,2 casos por 100 mil habitantes.
Os dados do Ministério da Saúde apontam que entre 2003 e 2012 houve queda
da taxa de incidência no Sudeste (de 21 para 20,1 casos por 100 mil habitantes),
sendo que nas demais regiões do país houve um crescimento. No Nordeste, por
exemplo, a taxa passou de 7,5 em 2010, para 13,9 em 2011 e 14,8 em 2012.
Como sintetiza o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, há mais
casos entre homens do que entre mulheres, mas numa razão muito menor do que
em 1989, que chegava a cerca de 6 casos no sexo masculino para cada 1 caso no
sexo feminino. Os dados de 2012, apontavam que essa relação era de somente 1,7
caso em homens para cada 1 em mulheres. Entre 35 e 39 anos de idade, é a faixa
em que a aids é mais incidente em homens e mulheres, 56,1 e 30,3/100.000 hab.,
respectivamente (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013).
No período que vai de 2002 a 2006, no Brasil, observou-se diminuição na
taxa de detecção de aids em jovens, de 9,8 para 7,7/100.000 habitantes. Contudo,
desde 2007 essa taxa não para de subir, tendo atingido o valor de 11,8/100.000
habitantes em 2012. Os dados apontam que nos últimos dez anos, apresenta-se
uma tendência de aumento na taxa de detecção em jovens no Brasil com exce-
ção da região Sul, que reduziu aproximadamente 12,7%. No aumento da detec-
ção destacam-se as regiões Norte e Nordeste, cujos índices cresceram a 111,0%
e 72,3% respectivamente, na comparação de 2003 com o ano de 2012. Quanto à
forma de transmissão entre os maiores de 13 anos de idade, prevalece a sexual.
Portanto, o aspecto do relatório do Ministério da Saúde que nos chamou a aten-
ção – e é uma das justificativas da investigação que estamos realizando sobre
os usos e apropriações da publicidade sobre prevenção das DST/Aids – foi o
seguinte: “Em relação aos jovens, os dados apontam que, embora eles tenham
elevado conhecimento sobre prevenção da aids e outras doenças sexualmente
transmissíveis, há tendência de crescimento do HIV”.5
4
Cf. CORREIA JR., M. AIDS: o mal da diluição. Revista Planeta, ed. 475, Abril de
2012, disponível em: <www.terra.com.br/revistaplaneta/edicoes/475/artigo25566
5-1.htm>, acesso em 28 out 2012.
5
Vale destacar que esta observação é de 2012, publicada no site do Departamento de

49
2. Publicidade e Propaganda e representação da Aids

Em 1998, a Campanha do Dia Mundial de Luta Contra Aids teve como foco
a juventude, com o tema “A força da mudança: com os jovens em campanha
contra a aids”6. Desde os anos 1980, o jornalismo foi um dos agentes da constru-
ção de diversas representações sobre a Aids (FAUSTO NETO, 1999). Portanto,
os referentes da cultura midiática atuaram profundamente na construção de re-
presentações e metáforas sobre a Aids.
Um exemplo a ser destacado é a pesquisa de Camargo (1998) que analisou
os produtos de um concurso de curta-metragem do Centre Régional d’Informa-
tion et de Prévention du SIDA (CRIPS) e da televisão francesa, em comemo-
ração ao dia mundial de luta contra a Aids de 1992. Com tema “3000 roteiros
contra o vírus”, o concurso pretendia escolher os 30 melhores scripts para serem
realizados e veiculados na TV. O foco eram os jovens com menos de 21 anos.
Camargo (1998) analisou os 30 vídeos elegidos, partindo de uma análise preli-
minar com 758 desses. Essa análise preliminar assinalou que mais da metade
dos jovens estudantes tinha como referência o preservativo. E um entre cinco
produções tinha como linguagem o formato de “spot” publicitário. No conteú-
do dos roteiros foram identificadas conotações com relação à aids a partir de
quatro metáforas: “a militar, a da catástrofe (peste), a jurídica (justiça penal) e
a ecológica (poluição)” (CAMARGO, 1998, p. 157-163). As metáforas militares
(“luta”, “combate” etc.), as metáforas que trazem a representação da aids como
peste ou como algo que contamina/polui o ambiente foram problematizadas
por Sontag (2007), tendo como base as informações produzidas/reproduzidas
no âmbito das mídias massivas.
No Brasil, as ações de publicidade e de propaganda se confundem. A publi-
cidade seria a informação tornada pública sobre produtos e serviços de consu-
mo, enquanto que a propaganda daria conta da difusão de ideias, ideologias,
doutrinas, políticas e valores no seio do corpo social (TRINDADE, 2013). Com
base nas reflexões de Ivan Santo Barbosa, Trindade (2013) demonstra como no
caso brasileiro há uma sinonímia entre os termos publicidade e propaganda. “A
propaganda se contaminou das estratégias de comunicação promocional para
DST, Aids e Hepatites Virais, com base no Boletim Epidemiológico de 2012 (Cf. http://
www.aids.gov.br/pagina/aids-no-brasil). Portanto, o Boletim de 2013 só vem a reforçar
esta percepção.
6
Cf. portal do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais - Campanhas. Disponível
em <http://www.aids.gov.br/pagina/campanhas?page=6> Acesso em 27 nov 2014.

50
difusão de seus propósitos, portanto a propaganda se contaminou de publici-
dade. Daí a sinonímia no nosso contexto cultural” (TRINDADE, 2013, p. 51).
Tal confusão fez com que as campanhas de prevenção da Aids financiadas
com dinheiro público tivessem o mesmo tratamento que um produto ou servi-
ço do mercado. Como lógica discursiva, o medo ou risco de não se estabelecer
um contrato de leitura com os consumidores de informação leva a publicidade
profissional a sempre apostar em códigos já reconhecidos pelos públicos, recor-
rendo sempre à redundância e à remissão a padrões culturais já normatizados
ou consolidados no senso comum. Nas campanhas financiadas por governos e
instituições que atuam no combate à aids, cujo foco é o interesse público, muitas
vezes retomam práticas focadas em textos que a cultura midiática já produzira
como referência, portanto como intertextualidade. Podemos citar como exem-
plo do uso frequente da forma imperativa (“use caminha”; “previna-se”), da me-
táfora da “luta contra aids” ou o uso clichê de imagens escurecidas ou com tom
sombrio ao representar alguém como soropositivo.7
Percebemos nos casos investigados por Camargo (1998) a apropriação da
gramática da publicidade por adolescentes e jovens ao reproduzirem em seus
roteiros referências da própria cultura midiática. “A mediatização e a medica-
lização da aids fortaleceram o espaço da propaganda como lugar privilegiado
para se falar dela. Na propaganda, temos uma fala ao mesmo tempo coletiva e
anônima sobre esta epidemia” (CAMARGO, 1998, p. 166). Os roteiros desen-
volvidos pelos jovens para o concurso revelam visões de ordem moral sobre a
relação sexual ao abordar o uso do preservativo. As imagens dos “spots publici-
tários” representam o ato sexual como “um esporte perigoso ou violento: uma
escalada, uma corrida de moto ou de carro, um duelo típico do ‘faroeste’, uma
perseguição policial ou um suicídio” (CAMARGO, 1998, p. 167). O preserva-
tivo é concebido como capacete, colete à prova de balas, pistola do “cowboy”,
luvas de box ou rede de proteção contra quedas. Assim, é possível inferir que
as representações que fazem parte do repertório da cultura midiática são reite-
radas tanto na publicidade profissional desenvolvidas por agências, com finan-
ciamento de governos e organizações que atuam no combate à aids, como nesse
exercício de apropriação da gramática da publicidade por adolescentes e jovens
analisado por Camargo.
7
É preciso deixar claro que em vários anos as campanhas de prevenção da aids no Brasil,
durante o carnaval, apelaram para representações bem humoradas a exemplo do “Car-
naval do peru” (1997) ou “Pirata da perna de pau” (2005). Para conferir os vídeos de
campanhas de carnaval do Ministério da Saúde acesse: <http://www.aids.gov.br/pagina/
carnaval>.

51
Os publicitários no processo de concepção de uma nova campanha fazem
a pesquisa sobre o que já foi produzido sobre o tema. Contudo, na tentativa de
construir uma mensagem capaz de falar para o maior número de pessoas, a pro-
duzem recheada de citações e códigos já reconhecidos pelo público, que é visto
como consumidor e não como cidadão. Temos, então, a produção de um “círcu-
lo vicioso, do eterno retorno do imaginário mítico, na produção-reprodução de
significados em torno da prevenção da aids, em função das próprias condições
de produção da mensagem publicitária” (LACERDA, 2014, p. 9). O que resulta
num sistema fechado e autorreferente, no qual as imagens desenvolvidas pela
publicidade se alimentam do seu próprio sistema de produção de sentido (CA-
SAQUI, 2009). O processo de produção de mensagens publicitárias se torna
um contínuo exercício de bricolagem, como um patchwork (CARRASCOZA,
2005). “Os ‘criativos’ atuam cortando, associando, unindo e, consequentemente,
editando informações que encontram no repertório cultural da sociedade. A
bricolagem, assim como o pensamento mítico, é a operação intelectual por ex-
celência da publicidade” (CARRASCOZA, 2005, p. 62).
A produção de representações caracteriza as interações humanas (MOSCO-
VICI, 2007, p. 40). Ou seja, ocorrendo entre duas pessoas ou entre grupos, as
interações sempre vão pressupor representações. Nós compreendemos como os
processos coletivos atuam nos comportamentos individuais através das repre-
sentações manifestadas nas interações. Segundo Moscovici (2007, p. 40-41), há
uma “materialidade” das representações e o que interessa é observar como se
constrói sua autonomia em relação à consciência individual e do grupo, no de-
curso da comunicação e da cooperação. Um indivíduo, segundo Moscovici, não
cria representações de forma isolada.

Uma vez criadas [as representações], contudo, elas adquirem uma vida pró-
pria, circulam, se encontram, se atraem e se repelem e dão oportunidade
ao nascimento de novas representações, enquanto velhas representações
morrem. Como consequência disso, para se compreender e explicar uma
representação, é necessário começar com aquela, ou aquelas, das quais ela
nasceu (MOSCOVICI, 2007, p. 41).

Desta forma, podemos afirmar que a cultura midiática, através dos publicitá-
rios, é um dos agentes do processo de produção e reprodução de representações
sociais, assim como pedagogos, cientistas, religiosos etc. Entre as formas de re-
presentação social da aids mais comuns estão as que a representam como a “mor-
te” inevitável ou aquelas focadas nas formas de contágio e prevenção (JODELET,
1998; SONTAG, 2007). O uso dessas representações já amplamente reconheci-

52
das não garante que os resultados ambicionados pelos organismos de saúde ve-
nham a ser obtidos. O próprio Ministério da Saúde já tem essa percepção: “Em
relação aos jovens, os dados apontam que, embora eles tenham elevado conhe-
cimento sobre prevenção da Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis,
há tendência de crescimento do HIV”.8 Ou seja, o ter acesso à informação não
está diretamente ligado à mudança de atitude. No final dos anos 1990, percepção
semelhante à do Ministério da Saúde – de que o conhecimento necessariamente
não se materializa em atitudes de prevenção – já havia sido apontada em inves-
tigações desenvolvidas por Carvalho (1998), Tura (1998) e Madeira (1998). O
medo se torna real e concreto: “apesar de conhecer e afirmar a necessidade do
preservativo, o sujeito o rejeita na prática. Nenhum dos sujeitos entrevistados
consegue sustentar, no desenrolar dos discursos, que usa o preservativo nas rela-
ções sexuais com os que considera como seus iguais” (MADEIRA, 1998, p. 72).
Em outra fase da pesquisa (LACERDA et al, 2014; LACERDA, 2014), iden-
tificamos e caracterizamos um conjunto de materiais audiovisuais e imagens de
campanhas de prevenção das DST/Aids veiculadas pelo Ministério da Saúde
em 2013 e em 2014. Foram avaliados quatro vídeos e seis imagens com con-
teúdo relacionados diretamente às metáforas sobre a aids (CAMARGO, 1998;
SONTAG, 2007). Percebemos uma transição das representações sociais sobre a
aids. As representações sociais baseadas em metáforas da doença como “inva-
são” do organismo humano e da “morte” vem perdendo lugar nas campanhas
governamentais. Eram representações corroboradas pelas sociedades médicas,
pela publicidade, pela imprensa, como atores da cultura midiática. Tais repre-
sentações reforçam imagens do combate, guerra ou defesa quando tratam de
enfermidades (SONTAG, 2007).

É possível que novos lugares de interlocução venham a ser construídos, a


partir de representações sociais pautadas em signos situados na dimensão
do afeto, da solidariedade, do autocuidado. Contudo, a publicidade gover-
namental sobre prevenção das DST/Aids ainda é carente de representações
voltadas especificamente para o público adolescente e jovem como também
seus contextos situacionais foram pouco explorados. Para uma cidadania
comunicacional plena é preciso ampliar a representação dos diversos su-
jeitos que protagonizam as situações de vulnerabilidade social em relação à
prevenção das DST/Aids. Percebemos que tal caminho começa a ser traça-
do (LACERDA et al, 2014, s.p.).
8
Informação publicada no site do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais em
2014, com base no Boletim Epidemiológico de 2012 e 2013 (Cf. http://www.aids.gov.br/
pagina/aids-no-brasil).

53
3. Análise da campanha de prevenção das Aids do Carnaval 2015

A campanha de prevenção da aids para o Carnaval 2015 é uma continuidade


da proposta iniciada em 2014, no Dia Mundial de Luta contra Aids, comemora-
do em 1° de dezembro. Depois de analisarmos os materiais produzidos em 2013
(LACERDA et al, 2014) e em 2014 (LACERDA, 2014), detivemo-nos especifi-
camente na campanha do carnaval de 2015. Em 2014, houve uma mudança em
relação ao manejo clínico do HIV/Aids na tentativa de motivar as pessoas a bus-
carem o diagnóstico antecipadamente e já iniciar o tratamento antirretroviral.
No manejo clínico anterior, quando uma pessoa era diagnosticada soropositiva,
dependia do nível da carga viral em seu organismo para iniciar o tratamento. A
partir de agora, o tratamento é iniciado com qualquer carga viral. O incentivo a
fazer o teste e tratar tem como enfoque buscar a adesão ao tratamento precoce.
O objetivo é “aumentar para 90% a proporção de pessoas que vivem com o HIV
a conhecerem seu diagnóstico”, justifica o Departamento de IST, Aids e Hepati-
tes Virais do Ministério da Saúde.
Foi desenvolvido para o carnaval 2015 um VT de 30’, com tema central
“#PARTIUTESTE”, com inspiração nas redes sociais digitais como forma de
conseguir a adesão do público jovem, além de quatro cartazes, um folder e um
spot para rádio.9 Para efeito deste artigo, nos detivemos na análise da peça cen-
tral da campanha, o VT de 30’Campanha de Carnaval 2015 “#PARTIUTESTE”.
O VT da campanha foi descrito e analisado a partir da proposta de análise
de imagens em movimento (ROSE, 2003). A análise centrou-se na proposta de
identificar e interpretar os tipos de metáforas sobre a Aids (SONTAG, 2007)
presentes tanto nas campanhas audiovisuais como nas impressas, tendo em vis-
ta estabelecer os “lugares de interlocução” ofertados (ARAJÚJO; CARDOSO,
2007). O lugar de interlocução diz respeito ao “lugar que cada interlocutor ocu-
pa no momento mesmo da comunicação” (ARAÚJO; CARDOSO, 2007, p. 68).
No presente artigo, vamos caracterizar o possível lugar de fala em que é posicio-
nado o jovem como interlocutor privilegiado da Campanha de Prevenção de-
senvolvida para o Carnaval 2015, pelo Ministério da Saúde: “#PARTIUTESTE”.
Adaptamos da metodologia de “análise de imagens em movimento” de
Rose (2002) para a descrição dos vídeos. A metodologia apresenta o processo
de transcrição das imagens em duas dimensões: uma “visual”, em que cabe a
descrição dos planos e elementos da sequencia de imagens; e uma “dimensão
9
Confira todos os produtos da campanha no endereço <hƩp://www.aids.gov.br/cam-
panhas/2015/57625 Acesso em 28 jan2015.

54
verbal”, em que são transcritas as falas presentes no audiovisual. Com base nas
duas dimensões desenvolvidas por Rose (2002), fizemos uma adaptação ao mo-
delo ao introduzir uma “dimensão sonora”, pois as vinhetas e sons do VT são
fundamentais para contextualizar, situar as ambiências e dar verossimilhança
aos spots publicitários. Decidimos não usar códigos de câmera, como faz Rose,
mas fazer a descrição de cada corte de câmera de forma que possa ser explicita-
do o tipo de plano. Procuramos desenvolver uma interpretação que articulasse
as três dimensões, mas sem necessariamente fazer uma análise plano a plano.
Portanto, trata-se de um processo de “simplificação” da metodologia, pois reduz
à forma textual todo um conjunto de signos sonoros e imagéticos. Todavia, ad-
vertimos que se trata de um exercício de interpretação, logo é um exercício de
translação, de construção de novas possíveis metáforas, pois “não há uma leitu-
ra perfeita do texto” (ROSE, 2002, p. 362), mas são leituras possíveis e passíveis
do crivo dos leitores deste artigo, sendo válida a crítica e o julgamento sobre
nosso percurso metodológico.
Para analisar planos de imagem do vídeo associamos às dimensões visual,
verbal e sonora a proposta de análise de imagens de Penn (2002). Com base no
pensamento de Roland Barthes, a pesquisadora explora os níveis de significa-
ção – na relação significante-significado – como denotação, conotação e mito.
O mito, a partir de Barthes, é definido pela autora como “meio pelo qual uma
cultura naturaliza, ou torna invisível suas próprias normas e ideologias” (PENN,
2002, p. 324). A descrição e análise partem do nível denotativo, ou referencial,
dos signos linguísticos e imagens, baseados no sentido do senso comum. É o
tipo de significado ao qual todos reconhecem independentemente da necessida-
de de estabelecer outras relações intertextuais. Procuramos identificar e carac-
terizar descritivamente cada um dos signos presentes no enquadramento. Num
segundo momento, desenvolvemos uma análise focada nos níveis mais altos de
significação, conotativos. Isso quer dizer que levamos em conta os processos as-
sociativos entre os signos, os processos de intertextualidade, nos quais um signo
tem a probabilidade de gerar novos signos, de gerar novos sentidos. Como pon-
to de partida, nosso interesse é o de analisar aquilo que é permitido relacionar e
inferir da textualidade denotativa, em que um signo passa a ser o significante de
um novo signo. A polissemia e a semiose infinita dos signos nos permite afirmar
que a nossa interpretação das imagens é uma entre tantas outras prováveis.10
10
Para efeitos deste texto, as interpretações de imagens e vídeos tiveram que ser sinteti-
zadas para cumprir os limites de texto exigidos na edição do livro.

55
TABELA 2 – Vídeo Campanha Carnaval 2015 “#PARTIUTESTE”

Dimensão Visual Dimensão Dimensão


Verbal sonora
Pessoas brincando no carnaval de rua, O carnaval Som de bateria de
que lembra o das ruas do Recife e Olin- está aí. carnaval e gritos de
da. Roupas coloridas. Dia ensolarado. alegria.
Balões coloridos. Confetes e serpenƟnas.
Câmera faz movimento da direita para es- Voz do narrador
querda, várias pessoas passam na frente,
dançando sozinhas ou em grupo.
Em um camarim com figurinos de carna- É hora de Barulho de corƟna
val, uma figura feminina abre o trocador testar... abrindo.
e se apresenta fantasiada com vesƟdo la-
ranja e plumas verdes. Câmera fecha em Voz do narrador
primeiro plano e a personagem sorri.
Mesmo trocado, agora num plano mais fe- de brincar... Barulho de corƟna
chado, aparece uma figura feminina com abrindo.
máscara de pierrot, com largo sorriso.
Voz do narrador
Num plano de conjunto do camarim, uma de experimen- Barulho de corƟna
terceira figura feminina de vesƟdo lilás e tar. abrindo.
plumas brancas abre o trocador e apare-
ce de corpo inteiro com braços abertos, Voz do narrador
libertando-se do trocador, e sorrindo.
Um casal jovem em primeiro plano focan- Mas com mui- Barulho de batucada
do os rostos, a brincar carnaval na rua, de ta responsabi- de carnaval.
abadá. lidade! [“Use
Corta para um rapaz de barba e também camisinha”] Voz da personagem.
de abadá, na rua, que ergue uma cartela
de camisinhas e fala, encarando a câme-
ra. Ao fundo, as pessoas pulando carna-
val. Aparece escrito na cor branca, em
caixa alta, sob o queixo do rapaz que fala,
a seguinte frase “use camisinha”. A pala-
vra camisinha num corpo de letra maior e
com três raiados de cada lado.

56
Imagem mostra close num braço tocando Faça o teste de Som de madeira es-
violão, próximo a uma fogueira. É noite. HIV... talando em fogueira.

Rapaz branco com cavanhaque e bigode,


... e vá para Voz da personagem.
numa roda ao redor da fogueira, volta-se
para a câmera e fala. Ao fundo há quatro o carnaval se
outras pessoas sentadas e com imagem conhecendo
desfocada, a primeira delas uma mulher melhor.
loira.

Novo plano mostra o mesmo rapaz ao


lado de outro rapaz negro. Os dois estão
sentados na areia e cruzam os olhares,
com um leve sorriso correspondido. O
rapaz negro depois volta seu rosto em
direção à fogueira, com um sorriso largo.

Carnaval de rua, durante a noite, um gru- ParƟu teste! Som de batucada de


po de jovens faz uma selfie. A imagem [#PARTIUTESTE] carnaval.
corta como se passasse a ser o plano da
selfie. Eles gritam juntos e a frase #PAR-
Som de todos os
TIUTESTE surge na tela, sendo a hastag e
a palavra “parƟu” na cor branca e a pala- membros do grupo
vra “teste” com letras coloridas amarelo, gritando, em coro:
verde, laranja, azul e rosa, ao redor da “ParƟuTeste!”.
palavra confetes nas mesmas cores. No
grupo, um jovem branco, um jovem ne-
gro, uma jovem negra, uma jovem branca
e uma jovem com traços orientais.

Numa unidade de saúde, um plano de Para se pre- Voz do narrador


conjunto em que o mesmo jovem bran- venir contra o
co de barba que estava no grupo da sel- HIV, o vírus da
fie, no carnaval de rua, aparece fazendo Aids, use ca-
Música de fundo de
o teste de HIV, com uma profissional de misinha e faça
baƟda de escola de
saúde no contraplano. Nas costas da pro- o teste.
samba.
fissional de saúde surge o texto em caixa
alta, na cor branca: “Faça o teste em uma
unidade do SUS”.

57
Ele passa para o contraplano e a profis- Se der posiƟ-
sional de saúde fica visível para a câme- vo, comece já
ra, os dois estão conversando. É como se o tratamento.
ela esƟvesse lhe aconselhando ou dando
informações. Ele assente com a cabeça.
Nas costas do rapaz surge o texto em cai-
xa alta e na cor branca: “É rápido, gratui-
to, seguro e sigiloso”.

Novo plano com o mesmo rapaz nos


corredores da unidade de saúde. Fundo
branco com relógio, painel de informa-
ções, bebedouro e janela. Aparece em
letra branca, em caixa alta, a frase “Trata-
mento Gratuito no SUS”.

Ele caminha e a câmera o acompanha


até encontrar o colega negro que esta-
va também no carnaval noturno. Eles se
cumprimentam com um toque nas costas
e o colega segue para fazer o teste. Ele se
senta e ao seu lado está a colega branca
que também estava no carnaval à noite.
Eles conversam.
Imagem corta para uma mulher girando Se conhecen- Sobe música de fun-
e dançando num ensaio de bloco de car- do melhor, do de baƟda de es-
naval. você vai seguir cola de samba, até
em frente, se ouvir um breque
testando o da bateria.
melhor da
vida.
Surge um estandarte de bloco de car- Ministério da Voz do Narrador.
naval, nele está escrito “#PARTIUTESTE. Saúde. Gover-
Imagem congela. Ao fundo, desfocados, no Federal
uma escola de samba e passistas.
[#PARTIUTESTE]

FONTE: Campanha de Carnaval 2015


[http://www.aids.gov.br/campanhas/2015/57625].

58
Na análise do ano de 2013 (LACERDA et al, 2014)., a campanha de preven-
ção da Aids, no carnaval, tinha como foco o autocuidado, não mais represen-
tando a aids como uma doença fatal, mas como uma doença crônica. A propa-
ganda se afasta da metáfora da condenação prévia à morte iminente – full-blown
(SONTAG, 2007), mas continua a representar a pessoa soropositiva numa si-
tuação de penumbra, de escuridão. Não há uma ênfase para os jovens na faixa
abaixo dos 20 anos. A centralidade da prevenção está no uso da camisinha. A
palavra-chave é “use camisinha”.
Na campanha de prevenção da aids veiculada no carnaval de 2014 (LACER-
DA, 2014) temos dois VTs com tema central “Onde tem festa, tem que ter ca-
misinha”. É época de copa do mundo e o Ministério da Saúde decidiu fazer uma
campanha que pudesse valer para todo o ano. São representadas diversas festas
e ritmos de vários lugares do Brasil, numa perspectiva multicultural e de diver-
sidade sexual. Vários tipos são representados nas situações, entre eles os jovens,
principalmente na balada que abre o VT. O segundo vídeo faz uma metáfora
sobre sempre estar preparado para qualquer situação, através da vestimenta,
em comparação com a ideia de sempre estar protegido, por ter uma camisinha
sempre à mão. A linguagem é a do humor. Neste segundo vídeo, a personagem
do sexo masculino tem aparência de uma pessoa por volta dos 30 anos. O foco
também é a camisinha e a metáfora do risco do contágio (SONTAG, 2007). O
apelo é mais generalizado, não há uma estratégia de interlocução direta com a
juventude e suas questões. No geral, os VTs são ainda protagonizados pela figu-
ra masculina e preponderantemente heterossexual, bem acima da faixa etária e
dos dilemas enfrentados pelo jovem-jovem (até 24 anos). As situações de festa
ainda remetem aos formatos clássicos das festas regionais, um pouco distante
das novas gerações. A representação da balada se aproxima mais da ideia de
baile de formatura.
Com foco na testagem e no tratamento precoce, o VT do carnaval de 2015
(Tabela 2) já inicia anunciando um carnaval que está aí para se “testar”. Apresen-
ta um carnaval de rua com personagens masculinos e femininos cuja aparência
estaria mais próxima dos jovens até 24 anos, de várias etnias, e também apresen-
tando figuras femininas alternadas com perfis mais transgênero, que saem do
trocador. O jogo com as palavras “testar”, “brincar” e “experimentar” se aproxi-
mam mais do universo discursivo da juventude, que busca testar os seus limites
como forma de autoconhecimento e construção identitária. O jogo denotativo
e conotativo dessas três palavras joga com a ambiguidade da prevenção e da
administração dos riscos, que caracterizam o modelo de testagem rápida do
HIV e a administração precoce dos antirretrovirais necessários ao tratamento

59
da aids. É um jovem-adulto branco quem anuncia que a “brincadeira” tem que
ter “muita responsabilidade”, aproximando ideias contrárias e jogando com os
paradoxos da comunicação (WATZLAWICK et al, 2000), embora pudesse tam-
bém ser interpretado como um discurso, de certa forma, moralista, que caberia
na representação social à figura hegemônica de um homem, branco e hétero.
Portanto, a reiteração de um recurso recorrente na publicidade, reforçar repre-
sentações hegemônicas.
O carnaval de rua, o carnaval dos clubes, dos trios/abadás e das escolas de
samba são representados nas músicas de fundo, nos figurinos e nos ambientes
externos/internos, diurnos/noturnos da cenarização. Nesta campanha, todos
são jovens aparentemente entre 20 e 29 anos. Portanto, jovem falando para jo-
vem, na perspectiva da “dimensão geracional”, de Margulis e Urresti (CAMPOS;
BARBALHO, 2011). Há a inclusão dos diversos gêneros e a homossexualidade
masculina é sutilmente ressaltada na troca de olhares entre um rapaz branco e
um negro, ao redor de uma fogueira, na praia, quando a personagem fala “vá
para o carnaval se conhecendo melhor”, ou seja, tendo mais clareza sobre seus
desejos, sobre antecipar-se aos riscos, com a testagem. Desta forma, fazer o teste
é reconhecer-se vulnerável. O grupo de jovens brincando no carnaval de rua
noturno, fazendo “selfies” e destacando a hastag #PARTIUTESTE é uma ten-
tativa clara de diálogo com as novas gerações conectadas nas redes sociais. Ao
mesmo tempo, temos uma representação da “responsabilidade de si”, em que
“fazer o teste” poderia representar uma postura “adulta”, de “maturidade”? Por-
tanto, rompendo a “moratória social”? Os jovens que estão no carnaval de rua se
encontram, no dia seguinte, na unidade de saúde, para fazer a testagem. Nesta
campanha não há a discursos no modo imperativo, do tipo “Use camisinha!” ou
“Faça o teste!”, como em 2013 e 2014. O tom de voz e a representação gráfica dos
enunciados que aparecem escritos na tela buscam o lugar de fala de algum tipo
de conversa, de dica dada a alguém, não uma ordem.

4. Considerações finais

Ao finalizar este texto, somos levados a refletir sobre mudanças sutis que
surgem no VT da campanha de prevenção da aids do carnaval 2015, possibili-
tando construir, de fato, lugares de interlocução (ARAÚJO; CARDOSO, 2007)
entre a oferta da campanha e públicos juvenis.
Um primeiro ponto é que o discurso da campanha do Ministério da Saúde se
afastou da representação da fatalidade e da morte (SONTAG, 2007), portanto,

60
estabelecendo uma relação com o contexto da juventude em sua experiência de
“moratória vital”, que os distancia de pensar sobre a morte. Assim, seria possível
que o jovem colocasse em suspensão a sua “moratória vital” na atitude de fazer
o teste, de antecipar o diagnóstico, positivo ou não?
Não temos mais um discurso imperativo, que ordena o uso da camisinha ou
ordena que se faça o teste, como se fosse a relação assimétrica e complementar
entre um adulto e um jovem. O VT apresenta cenas em que os diálogos e situa-
ções se dão de jovem falando para jovem, num tom dialogal. É possível pensar
numa mudança de postura em que não se trata mais de vida ou morte, mas da
procura pelo autoconhecimento, por novas experiências, tendo como uma de
suas possibilidades a testagem e o tratamento como prevenção.

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63
Representações de crianças e jovens nas notícias: o
cenário português

Lidia Marôpo
Liliana Pacheco

A representação noticiosa de crianças e jovens tem sido objeto de atenção em


estudos académicos de inúmeros países. Se as investigações pioneiras denuncia-
vam a ausência dos mais novos nas notícias (DENNIS; SADOFF, 1976; CANE-
LA, 2006 e PONTE, 2005), trabalhos mais recentes referem que a visibilidade
mediática destes tem aumentado significativamente (PONTE; AFONSO, 2009;
HAMMARBERG, 1997; MULEIRO, 2006; TOBIN, 2004; MOELLER, 2002).
Estudos produzidos acerca da cobertura noticiosa portuguesa também ates-
tam uma significativa transformação nas últimas décadas. Embora persistam
inúmeras críticas que revelam questões problemáticas do ponto de vista dos
direitos das crianças e jovens (como reflexo do seu estatuto minoritário na so-
ciedade) e da ética jornalística (como reflexo das limitações das rotinas produ-
tivas do jornalismo e das prioridades comerciais dos media), é possível afirmar
que há um maior reconhecimento desta parcela da população e das questões
que lhes dizem diretamente respeito, ao contrário do tratamento episódico e
descontextualizado que recebiam há quatro décadas.
O trabalho pioneiro de Cristina Ponte (2005) sobre a cobertura de crian-
ças e problemáticas da infância (até 14 anos) no Diário de Notícias (DN), um
dos mais antigos jornais portugueses, afirma que no ano 1970 as notícias so-
bre crianças não tinham visibilidade expressiva. A temática não se configurava
como um problema de interesse público no país, que estava ainda sob o regime
ditatorial de Salazar, tinha baixos índices de escolaridade e elevados índices de
pobreza.
Nesse ano, apesar de numerosas, as notícias encontradas têm apenas um ou
dois parágrafos, não são assinadas e representam principalmente crianças víti-
mas de acidentes (incluindo os decorrentes do trabalho infantil), abandono ou
violência, com base em informações fornecidas por fontes policiais ou hospita-
lares, sem contextualização política ou social. Os acidentes que vitimam crianças

64
são apresentados como fatalidades, em narrativas individualizadas e melodra-
máticas. Estão ausentes dados sobre os problemas narrados ou qualquer respon-
sabilização social ou política sobre os acontecimentos.
Em outras palavras, não havia ainda o debate sobre direitos, como o acesso
à educação ou à proteção contra o trabalho infantil. PONTE (2005: 208) afirma
que o país estava distante da educação como prioridade social, sendo esta per-
cebida mais como um dever das crianças do que como um direito.
As crianças apareciam apenas de maneira residual nas primeiras páginas do
jornal. Eram os filhos de realezas e artistas famosos ou crianças representadas
enquanto símbolos nacionais (em acontecimentos cerimoniais como peregri-
nações ao santuário de Fátima ou na comemoração do aniversário de Salazar),
frequentemente utilizados para fins políticos.
Os problemas que afetam as crianças não constituem uma questão que de-
mande resposta do poder político. Neste sentido, as “soluções” são procuradas
no âmbito de campanhas de solidariedade do jornal, com vista à recolha de
donativos para diversos fins caritativos. A voz das crianças está presente apenas
residualmente, preponderantemente no papel de heróis, mas também em situa-
ções em que receberam assistência ou em que foram politicamente usadas em
benefício do regime político instituído (PONTE, 2005, p. 200).

1. Mudanças de paradigma na cobertura sobre crianças e jovens

O estudo de MARÔPO (2013) sobre outro jornal português de referência,


o Público, demonstra como a cobertura noticiosa evoluiu quase 40 anos depois,
em 2009. Foram analisadas 143 chamadas ou manchetes de primeira página e as
notícias correspondentes veiculadas no interior do periódico que abordavam te-
mas relacionados diretamente às crianças e aos jovens (0 a 18 anos). Apesar das
diferenças de metodologia e do próprio objeto de análise (O Diário de Notícias
no ano 1970 e o Público no ano 2009), uma comparação entre os dois estudos
permite inferir em linhas gerais o sentido das mudanças na cobertura sobre as
crianças no jornalismo de referência português.
Enquanto em 1970 as necessidades de assistência e proteção destas eram
vistas como questões individuais e do fórum privado, com tênue visibilidade
noticiosa (PONTE, 2005), em 2009 é possível constatar um reconhecimento
das problemáticas que envolvem crianças e jovens enquanto temas de interesse
público (MARÔPO, 2013). O próprio corpus deste estudo mais recente já de-

65
monstra uma significativa transformação: a cada 2,5 dias foram encontradas
chamadas ou manchetes na primeira página do jornal, atestando um aumento
de visibilidade e importância.
O investimento do poder público neste grupo social passa a ser fortemente
valorizado. Neste sentido, os temas da educação e saúde, geralmente apresenta-
dos com dados de contextualização e fontes de distintos setores sociais, recebem
agora atenção prioritária. Notícias com referências a questões ligadas à proteção
das crianças (abusos sexuais e maus-tratos, por exemplo) também têm presença
significativa no Público em 2009.
Por outro lado, o tratamento individualizado da infância persiste de forma
destacada, embora numa nova perspetiva. Há uma grande incidência de pe-
ças acerca de crianças alvo de preocupação ou desejo dos pais/leitores (“nossas
crianças”), onde especialistas abordam o tema infância sob o ponto de vista pri-
vado da criança a ser cuidada e protegida.
É possível constatar também uma maior atenção ao direito à privacidade em
situações potencialmente prejudiciais. Este é geralmente respeitado em casos
de jovens envolvidos em atos de delinquência, quando fontes institucionais
(escolas, ONG, hospitais...) são promotoras da informação noticiada ou quando
os pais assim o exigem.
Esta mudança de paradigma na cobertura da infância reflete transformações
em três esferas: no jornalismo, na sociedade portuguesa e no estatuto social das
crianças e jovens. No jornalismo, as transformações apontam no sentido de dar
prioridade à comunicação com o leitor em detrimento da orientação tradicional
da busca pela verdade. É a emergência de um jornalismo pós-moderno, marca-
do pela juvenilização, feminização e privatização (HARTLEY, 1998). Destaca-se
uma mudança significativa em prol de narrativas mais celebrativas e emotivas e
em detrimento da investigação e da crítica, valorizadas na cobertura noticiosa
moderna. Emergem narrativas com foco em aconselhamentos (conhecimentos
úteis), cordialidade (bons exemplos ao invés de anomalias e acidentes), esfera
privada (leitores enquanto clientes/consumidores em busca de entretenimento
e satisfação) e identidade (estilos de vida). Nesta perspetiva, ganha proeminên-
cia o que PONTE (2005) chama de “jornalismo de proximidade”, que promove
uma maior aproximação com o leitor através de sugestões para melhor educar e
proteger as “nossas” crianças.
Sobre a sociedade portuguesa, a socióloga Ana Nunes de Almeida (2000)
regista mudanças notáveis nas condições de vida das crianças nas últimas dé-
cadas. Estas são resultado das transformações no país, que consolidou a de-
mocracia, é membro da União Europeia, passou por um intenso processo de
urbanização e litoralização e é hoje considerado um país de Índice de Desen-

66
volvimento Humano (IDH) muito elevado. Portugal tem uma das mais baixas
taxas de mortalidade infantil do mundo (3,7 por cada mil em 2009), erradicou
o trabalho infantil antes considerado uma chaga e tem registado crescimento
expressivo nos índices de escolarização média da população (passou de 4,6 em
1991 para 7,4 anos em 2011)1. No entanto, dados do Eurostat apontam Portugal
como tendo o terceiro pior registo de abandono escolar (19,2% em 2013) da
União Europeia a 28, só atrás de Espanha e Malta. Nos últimos anos, o corte nas
despesas sociais, decorrente da crise económica, tem aumentado a preocupação
com os índices de pobreza infantil. Em 2012, uma em cada quatro crianças em
Portugal (24%) vivia em famílias com privação material2.
Em relação às crianças e jovens, podemos destacar a Convenção sobre os
Direitos das Crianças (CDC) como um marco fundamental na transformação
do seu estatuto de objeto de proteção para sujeitos de direitos. O documento
promulgado em 1989 pela ONU tem valor de lei no plano jurídico internacional
e recebeu aceitação política e moral quase generalizada. Este novo paradigma
promove a responsabilização política, legal e moral do Estado e da sociedade
no sentido de assegurar esses direitos. O documento inclui os chamados direi-
tos à provisão (acesso à educação, a cuidados de saúde e a uma boa qualidade
de vida), à proteção (contra a discriminação sexual, exploração comercial e a
violência) e os direitos de participação (direito a serem consultadas e ouvidas, à
liberdade de expressão e opinião e a tomar decisões em seu benefício). A aplica-
ção destes princípios ao sistema legal e às políticas públicas em Portugal levou à
promulgação da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (1999) e da Lei
Tutelar Educativa (2000)3 e à criação das Comissões de Proteção das Crianças e
Jovens em Risco (CPCJR). Esta institucionalização possibilitou uma maior dis-
ponibilização de dados e transparência dos problemas que afetam os cidadãos
mais novos da sociedade.

1
Segundo o Atlas da Educação - Contextos sociais e locais do sucesso e insucesso. Portugal,
1991-2012. Disponível em http://www.epis.pt/downloads/mentores/atlas-da-educacao.pdf.
2
Dados do relatório As Crianças e a Crise em Portugal – Vozes de Crianças, Políticas Pú-
blicas e Indicadores Sociais, publicado em 2013 pelo Comité Português para a UNICEF.
3
A LTE é aplicável aos jovens com idade entre 12 e inferior aos 16 anos que cometem
atos ilícitos. Os menores de 12 anos que cometem ilícitos estão abrangidos pela Lei de
Proteção de Crianças e Jovens em Perigo e os com idade igual ou superior a 16 e inferior
aos 21 anos estão sujeitos ao sistema penal, mas podem ser aplicadas medidas e penas
específicas ao abrigo do Regime Penal Especial para Jovens Adultos. Para mais infor-
mações sobre instrumentos reguladores portugueses e internacionais sobre a cobertura
jornalística da infância em risco social ver CARVALHO (2009).

67
A reflexão sobre estas três esferas nos ajudam a entender as notícias sobre
crianças e jovens como uma construção social, reflexo das forças sociais, econó-
micas e culturais preponderantes em cada sociedade e também das oportunida-
des e limitações que caracterizam o exercício do jornalismo. Neste sentido, se
é possível afirmar que diversas questões problemáticas apontadas por PONTE
(2005) na cobertura de crianças e jovens no Diário de Notícias em 1970 foram
superadas, outros problemas foram referidos por MARÔPO (2013) em relação
ao jornal Público em 2009.
As políticas públicas que têm este grupo como alvo, por exemplo, são abor-
dadas principalmente a partir de anúncios feitos pelo governo, enquanto a mo-
nitorização destas fica geralmente restrita aos casos em que fontes instituciona-
lizadas produzem estudos que facilitem este acompanhamento.
Por outro lado, os riscos que atingem “os filhos dos outros” tendem a ser
abordados em enquadramentos mais episódicos, marcando um tratamento di-
ferenciado para as crianças e jovens de meios socioeconómicos e culturais di-
ferentes.
Ainda persiste em alguns casos a identificação de crianças e jovens em situa-
ções potencialmente prejudiciais. Quando o jovem envolvido em atos de delin-
quência morre ou quando o delito é praticado fora do país há uma maior expo-
sição da sua identidade. O mesmo acontece quando os pais ou responsáveis não
se opõem claramente a esta identificação (numa perceção das crianças como
propriedade dos pais). Quando estes disputam judicialmente a guarda dos filhos
e ganham visibilidade noticiosa, a identificação indireta das crianças é inevitá-
vel. Além disso, é clara a dificuldade de conciliar os direitos de participação e
proteção quando crianças e jovens procuram utilizar os media como espaço de
reivindicação, ao mesmo tempo que a exposição pública pode ser uma fonte de
estigmatização e constrangimentos vários.
Outro problema destacado é o silenciamento dos jovens e principalmente
das crianças. Estes são em geral personagens sobre os quais se fala e seus
pontos de vista aparecem somente em notícias não factuais, que contam com
maior tempo de preparação. Predomina uma representação das crianças e
jovens como vítimas, recipientes das políticas governamentais ou alvo de cui-
dados. O que remete para o que a autora chama de “cidadania passiva”, onde
os adultos sobrepõem os seus pontos de vista e as crianças são silenciadas
enquanto sujeitos de interesse político e social (MARÔPO, 2013).
Estas questões problemáticas são também referidas em inúmeros estudos
portugueses que analisam a cobertura noticiosa sobre este grupo social em dife-
rentes veículos de comunicação ao longo das últimas décadas.

68
Voltando ao trabalho desenvolvido por PONTE (2005), que acompanhou a
cobertura do Diário de Notícias entre 1970 e 2000, é possível afirmar que há “di-
ferenças abissais” nas notícias neste espaço de tempo. A autora refere três está-
gios: o “proto-jornalismo” de 1970, que destacava a criança vítima do “destino”
em inúmeros acidentes; o “jornalismo moderno” nos anos 1980, de indepen-
dência e intervenção no espaço público (um rutura no entanto não consumada
nas notícias breves) e o “jornalismo pós-moderno” do final da década de 1990,
mais orientado para o leitor consumidor e os seus interesses individuais.
Por seu lado, COELHO (2009) analisou oito jornais e três revistas de infor-
mação entre 17 a 24 de Outubro de 2006 num estudo exploratório e concluiu
que a representação dos jovens está assente no estereótipo do jovem problemá-
tico. Para serem retratados de forma positiva estes têm de ter comportamentos
profissionais excecionais ou serem estrelas mediáticas (COELHO, 2009, p. 375).
Segundo diversos autores, este tratamento estigmatizante é especialmente
direcionado a jovens de minorias étnicas e/ou que vivem em situação de vulne-
rabilidade social. Carvalho e Ferreira e Serrão (2009, p. 93) afirmam que os atos
delinquentes de jovens de estratos sociais mais elevados são caracterizados por
atributos como leviandade, desvios de carácter, coisas da idade ou meras brinca-
deiras, enquanto a cor da pele e a origem social de outros jovens pode estimular
a espectacularização exacerbada.
Num outro estudo também sobre a temática da delinquência juvenil que
analisa o Público e o Correio da Manhã, de 1993 a 2003, Brites Azeredo (2007, p.
205) afirma que o destaque dado à representação de “outros” jovens de cores que
não a branca contribui para um ampliação da perceção do seu envolvimento no
fenómeno da delinquência e consequente estigmatização.
É o que aconteceu na cobertura sobre o incidente acontecido em Carcavelos
no feriado do Dia de Portugal (10 de Junho) em 2005. Frequentada habitualmente
por jovens negros da periferia, a praia popular nos arredores de Lisboa foi palco
de roubos e conflitos com a polícia, num episódio extensamente coberto e
imediatamente enquadrado nos media pelo termo “arrastão”. Para Rosa (2011),
o fenómeno revela uma assustadora predisposição para a representação leviana
destas minorias, associadas a priori a comportamentos desviantes.
Por outro lado, crianças e jovens vítimas são alvo de intensa cobertura no-
ticiosa onde a exploração sensacionalista do caso individual (especialmente no
jornalismo popular) ocupa espaço desproporcional comparativamente ao deba-
te sobre as problemáticas que suscitam (violência e negligência familiar, abuso
sexual, regulação da responsabilidade parental, entre outros) (MARÔPO, 2012).

69
Estas notícias são identificadas pelos nomes das crianças – “Caso Joana”, “Caso
Alexandra”, “Caso Esmeralda”, “Caso Maddie” –, apresentam frequentemen-
te contornos de espetacularização com derrapagens deontológicas (PONTE e
AFONSO, 2009) e suscitam preocupações quanto aos direitos de privacidade
destas (PONTE, AFONSO e PACHECO, 2007; CARVALHO e FERREIRA,
2009 e MARÔPO, 2012).
Neste sentido, Carvalho e Ferreira (2009, p. 74) concluem que há uma difi-
culdade clara na conciliação do direito ao exercício da liberdade de informação
(Constituição da República Portuguesa, Artigo 38º e Convenção sobre os Direi-
tos da Crianças, Artigo 17º) e o direito à intimidade e reserva da vida privada,
à honra e ao bom nome e reputação da criança (Artigo 16º da Convenção e 26º
da Constituição).
Além de problemas em relação aos direitos de privacidade de crianças e
jovens, diversos autores ressaltam ao longo dos anos, à semelhança do estudo
de Marôpo (2013) referido anteriormente, a ausência de referências aos direi-
tos de participação. Coelho (2009) afirma que não se reconhece o direito de
expressão dos jovens sobre problemas e situações que protagonizam ou que
os afetam. No mesmo sentido, Ponte e Afonso (2009) afirmam que os direitos
de participação estiveram claramente ausentes da agenda das notícias, assim
como da agenda pública e política de Portugal no ano de 2005.
Por outro lado, com base numa análise qualitativa sobre peças jornalísticas
veiculadas no Público no verão de 2013, Machado (2014) refere uma abertura
do jornal (ou pelo menos da sensibilidade de alguns jornalistas e editores) para
textos mais longos e não factuais (reportagem), onde os jovens assumem clara-
mente protagonismo. No mês das férias (agosto) o jornal publicou uma série de
10 reportagens intitulada “O Quarto do Adolescente”, em que jovens entre 14
e 17 anos de diversas regiões do país e de diferentes extratos socioeconómicos
falaram sobre a escola, hábitos alimentares, sexualidade, drogas, consumos cul-
turais e de media, entre outros assuntos (MACHADO, 2014, p. 55).
Este exemplo pode representar uma tendência recente de maior visibilidade
dos pontos de vista infanto-juvenis nas notícias (pelo menos no jornalismo de
referência do Público). No entanto, parece-nos uma exceção nas rotinas pro-
dutivas dos jornalistas, viável apenas em épocas de escassez de acontecimentos
com valor-notícia (nas férias de verão, como foi neste caso). A voz de crianças
e jovens dificilmente se encaixa regularmente no dia-a-dia dos jornais, já que
são escassas as possibilidades de terem um papel relevante no debate sobre os
problemas que os afetam ou de organizarem eventos com valor noticioso.

70
2. Os jovens adultos e a crise económica nos media

Uma limitação que parece mudar significativamente conforme atingem a


maioridade. Nos últimos anos constata-se um aumento da visibilidade pública
dos jovens adultos, especialmente enquanto grupo fortemente afetado pela crise
económica em Portugal e na Europa em geral. Desemprego e precariedade nas
relações de trabalho dificultam os rituais de passagem da juventude para a ida-
de adulta, já que esta pressupõe um trabalho fixo e remunerado (PAIS, 1993).
Verifica-se frequentemente uma disjunção entre as aspirações e os destinos pro-
váveis destes jovens, que em anos recentes organizaram as maiores manifesta-
ções em Portugal desde 1975 (quando o país vivia o rescaldo da Revolução dos
Cravos e iniciava a sua transição para a democracia).
Convocatórias pelo Facebook foram o ponto de partida para estes movi-
mentos de protesto, mas os media tradicionais acabaram por difundir as ações
de forma destacada, funcionando como um dispositivo essencial para legitimar
as reivindicações na agenda pública. Muito provavelmente esta mediatização
contribuiu também para o sucesso das manifestações, se tivermos em conta o
número e a diversidade de pessoas que participaram.
Conduzimos um estudo exploratório sobre peças do jornal Público (online)
durante as duas semanas das manifestações, que aconteceram a 12 de Março de
2011 e a 15 de Setembro de 2012. Pesquisamos as notícias que contivessem a
palavra “jovens”, definidos aqui como jovens adultos – entre os 18 e os 30 anos.
Encontrámos e analisámos 33 entradas, procurando perceber qual a temática,
quem é o protagonista da notícia, quais as fontes utilizadas e ainda qual o género
jornalístico.
Verificámos que, tal como o esperado, as temáticas fortemente predominan-
tes nas notícias sobre jovens (adultos) nos períodos em questão são “manifesta-
ção” e “crise”. Para além destas categorias, encontrámos ainda de forma residual
notícias sobre educação, emprego, empreendedorismo, cultura, criminalidade
e religião.
Na análise da amostra atestámos que é conferida uma grande notoriedade a
este grupo social, que conseguiu inserir a sua “marca” no espaço público como
a Geração à Rasca4.
4
“Geração à Rasca” foi o nome dado ao evento criado no Facebook e que depois foi
popularizado pelos media quando se referiam à manifestação de 12 de março de 2011.
A expressão tornou-se um símbolo da falta de perspetivas e das dificuldades enfrentadas
por essa geração.

71
Neste sentido, é possível constatar neste jornal uma sistematização dos pro-
blemas que afetam os jovens adultos. Entre estes, a dificuldade de inserção no
mercado de trabalho e as relações laborais precárias. Como consequência destes
fatores, aponta-se também um certo descrédito das famílias no investimento na
educação (que se traduz na diminuição de candidatos ao ensino superior, além
do agravamento do envelhecimento da população, da baixa natalidade e da emi-
gração (maior vaga em Portugal desde os anos 1960).
A cobertura com grande destaque no Público parece atestar que estes even-
tos superaram o carácter marginal frequentemente associado a iniciativas ju-
venis, constituindo-se como um raro exemplo de mobilização convocada por
jovens capaz de reunir as mais variadas franjas da sociedade.
Neste sentido, as principais e mais frequentes fontes de informação do jor-
nal são atores políticos, que constroem discursos sobre os problemas que os
jovens enfrentam. Estes são objeto do discurso, mas não são os principais pro-
dutores desses mesmos discursos. Em outras palavras, continua a haver uma
desigualdade entre os grupos sociais no controlo das possibilidades da ação
discursiva.
No entanto, no rescaldo da manifestação da chamada Geração à Rasca, al-
guns organizadores alcançaram uma certa notoriedade mediática e falavam ao
jornal enquanto fontes legítimas sobre o movimento. Este é o caso de João La-
brincha (atualmente cronista do P3, suplemento online vocacionado para uma
audiência mais jovem do jornal Público) e da realizadora Raquel Freire, por
exemplo.
Além disso, verificámos que o Público fez um exercício para dar voz aos
próprios jovens nos dias que antecederam a manifestação de 12 de Março, com
uma série de crónicas na primeira pessoa em que alguns jovens explicavam as
razões porque iam (ou não) participar no protesto.
No caso das peças sobre jovens empreendedores que encontrámos, são os
próprios que explicam as razões do seu sucesso, o que evidencia mais uma vez
que a desigualdade no acesso ao discurso mediático varia não só conforme a
faixa etária, mas também de acordo com outras dimensões, como a classe so-
cial, a profissão, o género, etc.

3. Conclusão

Os media cumprem funções sociais básicas de reprodução cultural, de so-


cialização e de integração social dos indivíduos, através de uma ampla oferta de

72
modelos de pensamento e de ação (PISSARRA ESTEVES, 1999). Neste sentido,
a maneira como representam crianças e jovens poderá ter efeitos nas represen-
tações que outros grupos etários fazem sobre eles e nas representações que fa-
zem de si mesmos, enquanto grupo.
Por outras palavras, importa conhecer e refletir criticamente sobre estas re-
presentações, levando em consideração o contexto mediático e social em que
são produzidas, para percebermos em que medida promovem a integração des-
te grupo social e de suas questões no espaço público.
A reflexão aqui delineada aponta para uma crescente visibilidade das crian-
ças e jovens no discurso noticioso português, assim como para um tratamento
de uma perspetiva mais pública e política das questões que os afetam. No entan-
to, os estudos produzidos no país atestam que persistem inúmeros problemas
(também frequentemente referidos em investigações produzidas sobre outros
países). Podemos classificá-los em seis grandes temáticas: 1. A representação
estereotipada das crianças como vítimas e dos jovens como um problema; 2.
A escassez de monitorização das políticas públicas direcionadas a crianças e
jovens; 3. O foco privilegiado na criança individualizada e idealizada de classes
privilegiadas; 4. A supremacia de enquadramentos personalizados e dramatiza-
dos, em detrimento de abordagens centradas nos direitos; 5. A identificação de
crianças e jovens em situações que possam causar prejuízos ao seu desenvolvi-
mento e 6. A escassez da voz de crianças e jovens.
Estes problemas remetem para as prioridades comerciais dos media e para
as limitações das rotinas profissionais dos jornalistas. Remetem também para o
estatuto minoritário destas populações, especialmente no que se refere à invi-
sibilidade dos seus pontos de vista. Este problema parece diminuir, embora so-
mente em parte, à medida que a idade dos envolvidos avança e que conseguem
implementar estratégias de discurso e ações demonstrativas (como manifesta-
ções e campanhas na Internet) para conseguir visibilidade mediática.

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75
Eixo 3.
Consumo/audiência/recepção de
produtos midiáticos por crianças e/ou
jovens
Do consumo à produção de mídia por estudantes
de escola pública em Fortaleza - Brasil1

Mauro Michel El Khouri


Luciana Lobo Miranda

1. Introdução

É visível a influência das tecnologias digitais nos modos de vida das


sociedades na contemporaneidade. O desenvolvimento tecnológico e o sur-
gimento das redes de internet vêm transformando a dinâmica social a partir
da atuação direta na atividade humana (CASTELLS, 1999). Vive-se hoje numa
cultura do ciberespaço, ou cibercultura, em que novas formas de interação so-
cial se configuram (LEMOS, 2013). Entre adolescentes e jovens da atualidade,
denominados “nativos digitais” (ALVES, 2007) ou pertencentes à geração “Y”
(VASCONCELOS et al., 2010), o modo de vida virtual tem forte incidência, já
que cresceram ambientados no mundo informatizado.
A mídia, assim como as novas tecnologias, também se encontra cada dia
mais presente na escola, afetando de forma direta o cotidiano dos jovens nas
instituições públicas e particulares de educação. Paralelamente às ações políticas
e às estratégias curriculares que orientam os usos pedagógicos das tecnologias
digitais no campo educacional2, observa-se a entrada de equipamentos eletrô-
nicos pessoais no ambiente escolar, como notebooks, tablets, e principalmente
celulares do tipo smartphone, que acompanham os jovens em momentos de es-
tudo e lazer, muitas vezes simultaneamente.

1
Trabalho parte da pesquisa: Juventudes e Mídia: Um estudo sobre consumo, apropriação
e produção de mídia por jovens estudantes de Escolas Públicas de Fortaleza. Pesquisa fi-
nanciada pelo CNPq e aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
2
O Parâmetro Curricular Nacional (PCN) brasileiro (BRASIL, 2000) estabelece como
meta a inclusão das tecnologias da comunicação e da informação na educação, de modo
que se possa incorporar seu entendimento nos processos de ensino, no trabalho e na
vida social.

77
O despertar da cibercultura e a apropriação crescente do ciberespaço ajuda
a engendrar novas formas de ser e estar no mundo. A cultura digital reconfigura
nos jovens o sentido de linguagem, lazer, sociabilidade e, portanto, subjetivida-
de, afetando também os processos de ensino e aprendizagem. Na esfera educa-
cional, sobretudo em sala de aula, a presença da cibercultura, seu dinamismo
e seus múltiplos espaços virtuais tensionam o ambiente estático e a linguagem
analógica próprios do sistema de ensino (VARGAS, 2013).
O presente estudo problematiza a incidência das mídias e das novas tecno-
logias no cotidiano de jovens, discutindo consumo, apropriação e produção de
mídia no ambiente escolar. Traz resultados de investigação concebida em duas
escolas públicas da cidade de Fortaleza, localizada no Estado do Ceará, nordeste
do Brasil, a partir de pesquisa-intervenção realizada nos anos de 2013 e 20143.
A pesquisa se fundamenta teoricamente na análise social do filósofo fran-
cês Michel Foucault (2007), que situa a emergência da escola no contexto da
sociedade disciplinar na Modernidade. Considera-se o conceito de modos de
subjetivação do autor para pensar o sujeito que se constrói historicamente a
partir de seu processo de objetivação, como efeito político das relações sociais
que envolvem poder e resistência; ampara-se em Gilles Deleuze (1992) ao con-
siderar as novas formas de controle que surgem na contemporaneidade; e se
utiliza das contribuições de Paula Sibilia (2012), que alerta para o fato de que a
escola, como tecnologia de época, necessita atualizar-se frente à nova maquina-
ria social que “invade” os muros escolares: o universo midiático, potencializado
pelo rápido desenvolvimento das Tecnologias Digitais da Informação e Comu-
nicação (TDIC).
Do ponto de vista metodológico a pesquisa-intervenção é uma proposta
de pesquisa participativa que busca investigar de forma qualitativa aspectos
sociais de grupos e coletividades (ROCHA; AGUIAR, 2003). Com base nas
contribuições da Análise Institucional Socioanalítica (LOURAU, 1993), a pes-
quisa-intervenção amplia os fundamentos teórico-metodológicos das pesqui-
sas participativas ao considerar de forma veemente a interferência do pesqui-
3
A pesquisa “Juventudes e Mídia: Um estudo sobre o consumo, apropriação e produção
de mídia por jovens estudantes de Escola Pública de Fortaleza”, da qual a presente análise
faz parte, é um desdobramento da pesquisa de base quantitativa “Adolescência e Juven-
tude Brasileira: Situações de Risco e Redes de Proteção na cidade de Fortaleza”, realizada
entre 2009 a 2011. Esta teve como objetivo traçar o perfil dos jovens estudantes de escola
pública de Fortaleza e contou com a participação de 43 escolas, nas quais foram aplica-
dos questionários em 1.140 estudantes entre 14 e 24 anos de idade, com variados temas,
tais como: educação, sexualidade, lazer, violência e drogas, dentre outros. (COLAÇO e
CORDEIRO, 2013).

78
sador em relação ao seu campo de atuação. Através das ferramentas-conceito
restituição4 e análise de implicação5 a pesquisa é concebida como um campo
de coprodução de dados, em que se privilegia o encontro singular que envolve
pesquisador, pesquisando e contexto institucional6.
A pesquisa foi realizada em duas escolas estaduais, uma profissionalizante
(pesquisada em 2013) e outra regular (2014), localizadas em bairros da periferia
da cidade. Em cada escola foi realizada uma oficina de vídeo com jovens estu-
dantes de ensino médio, com o tema juventude e mídia, além de observações de
campo, conversas informais com educadores e restituições coletivas. As ofici-
nas, que contaram com encontros presenciais (em média, quatro) filmados, com
carga horária de 16h e formando grupos de 21 jovens (escola profissionalizante)
e de 10 estudantes mais uma professora do laboratório de informática (escola
regular), abrangeram momentos de discussão sobre o tema, ensino teórico-prá-
tico de linguagem técnica audiovisual, produção de vídeos (planejamento, fil-
magem e edição) e avaliação7. As oficinas atuaram diretamente na produção de
analisadores (LOURAU, 1993), suscitando questões ligadas ao uso das mídias
dentro e fora do ambiente escolar, por parte dos jovens. No presente trabalho a
ênfase será no ambiente escolar.

4
A restituição, que se distingue de devolutiva, consiste em criar dispositivos de análise
coletiva da situação que envolve o grupo e a instituição em questão, promovendo a pro-
blematização das práticas instituídas considerando os sujeitos implicados no contexto de
pesquisa (LOURAU, 1993).
5
A análise de implicação é uma ferramenta da socioanálise que considera as condições
de pesquisa as quais os pesquisadores estão submetidos, incluindo a posição que assume
o pesquisador no campo, as relações que ele estabelece com os sujeitos de pesquisa, com
as instituições e relações de poder que atravessam a pesquisa e os efeitos dessas relações.
Trata-se também de analisar a própria vinculação teórico-epistemológica dos pesquisa-
dores (PAULON, 2005).
6
No caso da presente pesquisa, instituição pública de ensino superior (UFC) como de-
manda de pesquisa e as duas escolas da rede estadual de ensino básico como instituições
pesquisadas. O termo instituição é concebido aqui, a partir dos estudos da Análise Insti-
tucional proposta por René Lourau (1993), como produto histórico da contradição dialé-
tica entre instituído (status quo) e instituinte (forças latentes). Nesse sentido, considerar
o contexto institucional não significa afirmar sua estrutura material e jurídica (AGUIAR;
ROCHA, 2007), mas evidenciar as relações de força que atravessam historicamente o
campo investigado.
7
Os momentos de restituição e de oficina de vídeo foram filmados, ora pelos pesquisa-
dores, ora pelos próprios jovens. As falas foram transcritas e adotando nomes fictícios
para os participantes.

79
No primeiro tópico, faz-se uma contextualização acerca da presença das no-
vas tecnologias nas escolas. Em seguida, aborda-se a hiperconectividade como
tendência juvenil e sua repercussão no ambiente escolar. Por fim, no último
tópico, discute-se como o uso das mídias e das TDIC atravessam as relações de
poder nas escolas investigadas, sinalizando os usos autorizados e não-autoriza-
dos por parte dos jovens nos contextos institucionais.

2. Contextualizando novas tecnologias e cibercultura na escola

A cibercultura consiste no modo de vida contemporâneo orientado pelo


uso das TDIC em rede no domínio das relações sociais tanto concretas como
virtuais (ciberespaço). Vem sendo potencializada pelo desenvolvimento das
interfaces digitais, pela mobilidade das mídias e pela convergência dos dis-
positivos móveis de informação e comunicação (SANTOS, 2011). Para André
Lemos (2013), a cibercultura caracteriza a passagem da cultura do impresso,
a cultura da homogeneização do indivíduo e das coisas, própria da era mo-
derna, para a cultura do ciberespaço, da virtualização da comunicação (LÉVY,
1999), em que predomina uma nova dinâmica de interação social: digital,
imediata e rizomática.
A cibercultura como modo de vida próprio da contemporaneidade vem
transformando as formas de pensar e se relacionar na sociedade, afetando com
isso a formação dos sujeitos e a sociabilidade. Lemos (2013) caracteriza a ciber-
cultura como sendo produto do encontro entre as novas tecnologias e as formas
de sociabilidade que delas surgem. Ao estar presente na vida social, a cibercul-
tura se insere também no cotidiano das instituições educacionais.
De fato, a presença da tecnologia no cotidiano dos jovens promoveu sua
“invasão” também no espaço escolar, dividindo a opinião dos educadores em
relação aos possíveis benefícios e prejuízos que a inovação pode trazer para o
ambiente educacional. Se, por um lado, a mídia é por vezes considerada respon-
sável por deseducar crianças e adolescentes (MIRANDA 2014), por outro, a in-
ternet e as novas tecnologias podem se tornar importantes aliados no processo
educativo (ALMEIDA, 2005; NASCIMENTO, 2007). No contexto da educação
pública, o novo cenário tem gerado dissonâncias no que se refere à utilização
dos recursos tecnológicos na escola refletindo, de um lado, as motivações peda-
gógicas que movem a gestão educacional das TDIC e, de outro, os interesses dos
estudantes por esses recursos. Nas salas de aula os professores dividem a atenção

80
dos alunos com os aparelhos tecnológicos em usos não-autorizados8; os jovens,
por sua vez, encontram-se constantemente dispersos em relação aos métodos
didáticos utilizados, que parecem se afastar da atenção geral. Sendo assim, o
interesse e a familiaridade do jovem pelas novas tecnologias podem ser úteis
ao propósito educativo, porém normalmente são vistos como responsáveis pela
desatenção do aluno, e pelas consequências pedagógicas indesejáveis.
A utilização dos recursos tecnológicos na escola transcende aos fins pedagó-
gicos, envolvendo diversos fatores, como o lazer e a sociabilidade. As redes de
informação e comunicação atravessam os muros escolares com facilidade, pro-
duzindo novos modos de subjetivação em ambiente educacional. A juventude
contemporânea com isso se torna a cada dia usuária dos meios de comunicação
e consumidora ativa de produtos e serviços relacionados às TDIC. Logo, para
Sibilia (2012), a escola, mesmo em atual desvantagem por ser pouco atraente,
é mais “um produto entre inúmeros outros, que deve competir para captar a
atenção de seus clientes potenciais caso queira conquistar adeptos e subsistir”
(SIBILIA, 2012, p. 66).
Sibilia (2012) aponta o desinteresse escolar como o principal motivo da evasão
por parte dos jovens. A autora destaca a aspiração da juventude contemporânea
por métodos mais lúdicos em sala de aula, já que o ensino baseado na memoriza-
ção com foco no exame não se sustenta mais numa sociedade midiática. A infor-
mação e a comunicação tornaram-se mais acessíveis pelos dispositivos eletrônicos
e digitais e, ao mesmo tempo em que atrai a atenção dos jovens, a tecnologia subs-
titui o acúmulo de informações pela velocidade de acesso. É o que demonstra a
fala de um aluno durante a oficina de vídeo realizada na escola regular:

Pela internet tudo se torna mais fácil. Por exemplo, eu fico pesquisando
direto sobre outros países, como é [determinada] cultura... Pô, pra eu saber

8
Faz-se necessário distinguir aqui os usos formais e informais referentes à abrangência
pedagógica em relação ao uso das TDIC nas escolas. Os primeiros seguem programas e
políticas públicas educacionais, bem como orientações e práticas pedagógicas da dire-
ção e da coordenação escolar. Os usos informais indicam formas de resistência ao uso
formal. Podem ser autorizados ou não-autorizados. Como exemplo de usos não-autori-
zados pode-se citar situações em que se verifica a utilização de celulares, smartphones,
tablets e outros aparelhos dentro de sala de aula à revelia do professor. Mas, resistir não
se restringe ao corpo estudantil. Professores e educadores, por vezes, contrariam regras
como forma de incrementarem as aulas e de se aproximarem dos jovens, apoiando prá-
ticas que nem sempre estão de acordo com orientação superior. Um exemplo disso é a
autorização do uso da internet para acessar redes sociais em atividades realizadas no
laboratório de informática. Nesse caso o uso informal é autorizado.

81
disso sem internet, eu teria que viajar pra lá. Com internet não, converso
com pessoas de outros países. Na internet também dá pra você aprender
outra língua, outro idioma (informação verbal)9.

O desenvolvimento da tecnologia digital tem diminuído a distância entre o


consumo e a produção de mídia. Jovens tornam-se com isso não apenas consu-
midores, mas também produtores de conteúdos midiáticos (VIVARTA, 2004),
através de sites pessoais e comunitários (blogs, vlogs, e redes sociais). Segun-
do Barbalho (2013), a juventude contemporânea vem se organizando para se
expressar através da criação, seja recorrendo ao meio artístico, aos meios de
comunicação ou à junção entre arte e tecnologia midiática.
As novas tecnologias, através de seu vetor de criação, têm modificado o ce-
nário midiático, onde, de acordo com Primo (2008), a tecnologia digital, além
de intensificar os modos virtuais de comunicação interpessoal, promoveu a
atualização da mídia tradicional. O autor cita Eduardo Pellanda para ressaltar o
processo de interação midiática na sua convergência com os meios tecnológicos
e informacionais, e não meramente focar no surgimento de uma nova mídia.
Com isso, “[...] a televisão, como aparato, deixa de ser mero aparelho receptor.
A TV digital será também uma porta de acesso para a interação no ciberespaço.
Em outras palavras, a televisão será usada para muito mais do que assistir à
televisão!” (PRIMO, 2008, p. 65).
Mas, se a entrada das novas tecnologias na escola pode contribuir para o
ensino aproximando a escola da juventude e potencializando os processos de
produção subjetiva, não se pode delegar a ela a responsabilidade da educação.
A presença das novas tecnologias na escola reflete as contradições da sociedade
contemporânea, já que une a necessidade da informatização do conhecimento
com problemas de baixa escolaridade e analfabetismo funcional (ALMEIDA,
2005). Além disso, o simples acesso às novas tecnologias não implica inclu-
são informacional. Para tal inserção, exige-se minimamente que o usuário saiba
“utilizar essa tecnologia para a busca e a seleção de informações que permitam a
cada pessoa resolver os problemas do cotidiano, compreender o mundo e atuar
na transformação de seu contexto” (ALMEIDA, 2005, p. 70). Por conseguinte,
cabe à escola também a função de educar para o uso das mídias e das novas tec-
nologias. Nesse propósito, projetos e iniciativas que abrangem mídia-educação
se fazem presentes nas escolas (FANTIN, 2006), promovendo a utilização da
mídia na educação para além de seu uso instrumental (MIRANDA, SAMPAIO
e LIMA, 2009).
9
Fala durante a oficina de vídeo da pesquisa Juventudes e mídia, realizada em Fortaleza,
2014.

82
3. Hiperconectividade no ambiente escolar

A internet vem se popularizando desde sua criação na década de 1970, e se


alastrou a ponto de se tornar elemento fundamental na dinâmica das relações
sociais. Hoje tem utilização ampla na economia, na política, na saúde, na edu-
cação, nos transportes, enfim, nos mais diversos setores da sociedade. Para Ma-
nuel Castells (1999), a internet se tornou o substrato tecnológico de uma nova
forma de organização social na Era da Informação, a rede, onde a comunicação
e a transmissão de conteúdos ocorrem em escala global, num formato em que
predomina a horizontalidade entre os usuários.
No domínio da juventude, a internet parece assumir dimensão específica. A
função dos suportes e aplicativos comunicacionais se potencializa, trazendo à
tona novas formas de sociabilidade juvenil. Para além da utilização comum pre-
sente nos diversos âmbitos das relações sociais, abrangendo serviços, comércio
e entretenimento, muitos jovens apresentam a necessidade simples de estarem
conectados (SIBILIA, 2012). A conexão virtual passa a ter fim também em si
mesma. Por meio de redes sociais digitais (a exemplo de Facebook e Instagram)
e aplicação multi-plataforma de mensagens instantâneas (Whatsapp, Viber,
Skype, entre outros), os jovens buscam permanecer on-line, numa interação em
que a presença do diálogo nem sempre é imprescindível.
A esse respeito, pode-se remeter o sufixo hiper, de hiperconectividade, ao
termo hipermodernidade desenvolvido por Gilles Lipovetsky (2004). O autor
caracteriza a sociedade hipermoderna por sua fluidez em relação à orienta-
ção das condutas, em detrimento dos princípios estruturais da modernidade.
Da era do hiper emerge o hiperconsumo, no qual o consumo por prazer toma
dimensão cada vez maior na vida social. Nesse sentido, a hiperconexão juve-
nil afirma o desejo dos jovens de permanecerem conectados, independente de
uma função específica que a conexão possa exercer em sua vida social.
O acesso à internet por parte dos jovens vem se tornando mais comum.
Em atividade de restituição nas duas escolas investigadas, em que se debateram
dados quantitativos de 2011 em relação ao tema, coletados entre 2009 e 2011,
ficou claro que atualmente os jovens têm hoje acesso à internet com mais fa-
cilidade. Muitos estudantes disseram já ter computador com internet em casa.
No entanto, a maior parte atualmente acessa através do 3G dos smartphones,
utilizando-os na escola e ainda compartilhando com os colegas, através do
bluetooth. Em relação à frequência de utilização, também observou-se uma
alteração inclusive de parâmetro. Enquanto que entre 2009 e 2011 os jovens

83
afirmaram utilizar a internet por tempo determinado (até meia hora, de duas
a três horas e de três a cinco horas), prioritariamente no ambiente de lanhouse
(MIRANDA et col, 2013, p. 12), atualmente parece não fazer sentido tal men-
suração. Ao discutir os dados anteriores, eles afirmaram ficar constantemente
conectados, seja por wi-fi, seja por 3G dos celulares, mesmo quando não estão
efetivamente operando na rede, mas apenas “passando para dar uma olhada”.
Essa ampliação ao acesso de modo geral contrasta com a realidade das es-
colas investigadas, já que os estudantes alegaram ter dificuldades em utilizar a
internet oferecida pelas referidas instituições, seja pela falta de estrutura e baixa
qualidade do serviço (no caso da Escola regular, onde não tem wi-fi), seja por
restrição ao uso através de senhas destinadas aos professores e ao núcleo gestor,
que os alunos por vezes descobrem até ser novamente bloqueada (Escola profis-
sionalizante)10. A fala de uma estudante da Escola regular ilustra o cenário: “A
internet da escola não acesso, eu acesso na escola porque o celular pega o wi-fi
dos colegas” (informação verbal)11.
O celular se mostrou ser o equipamento preferido pelos jovens. Por assumi-
rem múltiplas funções12 em um só aparelho, smartphones têm substituído tablets
e notebooks nas escolas. Estudantes afirmaram utilizar o celular para se comu-
nicar, escutar música, jogar, entre outras funções. Não à toa, o celular foi o tema
principal de grande parte dos vídeos produzidos pelos jovens nas oficinas rea-
lizadas nas duas escolas. Fruto da participação dos estudantes da Escola regular
na oficina, o vídeo intitulado “O mundo com celular” contou cinco histórias
envolvendo o equipamento: “Do lixo ao luxo” compara os aparelhos antigos e
com menos recursos com os mais modernos e atrativos aos olhos dos jovens;
“Esse é do ladrão” traz uma vítima de repetidos assaltos postando em tempo
real no Facebook que, com a ajuda de outros aparelhos escondidos na bolsa,

10
Cabe aqui demarcar algumas diferenças entre as duas escolas. No que se refere à mo-
dalidade de ensino, no Ceará, as políticas públicas privilegiam as escolas profissionali-
zantes, destinando a elas mais recursos para estrutura física e serviços oferecidos. Além
disso, existem as peculiaridades de cada gestão. A escola regular não possui acesso à
internet via wi-fi, e impede a instalação de softwares por parte dos alunos e professores.
Apenas funcionários autorizados da Secretaria de Educação do Ceará (Seduc) têm per-
missão para fazê-lo.
11
Depoimento concedido pela aluna durante a primeira restituição da pesquisa Juven-
tudes e Mídia, oferecida para as turmas do 1º ano do Ensino Médio da escola regular
investigada. Fortaleza, 2013.
12
Estudantes afirmaram utilizar o celular para se comunicar, escutar música, jogar, entre
outras funções.

84
narra nesta rede social digital as ocorrências que sofreu; “O último celular do
mundo” fala da disputa de todos pelo único equipamento com internet; Em “O
Facebook vicia mais” uma jovem, por sugestão das colegas, troca o cigarro de
maconha pelo celular; por fim, “O celular nas escolas” mostra a popularidade do
equipamento dentro dos muros da Instituição. Este último vídeo fez emergir a
realidade da própria escola, em que o uso do celular é feito indistintamente por
alunos, professores e funcionários, cujos olhos permanecem vidrados, cada um
com o seu aparelho.
Observou-se que o celular e outras mídias móveis acompanham os estu-
dantes nos diversos espaços das escolas13, estando presentes em sala de aula,
no pátio, onde muitos se reúnem no horário do recreio escolar, e em outros
ambientes, como o laboratório de informática. Esses equipamentos, sobretudo
os celulares do tipo smartphone, conectados à internet, sustentam a presença
de um ambiente on-line, paralelo ao espaço físico, off-line da escola. Em certas
situações, o on-line parece se sobrepor. Foi essa a impressão que os pesquisado-
res tiveram ao verificar que grande parte dos jovens permanecia em sala de aula
mesmo nos horários livres, muitos deles manuseando seus equipamentos. Os
jovens afirmaram conversar on-line mesmo quando estão próximos fisicamente:
“Tipo, semana passada a gente foi pro laboratório de informática. Estava todo
mundo na mesma sala e a gente se falando pelo Facebook” (informação verbal)14.
Assim sendo, seja por falta de outras opções de lazer na escola15 ou pela pre-
ferência dos jovens, verificou-se que o ciberespaço está bastante presente no
cotidiano das escolas investigadas, muitas vezes a revelia delas, modificando a
realidade das instituições e a sociabilidade dos estudantes. Os jovens da escola
profissionalizante afirmaram preferir a interação entre eles via Facebook. Alguns
sugeriram ser mais fácil fazer amizade no campo virtual, outros confessaram
13
A PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) coletou dados em 2008 e em 2011 referentes à posse de
telefone celular móvel para uso pessoal, considerando pessoas com 10 anos ou mais ida-
de. A pesquisa mostrou que, enquanto em 2008 38,4% dos estudantes possuíam celular
móvel para uso pessoal, esse número aumentou para 51,3% em 2011 (BRASIL, 2014).
14
Fala de um aluno da escola profissionalizante durante a restituição da pesquisa Juven-
tudes e Mídia. Fortaleza, 2012.
15
Constataram-se algumas restrições em relação à apropriação do espaço físico nas
escolas pesquisadas: a quadra esportiva não é liberada para uso dos alunos no recreio
(escola regular), e o pátio costuma ter temperatura bastante elevada devido à forte in-
cidência solar durante o período da tarde, inibindo a permanência dos jovens no local
(ambas escolas).

85
preferir se expressar no ciberespaço, mesmo com os colegas que convivem na
escola. Entretanto, alertaram em relação aos possíveis perigos da exposição de si
na internet. No próximo tópico será abordado como os jovens se apropriam das
mídias e das tecnologias digitais nas escolas pesquisadas e como estas mídias se
tornam ferramentas de poder na relação entre jovens e educadores.

4. O uso das mídias e das TDIC pelos jovens: poder e resistência,


vigilância e controle

O uso das mídias e das TDIC por parte dos jovens nas escolas públicas inves-
tigadas envolve diversos fatores, que estão associados às relações de poder que
se estabelecem no cotidiano de ambas. Dentre esses fatores estão basicamen-
te: a lógica disciplinar que predominantemente rege as práticas educacionais; a
relação educador-aluno que se estabelece a partir dessa lógica; o consumo e a
apropriação dos jovens pelas novas tecnologias e sua repercussão no ambiente
escolar; e o aspecto produtor que as mídias e as novas tecnologias proporcio-
nam à experiência juvenil.
A escola, como instituição formada por relações de poder em que a lógica
disciplinar ainda é bastante presente, é um espaço marcado por norma, hierar-
quia e vigilância (FOUCAULT, 2007; SIBILIA, 2012). Tais dispositivos discipli-
nares atravessam e orientam a conduta dos jovens em relação à utilização das
novas tecnologias, delineando usos autorizados e não-autorizados dos aparatos
digitais. Um caso comum observado nas duas escolas foi a utilização do celular
em sala de aula. Professores se queixaram da presença dos equipamentos den-
tro de sala, alegando que os alunos utilizam fones de ouvido e trocam mensa-
gens on-line durante as aulas16. Na oficina de vídeo, um jovem chegou a encenar
como utiliza o celular para burlar as regras e se comunicar com colegas em
momentos de avaliação pedagógica.

16
No Ceará, existe uma lei estadual (nº 14.146, de 25 de junho de 2008) que proíbe o
uso de equipamentos de comunicação, eletrônicos e outros aparelhos similares nos es-
tabelecimentos de ensino, durante os horários de aula, exceto para fins pedagógicos. No
entanto, na prática a lei parece não surtir efeito. Para Foucault (DELEUZE, 1988), a lei
surge para gerir as ilegalidades. Essa gestão tem participação direta no exercício de poder
e resistência que envolve seu uso. Assim sendo, a lei estadual 14.146 suscita, no contexto
institucional, não apenas formas de controle em relação ao uso de equipamentos ele-
trônicos pessoais em sala de aula, mas também a invenção incessante de novas formas de
subversão a esse controle.

86
Por sua vez, os jovens que defendem o uso do celular em ambiente de ensino
afirmaram que o utensílio pode trazer benefícios para o aprendizado. Durante
um debate com os jovens na oficina de vídeo, uma estudante citou o programa
“Malhação”17, da Rede Globo, como exemplo de como os recursos da internet,
aliados ao dispositivo móvel de comunicação, podem contribuir com o processo
de ensino e aprendizado. Segundo a fala da estudante, no referido programa, o
professor de matemática estimula os alunos a utilizarem o celular para pesquisar
sobre o assunto da aula. Outra queixa dos jovens é que os mesmos professores
que proíbem o uso do celular são os que também manuseiam seus equipamen-
tos enquanto lecionam. Mas o uso dos equipamentos pessoais em sala de aula se
mostrou polêmico mesmo entre os estudantes. Um jovem afirmou que a ideia
não seria produtiva, já que iria dispersar os alunos e fugir do foco da aula. Além
disso, disse que os jovens têm tempo para o lazer fora da escola e que muitos já
utilizam esse tempo para navegar na internet. Chama a atenção que apesar de
ser alvo de polêmica e conflito entre alunos e professores, em ambas, jamais o
uso do celular foi debatido.
As escolas também apresentaram usos autorizados das mídias e das novas
tecnologias, em que a informática e a internet são utilizadas como recursos pe-
dagógicos. Desde a criação do Programa Nacional de Tecnologia Educacional
(ProInfo) no Brasil, em 1997, o Laboratório de Informática Educativa (LEI)
tem a função de dinamizar o processo de ensino-aprendizagem, despertando
no aluno a curiosidade e a busca pelo conhecimento científico. Assim sendo, “a
dimensão da informática na educação não está, portanto, restrita à informatiza-
ção da parte administrativa da escola ou ao ensino da informática para os alu-
nos” (NASCIMENTO, 2007). O LEI possibilita ao professor ministrar sua aula
em ambiente colaborativo com os recursos da internet, promovendo a interação
do aluno com aplicativos e conteúdos didáticos para além dos limites da escola.
Na escola regular pesquisada, observou-se que alguns professores utilizam
o LEI com esse propósito. Mas são poucos, haja vista as limitações em relação à
qualidade da internet disponível na Escola, mencionada no tópico anterior, que
afeta também os professores e os setores administrativos. Professores relataram
resignar-se depois de experiências frustrantes com atrasos e prejuízos em aulas
17
Malhação é uma série de televisão brasileira para o público adolescente. É produzida
e exibida pela Rede Globo desde 1995. Atualmente totaliza 22 temporadas e é transmitida
internacionalmente. Foi exportada para países como Canadá e Portugal através da Globo
Internacional. Durante os primeiros anos, o principal cenário da série era uma academia
de ginástica fictícia chamada Academia Malhação na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Em-
bora o título da série permaneça o mesmo, o cenário mudou através dos anos de academia
para colégio de ensino médio (WIKIPÉDIA, 2014).

87
programadas para o LEI, buscando formas alternativas de apropriação da mídia,
que não exija seu uso. Assim sendo, uma professora de literatura da escola regu-
lar explorou as mídias de forma distinta, utilizando o vídeo com os alunos em
trabalhos de fim de ano, de modo que os estudantes tinham a opção de realizar
o seminário com apresentação e encenação de obras literárias em sala de aula,
através de vídeos produzidos previamente em grupos. A professora relatou que
a experiência motiva a participação do aluno, que vê na mídia digital uma forma
prazerosa de produzir conhecimento.
A cultura das novas tecnologias potencializa a experiência da produção nos
jovens, já que a publicação e o compartilhamento de conteúdos se populariza-
ram com o advento da internet. Nas escolas pesquisadas, o anseio em produzir
era evidente nos alunos. Na escola regular, esse anseio reverberou na criação da
Rádio Escolar18. Os jovens encontraram nela não apenas uma forma de expres-
são e comunicação, mas também um instrumento na produção de modos de
ser e agir no ambiente institucional. A Rádio Escolar consiste em uma maneira
de os jovens se apropriarem dos espaços da escola19, bem como se relacionarem
com colegas e educadores.
No contexto da hierarquia e da norma, mas também permeada pela cultura
do controle predominante nas relações sociais na contemporaneidade, a atua-
ção das TDIC nas escolas assume função peculiar, como instrumento para o
exercício de poder entre estudantes e educadores. Observou-se que a presença
das novas tecnologias nas escolas pesquisadas intensifica as formas de controle
nas interações. O controle é por vezes regido por uma produção retórica de
vigilância, que Bruno (2013) nomeou estética do flagrante:

Tal estética resulta de um olhar amador cujos aspectos reúnem, em graus


diferenciados, traços policiais, libidinais e jornalísticos que participam tan-
to de seu apelo de real quanto de sua interferência na economia atencional
dos espectadores e leitores. Além de capturarem a atenção de um modo
diferenciado, elas têm um efeito de vigilância na medida em que supõem
– com maior ou menor intensidade – um observador oculto, que vê sem
ser visto, traço emblemático do olhar vigilante, e que ingressa nos ambien-
tes midiáticos e jornalísticos com a assinatura do anônimo ou do amador
(BRUNO, 2013, p. 105-106).
18
Grande parte dos participantes da oficina de vídeo promovida pela pesquisa Juventude
e Mídia era também integrada ao grupo da Rádio Escolar. Nas discussões, alguns deles
afirmaram que sua participação na oficina tem motivações ligadas às atividades da Rádio.
19
O Laboratório de informática é o local onde os estudantes se reúnem tanto para operar
quanto para discutir sobre os assuntos da Rádio.

88
Em conversa informal, um dos coordenadores da escola regular falou sobre
duas situações interessantes envolvendo o tema, especialmente no que tange à
relação professor-aluno. A primeira foi a de um colega professor que, discutin-
do enfaticamente com um aluno, se viu ameaçado por outra aluna, dizendo que
iria filmar a discussão para registrar e publicar sua atitude. O professor logo
tratou de rebater e afirmou que se ela o fizesse ele iria mover um processo por
uso indevido de imagem e que, com isso, ele iria “tiraria todo o dinheiro do pai
dela”. A outra cena envolveu o próprio professor-coordenador em socialização
com alunos nos espaços da escola. Uma estudante, apontando uma rachadura
no fundo de um prato enquanto lanchava, ameaçou filmar e publicar no You-
Tube incluindo uma possível fala: “Olha aqui o que a escola utiliza para servir
nossa merenda!”. Situação semelhante narrada pela diretora da escola profis-
sionalizante, onde uma aluna após filmar os problemas de infraestrutura do
local, mostrou à diretora para saber o que poderia ser resolvido por ela e o que
seria competência da Secretaria de Educação. Neste último caso, ela pretendia
denunciar. A diretora considerou a atitude da aluna ética, pois primeiro quis
resolver a questão na própria escola.
Estas situações são emblemáticas da incidência das novas tecnologias na
interação social em ambiente escolar. Os dispositivos audiovisuais, presentes
nas mídias móveis e potencializados pelos recursos da internet, tornam-se fer-
ramentas de controle nas referidas instituições públicas de ensino. Os jovens
se utilizam das mídias e das TDIC em estratégias que alternam resistência, vi-
gilância e controle para conquistar novos territórios em ambiente de ensino,
reivindicar seus direitos e defender seus interesses. O uso das novas tecnologias
como ferramenta de vigilância e controle não é restrita aos estudantes. Na escola
profissionalizante investigada, um dos coordenadores tem o hábito de fiscalizar
os alunos on-line durante as aulas, conferindo a presença deles no Facebook e
ordenando, através do ciberespaço, que os alunos saiam da rede social. Vê-se
com isso que a função disciplinadora de colocar os alunos para dentro de sala
encontra-se adaptada aos ambientes on-line e que parte dos alunos considera
essa extensão da vigilância como sendo “normal”.
As redes sociais virtuais e as plataformas de compartilhamento de conteú-
dos nutrem novos regimes de visibilidade na cultura da vigilância e do controle
(BRUNO, 2013). O controle age em rede, de forma a contrapor os indivíduos
entre si e, ao mesmo tempo, atravessando cada um. Desse modo, o mesmo olhar
que documenta e publica é também vigiado. Dessa dinâmica, que envolve a so-
ciabilidade a partir da utilização de redes em conexão, emergem novas formas
de ser e de interagir com o outro, em que a publicização da intimidade é o vetor
fundamental da relação.

89
As práticas de exposição da intimidade e narrativas de si na internet parecem
ser comuns na conduta juvenil em ambiente virtual. Através de blogs, fotologs e
sites de armazenamento e compartilhamento de vídeos, os jovens exteriorizam
e tornam públicas informações pessoais íntimas. Numa sociedade em que a ex-
teriorização da intimidade sustenta a autenticidade da subjetividade (BRUNO,
2013), os regimes de visibilidade se intensificam no ciberespaço, pois não se res-
tringem ao controle social: “Ver e ser visto não implica apenas circuitos de con-
trole, mas também de prazer, sociabilidade, entretenimento, cuidado consigo e
com o outro” (BRUNO, 2013, p. 67).
O excesso de exposição na internet mostrou ser motivo de preocupação por
parte dos jovens em ambas as Escolas. Na visão deles mesmos, os jovens de hoje
não pensam antes de postar conteúdos nas redes sociais. Alguns deles relataram
experiências com vídeo e YouTube que tiveram repercussão negativa na escola e
fora de seus domínios. O fato de tanto compartilharem como produzirem con-
teúdo em texto, foto ou vídeo postados na internet, não necessariamente dão
qualidade crítica a estes conteúdos.

5. Considerações Finais

A presença da mídia e das novas tecnologias se mostrou marcante em am-


bas as escolas. Celulares e smartphones não só apareceram como equipamentos
pessoais utilizados pelos jovens nos diversos espaços (inclusive em sala de aula),
mas também nas discussões temáticas e nos vídeos como produtos finais das
oficinas. No consumo das mídias, parece haver certo deslocamento da TV para
a internet, do formato broadcasting para rede. Com isso, aqui os jovens não são
meros consumidores. Seu aspecto produtor é potencializado pela possibilidade
de publicação imediata de conteúdos digitais por parte dos usuários.
Na educação, as mídias e seus dispositivos tecnológicos ingressam sem anún-
cio prévio, participando do cotidiano da escola em diversas atividades, que abran-
ge usos autorizados e não-autorizados. Foi o que se observou nas escolas partici-
pantes. Verificou-se que os estudantes acessam a internet para realizar trabalhos
escolares; vídeos produzidos pelos próprios jovens são utilizados para apresentar
seminários em disciplinas; mas também o celular eventualmente serve como ins-
trumento de consulta não autorizada em avaliações pedagógicas.
A virtualização dos modos de vida juvenil, regada por práticas de controle e
vigilância na contemporaneidade, reconfigura as relações interpessoais na esco-
la. A conexão digital entre os jovens não necessariamente os une, mas amplia as

90
possibilidades de interação. Nessa trama midiática da informação e comunica-
ção que atravessa a sociabilidade, colocam-se em evidência dois pontos: o jogo
de poder e a exposição de si. A forma como as novas tecnologias funcionam
como instrumentos de mediação nas relações de poder não fornece uma ideia
de causa e efeito. Não são as tecnologias que inauguraram as lutas entre os jo-
vens ou entre estudantes e educadores nas instituições educacionais, mas elas
delimitam um modo distinto de se buscar soluções para os conflitos que surgem
no cotidiano das escolas, a visibilidade para além de seus muros.
A linguagem virtual e as características próprias do ciberespaço parecem
atrair os jovens. Dessa forma, os mesmos recursos digitais utilizados para in-
crementar as estratégias pedagógicas no ambiente de ensino, tanto por parte
dos jovens como pelos educadores, estão presentes no lazer e na sociabilidade
juvenil. De fato, as mídias e as TDIC estão sendo consumidas e apropriadas
pelos jovens através de uma relação prazerosa. Mas, para além de consumo e
apropriação, a produção vem assumindo importância fundamental nos modos
de ser jovem. Informações e conteúdos de todo tipo são constantemente produ-
zidos nas escolas através de rádio, vídeo, sites, blogs, entre outros, e veiculadas
rapidamente na internet. Desse modo, formas de pensar e agir são construídas e
disponibilizadas publicamente, e as subjetividades vão sendo remodeladas.
A presença das novas tecnologias na escola se tornou realidade em diversos
âmbitos. Seu uso, autorizado ou não, tem dimensão cada vez maior no dia a dia
da instituição, fazendo emergir novas questões e conflitos na relação entre edu-
cadores e jovens. Não se pode afirmar, contudo, que as mídias e as TDIC são as
redentoras da crise educacional. Tampouco se deve crucificá-las. A análise de sua
atuação no campo educacional deve ser feita com base na forma como cada esco-
la lida com elas. As escolas investigadas apresentaram dificuldades na abordagem
das mídias e das TDIC como mediadoras na relação com os jovens. No entanto,
mostraram que os obstáculos podem ser superados através de uma abertura não
apenas da escola como instituição de ensino, mas principalmente dos profissio-
nais que atuam diretamente com os estudantes, para a produção qualificada de
mídia. A fala da professora do laboratório de informática da Escola regular pes-
quisada, que participou da oficina com os estudantes, é encorajadora:

Eu aprendi demais durante esse tempo que tive com eles, agradeço de cora-
ção. Foi um ponto a mais pra mim. Eu me superei em 2010 porque em 2010
eu tive meu primeiro contato real com o mundo da computação; eu tinha
uma verdadeira, assim, aversão de qualquer coisa nova. Então, eu me supe-
rei, de lá pra cá eu tenho... a minha resistência é bem menos com relação às

91
novas mídias, e a gente toma gosto e tem mais é que tomar porque a gente
não pode ficar presa, estagnada; a gente tem que querer aprender porque,
felizmente, não é infelizmente não, felizmente, o progresso está aí, nós es-
tamos caminhando com ele e não temos como fugir. Nós não podemos nos
esconder do que é novo, das novas tecnologias, a gente tem que esconder
a vergonha realmente, colocar a humildade em prática pra desempenhar
esses papéis junto com as multimídias, com as novidades, as tecnologias
novas. E outra coisa, com relação ao uso do celular em sala de aula, é uma
questão pra ser muito, mas muito discutida. Tem sim, o colégio tem que
manter a regra, tem que manter a política dele educacional; mas tem muitas
formas de...é claro que uma andorinha só não faz verão, jamais isso funcio-
naria se só eu e outra professora queremos; tem como caminhar sim o uso
do celular junto com as disciplinas; porque não vai parar, o uso do celular
em sala não é aqui que isso acontece, é em todo lugar do mundo. Se a gente
não tem como fugir do que as pessoas veem como um mal, que não é um
mal, é o século que a gente tá vivendo, então, se está nos incomodando
tanto, então vamos criar uma estratégia que nos beneficie em sala de aula
(informação verbal) 20.

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20
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94
Memórias em segunda mão: lembranças juvenis de
um salazarismo ficcionado

Bruno Carriço dos Reis

Assistimos a uma paulatina tendência no audiovisual português para uma


recreação ficcional do salazarismo e do período de transição para a democra-
cia1, mas esta “historiografia mediática” da ditadura carece ainda de interesse
por parte da academia. Neste capítulo, tentaremos dar um contributo explo-
ratório ao fenómeno, no intuito de tentarmos perceber em que medida estes
produtos mediáticos propõem uma reflexão por partes dos públicos juvenis.
Por intermédio da realização de nove grupos de discussão realizados com jo-
vens universitários, constatamos a dificuldade destes negociarem por via de
discursos ficcionais um sentido memorialístico para acontecimentos que não
vivenciaram.

1. A construção social das lembranças: o passado feito presente


pelas memórias colectivas mediadas

Todas as recordações, por mais pessoais que pareçam, estão determinadas


por um carácter social. Somente “se pode compreender cada uma das lembran-
ças, tal como se apresentam no pensamento individual, se estas puderem ser
estabelecidas no pensamento do grupo correspondente” (HALBWACHS, 2004,
p. 173). Desta forma, o sociólogo francês Maurice Halbwachs cunhava o con-
ceito de memória colectiva, conceptualizando as lembranças como construções
sociais fortemente marcadas pelo entorno familiar, pela filiação religiosa e pela
posição de classe social ocupada. Em trabalho prévio, testamos empiricamente
estas dimensões da memória colectiva, em concreto no estudo dos públicos da

1
Eduardo Cintra Torres e Catarina Duff Burnay (2014), num texto intitulado “Os temas
da ficção histórica audiovisual em Portugal (1909-2013)”, constataram que somente a
partir de 1990 começamos a assistir a uma crescente produção de ficção televisiva alusiva
ao tema do Estado Novo e da Guerra Colonial.

95
série espanhola Cuéntame cómo pasó2. Constatamos que pese a estas dimensões
clássicas aparecerem implícitas nos discursos, as memórias colectivas assumiam
configurações discursivas explícitas dependendo do contexto sociopolítico, da
coorte geracional e do grau de politização dos públicos analisados (CARRIÇO
REIS, 2009, p. 409).
Percebemos, com igual evidência, que as memórias sociopolíticas produ-
zidas pelos espectadores da série Cuéntame cómo pasó estavam condicionadas
pelas suas experiências directas (memórias vividas) ou indirectas (memórias
mediadas) da dictadura e da transição espanhola. Esse factor determinava for-
temente o sentido das representações históricas dos públicos analisados pois,
“quando recordamos, ampliamos determinados acontecimentos e fazemos a sua
reinterpretação segundo a experiência subsequente e a necessidade presente”
(LOWENTHAL, 1998b, p. 97). Esta actualização do passado depende em boa
medida da relação estabelecida entre os actores sociais e os acontecimentos:
Por via de uma relação directa os indivíduos participes desse momento his-
tórico conformam uma percepção própria do sucedido em que as suas recorda-
ções conformam uma memória vivida. Contudo, como destaca Margalit (2002,
p.51), “a experiência de todos os que estão vivos é uma lembrança da lembran-
ça”. O passado não deixa de ser um processo sempre recreativo e aproximativo.
Numa relação indirecta o modo de aproximação aos feitos que não foram
vividos presencialmente é realizada com a ajuda de terceiros, “sendo incorpora-
dos a essa experiência mediante as pessoas que participaram nos acontecimen-
tos” (MARGALIT, 2002, p. 44). A recreação da época e dos seus protagonistas
é produto de uma memória mediada, isto é, os acontecimentos conhecem-se
através do relato ou testemunho de terceiros.
As noções de memória vivida e de memória mediada entroncam directamen-
te com a distinção clássica estabelecida por Endel Tulving (1972), entre “me-
mória episódica” (construída desde os acontecimentos vividos) e a “memória
semântica” (conhecimento que se adquire sobre o passado). Contudo, as memó-
rias colectivas (existirão tantas quantas as recreações capazes de serem enuncia-
das por distintos grupos sociais) para além de dependerem do tipo de relação
dos indivíduos com o passado, dependem da forma como estas transcendem o

2
A serie Cuéntame cómo páso – produzida pelo grupo Ganga (cujos direitos de produ-
ção foram comprados pela Radio Televisão Portuguesa que exibiu uma versão portugue-
sa entre os anos de 2007 e 2011) – continua em antena desde o ano de 2001 na TVE1 em
horário de prime time. A sua fórmula foi, e é, um produto de enorme êxito que propõe
um olhar sobre os últimos anos da ditadura franquista, a transição política do regime e
os primeiros anos da democracia.

96
sentido formal dos enunciados históricos e se incorporam nas relações quotidia-
nas dos indivíduos. Assim, “os relatos comunitários, aqueles que são escutados
nas diversas comunidades onde se está envolvido – família, escola, universidade,
contexto laboral ou meios de comunicação – e que, pela sua própria natureza,
não podem ser historicamente rigorosos, têm muito mais impacto no presente
que no conhecimento histórico exacto” (LOUREIRO, 2008, p. 21).
As narrativas mediáticas são por isso importantes recursos de significação
histórica, reforçando ou questionando as versões historiográficas que circulam
nos discursos oficiais e interpelando os testemunhos vividos. Estas memórias
mediáticas são a

representação simbólica e a narrativa que difundem os meios massivos so-


bre a história das sociedades a que se dirigem. Também estão conectadas
com lógicas comerciais e industriais, com a política de memória que ditam
as instituições, com a cultura política das audiências e as limitações pró-
prias da linguagem audiovisual (SAMPEDRO; BAER, 2003, p. 98).

Os meios de comunicação tem aqui um papel relevante, devido a interme-


diação que fazem desse passado e a forma como o significam, já que “o conceito
da mediação da memória foi crucial para o aumento do interesse da memó-
ria pelos meios de comunicação e nos estudos culturais” (STURKEN, 2008, p.
75). Ter acesso a recreação dos acontecimentos históricos por via mediática, em
muitos dos casos, têm o mesmo impacto que a experiência directa (BANDU-
RA; WALTERS apud VALA, 2000, p. 493). Os estudos da memória colectiva
necessitam de um trabalho mais reflexivo que permita por em discussão como
as actuais mediações do passado impregnam o imaginário colectivo de uma
determinada memorialística, já que os estudos realizados até ao momento mos-
tram-se incipientes (RADSTONE, 2000). Podemos sintetizar as abordagens que
relacionam meios de comunicação e construção de memória colectiva em duas
tipologias principais:
Abordagens que reflectiram acerca do papel dos meios de comunicação
como constructores de sentido histórico, analisando as versões que são propos-
tas mediaticamente (EDGERTON, 2003; LANDY, 2000; LANDSBERG, 2004;
LEAVY, 2007; ROSENSTONE, 1998 y 2006; THEOBALD, 2004; SOBCHACK,
1996). Como conclusão substantiva desta linha de investigação, foi percepcio-
nada uma propensão para circularem versões oficialistas e consensuais dos
acontecimentos narrados (prática muito estendida nos países com passados
conflictivos e/ou traumáticos).

97
Por outro lado, observamos estudos que se dedicaram a rever o papel do jor-
nalista como intérprete da realidade histórica (LANG; LANG, 1989; SCHUD-
SON, 1992; ZELIZER, 1993 e 2008; EDY, 1999 e 2006; HOSKINS, 2001 e 2004),
sendo estes reconhecidos pelos públicos como relatores autorizados e fidedig-
nos das leituras históricas.
Das tendências que acabamos de enumerar, ressalta claramente a ideia de
uma abordagem analítica que se centra no aparato discursivo político e jorna-
lístico das construções históricas, o que acaba por produzir um entendimento
muito formalista e institucional do debate público. Escassos são os estudos cen-
trados na análise de como a construção das narrativas do passado são assumi-
das, negociadas e interpretadas pelos receptores da mensagem (GUTIÉRREZ,
2006; CARRIÇO REIS, 2009). De forma ainda mais rudimentar assistimos ao
interesse pelos processos de formação das memórias colectivas nos públicos ju-
venis, aqueles cuja construção dos processos identitários são inapelavelmente
marcados pelos mass media. “A principal maneira de adquirir sentimento de
identidade era a partir da família ou da comunidade imediata; hoje, esse sen-
timento é nos oferecidos constantemente, e desde uma grande quantidade de
recursos, através dos meios de comunicação” (FERGUNSON, 2007, p. 204).
O sociólogo John Thompson (1998, p. 56) refina o argumento, quando afir-
ma que “a tradição oral e a interpretação cara a cara seguem desempenhando
um importante papel na formação do nosso sentido do passado; cada vez ope-
ram mais em conjunto com os processos de compreensão. Esses fundam os seus
conteúdos simbólicos a partir dos produtos das indústrias mediáticas”. Deste
modo, assistimos a um carácter autoreferencial da socialização, sobretudo nos
jovens mais influenciados por uma cultura publicitária fortemente presente nos
meios de comunicação (BONTEMPI, 2003, p. 32). Assim, os referenciais identi-
tários já não se constroem mediante alicerces sólidos de heranças políticas, mas
por entre pautas de consumos de uma notória cultura pop (CANCLINI, 2007).

2. A recreação juvenil do passado: a história como ficção da


História

Um importante estudo comparativo acerca da consciência histórica e identi-


dade entre jovens europeus, levado a cabo pelo sociólogo José Machado Pais em
1999, concluiu que o recurso juvenil privilegiado para construir conhecimento
acerca do passado é o género ficcional. A par deste atalho cognitivo, os jovens
invocaram os documentários televisivos, os museus e os lugares históricos como

98
instrumentos complementares da sua construção memorialística. Para um pla-
no residual foi relegada a ciência histórica e outras ferramentas didácticas for-
mais de enunciação do passado, já que “para a maioria dos homens educados
pelos meios de comunicação e na cultura urbana, o mundo terá o aspecto que os
jornais e a televisão escolherem para apresentá-los” (STEINER, 2003, p. 103)3.
Nos actuais processos de reconstrução histórica, percebemos que a aprendi-
zagem do passado está cada vez mais atravessada pelos meios de comunicação
e pelas narrações visuais, elementos fortemente edificadores e condicionadores
das nossas experiências coletivas. A ficção histórica assume um papel de tal rele-
vância, que certos acontecimentos estão fortemente associados a sua invocação
ficcional; “para alguns, a única memória viva do Watergate foi o filme sobre esse
acontecimento” (LANG; LANG, 1989, p. 130).
Um sentido histórico fortemente alavancado em processos de ficciona-
lização coloca os públicos (e os jovens de forma mais declarada, por não
terem sequer vivenciado os acontecimentos relatados) à mercê dessas nar-
rativas como se de um “critério de verdade” se tratasse (RICOEUR, 2000).
Deste modo, as representações mediáticas têm a capacidade de cristalizarem
simplificadas visões da história (EDGERTON, 2003), o que parece potenciar
“nos jovens um tipo de conhecimento baseado nas impressões sensoriais e
nas mudanças rápidas de estímulos” (PÉREZ-AGOTE, 2008, p. 94).
Como já dissemos, o predomínio do relato visual é um fator indissociável da
vida contemporânea, mas para lá de se interpretar o sentido da produção e do
valor em si do discurso da imagem, resulta necessário descortinar o valor dado
a tradução dessas imagens na experiência social de quem as consome. O nosso
esforço recaiu no descortinar das denominadas memórias mediatizadas juvenis,
isto é, aferir em que medidas os jovens negoceiam as representações que as fic-
ções históricas propõem acerca da ditadura e da transição para a democracia
portuguesa.
A nossa proposta, que metodologicamente detalharemos no apartado se-
guinte, tenta modestamente contribuir para que se possa suprir uma gritante
lacuna investigativa em Portugal, onde ainda está por fazer um estudo sobre
a transcendência das narrativas ficcionais do salazarismo nos públicos. Os

3
Mas a tendência da ficcionalização da história não é de agora (e muito menos a dis-
cussão sobre a interferência da ficção na percepção dos feitos históricos), já em 1830 o
intelectual Alfred de Vigny fazia a distinção entre a verdade do romance histórico francês
e a verdade do relato da História. Nas suas conclusões referiu que a ficção servia para
recordar os actores da realidade histórica que recriava, enquanto a História apresentava
o sentido dos acontecimentos no transcurso da sociedade.

99
parcos intentos que conhecemos acerca do estudo da ficção histórica estão
muito marcados pela análise da produção audiovisual televisiva e cinemato-
gráfica,4 ficando de lado as questões da recepção, descodificação e apropria-
ção por parte dos públicos do discurso ficcional histórico.

3. Metodologia para o estudo das memórias colectivas juvenis: a


negociação do passado salazarista utilizando grupos de discussão

Convocamos 9 grupos de discussão5 para ensaiarmos a recriação das me-


mórias mediatizadas dos públicos juvenis universitários6 no tocante às suas
lembranças da ditadura salazarista e da transição para a democracia em Por-
tugal. Utilizamos esta aproximação empírica de carácter dialógico por enten-
dermos que a memória é um processo onde brota um discurso socialmente
significado, em que as reconstruções memorialísticas “se estabelecem mediante
4
Ver em concreto os estudos O cinema sob o olhar de Salazar (2011), coordenado por
Luís Reis Torgal, e A História na Ficção Televisiva Portuguesa (2014), volume organizado
pela Catarina Duff Burnay.
5
De forma complementar a realização dos grupos de discussão, distribuímos a cada
uma dos participantes um inquérito por questionário com o propósito de traçarmos um
perfil sociodemográfico dos jovens e da sua relação com a esfera mediática e política, ele-
mentos que nos ajudaram na análise dos discursos produzidos no contexto da discussão.
Na impossibilidade de reproduzirmos o inquérito na íntegra, indicamos as principais
dimensões que tratamos de aferir: 1. Tipologia dos consumos mediáticos (1.1. meios de
comunicação e conteúdos consumidos; 1.2. consumos mediáticos de natureza política;
1.3. outras fontes de apreensão da realidade). 2. Processos de socialização política (2.1.
participação cívica e política; 2.2. perfil ideológico e natureza das escolhas políticas).
6
A escolha recaiu nos públicos juvenis universitários no sentido de apurarmos que ima-
ginário memorialístico possuem actores escolarizados que não tiveram contacto direc-
to com a ditadura salazarista (e construíram toda a usa percepção histórica por via de
mediação). Para o efeito realizamos os respectivos encontros com os jovens universitá-
rios durante os anos de 2012, 2013 e 2014, efectuando três reuniões em cada uma das
seguintes instituições de ensino superior publico e privado: Universidade Autónoma de
Lisboa, Universidade da Beira Interior e no Instituto Superior da Maia. Procedemos as
convocatórias dos 9 grupos de discussão recrutando de forma aleatória os indivíduos nos
espaços de lazer da universidade (refeitórios, cafeterias, pátios) tendo o cuidado de res-
peitar heterogeneidade quanto aos cursos e anos frequentados, assim como levamos em
linha de conta a questão do género na composição dos grupos. Partindo destas premissas
construímos grupos de discussão com um intervalo de participantes que oscilaram entre
os 5 e os 7 elementos e em que o intervalo etário variou entre os 18 e os 22 anos.

100
comunicação, não mediante lembranças privadas” (FENTRESS; WICKHAM,
2003, p. 14).
Para activarmos e contextualizarmos essas memórias juvenis, iniciamos
todos os grupos de discussão com um estímulo relacionado com esse tempo
histórico que queríamos observar, para efeito projectamos um episódio da série
Conta-me como foi7, já que esta narrativa audiovisual teve o mérito de abrir “es-
paço na sociedade civil para que se debatesse a história recente” (LOPES, 2014,
p. 97). O visionamento prévio à realização dos grupos de discussão introduziu
um ponto de partida que visa predispor a interacção dos membros do grupo8.
Callejo (1995), mediante a realização de grupos de discussão, constatou que a
televisão torna o passado mais presente e que este meio de comunicação contri-
bui de forma determinante para a reelaboração das lembranças, na medida que
os públicos constroem sociabilidade partindo de um habitus. A conclusão do
sociólogo espanhol reforça o princípio de audiência activa, na medida que “uma
série de televisão significa coisas distintas para pessoas distintas que aportam
ao seu visionamento experiências sociais diferentes” (CURRAN, 2005, p. 167).
Partindo deste pressuposto, tivemos o máximo cuidado na escolha do epi-
sódio, já que “não basta convidar a falar obre um tema. Temos que apresentá-lo
de tal maneira que desencadeie uma reacção” (CALLEJO, 2001, p. 115). O nosso
objectivo foi tomar como ponto de partida o episódio numero 24 da primeira
temporada da série Conta-me como foi, intitulado A longa noite9 (emitido pela

7
A série estreou no canal 1 da RTP no dia 22 de Abril de 2007 e terminou no dia 25
de Abril de 2011 e a página oficial do programa propõe a seguinte sinopse: “Conta-me
como foi é uma série de ficção adaptada da série espanhola Cuentame como pasó. A ficção
acompanha o quotidiano de uma família de classe média, os Lopes, que habitam um an-
dar de um bairro social na Lisboa do final dos anos 60. António, o pai; Margarida, a mãe;
Hermínia, a avó; Toni, Isabel e Carlos, os filhos, vivem com dificuldades financeiras, que
ainda assim permitem a aventura de comprar uma televisão. Um ‘novo elemento da famí-
lia’ que vai ocupar lugar de destaque na casa dos Lopes. É a voz adulta de Carlos, o filho
mais novo, com 8 anos em 1968, que narra Conta-me como foi. É através do seu olhar de
criança, que nos é contada a história da família e também de factos sociais, económicos,
políticos, episódios da História do país e do mundo. Recorrendo a arquivos e reconstitui-
ções de conteúdos da rádio e da televisão, companheiros sempre presentes na sala e na
vida dos Lopes, a narrativa de Carlos torna-se mais viva e mais autêntica” (informação
consultada em 1 de Novembro de 2014 no seguinte sítio da internet: http://www.rtp.pt/
programa/tv/p20133).
8
De referir que, quando indagados acerca do seu conhecimento da série, todos os parti-
cipantes, sem excepção, já tinham assistido pelo menos a um episódio da série.
9
O sítio oficial da série propõe a seguinte sinopse para o episódio em questão: “Toni e

101
primeira vez no dia 20 de Janeiro de 2008). A utilização deste capítulo como
estímulo aos grupos de discussão deveu-se, em primeiro lugar, à necessidade
de contextualizar a época que queremos que seja o epicentro da discussão, a
ditadura. Desta maneira clarificamos e delimitamos de forma manifestamente
dirigida os temas para debate, já que este episódio em concreto convoca tan-
to uma dimensão política como social do regime, potenciando várias leituras.
De igual modo, este capítulo serviu em segundo lugar para proporcionar aos
participantes um espaço evocativo para que enunciassem, para lá da série em
concreto, que outros processos de mediação ajudaram na elaboração das suas
percepções históricas da ditadura e da transição democrática.
Ao postularem distintos enunciados subjectivos, os actores sociais põem em
evidência a narração de uma experiência determinada, actualizando o passado
histórico ao comunicá-lo (SARLO, 2005). Queremos por isso descodificar como
os públicos juvenis fizeram uma leitura de uma série que está a meio caminho
entre a ficção e a recriação histórica, em que “os grupos se servem da apropriação
dos programas para exercer e reforçar a sua identidade” (SOULEZ, 2006, p. 149).

4. Uma leitura exploratória dos públicos juvenis de Conta-me


como foi. Notas para o estudo de uma memorialística da ditadura

Decorrente da realização dos grupos de discussão, podemos observar algu-


mas tendências reveladoras de uma memorialística juvenil em relação à dita-
dura salazarista. O facto mais significativo foi uma inusitada dificuldade destes
jovens em produzirem discursos que transcendessem as temáticas apresenta-
das directamente no episódio.
Com discursos tão colados a narrativa serial, as invocações ao passado dita-
torial foram muito limitadas. Consubstanciamos tal facto nas curtas durações
das reuniões, já que nenhum dos 9 encontros superou a fasquia dos 30 minutos,

Lena foram presos pela PIDE. A angústia da família Lopes espelha-se nos rostos de cada
um. O desespero de António acentua-se quando não lhe é permitido ver o filho. Os pais
de Lena metem uma cunha ao ministro e conseguem que ela seja posta em liberdade,
enquanto Toni por não ter conhecimentos continua preso. Cada um à sua maneira tenta
ajudar Toni: Hermínia reza ao seu Santo Expedito, Margarida e Isabel tentam arranjar
um advogado, António pede ajuda ao Dr. Costa Lemos e Carlitos decide raptar a D.
Gertrudes Thomaz durante a visita à escola para trocar a sua liberdade pela de Toni!”
(informação consultada no dia 1 de Novembro de 2014 no seguinte sítio da internet:
http://www.rtp.pt/programa/tv/p20133/e24)

102
por claro esgotamento temático dos intervenientes. Desta forma, o conjunto
de relatos produzidos no decorrer dos grupos de discussão podem ser tipifica-
dos, pois verificamos leituras do episódio marcadamente simplificadas e coin-
cidentes. Duas etiquetas temáticas possibilitam a sistematização do conjunto
de enunciados produzidos. Detalharemos em primeiro lugar a narrativa mais
estendida discursivamente, os assuntos sobre a vida quotidiana relatados na sé-
rie, posteriormente, registamos as observações residuais de carácter político/
institucional.
As narrativas produzidas nos grupos de discussão foram de natureza subs-
tancialmente consensuais, raramente os discursos encontraram perspectivas
contrapostas ou dissidentes. Constamos uma predominância, quase hegemóni-
ca, da produção de sentidos interpretativos que se socorriam dos factos relacio-
nados com assuntos da vida quotidiana e com as questões de costumes que eram
assumidas como exemplos de rigor narrativo.
“A série retracta ao pormenor a época. Desde a maneira de vestir aos pe-
quenos detalhes existentes nas salas de aula, como sejam a cruz de Cristo e a
imagem de Salazar. As maneiras de se comportarem e de agirem perante a so-
ciedade são também bastante similares ao que se vivia na época” [GD5: M3].
A tendência dos relatos foi validar a narrativa histórica da ficção, o retrato
do episódio era coincidente com o imaginário que possuíam os jovens em re-
lação ao período histórico recriado. “Neste episódio, a ficção consegue retratar
ágil e facilmente a realidade, dando uma percepção exacta daquilo que se pas-
sou naquela altura, tanto nos bons, como nos maus aspectos” [GD8: F1].
A aceitação da versão proposta apenas sofreu reparos (que detalharemos
mais a frente), dessa forma a leitura do episódio foi transportada para questões
de costumes, que passamos a descrever segundo a importância decrescente do
relato analisado: a) A constatação de uma sociedade “organizada” a partir dos
valores tradicionalistas ligados à família nuclear, onde era notado o papel tutelar
do chefe de família; b) Um forte moralismo dos costumes que era atribuído à
natureza “conservadora” e de “ordem” do regime e somente de forma lateral ao
papel da Igreja.
Os discursos amplificavam versões históricas simplificadas acerca do regime
ditatorial, resumidas no lema clássico do “Deus, Pátria e Família”. Na ausência
de sentido histórico para produzirem análises consubstanciadas das dimensões
enunciadas, presentificavam as leituras atribuindo-lhes sentido interpretativo
por via da realidade que conhecem. Assistimos a uma leitura do salazarimo
partindo da actualidade, o que denotou uma interpretação descontextualiza-
da dos factos, já que em nenhum momento assumiram que as transformações

103
sociais ocorridas foram fruto de um intrincado processo de luta política e de
uma difícil mobilização colectiva, que foi produzindo gradualmente conquista
de direitos. Podemos verificar esta matriz nas temáticas assinaladas pelas alíneas
abaixo:
1. As considerações feitas, essencialmente pelas participantes femininas em
relação ao machismo daquele tempo, reportam uma natural mudança de men-
talidades que decorre do normal transcorrer do tempo. A naturalização da ideia
de uma sociedade mais paritária é assumida como uma questão de índole essen-
cialmente geracional, e não fruto declarado de uma mudança nítida de regime.
Mesmo percebendo as assimetrias de género em relação aos seus progenitores,
não identificam os comportamentos que relatam dos seus avôs e pais, como o
resultado de um socialização assumida em moldes fortemente masculinizados
e machistas.
2. Da mesma forma que a invocação que fazem aos temas do aborto e da
liberdade sexual (questões que aparecem retratadas no episódio) são fortemente
subjectivizadas, na medida em que assumem a liberdade na equivalência directa
da sua própria autonomia afectiva e sexual. Estas leituras secularizantes, onde o
peso da religião não é referido como agente regulador dos comportamentos so-
ciais, não lhes permite perceber o papel castrador da igreja católica como agente
vital da doutrinação moral das populações que viveram no regime ditatorial. O
fenómeno religioso é percepcionado tendencialmente de duas maneiras: a) por
via de fait divers quotidianos que resultam em leituras simplificadoras da fé, que
não a levam em conta como uma íntima forma de controlo social (“avó é uma
figura cómica que pensa que tudo se resolve com rezinhas” [GD3: F2]); b) des-
de interpretações que relativizam o real poder institucional da igreja católica,
menorizando o seu papel coercivo, pois “a série retrata bem todas as classes e o
padre, por exemplo, queria ajudar mas não tinha poder para isso, também tinha
medo” [GD6: M4].
Por outro lado, as questões de natureza institucional, como os procedimen-
tos do regime e a invocação aos actores políticos/sociais da ditadura, são inex-
pressivas. Como dado significativo, o processo de transição político nem sequer
foi invocado, assim como a questão da guerra colonial. Assistimos a produção
de versões minimalistas que ignoram as etapas históricas do regime ditatorial,
sem referências directas a acontecimentos-chave e sem alusões a figuras ou pro-
tagonistas desse período (mesmo a figura de Salazar não lhes merece observa-
ções ou comentários).
Em relação a dimensão autoritária do regime, os discursos escrutinados es-
tabelecem uma lógica de natureza punitiva, que associam mais a um princípio

104
rígido de ordem do que a um claro abuso de autoridade e a suspensão dos direi-
tos e garantias constituintes. O que se traduz numa percepção de repreensão ou
injustiça do regime, como referem as transcrições abaixo:
“A Pide10 fez com que muitos não falassem o que pensavam e os que falavam
eram reprendidos e vistos como ameaça” [GD6: F3]
“Polícia na época era muito injusta” [GD7: F5].
Ou ainda de forma mais cabal, assistimos num dos discursos a uma leitura
legitimadora do exercício da prática autoritária, aproveitando a série para criar
uma clara analogia com a ausência de autoridade na presente sociedade por-
tuguesa. Esta leitura presentificada parece não ser capaz de produzir um juízo
diferenciador entre o que deve ser o exercício de autoridade em ditadura e em
democracia:
“Existia medo de falar com alguém da autoridade (na ditadura) e o que hoje
se vê que até se desrespeita a autoridade” [GD1: F1]
Muitos dos jovens afirmam que o Portugal democrático funciona de forma
mais deficitária que o Portugal ditatorial. Os indivíduos que corroboram esta
ideia identificam-se ideologicamente no centro político, como atestam os dados
recolhidos nos inquéritos individuais aplicados aos jovens que participaram nos
grupos de discussão. Levando em linha de conta a desconfiança que expressam
acerca do regime democrático e o desinteresse que assumem pelo exercício da
actividade política, poderíamos estabelecer desta correlação que o centro for-
mula a equidistância às ideologias, logo o assumir de uma auto-despolitização.
“Hoje em dia é pior, pois as cunhas estão por todo o lado. ” [GD4: M2].
Na sequência das constatações anteriores, verificamos na nossa análise que
escassos foram os discursos que assinalaram a dimensão repressiva do regime, e
mesmo quando tal aspecto era notado, era uma minoria que expunha as insufi-
ciências da série no tocante aos relatos de natureza repressiva e violenta;
“O meu bisavô foi preso político durante uns meses e, quando o regime foi
abaixo, foi libertado. Quando saiu não dizia nada a ninguém, veio completa-
mente mudado e ninguém podia perguntar o que se tinha passado enquanto
esteve preso, não falava e não se sabe bem o que eles faziam aos reclusos, e é
através destas séries e filmes que conseguimos ter uma ideia do que realmente
se passava” [GD9: F3].
As escassas memórias juvenis (3 jovens no total de 55 participantes) que se
10
A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) foi criada em 1945 e vigorou até
ao ano de 1969, tinha como principal missão a de exercer policiamento político, vigilan-
do e reprimindo todos aqueles que contestassem o regime ditatorial.

105
mostraram mais críticas com a narrativa da série, em particular com as questões
repressivas do regime, foram aquelas que narraram experiências traumáticas vi-
vidas por testemunhos que lhes são próximos ou aquelas que nos questionários
aplicados afirmaram falar de forma mais recorrente de temas políticos com os
seus entornos familiares. Verifica-se a mesma tendência em estudo similar no
tocante ao caso espanhol11 em que “o grau de politização permitia distinguir
o viés introduzido pelo controlo governamental da televisão pública e gerava
leituras que conectavam a série com questões históricas substantivas. O roteiro
era percebido como incompleto, simplificado e estereotipado” (SAMPEDRO;
CARRIÇO REIS; SANCHEZ-DUARTE, 2013, p. 159);
“Não referem casos de tortura, a do sono por exemplo, a violência por parte
da polícia não é muito representada” [GD7: F4]
“Não se viu a parte mesmo repressiva” (…) “as celas eram com dezenas de
pessoas na mesma cela, nunca uma sozinha como mostraram” [GD9: M2].
“Não retrata também a realidade, eu acho que os presos políticos não eram
tão bem tratados nas celas como aparentemente estavam ali. Nos primeiros dias
eles levavam logo pontapés e socos. Não ficavam tão lindinhos como estavam ali
(…) Para não voltar a fazer, oprimiam, no sentido de, se voltar a fazer, já sabes o
que te vai acontecer. Eu sei porque o meu avô estava em Angola e apoiava outro
partido e quando chegou em casa tava com ferimentos e marcas de tortura. Eles
querem que tu não faças mais aquilo” [GD5: F6]12.
Atendendo ao exposto e sistematizando, gostaríamos de sublinhar que as
memórias invocadas por estes alunos universitários (estimulados por um episó-
dio da serie Conta-me como foi) aparentam estar submetidas a um processo de
amnesia social induzida. Parece prevalecer a tese de que a ditadura é um tema
não-inscrito13 (GIL, 2004) na memória colectiva dos portugueses e por isso um
11
O que não verificamos no caso português, embora tenha sido uma das evidências re-
gistadas no caso espanhol, foi que as memórias mais críticas com a narrativa da série esta-
vam fortemente politizadas em ideários posicionados na extrema-esquerda. Tal facto pode
estar directamente relacionado à guerra civil, que polarizou de forma muito concreta as
lembranças da ditadura franquista e ajudou a cristalizar uma memória colectiva opositora
aos discursos correntes da ditadura e da transição espanhola (CARRIÇO REIS, 2012).
12
De notar que o discurso mais crítico com o regime veio das lembranças de uma jo-
vem angolana, que tomou contacto com a natureza repressiva da ditadura no agudizado
contexto colonial.
13
A jornalista Alexandra Prado Coelho, no suplemento cultural Ípsilon do jornal Públi-
co (de 26 de Maio de 2006), indagava sobre o desinteresse da sociedade portuguesa em
relação à ditadura, interrogando-se do “por que é que não vemos Salazar no cinema?”

106
imaginário distante dos jovens universitários ouvidos. As suas versões estereoti-
padas, minimalistas e acríticas em relação ao que a ficção relata da ditadura sa-
lazarista, resultam na nossa leitura empírica de três aspectos significativos para
a erosão desse conhecimento do passado: a. Um desconhecimento profundo da
História portuguesa contemporânea (o que nos obriga a interrogar acerca do
ensino formal da História de Portugal e de todas as ciências humanas comple-
mentares ao entendimento do fenómeno); b. Um processo de despolitização do
período ditatorial no actual debate público (a ausência de reflexões/discursos
sobre o tema na opinião pública pressupõe uma negligência dos meios de comu-
nicação no tratamento das questões históricas, que aparecem de forma recorren-
te apenas nas datas comemorativas dos acontecimentos); c. Uma desmemória
familiar que não comunica as suas memórias vividas desse tempo (fruto de um
ambiente familiar desnutrido de debate político e ideológico, como atestaram os
resultados dos inquéritos aplicados aos jovens universitários).

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110
Eixo 4.
Políticas e regulação dos produtos
midiáticos voltados a crianças e/ou
jovens
Publicidade como ferramenta estratégica da
propaganda infantojuvenil no Brasil: quem regula
afinal?

Patrícia Gonçalves Saldanha

1. Introdução

Considerando que a mídia é o principal canal de divulgação para produtos


direcionados ao segmento infantojuvenil e que se alimenta das próprias pro-
duções audiovisuais e interativas, além da Indústria Publicitária que também
a nutre, o objetivo do presente trabalho é refletir sobre as questões que se esta-
belecem, inclusive as éticas, na relação entre a criança, o adolescente e a mídia.
Com o intuito de compreender este cenário, pretende-se traçar um levan-
tamento panorâmico sobre a atual regulação brasileira dos produtos midiáti-
cos voltados para a criança, uma vez que, atualmente no Brasil, tais produtos
midiáticos, estão intimamente ligados com o que vem sendo tratado como
Publicidade Infantil, mas que, na verdade, é Propaganda direcionada para o
segmento infantojuvenil. A crença aqui não se restringe a reconhecer apenas
que a Publicidade seja uma das porta-vozes do sistema capitalista quando usa
a mídia como canal, mas em refletir sobre a possibilidade da Propaganda ter se
apropriado, inclusive, da Publicidade para consolidar o sistema com muito mais
rapidez e eficiência.
Para compreender tal cenário torna-se necessário dar destaque a dois eixos
basilares e representativos do cenário brasileiro: as estratégias de divulgação da
propaganda na atualidade e a estrutura de regulação voltada para este objeto.
Para desenvolver a reflexão sobre o nexo que tem se estabelecido, cada vez
mais categoricamente, entre a formação da criança e do adolescente e a mídia
na contemporaneidade, é preciso considerar os atuais formatos comunicacio-
nais veiculados com mais frequência nos meios de comunicação tradicionais,
digitais e alternativos. Outro levantamento importante para complementar o
debate se refere aos setores da Sociedade Civil que discutem sobre a viabilidade

112
de uma regulação para a publicização exacerbada das práticas de consumo ge-
ralmente espraiadas estrategicamente pela mídia no espaço social.
Recentemente, o tema obteve um destaque tanto nos meios de comunicação
de massa como nas redes sociais e no cotidiano da sociedade brasileira, uma
vez que foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)1 de
2014, que por ter caráter eliminatório, costuma ser uma das etapas mais recea-
das pelos candidatos. Em função disso, a expectativa em relação à temática da
prova de redação costuma ser alta e a divulgação após seu término, bem intensa.
Neste ano, quando mais de 520 mil candidatos2 tiraram nota zero nessa fase
da avaliação, o ponto positivo foi que a discussão sobre o assunto “Publicidade
infantil em questão no Brasil” passou a compor a pauta não só dos mais de 8
milhões de candidatos inscritos no exame, mas também a do dia a dia do seu
ciclo social e da Sociedade Civil de forma geral.
Ao reconhecer a premência do debate sobre Publicidade Infantil no Brasil,
não é possível tratar do assunto de forma reducionista. É importante pois, que se
estabeleçam algumas bases conceituais para dar concretude à contenda. Não é
possível, por exemplo, continuar confundindo o conceito de Publicidade com o
de Propaganda, tampouco deixar de discorrer sobre como a Constituição Fede-
ral trata do tema, ou mesmo de reconhecer a legitimidade das Instituições que
estão envolvidas com a regulação deste objeto há quase uma década, ainda que
não emanem do governo oficial.

2. Quem regula os dispositivos estratégicos da Propaganda?

O esforço para a construção epistemológica acerca da Publicidade e da Pro-


paganda, incluindo seus desdobramentos mercadológicos com a proliferação
de inovações técnicas para os meios tradicionais, digitais e alternativos e suas
consequências sociais já acontecem no Brasil desde o final do século XX, mais
especificamente em 1997, no XXV congresso da Intercom, quando

o grupo de trabalho de Publicidade e Propaganda formado por professores


universitários, dentre os quais alguns são profissionais atuantes no mercado,
1
O Enem é um exame de nível nacional que, segundo o Ministério da Educação, desde
1998 procura avaliar se o candidato, que concluiu o ensino médio (educação básica),
preenche os requisitos para ingressar na Universidade.
2
http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/01/529-mil-alunos-obtiveram-nota-zero-
na-redacao-do-enem-2014-diz-mec.html

113
deu início a uma reflexão sobre os conceitos destas duas formas de comu-
nicação persuasiva, além de formular uma proposta de ampliar a discussão
para outros aspectos teóricos que envolvem esses conhecimentos. Foi reali-
zada uma ampla pesquisa que teve como primeiro objetivo entrar em con-
tato com o estado da questão: procurar saber que conceitos de publicidade
e de propaganda estão sendo passados aos alunos (GOMES, 2001, p.112).

O ponto é que o desenvolvimento do campo publicitário no Brasil se deu em


três fases datadas: pelo mercado, pela lei e, por último, pela academia. Segundo
Armando Sant’Anna, na 8ª edição de seu clássico Propaganda: teoria, técnica
e prática atualizada em 2009, a primeira agência de publicidade brasileira foi
inaugurada em 1913 ou 1914 (não há documentação oficial sobre o ano), como
um desdobramento dos corretores João Castaldi e Jocelyn Benaton que agen-
ciavam anúncios para os veículos impressos da época. Desde a fundação da “A
Eclética”, a chegada de multinacionais no Brasil não parou mais e algumas, a
exemplo da General Motors, começaram a implementar setores de Propaganda
em seus escritórios. Em seguida, as agências de Publicidade & Propaganda vem
abrindo regularmente seus escritórios e cooperando com a aceleração do giro
financeiro e o consequente fortalecimento do setor econômico no país.
Por volta da década de 60, no período da ditadura militar, o Estado decidiu
compreender o processo de produção dos conteúdos que seriam veiculados nos
meios de comunicação de massa, intervindo mais de perto, inclusive, nas pro-
duções publicitárias. Nesta época, houve a promulgação da lei (4.680/65) que
passou a determinar as bases e os limites do exercício da profissão de publici-
tário por parte do Estado. Regulamentada no ano seguinte pelo decreto 57.690,
o profissional da área passaria por uma série de restrições previstas em lei. Na
década de 70 a situação se acirrou e o governo pensava em criar uma lei para
controlar o conteúdo das peças publicitárias, como se fosse uma censura prévia.
Nessa ordem, sem um carimbo “De Acordo” do governo, as produções publici-
tárias não poderiam circular.
Para garantir certa autonomia às imposições oficiais, principalmente para
garantir a liberdade de expressão comercial para o ramo, alguns profissionais do
mercado (representando agências, anunciantes e veículos de comunicação) se
reuniram e, com base no modelo inglês de regulamentação, criaram a própria
norma de conduta, ou seja, o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publi-
citária. Em seguida, foi fundado o Conselho Nacional de Autorregulamentação
publicitária (Conar), uma ONG que faria e fez valer o código nos anos sub-
sequentes. A estrutura do documento foi aprovada pelas autoridades federais

114
que deixaram de lado o próprio projeto de censura e, desde então, as bases da
publicidade são determinadas pelo Conar com muito mais força do que pela
constituição propriamente, ainda que o Conar não seja um órgão judicante.
Num terceiro momento, com o intuito e obter uma formação mais sólida e
crítica para os profissionais e pela vontade de diferenciar a formação superior
da formação técnica, os cursos de Comunicação Social investem nas graduações
com a abertura de cursos de Publicidade e Propaganda (PP). Em função da falta
de professores formados na área, quem ocupou o primeiro escalão da docência,
para o cumprimento do ciclo básico, foram os professores das ciências sociais
e humanas e no caso das disciplinas práticas, o corpo docente foi ocupado pe-
los profissionais atuantes no mercado. A estrutura dos primeiros currículos era
desconexa, até por se tratar de uma habilitação em construção. Esta realidade se
difere da que vige na atualidade, uma vez que os professores de hoje, em grande
parte pesquisadores, já obtiveram, em sua maioria, além da formação técnica,
uma formação alicerçada na compreensão de que a relação entre prática e teoria
são primordiais para fundamentar um pensamento científico e crítico no que se
refere ao papel da publicidade na atualidade.
Esse breve histórico pode apontar para uma das prováveis razões que contri-
buíram para dois aspectos atinentes aos cursos de Publicidade e Propaganda no
Brasil: seu posicionamento num paradigma técnico-funcional e a sedimentação
do embaralhamento dos termos publicidade e propaganda no cotidiano da for-
mação discente. No entanto, não se pode deixar de considerar que as graduações
em PP estão aportadas num campo maior em fase de consolidação e, ao mesmo
tempo, de internacionalização: o da Comunicação Social. Por isso, recentemen-
te, houve uma esforço dos acadêmicos da área em tentar pensar numa unidade
curricular com a finalidade de organizar o campo e, a partir daí, estabelecer
novas premissas estruturantes para repensar os cursos de PP. É importante, por-
tanto, reconhecer que num momento de expansão do campo comunicacional,
em que é primordial que se facilite o diálogo com outros países que pesquisam
o assunto, os investigadores de Publicidade e Propaganda se movimentaram e,
dentre muitas, duas propostas se destacaram no V Encontro Nacional de Pes-
quisadores em Publicidade e Propaganda em 2014, na ECA – USP: reconhe-
cer a “ABP2 e ECA/USP como instituições aglutinadoras de pesquisadores de
referência na área da Comunicação em Propaganda e Publicidade: mercado e
consumo. E discutir a formação de pesquisadores e os campos de atuação desses
profissionais no cenário acadêmico Brasileiro”3.
3
http://www2.eca.usp.br/propesq/objetivos.html

115
Nota-se, portanto, que os pesquisadores da área perceberam que é substan-
cial que se reconheça que há, pelo menos, uma diferença semântica para ser
cogitada entre os dois verbetes que batizam o campo e não dá mais para manter
um significado único para propostas complementares, porém, diferentes

como querem os publicitários brasileiros. Sendo o Brasil o único país do


mundo a não fazer diferenças conceituais, é necessário que, academicamen-
te, os professores comecem a perceber que estamos diante de duas técnicas,
cujas diferenças acentuam-se na medida em que se aprofundam os estudos,
não apenas semânticos, mas históricos e técnicos (GOMES, 2001, p.111).

A guerra de forças para obtenção da paternidade dos significados demonstra


que mercado e academia não chegam nem tem interesse de chegar a um con-
senso quanto às significações. Numa ponta, há o entendimento tecnicista, por
parte do mercado, que unifica os dois termos como se fossem um só, o que é
corroborado pelo texto da lei (4.680/65) que define que “Agência de Propagan-
da, é a pessoa jurídica que se empenha na arte e técnica voltada para a ativida-
de publicitária”4. Na outra ponta, está a academia que procura compreender
possibilidades de diversificação da comunicação publicitária para além da téc-
nica, inserindo nas suas reflexões as responsabilidades sociais de reconhecer a
publicidade como sistema de mediação para o consumo, mas para além disso,
de entender a publicidade como sistema de mediação na formação do novo pú-
blico consumidor. É nesta compreensão que a academia abre suas reflexões e
dialoga com a Sociedade Civil, que é, no final das contas a mais afetada por esta
discussão.
Para Rabaça e Barbosa, de acordo com a etimologia, publicidade é originária
do latim, (publicus). Em um dicionário da Academia Francesa, o termo publi-
cité, com sentido jurídico, significava publicação, leitura de leis, julgamentos,
etc. Já, no século XIX, consolida seu sentido comercial e passa a representar o
ato de divulgar e vulgarizar algo visando lucro. Enfim, a publicidade atual tem
caráter comercial e linguagem persuasiva para tornar algo público e aprimorar
o convencimento para induzir a escolha no ato da compra ou da contratação.
Já a propaganda, vem do latim, do verbo, Propagare e não pretende vender
ou comercializar, mas se empenha em difundir ideias. Com caráter ideológi-
co, a propaganda se dedica à divulgação e disseminação de ideias, princípios e
doutrinas. Geralmente dedicada à resolução de questões políticas e religiosas,
também com linguagem persuasiva. Portanto, a primeira
4
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4680.htm

116
apropriação do termo propaganda foi feita pela Igreja Católica, no século
XVII, com o estabelecimento pelo papa Gregório XV de uma Comissão
Cardinalícia para a Propagação da Fé...tendo por objetivos fundar seminá-
rios destinados a formar missionários para difundir a religião e a imprimir
livros religiosos e litúrgicos. Procurando contrapor aos atos ideológicos e
doutrinários da Reforma Luterana, o Papa Gregório XV editou a bula Ins-
crutabili Divinae, que criou a Sagrada Congregação para a Propagação da
Fé (PINHO, 1990,p.20)

A questão é que a propaganda ampliou seus interesses. Destarte, a outra


perspectiva que traz relevância à discussão sobre propaganda se dá, na medi-
da em que pode ser percebida como um dispositivo comunicativo que atinge
de forma certeira a Sociedade Civil, alterando, em algum grau, a subjetividade
do receptor das mensagens através do uso estratégico de ferramentas sensíveis,
a exemplo da publicidade. As técnicas publicitárias adotam pois, linguagem e
estética como itens facilitadores da apreensão do conteúdo divulgado; além de
contar com os diversos formatos das produções pelos antigos e novos media.
Nesse sentido, a propaganda pode ser entendida como uma ferramenta que,
ao ser apropriada pelo mercado, não só divulga marcas de produtos e de servi-
ços, mas a ideologia do sistema capitalista que naturaliza a prática de consumo
através das exposições nas produções audiovisuais e de teledramaturgia infantil,
de Product Placement ou de ações de merchandising em programações direcio-
nadas para o público infantil e infantojuvenil tanto nas TVs abertas, como nas
TVs por assinatura, na internet (ciberpublicidade), nos celulares e, por fim, nas
mídias alternativas.

3. Estratégias sensíveis da propaganda para a formação de um


novo consumidor

Assumindo que a publicidade pode ser uma das estratégias usadas pela
propaganda que, orquestrada pelo mercado transnacional, intenciona alterar a
subjetividade do receptor para uma aceitação de seus produtos sem maiores re-
sistências, seria possível afirmar que a publicidade age na formação da criança e
do adolescente, cognitiva e/ou sensorialmente através da propagação de valores
e da criação de novos referenciais a serem seguidos?
É preciso então discorrer com mais profundidade sobre modos como a pro-
paganda poderia acertar o alvo formativo da criança e do adolescente. É neces-

117
sário que se considere também que, além daqueles que são identificados como
consumidores potenciais, a propaganda também acerta a mira do grupo que
não é identificado como tal. Existe o convívio cotidiano entre crianças e ado-
lescentes que pertencem aos dois grupos. Os que obtém os produtos e os que
são excluídos desse processo. O segundo grupo continua preso na lógica do
consumo, na medida em que está vinculados a ele pelo desejo de ter e pela dura
angústia de não poder ter. Nota-se, por conseguinte, que todos estão inseridos
no mesmo sistema que se alimenta, cada vez mais, das técnicas de propagação
usadas pelo mercado para disseminar valores, construir gostos e visões de mun-
do para as crianças e adolescentes consensualmente e em larga escala.
Neste diapasão, é fundamental visualizar onde se encaixam as práticas de
publicização e suas consequências sociais uma vez que o requintado discurso
publicitário seduz sujeitos ainda em formação utilizando-se de cheiros, textu-
ras, sons, imagens e itens que promovem experiências interativas com os perso-
nagens, brinquedos, parques temáticos, dentre outros. O ponto é que a difusão
costuma ser para todos, mas não, necessariamente, garante a todos, o acesso
à compra. Independente da aquisição, a criança tem contato com o comercial
transmitido pelas redes sociais, pelos celulares e pela televisão, porém nem sem-
pre tem a perspicácia para

diferenciar, no caso da televisão, por exemplo, o que é conteúdo de progra-


mação do que é anúncio publicitário. [...] o desenho de uma boneca ou de
um super-herói é a mesma coisa que a publicidade dos brinquedos. Por isso,
o merchandising dentro de novelinhas infantis também é considerado abu-
sivo. “É uma prática que se utiliza da vulnerabilidade da criança”, ressalta o
advogado do Instituto Alana5.

Logo, é importante que se projete esta discussão num panorama de análise


mais amplo, como é o caso do campo da Comunicação Social, já que este cam-
po permite a articulação de questões de mercado, acadêmicas e interpessoais.
Vale compreender a perspectiva de Sodré que estrutura o campo em três esferas
semânticas: a da veiculação, a da vinculação e a da cognição. A Veiculação tra-
balha na ordem da mediação viabilizada pela mídia, logo, a midiatização; tem
natureza empresarial privada ou estatal e apesar de ter um significativo número
de profissionais envolvidos nas suas produções, é balizada pelo contrato e nu-
trida pela Publicidade. No que tange à cognição, é possível pensar na ordem da

5
http://sites.uai.com.br/app/noticia/saudeplena/noticias/2014/11/10/noticia_saudeple-
na,151198/publicidade-infantil-e-tema-de-redacao-do-enem-o-que-voce-precisa-sab.shtml

118
compreensão e da reflexão dos fatos que acontecem no mercado e na vida diá-
ria. É nesta esfera do campo comunicativo que os pesquisadores transcendem
o óbvio e enxergam para além do que o seu objeto é, mas o que pode vir a ser e
suas consequências projetadas no mundo. Por fim, a vinculação, ocupa a exten-
são afetiva dialógica das atividades cotidianas dos indivíduos que promovem a
reciprocidade comunicacional entre si. A vinculação não se confina à atividade
midiática nem é originária da rede, ponto crucial para diferenciá-la da intera-
ção, que é proveniente da rede.
Contudo, mesmo que não restrinja suas atividades à mídia, não está desli-
gada dela, mas conectada a ela pelo processo comunicativo que, quando equi-
parado ao processo informacional, direciona o conteúdo da comunicação ao
dispêndio indiscriminado como se fosse uma informação como por exemplo
acontece na época de datas comemorativas em que os filmes publicitários in-
formam que determinados produtos “Já estão nas lojas. Venha logo!!!”, ou que,
ainda no mês de outubro, “Já é Natal na Leader Magazine” e que, por isso, você
só paga a primeira prestação da compra de Natal em janeiro do ano que vem. A
informação que, a priori não tem o menor sentido, é dada e cabe ao consumidor
seguir os Imperativos Categóricos dos slogans publicitários e partir rumo ao
comércio para efetivar a compra.
Esse processo deixa evidente que a intenção prioritária deste tipo de divulgação
ultrapassa a publicização de marcas de produtos e de serviços, mas propaga um
pensamento dominante que enfoca a prática do consumo como ideia central que
vê em grande dimensão sua expressão traduzida em consumismo que, ultimamen-
te, tem se tornado uma das opções de vida da Sociedade Contemporânea.
É perceptível que as informações alastradas pela mídia invadem e agendam
a vida dos adultos e das crianças sem nenhum tipo de distinção. Para Sodré, a
mídia trabalha com o ethos no sentido da recriação dos costumes e dos hábitos.
É a presença “quase” física no mundo físico. Com isso, surge uma nova mora-
lidade, em novos cenários, com atitudes e comportamentos também novos. É
o aparecimento e a sedimentação de uma nova verdade (baseada e legitimada
pela ordem do capital), que tem como característica principal a lucratividade.
E que, por sua vez, define uma outra lógica e verdade para o mercado, ou me-
lhor, define o ‘bem’ do mercado, ou o ‘bem’ que deveria regular moralmente as
atitudes das pessoas que habitam a pólis que, cada vez mais, se consolida com
características mercadológicas.
Quando falamos em pólis, retornamos quase de imediato a Aristóteles, pois
foi na política que o filósofo encontrou o objetivo original de seu pensamento
ético. Para ele, a ética seria parte da política e

119
[…] o objetivo da ética seria então determinar qual é o bem supremo para
as criaturas humanas (a felicidade) e qual é a finalidade da vida humana
(fruir esta felicidade da maneira mais elevada - a contemplação); este é o
conteúdo da Ética a Nicômacos em linhas muito gerais. Depois de deter-
minados estes dois pontos, haveria que investigar qual a melhor maneira
de proporcionar às criaturas humanas este bem supremo e assegurar-lhe a
fruição. Já que [...]a maneira de assegurar a felicidade das criaturas huma-
nas é proporcionar um bom governo à sua cidade (no sentido grego de ci-
dade-estado); há que determinar, então, qual é a melhor forma de governo,
e este é o assunto da Política (ARISTÓTELES, 1999).

O fato é que, atualmente não podemos considerar política sem mídia, mídia
sem política nem mídia e política sem a publicidade e a propaganda que susten-
tam a mídia. Na verdade, a política, que legislar a favor da Sociedade, passou
a legislar para facilitar a circulação de bens materiais e imateriais do merca-
do. Evidencia-se assim que o sentido da construção ética regida por uma nova
moralidade alimentada e conduzida pela simbiose ético-midiática. A questão
passa a ser então, a forma como os meios de comunicação agem e medeiam a
informação e a formação das pessoas.

O papel da comunicação hoje, em relação à educação, pode ser extrema-


mente enganosa, pois multiplicam-se os meios de comunicação com pro-
jetos educacionais, educação à distância, televisão, telecursos, projetos di-
fusionistas, distributivistas de conhecimento e informação, muitas vezes
desnecessária e pouco operativa. Muitos desses telecursos são apenas dis-
tribuidores de diplomas de segunda ou terceira qualidade. Dão uma ilu-
são de formação, quando as verdadeiras escolas preparam para o mercado
qualificado, para a mão de obra qualificada e vão efetivamente ser trilhadas
e frequentadas pela elite... A verdadeira formação escolar, da educação for-
mal, ainda pressupõe uma relação ética e política com o professor. (SODRÉ,
2001, p.19).

É crucial que se observe como a prática de educação eletrônica vai se tornan-


do um hábito, um costume, ressaltando ainda a maneira como vão educando e
aliciando seus targets para uma nova formação moral. O excesso de estímulos
promulgados deflaciona o sentido do verdadeiro conteúdo que é emitido, cau-
sando consequentemente, uma quebra de barreira promovedoras de resistências.
A partir da apatia instalada no sujeito, abre-se espaço para introdução de novas
relevâncias que, por fim, são apreendidas na ordem da razão. Em outros termos, é

120
possível afirmar que há uma investida do mercado no processo de ressubjetivação
dos indivíduos a fim de formar novos consumidores, ou pelo menos de adequar
cidadãos às demandas do mercado.

Nessa ressubjetivação, nessa concorrência, a televisão assume um lugar de


pai e mãe poderosos. Você vê que todas as funções da grande publicidade,
das multinacionais, não é para vender coisa nenhuma! Se vende mas é na
publicidade de varejo. Quando uma companhia dessas anuncia petróleo ou
gasolina na grande publicidade, notamos que é algo desnecessário para o
consumidor. Se você tem carro, não precisa de propaganda para comprar
gasolina. Então essa publicidade existe porque é um pouco como a mãe. [...]

A publicidade tem uma função de envolvimento sensorial, paternalização,


de garantir ao sujeito de que alguma coisa no nível macro, no nível do consumo,
está velando por ele. E ao mesmo tempo está revelando a onipotência, o poder
da empresa. Essa realidade multissensorial é poderosa.(Idem)
O conteúdo difundido concorre com os discursos de formação vindo das
mediações que, por sua vez, sempre serviram para auxiliar o homem no seu
processo de relação com o mundo exterior. Nesse ponto, a escola e a família são
constantemente simuladas na/pela mídia que constrói uma realidade substitu-
tiva sem mazelas ou frustrações que não se resolvam ao final da trama. É nesta
vida vicária com novos valores, em geral diretamente atrelados ao que se conso-
me, que crianças e adolescentes tem fundado e firmado suas visões de mundo.
A publicidade veiculada pela mídia, instalada nas casas e lares, cria cenários
e, por sensorialismo, atua na cognição, remodelando comportamentos, rein-
ventando novos costumes e hábitos, reconstruindo enfim, uma nova ética, já
que as novas condutas são apreendidas não apenas por uma criança, mas por
um coletivo infantojuvenil. Sempre com um discurso lisonjeiro e adulador do
ego, a mídia facilita a vida de quem se conecta a ela. É no clima descontraído
da facilitação, do descanso e da diversão que a publicidade aproveita a brecha
e concretiza o redirecionamento de valores no ato do despertar da vontade de
ter produtos. A vinculação da criança e do adolescente com a mídia através da
publicidade se dá no ato em que se pactua com a possibilidade de vir a consu-
mir. E essa passa a ser a razão condutora da ação do sujeito, o fato de querer ter
simplesmente porque foi colocado na vitrine dos meios de comunicação ou na
prateleira da fanpage.
Por isso, o consumo não é entendido neste trabalho a partir da obtenção
das peças anunciadas, mas pelo momento exato do despertar para o desejo de

121
ter a peça anunciada. Este instante específico consolida o nexo atrativo entre a
criança e o consumo de marcas que são divulgadas e categoricamente emba-
ladas pelo discurso da necessidade. No momento em que o receptor assiste a
um comercial, passa a “carecer” daquilo que foi veiculado. É aí que o vínculo se
estabelece e cria novos sentidos, que são massificados até que virem regra. Um
dos casos famosos que gerou muita discussão no Brasil foi o comercial de 1992,
da tesourinha da Mickey e Minnie da Mundial intitulado “Eu tenho, Você não
tem” pode ser conferido no link: https://www.youtube.com/watch?v=zMFqT-
zH_dn0. Tratava-se de um artigo de papelaria caríssimo, com poucas edições,
o que gerou uma competitividade exacerbada entre as crianças que tinham o
aparato e de frustração para as que, por alguma razão, não podiam ter. Qual-
quer outro tipo tesoura poderia compor o material escolar daquela época, mas
o desejo era pela tal tesourinha da Disney, que vinha em versões masculina e
feminina.
Esta mesma lógica se reproduziu com os comerciais de cerveja que utilizavam
“bichinhos fofos”, como os siris (https://www.youtube.com/watch?v=TGhS-
miLfFtM) e a tartaruga (https://www.youtube.com/watch?v=uWgk2umLUBY)
usados nos comerciais da Brahma pelos idos dos anos 2000, por exemplo. Como
os elementos infantis despertavam curiosidade nas crianças, o Conar recomen-
dou a retirada da veiculação do comercial (o que será detalhado mais a frente).
Apesar das ações do Conar ou no caso das campanhas publicitárias já terem
expirado seu tempo, as produções audiovisuais continuam sendo acessadas pela
internet. Outros exemplos de casos abusivos são recorrentes, como caso do sutiã
com enchimento da Disney que, segundo Desirée Ruas, desde 2011, é

destinado às crianças de 4 a 6 anos mobilizou protestos na internet contra a


adultização e erotização da infância. Por que meninas dessa idade usariam
sutiã? Que família compraria um produto como esse? Alguns produtos se-
quer deveriam existir? Três anos depois e uma busca rápida pela internet
mostram que a roupa íntima não só está no mercado como ganhou ares
de ‘sofisticação’ com bojo, renda e aro. Detalhe: em alguns sites é possível
encontrar a peça para bebês de 2 anos. “Não basta dizer às pessoas que não
comprem. Precisamos de produtos adequados nas prateleiras”6.

Quer dizer, a mídia vem propalando uma nova ética fundamentada numa
moral privada que sustenta a deontologia do mercado, mesmo que, aparente-
6
http://sites.correioweb.com.br/app/50,114/2014/07/21/noticia_saudeplena,149454/sut-
ia-com-bojo-para- criancas.shtml

122
mente não tenha um sentido claro, mas que está ligada a uma moral que regula
a ação que financeiriza o mundo. Em princípio, “tem sentido comprar sutiã de
renda com bojo para um bebê de dois anos de idade?”. De acordo com a norma-
tização de mercado, o sentido está no ato de comprar.
De toda forma, o que de fato é estratégico na atual configuração social não é
só a divulgação de novas regras que estabelecem o bem comum, mas a operação
que propaga maciçamente valores de consumo que são absorvidos por crianças e
adolescentes, na ordem da razão. É a razão que passa a estabelecer o que e como
se deve ser a partir do que se tem, na conduta da vida prática de hoje em dia. O
ponto é que a mídia opera na constituição da nova moralidade de um coletivo
em formação que vai compartilhar a regra do consumismo coletivamente ser-
vindo, pois, de sustentáculo para a tal ética que passou a vigorar colocando em
pauta a dúvida da regulação de tudo isso.

4. Afinal, quem regula a propaganda infantojuvenil?

Partindo do pressuposto que a Propaganda Infantojuvenil opera na criação


de uma nova moralidade, que órgãos deveriam servir de base para regular tal
circunstância, uma vez que as Instituições responsáveis pelo quesito da regula-
mentação publicitária tem como referência um código de autorregulamentação
e uma lei que consideram publicidade e propaganda apenas uma técnica de di-
vulgação de marcas? Vale investigar como andam as regulações desta polêmica
que vem ganhando visibilidade na sociedade brasileira por vários caminhos. Na
da organização do mercado, na dos direitos do consumidor e na forma como a
Sociedade Civil tem reagido a tudo isso.
De maneira geral, a Publicidade do mercado é estruturada por 3 pilares:
agências de Publicidade (ou de propaganda, como é referida no mercado e na
própria constituição federal), veículos de Comunicação de Massa e clientes
anunciantes. Ou seja, concebe, produz e veicula campanhas publicitárias ou
anúncios avulsos e a responsabilidade de todo o processo é dividida igualmente
pelos 3 agentes. Outra característica peculiar da organização do mercado publi-
citário são as entidades que o fundamentam, mais especificamente as que cui-
dam de sua regulamentação que é exercida principalmente por duas entidades:
o Conar e o CENP.
Voltando ao primeiro, como dito anteriormente, não pode agir como censor
e se ocupar basicamente em avaliar o conteúdo de todas as veiculações publici-

123
tárias com base no código de autorregulamentação, a partir de uma reclamação
prévia de qualquer cidadão comum. Neste ponto, a ONG adverte; recomenda a
alteração ou correção do Anúncio; recomenda aos Veículos no sentido de que
sustem a divulgação do anúncio; por fim, divulga sua posição com relação ao
Anunciante, à Agência e ao Veículo, através de Veículos de comunicação, em
face do não acatamento das medidas e providências preconizadas. Na prática,
o que costuma acontecer é que a primeira advertência do Conar costuma ser
acatada sem muitas discussões. Já o CENP, o Conselho Executivo de Normas
Padrão, também criado pelo mercado, formulou um documento básico que de-
fine toda a regulamentação, fiscalização, habilitação e certificação das agências
de publicidade para definir e controlar as negociações comerciais que ocorrem.
O CENP foi criado em 1998 e conta com o Governo Federal em sua composi-
ção, além dos mesmos membros que compõem o Conar. “O Conselho Executivo
das Normas-Padrão é uma entidade de ética, com atuação nacional, criada e
mantida exclusivamente pelo setor privado para assegurar boas práticas comer-
ciais entre anunciantes, agências de publicidade e veículos de comunicação”7. O
CENP não contempla a Publicidade Infantil em sua documentação. O Conar
que cuida do conteúdo também não tem um artigo próprio sobre Publicidade
Infantil em seu código, mas cita de maneira bem superficial a questão no decor-
rer de alguns itens e anexos do código que é formado por 5 capítulos e 22 anexos.
Os 5 capítulos foram estruturados para controlar toda a produção de con-
teúdo nos diversos formatos publicitários. São eles: Introdução, Princípios
Gerais, Categorias Especiais dos Anúncios, as Responsabilidades, Infrações e
Penalidades. A outra parte do Código é formada pelos anexos que detém as ca-
tegorias especiais de anúncios e vão desde anexo A até o anexo U, abrangendo as
categorias desde bebidas alcoólicas, produtos de fumo, produtos farmacêuticos,
profissionais liberais, venda de varejo, etc. Dentre as poucas menções destinadas
à questão da publicidade infantil encontra-se a maior delas no capítulo II, seção
11 – crianças e jovens artigo 37 que tem como as principais proposições:

Os esforços de pais, educadores, autoridades e da comunidade devem


encontrar na publicidade fator coadjuvante na formação de cidadãos res-
ponsáveis e consumidores conscientes. Diante de tal perspectiva, nenhum
anúncio dirigirá apelo imperativo de consumo diretamente à criança.[...]

Nota: Nesta Seção adotaram-se os parâmetros definidos no art. 2º do Esta-


tuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90): “Considera-se criança,

7
http://www.cenp.com.br

124
para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e
adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”8.

Aparece uma menção no interior de alguns anexos: “bebidas alcoólicas”


(anexo A); “alimentos, refrigerante, sucos e bebidas assemelhadas” (anexo H);
“produtos de fumo” (anexo J); “cervejas e vinhos”(anexo P); “armas de fogo”(ane-
xo S) e “ices e bebidas assemelhadas”(anexo T). É no conteúdo de tais categorias
que aparecem artigos que citam o público infantojuvenil, mas pode-se observar
que todo o texto tem como pressuposto a perspectiva dos clientes anunciantes,
dos veículos de comunicação e das agências de publicidade ou como a maneira
como a publicidade pode infringir a lei. Não há citações ou, pelo menos, uma
preocupação clara com a formação do público infantojuvenil em nenhum dos
anexos. Por exemplo, o texto mais significativo em todo o código é o que aparece
replicado, os anexos supracitados para bebidas alcoólicas são ligados ao prin-
cípio de proteção a crianças e adolescentes, mas se limita a afirmar que não os
terá como público-alvo. Afirma ainda que as agências cuidarão da criação das
mensagens publicitárias e na elaboração das estratégias mercadológicas. Assim,

a. Crianças e adolescentes não figurarão, de qualquer forma, em


anúncios; qualquer pessoa que neles apareça deverá ser e pare-
cer maior de 25 anos de idade;

b. As mensagens serão exclusivamente destinadas ao público adul-


to, não sendo justificável qualquer transigência em relação a este
princípio. Assim, o conteúdo dos anúncios deixará claro tratar-se
de produto de consumo impróprio para menores; não emprega-
rá linguagem, expressões, recursos gráficos e audiovisuais reco-
nhecidamente pertencentes ao universo infantojuvenil, tais como
animais “humanizados”, bonecos ou animações que possam des-
pertar a curiosidade ou a atenção de menores nem contribuir
para que eles adotem valores morais ou hábitos incompatíveis
com a menoridade;

c. O planejamento de mídia levará em consideração este princípio,


devendo, portanto, refletir as restrições e os cuidados técnica e
eticamente adequados. Assim, o anúncio somente será inserido
em programação, publicação ou website dirigidos predominan-

8
http://www.conar.org.br/

125
temente a maiores de idade. Diante de eventual dificuldade para
aferição do público predominante, adotar-se-á programação que
melhor atenda ao propósito de proteger crianças e adolescentes;

d. Os websites pertencentes a marcas de produtos que se enqua-


drarem na categoria aqui tratada deverão conter dispositivo de
acesso seletivo, de modo a evitar a navegação por menores9.

Já que o Estado efetivamente não opera na regulação das produções publici-


tárias, entrou em ação para ponderar sobre as relações comerciais que abarcas-
sem a publicidade. No ano de 1990 criou uma lei que basicamente daria prote-
ção às pessoas que fizessem compras e contratassem serviços. Mais conhecido
como Código de Defesa do Consumidor, colocado em vigor em março de 1991,
a lei nº 8.078/90, se ocupa prioritariamente de garantir ao consumidor o cum-
primento das regras estabelecidas entre ele e o fornecedor a partir da compra.
Logo no início o texto já delimita o conceito de fornecedor e de consumidor
sem fazer menção à publicidade infantil. A palavra “criança” só aparece uma vez
no § 2° do artigo 37 como será visto mais à frente. Não se percebe, no decorrer
do código, nenhum tipo de preocupação no sentido de alertar o comprador
sobre a real necessidade de consumir ou sobre os limites do consumo. Nesse
sentido, o direito do consumidor fica restrito a partir do momento em que a
compra é realizada.
Há pelo decorrer da redação da lei apenas uma parte dedicada à Publicidade
nos artigos 36, 37 e 38 na seção III do capítulo V (das práticas comerciais) como
descrito a seguir:

Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor,
fácil e imediatamente, a identifique como tal.
Parágrafo único. O fornecedor, na publicidade de seus produtos ou servi-
ços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os
dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.
Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
§ 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de
caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro
modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a
respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades,
origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.
9
Idem

126
§ 2° É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer
natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se
aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita
valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se
comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
§ 3° Para os efeitos deste código, a publicidade é enganosa por omissão
quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço.
Art. 38. O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comu-
nicação publicitária cabe a quem as patrocina10.

É indiscutível que a parte destinada às questões publicitárias são muito resu-


midas e praticamente replicam os termos técnicos (abusiva e enganosa) citados
no Conar.
No mesmo ano foi promulgada outra lei nº 8.069/90, mais conhecida como
Estatuto da Criança e do Adolescente. Neste documento, a palavra consumo
não é sequer citada e apesar da palavra publicidade aparecer uma única vez, não
está atrelada ao consumo de produtos nem ao sentido de publicidade infantil
como o tratamos até agora. O termo aparece no artigo 253 quando afirma que
“Anunciar peças teatrais, filmes ou quaisquer representações ou espetáculos,
sem indicar os limites de idade a que não se recomendem: Pena - multa de três
a vinte salários de referência, duplicada em caso de reincidência, aplicável, se-
paradamente, à casa de espetáculo e aos órgãos de divulgação ou publicidade”11.
Criado pela Lei nº 8242/91, o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente) se constituiu como instância máxima, da esfera
federal, para formular e deliberar políticas públicas para a criança e o adoles-
cente. Mas foi em março de 2014 que atribuiu num documento de 3 páginas, a
resolução nº 163 que, de fato, “Dispõe sobre a abusividade do direcionamento
de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente”12. A
resolução se dedica a “Aperfeiçoar instrumentos de proteção e defesa de crian-
ças e adolescentes para enfrentamento das ameaças ou violações de direitos fa-
cilitadas pelas Tecnologias de Informação e Comunicação”13.
10
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm
11
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
12
http://www.mpba.mp.br/atuacao/infancia/publicidadeeconsumo/conanda/resolucao_163_
conanda.pdf
13
Idem

127
5. Considerações finais

Esta foi uma iniciativa que, de fato, raciocinou a questão da Publicidade In-
fantil da maneira como o mercado faz. Passou a atuar na mensagem e na forma
de construir a mensagem, além de apontar para quem direcionar a mensagem.
A Resolução do Conanda não prevê a censura da publicidade, mas o seu redire-
cionamento ao público adulto que tem, em princípio, condições críticas de ava-
liar o que procede e o que não procede. O fato de ter alinhado seu pensamento
ao do mercado, lhe permitiu agir no ponto que realmente é abusivo, conforme
os itens listados a seguir:

- Linguagem infantil, efeitos especiais e excessos de cores;


- Trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança;
- Representação de criança;
- Pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil;
- Personagens ou apresentadores infantis;
- Desenho animado ou de animação;
- Bonecos ou similares;
- Promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis
ou com apelos ao público infantil;
- Promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil14.

Vale ressaltar que, por ter força normativa, o não cumprimento das regras
estipuladas no Conanda, diferentemente do Conar, podem realmente resultar
na suspensão da veiculação e na geração de multas. Obviamente, agora é a hora
de redobrar a atenção para as prováveis reações de quem será cerceado ou afeta-
do pelas novas decisões, desta vez, com força judicial.
De imediato, o Conar se pronunciou criticamente às resoluções estabele-
cidas pelo documento publicado pelo Conanda e afirmou que a melhor forma
de organizar o mercado é a autorregulamentação. Mais do que uma resposta
crítica, há um projeto de lei, do deputado Milton Monti (PR-SP), tramitando na
Câmara dos Deputados e questionando a constitucionalidade da resolução 163
do Conanda.
14
http://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=268725

128
Outra reação curiosa foi quando Maurício de Sousa, um dos mais famosos
cartunistas e empresários brasileiros, criador da “Turma da Mônica” e membro
da Academia Paulista de Letras, postou, em sua rede social (Facebook), a foto
de uma menina (Verônica) segurando um cartaz de protesto com o seguinte
texto: “Eu tenho direito de assistir publicidade infantil. A televisão não é só para
os adultos. Alguém sabe quais produtos infantis lançaram por esses dias?”. A
postagem e a posição do empresário causou reações e debate nas redes sociais.
A arena foi aberta para o combate e a briga promete ser austera. Neste ínte-
rim, entra em cena a Sociedade Civil para pressionar a parceria Estado e Mer-
cado que vem atuando em prol de interesses comuns há tanto tempo. Valeria
investir num levantamento e exposição pública de uma cartografia das iniciati-
vas e coletivos atuantes que colocasse a Sociedade Civil como protagonista des-
se embate. Segue, todavia, uma tabela embrionária com algumas organizações
muito atuantes da Sociedade Civil.

Quem ? Desde ... Faz o que?


Aposta na busca pela garanƟa de
condições para a vivência plena da
infância.Conta hoje com sete proje-
InsƟtuto Alana 1994 tos próprios e quatro com parceiros e
é manƟdo pelos rendimentos de um
fundo patrimonial desde 2013. Tem
como missão “honrar a criança”.
arƟcula ações inovadoras em mídia
para o desenvolvimento e promove
1990 – vo- o fortalecimento de um diálogo pro-
Andi (Agência luntaria- fissional e éƟco entre as redações, as
Nacional de Direitos mente e faculdades de comunicação e outras,
da Infãncia) 1993 - for- os poderes públicos e as enƟdades
malmente relacionadas à agenda do desenvolvi-
mento sustentável e dos direitos hu-
manos.

Rebrinq – Rede O ‘Consciência e Consumo’ é um mo-


vimento pela consciência e ação críƟ-
Brasileira Infância e
ca que integra meio ambiente, educa-
Consumo ção, mídia, infância e consumo.

129
Tais movimentos fortalecem a participação popular na discussão, principal-
mente em função das causas que vigoram há quase um século, mas que têm sido
defendidas há pouco mais de uma década. Não se pode deixar de observar que
em toda essa discussão é a Propaganda que vem operando a serviço do sistema
capitalista através do uso de produtos midiáticos na difusão de uma lógica que
reforça a criação de uma nova moralidade. Mas ainda é possível perceber que
existem ações de resistência aos discursos que tentam neutralizar as bases dos
que lutam por uma sociedade mais humanizada.

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http://rebrinc.com.br/

131
A comunicação comercial de alimentos e bebidas
para crianças em Portugal: entre a regulação e a
auto-regulação

Ana Jorge

1. Introdução

A crescente incidência de obesidade entre a população, incluindo no seg-


mento infanto-juvenil, em países desenvolvidos, tem vindo a ser enquadrada
como um problema social com graves consequências para o desenvolvimento
humano e social. Estilos de vida cosmopolitas favorecem um quadro de alimen-
tação marcado por comida processada e fast food, excesso de sódio e açúcares,
carência de frutas e vegetais frescos, a que se junta frequentemente o sendenta-
rismo. Este fenómeno reflecte-se de formas diferentes em função do desenvol-
vimento económico, cultural e social das crianças, suas famílias e dos contextos
em que vivem. Nos países europeus, estima-se que cerca de 30% da população
infantil tenha sobrepeso e que 10% tenha obesidade (BANCALEIRO, 2014). A
Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que nos países emergentes, como
o Brasil, a expressão da obesidade infantil esteja a ganhar terreno, diminuindo a
prevalência de mal nutrição infantil que caracteriza o estádio de subdesenvolvi-
mento (OECD, 2011). Acresce a esta tendência a variação social do fenómeno,
com um agravamento entre as camadas mais desfavorecidas da população1.
Embora este seja um problema com causas multifactoriais, a publicidade,
bem como outras formas de marketing, e o entretenimento dos media para
crianças e jovens são frequentemente apontados como uns dos principais res-
ponsáveis. O debate sobre os efeitos da publicidade, particularmente de ves-
tuário e produtos de estilo de vida, e seus efeitos na auto-imagem de crianças e
jovens ou na criação de estereótipos (GUNTER et al., 2005), são ângulos pos-
síveis e mais populares para a análise deste fenómeno, quer na academia quer
sobretudo nos ecos que surgem nos media, muitas vezes enredados num con-
junto de food fears, receios que englobam dimensões sócio-culturais e morais

1
Plataforma contra a Obesidade, S/d.

132
(JACKSON, WATSON e PIPER, 2013). Neste capítulo, contudo, perspectiva-
mos a questão da publicidade e comunicação comercial de alimentos e bebidas
na sua intersecção com o fenómeno da obesidade infantil a partir das esferas de
decisão e enquadramento da actividade, nomeadamente de regulação e auto-
-regulação. Em termos empíricos, consideramos o panorama português da co-
municação comercial para crianças e adolescentes, sobretudo na área alimentar,
na tensão entre essas esferas, incluindo compromissos éticos assumidos pelas
indústrias do sector, bem como os programas de literacia da publicidade, face à
pressão para a manutenção do quadro regulador. Fazemo-lo por acreditar que
este campo em particular levanta importantes tensões que exemplificam o que
de mais vasto ocorre na área da comunicação comercial para crianças e jovens, e
suas implicações económicas, culturais, políticas e de saúde para as populações.
Para levar adiante a nossa análise crítica, observamos, por um lado, como
o consumo e os media ocupam um lugar de inegável importância na vida de
crianças e jovens, incluindo no que se refere ao consumo alimentar. Por outro,
analisamos como novos desafios são colocados pela convergência dos media no
que toca à relação dos mais novos com os mesmos, incluindo com os produtos
de consumo e especialmente de consumo alimentar. Procederemos em seguida
à análise do caso em estudo, demonstrando as suas tensões.

2. O consumo e as culturas infanto-juvenis no tempo das


tecnologias convergentes

Por um lado, há um debate moral sintonizado com o proteccionismo que se


exerce sobre crianças, que identifica o mercado com o ‘mal’, acusando os media
de promoverem discursos de sexo e violência, drogas e junk food, estereótipos
de género, entre outros; por outro, há um discurso do mercado que sacraliza o
‘kids power’, colocando os mais novos como figuras de autoridade, competentes
e autónomas (BUCKINGHAM, 2011). Buckingham advoga, então, uma pers-
pectiva mais abrangente, que dê conta da relação entre as crianças e o mercado
não como uma díade, mas como estando “inserida nos quotidianos das crian-
ças, incluindo as suas relações com pais e pares” (2011, p. 66). Compreendendo
as questões sociais e culturais, mas também emocionais e psicológicas, envolvi-
das no consumo, supera-se essa “polarização fácil” (2011, p. 226).
Os processos de consumo infanto-juvenis revestem-se, assim, de importan-
tes contornos não só económicos, mas também sociais e culturais. O consumo

133
alimentar, que aqui nos ocupa especialmente, é muito mais do que atender a
uma necessidade fisiológica, mas constitui-se como um verdadeiro processo so-
ciocultural e não menos económico, em que interagem famílias, pares, media
(LIVINGSTONE e LUNT, 1994; LIVINGSTONE, 2004).
O marketing de produtos alimentares e bebidas pode passar por publici-
dade, product placement, marketing directo, patrocínios, design de produto e
ponto de venda (WHO, 2012). A colocação de produto em conteúdos editoriais
(product placement) é apenas uma das faces mais visíveis do crescente esbati-
mento de fronteiras entre o editorial e o promocional, mas também o merchan-
dising sinaliza essa transição entre editorial e produto, regulado por licencia-
mentos que traduzem o valor dos direitos. Embora as técnicas permaneçam as
mesmas na essência, é forçoso reconhecer que as tecnologias digitais e móveis,
personalizadas, vieram de facto trazer novas questões a esta área. Temas como
a geo-referenciação, por exemplo, colocam importantes desafios aos direitos de
privacidade das crianças, tanto mais quando combinados com a tentativa co-
mercial de utilizar essas informações para comunicar de forma ultrapersona-
lizada aos consumidores: o mobile marketing (WHO, 2013). Outro dos temas
específicos dos tempos do consumo na era digital é o do marketing viral, que
toma os consumidores como parte activa na divulgação das mensagens que, por
isso mesmo, redobra a sua eficácia junto do público e se constitui como mo-
mentos culturais por si mesmos. O marketing nos media digitais funciona tanto
melhor quanto mais for capaz de envolver os utilizadores, incluindo os mais no-
vos, para a reprodução dos seus esquemas de recomendação entre pares, dando
a sua chancela à circulação viral de conteúdos comerciais, incluindo por via de
concursos, que apelam ao interesse lúdico dos mais novos (BUCKINGHAM,
2011, p. 99). A proliferação de franchises, merchandising, derivações comerciais
(tie-ins) que tem em vista, embora não exclusivamente, o mercado juvenil, re-
sulta da economia política das indústrias, incluindo dos media e culturais.
De facto, ainda que consideremos uma perspectiva que combina as poten-
cialidades e constrangimentos que marcam a relação entre os mais novos e a
esfera do consumo, é forçoso reconhecer também os ganhos de espaço por parte
das indústrias: uma utilização cada vez maior de dados pessoais e informatiza-
ção dos padrões de consumo, personalização das mensagens e emergência de
novas formas de marketing, ligadas sobretudo aos media digitais, onde entrete-
nimento e mensagens comerciais se confundem cada vez mais, incluindo a co-
locação do consumidor como disseminador da mensagem, por exemplo, através
do viral marketing, ou captação de tendências entre os consumidores através
de jovens (BUCKINGHAM, 2011). A própria educação é cada vez mais pres-

134
sionada pela publicidade e entretenimento, quer pela projecção dos produtos
para crianças como educativos ou produtivos, quer pela entrada das marcas nas
escolas e ambientes escolares, que se confrontam com falta de meios (KENWAY
e BULLEN, 2001; SPRING, 2003).
Os estudos das crianças e comunicação de marketing têm vindo a diversifi-
car o debate para além da televisão e indústrias alimentares (LIVINGSTONE,
2006), para prestar atenção às culturas e consumos infanto-juvenis de forma
mais vasta, alargando tanto os meios como as problemáticas e indo além da pro-
teção e regulamentação, para uma procura de capacitação (EKSTRÖM e TUF-
TE, 2007). Esse empowerment dos consumidores, mais novos e mais velhos, é
enquadrado na educação para os media, já que autores da área dos media, da
educação e do marketing acreditam que crianças e adolescentes devem ter uma
educação que lhes desenvolva um pensamento crítico para fazer frente a uma
cultura comercial dos media e de consumo cada vez mais complexa, global e
convergente.
Com efeito, a educação para os media tem recebido atenção crescente por
parte das políticas públicas internacionais e da academia (KHAN, 2008; PON-
TE e JORGE, 2010; COSTA, JORGE e PEREIRA, 2014). Uma definição gené-
rica de educação para os media aponta para a capacitação dos indivíduos para
procurar/aceder, avaliar, usar e criar informação de acordo com os seus interes-
ses pessoais, sociais ou educacionais (LIVINGSTONE, 2003), compreendendo
diferentes enfoques em termos de media (dos media como um todo aos digi-
tais, cinema, imagem/audiovisual) e de linguagens (informação, publicidade ou
consumo).
Especificamente, a educação para o consumo e literacia para o consumo
concernem à “capacidade chave numa sociedade orientada para o consumo,
composta por um conjunto fundamental de competências e conhecimento, ne-
cessário para realizar escolhas de compra individuais ‘satisfatórias’, mas também
para influenciar a saúde, economia e bem-estar societal em geral” (KOPP, 2012,
p. 191). Temáticas implicadas no consumo são a literacia financeira, da publici-
dade e dos media: compreender, desde logo, que os media são financiados por
publicidade.
Existem diversas formas de capacitar os jovens para os mecanismos de dis-
cursos comerciais, como trabalhos em torno da produção de videoclips, anún-
cios, etc (KENWAY e BULLEN, 2001). No entanto, não só as próprias escolas
cedem cada vez mais à pressão para apresentar objectivos imediatos, o que nem
sempre é compatível com o estímulo a um pensamento crítico, como está por
demonstrar que a educação para os media e o consumo garanta uma inoculação

135
de crianças e jovens face ao marketing que lhes é dirigido (ROZENDAAL et al.,
2011). O conhecimento sobre os media ou sobre os mecanismos de promoção
do consumo nem sempre se traduz em poder (BUCKINGHAM, 2011, p. 56).
Apesar de haver índices de literacia para a publicidade mais elevados entre os
adolescentes (do que entre crianças mais novas), estes não são menos afectados
pela publicidade, visto que há diferentes processos de persuasão que funcio-
nam em idades diferentes, atendendo aos níveis de literacia, de que a indústria
tem conhecimento e se apropria (LIVINGSTONE e HELSPER, 2006). Como se
pode ler no relatório elaborado para o Departamento britânico para as Crianças
e Cultura (BUCKINGHAM, 2009, p. 15): “a educação não é uma alternativa
à regulação, como por vezes é sugerido. (…) As pessoas (adultos ou crianças)
que são literados nos media não são necessariamente imunes à influência dos
media”.
Assim, a educação de um consumidor crítico e atento não dispensa a regula-
ção (LIVINGSTONE e HELSPER, 2006), que varia conforme os contextos nacio-
nais em que crianças e jovens se inserem.

3. Entre a regulamentação e a educação para a comunicação


comercial

Embora existam directrizes internacionais e especificamente da União Eu-


ropeia para homogeneizar a educação para os media, os diferentes países euro-
peus encontram-se em estádios diferentes de implementação dessas políticas
educativas em específico (sobre Portugal, vide COSTA, JORGE e PEREIRA,
2014). O terreno da educação para os media em Portugal é marcado pela ar-
ticulação entre entidades públicas, comerciais e civis, sem uma entidade única
responsável pela área, mas antes um Grupo Informal de Literacia Mediática,
reunindo entidades desses diferentes sectores. Este cenário coloca problemas à
sustentabilidade das intervenções, visto que os projectos estão dependentes da
boa vontade ou dos interesses específicos das organizações que as promovem.
Ligado a isso, nota-se a falta da dimensão de avaliação nesta área.
Apesar de intimamente ligada aos media, a temática da educação e literacia
do consumo tem recebido menos atenção do que outras áreas como a da infor-
mação ou digital. Em Portugal, os programas existentes em torno do consumo
são, assim, promovidos por associações, sobretudo da indústria e menos de con-
sumidores: o Media Smart (literacia da publicidade), pela Associação Portugue-

136
sa de Anunciantes2; o Grande © (concurso para sensibilização para os direitos
de autor), pela Associação Gestora da Cópia Privada3; e o DECO Jovem (sobre
literacia do consumo, incluindo da publicidade), pela Associação Portuguesa
de Defesa do Consumidor (DECO) 4,5. Assim, os programas de educação para o
consumo são integrados na área da auto-regulação dos sectores, por via das suas
associações industriais.
Estes programas6 têm materiais de suporte a professores e promovem
concursos junto da população escolar, que incentivam à produção controlada
e suportada por intermediários de anúncios ou peças criativas (como música,
fotografia, letras, poesia, etc). Acredita-se, assim, que o esclarecimento sobre as
linguagens e técnicas da publicidade, bem como o incentivo à produção de peças
publicitárias ou criativas, leve os mais novos a sentir e reflectir sobre o processo
de consumo, incluindo a sua comunicação, bem como as suas implicações
sociais, culturais e económicas.
O programa internacional de literacia para a publicidade MediaSmart tem
sido implementado desde 2008 em Portugal, com patrocínio de algumas das
maiores marcas nacionais, incluindo da área alimentar, através da APAN. O
programa, adaptado do modelo canadiano e britânico, destina-se a crianças
entre os sete e os 11 anos, disponibilizando recursos às escolas interessadas e
promovendo um concurso anual para alunos.
Em termos de políticas públicas, o Ministério da Educação publicou o Refe-
rencial de Educação Financeira para os diferentes ciclos de escolaridade (DIAS
et al., 2012), que estabelece conteúdos a trabalhar com a população escolar, sem,
no entanto, oferecer recursos mobilizáveis pelos professores. O Referencial de
Educação para os Media, publicado em 2014 (PEREIRA et al., 2014), integra a
mesma área de política educativa para a Cidadania, contemplando igualmente
as questões da publicidade a todos os níveis de ensino.
2
Disponível em: <http://www.mediasmart.com.pt/>
3
Outro programa, Dadus, sobre os dados pessoais, promovido pela Comissão Nacional
de Protecção de Dados, foi descontinuado.
4
Disponível em: <http://www.decojovem.pt/>.
5
O DECO Jovem promove desde 2013 o concurso “Green Chef ”, incentivando os alunos
de todo o ensino obrigatório a ganhar consciência acerca do desperdício alimentar e de
uma alimentação saudável. Disponível em: <http://www.decojovem.pt/noticias/green_
chef_2edicao/>. Acesso em 4 Nov. 2014.
6
Excluímos aqui o programa Boas Práticas Boas Contas, pela Associação Portuguesa de
Bancos (Disponível em: <http://www.boaspraticasboascontas.pt/>), por ser mais dirigi-
do a adultos.

137
Por outro lado, também a regulação em termos de comunicação comercial
varia significativamente entre os países europeus, sendo, tipicamente, os países
do Norte do continente europeu os que consagraram medidas mais proteccio-
nistas relativamente ao contacto de públicos infanto-juvenis com publicidade,
sobretudo televisiva (EKSTRÖM e TUFTE 2007). Em termos de publicidade, o
Código vigente em Portugal data de 1990, com 12 alterações até à actualidade.
No que respeita a ‘menores’, termo que a lei utiliza para designar crianças e jo-
vens, a preocupação era sobretudo de protecção face a conteúdos nocivos, como
violentos ou de cariz sexual.
Nos últimos anos, houve duas propostas de lei. A primeira, em 2006, pelo
Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV), o partido com menor representação par-
lamentar nessa legislatura, defendia que a publicidade a produtos alimentares
deveria ser proibida em publicações destinadas ao público infantil e juvenil; nos
períodos destinados a programação televisiva infantil e juvenil e em quaisquer
spots ou filmes publicitários filmados com crianças ou jovens ou a eles em par-
ticular dirigidos. De fora ficavam apenas “actividades publicitárias e de divul-
gação destinadas a promover hábitos de alimentação saudável” (Projecto de Lei
nº 300/X, 2006). Os deputados autores do Projecto fundamentavam a relevância
da alteração legislativa na urgência de combater os índices de obesidade entre os
mais novos, sobretudo de grupos economicamente mais desfavorecidos, desta-
cando os seus custos de saúde e sociais. Embora reconhecendo esse fenómeno
como multifactorial (também relacionado com a degradação da qualidade de
vida e do tempo para cozinhar em casa), apontavam o contacto das crianças
novas com as mensagens publicitárias, sobretudo televisivas, como danosas.
Também o Projecto de Lei do PS, partido em maioria na Assembleia, três
anos mais tarde (2009), defendia alterações na regulação da publicidade de ali-
mentos para crianças, a par de medidas de controlo sobre o sal no pão. Por
essa altura, outras vozes da sociedade civil pediam a mudança regulativa: “o
coordenador da Plataforma de Luta contra a Obesidade, João Breda, advoga a
regulação da publicidade dirigida a crianças. ‘A regulação deve existir, quando
a auto-regulação não funciona’” (Campos, 2009), como no ano anterior uma
campanha da associação de consumidores, por ocasião do Dia do Consumidor,
reclamava “nova regulamentação sobre a publicidade de alimentos dirigidos a
crianças, não só quanto aos conteúdos das mensagens mas também à quantida-
de de anúncios exibidos” (LIMA, 2008). Fernanda Santos, da DECO, afirmava
mesmo: “Durante muitos anos a DECO pediu mais responsabilidade ao sector.
Como não há alteração dos comportamentos, achamos que devemos agir pelos
interesses da criança” (ibidem).

138
A estas iniciativas parlamentares que incidiam sobre a publicidade, jun-
taram-se Resoluções da Assembleia da República: em 2009, é publicada a
Recomendação daquele órgão de soberania ao Executivo para a distribuição
gratuita de frutas e legumes nas escolas, a retirada da venda de alimentos hi-
persalinos e hipercalóricos das escolas e “a prossecução e reforço do Programa
de Educação Alimentar em Meio Escolar, com uma efectiva mobilização da co-
munidade educativa nesse importante desígnio — educar para estilos de vida
saudáveis” (2009, p. 2032). Este Documento não cita o Referencial elaborado
pelo Ministério da Educação em 2006 para uma Oferta Alimentar Saudável
(BAPTISTA, 2006).
Em 2012, o Parlamento, com nova base partidária, mais uma vez “Reco-
menda ao Governo a adoção de medidas tendentes ao combate da obesidade
infanto-juvenil em Portugal”. Nestes documentos, não há menção à restrição
à publicidade de alimentos, mas na Resolução de 2012 encara-se a publicidade
numa perspectiva funcionalista, ao defender “a utilização do serviço público
de televisão para que, nos horários mais propensos ao acompanhamento dos
jovens, sejam exibidos anúncios com as consequências da obesidade” (2012, p.
2456). Enquanto a primeira Resolução foi acatada pelo Governo, a venda de
alimentos nas escolas não sofreu regulamentação, apenas seguindo as directri-
zes já publicadas (BAPTISTA, 2006); também a parte relativa à divulgação de
anúncios sobre obesidade na televisão pública não foi adoptada.
Paralelamente às iniciativas no campo da regulação, que não se traduziram
em mudanças efectivas, o campo da auto-regulação foi também acompanhando
o tom da evolução do sector. Por um lado, o crescente recurso à comunicação
comercial por via da colocação de produto, patrocínios e ajuda à produção de
programas audiovisuais reclamou uma concertação, que aconteceu em 2008,
com o Acordo de Auto-Regulação em Matéria de “Menções de Patrocínio”, pelo
Instituto Civil de Autodisciplina de Comunicação Comercial (ICAP); e em
2009, através do Acordo de Auto-Regulação em Matéria de “Colocação de Pro-
duto” e “Ajudas à Produção e/ou Prémios”, assinado pelo ICAP, a Confederação
Portuguesa dos Meios de Comunicação Social e pelas três televisões a operar
no país.
Embora estas não deixem de afectar a programação que é feita para crianças,
no que respeita especificamente à publicidade, outras iniciativas tiveram lugar
nos últimos anos, mais concretamente reagindo quer à pressão regulamentar,
quer a iniciativas globais. Em 2009, 26 empresas portuguesas do sector da ali-
mentação e bebidas (através da APAN e da Federação das Indústrias Portugue-

139
sas Agro-Alimentares – FIPA) assinaram um acordo, em reacção ao EU Pledge7
e, tal como este, abstendo-se de fazer publicidade para crianças com menos de
12 anos através de televisão, imprensa ou internet, e de fazer comunicação co-
mercial em escolas (Compromissos da Indústria Alimentar sobre Alimentação,
Actividade Física e Saúde 2009), a que se juntou a Sumol+Compal em 2011
(PINTO, 2011). Um código de auto-disciplina assinado pelo ICAP reforçou o
mesmo propósito para todos os anunciantes afiliados (ICAP, S/d.). Estes esfor-
ços apareceram como uma resposta às intenções para mudar a lei no Parlamen-
to, por parte do partido minoritário PEV, como vimos, e das movimentações do
PS num sentido semelhante.
Isto tornou-se evidente com a monitorização do Compromisso, publicado
em 2012 e em 2013, em relação aos anos anteriores, que sublinhava a auto-regu-
lação como a (única) chave para uma comunicação mais equilibrada das marcas
alimentares para crianças e o lobby contra as mudanças na legislação (GON-
ÇALVES, 2012; 2013; Briefing, 2013). Em meados de 2012, Manuela Botelho,
secretária-geral da APAN, a mesma promotora do programa de educação para a
publicidade MediaSmart, dizia que as taxas de implementação do Compromis-
so demonstravam que “a auto-regulação está a funcionar” (MARCELA, 2012).
Um ano depois, Eduardo Branco, presidente da mesma associação, afirmava que
os resultados mostravam que “o caminho, nesta matéria, é o da autorregulação”
(Briefing, 2013). A mensagem da APAN e FIPA aos decisores políticos, num
momento em que estavam no Parlamento para discussão os projectos de altera-
ção da legislação do sector, não poderia ser mais clara: a intenção de lobbying do
Compromisso e da sua monitorização pretendia travar a alteração na lei.

4. Conclusões

Neste Capítulo, olhámos para a área de convergência entre o mercado, as


crianças e jovens como consumidores, e a área política, em torno do importante

7
Acordo de 26 empresas do sector alimentar, em 2005, a que se juntaram McDonald’s,
Cadbury e Wrigley mais tarde, elevando para 29 os signatários do compromisso da in-
dústria. O Compromisso apresenta-se como “uma iniciativa voluntária por parte de em-
presas líderes na alimentação e bebidas para mudar a forma como fazem publicidade
para crianças. Esta é uma resposta dos líderes empresariais aos reptos feitos pelas insti-
tuições da União Europeia para que a indústria alimentar use as comunicações comer-
ciais para apoiar os pais a fazer as escolhas de dieta e estilo de vida correctas para os seus
filhos” (Disponível em: <http://www.eu-pledge.eu/>. Acesso em 12 Ago. 2014).

140
campo do consumo, tanto em termos económicos como identitários e sociais.
Através disso, reflectimos sobre a incidência dos debates sobre obesidade e co-
municação comercial alimentar e de bebidas para crianças e jovens em Portugal
e as relações de força que se estabelecem entre indústrias e decisores políticos em
nome da perspectiva que mantêm sobre as crianças e jovens como consumido-
res, mas também cidadãos, esferas indispensáveis e inextricáveis da sua vida em
sociedade. Os esforços de educação para os media caem frequentemente sob a
esfera da auto-regulação da indústria, que complementa esse esforço com algu-
ma pressão para a não alteração da regulação em termos de publicidade e marke-
ting de alimentos e bebidas para crianças e jovens através de acordos sectoriais.
Embora não haja comprovação suficiente sobre a eficácia da educação para
a publicidade, ou mesmo para os media, na prevenção da adesão às mensagens
comerciais, como referimos, a ausência de avaliação das iniciativas empreendi-
das nesta área em Portugal não contribui para uma transparência desejável. Para
além disso, é preciso discutir a agenda de auto-responsabilidade que é coloca-
da sobre as crianças, jovens e suas famílias como audiências e consumidores, e
como isso pode sobretudo contribuir para marginalizar ainda mais os grupos
mais desfavorecidos que apresentam, como vimos, maior incidência de proble-
mas de nutrição, incluindo obesidade.

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145
Eixo 5.
Práticas de cidadania midiática por
parte de crianças e/ou jovens
Juventude, sociabilidade e cidadania: consumo e
usos da internet entre jovens mulheres em uma
instituição de acolhimento

Denise Cogo
Márcia Bernardes

1. Introdução

Nesse texto, buscamos refletir sobre o consumo e os usos sociais da internet


entre jovens mulheres que se encontram em situação de acolhimento institu-
cional na perspectiva de compreendermos a constituição de suas sociabilidades
e cidadanias em um contexto de uso controlado e monitorado da internet. A
partir de um estudo de caráter etnográfico, que abrangeu observação, conversas
informais e entrevistas, foi possível perceber como os usos das jovens são me-
diados por dimensões de gênero e classe e por táticas para contornar o controle
institucional, assim como fortemente demarcados pelo desejo de consumo de
produtos da cultura de massa e da indústria do entretenimento. Tais dinâmicas
de consumo e usos evidenciaram as tensões dos processos de inclusão-exclusão
no acesso e nas apropriações de tecnologias como a internet e, ao mesmo tempo,
a relevância da dimensão cultural nos processos de cidadania juvenil.

2. Juventude como experiência: itinerário conceitual

É sabido que as questões da adolescência e da juventude abarcam muito


mais do que uma perspectiva etária. Abramo (2008) lembra que o termo juven-
tude é impreciso e escorregadio em virtude da própria diversidade de ângulos
de abordagem que comporta. O que decorre do fato das experiências e realida-
des juvenis serem heterogêneas, mas igualmente porque, no caso específico do
Brasil, somente a partir dos anos 1960, os estudos sobre os jovens começam a
romper as fronteiras do universo da classe média.
O interesse pela condição juvenil a partir de outros contextos e práticas -
como o da contracultura e do engajamento político -, ou, posteriormente, no

147
final do século XX, a preocupação em focalizar as experiências juvenis em con-
textos de risco social, violência ou exclusão, colabora para aprofundar as dispu-
tas que envolvem a construção conceitual do termo juventude, conforme sinte-
tiza Abramo ao retomar as três principais perspectivas dessa disputa conceitual
e chamar atenção para seu caráter complementar:

[...] um deles é o que se foca nas condições e possibilidades da participação


dos jovens na conservação ou transformação da sociedade e seus traços
dominantes, examinando seus valores, opiniões e a atuação social e polí-
tica [...]; outro é o que toma a juventude como contingente demográfico e
busca verificar as características que informam a respeito das condições de
inclusão e exclusão dos diferentes subgrupos de jovens, e sobre as vulnera-
bilidades que os afetam [...]. Outro, ainda, é o que, partindo da postulação
do jovem como sujeito de direitos, busca examinar o que constitui a sin-
gularidade da condição juvenil e quais são os direitos que dela emergem, e
que devem ser garantidos por meio de políticas públicas (ABRAMO, 2008,
p. 40).

No âmbito dos estudos de juventude, nas décadas de 70 e 80, no Brasil, con-


forme Aquino, a compreensão do significado de jovem partia de duas vertentes
conceituais consolidadas: aquela que postula a compreensão da juventude como
um grupo que demanda medidas de enfrentamento aos seus problemas e aquela
que vislumbra nos jovens um segmento que demanda uma preparação para a
vida adulta. No entanto, novos fenômenos como o crescimento significativo do
grupo jovem, decorrentes das mudanças estruturais na distribuição etária da
população em todo o mundo observados nas décadas finais do século XX1, vão
impactar a compreensão da juventude, especialmente quando os jovens passam
a ser considerados agentes estratégicos de desenvolvimento (CASTRO, AQUI-
NO e ANDRADE, 2009 e AQUINO, 2009). Essa nova visão vai propiciar um
deslocamento da leitura histórica hegemônica do jovem como um problema,
uma descontinuidade social, como uma ameaça a uma ordem estabelecida ou
mesmo como fase transitória para a vida adulta. “Em um contexto em que a ju-
ventude surge de forma múltipla como questão social relevante [...] cabe pensar
os desafios que se apresentam para a sociedade brasileira em termos de atenção
aos jovens” (AQUINO, 2009, p. 29).

1
Em termos práticos, essa “onda jovem” significa um aumento relativo da população em
idade ativa, o que pode ter efeito positivo sobre a dinâmica do desenvolvimento socioe-
conômico e, por isso, tem sido qualificado como bônus demográfico.

148
Bourdieu (1983) cunhou a expressão “a juventude é apenas uma palavra”
para afirmar que a juventude extrapola a condição de signo que se atribui
ao conceito. Ou seja, a juventude é construída socialmente, uma vez que a
idade é um dado biológico socialmente manipulado e manipulável. Para o
autor, “o fato de falar dos jovens como se fossem uma unidade social, um
grupo constituído, dotado de interesses comuns, e relacionar estes interesses
a uma idade definida biologicamente, já constitui uma manipulação evidente”
(BOURDIEU, 1983, p. 113). Bourdieu defende, ainda, a necessidade de aten-
tarmos para as diferenças entre as juventudes e não subsumirmos no mesmo
conceito uma variedade de universos sociais que podem não ter muito ou
nada em comum.
A perspectiva de Bourdieu nos convida, assim, a considerar as especificida-
des das condições juvenis e as situações de desigualdades econômicas e sociais
que pautam a inserção dos jovens em diferentes sociedades. Por isso, tornou-se
usual empregar a expressão juventudes para enfatizar, conforme sintetiza Aqui-
no (2009, p. 31), que “a despeito de constituírem um grupo etário que partilha
várias experiências comuns, subsiste uma pluralidade de situações que confere
diversidade às demandas e necessidades dos jovens” Em perspectiva similar,
Barbiani (2007) evidencia que o termo juventudes é utilizado regularmente em
pesquisas e produções acadêmicas com o objetivo de demonstrar a necessidade
de pensar e falar no plural quando o tema são os jovens.

Na sociedade globalizada econômica e culturalmente [...] [a] centralidade


da juventude [...] é discutida (mais do que requerida) à luz da crítica às
posições tradicionais e extremistas que ora situam os jovens como a reden-
ção da humanidade, ora como a ameaça ou desvio à ordem social posta. A
noção de centralidade é construída pelos autores não como uma espécie de
apologia “ao ser jovem”, mas na trama que tece, ao mesmo tempo, desigual-
dades sociais e diferenças culturais. Assim, fundamentam-se as argumen-
tações (presentes em todos os textos) de que a condição histórico-cultural
da juventude não se oferece de igual forma para todos os integrantes da
categoria estatística “jovem” (BARBIABI, 2007, p. 142).

Essas perspectivas conceituais orientaram nossa aproximação com o univer-


so das jovens mulheres em situação de acolhimento institucional na perspectiva
de compreendermos as especificidades de suas dinâmicas de consumo e usos da
internet relacionadas aos seus processos de sociabilidades e cidadanias, confor-
me passamos a abordar a seguir.

149
3. Itinerário metodológico: gênero, ambiente de acolhimento e uso
da internet

A pesquisa da qual resulta esse artigo foi desenvolvida em uma organização


não governamental (ONG) de acolhimento institucional, localizada no muni-
cípio de Novo Hamburgo, estado do Rio Grande do Sul, região sul do Brasil.
A instituição atende crianças e adolescentes de oito a 18 anos do sexo femi-
nino2, encaminhadas pelo Poder Judiciário por vivenciarem alguma situação
de violação de direitos, como abuso sexual, violência, exploração de trabalho
infantil, situação de risco (pobreza extrema, por exemplo) e ausência de vín-
culos familiares3.
Conforme a pesquisa Situação Mundial da Infância e Adolescência 2011,
realizada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o gênero
influencia de maneira decisiva nas ocorrências de violência e abuso – físicos,
sexuais e psicológicos – contra adolescentes. As taxas de violência doméstica e
sexual contra meninas são mais altas do que contra os meninos4. Uma realida-
de que, a partir de nossa abordagem empírica, nos conduziu a reconhecer que,
embora a questão de gênero não tenha sido o eixo central da pesquisa, é uma
dimensão que aparece necessariamente imbricada no contexto e nas análises
realizadas.
Destacamos que, a partir de uma perspectiva pós-estruturalista, nosso
entendimento de gênero está relacionado com as diversas formas de viver a
masculinidade e a feminilidade, assim como aos significados e às representa-
ções que são atribuídas a homens e mulheres em cada cultura (LOURO, 2004).
Consideramos que pensar gênero a partir dessa ótica é importante para des-
naturalizar o caráter biologicista que fundamenta a dicotomia homem-mulher

2
A ONG atende exclusivamente pessoas do sexo feminino. Em função disso, o grupo de
jovens que compôs o universo empírico é formado unicamente por meninas/mulheres.
3
As instituições de acolhimento são uma medida de proteção especial para crianças
e adolescentes e estão previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei
8.069/90. São, na visão expressa no Estatuto, responsáveis “por zelar pela integridade
física e emocional de crianças e adolescentes que tiveram seus direitos desatendidos ou
violados” (SILVA e AQUINO, 2005, p. 186). Importante ressaltar que essa instituição
onde foi realizada a pesquisa não é uma organização de cumprimento de medida sócio-
-educativa, onde crianças, adolescentes e jovens em conflito com a lei cumprem medidas.
4
O relatório está disponível em <http://www.unicef.org/brazil/sowc2011/>. Acesso em:
29 abr. 2011.

150
como dimensão constitutiva da vida social. Esse deslocamento propicia a com-
preensão do conceito de gênero como uma construção social, cultural e histó-
rica dos sexos. Nessa perspectiva, o sexo seria a faceta biológica, imutável, ao
passo que o gênero seria algo adquirido, derivado das experiências culturais
e das representações sociais estabelecidas nas relações (LOURO, 2004). Mas
é preciso atentar que o sexo não é dado, imutável, mas é sempre afetado pelas
práticas de gênero na medida em que homens e mulheres recebem cultural-
mente “marcações” distintas que visam a determinar formas sociais de compor-
tamento e de representação de suas identidades, colaborando para naturalizar
práticas repetidas de diferenciação sexual e criar a ilusão de existência de algo
inato na divisão sexual. Naturalização que é, contudo, questionada por aquelas
perspectivas que afirmam que os gêneros (masculino e feminino) são constru-
ções sociais, linguísticas e culturais, implicadas em “processos que diferenciam
mulheres de homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos,
distinguindo-os e separando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexua-
lidade” (MEYER, 2003, p. 16).
Orientadas por essas noções de gênero, realizamos a pesquisa empírica de
caráter etnográfico no primeiro semestre de 2011 com a participação de parte
do grupo de meninas abrigadas naquele momento. É importante destacar que
o grupo de meninas que estava no acolhimento institucional não era um grupo
fixo, considerando que as adolescentes frequentavam a escola em turnos dife-
rentes, e a pesquisa foi realizada em horários alternados. As meninas também
tinham atividades extras na escola ou, eventualmente, visitavam a família. Da
mesma forma, a participação na pesquisa foi voluntária e realizada em períodos
em que as adolescentes não tinham atividades fixas na instituição. 5 Por isso,
em muitas oportunidades, elas estavam dormindo, assistindo televisão ou em
momentos de descanso. Além desses fatores, tivemos que lidar com a questão
judiciária e legal do abrigamento6, o que também contribuiu para que o grupo
participante na pesquisa, assim como o tipo de participação de cada jovem, fos-
se variável. Sendo assim, podemos considerar que entre dez e doze adolescentes
fizeram parte da pesquisa de forma mais efetiva, das quais quatro foram entre-
vistadas de modo mais formal.

5
Arte terapia, dança ou prática de esportes, por exemplo.
6
Em função da condição de abrigamento, ocorreu que adolescentes que estavam na ins-
tituição em um determinado dia e participaram de uma atividade, tenham sido desabri-
gadas pelo poder judiciário no decorrer da pesquisa e de igual forma, adolescentes que
não estavam presentes quando a pesquisa foi apresentada, participaram das atividades
durante o período de inserção no acolhimento institucional.

151
A intervenção foi desenvolvida através da presença direta da pesquisado-
ra junto ao grupo na sala de informática8, complementadas com a realização
7

de conversas informais e entrevistas semi-dirigidas durante as visitas sistemá-


ticas à instituição. Durante a realização da pesquisa, o acesso à internet por
parte das jovens abrigadas na instituição era monitorado e controlado, e não
havia livre acesso à sala de informática9. O uso do computador era permitido
apenas com a presença de um educador ou uma pessoa responsável. Além dis-
so, quando havia uso da internet, não era permitido o acesso a redes sociais,
como Orkut10 e Facebook, a ferramentas de conversa online como o MSN ou
ao microblog Twitter11.
Na aproximação com esse contexto para o estudo das sociabilidades juvenis,
adotamos como princípio o entendimento de que as tecnologias da comunica-
ção, em especial a internet, são elementos de reconfiguração da vida social. Por
7
A coautora desse trabalho, Márcia Bernardes.
8
Na sala de informática, também não era permitida a participação de todas as ado-
lescentes nas atividades, uma vez que havia disponibilidade de poucos equipamentos.
Em geral, três ou quatro máquinas estavam funcionando, o que obrigava utilização dos
equipamentos em duplas ou trios.
9
A casa conta com seis quartos, a maioria com seis camas. Também há três banheiros
e uma garagem. A organização dispõe de uma Kombi para transportar as meninas e
profissionais. Possui, ainda, uma sala de educadoras, uma padaria, uma cozinha e um
refeitório. A casa conta com uma sala com televisão, que é ligada ao espaço onde ficam as
mesas para refeições e onde as meninas fazem as atividades escolares. A cozinha é ampla
e equipada com o necessário. Há uma pequena secretaria, onde também funciona a sala
de atendimento social. No pátio, há uma quadra de areia para a prática de esportes. Há
um espaço para horta, mas não há cultivo de verduras ou legumes. As janelas possuem
grades por questões de segurança. O prédio aparenta estar em boas condições, apesar
da pintura gasta, dos móveis um pouco velhos e de algumas visíveis necessidades de
manutenção. A sala de informática fica no mesmo espaço que a sala de costura. É uma
sala úmida, pois é uma espécie de “porão”. Fica na parte de baixo da casa, com janelas pe-
quenas na parte de cima da parede. No inverno, é uma sala bastante fria e, no verão, não
há corrente de ar, o que torna a sala bem quente. Os computadores dividem espaço com
máquinas de costura, linhas e sacos de retalhos de tecidos. Apesar de ter cinco computa-
dores instalados sobre as mesas, normalmente apenas quatro ou três estão funcionando.
Todos os equipamentos foram recebidos por meio de doações.
10
Ainda disponível no período da pesquisa.
11
Importante destacar que a instituição afirma que esse acesso restrito e monitorado
visa a preservar as abrigadas de possíveis “contatos indesejados” ou de “ações indevidas”
como, por exemplo, planejamento de fugas.

152
um lado, promovem mudanças nas sociabilidades e subjetividades, nas relações
de tempo e espaço e nas próprias lutas e mobilizações cidadãs por inclusão,
liberdade de expressão e participação social; por outro lado, as apropriações das
tecnologias por diferentes setores sociais não estão desprovidas de relações de
poder, assimetrias e desigualdades que envolvem tensões e disputas em torno de
seus acessos e usos. Nossa compreensão específica sobre a internet parte, nes-
sa perspectiva, do entendimento trazido por Cogo e Brignol (2011) como “um
ambiente comunicacional múltiplo e complexo no qual diferem características
como [...] a facilidade de acesso à esfera da produção, a convergência midiática,
a interatividade e a hipertextualidade”, fatores que as autoras destacam coexistir
com “a centralidade de acessos e usos unidirecionais ou pouco participativos”
(COGO e BRIGNOL, 2011, p. 86 e 87).
Em um contexto de controle e restrição do acesso à internet, entendemos
que as limitações econômicas e também as condições sociais, culturais e educa-
tivas das jovens focalizadas nessa pesquisa, contribuem para o engendramento
de táticas específicas de apropriação e usos da internet.

[...] entendemos que os usos sociais da Internet são definidos por um con-
junto de entornos que interage na construção dos significados atribuídos
aos meios de comunicação e no modo como sujeito e tecnologia se relacio-
nam. A diversidade de modos de usar a Internet, mesmo que limitada por
imposições de ordem tecnológica e pelas questões de desigualdade econô-
mica e social, é marcada também pela capacidade de produção de sentido
de cada indivíduo, garantida através de suas identificações, competências
e também de sua relação com as identidades, história, valores, hábitos e
tradições (BRIGNOL, 2010, p. 54).

Dessa forma, a presença da internet ao mesmo tempo em que se constitui


em um processo expansivo e inclusivo, conectado profundamente com os ele-
mentos e as possibilidades tecnológicas que compõem o mundo atual, promo-
ve tensões relacionadas às desigualdades de acesso, de apropriação e mesmo a
processos de exclusão. É importante ressaltar a ideia de Martín-Barbero (2008)
de que a tecnologia não cria a desigualdade, ela apenas reforça ou reconfigura
a exclusão gerada nas relações sociais de uma sociedade estruturalmente ex-
cludente. Entendemos, assim, que os usos que os sujeitos e instituições sociais
fazem da tecnologia é que criam, reforçam e reconfiguram as desigualdades
existentes.

153
4. Comunicação, consumo e usos na constituição das
sociabilidades e cidadanias

Em termos teóricos, compreender a noção de consumo implica inicialmente


em descartar a definição condutivista que reduz a prática de consumir a uma
simples relação entre necessidades e bens criados para satisfazê-las e visuali-
zá-la como uma operação de deslocamento que, segundo Sunkel (2002), exige
suplantar duas perspectivas que sustentam tal definição. De um lado, descartar a
concepção naturalista das necessidades para reconhecer que essas são construí-
das socialmente12. E, por outro lado, transcender a concepção instrumentalista
que supõe que os bens possuem unicamente um valor de uso para satisfazer
necessidades concretas.
A essa perspectiva alinham-se autores como Garcia Canclini, quando define
o consumo como o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a
apropriação e o uso dos produtos (GARCIA CANCLINI, 2008)13. Ao postular
que consumir não é apenas reproduzir, mas também produzir sentido e “par-
ticipar de um cenário de disputas por aquilo que a sociedade produz e pelos
modos de usá-lo” (GARCIA CANCLINI, 2008, p. 62), o autor lembra que as
dinâmicas de consumo contribuem para o ordenamento político de cada socie-
dade, uma vez que os desejos se transformam em demandas e em atos regula-
dos socialmente.
A partir disso, é possível entender que, ao se definir o que é consumido, tam-
bém se define o que é considerado importante cultural e socialmente, possibili-
tando processos de integração e ou diferenciação na sociedade. Como enfatiza,
ainda, Garcia Canclini (2008, p. 62), “consumir é participar de um cenário de
disputas por aquilo que a sociedade produz e pelos modos de usá-lo”. Ao ser um
espaço de diferenciação, o consumo se torna também um espaço de encontro e
comunicação.
A proposição de Martín-Barbero (2009) contribui, nesse sentido, para afir-
mar que o consumo cultural participa da organização do espaço e do tempo do
cotidiano, onde o grau de autonomia dos sujeitos definirá suas ações e seu po-
der. Da mesma forma, o consumo cultural conforma a competência cultural,
12
Lembrando, ainda, que mesmo as necessidades biológicas mais elementares se satisfa-
zem de maneira diferente nas diversas culturas.
13
Jacks e Escosteguy (2005) situam o consumo cultural e dos usos sociais como uma das
vertentes dos estudos de recepção latino-americanos.

154
ou seja, as formas de agir, representar, pensar, que consideram, dentre outros,
os pertencimentos étnicos, de gênero e de classe. Em sua análise sobre o consu-
mo, Martin-Barbero afirma que a reivindicação por práticas cotidianas como
espaços que possibilitam um mínimo de liberdade não implica em sobrestimar
a liberdade do consumidor. Ao contrário, essas práticas se situam e se desen-
rolam no contexto de um sistema hegemônico uma vez que são práticas que
intencionam burlar a ordem estabelecida, tornando o consumo essencialmente
uma prática de produção invisível, feita de artimanhas e astúcias, por meio das
quais os setores populares se apropriam e (re) significam a ordem dominante,
conforme aparece na reflexão de De Certeau. (SUNKEL, 2004).
Na perspectiva do consumo e usos, é relevante, ainda, o postulado de Mar-
tín-Barbero sobre o deslocamento dos meios para as mediações como possi-
bilidade de desvendar a tecnicidade a partir das experiências da vida cotidiana
e das práticas sociocomunicacionais dos sujeitos. O autor propõe o estudo do
uso social dos meios para entender a relação entre os receptores e os meios a
partir das articulações entre as práticas de comunicação e os contextos sociais
e culturais. Para Martín-Barbero (2009), os usos são inseparáveis da situação
sociocultural dos sujeitos nos processos de comunicação.
De Certeau, com o qual dialoga Martín-Barbero, a partir da perspectiva de
um “fazer com”, propõe o entendimento dos “usos” na sua dimensão de ruptura
com os modos disciplinares e em suas possibilidades de produção de ressigni-
ficações. O autor destaca que alguns elementos, como “realizar, apropriar-se,
inserir-se numa rede relacional, situar-se no tempo [...] fazem do uso um nó
de circunstâncias, uma nodosidade inseparável do “contexto”, do qual abstra-
tamente se distingue” (DE CERTEAU, 1994, p. 96, grifo do autor). Além disso,
De Certeau afirma que toda a atividade de leitura e consumo é uma atividade
de produção de sentidos, que advêm da constituição de estratégias e táticas
que evidenciam diferenças e resistências sociais, assim como deslocam e rela-
tivizam fronteiras de dominação. Essas estratégias apontam para algo próprio,
um lugar do querer e do poder, onde há “um tipo específico de saber, aquele
que sustenta e determina o poder de conquistar para si um lugar próprio” (DE
CERTEAU, 1994, p. 100). Em função disso, ela se perpetua por meio de sua
(re)produção, de sua conformidade com a ordem e o poder. Já a tática, para De
Certeau, é determinada pela ausência de poder, pela ausência de um próprio, o
que lhe permite mobilidade para captar as oportunidades oferecidas. Segundo
o autor, a tática é a arte do fraco, é a astúcia. Ela constitui espaços, movimentos
que, em um jogo, transformam-se em oportunidades. A tática pode neutralizar
a influência de uma estratégia ou mesmo subvertê-la, implicando em um movi-
mento que foge às operações do poder.

155
A exemplo do que representa o contexto para De Certeau, as mediações são,
para Martín-Barbero, o espaço em que é possível captar como se concretizam
as experiências culturais, assim como compreender os sentidos gerados nas di-
nâmicas de circulação, negociações e (re)significações dos conteúdos apropria-
dos. A partir das mediações, as dinâmicas tecnológicas também transformam as
identidades e as experiências de sociabilidade.
As relações sociais encontram, na internet, um espaço de apropriação da
técnica e de atribuição de sentidos aos seus usos. Esse cenário aponta para a
possibilidade de reconhecimento por meio de uma ou várias identidades ou
processos de identificação. Além disso, essas identificações constituem-se a par-
tir de dinâmicas de escolha que estão em consonância com as preferências e
gostos dos sujeitos, evidenciando mais marcadamente a sociabilidade contem-
porânea como uma forma de interação social.
O conceito de sociabilidade foi formulado nessa perspectiva por Simmel
(2006), ao afirmar que a sociedade é a interação com o outro em uma diversi-
dade de processos. A partir do momento em que o indivíduo está inserido na
sociedade, ele engendra conteúdos, laços e interesses, em um processo que o
autor denomina de sociação. As formas que resultam destes processos ganham
vida própria, constituindo a sociabilidade.

[...] “sociedade” propriamente dita é o estar com um outro, para um outro,


contra um outro, que, através do veículo dos impulsos ou dos propósitos,
forma e desenvolve os conteúdos e os interesses materiais ou individuais. As
formas nas quais resulta esse processo ganham vida própria. São liberados
de todos os laços com os conteúdos; existem por si mesmo e pelo fascínio
que difundem pela própria liberação destes laços. É isto precisamente o fe-
nômeno a que chamamos sociabilidade (SIMMEL, 1986, p. 168, grifo do
autor)

Segundo Martín-Barbero (2008), a sociabilidade é uma trama de relações


tecidas pelos sujeitos na constituição de seus processos de subjetivação e in-
teração social. A sociabilidade define-se, assim, pelo estabelecimento de vín-
culos, de laços, por meio da interação e da constituição de redes, podendo ser
vista, portanto, como uma troca baseada na comunicação. Esses vínculos se
relacionam com os processos identitários na medida em que refletem práticas,
hábitos e constituem elementos de pertencimento e de compartilhamento de
uma cultura.

156
5. Consumo e usos da internet entre jovens na instituição de
acolhimento

Sabemos que há um “aparato da cultura da mídia e do consumo na confi-


guração de interpretações e perfis específicos da adolescência e da juventude
– como índice de normas ou patologias sociais, como ícones das bem-aven-
turanças ou mazelas do capitalismo globalizado [...]”, como destaca Freire Fi-
lho (2006, p. 11). E isso faz com que as necessidades, gostos, desejos, atitudes e
mesmo os direitos e deveres e os modos de sentir e pensar dos jovens pareçam
influenciados e definidos por uma cultura midiática imperativa (FREIRE FI-
LHO, 2006).
No entanto, as circunstâncias individuais e as diferenciações culturais e so-
ciais permitem pensar que, em determinados momentos, a definição do uso é
dada pelos próprios jovens. Freire Filho (2002, p. 16) afirma, ainda, que “não se
pode presumir e proclamar que todas as jovens se comportarão necessariamen-
te de acordo com as prescrições e proscrições formuladas, de maneira explícita
ou tácita, pela mídia [...]” . Há toda uma gama de fatores culturais, identitários
e de “práticas de autoformação” que faz com as jovens alterem, utilizem, adap-
tem, adotem parcialmente ou ignorem determinados modelos, valores, práticas
e discursos, demonstrando, assim, que encontram as brechas possíveis que as
táticas de uso permitem.
A partir de informações coletadas junto à instituição de acolhimento, da
realização de conversas informais com as jovens abrigadas e com as educadoras
sociais, foi realizado um levantamento do consumo de mídia pelas jovens, o que
nos permitiu uma aproximação e cartografia dos usos que fazem da internet.
Conforme já referimos, na instituição de acolhimento, a internet é utilizada
somente com o acompanhamento de um educador ou responsável e em horá-
rios determinados pelos educadores ou pela instituição. Da mesma forma, o
acesso a redes sociais não é permitido e o uso da internet é monitorado. Algu-
mas educadoras levam as meninas para a sala de informática quando há um
tempo livre dentro na rotina da casa14 e das atividades ou quando há “oficina
de informática”. Porém, a “oficina” só ocorre quando há voluntários dispostos
a realizar essa atividade, que consiste em ensinar as jovens a utilizar as ferra-
mentas de informática. Por isso, o uso da internet não faz parte da rotina das
14
Há um quadro de rotinas na ONG, que prevê horários para tarefas como arrumar o
quarto, lavar a louça e a roupa, auxiliar na limpeza da casa e assistir televisão. O quadro
está fixado em uma parede da área comum da casa.

157
adolescentes e não há dia e horário determinados para o uso dos computado-
res. “Mas elas gostam muito e vejo elas toda a hora pedirem: vamos lá”, conta a
coordenadora da instituição. “Uma quer mandar uma carta para o Gugu15 [via
internet] e está no meu pé”, completa. Por medida de proteção, como já citado
anteriormente, conforme a coordenadora, o MSN e redes sociais foram blo-
queadas pela instituição,

mas é o que elas gostam e, [...] provavelmente tu vai ver elas entrando em
coisas que eu nem sei que elas entram, porque elas dão um jeito de burlar,
porque elas são extremamente inteligentes. A gente não pode subestimar
a inteligência delas de forma nenhuma porque elas têm muita vivência, e
muita vivência na malandragem, porque elas aprenderam a se defender [...]
elas têm muito jogo de cintura (M, D. R. Coordenadora da organização.
Entrevista concedida em 22 de março de 2011).

As jovens abrigadas buscam, nos usos da internet, uma forma de se comuni-


car com o mundo, de entreter-se e de constituir suas sociabilidades. Isso pode
ser verificado em suas falas durante as conversas na sala de informática: “Se eu
pudesse, passava o dia inteiro na internet”; “Eu queria poder falar com todo
mundo”. Diante de um uso monitorado, as jovens empreendem táticas de acesso
às redes sociais por meio dos sites dos e-mails (Gmail e Hotmail), que congre-
gam, em um único espaço, os serviços de mensagem instantânea e e-mails. As
jovens demonstram, ainda, muita curiosidade em saber sobre a vida fora do
abrigo, relatando que enviam e-mails para amigas para saber como estão os na-
morados, os vizinhos, os amigos e conhecidos de suas comunidades de origem.
Os principais tipos de uso realizados pelas jovens, constatados pela pesquisa,
foram: 1) acesso a clipes musicais por meio do YouTube (verificado em todas as
visitas com idas para a sala de informática); 2) download de músicas com grava-
ção em arquivos do computador para escuta posterior (observado em todas as
visitas com uso dos computadores na sala de informática); 3) acesso a programas
e notícias já veiculadas em canais de TV abertos como capítulos de novelas ou
matérias de telejornais, etc. (verificado em várias das visitas realizadas); 4) acesso
e utilização de jogos; 5) acesso a emails pessoais com, em alguns momentos, ten-
tativa de utilização de redes sociais por meio das páginas de email; 6) pesquisas
em geral para obtenção de informações sobre drogas, poesias de amor, horósco-

15
Gugu Liberato, apresentador e empresário que atuou apresentando programas de au-
ditório no SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) e Rede Record. Atualmente, está vincu-
lado à Rede Record, através de produções realizadas por sua empresa GGP.

158
po, simpatias, busca por familiares, etc. (observado eventualmente). Percebemos,
assim, que os principais usos estão relacionados com o consumo cultural.
Outra tática de acesso à internet é a utilização do celular das colegas da esco-
la. A proibição de uso do celular no abrigo é contornada com pedidos para que
as colegas de escola emprestem seus aparelhos para o acesso à internet durante a
aula e o recreio, segundo contou RU16, uma das jovens da pesquisa:

Eu uso a internet na escola. Mas é no celular de uma colega. Na escola a


gente vai ter agora, a diretora disse. Mas não pode um monte de coisas e
tem horário. [...] Minha colega empresta o celular prá ver as fotos das nossas
amigas no Orkut e outras coisas. Mas é pouquinho tempo.

As táticas experimentadas para acesso à internet evidenciam, a partir das


observações realizadas, dinâmicas de consumo em que as jovens exibem marcas
de seu lugar social que, se por um lado, revelam processos de exclusão e desi-
gualdades a que estão submetidas; por outro lado, são também indicativos de
posicionamentos no universo do consumo que articulam pessoas de determina-
da idade, sexo, afinidades musicais, pessoais, etc. Ou seja, as jovens demonstram
o desejo de serem incluídas em um padrão de consumo e em hábitos de gênero e
de classe aos quais pertencem, ou mesmo de uma classe média urbana17, naque-
les casos em que adotam padrões de consumo convergentes entre as classes18.
Essa é uma dimensão da sociabilidade das jovens que, via consumo, buscam o
pertencimento à juventude através do acesso à tecnologia e possibilidades de
uso produtivo que esse acesso carrega.
Assim, as possibilidades de uso e de acesso da internet por parte das jovens
abrigadas podem ser vistas como um fator de inclusão quando as jovens aces-
sam e se percebem em igualdade com os demais com quem convivem ou até
mesmo com o imaginário de adolescente que construíram. Contudo, é também
um fator de exclusão já que as jovens não podem acessar tudo o que desejam
em um contexto de acesso às tecnologias que por si só já é excludente. Nesse
16
Foi acordado com a instituição que, em função da necessária preservação da identi-
dade das jovens, seriam usadas apenas as duas primeiras letras do nome para identificar
cada participante da pesquisa.
17
Isso se materializa em consumo dos chamados cantores de grande popularidade entre
a juventude, como Luan Santana.
18
Codato e Leite (2009) afirmam que a classe social pode ser vista como um grupo ou
um fato social, como uma forma de organização do mundo social dependente de um
contexto.

159
sentido, buscamos refletir como as jovens vão engendrar processos de cidadania
a partir desse contexto, considerando as suas dinâmicas de sociabilidade. A tec-
nologia contribui para essa construção, ao permitir que seja ampliada a trama
de relações tecidas pelas jovens, possibilitando conexões com alguns de seus de-
sejos e anseios. Por meio da internet, elas também constituem suas identidades
de jovens, a partir de um tipo de uso bastante circunscrito à cultura de massa
ou a incursões pontuais na internet, como por exemplo, verificar o horóscopo.
As preferências das jovens por conteúdos relacionados à cultura massiva -
como filmes estadunidenses de terror e videoclipes do cantor brasileiro Luan
Santana - também podem ser analisadas a partir da questão identitária das jo-
vens que acabam por consumir os produtos da indústria cultural e do entrete-
nimento. A viabilidade desse consumo de bens, aliado à perspectiva de acesso
a determinados conteúdos, configuraria uma das possibilidades de cidadania
para as jovens, uma vez que a segmentação e a diversidade de consumo são
percebidas por elas como fatores geradores de inclusão.
A preferência pelo entretenimento fica evidente nos usos empreendidos pe-
las jovens. Sobre isso, Marin destaca que o entretenimento assumiu grande im-
portância na sociedade contemporânea, pela capacidade de se apresentar como
um espaço de inclusão de “todos, de diferentes idades e gêneros, diferentes es-
tratos sociais, lugares e regiões do mundo e, portanto, ser uma fonte geradora
de bens econômicos e simbólicos” (MARIN, 2009, p. 228). No entanto, con-
forme chama a atenção a autora “[...] a democratização dos bens culturais ou a
liberdade de opção não é uma coisa dada [...]. Assim, [...] o entretenimento não
pode prescindir dos fatores econômicos, sociais e simbólicos que engendram e
determinam os usos e a falta de acesso aos bens” (MARIN, 2009, p. 217). Dessa
forma, as desigualdades sociais vivenciadas pelas jovens também se reprodu-
zem na esfera do acesso ao entretenimento, uma vez que esse mesmo acesso
é limitado, condicionando as próprias opções de entretenimento de que elas
dispõem por meio da tecnologia. Ainda assim, percebemos que as experiências
das jovens de um uso da internet pautado pelo entretenimento assumem uma
perspectiva da comunicação como criação de laços e, nesse sentido, de socia-
bilidade, conforme postulado por Paulo Freire (LIMA, 2011). Nas experiências
das jovens, a comunicação por meio do uso da internet adquire uma dimensão
de vivência e de relação, na qual elas têm a possibilidade de se constituírem
como sujeitos juvenis, independente da condição de abrigamento a que estão
submetidas.
Conectar-se à internet, para elas, é conectar-se para além das fronteiras im-
postas pela instituição, mesmo que sem a liberdade pretendida. Ao interagir

160
com as possibilidades apresentadas pela internet, as jovens exercitam um senti-
mento de autonomia e liberdade, mesmo que os usos estejam atrelados a mode-
los de conduta e a padrões estéticos impostos pela indústria do entretenimento
ou por outras instituições, inclusive no que se refere ao reforço de um tipo de
consumo pautado pelas divisões sexuais – homem e mulher. A diversidade de
estilos e de expressões culturais das jovens também encontra espaço no uso da
internet, o que pode ser constatado pelo interesse por diferentes estilos musicais
(funk, sertanejo e pagode, por exemplo) e pela maneira como expressam seu
interesse por um ou outro cantor (elogiando a beleza, a roupa, tecendo comen-
tários sobre a provável namorada do artista), em comportamentos considerados
“típicos” de adolescentes do gênero feminino.

6. Considerações finais

Acreditamos que a internet contribui significativamente para reorganizar as


experiências de sociabilidade das jovens abrigadas, por meio da comunicação,
apesar da existência de um acesso restrito e monitorado. “Não há potência na
tecnologia que não seja moldada, mediada, pelas tendências sociais profundas,
tanto as que se voltam à emancipação quanto as que se destinam à dominação e à
exclusão”, afirma Martín-Barbero (2008, p. 23 e 24). A internet possibilita que as
jovens se identifiquem com seus “grupos” de interesse e se reconheçam em seus
pares. A cultura digital é, no mundo juvenil, parte indissociável das vivências de
sociabilidade e de construção de identidades, e o lugar onde os jovens podem
afirmar a sua existência para o outro. No caso específico das jovens abrigadas,
elas parecem encontrar nos usos da internet uma forma de inserção social e visi-
bilidade, ao afirmarem, por meio de suas escolhas, a que grupo pertencem, a que
grupos gostariam de pertencer e a que grupos não pertencem.
Na visão de Pais (2006), as possibilidades trazidas pela internet representam
para os jovens uma fuga da ordem e a constituição da liberdade. Segundo ele, esse
potencial de fuga da estabilidade e do controle, criada pela internet, deve-se à
horizontalidade, ou seja, a uma relativização de hierarquias que favorece relações
mais espontâneas e descontinuadas, ou, ainda, o multipertencimento, caracterís-
ticas que invertem a lógica original de uma ordem pré estabelecida. Porém, en-
tendemos que há uma fuga apenas parcial da estabilidade e do controle, um aber-
tura de brechas, uma vez que a instituição regula o acesso e reforça hierarquias.
É possível afirmar que o desejo de forjar uma identidade comum em torno
do ser jovem a partir do emprego das linguagens da juventude canalizam os in-

161
teresses das jovens abrigadas em seus usos na internet. As sociabilidades juvenis
representam os espaços nos quais as mediações socioculturais e as identidades
movimentam-se e apresentam referências a uma cultura popular, mesclada com
culturas, urbanas, de classe média, etc. em seus padrões de consumo. O que
parece ocorrer é que as abrigadas desejam apenas viver seu tempo de juventude
com as marcas que as culturas juvenis carregam.
Essas culturas juvenis são constituídas por elementos como a música, os ído-
los, as expressões utilizadas pelos jovens, o uso das redes sociais, entre outros,
e sofrem constantemente a influência (ou a tentativa de influência) da cultu-
ra massiva, que busca transformar essas referências em produtos de consumo.
Acredita-se que os jovens se expressam culturalmente de diversas formas como
consumidores dos bens culturais, mas também como (re)criadores das suas
próprias expressões, hábitos e atitudes. E as jovens do abrigo, apesar de incluídas
em uma instituição normativa que impõe controle e limites para suas interações
com a internet, não deixam de se constituir identitariamente por meio de suas
práticas culturais, vivências e táticas plurais de usos da internet. Com isso, rea-
lizam a afirmação de suas identidades no exercício de práticas de sociabilidade
e de visibilidade que apontam para constituição de sua cidadania especialmente
por meio do consumo cultural.

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164
Cidadania mediática: a internet implica uma
revolução dos costumes?

Maria José Brites

1. Introdução: Cidadania mediática e jovens portugueses

A internet é, sem dúvida, responsável por um salto de gigante na criação de


alternativas participatórias dos cidadãos e muito em especial dos mais jovens. A
possibilidade de, por conta e vontade própria, os jovens poderem criar e manter
blogues, redes sociais e diferentes plataformas digitais para mostrarem as suas
expressões artísticas, manifestarem e fomentarem opinião e mostrarem o que
sabem fazer cresceu com o surgimento da internet, em especial a 2.0. Em todo
o caso, é importante anotar que a internet por si só não é solução e resposta
a diferentes clivagens de acesso, utilização e apropriação dos media e não as-
segura uma expressão valorada de uma cidadania mediática. Ou seja, de uma
cidadania reforçada e expressada através dos media. Neste capítulo exploramos
esta ideia partindo de um estudo de caso em Portugal, recorrendo a uma inves-
tigação longitudinal sobre jovens, jornalismo e participação. Esta resultou do
acompanhamento ao longo de dois anos de 35 jovens com diferentes formas de
participação e de consumo noticioso, bem como com diferentes proveniências
culturais, económicas e sociais. O intuito é explorar as práticas de cidadania
mediática – relacionadas com consumos noticiosos, práticas de cidadania me-
diatizada e expressões da vida quotidiana.

2. Condições para uma igualdade cívico-mediática?

As sociedades atuais vivem entre a ideia entusiasta de que o acesso às tecno-


logias é igualitário e a descoberta de que o caminho a percorrer é longo. Segun-
do os resultados do Inquérito à Utilização de Tecnologias da Informação e da
Comunicação (TIC) pelas Famílias realizado em 2013 pelo Instituto Nacional

165
de Estatística, 66,7% dos agregados familiares residentes em Portugal têm com-
putador em casa e 62,3% têm acesso à internet. Acresce que neste período assis-
tiu-se a uma tendência de aumento, mas em ritmo desacelerado, comparando
com anos anteriores (INE, 2013). Noutros países europeus, muito em especial
no Norte da Europa, o acesso à internet em casa ronda os 100%. As potenciali-
dades participativas da internet esbarram desde logo na possibilidade de lhe ter
acesso de forma cómoda e facilitada.
É, por isso, importante problematizar, ainda que sumariamente, o conceito
de geração digital, pelo que não poderemos deixar de recuar à génese. Taps-
cott (2009), quando designou Net Generation, Millennials ou Generation Y, re-
feria-se aos que nasceram entre 1977 e 1997 e que, segundo o autor, sentem a
tecnologia como o ar que respiram. O conceito foi amplamente transportado
e acolhido um pouco por todo o mundo, mas Tapscott referia-se especifica-
mente aos nascidos nos Estados Unidos. Será que a designação faz sentido, por
exemplo, em países como Portugal? Há outros componentes da vida quotidiana
que baralham a possibilidade de atribuirmos estas designações, condicionadas
por fatores mais vastos, como os políticos, os socioeconómicas e os culturais
(PONTE, 2011; PONTE; AROLDI, 2013). Há estudos que apontam para outras
implicações, para a existência de uma geração electrónica, a dos nativos dos anos
90, neste caso sobretudo caracterizada por usar vários ecrãs (CARDOSO ES-
PANHA; LAPA; ARAÚJO, 2009). Além disso, é importante anotar que o acesso
aos diferentes media implica fraturas e diversidades socioculturais; quem tem
a possibilidade de aceder a mais media corre mais riscos mas, eventualmente,
também mais facilmente consegue domesticar os media (KOTILAINEN; SUO-
NINEN, 2013; BRITES, 2015).
Quando pensamos em consumo, a internet pode reafirmar capitais sociais
e familiares, revelando que nem todas as potencialidades da internet são facil-
mente exploradas (BRITES, 2010; JORGE; BRITES; FRANCISCO, 2011), crian-
do desse modo entraves a novas conquistas. Assiste-se, ainda, a uma estabilida-
de face a situações culturais, sociais e educacionais pré-existentes.
O modelo de cultura participatória, principalmente impulsionado e de-
senvolvido por Henry Jenkins, tem como elementos subjacentes a ideia de que
quem participa quer que as contribuições sejam vistas como importantes. Es-
tipula ainda que há relativamente poucas barreiras à participação artística e cí-
vica, há uma maior partilha das criações, uma troca informal de saber entre os
que têm conhecimento e os que ainda não o adquiriram e, ainda, a necessidade
de ter em conta as opiniões dos outros, ou seja, há um sentimento de interco-
nexão (JENKINS; PURUSHOTMA; WEIGEL; CLINTON; ROBISON, 2006). A

166
principal crítica que tem sido feita a este paradigma é precisamente o facto de
ser associado a quem já é incluído.
Quando pensamos as práticas de cidadania mediática, indicadas pelos olhos
dos cidadãos, situamo-nos no âmbito dos estudos de recepção. A evolução dos
estudos de recepção pode relacionar-se com a história social, política e mediá-
tica (SCHRØDER, 2012). Numa proposta de divisão da pesquisa de audiências
em diferentes períodos desde 1973, Schrøder aponta para os estádios mais re-
centes e ligados ao novo milénio que se centram em formas de cidadania par-
ticipativa e cidadania ubíqua. Nestas duas propostas, Schrøder aponta para as
inovações tecnológicas e o debate mais ou menos entusiasta que implicam e
também para a necessidade de compreender as dinâmicas complexas da parti-
cipação mediatizada nas vidas quotidianas das sociedades atuais. A sociedade é
complexa e um olhar atento aos fenómenos sociais não se compadece com leitu-
ras unidirecionais. Na era da internet e da democracia mediatizada, um dos de-
safios é entender de forma integrada as conexões entre os diversos quotidianos
(online e offline) (BANAJ; BUCKINGHAM, 2010; DAHLGREN, 2010; MAS-
CHERONI, 2010) que estão relacionados de forma umbilical. Mesmo quando
a internet implica inevitavelmente uma ligação entre cidadãos e participação,
essa ligação não funciona sem contextos e acumulação de capacidades e saberes
diferenciados.
Uma rede alargada de possibilidades de consumo e de participação não se
centra apenas e totalmente no reflexo de capitais acumulados a montante. Tem
de ser também construída ao longo da vida, com reforço da vontade própria,
acessibilidade e capacidade de o indivíduo superar facilidades e obstáculos
(BOURDIEU, 1983). Por isso mesmo, quando pensamos em capital pensamos
também em relações de sociabilidade, consumos, apropriações e devolução de
conhecimento que cada indivíduo pode promover.
Como aponta Peter Dahlgren, é impressionante a quantidade de oportu-
nidades que os media online possibilitam, mas também é preciso ponderar as
contingências inerentes a obstáculos que esses mesmos media implicam e que a
pesquisa empírica pode fazer emergir (DAHLGREN, 2011). O carácter partici-
patório da internet e a sua natureza horizontal são desafiados pela sua própria
natureza que oscila entre a interação e a participação. Nico Carpentier alerta
para a inequívoca existência de práticas que são mais do foro da interação do
que da participação e que, como tal, nem tudo deve ser encarado com participa-
ção. O acesso e a interação são tidos como importantes contributos para o pro-
cesso participatório, mas são distintos de participação, pois têm menor ênfase
“em dinâmicas de poder e de decisão” (CARPENTIER, 2011: 28). Este debate

167
relativamente às possibilidades e fragilidades inerentes às sociedades mediatiza-
das – que é também um debate sobre as possibilidades digitais maximizadas ou
minimizadas – mantém-se atual, inclusive em sociedades ocidentais. Dahlgren
alerta que as versões maximalistas da democracia também reforçam formas
pré-existentes de deliberação e de poder (DAHLGREN, 2013).

3. Metodologias traçadas

Considerando como ponto de partida as indicações de práticas de cidadania


mediática por parte de crianças e/ou jovens, usámos um corpus composto por
35 jovens (32=15-18 anos; 1=14 anos; 2=21 anos; 16 F e 19 M) com interesses e
capacidades diferenciadas em termos de consumo de notícias e participação na
sociedade. Possuíam graus/níveis e tipos de participação muito diversificados
(Parlamento dos Jovens, assembleia de bairro, juventudes partidárias, jornais
escolares, graffiti, música), bem como backgrounds familiares, educacionais,
culturais e económicos muito distintos e competências individuais distintas.
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas (E1: 2010 e E2: 2011) e grupos
de foco (2011).
Este capítulo concentra-se nos cinco perfis que emergiram da análise con-
centrada nos consumos de notícias e formas de participação autorreportada:
(1) Participantes ocasionais e pouco informados, (2) Participantes e consumi-
dores emergentes, (3) Participantes politicamente engajados e informados, (4)
Participantes alternativos e cidadãos online e (5) Participantes e consumidores
em torno de um projeto do Eu. Entre estes perfis vamos incidir a análise em
cinco participantes que podiam ser considerados representativos de cada per-
fil. Estes cinco jovens e os seus consumos, ações e capacidades apontam para
diferentes práticas de cidadania mediática por parte de crianças e/ou jovens.
Entre estes atores que exemplificam os perfis, podemos dizer que o Vasco ex-
pressa muito bem uma utilização fragmentária dos media enquanto espaços
de participação cidadã. Dificuldades económicas dificultam o acesso a deter-
minados media e como tal a sua utilização ativa e participativa. Já a Carminho
reflete ambivalências de consumo mediático ainda com grande valorização da
televisão, mas com um despontar da internet. No que concerne a produção de
conteúdos, exemplifica a relação de ambivalência em relação a um dos media
mais tradicionalmente usados em contexto educativo em Portugal, os jornais
escolares. O Joaquim, por seu lado, é um utilizador intenso do Facebook para
participação ativa e também é um dos poucos participantes a ter tido a possi-

168
bilidade de participar em jornais tradicionais de circulação nacional e regio-
nal. A Jade, uma ativista, é utilizadora da internet e dos fóruns de discussão e
aponta para a necessidade de procurar satisfazer um bem comum. Finalmente,
o Dário usa o MySpace como ferramenta de divulgação do seu trabalho como
Master of Cerimony (MC).
O objetivo é dar conta de práticas de cidadania mediatizada – relacionadas
com consumos noticiosos, práticas de cidadania e expressões da vida quotidiana.

4. Perfis e práticas inerentes

No grupo Participantes ocasionais e pouco informados, identificámos jovens


com um consumo limitado de informação noticiosa e formas de participação
concentradas em oportunidades de momento. No contexto familiar há uma es-
cassez de discussão sobre notícias e nos casos em que ela existe é muito centrada
na orientação para saber evitar o perigo que ameaça o bem-estar pessoal (desas-
tres, acidentes, doenças). Ou seja, as notícias servem em certa medida para alertar
para perigos e ao mesmo tempo satisfazem uma intrínseca curiosidade pelo peri-
go. As notícias de cariz político são escassas e, quando existem, surgem através da
televisão ou são evocadas por conversas familiares, sobretudo tidas pelos adultos.
As notícias são obtidas sobretudo através dos meios tradicionais, notando-se uma
diminuição destes em comparação com a internet de 2010 para 2011.
As opções do Vasco1 são precisamente exemplificativas de uma cidadania
mediática que depende muito de oportunidades criadas nos seus contextos
de proximidade, como o centro do bairro social (assembleia de bairro) onde
mora ou a escola (por exemplo quando o professor pede que façam um blogue).
São oportunidades fragmentadas e momentâneas que despertam a atenção do
envolvido, constituem um motivo de orgulho e até de alguma autoconfiança,
mas que não têm continuidade efetiva.
Entre 2010 e 2011, as suas formas de participação autorreportada identifi-
caram isso mesmo: ao contrário de 2010, em 2011 já não participava na assem-
bleia de bairro, o blogue também estava parado e as atividades de participação
resumiam-se a comentar em blogues e conversar com colegas.
1
Aos 17 anos frequentava o 10º ano e num curto espaço de tempo tinha passado por vá-
rias escolas, tendo sido obrigado a sair de uma escola de elite (estatal). Mesmo esforçan-
do-se acabou posteriormente por ter dificuldade em encontrar rumo escolar, inclusive
pelas dificuldades financeiras que sentia. Vivia com a mãe e o padrasto (ambos com baixa
escolaridade) e os irmãos. Não sabia que profissão escolher mas interessava-se por artes.

169
Ao longo do tempo, o Vasco procurou ultrapassar a exclusão digital no Cen-
tro Social e junto de familiares: “Com o telemóvel vou à internet e o meu primo
tem internet e recorro aqui ao espaço jovem [Centro Social]”. Com o uso escasso,
em termos temporais, também são penalizadas as competências, não só na uti-
lização, mas também na compreensão dos mecanismos e dos termos associados
a esses mesmos usos.
O Vasco aproveitava para ler os jornais que um professor levava para a esco-
la, bem como os gratuitos quando andava de metro. As revistas cor-de-rosa, de
novelas e da série juvenil Morangos com Açúcar são também assinaladas como
elementos que vão povoando as referências noticiosas deste grupo, inclusive
entre os rapazes.
Relativamente ao blogue, anotava:

“– O blogue foi feito há mais ou menos um ano, foi para a escola, para apren-
dermos a fazer um blogue, mas eu… como este assunto me interessava, optei por
fazer sobre o impacto ambiental, procurei vários assuntos sobre o tema, alguns
vídeos e também acrescentei uns joguinhos para lá, mas tudo dentro do tema que
procurei.”
– Mantiveste o blogue?
– Ele [blogue] ativo está…, mas depois esqueci-me da password e não atua-
lizei.” (Vasco, E1)

Em 2011, quando se referia ao blogue, chamou a atenção para o modo como


era feito (o que pudemos confirmar ao visualizá-lo) e para o facto de os textos
que lá colocava serem copiados de outros sítios na internet. Em 2011 referiu-se
ainda à participação em outros blogues (nos quais coloca a sua opinião) e à
conversa com amigos, como formas de participação. A utilização da internet,
ainda que escassa e limitada, até pelo facto de o Vasco não ter computador nem
internet em casa (acede em casa de amigos, familiares ou escola), evidencia uma
sobrevalorização das suas capacidades para uso criativo que não corresponde à
realidade. Isto em certa medida pode ser menos positivo, mas também revela
de facto que a internet tem a capacidade de nos fazer sentir mais empoderados.
Já no perfil de Participantes e consumidores emergentes há uma transversa-
lidade dos seguintes indicadores: a televisão é um meio preferencial (embora
nem sempre exclusivo) para consumo de notícias e o jornalismo televisivo é
considerado fundamental do ponto de vista da democracia, embora de 2010
para 2011 a internet também tenha entrado nessa mesma disputa. Ou seja, há
uma centralidade da televisão e uma emergência da internet, mas sem identifi-

170
cação com a mesma. Em termos de informação política, a televisiva é a preferi-
da. É discutida no espaço familiar e também no grupo de amigos, sobretudo nas
escolas. Em termos de participação, está concentrada, sobretudo no primeiro
ano (2010) em formas proporcionadas pela escola, no segundo ano de pesquisa
assistiu-se a uma manutenção de algumas formas de participação ou ainda à
indicação de novas opções e atividades.
Por altura da primeira entrevista, Carminho (16 anos), que ainda dirigia
um dos jornais da sua escola secundária2, vivia com a mãe e a irmã. A mãe era
licenciada (desempregada) e o pai tinha o 12º ano. Nesta altura, aos 16 anos (11º
ano), Carminho disse que queria seguir jornalismo mas optou por advocacia
(tendo ingressado em Direito). Empenhada em atividades sociais, seguia as no-
tícias através da televisão, bem como através dos colegas na escola.
Entre 2010 e 2011, Carminho manteve e até incrementou os seus modos de
participação3 que são, aliás, muito diversificados quanto à participação micro e
macro nas suas formas convencional e não convencional. Neste perfil, as formas
de participação na internet são não só mais intensas do que no anterior como
também implicam uma maior capacidade para as estruturar e manter, pois há
um reforço da produção própria de conteúdos mediáticos, sobretudo em 2011.
No entanto, nem todas as formas de participação significam participação cívica.
Há exemplos esporádicos (Carminho) de aplicação prática ao real das formas de
participação e as ações coletivas têm especial destaque, muito influenciadas pela
participação em manifestações.
Na escola onde a Carminho estudava existiam dois jornais escolares. Um era
da alçada oficial da escola e o outro, o que a Carminho dirigia, era suportado
pela Associação de Estudantes. Tanto para ela como para os colegas de turma
havia uma diferença entre os dois tipos de jornais escolares; no primeiro caso,

2
Numa pesquisa paralela, na qual nos detivemos sobre a apropriação dos jornais esco-
lares, vantagens e contextos, identificou-se que “todos os rapazes entrevistados escrevem
artigos de opinião, assumindo-se mais talhados para esta tarefa do que para a produção
de notícias ou reportagens. As raparigas dividem-se entre várias funções, como a escrita
da opinião, da notícia e da reportagem. Os elementos que promovem a participação no
jornal escolar são diversos. Desde a vontade de enaltecer uma opinião pessoal até à pos-
sibilidade de contribuir para um debate entre alunos e na comunidade escolar, passando
pela oportunidade de aprender a fazer jornalismo, especialmente por parte de raparigas.”
(BRITES, 2011, p. 542). Estes resultados apontam para as pluridimensões que podem ser
encontradas, designadamente de género, quando nos referimos a práticas de cidadania
mediática.
3
Juventude partidária (Centro-Direita), escuteiros, Parlamento dos Jovens (pela 2ª vez,
neste caso como cabeça de lista); Associação de Estudantes, voluntariado, Facebook.

171
os professores de alguma forma impunham uma linha editorial e no segundo
os alunos eram cidadãos que escolhiam os temas e os tratavam, revelando desta
forma uma cidadania mais ativa e consentânea com os seus interesses. Os jo-
vens alunos têm uma imagem bem clara das potencialidades que qualquer uma
destas duas formas de fazer jornalismo escolar proporcionam e privilegiam os
jornais de iniciativa dos alunos para se expressarem de forma mais livre (BRI-
TES, 2011).
O terceiro perfil que inclui os Participantes politicamente engajados e infor-
mados é composto pelo conjunto de jovens que mais mostrou apreciar a infor-
mação e, em simultâneo, que manifestou uma vontade intensa de participar e
implementar ações em prol da comunidade, a nível local ou central e em dife-
rentes tipos de participação (tradicional e não tradicional). Há diversidade de
consumo noticioso, através de vários canais, desde os tecnológicos (televisão,
jornais de referência, internet) até aos amigos, familiares e pessoas que não se
incluem neste grupo restrito. Ao longo do tempo há uma maior consolidação do
usos dos media digitais. Verifica-se uma continuidade nas formas de participa-
ção4 que são substituídas sobretudo quando as antecedentes deixam de existir.
A política é encarada nas suas múltiplas dimensões e a discussão da informação
política é alargada. O ciclo social da informação sai, por isso, reforçado. Tudo
isto acontece com a prevalência de capitais cívicos acumulados.
Neste grupo encontra-se ainda a maior parte dos jovens que tiveram a opor-
tunidade de escrever para jornais mainstream. Importante assinalar que este
grupo é constituído por membros de juventudes partidárias, dirigentes de as-
sociações de estudantes, pessoas que têm uma forte participação em ações de
voluntariado e de ação direta com as comunidades.
Joaquim, com 18 anos, frequentava o primeiro ano da faculdade (Econo-
mia). Vivia com a mãe (licenciada) e tinha dois irmãos. O pai era licenciado em
Ciência Política. O Joaquim afirmava que a informação é poder, falava de notí-
cias com os pais, os amigos, os colegas, os membros do partido, com as pessoas
que não conhecia (mesmo no autocarro).
À semelhança de outros jovens deste grupo, para Joaquim “A informação é a
base de tudo. É poder. Ter informação é estar à frente, é ter vantagem” (E1). A in-
formação é entendida como um estado de espírito, uma ferramenta para reforçar
formas de entendimento e de participação. É fundamental para se posicionarem
nas diferentes arenas em que se movimentam. Neste grupo, estar a par das no-
4
Juventudes partidárias, partidos políticos, jornais nacionais e regionais, manifestações
de rua, blogues de iniciativa própria, voto, escuteiros, presidência da Associação de Estu-
dantes e voluntariado, apenas para dar alguns exemplos.

172
tícias é tido como um hábito, um vício. Na linha de APPADURAI (2003/1986),
encontramos o carburante para um consumo participativo.

“– No outro dia fiz isso [colocar uma notícia no Facebook, a propósito do


casamento homossexual] e estive três a horas a responder a comentários. Fiz um
comentário simples de duas ou três linhas, entraram logo dois comentários, eu fui
respondendo, e a entrar num debate online, com pessoas que eram minhas amigas
no Facebook, viram o comentário e responderam. Até chegamos a combinar um
café para discutirmos aquilo.
– Com pessoas que não conhecias?
– Um ou dois elementos a responder eu conhecia, de outras juventudes parti-
dárias, depois havia outros que eu não conhecia. Quanto mais pessoas integrarem
este tipo de debates, melhor” (Joaquim, E1).

Joaquim aponta para o imperativo de saber gerir a informação e de como


neste momento prefere a internet como meio informativo:
“– Internet, por uma razão muito simples. Por muito que se possa dizer que
na internet há tudo e mais alguma coisa, e por isso ser verdade, há informação
má e boa, precisa e pouco fundamentada. A questão e o grande truque do século
XXI é conseguires gerir a informação. Logo, se eu quiser uma informação precisa
e credível eu é que tenho de saber procurá-la.” (Joaquim, E1)

Os media tradicionais são ainda encarados como espaços onde a informa-


ção é mais manipulada, sobretudo por forças políticas e económicas. Apesar de
este discurso ter sido mais vincado junto dos informantes de esquerda, marcou
algumas discussões acesas.

“– Lito5: O cidadão é altamente manipulável pelos media tradicionais, porque


têm um poder e um mercado que é só deles e que está concentrado em meia dúzia
de mãos e que cria uma cultura. Por isso é que a internet acaba por ser uma cultura
muito mais democrática. A democracia existe a partir do momento em que escolhem.
5
O Lito mantinha dois blogues ativos, um mais ligado à política, que gostava que fosse
comentado, e um pessoal e poético, que mantinha para expressar pensamentos, mas que
preferia que se mantivesse mais anónimo e menos comentado. Aliás, relativamente aos
blogues encontrou-se esta dinâmica: quando serviam um propósito mais vasto (político,
ou divulgação de uma atividade desportiva) queriam-se mais comentados e públicos e
quando mais intimistas queriam-se menos comentados, sendo sobretudo repositórios de
pensamentos pessoais que seriam eventualmente comentados com amigos offline.

173
– Joaquim: Pegando nisto que o Lito está a dizer que a internet é mais de-
mocrática, se formos ver um media tradicional, um jornal é limitado a não sei
quantas páginas… mas está limitado a páginas e a um espaço, a internet não tem
limite. Há notícias que estão na internet, mas não estão no papel por falta de espa-
ço. Há uma opção. Tornam-se mais democráticos os próprios jornais, digamos que
o Público no papel mostra uma tendência para um desses lados, mas na internet o
site do Público dá acesso a mais artigos e de forma muito mais democrática. Mas
a imagem de um jornal tradicional passa por aquilo que é impresso. Há muito
mais na net do que no papel.” (GF3)

No grupo de Participantes alternativos e cidadãos online constituído, a in-


ternet é tida como principal media, capaz segundo estes jovens de confrontar a
legitimidade das notícias no atual ecossistema. Gostam de notícias sobre temas
sociais, políticos e culturais que lhes interessam particularmente (atividades ar-
tísticas e ONG), mas que também servem a comunidade em que se inserem;
há uma preocupação com o outro. De 2010 para 2011 reforçaram atividades de
participação e quase todos mantiveram as atividades que mais os interessavam
imprimindo-lhes sempre um caráter comunitário, no sentido de as ligarem a
uma atividade positiva que estavam a assegurar junto das suas comunidades
mais próximas. Os interesses de participação são diversificados, uma vegetaria-
na, uma ativista de ONG e militante de um partido, interessados/participantes
em atividades culturais.
O caso da Jade6 é emblemático. Em 2010 estudava para entrar em Medici-
na, mas os olhos brilhavam quando falava nas Belas-Artes. Em 2011, acabou
por entrar em Veterinária. Comprava revistas de música e usava a internet para
saber notícias específicas de ciência e de cultura. “Na internet, depende, não há
Twitter português para notícias, penso eu, mas seria bom, no momento em que
acontece toda a gente é informada, temos sempre as notícias no Google e procurar
sites. No meio, aparecem notícias e vemos” (Jade, E1). Para os assuntos mais do
foro da atualidade, da crise, Portugal e política, já optava pelo telejornal, mas
também recorria ao YouTube, para procurar a atualidade.
A Jade relembra as questões da objetividade e da subjetividade e neste caso
relativizando mais a objetividade do jornalista, que, afinal, não passa de um

6
Com 17 anos estudava no 11.º ano (ciência), mas dizia que gostava mesmo era de artes.
Acabou por entrar em Veterinária (os animais eram outra das suas paixões), o que se
encaixava bem com a sua atividade como vegetariana e convicta defensora dos animais.
Vivia com os pais (12.º e 11.º anos). Como afirmou: “Sou completamente pela internet”
(E1), o que se verificava na sua ativa participação em fóruns online.

174
ser humano. A Jade, referindo-se à objetividade no jornalismo, acrescenta: “Há
muitos jornalistas a criarem o seu blogue, o seu site e exporem lá as notícias. Isso
é bom.” (Jade, E1). Quando se refere às possibilidades dos media tradicionais,
sobretudo em ambientes familiares, destaca que a televisão ainda é motor cen-
tral da conversa.

“– Eu acho que as pessoas estão em casa, ligam a televisão e têm um pouco


de atividade de discussão, com as pessoas que os acompanham e com os amigos.”
(Jade, E2)

Por fim, o grupo de Participantes e consumidores em torno de um projeto do


Eu apresenta uma coesão centrada na forma positiva como cada um dos infor-
mantes se revê e revê as suas capacidades. Denotaram diferenças em termos de
formas de participação e de consumo noticioso, sendo estas diferenças concen-
tradas em expressões orientadas para a satisfação do self. Estes jovens estão ten-
dencialmente concentrados numa construção autocentrada nas suas vontades
e interesses. Um dos dados que ressalta do grupo é o facto de ser constituído
apenas por rapazes e aqui poderemos recordar a proposta de António Fidalgo
(2010) sobre a construção retórica da personalidade. Este grupo de sete rapa-
zes tem como denominador comum a quase todos uma elevada autoestima, se-
rem interessados pelo meio que os rodeia e por informação específica, sem que
pensem essencialmente no bem comum, mas sobretudo em interesses pessoais
diversificados: graffiti (arte), desporto, política (tradicional e não tradicional).
Não são apenas consumidores, mas também produtores de conteúdos online,
que servem propósitos pessoais.
Com 17 anos, Dário frequentava o 10.º ano numa escola profissional e nesta
fase ainda não tinha ideias claras sobre o que fazer depois de terminar o 12.º
ano. Oriundo de uma família nuclear com baixa escolaridade, vivia com os pais
e o irmão mais novo. As notícias chegavam-lhe através de conversas com amigos
ou da televisão. Apesar de ter como espaço informativo (político) praticamente
apenas a televisão, o Dário procura na internet outros assuntos que considera
serem relevantes, pessoalmente e no âmbito artístico. O interesse coletivo deve-
rá prever o particular para que se fomentem formas mais duradouras de partici-
pação. O MySpace era uma plataforma usada para divulgar trabalho artístico e
contribuiu para melhorar as suas capacidades digitais e participativas. Em todo
o caso acabou para deixar de parte a conta pessoal, para ganhar mais projeção
colectiva numa nova conta partilhada com outros colegas.

175
“Sim [continua a ter conta no MySpace], mas agora não vou muito lá, acabei
por redirecionar o meu trabalho com amigos e tenho um MySpace com eles, para
divulgar o trabalho. Eu passei a cantar algumas músicas com eles e eles disseram-me
para ficar e eu fiquei com eles.” (E2)

O MySpace destacou-se, em especial entre os entrevistados que produzem


música e fazem graffiti, como um espaço de participação, mas também de divul-
gação dos seus trabalhos. Esta vontade de divulgação chega mesmo a assumir
uma forma de pretensão de vender o trabalho. Não poderemos fazer uma liga-
ção direta entre esta forma de participação e pensar o coletivo, mas, certamente,
e o Dário é disso exemplo, tornou-se potenciadora de capacidades pessoais de
participação e de utilização do digital.

5. Notas conclusivas

Sem perder de vista a questão inicial deste capítulo: a internet implica uma
revolução dos costumes? Podemos dizer que esta análise nos indica que a res-
posta não segue num sentido absolutamente otimista, mas também não signi-
fica uma estagnação. Identificámos várias juventudes e práticas de cidadania
mediatizada, através de diversos media. Encontrámos práticas de cidadania
mediatizada – consumos noticiosos, práticas de cidadania e expressões da vida
quotidiana – muito diversificadas que indicam cidadanias mediáticas diferen-
ciadas. Estes cinco perfis dão conta das ambivalências encontradas quando
ouvimos os cidadãos e pretendemos enquadrá-los nas suas vidas quotidianas,
tentando compreender os porquês e as atitudes e práticas.
Por exemplo, vimos como a simples prática de criar e manter um blogue
pode ser tão diferente consoante as capacidades e vontades reais de quem o
faz. Além disso, também diferem de acordo com as temáticas e fins que esses
mesmos blogues têm.
O Facebook assume aqui uma expressão ativa de participação e reflexão,
além da mera interação e divertimento, em contextos específicos em que a von-
tade de participar é prevalecente em relação ao tipo de tecnologia.
Os meios digitais adquirem uma maior relevância cidadã em contextos onde
já existe uma predisposição para as culturas cívicas e cidadania mediatizada.
Mas é de facto de destacar a enorme importância que o digital possibilita em
contextos onde os jovens não têm facilidade de acesso às práticas culturais e me-
diáticas mais onerosas, que implicam maior dispêndio de dinheiro, mostrando

176
neste caso dependência em relação a oportunidades que se criam nos contextos
de maior proximidade. O trabalho a realizar em termos de promoção da litera-
cia cívico-mediática é fundamental e liga-se com a necessidade de promoção de
estruturas duradouras que permitam uma qualidade de participação no tempo
e na sua intensidade.
Um aspecto essencial que podemos encontrar na leitura destes perfis é a
ligação intrínseca que as atividades de participação e de cidadania mediatizada
têm relativamente às vontades e expressões quotidianas de cada um dos mem-
bros do grupo. Ou seja, conhecer, favorecer e explorar contextos existentes. Por
isso, este é um aspeto que terá de ser levado em conta em propostas de facilita-
ção desta mesma cidadania mediatizada e de promoção de uma cultura cívica.

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Eixo 6.
Práticas de sociabilidade de crianças e/
ou jovens por meio das novas mídias
Sociabilidades juvenis e o uso de dispositivos
móveis na cidade

Amanda Nogueira de Oliveira


Alexandre Almeida Barbalho

1. Introdução

A cidade com seus bairros, ruas, avenidas, espaços de passagem e perma-


nência, possibilita experiências que acontecem de forma única e diferenciada
para cada um de seus habitantes e visitantes. De acordo com Argan (1998), esta
experiência é sim resultado de escolhas individuais, mas nem por isso concebi-
das de forma aleatória. O que converge com a observação de Magnani sobre as
experiências com a cidade como “resultado de rotinas cotidianas, ditadas por
injunções coletivas que regulam o trabalho, a devoção, a diversão, a convivência
e que deixam suas marcas no mapa da cidade” (MAGNANI, 1993, p. 13).
No que diz respeito à juventude1, a partir do pós-guerra, várias pesquisas
foram desenvolvidas na perspectiva de compreender sua inserção no meio ur-
bano e, particularmente, a importância dos meios de comunicação de massa
nessa relação. Tanto que, no final do século passado, inspirou a criação de no-
menclaturas, tais como geração X e Y, culminando no que seria o surgimento
de uma “geração digital” (geração Z). Campos observa que a referida geração é
composta por indivíduos “perfeitamente familiarizados com os códigos e com
os processos de gestão da informação audiovisual em circulação por múltiplas
redes” (CAMPOS, 2011, p. 25).
É o caso, por exemplo, da relação dos jovens com seus aparelhos celulares.
Tais dispositivos, que possibilitam uma série de funções, transformam o trajeto

1
Apesar de utilizar no singular, entendemos que a juventude é plural, tanto em suas di-
mensões diacrônicas, no que se refere às diferenças e semelhanças entre gerações, quanto
sincrônicas, a partir das divergências e similitudes entre jovens de uma mesma geração,
levando em consideração as dimensões de gênero, classe, étnicas, entre outras (BARBA-
LHO, 2014).

181
da juventude na cidade por meio de formas de apropriação e consumo bastante
diferenciadas em sua cotidianidade2. Há muito que o aparelho celular não é
mais utilizado apenas como ferramenta exclusiva de comunicação oral ou tex-
tual. Utilizador do termo “dispositivo híbrido móvel de conexão multirrede”
(DHMCM), André Lemos investiga o aparelho como um dispositivo plural de
troca de informações, armazenamento, compartilhamento e comunicação inte-
grada a outras ferramentas. Tais dispositivos unem voz, texto, vídeos e fotos às
possibilidades de conexão em rede e à “mobilidade por territórios informacio-
nais reconfigurando as práticas sociais de mobilidade informacional pelos espa-
ços físicos das cidades” (LEMOS, 2008, p. 51). Com dispositivos híbridos, são
criadas formas de contato permanente, contínuo e em mobilidade, inaugurando
novas vivências do tempo, espaço e das “(ciber)cidades”.
Na cidade, as relações entre jovens são configuradas e reconfiguradas em re-
lação ao território que habitam. E os territórios não estão condicionados apenas
à presença física dos habitantes em um determinado local, mas também às suas
trocas simbólicas. Os dispositivos móveis, especificamente os aparelhos celula-
res, devido à sua enorme variedade de formatos, cores, texturas, transformam-
-se em passaportes de ascensão entre nichos e grupos sociais; em indicadores
de personalidade; em ferramentas de sinalizações identitárias; enfim, em uma
forma de comunicação das atitudes dos jovens3.
É essencial entender, que em tempos de compartilhamentos de informações
e oportunidade de conectividades prolongadas, acumular “capital tecnológico”
é uma forma dos indivíduos distinguirem-se nos mais variados campos,
inclusive no campo social (ROCHA; PEREIRA, 2010). E no caso dos jovens,
na construção de uma relação frenética com o urbano, este acaba se firmando,
simultaneamente, como palco e como tela (CAMPOS, 2011).

2
Segundo Pais, para que sejam constatadas as diferentes juventudes é necessário traçar
um olhar meticuloso sobre seus modos de vida, suas estratégias e práticas cotidianas
“tentando perceber como esses mecanismos são investidos, utilizados, transformados,
quais as suas possíveis involuções ou generalizações” (PAIS, 1993, p. 56). Com as tec-
nologias, as pluralidades se multiplicam no aspecto relacional, em diálogo com outras
juventudes, e na forma como esses jovens se visualizam.
3
As discussões sobre o consumo demonstram como ele proporciona (ao mesmo tempo
que resulta de) uma constante necessidade de inserção dos indivíduos nos grupos so-
ciais. O consumo satisfaz necessidades, individuais e/ou coletivas, fixadas culturalmen-
te, possibilitando assim uma integração grupal e, ao mesmo tempo, funcionando como
estratégia de distinção, dando segurança de permanência aos inseridos em instituições
e rituais sociais (CANCLINI, 2008; BAUDRILLARD, 2010; BOURDIEU, 2000; DOU-
GLAS; ISHERWOOD, 2006).

182
No entanto, parece-nos pertinente a observação de Mário José Lopes Gui-
marães Jr. sobre o ciberespaço como um novo espaço de sociabilidade. Para o
autor, as relações, códigos e estruturas propiciadas por ele (ciberespaço) não são
propriamente inéditas, mas sim ressemantizações de formas já conhecidas de
sociabilidade adaptadas a novas condições impostas pela experiência do virtual
(GUIMARÃES JÚNIOR, 1997, p. 06). Essa perspectiva é a mesma de Sílvia Silva
que trata especificamente das sociabilidade juvenis on-line. Para Silva, “as comu-
nidades online constituem autênticas comunidades que contribuem, também,
para a estruturação e sedimentação das comunidades face-a-face” (SILVA, 2007,
p. 70). E o seu estudo possibilita compreender como os jovens estabelecem tipos
de comunicação, trocas sociais, sentidos de pertença, solidariedade, compro-
misso e reciprocidade.
É viável, portanto, recorrer à definição clássica de sociabilidade proposta
por Simmel, ou seja, como forma lúdica de sociação, como multiplicidade de
vínculos tecida a partir da troca de desejos e propósitos em comum entre partes
interessadas, existente essencialmente pela não-obrigatoriedade de manutenção
dessas relações (SIMMEL, 1983), e perguntar: como os usos do dispositivo de
telefonia móvel afetam as sociabilidades juvenis e urbanas?
A proposta deste trabalho visa discutir acerca das sociabilidades manifes-
tadas a partir do uso de dispositivos móveis por jovens habitantes de periferias
urbanas4, mais especificamente daquelas situadas em Fortaleza. Para eleger o
locus de pesquisa, tomamos como ponto de partida a escolha de um bairro que
tivesse baixo Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) e se loca-
lizasse longe do centro da cidade – perímetro onde, normalmente, se localizam
os serviços essenciais básicos, como saneamento básico, transporte público,
educação, dentre outros. Levando em consideração esses fatores, foi escolhido
o bairro Boa Vista5.

4
No Brasil, o uso da telefonia móvel encontra-se em expansão, fenômeno que atinge
todos os estratos sociais. Em agosto de 2014, o país chegou a cerca de 272,4 milhões de
linhas de telefones celulares, com uma média de mais de um acesso para cada habitan-
te (MC, 2014). É interessante observar que o acesso a esta tecnologia tem se dado de
maneira constante pelos jovens, como demonstram os dados da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios – PNAD (IBGE, 2014). O Nordeste é a segunda região do Brasil
que mais registra acessos em telefonia móvel por cada cem habitantes e o Ceará é o ter-
ceiro estado desta região que mais utiliza a tecnologia, atrás apenas de Pernambuco (2°)
e Bahia (1°) (ANATEL, 2013).
5
Localizado ao sul de Fortaleza, o Boa Vista possui área de 2.287km², com população
de 8.663 habitantes e IDHM de 0,313, considerado baixo em comparação a outros da
capital. Dentre outros fatores, o referido bairro é conhecido por abrigar o maior estádio

183
Como procedimento metodológico, optamos por uma inserção no campo,
acompanhada da elaboração de um diário, resultado de observações, conversas
informais e entrevistas semiestruturadas com um grupo de jovens do Boa Vista.
Acompanhamos, também, nossos interlocutores nas redes sociais nas quais es-
tão inseridos, com destaque para o Facebook6.

2. Os usos do celular pelas rua do Boa Vista...

As cidades contemporâneas têm estrutura corpórea. Esta compreensão coin-


cide com o advento do capitalismo moderno e o nascimento de uma enorme
transformação social: o fortalecimento do individualismo (SENNETT, 2003).
A cidade, como o corpo, é cheia de multiplicidades. Ao flanar pela cidade, o
indivíduo se deixa levar por esse caráter multifacetado, por meio de suas cores,
cheiros, sabores, sentidos múltiplos.
Nos dias correntes, o que se percebe é que o indivíduo tece, cada vez mais,
sua experimentação mediada pelas tecnologias, o que faz com que outros tipos
de cidade se ergam perante os seus sentidos. As novas práticas comunicacionais
estão propiciando um outro tipo de relação com a cidade e Fortaleza não escapa
desse processo. Em uma pesquisa que fez sobre a presença das telas eletrônicas
nos espaços públicos das cidades de Barcelona e Fortaleza, Beatriz Furtado de-
fende que a presença de tais dispositivos expressa as transformações que ocor-
rem na percepção espaço-temporal do espaço urbano (FURTADO, 2002).
Há um constante pulsar de imagens e sensações direcionadas aos que nela
habitam e, como expõe Di Felice, “as praças, as ruas, as avenidas, deixam de
serem os lugares únicos da experiência social urbana e passam a ser flan-
queados por outras espacialidades imateriais e informativas (...) que se sobre-
põem, criando metageografias e novas experiências de habitar” (DI FELICE,
2009, p. 153).

de futebol do Ceará, o Arena Castelão. Durante o período da Copa das Confederações,


em 2013, e da Copa do Mundo, 2014, realizadas no Brasil, o bairro ganhou projeção na-
cional e internacional tanto em menção aos preparativos e execução dos jogos que iriam
acontecer no referido estádio, como pelo nível de desigualdade social que acomete a
população local, em conflito direto com a reforma milionária do equipamento esportivo
e do entorno a ele.
6
A pesquisa faz parte do projeto de mestrado em Comunicação na Universidade Federal
do Ceará intitulado “Conexões juvenis: processos e práticas socioculturais por meio de
dispositivos híbridos” de Amanda Oliveira e orientado por Alexandre Barbalho.

184
E não apenas a própria cidade proporciona este bombardeio de informações.
O uso de dispositivos tecnológicos privados nos enche de variadas sensações
audiovisuais. Trafegando com estes dispositivos pelos meios urbanos, ouvimos
músicas, trocamos ou divulgamos informações, ou mesmo fazemos o registro
desta cidade, por meio de fotografias, vídeos, áudios, dentre outras formas de
experimentação tecnológica. Nosso corpo se curva para baixo. As mãos exer-
cem função primordial neste tipo de relação, por meio do uso dos teclados dos
dispositivos híbridos móveis, seja os já adequados ao cotidiano dos transeuntes,
os aparelhos celulares, ou mesmo outras espécies de tecnologias, como o tablet,
utilizadas como dispositivo de leitura.
São várias as formas de sociabilidades que surgem entre os usuários des-
tes dispositivos tecnológicos. O que nos leva a Schutz (1979), quando discute a
perspectiva relacional dos indivíduos estabelecendo que o corpo se torna dispo-
sitivo fundamental no processo de conhecimento do outro. Para compreender
como se dá hoje essa relação de si mesmo com o outro, mediada pelos dispo-
sitivos móveis, é que adentramos pelas ruas do Boa Vista atrás de seus jovens
moradores ou frequentadores.
Assim, entre junho e agosto de 2014, visitamos o bairro Boa Vista e nos
deixamos conduzir pelo espaço e pelas informações traduzidas pelos habitantes
locais, assim como pelos rastros de cheiros, sons e sabores. Não há como per-
correr esse trajeto sem perceber que, como explica Ferrara, a imagem urbana,
que é, sobretudo, polissensorial, “é uma representação construída cotidiana-
mente pelos moradores, a partir da informação inferida da vivência de variáveis
contextuais consideradas como elementos de informação urbana” (FERRARA,
1993, p. 71).
O bairro é visivelmente dividido. De forma crescente, quadra a quadra, as
casas se transformam. Partindo do início do bairro até o seu limite com o se-
guinte, as casas e os muros vão se tornando menores. Se antes ocupavam quase
um quarteirão, ou se encontravam dentro de um condomínio, aos poucos vão
sendo coladas umas às outras, até terminar em becos, em que são ainda meno-
res, quase como pequenos quartos-sala.
Os jovens, no espaço do Boa Vista, ainda sentam às calçadas, ao final da
tarde, assim como suas famílias. Saem para conversar com seus vizinhos e seus
familiares à porta de suas casas. O costume antigo é contudo transformado pelo
uso do celular, pois ainda que no espaço público, mantêm sua atenção voltada
para o dispositivo, por meio do qual ficam trocando informações. O uso tanto
se dá como plataforma geradora de contato com outros jovens de forma não-
-presencial, quanto forma de compartilhamento presencial de imagens, vídeos e

185
músicas. Compreende-se aqui que as sociabilidades geradas estão diluídas entre
o físico e o não-presencial (SIBILIA, 2002), o que nos impõe repensar o sentido
“antropomórfico das formas sociais e da sociabilidade nas megalópoles contem-
porâneas” (DI FELICE, 2009, p. 158).

3. ... até chegar ao Arena Castelão

Pelas ruas do bairro chegamos ao estádio de futebol Arena Castelão, pra-


ticamente único local público propício ao lazer e à sociabilidade do bairro. A
grande maioria dos que habitam aquele espaço é de jovens por conta da pista
de skate, inclusive vindos de comunidades limítrofes. Neste primeiro momento,
começamos a identificar jovens usuários de dispositivos móveis no âmbito do
Castelão. Foi no seu ambiente onde pudemos dialogar com estes jovens.
E., 16 anos, foi o primeiro com quem conversamos. Estudante do ensino
médio, é morador do Conjunto São Cristóvão, próximo ao Boa Vista. Sempre
praticou atividades esportivas, mas decidiu permanecer no skate com o sonho
de chegar à profissionalização. Logo quando o conhecemos, E. nos disse que,
junto com seu amigo L., passaram a contar com o apoio de uma marca de rou-
pas do bairro. Para tanto, precisavam sempre publicar fotos ou vídeos no Face-
book como garotos propaganda da marca, seja na street7, em pistas de skate ou
em campeonatos. Durante a prática do skate é comum o uso do celular como
suporte musical, como fazem E. e R., 14 anos, o que possibilita a criação de um
outro ambiente em que permanecem enquanto duram as manobras. A música
constrói uma relação com o espaço por meio de uma narrativa musical.
E. comenta que, quando está praticando skate, não coloca o celular no bolso
traseiro da calça porque em “uma queda” pode quebrar. Por sua vez, também
tem problemas em deixar no bolso da frente porque o aparelho costuma es-
quentar, o que poderia prejudicar sua perna com o tempo. Esse receio deno-
ta a linha tênue entre o corpo e o uso das tecnologias, evidenciando que suas
fronteiras são resignificadas. Como cita Le Breton, “a fronteira desaparece ente
o sujeito e o objeto, o humano e a máquina, o vivente e o inerte, o natural e o
artificial, o biológico e o protético” (LE BRETON, 2012, p. 26).
Em entrevista concedida à pesquisa, E. foi muito enfático em afirmar que o
ambiente virtual possibilitado pelo celular não substituía o contato pessoal. Ele
preferia sair junto com os amigos e ficar “falando de boca a boca mesmo” do

7
Nomenclatura utilizada pelos usuários do skate para o espaço da prática na rua.

186
que passar o dia no telefone. Já ficou quase um ano sem celular e nem por isso
“morreu” porque não podia acessar whatsapp e Facebook. O único problema
era ficar por fora do que era conversado e combinado por meio das mensagens:

achava meio ruim [não ter celular] só um lado ruim porque tipo... eles estão
falando, chego lá no outro dia e eles estão falando duma coisa que “não, a
gente falou isso ontem e num sei que no celular e tal”... Só que sem celular
como é que eu vou saber? Fico totalmente boiando na conversa. Esse é o
lado ruim...

Perguntamos a E. se ele poderia nos apresentar ao seu grupo em algum mo-


mento e se eles se encontravam muito. Mesmo não garantindo se poderia dar
certo, no dia seguinte, marcou-nos em uma foto no Facebook onde estava a in-
formação de que haveria a inauguração de uma pista de skate perto do Castelão.
Ele também veio falar inbox reforçando o convite. No dia da inauguração fomos
apresentados a R. “Manson” (por referência ao cantor de rock Marilyn Manson),
J. L., M., J. V., G. e R. G.
Durante toda a manhã da inauguração da nova pista de skate vinculada ao
Centro Olímpico, ainda em construção no local, R. M. virou nosso companhei-
ro. Assim, pudemos perguntar o nome das manobras e, também, sobre sua vida
e o uso que fazia do celular. Naquele momento, observou, estava sem celular
porque havia sido roubado. Contudo, não lamentava de todo o roubo, pois con-
fessou que estava muito “viciado” em whatsapp e Facebook, e que, de certa ma-
neira, foi até bom para “desaviciar” (sic). Mas quando está com um, R. M. fica
“direto” utilizando o aparelho. Estando o tempo todo com o “celular na mão”,
fica “mexendo, ouvindo música”; faz vídeo, foto, grava vídeo, “modifica”.
Perguntado sobre como seria sua vida sem celular, afirma que seria “muito
difícil”, pois “não ia ter muitas coisas que eu tenho agora. Os meus amigos, a
maioria dos meus amigos foi tudo pelo face. Eu conheci tudo pelo face”. Ele as-
sume que é um “viciado pra carai (sic) no celular. Tudo é relacionado ao celular,
eu ando de skate ouvindo música, ando a pé ouvindo música, todo canto que eu
tô parado tô escutando música, jogando”.
Aos poucos fomos nos tornando amigos de Facebook de quase todos os que
conhecemos na pista no dia da inauguração. O site tornou-se uma importan-
te plataforma de pesquisa, em especial para acessar fotos e vídeos comparti-
lhados provenientes do celular. Como contextualiza Hine, “el estatus de la Red
como forma de comunicación, como objeto dentro de la vida de las personas y
como lugar de estabelecimiento de comunidades, pervive a través de los usos,

187
interpretados y reinterpretados, que se hacen de ella” (HINE, 2004, p.80). J., por
exemplo, pediu que tirássemos uma foto da turma e que, depois, marcássemos
todos. Assim foi feito e a foto virou capa de perfil do J. L. e do J. V..
Perguntado sobre por que se considerava um jovem, R., de 14 anos, não
teve dúvidas em listar como um dos atributos da juventude manusear o celular,
apesar de não ser indispensável para que alguém seja jovem. Segundo avalia:

Pra mim ser jovem é ser responsável. É não só curtir também e tal... É ter
responsabilidade. E andar sempre na moda, achar seu próprio estilo, ser
você. Ter o seu estilo, ser aquela pessoa que sempre anda na moda, que faz
as coisas no celular e tal, que está sempre por dentro das coisas, praticar es-
porte não muito louco e tal, ter muito amigo, sair muito. Pra mim ser jovem
é isso, cara, fazer tudo que dá na cabeça.

R. usa o seu celular para “ligar pra galera, pra conversar, ou pra chamar pra
sair, pra ir pros rolé, uso pra jogar, uso pra entrar no Facebook, no whatsapp,
twitter, instagram, essas coisas”. Quando se acidentou manobrando no skate na
street, ele pôs o vídeo em formato lento, mostrando de todas as formas o acon-
tecido. Seus amigos comentaram tanto rindo do que aconteceu como enviando
mensagens de força.
Percebemos que o skate está inserido de forma primordial na vida de todos
os adolescentes com quem conversamos. E., principalmente, costuma trafegar
pelos bairros com seu skate, convidando seus amigos tanto por whastapp, como
pelo Facebook, como indo à casa de cada um que mora no caminho. O celular
é usado como uma espécie de tática de encontro, tanto quando enviam mensa-
gens diretas para seus amigos, como quando marcam seus parceiros em mensa-
gens publicadas no Facebook – prática, aliás, compartilhada por todos os nossos
outros interlocutores.
E. sempre quando pode publica vídeos em seu Instagram e Facebook com o
passo a passo das manobras que tem realizado. São vários vídeos. Ele conta que
isso ajuda a mostrar a seus amigos e para todas as pessoas que quiserem ver cada
nova manobra aprendida. Outro dos adolescentes que também está produzindo
vídeos de manobras de skate é o R.. Ele, junto com um amigo, criaram o canal
no youtube “Flip na Canela”8. A ideia, segundo R., é ajudar a quem está ini-
ciando e também “ganhar um patrocínio”. Estas formas de utilização do celular
8
Expressão que une uma manobra de skate, o flip, e a parte do pé que normalmente é
lesionada durante a prática da atividade, canela. O canal está disponível no site http://
www.youtube.com/channel/UCYRptZRcCKCVyezVZMMoTmw.

188
revelam como o dispositivo promove o fortalecimento de laços e dá visibilidade
às práticas cotidianas desses jovens.
Aos poucos vamos percebendo a linguagem utilizada para o estabelecimen-
to da comunicação entre R. M., E., M. e R. G.. Enquanto conversamos presen-
cialmente, são muitas as onomatopeias. Algumas siglas também são utilizadas
com mais frequência nos bate-papos do whatsapp, Facebook Messenger ou mes-
mo no próprio Facebook. “tlg”9, “vdc”10, “gds”11, “vdd”12, “pvt” 13, são algumas
das expressões utilizadas em rede. Os emoticons também estão bastante presen-
tes como forma de evidenciar sentimentos. R. e sua namorada V. H., 13 anos,
trocam constantemente mensagens em rede através de emoticons. Os afetos são
demonstrados constantemente.
Uma questão que ressalta na conversa é o da violência urbana materializada
no roubo dos celulares, tanto que a sua utilização não se dá de forma usual nas
ruas da localidade. Isso se deve, em parte, pelo medo existente, entre os adoles-
centes pesquisados, de que sejam vítimas de assalto.
L., 14 anos, relata que foi assaltada e que, por isso, demorou para que seus
pais a presenteassem com um novo aparelho celular. R., 15 anos, também co-
mentou que passou por essa situação, o que o levou a não utilizar mais o seu
novo aparelho em caminhadas pelo bairro, restringindo seu uso praticamente
ao espaço privado ou em suas mediações. E. observou que para utilizar o apare-
lho celular ele leva o território em consideração, pois em alguns cantos por onde
passa, seja no seu bairro como em outros limítrofes, como já é reconhecido,
não corria o risco de assaltos. Assim, a percepção de território está fortemente
atrelada à utilização do dispositivo.

4. Conclusões

Cotidianamente, jovens de diversos lugares do mundo experimentam for-


mas de contato com outros jovens por meio das mais variadas tecnologias, den-
tre elas dispositivos híbridos móveis, que acabam sendo configurados também
9
Tô ligado.
10
Vai dar certo.
11
Giá deu serto = Já deu certo.
12
Verdade.
13
Pivete.

189
como uma extensão social corpórea. Extensão esta que delimita as relações
sociais exercidas por esses jovens, como nós pudemos observar em relação ao
grupo que acompanhamos no bairro Boa Vista.
O contato das juventudes com a cidade, com seu bairro, com seus territórios,
permanece em constante mutação. O Boa Vista se configura como espaço de
convívio e como foco de registros a serem reproduzidos em rede. É no bairro
que os jovens se dividem e se aproximam de acordo com eixos de atuação, com-
portamentos, proximidades de estilos e pensamentos, dentre outros elementos
identificadores que são também constituidores de alteridades.
Os corpos desses jovens, pensado individualmente, ou como corpo social,
permanecem em constante transformação, em especial no trato com a tecno-
logia. Como observa McLuhan, “como todos os meios são fragmentos de nós
mesmos projetados no domínio público, a ação que qualquer meio exerce so-
bre nós tende a aglutinar os demais sentidos numa nova relação” (MCLUHAN,
2009, p.299). Assim acontece com as juventudes: novos hábitos, costumes, ati-
tudes, atos que são construídos e reconstruídos nesta perspectiva tecnológica.
No entanto, essas formas de sociabilidades por meio de dispositivos híbri-
dos são apenas mais uma possibilidade pois, como observamos no caso do Boa
Vista, os habitantes dos locais tecem outras formas de encontros e relações. Ob-
serva-se uma espécie de convergência entre a vida em sociedade e a intimidade,
que poderia ser entendida como um “universo” de relações sociais (SENNET,
1988).
É interessante destacar, ainda, que o fator econômico não é essencialmen-
te delimitador do uso e acesso das juventudes pesquisadas, habitantes de um
bairro com IDHM baixo, aos dispositivos híbridos de comunicação. O celular é
entendido como um instrumento tecnológico de alcance possível, consolidan-
do-se como um fator de sociabilidade entre os jovens habitantes de periferias
urbanas. No entanto, não desconhecemos que muitos jovens têm dificuldades
de inserção nesse universo, seja devido ao não conhecimento de seu modus ope-
randi como também pela exclusão social existente, que limita o uso das tecnolo-
gias a quem detém algum poder sociocultural e econômico (CANCLINI, 2007).
O uso do celular por esses adolescentes evidencia que o contato que esta-
belecem presencialmente não se esgota nesta presença física. O contato é resig-
nificado e mesmo fortalecido por meio do celular e através da publicação nos
sites de redes sociais; pelas fotos e vídeos que constantemente registram, seja
na prática do skate, ou em outros momentos, como na escola, em casa, na rua,
quando estão em grupos, para demonstrar carinho e afeto por quem se relacio-
nam presencialmente. Há, portanto, uma constante busca pelo encontro.

190
Percebe-se que a possibilidade do uso do celular por adolescentes skatistas
se dá não como fator obrigatório de estabelecimento de encontro. O celular é
utilizado como ferramenta de fortalecimento de laços, seja pelo convite para a
prática do skate, seja pela possibilidade de divulgação de vídeos e fotografias
sobre essa prática, ou mesmo, pelo simples processo de compartilhamento de
imagens onde o foco é o encontro dos adolescentes, registrados por autorre-
tratos entre eles próprios, assim como outros usos. A sociabilidade entre esses
adolescentes poderia ser entendida como algo tecido a partir da troca de desejos
e propósitos em comum entre partes interessadas, existente essencialmente pela
não-obrigatoriedade de manutenção dessas relações. Ela se constitui, principal-
mente, na liberdade dos laços.

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193
Nós na rede. Pré-adolescentes e socialização digital

Cristina Ponte

Este capítulo incide sobre as experiências de socialização digital de meninos


e meninas de 11 e 12 anos, que estão a entrar na adolescência em condições que
diferem das vividas por gerações anteriores. Ainda não chegaram aos teens, mas
aí estão eles a negociar com os pais e os pares a sua presença nas redes e a usar
dispositivos digitais, cada vez mais móveis, convergentes e pessoais, na constru-
ção da sua identidade.
Antes de apresentarmos e discutirmos essas práticas no contexto português,
refletimos sobre a socialização familiar e a relevância da cultura de pares nesta
faixa etária, a partir de contributos da sociologia da infância e do consumo, bem
como de resultados empíricos de inquéritos europeus onde Portugal participou.

1. Consumos mediáticos, mediações familiares e dos pares

O consumo infanto-juvenil opera-se na convergência entre entretenimento e


publicidade, numa produção global própria e de elevada rotatividade, sendo um
dos mais prósperos segmentos de mercado. A procura de vendas leva à contínua
produção de novos bens, de novos espaços para os promover e consumir, de
novas identidades de consumo, com identificações e diferenciações (EKSTRÖM;
TUFTE, 2007; KENWAY; BULLEN, 2008).
A designação tweens popularizou-se a partir do início dos anos 2000 nos
países industrializados, associada a consumos dos pré-adolescentes. Os 9-12
anos são um alvo especial para indústrias do entretenimento, tecnologia e ves-
tuário. Estes são anos de transição escolar, a que correspondem mudanças nas
suas vidas e relações sociais; a gestão de algum dinheiro de bolso permite-lhes
alguma margem de escolha sobre o que consomem, da alimentação ao lazer. Os
especialistas de marketing identificaram também que nesta idade a insistência e
argumentação influenciam a compra de bens para o agregado familiar, incluin-
do nomeadamente a tecnologia.
Wyness (2004) associa a emergência da afirmação dos tweens às característi-
cas das famílias na modernidade avançada; fatores como atividade profissional

194
a tempo inteiro por parte dos pais, o aumento de divórcios, a redução do nú-
mero de filhos e a incerteza quanto ao seu futuro levam ao investimento na sua
educação e integração valorizando o capital cultural e o capital social para fa-
vorecer oportunidades. Nestas sociedades, as transformações na esfera familiar
orientam-se também para um regime de maior atenção às trocas entre os seus
membros. Há democratização das famílias, onde “crianças e pais estão mais ati-
vamente envolvidos na configuração das suas famílias” (BECK, 1998, p. 65). As
“famílias em rede” são também configuradas pela tecnologia, como assinalava
já a pesquisa do Pew Research Internet Project em 2008.
Neste ambiente de democratização da vida familiar, a literatura da área da
Psicologia do Desenvolvimento tem vindo a destacar nas últimas décadas a di-
ferença entre estilos de autoridade parental (BAUMRIND, 1971). Enquanto o
authoritanian parenting é baseado na autoridade inquestionável do adulto sobre
a criança ou adolescente, o authoritative parenting visa exercer uma disciplina e
regulação que encorajem a autonomia e responsabilidade, estabelecendo limites
mas permitindo à criança ou adolescente expressar opiniões e discutir opções.
Valkenburg, Piotrowski, Hermanns e de Leeuw (2013) pesquisaram como
adolescentes lidam com a mediação parental sobre os seus usos dos media a par-
tir de uma pesquisa quantitativa que incluía questões sobre estilos de autorida-
de. Os resultados realçam que tanto a mediação restritiva como a mediação ati-
va podem ser efetivas e positivas para aqueles, na condição de: a) contribuírem
para autonomia das escolhas dos adolescentes; b) recorrerem ao authoritative
style; e c) serem consistentes. Estes estilos parentais não começam a exercer-se
na adolescência, pelo que tem importância encontrar sinais de como surgem
antes e de como pré-adolescentes lhes vão respondendo.
O suporte emocional e social da família complementa-se na pré-adolescên-
cia com a crescente influência dos pares. Duas características da cultura de pares
identificadas na sociologia da infância importam também para a análise da so-
cialização ligada a práticas de consumo mediático, nesta idade.
Primeira, os pares não têm de partilhar um mesmo território ou de se co-
nhecer pessoalmente; reconhecem-se no modo de falar, de vestir, nas escolhas
ou preferências: “a noção da influência do grupo de pares reconhece o significa-
do da influência social de outros jovens e da cultura juvenil como um ponto de
referência central para as crianças e jovens nos anos da adolescência (JAMES;
JAMES, 2008, p. 95-96).
Segunda, os grupos de pares são importantes no processo de socialização,
uma vez que aí ocorrem aprendizagens importantes sobre a natureza e o signi-
ficado de normas sociais, que influenciam e autorregulam crianças e jovens no

195
sentido da uniformidade, da conformidade e da obediência (JAMES; JAMES,
idem, ib.). Os autores assinalam a importância destas culturas na amizade e iden-
tidade de género, assinalando a tendência das raparigas para a díade (elegerem
“a melhor amiga”) enquanto os rapazes têm uma rede de relações mais alargada.
Discutindo os media e a cultura de pares, Lim (2013) sistematiza três dimen-
sões dessa relação: 1) os media na cultura de pares face a face; 2) a cultura de
pares gerida pelo telemóvel; e 3) a cultura de pares na internet.
Sobre a primeira, Lim realça que os media e os seus conteúdos contribuem
para aprendizagens sociais, tanto na procura do que “está a dar” ou “é aceitável”,
como na demarcação do que “não é próprio”1. Para além das conversas sobre
conteúdos, o uso partilhado, como nos jogos multiplataforma, e a captação
e disseminação de momentos através dos dispositivos móveis, vão constituir
“memórias partilhadas que servem para fortalecer o sentido de identidade de
grupo” (LIM, 2013, p. 323).
Por sua vez, a cultura de pares mediada pelo telemóvel facilita a sua micro-
coordenação. Marcada pela mobilidade e flexibilidade das combinações, essa
condição tem associada a pressão para se estar sempre disponível para receber
e responder a mensagens. Esta cultura da comunicação móvel estimula também
a que os jovens se envolvam no espetáculo da narração do seu dia-a-dia como
modo de viver em grupo e de compartilhar com os outros. Por mínima que seja a
comunicação, serve para fortalecer os aspetos socio-emocionais da construção de
relações entre jovens, faz parte de um processo performativo onde os jovens as-
sinalam uma marca de amizade, cimentando assim laços sociais (MARTENSEN,
2007; LIM, 2013).
Por último, a cultura de pares através da internet ocorre numa multiplicida-
de de plataformas entre pessoas que partilham os mesmos interesses. A pesquisa
tem revelado que as interações na rede podem constituir oportunidades para
iniciar interações que não se ousa iniciar face a face, ou para explorar outras
identidades; também a comunicação assincrónica permite pensar melhor no
que se quer dizer e como se quer apresentar aos outros. Para além dos grupos de
pares assentes na proximidade física, há nas redes subculturas ligadas ao consu-
mo, em torno de celebridades, por exemplo, e subculturas marginais que tiram
partido do seu anonimato (TUFTE, 2007; LIM, 2013).
Apesar de os tweens investirem as suas energias num punhado de sites co-
merciais para públicos adultos (YouTube, Facebook, Google…) e de o poder das
1
Exemplos deste normativo decorrente da influência dos pares foram encontrados nas
pesquisas sobre media e sexualidade (BUCKINGHAM; BRAGG, 2004; BAKER, 2011)

196
grandes marcas suscitar um efeito homogeneizador, importa não perder de vista
que as oportunidades e os riscos vividos na rede dependem do contexto fami-
liar, socioeconómico, nacional e que isso confere heterogeneidade às culturas da
internet (LIVINGSTONE, 2013).
A internet é um suporte com caraterísticas e potencialidades singulares, sis-
tematizadas por Dannah Boyd (2014): persistência de conteúdos, visibilidade do
que lá se coloca por potenciais audiências para além das audiências imaginadas,
velocidade na partilha, facilidade de recuperação de conteúdos e da sua recontex-
tualização, gerando novos significados. É sem dúvida o meio de excelência para a
experimentação de “oportunidades arriscadas” (LIVINGSTONE, 2013), a que os
mais novos e utilizadores mais incipientes podem ser especialmente vulneráveis.
Os “públicos em rede”, expressão que boyd também cunhou e que tem larga-
mente explorado na sua pesquisa sobre as práticas online de adolescentes nor-
te-americanos nas últimas décadas, incentivam cuidados tanto na apresentação
do eu aos outros e no manejo das relações sociais virtuais, como na intervenção
das famílias para a promoção de ambientes de segurança que proporcionem
tirar partido das oportunidades.

2. 11-12 anos: a subida na escada de oportunidades

Resultados do inquérito EU Kids Online, realizado em 25 países europeus


em 2010, mostraram como aos 11-12 anos se sobe na “escada de oportunidades”
(LIVINGSTONE; HELSPER, 2008), ou seja, é o momento em que intensificam
e diversificam as atividades e apropriações da rede digital. Os internautas dei-
xam de estar sobretudo em relação com conteúdos disponíveis em massa na
internet, como são os vídeos, a pesquisa de informação para trabalhos escola-
res, os jogos para jogar sozinho ou contra o computador. Cresce nesta idade a
atenção à comunicação com colegas e amigos, nas redes sociais e nas mensagens
instantâneas, a descarga de conteúdos, a colocação de conteúdos próprios (fo-
tos, comentários) nas redes para serem vistos pelos outros, a participação em
jogos coletivos. Esta progressão mostra como os interesses e as motivações se
relacionam com oportunidades e com potenciais riscos causadores de dano: “na
relação com os riscos e com as oportunidades, a idade é muito mais crucial do
que o género ou o estatuto socioeconómico” (LIVINGSTONE, 2013, p. 116).
Neste inquérito de 2010, 40% dos internautas europeus de 11-12 anos rea-
lizava pelo menos uma atividade na internet que comportava riscos como vi-

197
sionamento de conteúdos pornográficos, agressão continuada de pares (cyber-
bullying), receber ou enviar mensagens com conteúdos sexuais (sexting), ou
encontros com pessoas conhecidas na rede; perto de um terço realizava um le-
que de oito ou mais atividades e tinha encontrado um ou mais riscos (dobrando
os valores da faixa etária dos 9-10 anos). Mais de metade (54%) tinha um perfil
numa rede social, e um em três elegia o Facebook como a sua principal rede.
Quatro anos depois, o inquérito Net Children Go Mobile (NCGM), reali-
zado em sete dos 25 países (Bélgica, Dinamarca, Irlanda, Itália, Portugal, Ro-
ménia e Reino Unido), revelou a intensificação da presença nas redes sociais e
a afirmação hegemónica do Facebook entre os 11-12 anos: 60% tinham perfil
em rede social e 53% tinham o seu perfil principal na rede Facebook, apesar da
interdição a menores de 13 anos. Esta subida relativamente aos resultados de
2010 foi contudo contrariada no Reino Unido, Irlanda e Itália, onde o uso de
redes sociais decresceu nesta idade (MASCHERONI; ÓLAFSSON, 2014).
Nestes sete países europeus os resultados são assim possíveis de serem compara-
dos com os obtidos quatro anos antes, o que permite a identificação de padrões de
continuidade e mudanças nas práticas de crianças e jovens que ocupam agora a faixa
etária inquirida, os 9-16 anos, como dá conta o relatório comparado sobre os dois
inquéritos (LIVINGSTONE; MASCHERONI; ÓLAFFSON; HADDON, 2014).
Por exemplo, na autoapreciação das suas competências com as dos seus pais,
registam-se poucas variações entre quem tinha 11-12 anos em 2010 e a mesma
idade, em 2014: apenas cerca de 30% considera verdadeiro que sabe mais sobre
a internet do que os seus pais. Já a diferença na entrada precoce nas redes sociais
coloca Portugal em destaque. Essa presença nas redes sociais irrompe aos 11-
12 anos: 80% dos internautas portugueses dessas idades reportam que têm um
perfil numa rede social, mais do que triplicando o valor dos 9-10 anos, que é de
26%; dos que reportam ter perfil, 98% refere a rede Facebook.
A entrada vertiginosa no Facebook merece contextualização tanto no am-
biente digital em Portugal, como na atenção às mediações familiares e à cultura
de pares. É isso que apresentaremos nas páginas seguintes.

3. Contexto português, questões e metodologia

O uso da internet por mais de metade da população portuguesa verificou-se


em 2009. Portugal não viveu plenamente a era dos computadores PC de mesa,
estrategicamente colocados nos espaços comuns da casa, onde os mais novos
davam os primeiros passos na internet sob o olhar de adultos. A entrada mas-

198
siva no digital deu-se por via dos computadores portáteis (laptops), cuja aqui-
sição por estudantes foi incentivada por políticas públicas como os programas
E-Escolas e E-Escolinhas, lançados em 2007-2008. Em 2010, no inquérito EU
Kids Online, o país liderava na posse de portáteis individuais por internautas
de 9 a 16 anos (66%) para ir à internet, enquanto a média europeia apontava o
computador fixo partilhado como o valor mais elevado (58%). Nesse ano, 60%
dos pais portugueses usavam a internet, mas apenas cerca de um terço declarava
usar esse meio com frequência diária ou quase todos os dias (PONTE, 2012).
O portátil, pessoal ou partilhado, parece ter vindo para ficar. Em 2014, 60%
dos internautas de 9 a 16 anos continuam a referi-lo como o meio que mais
usam diariamente para aceder à internet, o segundo valor mais elevado entre os
sete países, a seguir à Dinamarca (SIMÕES; PONTE; FERREIRA; DORETTO;
AZEVEDO, 2014).
Estatísticas sobre o uso da internet na população portuguesa mostram uma
clivagem a partir dos 55 anos: 58% entre os 45-54 anos; 31% entre os 55-64 anos;
12% entre os mais de 65 anos (OBERCOM, 2014). A percentagem dos proge-
nitores que usavam a internet subiu dos 60%, em 2010, para 68%, em 2014,
continuando a fazer-se notar diferenças de género: 81% dos pais, 66% das mães.
Na Europa, Portugal está na linha da frente no uso das redes sociais: 70%
dos internautas portugueses com mais de 15 anos usam-nas, para uma média
de 57% entre os 28 países da União Europeia2. Destes utilizadores das redes,
98% tem um perfil no Facebook; o envio de mensagens é a sua atividade mais
frequente (85%); marcar Gosto nas páginas de outros, usar o chat e comentar
publicações são usos de mais de dois terços. Criar álbuns fotográficos e assinalar
aniversários de amigos são práticas de mais de metade.
É neste contexto de uma penetração tardia do uso da internet, que se mas-
sificou por via de meios portáteis, e de adesão a uma cultura de “redes de ami-
zade” como o Facebook que discutimos práticas de internautas portugueses de
11-12 anos: Como entraram e estão no Facebook? O que fazem? Como gerem
relacionamentos, tensões, riscos?
Para responder, combinamos resultados do inquérito Net Children Go Mo-
bile (globais e dos 11-12 anos) com a pesquisa qualitativa deste projeto interna-
cional. Resultados dessa pesquisa qualitativa, que ouviu crianças e jovens utili-
zadores de meios móveis para aceder à internet (smartphones e tablets) entre
os nove e os 16 anos, bem como pais, professores e profissionais que trabalham
com jovens, estão condensados em relatório (HADDON; VICENT, 2014).
2
Vide jornal Público (06/11/2014). Portugueses usam mais as redes sociais do que a
média europeia. http://www.publico.pt/tecnologia/noticia/portugal-acima-da-media-
-da-ue-no-acesso-a-redes-sociais-online-1675356

199
Para este texto, incidimos sobre internautas dos 11-12 anos. Em Portugal,
realizaram-se dois grupos de foco, um por cada sexo, em escolas públicas, e três
entrevistas individuais, em casa dos entrevistados3, sem a presença de outros
adultos, num total de dez pré-adolescentes. Todos vivem na área metropolitana
de Lisboa e as suas famílias são de estatuto socioeconómico médio e superior
(pais e mães com ensino secundário ou superior, pequenos empresários e pro-
fissionais diferenciados: professores, engenheiros, investigadores, economis-
tas…). Não ignorando a não representatividade desta amostra, acentuada ainda
pela sua relativa homogeneidade socioeconómica, os testemunhos destes dez
internautas iluminam e acrescentam sentidos aos números apresentados.

4. Nós na rede: relações familiares e com pares

A mediação familiar na entrada e no estar na rede

Os resultados portugueses do inquérito Net Children Go Mobile mostram


que perto de três quartos dos jovens internautas referem que os seus progenito-
res conversam com eles sobre o que fazem na internet, uma das poucas respostas
que não varia com a idade. Este valor está acima da média dos sete países, que
se fica pelos 66%. Mães e pais são a principal entidade a quem procuram ajuda
quando sentem algum incómodo online, tanto nos mais novos (9-12) como nos
mais velhos (13-16). Neste grupo etário dos mais velhos, diferenciam-se dos
resultados europeus que destacam o recurso a amigos, em segundo lugar.
Tem destaque a referência à mãe, a pessoa a quem os jovens internautas
portugueses e nos outros seis países mais se dirigem em caso de sentirem incó-
modo, mas com grande diferença percentual: 68% em Portugal; 48% na média
europeia. Entre os mais novos, destacam-se diferenças de género: 76% dos me-
ninos referem a mãe, para 93% das meninas.
A proibição de fornecer informação pessoal a terceiros é referida por mais
de três quartos do grupo dos internautas portugueses de 9-12 anos, refletindo o
medo de contactos com estranhos, uma narrativa com forte circulação pública.
3
Grupos de foco e entrevistas conduzidos por Juliana Doretto, jornalista brasileira a
realizar o seu doutoramento em Estudos dos Media e do Jornalismo na FCSH, Universi-
dade Nova de Lisboa e membro da equipa portuguesa do projeto Net Children Go Mobile.
Todos os nomes dos pré-adolescentes são pseudónimos.

200
A monitorização do histórico da internet pelos pais, questão que não surgiu no
inquérito de 2014, foi apontada por mais de metade dos meninos dessa idade, em
2010, um valor superior ao expresso pelas meninas (pouco mais de um terço).
Os testemunhos dos dez internautas portugueses de 11-12 anos ilustram es-
sas tendências e acrescentam informação sobre o modo como lidam com essa
mediação.

5. Estar ou não estar na rede onde estão todos

Entre os dez inquiridos, apenas Isabel não tem perfil no Facebook, pelo re-
ceio por parte dos pais de que os conteúdos que a filha introduzir possam ser
abusivamente usados por outros. Isabel incorporou esses argumentos, que in-
troduz na discussão animada com as colegas:

Maria (11): É ótimo, maravilhoso, poder fazer tudo, até criar perfis para
animais de estimação; poder falar com quem está longe (amigos, família) e
com quem está perto.
Carla (11): Agora o que está a dar é o Facebook.
Isabel (11): Mas também pode ser mau. Às vezes podemos ter um amigo no
Facebook que é nosso amigo só para nos insultar. Manda-nos mensagens
para o Facebook só para nos insultar.
(…)
Isabel (11) - Por exemplo, o Facebook tem uma coisa má porque quando se
publica uma coisa no perfil, muitas vezes, às vezes não se consegue tirar.
Eu não percebi bem, mas foi os meus pais que contaram, que apareceu um
miúdo no telejornal…

Isabel utiliza, contudo, esta rede social: vê e ajuda a melhor amiga a usar o
Facebook, e conversa com os seus amigos aí. Acredita que a oportunidade para
remover a interdição dos pais está a chegar, com a mudança de residência da
amiga a servir de justificativa para a manutenção dos laços através dessa rede:

Isabel (11) - A minha amiga vai no final deste ano para fora do país e eu
pedi à minha mãe para criar Facebook, depois nessa altura vou poder con-
versar com ela. A minha mãe vai deixar, se calhar.

201
Os restantes internautas tinham perfil há cerca de dois, três anos, conse-
guindo autorização parental pela insistência no argumento de que os amigos
já lá estavam. A supervisão parental vai de uma (aparente) ausência de acom-
panhamento depois de um consentimento resultante da insistência, no caso do
Vasco, a variações na mediação restritiva que sugerem um estilo authoritative,
com regras interiorizadas, sugerido nas palavras do António, da Maria, da Rosa
e do Bernardo.

Vasco (11) - Tenho Facebook há três anos. Porque os meus amigos tinham
e porque eu também quis ter. Os meus pais não queriam, diziam que não,
não, não, não tinha idade, que não devia ter isso, mas depois deixaram.
- E eles ensinaram como funcionava?
- Não. Disseram só que eu podia ter… E fui eu que o criei.
António (11) - A minha mãe sabe que vou a muito poucos sites. Vou ao
brincar.pt, Clubepinguim, Youtube, Facebook… A minha mãe vai ao his-
tórico.

Maria (11) - Eu criei o Facebook há algum tempo. Foi o meu pai que o criou
e foi a partir daí que o usei. É assim, os meus pais agora dão-me mais liber-
dade para usar o Face do que davam antes. Antes eles iam lá todos os dias,
agora vão menos, agora quase nem vão. Mas eu sempre aceito os pedidos
de amizade só com eles.

Rosa (12) - A regra da minha mãe é que só posso ir ao Facebook ou à inter-


net três vezes por semana… E às sextas-feiras. Sim, três vezes por semana,
por aí uns quinze minutos, só p’ra ver, mais ou menos, e pronto. Mas às sex-
tas-feiras posso ficar mais tempo, como já não tenho aulas no dia a seguir, e
pronto… pra descontrair um bocadinho...

Bernardo (11) - Eu passava o dia todo no Facebook, quando eu chegava


a casa até ir dormir, ficava sempre no Facebook e a minha mãe zangou-se
comigo, eu continuei, e agora tá chateada comigo… [Foi] há um mês atrás.
Ela mudou a passe, eu não sei a passe. Eu consigo descobrir a passe mas eu
não quero fazer isso… Porque se a minha mãe descobre fica mais chateada.
- Você prefere ficar mesmo…
- Sem, até que ela resolva isso…

202
6. Gerindo o perfil e os pedidos de amizade

A exigência da “verdade e transparência” na identificação do perfil no Fa-


cebook, imposta pela própria rede social, leva a que preocupações sobre a pro-
teção da identidade nas salas de conversação tenham sido substituídas pela ex-
posição aberta nesta rede. Em 2014, no grupo dos internautas portugueses de
9-12 anos, cerca de três em quatro tinham no perfil uma foto que claramente
mostrava a sua cara, nome completo e… uma idade que não era a sua. A escola
que frequentavam era identificada por 39% dos rapazes e 47% das raparigas.
Estes valores estão em linha com os encontrados nos outros seis países.
Metade dos internautas portugueses de 11-12 anos indicava ter até 50 con-
tactos: 21% indicava ter até 10 contactos e 29% ter entre 10 e 50 contactos. Cerca
de um terço tinha mais de 100 contactos. Destacam-se preocupações com a
adição de novos contactos: cerca de metade (52%) destes internautas reporta
só adicionar contactos de “pessoas que conhece bem”, 34% “aceita se conhece”,
13% aceita se tiver “amigos em comum” e apenas 2% aceitam todos os pedidos.
Os cuidados a ter na aceitação de contactos distinguem assim nós mais aper-
tados e mais frouxos dessas ligações.

Vasco (11) - Só aceito pessoas que já conheça, que já vi ou que já falei.


Se tiver amigo em comum às vezes aceita?
Paulo (12) - Mais ou menos. Se for um só é raro, mas se for 50 amigos em
comum... depois vou ver as fotos, se tão fotografias com amigos que eu co-
nheço. Mas não costumo aceitar logo.
- E conversa com eles depois?
- Amigos do Facebook a maior parte nunca se fala. [Risos]

Também nesta idade, um em cada quatro utilizadores portugueses de redes


sociais indica que o seu perfil é público, 61% tem o perfil definido como privado
e 14% define-o como parcialmente privado. A definição do perfil como privado
ultrapassa em muito a média dos sete países para esta faixa etária, que é de 47%.
Estes valores sugerem a interiorização de normas de segurança no uso da
rede, condicentes com a preocupação social de evitar que na internet se contacte
com desconhecidos e algum cuidado no manejo das relações em rede.
Como vemos nos testemunhos há quem, como a Carla, antecipe as audiên-
cias para diferentes conteúdos que coloca na rede e maneje as definições de
perfil em consequência, considerando que desse modo a rede lhe proporciona
segurança.

203
Carla (11) - Nós podemos pôr nas definições de privacidade quem é que
queremos que veja. Podemos pôr amigos, amigos de amigos, amigos che-
gados... Apenas eu, público, e isso tudo! Por isso eu acho que o Facebook é
mega seguro...

Também os cuidados na identificação de audiências consoante os conteúdos


(conversas, textos pessoais, fotografias…) distinguem nós mais apertados ou
mais frouxos dessas ligações.

Maria (11) - Não ponho amigos de amigos, ponho só amigos.


Carla (11) - Ou então apenas eu, quando quero publicar coisas.

Mas ninguém mostra o Facebook por exemplo para os amigos?


António (11) - Não, ninguém.
Bernardo (11) - Ah, fotos sim, mas conversas não.
César (11) - Conversas não.
E porquê as fotos sim e a conversa não?
Bernardo (11) - Porque a conversa é privada e as fotos não.

7. Estar em rede: falar, ver, combinar, partilhar

Nos 11-12 anos, 47% dos que possuem telemóvel ou smartphone tem acesso
a wifi grátis, 8% dispõe de pacote de internet móvel e apenas 5% acumula pacote
de internet móvel e wifi grátis. Os custos com a comunicação, quando a sua ges-
tão envolve a própria criança, levam à atenção sobre economia de meios.

Paulo (12) - Se eu tiver internet no centro comercial grátis, mando pelo


Facebook, para não gastar dinheiro. Se não tiver internet, mando uma men-
sagem por telemóvel porque mandar uma mensagem é muito mais barato
do que ativar o 3G, depois ir ao Facebook, depois ir ao chat e depois mandar
a mensagem.

Na rede social “onde estão todos” pode-se estar de diferentes modos. As


meninas tendem a ser mais comunicativas, apresentando-se e expondo-se mais,
enquanto os meninos preferem tirar partido de recursos em torno dos interesses
(jogos, música, cinema…), uma tendência transnacional (TUFTE, 2007). Entre
os 9-12 anos, as maiores diferenças percentuais (embora alguns valores sejam

204
baixos em ambos os sexos) cobrem outras práticas digitais: mais meninos refe-
rem jogos, destrezas técnicas (descarregar músicas, filmes, aplicações gratuitas)
e usar salas de conversação; mais meninas referem pesquisar informação para
satisfazer curiosidade, usar a internet para trabalho escolar, publicar em sites e
blogues, usar câmara, consultar mapas. O Facebook é a plataforma onde estes
usos se combinam e integram, para os internautas que ouvimos.

Daniel (11) - No Facebook mete-se a conversa a em dia…

Vasco (11) - Quando chego a casa, fico a ver coisas na internet, no IMDb,
no Facebook… vejo o que os outros lá põem. Não ponho lá muito. Humm…
prefiro ver as coisas dos outros do que pôr as minhas coisas. Tem coisas
interessantes, pode-se ver notícias, saber coisas da escola, também dá para
falar…

Rosa (12) - Eu costumo falar bastante com amigos, também partilho várias
coisas, como tou no YouTube, tou no Facebook ao mesmo tempo… Por
exemplo, como eu gosto muito do Tim Burton, então eu costumo tar na
página e a partilhar fotos e coisas que têm a ver com os filmes…

Além do prazer da comunicação mediada, referida pela Maria, a tecnologia


pode ajudar a gerir constrangimentos de tempo, local e espaço:

Maria (11) - M: O meu primo tem o Skype e eu também. Às vezes estamos


no mesmo sítio e estamos a falar pelo Skype, nós gostamos de fazer essas
coisas.

Bernardo (11) - Por exemplo, nós na aula não podemos conversar e depois
toca e eu tenho de ir-me embora porque quando toca a minha mãe já tá à
minha espera. E eu tenho de falar e não posso… por exemplo uma piada…
não mete piada dizer no outro dia a piada, piada é dizer a piada na internet.

Paulo (12) - Os trabalhos da escola nós temos de ficar um tempo juntos


fazendo isso, e como não temos esse tempo nós utilizamos por exemplo o
Skype ou então só o Facebook. É. Não precisamos sempre combinar onde
tem que ser ou então até que horas. É mais fácil. É pelo computador.

205
8. Gerindo e diferenciando a comunicação

Uma das grandes preocupações dos pais portugueses é o uso excessivo da


internet por parte dos seus filhos. Contudo, entre os inquiridos com 11-12 anos,
apenas 6% referiu uma ou mais formas de uso excessivo: ficar sem comer ou
dormir por causa da internet; sentir-se aborrecido por não poder estar na inter-
net; dar por si a navegar quando não estava realmente interessado; passar menos
tempo do que devia com a família, amigos ou a fazer os trabalhos da escola;
tentar passar menos tempo na internet, sem o conseguir.
Nesta faixa etária, os valores relativos a uso excessivo alteram-se substancial-
mente no que se refere ao uso de telemóveis: 67% dos que têm estes aparelhos
refere um ou mais dos seguintes indicadores: ficar aborrecido quando não o pode
usar por estar sem bateria ou sem rede; dar por si a fazer coisas no aparelho sem
estar realmente interessado nelas; sentir grande necessidade de verificar o tele-
móvel para ver se alguma coisa aconteceu; dar por si a usar o telemóvel em luga-
res ou situações em que não era apropriado; tentar passar menos tempo a usar o
telemóvel. Esse valor supera mesmo o da faixa etária dos 15-16 anos (64%). Ou
seja, é o meio de acesso móvel à comunicação com os familiares e sobretudo com
os pares, em qualquer momento e em qualquer lugar, que mais gera a perceção de
uso excessivo, nesta idade (“o telemóvel está sempre comigo, no bolso”, diz Rosa).
A importância da comunicação presencial é reconhecida pela maioria dos
internautas portugueses, em linha com a média europeia. Dois terços dos in-
ternautas portugueses de 11-12 anos discordam com as afirmações de que “fala
mais sobre várias coisas na internet do que fala face a face” ou de que “é mais fácil
ser eu mesmo na internet do que quando estou face a face com os outros”. Os
testemunhos que ouvimos cobrem outras dimensões da comunicação face a face
com amigos: Isabel e Carla explicaram à entrevistadora como essa comunicação
pode ser afetada pelo uso excessivo do telemóvel; Paulo partilhou como pensa
que a comunicação face a face pode restabelecer o equilíbrio da relação de ami-
zade, afetada por lapsos digitais.

Isabel (11) - O problema é quereres conversar com a tua amiga e estares


muito viciada sempre a falar ao telemóvel ou sempre a mandar mensagens.
Isso também é um bocado chato.

Carla (11) - Por exemplo, eu às vezes estou à espera da Maria e estou a con-
versar com as outras pessoas, enquanto estou à espera dela. Mas se eu lhe

206
enviasse logo uma mensagem, eu não tava a falar com outras pessoas, não
tava a conhecê-las melhor.

Já recebeu mensagens agressivas, desagradáveis, mesmo de amigos?


Paulo (12) - Possivelmente. Mas não são coisas que eu ligo muito. Depois falo
sem ser pelo Facebook com essa pessoa, e depois pedimos desculpa, e etc.
Quando escreve pode ser que a pessoa interprete...
- De outra maneira. Se ela mentir ao vivo nós conseguimos perceber mais
ou menos se ela tá a mentir ou não.

Encontramos também nestes testemunhos a atenção a normas sociais rela-


tivas a conteúdos sexuais “impróprios para a idade”, outra das maiores preocu-
pações dos pais portugueses.
Resultados do inquérito de 2014 mostram que 21% dos internautas portu-
gueses de 11-12 anos reportam ter visto imagens sexuais (na internet e fora dela)
no último ano e que 6% ficaram muito incomodados com o que viram, o valor
mais elevado de incómodo expresso por idades. Com 9%, as redes sociais são o
segundo lugar onde essas imagens são mais encontradas, a seguir a filmes e tele-
visão (16%).
Entre os internautas que escutámos, o incómodo com conteúdos de cariz
sexual traduz-se pela sua não verbalização, como na entrevista do Paulo, ou
pela censura coletiva ao comportamento de um colega da escola e reafirmação
da norma de que não se devem ver imagens “impróprias”, embora se saiba onde
podem ser vistas, no grupo de foco.

Paulo (12) - Também não vou ver coisas que não são muito do meu interes-
se, por isso... Não gosto muito de... ahh... ahh… as coisas que eles falam, por
exemplo... há algumas que não são do meu interesse...

E porque é que ele [colega que diz que imprimiu imagens com conteúdos se-
xuais e que as tem escondidas, debaixo do colchão] não mostra, vocês sabem?
António (11) - Porque é cá na escola.
Bernardo (11) - Vergonha.
César (11) - Devem ter vergonha.
Bernardo - E porque não é um assunto muito próprio para nós, para a nossa
idade. Nós devíamos estar a estudar e não a pensar isso. Mas eu não tenho
nada a ver com isso… se ele quer ver ele que veja, mas não me ponha nessas
coisas. É só escrever no Google Red Tube e estão lá bués…

207
As palavras do Bernardo, do António e do César traduzem a tensão entre o
poder e o dever que experimentam na rede, a pressão e a partilha da norma no
grupo de pares. A linguagem deste e dos outros excertos que aqui apresentámos
mostra como estes internautas de 11, 12 anos se sentem envolvidos no ambiente
digital, como expressam como esse ambiente lhes permite expressar poder (eu
posso, nós podemos…). O poder de decidir quem vê o quê do que se publica, o
que se vê e o que não se vê por não se querer ver, o poder de aceitar ou não con-
tactos, o poder de tornar público e o poder de escrever apenas só para si num
ambiente em rede.

9. Síntese e aberturas

A forte presença de internautas portugueses de 11-12 anos em redes sociais


e uso de telemóveis levou-nos a analisar esta faixa etária à luz de literatura sobre
estilos de mediação parental e cultura de pares, que têm incidido sobre ado-
lescentes e a procurar outros indicadores digitais do contexto nacional. Como
a análise dos resultados estatísticos e dos testemunhos revela, encontramos
marcas de um país digital que se destaca na paisagem europeia entre um fosso
geracional por volta da meia-idade, por um lado, e uma intensa participação
dos seus internautas de todas as idades em redes sociais (leia-se Facebook), por
outro.
Se as estatísticas ajudam a traçar o perfil do utilizador, a pesquisa qualitativa
ajuda a desvendar processos e motivações por detrás dos números. Ainda que
em pequeno número e de meio social relativamente privilegiado, as vozes de
internautas de 11-12 anos sugerem dinâmicas diferentes de mediação familiar,
com tónica para acompanhamento e regulação parental. Nas famílias, a mãe
intervém como reguladora mais do que o pai; os testemunhos destes internautas
sugerem que, onde existem, as regras foram entendidas e que há da sua parte
desejo de corresponder à confiança parental ou de a recuperarem.
A atenção a modos de mediação familiar no contexto dos usos dos media ga-
nha em auscultar, separadamente, pais e filhos, o que não aconteceu neste traba-
lho. Precisa de ter em consideração famílias de vários meios sociais (e não apenas
famílias de classe média), incluindo também diferentes composições familiares
(famílias nucleares, recompostas, monoparentais) e diversidade cultural.
Para além da comparação longitudinal resultante de inquéritos representati-
vos realizados com intervalo temporal, assinalamos o potencial da combinação
metodológica, integrando os resultados quantitativos e qualitativos. Estes últi-

208
mos fornecem sentidos e indicam processos por detrás dos números: o ouvir
crianças e adolescentes nas suas próprias palavras sobre um tema do seu interes-
se constitui não só um direito mas também uma oportunidade para refletirem,
pela verbalização de uma experiência e da avaliação dos seus impactos que são
incitadas a fazer. As palavras do Paulo, sobre a fragilidade dos laços de “amiza-
de” na rede Facebook, ou da Carla, sobre o valor da fala presencial como forma
de conhecimento do outro, são apenas dois exemplos dessa oportunidade.

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210
Eixo 7.
Educação para a mídia voltada para
crianças e/ou jovens
Rádio educativo - percepções a partir dos
estudantes do Programa Mais Educação

Edgard Patrício

1. O Programa Mais Educação e a rádio escolar

1.1 A proposta
O Programa Mais Educação1, ação do governo federal do Brasil, desenvol-
vida pelo Ministério da Educação (MEC), pretende desenvolver uma política
pública de educação integral para as escolas brasileiras. Implantada em 2007,
a proposta de educação integral do Programa Mais Educação situa-se na tra-
jetória de vários projetos semelhantes presentes em momentos da história do
país. Criados pelos mais diversos educadores, esses projetos, embora pontuais
e esporádicos, tentaram, a sua maneira, lidar com os desafios do acesso, perma-
nência e aprendizado no contexto da educação do país.
Numa visão crítica do Mais Educação, esses programas buscaram a am-
pliação do tempo da jornada escolar, mas muitos não questionaram sobre a
fragmentação do conhecimento e dos processos educativos e como isso pode
interferir na permanência das crianças e dos jovens na escola. Uma educação
não somente de tempo integral, mas de proposta integrada e de ampliação de
espaços da educação é o desafio a ser vencido pelo Programa Mais Educação.
O Brasil caminhou, nas últimas décadas, para o acesso universal de crian-
ças, adolescentes e jovens ao ensino fundamental. Mas as matrículas nesse
nível de ensino superam a população residente. Esse dado revela que ainda
há um represamento de crianças e adolescentes de faixa etária própria do

1
Essa parte do artigo foi extraído da ‘Apresentação do Caderno’, relativa ao Caderno
Pedagógico nº 9, da série Cadernos Pedagógicos do Programa Mais Educação, relativo
ao macrocampo ‘Comunicação e Uso de Mídias’, organizada por Jaqueline Moll. O autor
teve acesso a esse material, em versão digital, no ano de 2012, embora não conste o ano
de sua publicação.

212
ensino médio (15 a 17 anos) no ensino fundamental. Em 20112, para uma
população residente de 29.264.015 na faixa etária de 6 a 14 anos, própria do
ensino fundamental, foram efetivadas 30.358.640 matrículas. Em relação ao
ensino médio, nem mesmo o acesso foi garantido. Em 20113, para uma po-
pulação residente na faixa etária de 15 a 17 anos (própria do ensino médio)
de 10.580.060 adolescentes, as matrículas alcançaram apenas 8.400.689 dessa
população. Em relação a dados qualitativos, em 20134, apenas 89,3% dos
matriculados no ensino fundamental lograram aprovação. No ensino médio,
o dado é ainda mais preocupante. Apenas 80,1% dos matriculados foram
aprovados. Resultados que aumentam a distorção idade-série nos dois níveis
de ensino, o que pressupõe maiores evasões escolares. Qual a qualidade da es-
cola pública oferecida a nossas crianças, adolescentes e jovens? Ela consegue
responder aos anseios desses segmentos da população? E como estrutura ‘sua
resposta’ a esse chamamento?
As estatísticas, explicitadas aqui, apontam para um distanciamento do papel
que a instituição escolar representa, de fato, na vida de seus estudantes. Um
grande desafio é justamente retomar o sentido que a escola tem para a vida e
o sucesso pessoal de cada estudante. Sucesso no sentido de preenchimento das
necessidades existenciais, culturais, acadêmicas, sociais e profissionais de cada
um. Tornar-se necessária e desejada por todos – e exercer seu papel emancipa-
tório central – exige da educação uma integralidade de proposta e uma capilari-
dade na realidade social e particular de cada estudante.
Daí a aposta do governo federal no Programa Mais Educação. A educação
integral, na definição do Programa Mais Educação, propõe a formação mais
completa possível do ser humano, considerando as particularidades das ques-
tões sociais do Brasil e alimentando-se de parcerias entre os ministérios e outras
instâncias do Governo Federal. Abarca, dentre suas preocupações, requisitos
que, de forma geral, não são contemplados em uma visão tradicional conteu-
dista da educação e do espaço escolar, tais como o desenvolvimento de habili-
dades específicas, o diálogo entre os conhecimentos escolares e comunitários, a
proteção e a garantia básica dos direitos de crianças, adolescentes e jovens e a
preocupação com os temas da saúde pública.
2
Ministério da Educação. Censo da educação básica: 2012 – resumo técnico. – Brasília:
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2013, p. 20.
3
Ministério da Educação. Censo da educação básica: 2012 – resumo técnico. – Brasília
: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2013, p. 24.
4
Ministério da Educação - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Aní-
sio Teixeira – Taxa de Rendimento, Brasil – 2013.

213
Para isso, o Programa Mais Educação parte do princípio que as atividades
curriculares e extracurriculares são partes de um único processo com um objetivo
comum: a formação plena do educando, derrubando, assim, os limites e os vícios
de um turno e contraturno escolares, ou seja, o Programa Mais Educação propõe
repensar a estrutura seriada e compartimentada da escola. As atividades propos-
tas nos cadernos do Mais Educação, segundo seu conteúdo, devem dialogar com
as disciplinas acadêmicas e os conhecimentos juvenis e comunitários, para que o
sentido de “integralidade” seja, realmente, exercido. Trata-se da discussão de uma
nova ordem curricular na escola, um debate antigo na sociedade brasileira.
A partir do estabelecimento desses princípios, o Mais Educação defende
que somente a integralidade de tempo não garante que a escola faça sentido
àqueles para os quais ela foi criada: seus estudantes. E vários são os fatores que
induzem a essa afirmação. A obsolescência de conteúdos, desconectados com a
realidade do jovem, torna-se um empecilho à permanência do mesmo na sala
de aula. Para acompanhar as demandas sociais de cada estudante, o Programa
Mais Educação propôs também o rompimento com o enclaustramento criado
pelo espaço escolar, ou seja, “derrubar os muros da escola”, pelo menos na esfera
do conhecimento.
É por isso que o Programa Mais Educação aposta no conceito da
territorialidade. A territorialização da escola – ampliando seus espaços físicos,
para além de seus muros e de suas salas de aula, e abarcando saberes, para além
de seus livros, tornaria a proposta da educação potencialmente conectada com
demandas reais e cotidianas do público ao qual a escola serve. A escola passaria,
assim, a ser parte da comunidade na qual está inserida, de forma a ser respeitada
e considerada por seus membros, não mais um organismo meramente burocrá-
tico que, quase que por acaso, faz parte daquela paisagem.

1.2 A oferta
A oferta de atividades do Programa Mais Educação é dividida em ‘macro-
campos’. Um dos macrocampos é o ‘Comunicação e Uso de Mídias’. Nesse ma-
crocampo são oferecidas às escolas públicas atividades relacionadas ao jornal
escolar, rádio escolar, história em quadrinhos, fotografia e vídeo. Em 2010,
foram atendidas 9.995 escolas, alcançando três milhões de estudantes. Dessas,
3.911 optaram pelo macrocampo Comunicação e Uso de Mídias. Nesse uni-
verso, 2.218 escolas fizeram opção pela rádio escolar. Destaque para o estado
do Ceará. De suas 333 escolas integradas ao Mais Educação até 2010 e que tra-
balham com o macrocampo Comunicação e Uso de Mídias, 246 optaram pela
rádio escolar.

214
O Ceará só perde para o Rio de Janeiro na opção por rádio escolar. No Rio,
375 escolas fizeram essa opção. Há que se levar em consideração que o número
de escolas do Rio de Janeiro integradas ao Mais Educação até 2010, no macro-
campo Comunicação e Uso de Mídias (658), é praticamente o dobro do número
de escolas do Ceará (333).
No Ceará, as 246 escolas que optaram pela rádio escolar até 2010 con-
gregam 34.480 estudantes. São 71 escolas estaduais e 175 municipais. Dados
incluindo a adesão realizada pelas escolas em 2011 apontaram Fortaleza, ca-
pital do estado, com 108 escolas optantes pelas rádios escolares, sendo 61
da rede pública municipal e 47 da rede pública estadual, com a participação
de mais de 15 mil estudantes. Dados atualizados em 2012, fornecidos pela
Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza, contabilizam 48 escolas, da
rede pública municipal, com opção pela rádio escolar e 28.957 estudantes
alcançados. O dado mais recente sobre a opção rádio escolar pelas escolas dá
conta de que 210.045 estudantes fizeram opção pela rádio escolar em todo o
Brasil, em 20125.
O Caderno Pedagógico 9 (2012), que trata do macrocampo Comunicação e
Uso de Mídias pelo Programa Mais Educação, partem de Umberto Eco (1991)
para justificar a importância da discussão sobre o campo dentro da proposta de
educação integral do MEC. O texto afirma (2012, p. 8) que Eco chegou a deno-
minar a época que vivemos como ‘Idade Mídia’, pois, “ao contrário das sombras
da Idade Média, quando o conhecimento ficou restrito à vida monástica, nossa
época tem tanta informação que o ‘excesso de luz’ pode também nos deixar lon-
ge da compreensão de tudo que chega até nós”. Mas a perspectiva de Eco aponta
a possibilidade de termos uma ação ativa sobre o que é comunicado.
O Caderno (2012, p. 9) torna explícita sua inspiração em Paulo Freire ao
falar da aproximação entre as duas áreas, Comunicação e Educação.

Ora, se a escola tem no âmago da sua existência a construção da autonomia


dos educandos, como seria possível realizar essa tarefa sem considerar a
comunicação e seu papel na sociedade hoje? É, justamente, no trabalho jun-
to às crianças, adolescentes e jovens e sua relação com a mídia tradicional
(chamada mídia de massa) e as novas mídias (como a internet), que a escola
tem uma excelente oportunidade de aproximar-se da realidade de seus edu-
candos, ganhar espaço e importância em suas vidas e tornar-se fundamen-

5
Ministério da Educação. Censo da educação básica: 2012 – resumo técnico. – Brasília:
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2013, p. 23.

215
tal no desenvolvimento da crítica e da autonomia. Lembremos que a relação
entre educação e comunicação não é nova. Paulo Freire (1979) considerava,
por exemplo, os dois processos semelhantes: comunicar era uma atribuição
básica do educar; o educar seria então uma comunicação específica.

E acabam por assumir o termo Educomunicação como a nova área acadêmi-


ca que alia as duas áreas antes específicas, a Educação e a Comunicação. Nesse
caso, aproximam-se do pensamento de Martin-Barbero (2008), a partir de uma
visão culturalista da realidade.
E como se daria essa aproximação da Educação e da Comunicação? Ou,
mais especificamente, a aproximação entre a escola e a Comunicação? O Cader-
no (2012, p. 15) aponta essa aproximação pelo viés dos destinatários da escola,
quando apontam que as mídias “estão na origem de uma nova cultura, orienta-
da para o futuro, na qual adolescentes e jovens têm como referência principal
seus pares; essa mutação está sendo aprofundada pela internet”. E onde ficaria o
adulto nessa história? Pareceria “à primeira vista, que o adulto perdeu influên-
cia na formação dos jovens, mas não é assim. A comunicação de massa gerou
a nova cultura e, ao mesmo tempo, a significou, normalizando-a dentro das
necessidades do momento atual do mercado capitalista” (2012, p. 15).
A escola estaria, assim, entre as instituições ‘adultas’ que teria perdido força
quanto sua ação educativa. E o Caderno (2012) aponta como a recuperação des-
se lugar anteriormente ocupado pode se dar a partir de outra instituição adulta,
no caso a mídia. Mas a partir de uma visão crítica da nova instituição.

Decorre disso que, para a escola recuperar o seu papel, deveria, em pri-
meiro lugar, lutar por sua própria legitimidade perante crianças e jovens.
Colocamos aqui, como tese, que ela não pode recuperar essa legitimidade
se não desvendar, através da crítica, a mistificação proposta pelo mundo
da comunicação-mercado. Essa crítica gera a possibilidade de se criar uma
cumplicidade com os mais jovens, valorizando e promovendo a busca da
autonomia como uma aventura existencial íntima, do pensamento e do co-
nhecimento, e não como uma proposta condicionada, subliminarmente,
pela lógica mercantil.

A recuperação do papel da escola estaria, então, ainda para o Caderno


(2012, p. 15), relacionada à capacidade que tiver de converter-se num espaço
privilegiado para garantir às novas gerações os conhecimentos e as habilida-
des indispensáveis, para que se comuniquem com autonomia e autenticidade.

216
Seria a partir de uma ‘pedagogia problematizadora’ que a leitura da mídia será
mais eficiente, caso os jovens tenham garantida a capacidade de analisar suas
próprias formas de comunicação e as maneiras de se comunicar adotadas e pri-
vilegiadas pela escola.
Ismar de Oliveira Soares (2001) é o autor reconhecido pelo Caderno (2012,
p. 16) ao tratar da Comunicação e Uso de Mídias na escola, utilizando o termo
Educomunicação. O novo campo absorveria seus fundamentos dos tradicionais
campos da educação, da comunicação e de outros campos das ciências sociais,
superando, desta forma, as “barreiras epistemológicas impostas pela visão ilu-
minista e funcionalista de relações sociais que mantêm os tradicionais campos
do saber isolados e incomunicáveis”. Soares defenderia que o novo campo acon-
tece a partir de

ações conjuntas em diferentes áreas, ganhando a dimensão de um movi-


mento que caminha sintonizado em torno de uma ideia básica: possibilitar
o conhecimento sobre a sociedade midiática, mediante o exercício do uso
de seus recursos, sempre numa perspectiva participativa e integradora dos
interesses da vida na comunidade (2012, p. 16).

As diversas mídias, para o Caderno (2012, p. 18), teriam o potencial de se


tornarem parte de um sistema de comunicação entre estudantes, professores,
diretores e comunidade escolar. Assim, carregariam o potencial de instigar diá-
logos para a construção de um projeto político-pedagógico rico e alinhado às
características de uma escola que tenha importância na vida de seus estudantes
e da comunidade. Mas o caminho para chegar a essa realidade passaria pelo
enfrentamento de alguns desafios.
A compreensão do Caderno (2012, p. 19) sobre o uso das mídias na es-
cola passa por uma visão interdisciplinar desse processo. Eles apontam que,
embora “não tenha o objetivo de solucionar todas as questões da educação
brasileira, o Mais Educação, por meio da Comunicação e Uso de Mídias, é um
instrumento importante de flexibilização do currículo e de capilarização de
uma proposta interdisciplinar” (2012, p. 19). Uma das primeiras percepções
na produção de comunicação é a de que um jornal, vídeo, rádio, fotografia e
quadrinhos são, por natureza, produtos interdisciplinares, ou seja, exigem a
aplicação de múltiplos saberes acadêmicos na sua elaboração. A produção em
comunicação é entendida como “uma prática estudantil/escolar, que respeita
a autonomia dos estudantes e que deve envolver as mais diversas disciplinas”
(2012, p. 19).

217
Outra dimensão do interdisciplinar estaria relacionada aos diversos saberes
que entrariam na composição dessa nova aprendizagem. Para o Caderno (2012,
p. 19), os

saberes comunitários e estudantis têm, também, espaço nessa construção.


As redes que constituem esses saberes (...) são fundamentais, inclusive,
como forma de o educando reconhecer-se no processo. A agenda da crian-
ça e do jovem deve ser a linha mestra do jornal, revista, rádio ou vídeo
produzido; o potencial da comunidade torna-se visível e ativo no conteúdo
proposto e discutido.

Além disso,

a integração dos saberes acadêmicos, comunitários e estudantis facilita,


para que a escola torne-se articuladora de uma comunidade de aprendiza-
gem, isto é “uma comunidade humana organizada que constrói um projeto
educativo e cultural próprio para educar a si própria, suas crianças, seus jo-
vens e adultos” (Texto-referência do Programa Mais Educação, p. 27, MEC
– Brasília, 2009).

O papel social da leitura e escrita é o ponto de partida para que o Caderno


(2012, p. 19 e 20) evidencie a importância da ressignificação dos espaços sociais
onde as pessoas exercem sua cidadania. A garantia de “acesso aos veículos de
comunicação, ao domínio de diferentes linguagens e à produção de comunica-
ção, como forma de participação democrática são elementos fundamentais do
programa do MEC e, também, atividades centrais das práticas educomunicati-
vas”. O exercício da leitura crítica da mídia de massa seria “um dos pressupostos,
para que o jornal, revista, quadrinhos, vídeo ou rádio produzidos por crian-
ças, adolescentes e jovens tenham de fato um caráter autêntico e inovador nos
programas de Comunicação e Uso de Mídias”. Seria preciso antes de qualquer
esforço para produzir comunicação, “conhecer e analisar o sistema midiático
de massa que, hoje, é ainda dominante. Isso significa entender, profundamente,
as relações comerciais dos veículos e o papel importante que eles exercem na
construção de valores pessoais e sociais”.
Mas a dimensão da proposta do MEC para o uso das mídias pela escola, con-
substanciada nos Cadernos, não estaria restrita à recepção crítica da comuni-
cação. O Caderno (2012, p. 20) apontam para uma etapa seguinte, de produção
da comunicação.

218
Após a leitura e análise das diferentes mídias, a ênfase da Educomunicação
é a produção e, sobretudo, a veiculação, do material feito pelos estudantes.
Trata-se de uma comunicação autêntica dos educandos. Nos jornais, fanzi-
nes, rádios, vídeos ou quadrinhos, o estudante é instigado a produzir uma
comunicação que faça sentido a ele e sua comunidade; temas que gerem
discussão e pautem debates sobre soluções e problemas comunitários ou
relativos às questões da juventude em si, como a sexualidade e outros exis-
tenciais.

Seria uma primeira aproximação do Caderno ao pensamento de Celestine


Freinet (1974). Mais adiante, o Caderno (2012, p. 24 e 25) relaciona a prática
de Freinet à Escola Nova. A Escola Nova propõe aos alunos atividades diversas
– intelectuais, artísticas, físicas, trabalhos manuais – prefigurando o que, hoje,
chamamos de educação integral. É dentro dessa perspectiva que aparecem nas
escolas as quais aderem a esse movimento, desde o início do século XX, dispo-
sitivos de impressão tipográfica (nessa tecnologia, os textos são compostos letra
por letra, o que agregava ao trabalho manual a possibilidade de ensinar a língua)
e inicia a produção de impressos escolares. O educador francês Célestin Freinet
(1896-1966) introduziu na sua prática a técnica da impressão, em 1924, quando
seus alunos passaram a produzir textos compostos por eles mesmos, enviando
esses textos para outras escolas. Para o Caderno, a

(...) importância de Freinet na história das mídias escolares não está em ter
sido um precursor – não o foi, como vimos – mas no fato de ter feito do
jornal um ponto de “concentração” e a síntese de uma proposta pedagógica
inspirada nos princípios da Escola Nova. Não há em Freinet o menor traço
de uma perspectiva instrumental ou funcionalista do jornal (mídia) esco-
lar, que foque em algum aspecto parcial, como o rendimento escolar ou o
domínio de tecnologias, por exemplo. Sua visão parte de uma concepção
integral da criança e conclui na formulação de um pensamento que pode
ser considerado como precursor de uma visão integral da educação. O texto
que segue se inspira, largamente, em Freinet. (2012, p. 24 e 25).

Por último, cabe destacar, ainda, a visão do Caderno (2012, p. 20) em torno
da função social da leitura e da escrita nos processos de aproximação entre Edu-
cação e Comunicação no ambiente escolar. O uso da língua e da expressão, no
processo, seria “fundamental, para que a mensagem seja compreendida pelo re-
ceptor (público-alvo da mídia em questão) e o produto de comunicação seja, de

219
fato, eficiente. Trata-se de um exercício constante de pesquisa de linguagem e de
uso social da escrita”. A preocupação ‘em ser compreendido’ faria da comunica-
ção uma “prática de uso cotidiano da língua e do jornal produzido, sendo uma
ferramenta importante de cidadania”. Os educandos seriam levados a perceber
que é “a partir da mudança e leitura de mundo locais, que são construídas as lei-
turas e as mudanças globais, e que é possível elaborar um novo, transformador
e autêntico tipo de comunicação”.
Em suma, na base da proposta do Mais Educação, em relação ao macro-
campo Comunicação e Uso de Mídias, estão as ideias de que vivemos numa
‘idade mídia’, daí a importância do macrocampo; que os projetos que as esco-
las possam implementar na área devem privilegiar a realidade dos educandos;
mais que isso, devem ser construídos levando-se em consideração a autonomia
dos estudantes; que devem ser inseridos a partir de uma proposta crítica da
comunicação que se pratica hoje; que as propostas implementadas no âmbito
do macrocampo devem possibilitar os diálogos para o desenvolvimento de um
projeto pedagógico rico; que essas propostas partam de uma visão que envolva
as diversas disciplinas; na perspectiva de aproximação entre saberes escolares e
comunitários; e que evidenciem a função social da leitura e da escrita.
Como os estudantes interpretam essas possibilidades? E como constroem,
na prática, essa outra comunicação?

2. As percepções dos estudantes do Mais Educação sobre o rádio


educativo

2.1 Contextualizando a pesquisa

2.1.1 A rotina do Mais Educação nas escolas


A partir das 21 escolas que tomaram parte na pesquisa, chega-se à uma
apropriação inicial da rotina de implantação do Mais Educação. A cada ano,
as escolas fazem a opção pelas atividades que querem desenvolver em torno do
Programa. Em média, a escola ‘pode’ escolher entre cinco e seis atividades, do
conjunto de atividades que compõem todos os macrocampos do Mais Educa-
ção6. O MEC também orienta a seleção dessas atividades, daí o ‘pode’ estar entre
6
São 10 macrocampos à disposição das escolas: 1.Acompanhamento Pedagógico, 2.
Educação Ambiental, 3. Esporte e Lazer, 4. Direitos Humanos em Educação, 5. Cultura e
Artes, 6. Cultura Digital, 7. Promoção da Saúde, 8. Comunicação e Uso de Mídias, 9. In-
vestigação no Campo das Ciências da Natureza, 10. Educação Econômica. Esses macro-

220
aspas. Dessas cinco ou seis atividades, uma, necessariamente, tem que ser a de
reforço pedagógico, do macrocampo Acompanhamento Pedagógico, de caráter
obrigatório para as escolas participantes. E em 2013, o MEC não disponibilizou
o macrocampo Comunicação e Uso de Mídias para as escolas rurais. Apenas as
escolas urbanas puderam fazer a opção por alguma de suas atividades.
Feitas as opções pelas atividades, as escolas recebem o apoio necessário do
MEC para desenvolvê-las. Em relação ao macrocampo Comunicação e Uso de
Mídias, na opção rádio escolar, o apoio alterna-se entre o envio de um kit de
equipamentos para escola utilizar ou a remessa de recursos financeiros para que
a própria escola adquira os equipamentos7. No ano em que o MEC fica respon-
sável pelo envio dos próprios equipamentos, as escolas chegam a esperar um
ano para a efetiva remessa. Como a opção das atividades é anual, em algumas
escolas os equipamentos chegam sem que a escola tenha mais a opção rádio
escolar entre suas atividades do Mais Educação, o que gera descontinuidade
de atividades. O atraso na chegada dos equipamentos também desestimula a
participação dos estudantes, que veem suas expectativas não atendidas ao longo
daquele ano.
O MEC, no caso da rádio escolar, também apoia a escola fazendo um re-
passe de recursos para que ela possa contar com um monitor para acompanhar
as turmas formadas. Há uma indicação, mas não uma obrigatoriedade, desse
monitor ter formação específica sobre rádio. A remuneração desse monitor é
de R$ 80,00 reais por turma formada. Face à baixa remuneração, ocorre uma
rotatividade intensa desses colaboradores. Isso quando a escola consegue atrair
algum colaborador para realizar esse trabalho.
Com os equipamentos e monitor disponíveis, inicia-se o processo de desen-
volvimento das atividades. Aí, mais um problema ocorre para a implementação
efetiva da proposta pedagógica do Mais Educação, do macrocampo Comunica-
ção e Uso de Mídias. O mesmo estudante que faz a opção, por exemplo, por rá-
dio escolar, tem, obrigatoriamente, que participar de todas as outras atividades
selecionadas pela escola para aquele ano. A atividade de reforço pedagógico é
diária. Cada atividade toma, em média, 90 minutos das três horas diárias de-
dicadas ao Mais Educação na escola, no contraturno escolar. Tomando-se por
base cinco atividades selecionadas mais o reforço pedagógico, de caráter obri-

campos oferecem 62 diferentes atividades aos estudantes. (Ministério da Educação. Se-


cretaria de Educação Básica. Passo a passo do Programa Mais Educação. Brasília, 2011)
7
O kit de equipamentos é composto de microfone, mesa de som de seis canais, caixa de
som amplificada e gravador digital.

221
gatório, a cada dia o estudante participa do reforço pedagógico mais uma ativi-
dade. Em razão disso, se a escola fizer a opção por rádio escolar o trabalho com
essa atividade vai se resumir a 90 minutos semanais, seis horas mensais, o que
prejudica qualquer processo formativo que venha a se desenvolver, de caráter
mais sistemático.

2.1.2 A seleção do conjunto de dados da pesquisa

Nas 21 escolas que participaram desse levantamento, situadas em Forta-


leza, na rede pública municipal e estadual, foram elaborados questionários
específicos para diretores, coordenadores do Mais Educação, professores de
sala de aula e estudantes8. O número de entrevistados variou de escola para
escola e entre os segmentos, de acordo com a disponibilidade demonstra-
da pela comunidade escolar. Em relação a professores e estudantes, fizemos
uma divisão entre aqueles que participaram da atividade de rádio escolar e
aqueles que não participaram –como nosso intuito era ter uma percepção
da compreensão da relação entre rádio e aprendizagem, a partir da proposta
do Comunicação e Uso de Mídias, essa separação nos pareceu apropriada,
levando-se em consideração quem é apenas ouvinte da rádio escolar e quem
é participante ativo do processo de produção da comunicação veiculada pela
rádio escolar.
Foram entrevistados 44 estudantes, sendo 27 que tomaram parte, em algum
momento, das atividades da rádio escolar e 17 que não tomaram parte. Cabe
salientar que a participação nas atividades da rádio escolar pode ter acontecido
em momentos anteriores ao da realização da pesquisa, uma feita que entre a op-
ção pela atividade e o desenvolvimento efetivo das atividades pode decorrer um
intervalo de tempo que pode chegar a 18 meses, dependendo da disponibilidade
dos equipamentos, incluída sua instalação na escola. O número de estudantes
entrevistados variou de escola a escola, a partir da disponibilidade encontrada
pelos entrevistadores. Essa variação foi de um a cinco estudantes, entre partici-
pantes e não participantes das atividades da rádio escolar.

8
Em artigo anterior, intitulado ‘Rádio educativo - percepções a partir dos participantes
do Programa Mais Educação’, apresentado durante o XXXVII Congresso Brasileiro de
Ciências da Comunicação – Intercom 2014, fizemos uma discussão sobre a percepção
dos Coordenadores do Mais Educação sobre as atividades com a rádio escolar. Num
próximo artigo, pretendemos enfocar a percepção dos professores.

222
2.2 As interpretações iniciais dos dados

2.2.1 A participação dos estudantes na rádio escolar

O Programa Mais Educação, em sua proposta pedagógica de orientação à


execução do macrocampo Comunicação e Uso de Mídias, destaca a necessidade
do desenvolvimento de projetos que possam privilegiar a realidade dos educan-
dos, na perspectiva de considerar a autonomia como ponto de partida. Sobretu-
do, que esses projetos possam desenvolver diálogos no âmbito da comunidade
escolar, o que atestaria a importância da importância entre Comunicação e Edu-
cação. Duas perguntas do questionário, aplicado aos estudantes, indicam que
ainda há um longo caminho a ser percorrido nessas pretensões.
Como parte do questionário da pesquisa, foi indagado aos estudantes quem
decide o que deve ser veiculado na rádio escolar. A pergunta seguinte, como
reforço à compreensão da primeira, perguntava quem poderia retirar uma pro-
dução da grade de programação da rádio escolar. em ambas as perguntas, os
estudantes poderiam indicar mais de uma opção, entre estudantes, professores,
coordenador do Mais Educação, diretor da escola, monitor da rádio escolar ou
outra opção que quisesse citar. Dos estudantes entrevistados, entre participantes
e não participantes das atividades da rádio escolar, em relação à primeira per-
gunta, 19 (43%) indicaram que era o monitor da rádio escolar que selecionava o
que era veiculado e 15 estudantes (34%) indicaram que eram os próprios estu-
dantes que selecionavam o material.
A princípio, poderia ser destacado a participação efetiva dos estudantes
no material veiculado pela rádio escolar, demonstrando um princípio de au-
tonomia no desenvolvimento das atividades, o que poderia levar à inserção de
sua realidade na programação, mesmo levando-se em consideração o destaque
dado ao monitor no processo. Talvez a construção da primeira pergunta tenha
influenciado esse resultado. A indagação feita era ‘Quem decide o que toca na
Radioescola?’. Uma interpretação possível é que o termo ‘toca’ poderia ter su-
gerido que se tratava da seleção musical que era veiculada na programação da
rádio escolar, e não o conjunto de produções. Daí o envolvimento maior dos
estudantes no processo.
Essa interpretação é defensável quando se analisam os resultados do segun-
do questionamento, traduzido no questionário pela pergunta ‘Quem pode reti-
rar um programa do ar aqui na escola?’. Nesse caso, a lógica se inverte. Dos 44
estudantes entrevistados, 25 (56%) identificaram ser o diretor da escola quem
poderia retirar, vindo em seguida o coordenador do Mais Educação com 16 op-

223
ções (36%) e o monitor da rádio escolar com 15 opções (34%). Nessa pergunta,
os estudantes aparecem com apenas 6 indicações (13%) daqueles que poderiam
efetivamente retirar um programa da grade de programação da rádio escolar.
Em relação a esses resultados, duas constatações ainda são importantes des-
tacar. A primeira, a baixa indicação do professor como participante das ativi-
dades da rádio escolar. Na primeira pergunta, apenas 1 estudante (0,2%) consi-
derou que algum professor decide o que toca na rádio escolar. Para a segunda
pergunta, foram 2 estudantes (0,4%) que consideraram ser o professor aquele
que decide retirar um programa do ar. Vê-se que a perspectiva da colaboração
recíproca entre professor e estudante, preconizada pela proposta pedagógica do
Comunicação e Uso de Mídias, ainda está distante de se realizar.
A segunda constatação se refere a uma cultura de autoritarismo e baixa de-
mocracia vivenciada ainda no ambiente escolar. Isso pode ser presumido a par-
tir da distinção entre os estudantes participantes e não participantes das ativida-
des da rádio escolar que responderam à pesquisa. Partimos da compreensão de
que o grupo de estudantes não participantes, por não estarem envolvidos com a
rotina da rádio escolar, tenha, a princípio, menos propriedade para relatar com
fidedignidade a realidade dos processos envolvidos. Nesse caso, estaria mais
propenso a raciocinar a partir do imaginário ou da cultura escolar relacionada
à ‘expectativa’ de participação e autoritarismo da gestão escolar. Não é à toa
que, entre os 17 estudantes não participantes das atividades da rádio escolar,
10 (58%) indicaram ser o diretor da escola o responsável pela tarefa de retirar
uma produção da grade de programação da rádio escolar, 5 estudantes (29%)
indicaram o monitor, 3 (17%) o coordenador do Mais Educação e nenhum res-
pondente indicou a participação de estudantes nessa tarefa!

2.2.2 A percepção da aprendizagem

Em torno da percepção do rádio educativo, duas indagações do instrumen-


tal de pesquisa foram feitas. A primeira, ‘Você acredita que a Radioescola aju-
da na sua aprendizagem e na aprendizagem de seus colegas?’; e a segunda, ‘O
que é o rádio educativo pra você?’. Ambas as perguntas de caráter aberto. Aqui,
especificamente, foram sistematizadas as respostas distinguindo os estudantes
participantes dos não participantes das atividades da rádio escolar –na medida
em que o próprio envolvimento e possíveis processos formativos levados a cabo
pelo monitor da rádio escolar pudessem, de alguma maneira, ter reorientado
essa percepção.

224
Entre os estudantes participantes da rádio escolar, que nos parece o grupo
mais indicado para referir-se à primeira pergunta, interpreta-se facilmente o dis-
tanciamento da percepção de aprendizagem da atividade com qualquer vínculo
à sala de aula. Apenas duas respostas fazem referência, embora que de forma
indireta, à relação entre rádio escolar, aprendizagem e sala de aula: ‘Às vezes a
monitora faz um trabalho de leitura e perguntas com poesias’; e ‘Porque influen-
ciava na hora do intervalo - ficavam mais quietos. E nada sala de aula também’.
Outro conjunto de respostas, entre os participantes, trabalha, de forma mais
óbvia, a vinculação entre a aprendizagem e às técnicas de manipulação da tec-
nologia vinculada à rádio escolar. Então, as atividades fizeram com que apren-
dessem ‘coisas da rádio, que não sabia’; ‘Incentiva o aluno a aprender a mexer
nos equipamentos’; ‘Aprenderam muita coisa. A mexer no som’.
Mas as respostam indicam ainda outra aprendizagem, essa de caráter mais
abrangente, que faz uma relação entre as atividades desenvolvidas na rádio
escolar e a aprendizagem para a vida. E essa percepção parece aproximar de
um dos direcionamentos que a proposta do Mais Educação, no macrocampo
Comunicação e Uso de Mídias, pretende validar, a de aprendizagem contínua.
Respostas como ‘É uma forma de interagir. Uma música pode fazer com que a
pessoa reflita. Nós tentamos fazer com que a pessoa pense e reveja seus atos’;
‘Antes de participar, fazia coisas sem pensar. Depois da rádio, comecei a pensar
nas coisas’; ‘Influenciou para mostrar que tem pessoas com vergonha de falar e a
pessoa ficou mais desinibida’; ‘Melhorou a autoestima - era muito tímida antes’;
‘os alunos poderiam aproveitar melhor e interagir’ fazem crer que a aprendiza-
gem no desenvolvimento da rádio escolar pode ser um processo amplo e com
resultados a médio e longo prazos.
Ainda em torno da relação entre aprendizagem e rádio escolar, é possível
perceber alguns direcionamentos que podem levar ao desvirtuamento do que
seja trabalhar com o rádio. Embora um estudante tenha percebido que ‘Na rádio
aprendem muitas coisas, a falar corretamente e até educação’, outro percebeu
que ‘A diferença da sala de aula é que a gente não escrevia’, o que pode indicar
que algumas escolas, a partir do trabalho dos monitores, estão investindo num
modelo de rádio que valoriza sobremaneira o improviso, visão ainda muito pre-
sente no rádio comercial e que menospreza as possibilidade do meio, em sua
vertente educativa.Ou, para outro estudante, ‘Não tem repercussão (na apren-
dizagem), porque só tocava música’, observação referida por outras respostas, o
que leva a duas constatações: que a rádio escolar não trabalha de maneira razoá-
vel o gênero informativo do rádio e que a música é trabalhada apenas como for-
ma de entretenimento, o que limita, em ambos os casos, a orientação educativa
que a rádio escolar possa vir a ter.

225
2.2.3 A percepção do rádio educativo

Se a relação entre rádio escolar e aprendizagem majoritariamente se dis-


tanciava da sala de aula, a percepção do rádio educativo traz alguns elementos
que o aproxima mais do cotidiano da escola, e do ambiente da sala de aula, ou
pelo menos dos processos que são desenvolvidos corriqueiramente em sala de
aula. Poderíamos afirmar que uma possível interpretação para tal fato seja uma
superposição entre o que seja ‘educativo’ e o que seja ‘escolar’, permeado pelo
‘ensino’, a partir da percepção dos respondentes.
Uma das respostas mais emblemáticas, em relação a essa aproximação en-
tre o educativo e o escolar, permeada pela sala de aula, veio de um estudante
não participante, o que pode reforçar a compreensão inicial da relação rádio
e educação, para quem nunca se envolveu com essas atividades, a partir duma
percepção que fortalece o imaginário do rádio educativo. Para esse estudante, o
rádio educativo ‘Complementa a escola na rotina’. Para outro, estudante parti-
cipante das atividades da rádio escolar, o rádio educativo é ‘Uma rádio que traz
assuntos da escola’.
Numa perspectiva mais ampla, na aproximação entre ‘educativo’ e ‘escolar’,
os estudantes participantes das atividades da rádio escolar têm uma visão um
pouco mais abrangente. E três âmbitos são perceptíveis nessa aproximação.
Num primeiro momento, a perspectiva ampla, mas ainda assim vinculada à es-
cola. Para eles, participantes e não participantes das atividades da rádio escolar,
o rádio educativo ‘Serviria bem para a escola. Tem gente que se dá melhor com
o rádio do que falando. Ajuda na desenvoltura das pessoas’; ‘Que ensina, fala
poesias, recomendação de livros, várias coisas voltadas para a escola’; ‘Uma rá-
dio que ensine’; que ‘Possa transmitir ideias e valores dentro da escola. Tirando
essas músicas que não tem estilo e não colocar dentro da escola. Colocar músi-
cas de cultura’.
Num segundo momento, uma visão ‘meio-termo’, que se situa entre o am-
biente escolar mas que faz conexão com fora da escola. Nesse caso, o rádio edu-
cativo deveria ‘Ensinar ao jovem a viver a juventude e ficar distante de drogas.
Ficar sempre próximos aos estudos’; ‘É uma rádio que fala coisas escolares para
melhorar a aprendizagem do aluno e que ele pode usar essas informações den-
tro e fora da escola’; ‘Ensinar as pessoas através do rádio’; ‘Aquele que possibilita
aos alunos terem melhor aprendizado, ter mais educação e aprender outras ati-
vidades’.
Já num terceiro momento, o rádio educativo para além dos muros da escola.
O rádio educativo seria ‘Uma forma de expressar e dar ideias aos estudantes

226
para que estes façam o que é bom para si’; ‘Rádio educativo é para incentivar as
crianças, educar, ajudar no desenvolvimento das crianças’; ‘É a rádio que pode
ensinar, dar a vez a cada aluno para aprender coisas novas’; Planejando alguma
coisa para mudar o bairro. Sem educação ninguém tem nada’.
Algo a se ressaltar é que as respostas à compreensão sobre o rádio educati-
vo, a partir dos não participantes das atividades da rádio escolar, revelam um
discurso menos estruturado, menos contextualizado e mais próximo do senso
comum. Para os não participantes, o rádio educativo seria ‘Alguma coisa que
educa a gente’; Dar aviso na escola’; ‘É a que pode ajudar muitas pessoas’; ‘Apren-
dizado’; ‘É tudo o que transmite uma coisa boa para o aluno e o deixa a vonta-
de’; ‘Educar uma pessoa. Significa um bocado de coisa. Tipo ensinar uma coisa,
fazer muitas coisas’. E, por outro lado, revelam que a simples participação das
atividades da rádio escolar, embora também com ressalvas, pela forma como
se estruturam e como são orientadas, pode representar ganhos à formação dos
estudantes.

3. Mais algumas considerações

Esse é o segundo artigo que produzimos a partir da pesquisa que realizamos


em 21 escolas de Fortaleza sobre o desenvolvimento das atividades vinculadas à
opção rádio escolar, do macrocampo Comunicação e uso de Mídias, do Progra-
ma mais Educação. No primeiro, trabalhamos a percepção dos coordenadores
do Mais Educação sobre o rádio educativo. Esse segundo, traz a visão dos estu-
dantes, incorporando também a noção de aprendizagem. Num terceiro artigo,
pretendemos trabalhar a percepção de professores. Acreditamos que, além das
constatações específicas de cada grupo de respondentes da pesquisa, uma visão
geral, que possibilite intercruzar essas percepções, poderá nos revelar outras
perspectivas de análise.
Para a construção de uma proposta de rádio educativo que avance ao encon-
tro dos princípios postos pelo MEC, é fundamental, antes de tudo, uma percep-
ção crítica do modelo e conteúdo da comunicação mais utilizados em nossa rea-
lidade. Seria até defensável afirmar que, ao contrário do que afirma o MEC, não
seria necessário a postulação de um etapismo quanto ao fluxo de primeiro se
perceber criticamente a comunicação para depois se produzir uma comunica-
ção ‘autônoma’, ou ‘educativa’. Mas essa percepção crítica da comunicação está
ausente da fala dos estudantes, mesmo considerando-se suas boas intenções. E
são esses aspectos contraditórios que, se encaramos o conflito como algo positi-

227
vo, podem render bons diálogos, no intuito de reconhecer as distâncias entre o
pensar e o fazer. As deficiências, ou mesmo ausências, dos processos formativos
junto aos estudantes que participam das atividades específicas do macrocampo
Comunicação e Uso de Mídias.
Outra consideração possível é sobre a percepção ampla que os estudantes
têm do rádio educativo. Seria essa percepção vinculada a uma interpretação ne-
gativa da sala de aula, ou mesmo da escola? A notada ausência do professor dos
processos que envolvem a rádio escolar poderia estar fortalecendo essa com-
preensão? Com a participação efetiva dos professores, nas atividades da rádio
escolar, poderia se esperar uma reorientação dessa percepção? Ou um apro-
fundamento? Uma das respostas que colhemos, sobre a compreensão do rádio
educativo, de um estudante, lança algumas especulações sobre essas indagações.
Para esse estudante, rádio educativo seria ‘Uma maneira de ensinar que não seja
na sala, de uma maneira divertida’.

Referências bibliográficas

ECO, U. O superhomem de massa. S. Paulo: Perspectiva, 1991.


FREINET, C. O jornal escolar. Lisboa: Editoral Estampa, 1974.
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979.
MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2008.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa Mais Educação. Caderno Pedagó-
gico nº 9. Comunicação e Uso das Mídias. Brasília, 2012.
SOARES, I. Caminhos da educomunicação. São Paulo: Editora Salesiana, 2001.

228
Educação para os media em Portugal: um caminho
a fazer-se

Manuel Pinto
Cristiane Parente

Boa parte do que acreditamos conhecer sobre a realidade nos chega a partir
dos meios de comunicação. Por isso a Educação para os Media é, ou pelo me-
nos deveria ser, uma área-chave das políticas educativas e socioculturais. Em
“Theory of Media Literacy – A Cognitive Approach”, Potter (2004) já destacava
o fato de que, ainda no começo dos anos 2000, as estações de rádio enviavam/
emitiam anualmente 65,5 milhões de horas de programação original, sendo se-
guidas de perto pelas TVs, com mais de 48 milhões de horas. E isto sem falar na
internet e outros meios.
Os media constituem um ambiente e uma dimensão que marcam cada vez
mais a vida das pessoas. Dificilmente podemos aprender a ser cidadãos sem
compreendê-los criticamente, já que eles constroem um mundo comum para os
cidadãos (MARTINS, 2011). E isso acontece especialmente a partir de relatos,
narrativas, representações, ritos e mitos.
Morduchowicz (2001) ressalta o fato de o conhecimento ser cada vez mais
mediatizado, o que realça a necessidade de os meios de comunicação se torna-
rem objeto de estudo, já que são determinantes no modo como adquirimos,
transmitimos e construímos informações e saberes sobre o mundo. Pinto (2003,
p.2) também destaca que a formação pedagógica e cultural para uma relação
crítica e esclarecida com os media e o campo mediático constitui uma das di-
mensões em que se traduz e promove a cidadania, apesar de essa constatação
ainda não se traduzir em políticas públicas na área, na maioria dos países.
Se no passado o problema era, para grande parte das pessoas, a falta de acesso a
informações, hoje a questão com que lidamos é outra: afinal, não só a informação
pode ser encontrada mais facilmente, como tem sido produzida em quantidade e
(em certa medida) diversidade cada vez maiores e num ritmo cada vez mais rá-
pido. Neste novo quadro, torna-se necessário aprender a aceder, selecionar e usar
bem as informações que recebemos, tarefa que deve ser aprendida desde a infân-
cia, visto que ter muita informação não necessariamente é estar bem informado.

229
A par das competências para ler criticamente e usar judiciosamente os me-
dia, as novas redes, plataformas e ferramentas digitais colocam em evidência
outras necessidades básicas para a alfabetização e formação básica de todos os
cidadãos, de forma a atenuar os riscos crescentes de novas formas de exclusão
social. Pode dizer-se que a educação para os media e para a comunicação se tem
vindo a evidenciar como um dos terrenos centrais dos direitos dos cidadãos,
abrindo novos horizontes e desafios à conhecida trilogia em que assenta o direi-
to à informação: informar, informar-se e ser informado (PINTO et al, 2009, p.1).
Essa presença marcante que, desde muito cedo, temos dos media e das no-
vas tecnologias em nossas vidas, não apenas influencia a nossa percepção do
mundo como altera a relação que estabelecemos com outros sujeitos e com a
noção de espaço e tempo. Os media não apenas registam e publicitam os acon-
tecimentos que marcam as sociedades, como eles próprios são responsáveis por
boa parte da produção e enquadramento desses acontecimentos. Isso porque “a
sociedade não apenas se deixa envolver pelos meios, como os reflete, adere ou
descarta sua influência” (CHRISTOFOLETTI; MOTTA, 2008, p.1).
Segundo Botton (2014), somos desde cedo solicitados a apreciar o poder das
imagens e das palavras. Porém, é raro que possamos dispor de uma educação
que ensine a lidar com esse poder.
“É considerado mais importante que saibamos entender o enredo de Otelo
do que saber decifrar a primeira página do New York Post (...) Nunca somos
sistematicamente iniciados na extraordinária capacidade dos fornecedores de
notícias para influenciar o nosso sentido de realidade e moldar o sentido daqui-
lo a que bem podíamos chamar as nossas almas.” (BOTTON, 2014, p.12)
Isso tudo torna-se ainda mais importante quando vivemos numa sociedade
dos ecrãs, em que a tecnologia já parece completamente natural para nós e a
palavra precisa de ser resignificada, diante do poder da imagem.

A rede ecrânica transformou os nossos modos de vida,a nossa relação com


a informação, o espaço-tempo, as viagens e o consumo: tornou-se um ins-
trumento de comunicação e de informação, um intermediário quase inevi-
tável na nossa relação com o mundo e com os outros. O ser é, cada vez mais,
ser ligado ao ecrã e interconectado nas redes (LIPOVETSKY E SERROY,
2010, p.251).

Os media constroem um mundo comum. E constroem-no sobretudo atra-


vés de relatos, o que significa que a sua realidade social é essencialmente discur-
siva. Esses actos de linguagem, por sua vez, são construções sociais (MARTINS,
2011, p.108).

230
Uma pessoa é exposta em média a cerca de 300 anúncios em um único dia
(POTTER, 2004) e, sabendo disso, empresas de publicidade, entretenimento e
jornalismo competem cada vez mais para conseguirem nossa atenção. Nessa
guerra, e com o desenvolvimento tecnológico, a maneira como as mensagens
chegam até nós mudou, assim como o modo como lidamos com elas. E se antes
era fácil categorizar o que era informação, entretenimento e publicidade, agora,
o vale-tudo para conseguir um leitor-espectador fez com que essas fronteiras
se estreitassem e hoje encontremos anúncios travestidos de notícias e notícias
misturadas com entretenimento.
Além disso, as mensagens também estão tornando-se cada vez mais curtas,
dificultando a compreensão do contexto em que foram criadas e a sua interpre-
tação (POTTER, 2004). E se essa diluição de fronteiras é complicada para os
adultos, imagine para o público infantil.
Ainda sobre essa avalanche de mensagens, Tisseron (2007) destaca que
as imagens são suportes de significação e que todas são construções. Por isso
mesmo, carecem de ser estudadas, desmistificadas, vistas como algo que não
seja objetivo. Ou seja, devem ser analisadas de forma mais crítica, afinal, há
um modo de olhar que as determina. E no caso das mensagens que recebemos
diariamente, o modo como elas chegam até nós vai formando, consciente ou
inconscientemente, a nossa forma de representar o mundo.
O autor defende a distribuição da imprensa infantil nas escolas (as que ainda
resistem/existem no mercado), para que as crianças debatam, entre si e com
seus professores, assuntos que lhes digam respeito, cabendo assim à escola um
contrapeso no papel pedagógico de educar sobre a visão de mundo e sobre as
mensagens que recebemos diariamente. Uma educação para os media. E como
as imagens são o maior poder com o qual as crianças irão negociar durante toda
a sua vida (TISSERON, 2004), porque não começar a serem educadas já para
esse desafio?
Importante destacar, porém que, independentemente dos meios aos quais as
crianças estão expostas, vale dizer que não é apenas a relação criança – conteú-
do que determina alguma consequência (positiva ou negativa), mas também o
contexto em que essa criança vive, a quantidade de horas em que está exposta
aos meios, as alternativas de que dispõe, o que ela faz também com os meios e
não só o que eles fazem com ela, como a família e a escola dessa criança lidam
com os meios, etc
Outro ponto relevante é que, para lidarmos com esse intenso fluxo de infor-
mações acabamos por ter uma exposição automática aos meios e um processa-
mento automático das mensagens. As consequências negativas deste comporta-

231
mento é ficarmos mais susceptíveis às interpretações sugeridas pelos meios de
comunicação. “Os meios de comunicação estão condicionando-nos, definindo o
que é notícia, o que é entretenimento e como resolver problemas com os produ-
tos anunciados” (POTTER, 2004, p.11). Consequentemente, ao longo do tempo,
os meios de comunicação passam a moldar a nossa percepção do mundo, nossos
conceitos de beleza, corpo, relacionamento, do que é certo e errado e, pior, dei-
xam nossa “habilidade de construção de sentido atrofiada” (POTTER, 2004, p.3).
Fazendo um rápido recorte no tempo, basta imaginarmos uma criança ne-
gra, por exemplo, e a quantidade de tempo que ela viu TV, desde pequenina
até o fim de seu período escolar. Quanto de estereótipos ela não deve ter visto?
Quantas imagens de crianças, adolescentes/jovens e adultos negros ela viu? E
em que situações? Como isso se deve ter fixado em sua mente? Que ideais de
beleza ela deve ter a partir dos comerciais de shampoo ou perfumes ou ainda
roupas de marcas famosas?
“Sem uma boa compreensão dos media, suas mensagens e seus efeitos, as
pessoas podem desenvolver mal-entendidos e equívocos sobre seu mundo”
(POTTER, 2004, p.20). Isso nos dá pistas do que, afinal, é e para que serve a
Literacia Mediática, Educação para os Media ou Educomunicação.
As experiências que podem ser filiadas na preocupação de articular o uni-
verso da educação e dos media tornam-se visíveis a partir dos anos 20 e 30
do século passado. Isso acontece nomeadamente com as propostas de Célestin
Freinet relacionadas com a imprensa escolar (FREINET, 1927) e com as preo-
cupações de iniciar o estudo da linguagem cinematográfica, documentadas em
França e no Reino Unido (NOURRISSON e JEUNET, 2001; BÉVORT e BELLO-
NI, 2009), o que nos mostra que o interesse pelo tema não é tão novo.
Muito do trabalho pedagógico desenvolvido até aos anos 60-70 do séc. XX
foi pautado por orientações ‘protecionistas’ e ‘discriminatórias’, isto é, procu-
rando maximizar as potencialidades dos media, em particular audiovisuais, e
minorar efeitos tidos por negativos. A verdade é que a pesquisa científica foi-se
complexificando e enriquecendo. Ocorreu aquilo que se designou como perda
tendencial do poder do texto (e dos media), em prol de um maior papel das
mediações e de consideração pelo lugar e iniciativa dos sujeitos e grupos sociais
e seus respetivos contextos de vida e cultura.
Essa virada epistemológica e teórica deu-se em diversas partes do mundo e
a partir de diferentes problemáticas culturais, sendo aqui de destacar os avanços
nos estudos de recepção na América Latina, levados a cabo e coordenados por
pesquisadores como Orozco, Barbero e Canclini, especialmente a partir da dé-
cada de 80 do século passado.

232
São pesquisas que foram gerando novos conceitos a respeito da relação entre
o universo e a produção mediáticas, por um lado, e as culturas e os grupos cul-
turais, por outro, orientando-se no sentido de uma visão menos determinista do
papel dos media e mais acolhedora da ação dos sujeitos sociais e da sua leitura
sobre o mundo. É no ato de leitura, do olhar que colocamos sobre as coisas, que
damos sentido ao mundo. E esse ato é também político, já que envolve e requer
compreender o jogo de forças existente na sociedade.
O olhar é uma forma de apreensão do mundo, que cruza conhecimento,
objeto, sujeito e contexto de observação (...). É um ponto de contato, conheci-
mento e reconhecimento da alteridade (...), é leitura e é apreensão; é assim um
gesto que constrói, gesto de leitura (CHRISTOFOLETTI, 2007, p.80-81). Se a
leitura é um ato de compreensão maior, e se as pessoas lêem o mundo pelo filtro
dos media, é preciso revisar sob que condições tal tradução é feita (CHRISTO-
FOLETTI, 2007, p.91).
Segundo Christofoletti (2007), dois aspectos são importantes para a conver-
são do ver em observar: a efetividade de ações e políticas de educação para os
media/alfabetização mediática (ver TORNERO; VARIS, 2011)ou educomuni-
cação, termo utilizado frequentemente no Brasil – ver Soares, 2011), e a com-
preensão da comunicação como um direito humano, assim como estabelece a
Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo 19.
A Convenção sobre os Direitos das Crianças, aprovada pelas Nações Unidas
em 1989 e ratificada por todos os países do mundo com exceção da Somália e
dos Estados Unidos da América, reconhece em seu artigo 13º o direito da crian-
ça à liberdade de expressão, o qual compreende a liberdade de procurar, receber
e expandir informações e ideias de toda a espécie e em todos os formatos, à
escolha da criança. Reconhece ainda, no artigo 17º, o direito que lhe assiste
quanto ao acesso à informação, bem como as responsabilidades que na matéria
cabem aos órgãos de comunicação social, em especial a de “difundir informação
e documentos que revistam utilidade social e cultural para a criança”.
Antes de olharmos para o modo como estas questões se colocam num qua-
dro sociocultural específico, importa esclarecer que os conceitos com que aqui
lidamos não têm um sentido unívoco e universal. Pelo contrário, são fruto de
um processo de construção situado. Na Europa, isso acontece também. A ex-
pressão ‘media literacy’ tem sido definida como a capacidade de acessar, ana-
lisar, avaliar e criar mensagens numa variedade de contextos (cf, por exemplo,
LIVINGSTONE, 2004, p.18). Mas o património de experiências das últimas
décadas leva-nos a reconhecer que há, a montante e a jusante das mensagens,
dimensões que se revelam cruciais para uma visão e uma prática holística da
educação para os media.

233
A economia política chama-nos a atenção para as lógicas institucionais, para
as culturas profissionais e, sobretudo, para as questões de poder e para as estra-
tégias dos interesses que se movimentam em torno dos grupos, dos conglome-
rados industriais, nas ligações com o campo político, etc. Por sua vez, os estudos
culturais e as teorias da recepção fizeram-nos olhar para as formas de acesso aos
media, modalidades de uso, de significação e de apropriação epara os contextos
de vida dos utlizadores.
Em muitos estudos europeus denota-se uma tensão entre uma abordagem
da educação para os media que tem como horizonte e sentido a educação para
a comunicação e para uma cidadania crítica e interventiva, por um lado, e uma
abordagem de cariz mais tecnológico, mais instrumental, por outro. Talvez de-
vamos entender este campo como um campo de forças, para convocar Bour-
dieu, e ver aqueles elementos tensionais como pólos de um continuum que nun-
ca pode ser perdido de vista. De qualquer modo, é relativamente consensual que
a literacia mediática ou sobre os media é o resultado (sempre provisório, por
certo) de um processo formativo que designamos por educação para os media.

1. Educação para os Media em Portugal

O caminho que vem sendo percorrido em Portugal, particularmente desde


os anos 70 do século passado, analisado no seu todo, pode dizer-se que avança
da fragmentação para a busca de um todo coerente, ainda que diversificado. A
Revolução do 25 de Abril de 1974 e a instauração de um regime democrático
estabelece um marco neste percurso, naturalmente. Uma coisa é trabalhar sob
um regime de censura feroz e de combate à ação e à expressão de ideias de
correntes estéticas diferentes de uma linha oficial e outra coisa é trabalhar em
regime de liberdade de expressão e de informação, ainda que esta liberdade
seja sempre um desafio e uma aprendizagem.
Importa, contudo, começar por sublinhar que não foi o 25 de Abril que trou-
xe as experiências de diálogo entre a ação educativa e o campo dos media e da
comunicação. O jornalismo escolar, por exemplo, ainda que muito vigiado, foi
um terreno de ação importante nas décadas antecedentes da ‘Revolução dos
Cravos’ em muitas escolas, ainda que muitas vezes produzido de costas voltadas
para as atividades letivas. Algo de análogo se passou com a pedagogia do cine-
ma, em alguns casos em articulação com os cineclubes e os festivais de cinema
(como foi o caso do Festival de Cinema de Figueira da Foz e do seu diretor
José Vieira Marques). A ideia era desenvolver nos alunos o gosto pelo cinema,

234
iniciá-los na linguagem e estética cinematográficas, enriquecer debates sobre a
actualidade ou ainda sobre determinadas matérias como História, Antropolo-
gia, línguas estrangeiras, etc. Atualmente destaca-se o nome do pesquisador e
professor Vítor Reia-Baptista, da Universidade do Algarve, que continua os tra-
balhos nessa linha propondo uma “pedagogia da comunicação” (PINTO, 2003).
Sobre a educação para a cidadania e a compreensão dos media enquanto
“instâncias de enunciação, construção e significação dos eventos e situações que
marcam o que em cada momento se passa no mundo” (PINTO, 2003, p.5), vale
destacar o papel de programas como o ‘Público na Escola’. Iniciado em 1989
pelo jornal Público, ainda antes de este diário de referência ter aparecido nas
bancas, teve como objectivo primeiro o desenvolvimento de recursos e de ini-
ciativas orientados para uma leitura crítica da atualidade, a partir do trabalho
com a imprensa e com os outros media. Este programa organizava visitas ativas
de alunos ao jornal, produzia cadernos pedagógicos e dossiês de materiais dos
media. Promoveu também, em conjugação com o Ministério da Educação, a Se-
mana dos Media na Escola. Porém, a sua iniciativa com mais impacto terá sido,
durante cerca de duas décadas, a organização do concurso nacional de jornais
escolares, em suporte impresso e digital. Hoje, com a crise económica, o jornal
desinvestiu bastante nesta vertente, ainda que continue a existir um coordena-
dor que participa em iniciativas de escolas, responde a solicitações e alimenta o
blogue Página 23 (Disponível em: <http://blogues.publico.pt/pagina23/>).
Uma das caraterísticas das dinâmicas desenvolvidas nesta vertente educomu-
nicativa foi a sua falta de continuidade e a sensação que se criou de que se estava
sempre a começar do zero. O ‘Público na Escola’ foi, deste ponto de vista, uma
exceção, como foi também a ação continuada de formação e investigação em
universidades como o Minho e Algarve e a dinamização levada a cabo em várias
regiões do país por meia dúzia de cineclubes mais ativos. Mas tal não significa
que, nas escolas dos ensinos básico e secundário, não acontecesse um importante
trabalho de inovação pedagógica que fez da comunicação o seu leitmotiv.
Ao longo da primeira década deste século foi ganhando força a ideia de pro-
mover regularmente o intercâmbio entre as experiências no terreno, levadas a
cabo por instituições mediáticas, por estabelecimentos de formação de profes-
sores e educadores, por departamentos oficiais, sobretudo do âmbito da educa-
ção e, naturalmente, pelos professores e pelas escolas. A este objetivo juntava-se
também a preocupação de inscrever a educação para os media na agenda das
políticas públicas.
Importa contextualizar um pouco. Depois de décadas em que as tomadas
de posição e os estudos neste âmbito foram liderados por organizações como a

235
Unesco e o Conselho da Europa, também a Comissão Europeia, órgão de gover-
no da União Europeia, desenvolveu ao longo de toda a primeira década do novo
século um conjunto de iniciativas e de estudos que conferiram visibilidade à
questão da media literacy, sublinhando as suas incidências e potencialidades nos
planos da educação e da cultura, do emprego e da cidadania. Um ponto saliente
desse processo foi a aprovação da Directiva 2007/65/CE do Parlamento Europeu
e do Conselho, de 11 de Dezembro de 2007, que propunha aos Estados membros
a literacia mediática como

(…) uma questão de inclusão e de cidadania na sociedade da informação de


hoje. É uma competência fundamental, não só para os jovens, mas também
para os adultos e as pessoas de idade, pais, professores e profissionais dos
meios de comunicação social.

A Convenção instituiu também um mecanismo de pressão sobre os Esta-


dos Membros no sentido da avaliação dos níveis de literacia mediática dos seus
cidadãos. Dois anos depois, uma Recomendação da Comissão Europeia de 20
de agosto de 2009 acrescentava que a aquisição e exercício de competências no
campo da comunicação e dos media permite ao cidadão “fazer escolhas infor-
madas, compreender a natureza dos conteúdos e serviços e tirar partido de toda
a gama de oportunidades oferecidas pelas novas tecnologias das comunicações.”

2. A ação do Grupo Informal sobre Literacia para os Media (GILM)

Neste quadro, um grupo de entidades públicas portuguesas decidiram, em


meados de 2009, começar a reunir-se informalmente para partilhar informa-
ções sobre (e articular) iniciativas próprias, para organizar ações e projectos co-
muns e proporcionar o encontro de pessoas, grupos e instituições preocupados
e interessados na literacia relacionada com os media1.
1
No início de 2015, integram o GILM: o Conselho Nacional de Educação (CNE), Co-
missão Nacional da UNESCO (CNU), Centro de Estudos de Comunicação e Socieda-
de da Universidade do Minho (CECS), Direção Geral de Educação do Ministério da
Educação e Ciência (DGE), Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC),
Fundação para a Ciência e Tecnologia – Dep. Sociedade de Informação (FCT), Gabinete
para os Meios de Comunicação Social (GMCS), Rede de Bibliotecas Escolares (RBE), Ra-
dio Televisão de Portugal (RTP). Integram-no também, a título individual, Maria Emília
Brederode Santos e Teresa Calçada, duas personalidades que, por caminhos diversos,

236
A primeira realização pública deste auto-designado Grupo Informal sobre
Literacia para os Media (GILM) foi o 1º Congresso Nacional sobre Literacia,
Media e Cidadania, realizado na Universidade do Minho, em Braga, em março
de 2011. Esse Congresso, de onde saiu a Declaração de Braga (Disponível em:
<http://bit.ly/1ektzVj>), foi palco para a apresentação pública dos resultados de
um estudo anteriormente encomendado ao Centro de Estudos de Comunicação
e Sociedade (CECS) da UMinho pela Entidade Reguladora para a Comunicação
Social (ERC).
Esse estudo, que pode ser consultado na íntegra no site da ERC (Disponível
em: <http://bit.ly/qcCe22>), propôs-se fazer o levantamento de projectos, ini-
ciativas e atividades de educação para os media; conhecer os actores, assuntos
e contextos do trabalho desenvolvido; e enunciar recomendações e orientações
tendentes à promoção da Educação para os Media no país, com base nos resul-
tados obtidos. Uma das suas conclusões frisava que, no final da primeira dé-
cada do século XX, a situação em Portugal englobava “projectos interessantes,
diversificados, reveladores de capacidade de iniciativa de associações, media,
escolas, entidades oficiais”, apresentando, no entanto, “um panorama geral frag-
mentário, sem direcção, de avanços e de recuos e sem grande horizonte” (ERC,
2011, p.149).
Outros parceiros do GILM tomaram iniciativas na sua esfera de ação. Assim,
o Conselho Nacional de Educação, órgão representativo de todos os agentes
educativos que se pronuncia e faz recomendações sobre aspetos das políticas
educativas, junto do Governo e do Parlamento, fez aprovar em dezembro de
2011 a Recomendação sobre Educação para a Literacia Mediática (Disponível
em: <http://bit.ly/1IWwi3u>) dirigida aos poderes legislativo e executivo, na
qual insta “a que se promova a Literacia Mediática entendida como um conjun-
to de saberes e capacidades relativas às três dimensões de acesso, compreensão
crítica e utilização criativa e responsável”. Recomenda ainda o investimento na
formação de professores e educadores nesta área, e que “se proceda à inserção
organizacional e curricular da Educação para a Literacia Mediática na Educação
para a Cidadania, através de aprendizagens transversais”.
Também a RTP, o operador público de televisão e de rádio, entendeu lançar,
em colaboração com o Ministério da Educação e Ciência, o Portal Ensina, que
edita materiais de arquivo com interesse para as várias áreas curriculares e as
disponibiliza no site da empresa. Uma das áreas incluídas no Portal é precisa-
mente a Educação para os Media (Disponível em: <http://ensina.rtp.pt/>).
possuem uma trajectória ligada às literacias e à educação para os media.

237
Ainda na linha da disponibilização de recursos de apoio – a pais, alunos,
professores e investigadores – o Gabinete para os Meios de Comunicação Social,
departamento governamental para a área dos media e um membro fundador do
Grupo Informal de Literacia para os Media, apostou na criação do portal Lite-
racia Mediática (Disponível em: <http://www.literaciamediatica.pt/>) Nele se
podem encontrar documentos de referência, sugestões de atividades, resultados
de pesquisa, legislação, informações, etc.
O mesmo Gabinete, em parceria com o CECS da Universidade do Minho,
decidiu dar corpo a um observatório sobre educação para os media e, junta-
mente com a mesma entidade e com a Rede de Bibliotecas Escolares, patrocinou
também um estudo exploratório sobre níveis de literacia para os media entre
estudantes do ensino secundário. Quer num caso, quer noutro, os trabalhos en-
contram-se ainda em curso.
Finalmente, a Direção Geral de Educação, que representa o Ministério da
Educação no GILM, tomou igualmente a iniciativa de solicitar a uma equipa
da Uminho a conceção e elaboração de um Referencial de Educação para os
Media, quer como dimensão da Educação para a Cidadania quer como contri-
buto para uma abordagem transversal às diferentes áreas do currículo, desde a
educação pré-escolar aos ensinos básico e secundário. Esse documento, cuja au-
toria envolveu também, na equipa responsável, o Dr Eduardo Jorge Madureira,
do projeto ‘Público na Escola’, esteve um mês em debate público, para receber
contributos dos atores e instituições interessados, após o que foi elaborada a
versão final, entretanto aprovada pelo Secretário de Estado do Ensino Básico e
Secundário em abril de 2014 (Disponível em: <http://bit.ly/1yjevTY>).
Enquanto grupo, o GILM tem organizado também várias iniciativas nacio-
nais, de que se destacam: os congressos bienais de Literacia Media e Cidada-
nia, incluindo a publicação das respetivas atas (o terceiro ocorre em 2015 em
Lisboa) e a operação nacional Sete Dias com os Media (Disponível em: <www.
literaciamediatica.pt/7diascomosmedia>), uma iniciativa aberta a toda a socie-
dade, que tem anualmente lugar em torno do dia 3 de maio, dedicado pela ONU
à liberdade de imprensa. A ideia é que pessoas, grupos e instituições procurem,
no seu âmbito, com criatividade e com os meios possíveis, fazer dos media
motivo de interrogação e ação.
É ainda cedo para proceder a uma avaliação do contributo deste Grupo
Informal para a efetividade de uma politica pública – continuada, consistente
e participada, no âmbito da literacia para os media. A informalidade do grupo
dá-lhe versatilidade na ação, mas também representa uma debilidade. De tudo
aquilo que já fez, há matérias que são de impacto conjuntural e outras que po-

238
dem ser de efeitos mais duradouros. Seja como for, há um caminho que está
a fazer-se. Não há ainda um quadro geral de ação e um sistema de incentivos
para as iniciativas no terreno. É verdade que aquilo que é feito nas escolas, nos
centros de pesquisa e noutras instituições vai muito para além do que passa
pelo GILM, como se pressente dos congressos bienais. Não referimos aqui a
crescente internacionalização, orientada sobretudo para o espaço europeu e
iberamericano. Não evocamos o aspeto da formação de formadores – com os
seus progressos e retrocessos no ensino superior. Não sublinhamos o que já vai
sendo feito, bem como as potencialidades ainda por explorar no que tange ao
envolvimento de comunicadores e jornalistas e respetivas instituições, no tra-
balho de educação para os media (ver, por exemplo, <www.medialab.dn.pt/> e
<www.mediasmart.com.pt/>). Enfim, não aludimos ao importante esforço que,
no âmbito da Direção Geral de Educação tem vindo a ser feito, no sentido de
valorizar as produções dos alunos e das escolas, nomeadamente rádios e TVs
educativas (Disponível em: <http://rten.dge.mec.pt/>), jornais escolares (Dis-
ponível em <http://jornaisescolares.dge.mec.pt/>), etc.
Ficam, neste rápido apanhado, referências a iniciativas, ações e dinamis-
mos que podem servir para divulgar um pouco do que se faz e, eventualmente,
para desenvolver intercâmbios e trabalho em rede num quadro geográfico mais
largo. Ficam por enunciar e aprofundar as conceções e orientações teóricas e
metodológicas vigentes nos trabalhos desenvolvidos nesta área, o impacto de
uma deriva tecnicista na educação para os media e, também, as buscas no sen-
tido de tornar esta área relevante para a vida das pessoas e das comunidades,
relacionando-a com a saúde, a formação ao longo da vida, o desenvolvimento
comunitário, etc. Outras oportunidades surgirão.

Referências bibliográficas

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LIVINGSTONE, Sonia. What is Media Literacy? Intermedia, v. 32, n. 3, p. 18-20.
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239
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PINTO, Manuel (Coord.); PEREIRA, Sara; PEREIRA, Luís; FERREIRA, Tiago
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tiva e horizontes em tempos de mudança. Revista Ibero-Americana, Mayo-
-Agosto 2003, n. 32, p. 119-143.
POTTER, W. James. Theory of media literacy - A cognitive approach. Califor-
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SOARES, Ismar de Oliveira. Educomunicação: O conceito, o profissional, a
aplicação. São Paulo: Paulinas, 2011
TISSERON, SERGE. Manual para pais cujos filhos veem demasiada televisão.
Lisboa: Edições 70, 2007.

240
Eixo 8.
Análise de programas/produtos
midiáticos voltados para crianças e/ou
jovens
Programação infantil da TV Brasil: uma análise
sobre a questão da qualidade

Inês Sílvia Vitorino Sampaio


Andrea Pinheiro Paiva Cavalcante

1. Introdução

No Brasil, a televisão ainda se destaca por sua presença marcante na vida


de milhões de crianças e adolescentes, estando presente em 98% dos lares do
país1. Mesmo em um contexto marcado pela convergência midiática (JEN-
KINS, 2009), a média de assistência à TV pelo público brasileiro é das mais
expressivas2. Nas últimas décadas, é possível identificar um deslocamento
significativo da oferta de programações infantis para as televisões a cabo, em
um contexto em que predomina a lógica mercadológica na oferta dos produtos
comunicacionais exibidos. A TV aberta ainda é, contudo, a mais acessada pelo
público brasileiro3. É neste cenário que é criada, em 2008, a TV Brasil, como
1
Cf. NIC.BR. TIC Domicíclios e empresas, 2013. Coordenação executiva e editorial
Alexandre Barbosa. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2014. Disponível
em: www.cetic.br/pesquisa/domicilios/indicadores Acesso em 10 de janeiro de 2015.
2
A população brasileira assiste em média 4h31 por dia de televisão, de 2ª a 6ª-feira, e
4h14 nos finais de semana, sendo que a maioria o faz todos os dias da semana (73%). Cf.
Brasil. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social. Pesquisa brasileira
de mídia 2015 : hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Brasília: Sec-
om, 2014. Disponível em http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesqui-
sas-quantitativas-e-qualitativas-de-contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-mid-
ia-pbm-2015.pdf Acesso em 20 de fevereiro de 2015.
3
Apenas 26% dos lares brasileiros dispõem de um serviço pago de televisão, 23% por
antena parabólica e 72% possuem acesso à TV aberta. Cf. Brasil. Presidência da Repúbli-
ca. Secretaria de Comunicação Social. Pesquisa brasileira de mídia 2015 : hábitos de
consumo de mídia pela população brasileira. Brasília : Secom, 2014. Disponível em
http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-e-qualita-
tivas-de-contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf Acesso em 20 de
fevereiro de 2015.

242
uma TV pública com farta programação para crianças e adolescentes, sem a
usual exibição de comerciais como modelo de financiamento.
O presente texto problematiza alguns aspectos abordados na pesquisa “Qua-
lidade na programação infantil da TV Brasil”, realizada no período de 2010 a
2012, cujo objetivo principal foi avaliar a qualidade da programação infantil des-
ta emissora pública de televisão4.
Para a avaliação da efetivação do compromisso da TV Brasil em promo-
ver uma comunicação de qualidade para as crianças brasileiras, recorremos à
literatura acadêmica que segue, em linhas gerais apresentada nesse texto e em
diretrizes internacionais sobre o tema, tais como, a diretiva “TV sem Fronteiras”
da Comissão Europeia5, a Carta da Televisão para Crianças6 (1995), a Decla-
ração Universal sobre a Diversidade Cultural (2002)7, o Estatuto da Criança e
do Adolescente (1990)8 e o Manual da Classificação Indicativa (2006)9. Além
disso, ela considerou como parâmetros analíticos os princípios e objetivos esta-
belecidos na lei de criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC)10.
A pesquisa foi realizada com base na combinação de procedimentos meto-
dológicos de investigação quantitativa e qualitativa. Na abordagem quantitativa
buscou-se apresentar uma visão mais geral da grade de programação infantil
desta emissora, constituída por 23 programas, responsáveis por 7 (sete) horas
de programação específicas para o público infantil e de adolescentes. A amostra
totalizou 221 episódios exibidos no período de outubro de 2010 a janeiro de

4
A pesquisa foi coordenada pelas autoras deste artigo e contou com a colaboração dos
bolsistas: Andrea Acioly, Camila Torres, Nut Pereira, Samaísa dos Anjos e Sarah Coelho.
Os resultados da investigação foram publicados na obra SAMPAIO, Inês e CAVALCANTE,
Andréa. Qualidade na Programação Infantil da TV Brasil. Florianópolis: Insular, 2012.
5
A diretiva Televisão sem Fronteiras foi publicada em 1989 e revista em 1997.
6
Publicada em CARLSSON, Ulla (Org.). A criança e a violência na mídia. Brasília:
UNESCO, 1999.
7
UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Disponível em <http://
unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf>. Acesso em 10 out.2010.
8
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em 10 out.2010.
9
ROMÃO, José Eduardo; CANELA, Guilherme; ALARCON, Anderson (orgs.) Manual
da Nova Classificação Indicativa. Brasília: Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de
Justiça. Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação, 2006.
10
A EBC foi criada pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva em outubro de 2007, ao
editar a Medida Provisória 398, depois convertida pelo Congresso na Lei 11652/2008.

243
2011. Foi o primeiro estudo brasileiro a considerar a programação infantil de
uma emissora de televisão com esse nível de abrangência.
Os seguintes programas compunham, na ocasião, a programação infantil da
TV Brasil: A Turma do Pererê, Cocoricó, Um Menino muito Maluquinho, TV Piá,
Catalendas, Dango Balango, Janela Janelinha, ABZ do Ziraldo, Castelo Rá-Tim-
-Bum, Curta Criança, Vila Sésamo, Pequeno Vampiro, Cidade do Futuro, Esqua-
drão sobre Rodas, Connie, a vaquinha, Os pezinhos mágicos de Franny, Louie,
Mecanimais, Thomas, Princesa Sherazade, Bill Tampinha e sua melhor amiga
Corky, Barney e seus amigos e os Heróis da Praia.
Neste texto, daremos prioridade à apresentação e discussão dos dados
quantitativos da pesquisa. A análise guiou-se por critérios e indicadores de
qualidade no que concerne à programação infantil, alguns dos quais serão
apresentados e discutidos na próxima seção.

2. Critérios e indicadores de qualidade na programação infantil

Para desenvolver uma análise acerca da qualidade da programação infan-


tojuvenil, assumimos como pressuposto que existem critérios genéricos de
qualidade aplicáveis à análise de qualquer obra audiovisual. Se tomarmos, por
exemplo, a classificação de Mulgan (1990) sobre os critérios de qualidade na
televisão, identificamos claramente essa conceituação mais ampla.
A qualidade, de acordo com o autor supracitado, pode ser vista como: a)
atributo meramente técnico, que permite considerar a utilização adequada dos
recursos expressivos do meio; b) capacidade de traduzir em produtos as deman-
das da sociedade/público; c) competência para explorar de modo inovador os
recursos de linguagem; d) capacidade de promover mobilização, participação e
comoção nacional em torno do interesse público; e) competência na promoção
de produtos culturais que valorizem as diferenças, individualidades, minorias e
os excluídos; e f) compromisso com a diversidade.
No caso dos itens a) e c), tratam-se de critérios associados mais diretamente
à natureza da obra. Os demais critérios b), d) e e) só ganham sentido na relação
com o público, suas necessidades, interesses e valores. Por isso mesmo, pensar a
relação da televisão com o público infantil e adolescente na sociedade contem-
porânea implica a consideração de um conjunto amplo de processos que dizem
respeito aos seus vínculos sociais e ao desenvolvimento de suas capacidades
para lidar consigo mesmo e com os outros, em um mundo que se torna a cada

244
dia mais complexo.
Acreditamos, por isso mesmo, que é fundamental compreender a questão da
qualidade da TV não como um atributo isolado da obra audiovisual em si, mas
em uma perspectiva relacional com os diferentes agentes do processo comuni-
cativo. Nessa linha, Richeri e Lasagni (2006, p. 79-80) postulam que a discussão
sobre qualidade televisiva deve considerar “a relação com o produto, com o con-
texto da produção, com o contexto da emissão e com a relação que o programa
instaura com o público”.
Ante às inúmeras proposições acerca dos critérios de qualidade para ava-
liação de obras audiovisuais, os autores destacam um consenso [...] “el sistema
televisivo debe ofrecer una amplia elección de programas, que deben diversificarse
como gêneros, como contenidos, como tipologias y estilos, como posiciones y opi-
nions expresadas...” (RICHERI; LASAGNI 2006, p. 22).
Em especial, no caso da televisão pública, o critério da diversidade torna-se
ainda mais relevante, tendo em vista que o compromisso das emissoras públicas
de dialogar com todos os cidadãos. Se considerarmos, adicionalmente, a pro-
gramação dirigida ao público infantil e adolescente, há ainda um fator adicional
a ser considerado, visto que, no contato com a televisão pública, a criança e o
adolescente devem ter resguardada a possibilidade de conhecer e apropriar-se
das possibilidades comunicativas e expressivas de linguagens, formatos e gêne-
ros, em um momento que é para eles ainda de formação.
Como postula Rincón a televisão pública tem, diante de si, o desafio de:

hacer una televisión que funcione como lugar de encuentro de las diver-
sidades estéticas, étnicas, de sensibilidade y ambientales: scenario de me-
moria para compreender la ciudadanía en estos tempos comunicativos del
olvido; que privilegie el campo de la expresssión, la necessidade de voz y la
participación del ciudadano por encima de programar con base en conte-
nidos estructurados en intencionalidade ilustrada o de los políticos; y que
recupere para la televisión el ritual, el juego, el goce propio de la vida, más
que los contenidos, los expertos, los textos de salón de classe. (RINCÓN,
2005, P.275)

A diversidade, segundo Richeri e Lasagni (2006), poderia ser apreciada em,


pelo menos, sete dimensões: diversidade substancial (diferentes tendências e
pontos de vista); diversidade quanto aos tipos de programas (gêneros); diver-
sidade dos canais; diversidade estilística (expressão singular dos programas em
termos de estilo, características e valores); diversidade na distribuição de recur-

245
sos; diversidade em relação às audiências; e diversidade da qualidade (multidi-
mensionalidade da qualidade).
Considerando, em especial, a questão da diversidade de públicos e valores
que uma determinada sociedade comporta, a qualidade na comunicação tele-
visiva se esteia numa espécie de pacto comunicacional que se estabelece entre
a emissora e seu público, que deve sempre ser levado a sério. No caso especí-
fico das crianças e dos adolescentes, implica reconhecer sua condição peculiar
de sujeitos em desenvolvimento, portanto, que devem ser vistos em sua singu-
laridade, com capacidade de expressar a própria voz: “los niños no deben ser
temática construída desde los adultos, sino campo expressivo, con voz propia
y autoridade de sentido; los niños deben dejar de ser contenido y repensados
como actores sociales.” (RINCÓN, 2005, p. 276).
Esta proposição, especialmente se considerarmos a condição de sujeitos em
desenvolvimento de crianças e adolescentes, remete também ao desafio de uma
educação estética, que potencialize um outro modo de olhar o mundo, à expe-
riência do sensível, que não se faz imediatamente visível. Como postula Jobim
e Souza (2005, p. 27), implica “formar pessoas capazes de criar um novo modo
de se acercar da verdade que se refugia nos objetos, nas paisagens, no rosto de
uma pessoa; a formação estética deve permitir, ainda, que se recupere um modo
arguto de aprender e interpretar as consequências positivas e negativas do pro-
gresso e da civilização na vida do homem”.
Tais proposições estão em sintonia com os princípios investigativos que
compartilhamos na pesquisa de que a televisão e, de modo particular, a TV
pública deve estar comprometida com a formação de um público de cidadãos,
desvinculando-se do modelo que reduz a televisão à condição de mero instru-
mento promotor de vendas junto a um público de consumidores. Este é o debate
conduzido por Rincón, Fuenzalida, Orosco-Gómes, Martin-Barbero, entre ou-
tros na obra “Televisión Pública: del consumidor al ciudadano”11. Assumindo
o caráter conflitivo dos interesses e discursos sobre a TV e o caráter desafiador
do estabelecimento de parâmetros avaliativos de sua qualidade, os autores su-
pracitados reconhecem que a TV pública não tem que estar condenada à mar-
ginalidade e à irrelevância social. Por isso mesmo, ao “se referir à sociedade,
ao público, às gentes e às pessoas” deve ser “útil”, ou seja, deve tratar do que
importa ao seu público (FUENZALIDA, 2005).
Como destaca Tur Viñes (2005), estudos promovidos pela Australian Broad-

11
RINCÓN, Omar. Televisión Pública: del consumidor al ciudadano. Buenos Aires:
La Crujía, 2005.

246
casting Authority (ABA), a Annemberg Public Policy Center (APPC) e pelo Con-
selho Nacional de Televisão no Chile (CNTV) assinalam o caráter multifatorial
do conceito de qualidade, como vimos salientando nesta reflexão, abrangendo
os aspectos audiovisuais, de conteúdo, do entretenimento, do cumprimento das
regulações e relativas à oferta de programas/publicidade, aspectos que não se-
rão, contudo, abordados nesse texto.
Assim, embora outros critérios de qualidade indicados na literatura acadêmi-
ca internacional sobre o tema tenham norteado a nossa análise da programação
infantil, tais como: entretenimento, qualidade estética, envolvimento, compreen-
sibilidade, inocuidade, credibilidade e modelos de conduta, reconhecemos que o
critério da diversidade assumiu um caráter estruturante. Ressaltamos, ainda, que
a questão da diversidade na pesquisa “Qualidade na Programação infantil da
TV Brasil” envolveu um conjunto mais amplo de aspectos (formatos, gêneros,
linguagens etc). Para efeito deste artigo, contudo, nosso foco recairá em apenas
dois: procedência dos programas e representações de indivíduos e grupos.

3. Análise da qualidade da programação infantil sob o enfoque da


diversidade

A análise quantitativa da programação infantil da TV Brasil, desenvolvida


com o propósito de avaliar a programação voltada para o público infantil em
seu conjunto, envolveu duas dimensões analíticas: a avaliação da oferta de pro-
gramas e a consideração de uma amostra de episódios, exibidos no período de
outubro de 2010 a janeiro de 2011.
A análise da oferta de programas infantis da emissora supracitada conside-
rou aspectos gerais relativos à composição dos programas, focando os aspectos
de procedência, tempo de emissão, temática, formato, gênero e faixa etária. Tais
aspectos foram examinados com base nos critérios de distribuição equilibrada
da oferta12, diversidade e inovação/criatividade.
No que concerne aos aspectos gerais da linguagem audiovisual, a análise se
concentrou em elementos que impactam, mais diretamente, na composição da
identidade do programa como forma narrativa, narrador, personagem, cenogra-
fia, figurino, vinheta e trilha sonora.
Na impossibilidade de abordar todos esses aspectos neste texto, optamos por
12
A análise teve como parâmetro aspectos relativos à procedência dos programas, as
faixas etárias contempladas etc.

247
focar a reflexão, na presente discussão, nas questões de procedência das produ-
ções e de representação de indivíduos e/ou grupos, mais especificamente quanto
aos aspectos de classe social, gênero e cor da pele. Elegemos tais recortes por-
que consideramos que, com base neles, é possível ter uma compreensão ampla
do critério diversidade, um dos mais importantes para caracterizar a qualidade
na oferta da programação infantil de qualquer emissora. Vale ressaltar, ainda,
como evidenciado na pesquisa, ele abrange muitas outras dimensões além das
reportadas neste texto.

4. Procedência das produções televisivas

A pesquisa considerou inicialmente a procedência das produções no cenário


global. A análise deste parâmetro possibilitou revelar a predominância de pro-
gramas internacionais na oferta geral da emissora. Mais da metade da progra-
mação infantil da TV Brasil tinha, na ocasião, origem internacional, atingindo
52,17%.
Tendo em vista a missão da EBC e, por conseguinte, da TV Brasil como
emissora pública, voltada à promoção da cultura nacional13, a prevalência de
conteúdos internacionais na sua oferta de programação infantil revela certo dis-
tanciamento do cumprimento de sua missão. A constatação deste fato é preocu-
pante, especialmente se considerarmos o caráter estratégico do conhecimento
da própria cultura para a formação de nossas crianças e adolescentes e sinaliza,
por isso mesmo, a necessidade de enfrentamento desta questão.
Ao detalharmos, um pouco mais, a análise do critério de procedência das
produções internacionais, verificamos a predominância de programas produzi-
dos na Europa (66,56%) e no eixo Estados Unidos-Canadá (25%) e a ausência
da produção oriunda de países da África e da América Latina.
A presença significativa de produções europeias constitui um diferencial
importante em relação às redes comerciais, ao estabelecer um deslocamento
no que concerne às produções dos EUA e do Japão, permitindo que a criança
brasileira tenha acesso a uma produção mais diversificada em termos de con-
teúdo e padrão estético. Identificamos, contudo, uma concentração acentuada

13
Cf. objetivo previsto no Artigo 3o da Lei 11652/2008.– “promover parcerias e fomen-
tar a produção audiovisual nacional, contribuindo para a expansão de sua produção e
difusão”. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/empresa/legislacao/>. Acesso em: 10
out. 2010.

248
da produção francesa, em detrimento da de outros países europeus, como por
exemplo, a Alemanha, um dos pioneiros na oferta de programação infantil, re-
conhecido internacionalmente pela qualidade de sua produção audiovisual para
crianças, assim como de Portugal, pelos aspectos culturais que aproximam esses
dois países.
Dentre as lacunas identificadas na pesquisa em relação à produção inter-
nacional, consideramos a ausência de programas da América Latina a mais
grave, não só por se tratar do continente onde o Brasil está situado, mas tam-
bém em razão dos processos históricos e culturais que nos unem. Ainda que
reconheçamos que a produção latino-americana não tenha o mesmo vigor, em
termos de volume de produção, comparada às produções europeia, americana
e canadense, ela existe, tem reconhecimento internacional quanto à sua quali-
dade e, sobretudo, fala de um contexto comum às nossas crianças.
Considerar a procedência dos programas como categoria de análise permi-
tiu, ainda, verificar que a programação identificada como de origem nacional
era majoritariamente produzida na região Sudeste, totalizando 88,89%.14. Sem
dúvida, é importante ter em conta a condição histórica de produtora de conteú-
dos audiovisuais da região Sudeste, o que, em alguma medida, colabora para ex-
plicar a prevalência das produções dessa região do país. Este fato, contudo, não
pode ser justificativa para a ausência de produções das regiões Centro-Oeste,
Sul e Nordeste e a limitada representação do Norte, apenas com um programa,
o Catalendas. Observamos, ainda, que até mesmo nos casos de dublagem das
séries internacionais, predomina a concentração nos sotaques do Sudeste, em
especial, do Rio de Janeiro e São Paulo.
Afinal, estamos tratando de uma TV pública, o que torna esta lacuna uma
deficiência grave já que, segundo a própria TV Brasil15, ela teria, por princí-
pio, a característica de complementariedade entre os sistemas privado, pú-
blico e estatal, devendo promover a cultura nacional, estimular a produção
regional e a produção independente16.
Entendemos que, ao concentrar a programação infantil em produções de
apenas uma região, em um país com as dimensões do Brasil, a pluralidade e a
diversidade dos conteúdos exibidos não estão sendo asseguradas. Embora reco-
nheçamos a qualidade das produções exibidas pela emissora e identifiquemos

14
Vale destacar que, em relação ao critério de procedência, o Rio de Janeiro responde
sozinho por 55,56% da programação infantil nacional da emissora.
15
TV Brasil. Site oficial. http://tvbrasil.org.br/.
16
Cf. Artigo 2o. da Lei 11652/2008.

249
que haja um esforço de se alcançar essa pluralidade em programas específicos,
como o TV Piá, por exemplo, consideramos que a presença de um programa
com características regionais plurais não é suficiente para enfrentar o problema,
cuja solução implica um conhecimento efetivo de programas oriundos das re-
giões Centro-Oeste, Nordeste, Norte e Sul na grade de programação da emissora.

5. Representação de indivíduos e/ou grupos nas produções


exibidas

Os indicadores de presença e predominância de personagens nas produções


exibidas, vistos sob a ótica das singularidades de gênero, classe social, faixa etá-
ria, cor da pele e necessidade especial permitem avaliar a representatividade
com que diferentes indivíduos e/ou grupos sociais aparecem na programação da
TV Brasil, possibilitando avaliar se os critérios da diversidade e verossimilhança
em relação aos padrões brasileiros estão sendo minimamente considerados.
Em um dos instrumentos da pesquisa quantitativa, a Ficha de Episódio, foi
possível mapear a presença e a predominância de personagens/apresentadores
classificados quanto aos elementos: classe social, gênero, cor da pele, faixa etária
e pessoa com deficiência. Neste texto, consideraremos a questão da represen-
tação apenas do ponto de vista dos aspectos classe social, cor da pele e gênero.

6. Análise do fator presença

Em relação ao fator classe social, em muitas narrativas, este não foi um fator
aplicável (50,68%). Identificamos, nos demais casos envolvendo o conjunto das
produções analisadas, a presença de personagens associados à classe média em
40,27% das narrativas, sendo ainda limitada a presença de personagens dos se-
tores populares (13,57%) e, por consequência, de narrativas que valorizem suas
vivências, suas estórias, que permanecem, em larga medida, invisíveis.
Em relação ao fator cor da pele, identificamos que, no que se refere ao fa-
tor presença, há certo equilíbrio na representação de personagens brancos
(78,28%), negros (60,63%) e pardos (61,09%). Veremos, mais adiante, que ao
considerarmos o fator predominância, temos uma alteração clara nesse quadro.
Amarelos e indígenas, por sua vez, têm menor presença nas narrativas, respec-

250
tivamente 18,55% e 11,76%, sendo que em 13,57% dos casos, o critério não foi
considerado aplicável.
Em relação à questão de gênero, verificamos praticamente uma equivalência
dos dois gêneros, o que merece destaque. A representação feminina foi de 96% e a
masculina foi de 100%. O fato de os programas apresentarem, em termos da pre-
sença certo equilíbrio na exibição de homens e mulheres nas narrativas é impor-
tante pela representatividade da mulher na população brasileira17, assim como
do próprio movimento de emancipação feminina na sociedade contemporânea.
É válido ressaltar, ainda, o lugar do feminino nas narrativas analisadas.
Quando apareceram, as meninas, regra geral, estavam em pé de igualdade em
relação aos meninos, desempenhando atividades tão importantes quanto eles.
Dessa forma, a TV Brasil, destaca-se, no contexto nacional, ao problematizar,
por meio de sua programação infantil, o estereótipo da mulher submissa e infe-
riorizada, presente em tantas narrativas exibidas nas emissoras privadas.
Sem dúvida, o fator procedência dessas produções, muitas das quais euro-
peias, tem impacto em todos esses elementos de representação e se por um lado,
permitem às nossas crianças o conhecimento e a valorização de outras cultu-
ras, são restritas quanto às possibilidades de oferecer a parcelas expressivas de
crianças brasileiras, em especial, as negras e dos setores populares, referenciais
de identificação.

7. Análise do fator predominância

A consideração da predominância nas representações em questão constitui


um fator mais refinado para identificar o uso de certos modelos classificatórios
que podem não se fazer visíveis apenas com análise do fator presença. Como
veremos, algumas tendências no modo de representar indivíduos e grupos an-
teriormente indicadas, tornam-se mais evidentes, podendo em alguns casos,
serem revistas.
No que concerne ao fator classe social, identificamos a predominância
de personagens de classe média em 33,48% dos episódios, enquanto as clas-
ses identificadas como popular e alta foram predominantes em apenas 3,62%

17
De acordo como censo de 2010, existem 95,9 homens para cada 100 mulheres. Em
termos numéricos temos que a população brasileira é composta por 97.342.162 mulheres
e 93.390.532 homens. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/
noticia_visualiza.php?id_noticia=1766. Acesso em 28 maio 2012.

251
e 1,81%, respectivamente. Nos outros episódios, não foram identificadas pre-
dominâncias (9,95%) ou o critério não foi considerado aplicável (50,68%). A
prevalência da classe média, neste caso, é compreensível tanto por oferecer uma
referência societária mais condizente com parâmetros igualitários, quanto por
garantir aos programas um potencial de diálogo amplo com o público. Em um
país como o Brasil, contudo, no qual um número expressivo de crianças inte-
gra os setores populares, a questão da invisibilidade com a qual este segmento
aparece mesmo em uma televisão pública é um desafio a ser enfrentado pela
produção audiovisual nacional.
Em relação a questão da cor da pele, a pesquisa revela que predominância de
brancos nos episódios analisados é de quase 50%. Os negros e pardos aparecem,
regra geral, quando a narrativa implica a presença de grupos. Contudo, quando
a estória tem apenas um personagem, este é quase sempre branco.
Na pesquisa, os pardos estiveram em situação de destaque em apenas 11,31%
e os negros em somente 2,26% da amostra18. Ainda que estes dados estejam as-
sociados, em alguma medida, à presença expressiva da produção audiovisual
europeia na TV Brasil, como sinalizado anteriormente, a representação inex-
pressiva dos negros e relativamente baixa de pardos na programação de uma
emissora pública revela a existência de um processo de invisibilidade de tais
grupos e a necessidade de enfrentamento deste tema pela produção audiovisual
nacional. Afinal, é nosso entendimento que:

Mesmo considerando a questão da licença poética, que implica o reconhe-


cimento da liberdade criativa das narrativas ficcionais, as quais não deve-
riam estar presas a uma equação matemática de correlação precisa com o
mundo real, é importante reconhecer que estamos tratando de milhões de
pessoas que têm o direito de narrar as próprias estórias, cantar e dançar os
sons de sua cultura, ver e serem vistas em sua beleza e formas peculiares e/
ou em suas misturas (SAMPAIO; CAVALCANTE, 2012).

Já em relação à questão de gênero, a predominância expressiva do gênero


masculino foi surpreendente e intrigante, especialmente se compararmos este
segundo resultado em relação aos citados no tópico anterior. Apesar de a pre-
sença feminina ter sido de quase 100% nos episódios assistidos e de reconhe-
cermos que as meninas, quando aparecem, não são apresentadas em posições

18
De acordo com o censo do IBGE de 2010, os pardos (43,1%) e os pretos (7,6%) somam 50,7%
da população brasileira. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ poder/913919-nu-
mero-de-pobres-pardos-ou-pretos-e-quase-o-triplo-do-de-brancos. shtml>.

252
menos relevantes que os meninos, eles são maioria e em grande parte assumem
papéis de protagonistas, com 69,23% de predominância, contra apenas 13,12%
de predominância feminina nos episódios analisados.
Assim, é fundamental que esta prevalência do gênero masculino apontada
na pesquisa – que pode comprometer o potencial igualitário identificado ante-
riormente – possa ser também objeto de atenção por parte do poder público.
Em outras palavras, tanto em temos de políticas de fomento à produção audio-
visual nacional, quanto na composição da programação infantil da TV Brasil,
é importante que se promovam narrativas que problematizam esta questão de
gênero.

8. Considerações finais

Como procuramos evidenciar neste texto, mesmo com o processo de ex-


pansão significativa do acesso às TICs no país, a televisão continua a ocupar um
lugar de destaque na vida dos brasileiros, com implicações importantes na for-
mação de crianças e adolescentes. Neste contexto, a criação da TV Brasil, como
emissora pública em 2008, constitui um avanço importante, ao atuar como sis-
tema complementar de comunicação em relação às possibilidades de oferta das
emissoras privadas e estatais.
Com base em análise específica da programação infantil da TV Brasil, de-
senvolvida no âmbito da pesquisa “Qualidade na programação infantil da TV
Brasil”, esta programação foi reconhecida como sendo uma programação de
qualidade. A programação exibida atende, ainda que parcialmente, a critérios
básicos, tais como: diversidade, inovação/criatividade, pertinência/coerência,
promoção do desenvolvimento integral da criança, proposição de modelos de
conduta construtivos, sintonia com o mundo de experiência da criança, entre
outros. Além disso, considera os princípios e objetivos da emissora de “desen-
volver a consciência crítica do cidadão, mediante programação educativa, artís-
tica, cultural, informativa, científica e promotora de cidadania19”.
Há aspectos importantes dessa programação, contudo, que podem ser apri-
morados. Dentre eles, ficou evidente a necessidade de se estabelecer um melhor
equilíbrio desta programação quanto à procedência dos produtos audiovisuais
exibidos, assim como relativos às representações de indivíduos e grupos em sua

19
Cf. Art. 3o. da Lei 11652/2008. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/empresa/leg-
islacao/>. Acesso em: 10 out. 2010.

253
programação.
Como demonstrado, nesta investigação, parcela expressiva da programação
infantil exibida pela TV Brasil tem procedência internacional, com ênfase nas
produções europeia canadense e americana. Causa estranheza, neste aspecto, a
ausência de programas latino-americanos na grade, tanto por tratar-se do con-
tinente onde o Brasil está situado, como em razão dos processos históricos e
culturais que nos irmanam. Além disso, esta preponderância da produção inter-
nacional distancia a TV Brasil de sua missão de fomentar a cultura e a produção
audiovisual nacional.
A pouca expressividade de programas infantis da região Norte e a ausência
de programas das regiões Nordeste, Centro-oeste e Sul, contrastam, por sua vez,
no cenário nacional, com a prevalência de programas do Sudeste, concentradas
ainda em um único Estado. Deste modo, fica comprometido o atendimento pela
emissora do princípio da regionalização, com implicações indesejáveis do ponto
de vista da diversidade de conteúdos, linguagens, estéticas etc..
Vale ressaltar, contudo, que a superação do desequilíbrio no processo de
produção e exibição das produções regionais no país, demandam uma ação do
poder público, que extrapola a intervenção unilateral da TV Brasil. Ela implica
a definição de uma política de fomento de obras audiovisuais para crianças em
todo o país, sem a qual a possibilidade de uma oferta de produção audiovisual,
minimamente equilibrada, permanecerá seriamente comprometida.
Em relação à consideração da diversidade de representações de indivíduos e
grupos nas narrativas audiovisuais exibidas na TV Brasil, identificamos que, em
termos do fator presença, não se verifica um processo de invisibilização destes
em relação a fatores como classe social, gênero e cor da pele. Meninos e meni-
nas, de diferentes idades, classes sociais e etnias aparecem nas narrativas, o que
já é um elemento valioso a ser considerado. Contudo, a noção de preponderân-
cia em relação aos mesmos fatores permite compreender que a questão é mais
complexa, visto que predominâncias usuais presentes nas comunicações comer-
ciais se repetiram. Nesse sentido, esta investigação aponta a necessidade de se
promover maior representação de crianças dos setores populares, de se ampliar
a presença de protagonistas pertencentes aos grupos étnicos constituídos por
pardos, negros e indígenas, superando o predomínio de protagonistas brancos,
assim como de superar o predomínio marcante de protagonistas masculinos
evidenciado na pesquisa.
Vale, nesse sentido, o registro de que as questões sinalizadas acerca dessas
produções infantis se associam fortemente à procedência internacional dessas
obras que, se por um lado, contribuem para enriquecer o repertório cultural
das crianças e adolescentes brasileiros, tendem a valorizar padrões corporais e

254
simbólicos correlatos aos seus próprios contextos, os quais se distanciam sobre-
maneira da realidade de parcela expressiva das crianças brasileiras.
Para finalizar, gostaríamos de reconhecer uma limitação desta pesquisa: o
fato de que a análise desenvolvida se restringe a abordagem da oferta de pro-
gramas infantis da TV Brasil, feita sob olhar de especialistas adultos. O desen-
volvimento de outras pesquisas que escutem as crianças e adolescentes sobre a
programação infantil da TV Brasil faz-se, portanto, absolutamente necessário.

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256
Explicar o mundo às crianças: análise de espaços
noticiosos dirigidos ao público infantojuvenil

Sara Pereira
Joana Fillol
Patrícia Silveira

1. Introdução: as crianças e as notícias

O estudo da relação das crianças com as notícias tem captado a atenção de


investigadores de diferentes áreas, tendo proliferado nos últimos anos as pes-
quisas centradas nesta problemática (CARTER et al., 2009; LEMISH; PICK-
-ALONY, 2013; DELORME, 2013; BRITES, 2013; CONDEZA et al., 2014;
ALON-TIROSH; LEMISH, 2014). Destes estudos sobressaem dois ângulos de
abordagem principais: (1) a receção das notícias pelas crianças, procurando
estudar as suas perceções e representações, as suas reações emocionais e o im-
pacto na socialização política e no envolvimento cívico; (2) a produção e oferta
de espaços e de conteúdos noticiosos para o público mais novo. Num outro
ângulo de abordagem, podemos ainda registar as pesquisas sobre a representa-
ção das crianças e da infância nas notícias, mais especificamente, na imprensa e
na televisão (DROTNER, 2013; OLSON; RAMPAUL, 2013; MARÔPO, 2013;
RAMOS et al., 2013; PONTE, 2005 e 2009; FEILITZEN, 2002).
Os estudos centrados na receção, ou seja, nas crianças como público, têm
mostrado que as notícias fazem parte das suas vidas, assumindo um papel im-
portante no seu processo de socialização e no modo como conhecem o que se
passa no mundo, ainda que muitas vezes não sejam elas diretamente a procurar
informação sobre os acontecimentos da atualidade (LEMISH; GÖTZ, 2007).
De acordo com alguns autores (CONDEZA et al., 2014; CARTER et al., 2009;
HUJANEN; PIETIKÄINEN, 2004), as crianças acompanham as notícias todos
ou quase todos os dias, sobretudo a partir da televisão, apresentando-se esta
como o principal meio de acesso das famílias aos acontecimentos do mundo.
Estes estudos revelam também que as crianças compreendem o valor das notí-
cias e demonstram interesse pela informação, embora gostassem que as notícias

257
fossem mais adaptadas aos seus interesses e necessidades (ALON-TIROSH; LE-
MISH, 2014). Perspetivando as crianças como sujeitos ativos, com capacidade
para avaliar e interpretar as mensagens, bem como para expressar a sua opinião
sobre as notícias que lhes interessam, as pesquisas mais recentes neste âmbito
mostram que o acompanhamento da atualidade melhora o conhecimento de
aspetos relevantes da sociedade e do mundo, ao mesmo tempo que promove a
formação de opinião sobre o que se passa em seu redor (CARTER et al, 2009).
Estes resultados, provenientes de estudos internacionais, são corroborados
por uma pesquisa de doutoramento em curso no Centro de Estudos de Co-
municação e Sociedade da Universidade do Minho1. As crianças participantes
neste estudo português referem que gostariam de ter acesso a mais notícias re-
lacionadas com assuntos do seu interesse - como sejam, o desporto, a música,
os acontecimentos da História (de Portugal e do mundo), o cinema, a educação,
os animais, a ciência e o meio ambiente – e identificam os temas relacionados
com a política e a economia como os mais desinteressantes, considerando-os
enfadonhos e repetitivos, ainda que reconheçam a sua importância para a so-
ciedade. Esta mesma pesquisa mostra que as crianças são públicos assíduos das
notícias, seguindo-as quase todos os dias na companhia dos pais e de outros
familiares, em especial através da televisão no tempo dedicado às refeições.
Embora as crianças manifestem algum interesse por estar a par dos aconteci-
mentos, admitem que, se puderem escolher, preferem realizar outras atividades,
como brincar e praticar desporto, ou ver outro tipo de programas mais do seu
agrado, como é o caso de desenhos animados, filmes e telenovelas. A exposi-
ção às notícias decorre portanto de um modo intrínseco à vivência das rotinas
quotidianas das famílias, faz parte dos seus tempos sociais, não sendo propria-
mente uma atividade procurada e escolhida pelos mais novos. Apesar disso,
sabem que as notícias são importantes para acompanhar o que se passa no país
e no mundo, podendo ser pró-ativas na procura de informação de assuntos que
sejam do seu interesse.

1
Pesquisa conduzida por Patrícia Silveira e que tem como objetivo principal compreen-
der os significados e as emoções decorrentes da exposição das crianças às notícias, e a
implicação desses sentidos para os modos de estar e de olhar o mundo por parte dos
mais novos. O estudo tem como universo as crianças a frequentar o 4º ano do 1º Ciclo do
Ensino Básico (no ano letivo 2013/2014) das escolas do Concelho de Paredes, situado no
norte de Portugal. Combinando métodos quantitativos e qualitativos, numa primeira fase
foram administrados inquéritos por questionário a 690 crianças com idades compreendi-
das entre os 8 e os 12 anos. Numa segunda fase, realizaram-se seis grupos de foco com 42
crianças a frequentar duas turmas integradas em escolas diferentes, selecionadas a partir
da amostra do inquérito por questionário.

258
Um dado que advém deste estudo, e que merece especial destaque neste ca-
pítulo, diz respeito ao testemunho das crianças quanto à necessidade de terem
acesso a notícias que lhes expliquem o mundo de um modo que elas possam
compreender, usando uma linguagem mais simples e recorrendo a palavras ou
imagens “que não assustem”. Este ‘desejo’ das crianças serve-nos de trampolim
para os estudos que se centram no lado das instituições mediáticas e na produ-
ção de espaços noticiosos pensados e difundidos especificamente para os mais
novos. Carter (2007), numa análise ao site inglês de notícias Newsround, identi-
fica-o como uma das fontes de notícias mais importante para crianças dos 8 aos
12 anos de idade, considerando-o um dos sites mais sofisticados e importantes
do mundo, que desenvolve conteúdos adequados para este segmento de público
e que encoraja a sua participação. A autora observou que as crianças e os jo-
vens que habitualmente comentam as notícias aí disponíveis são conhecedores
dos acontecimentos do mundo, demonstrando interesse e vontade em verem os
seus pontos de vista, sobre questões políticas e económicas, valorizados pelos
adultos. Carter et al. (2009) concluíram que o Newsround é uma importante
ferramenta para o desenvolvimento da cidadania, priorizando as opiniões e
ideias dos mais novos. Na Alemanha, Götz (2007), numa análise que realizou
ao programa Logo, disponível no canal infantil KIKA, verificou que o mesmo
explica bem as notícias, de forma a não assustar os públicos com determinados
acontecimentos, e que aborda abertamente aquilo que se passa no mundo, uti-
lizando uma linguagem adequada às crianças. Por estes motivos, as audiências
infantis preferem acompanhar a atualidade através do Logo, ligando-se menos
às notícias emitidas para as audiências adultas.
Importa sublinhar, ao nível da produção de notícias especificamente para
as crianças, as potencialidades que o meio online tem proporcionado para a
criação de espaços mais interativos, com maior possibilidade de envolver o
público jovem e de lhe dar mais oportunidades de participação. Como refere
Carter (2013, p. 261), “formatos emocionantes, inovadores e tendencialmente
mais interativos, incluindo os que são produzidos pelas crianças, recorrendo
aos novos e velhos media, estão a desafiar as suposições dos adultos acerca da
apatia política das crianças e estão a oferecer importantes oportunidades para
a emancipação das crianças como cidadãs”.
Os estudos que temos vindo a referir chamam a atenção para a importância
das notícias no processo de socialização do público jovem, defendendo que as
crianças devem ser encorajadas a expressar os seus pontos de vista, de acordo
com a sua idade e maturidade cognitiva. Todavia, em contraste com estas pers-
petivas, há estudos que emergem sobretudo das áreas da psicologia e da medici-
na (CARTER, 2013) que enfatizam os efeitos negativos da exposição às notícias,

259
colocando a tónica principalmente nos danos emocionais que podem ocorrer se
as acrianças forem expostas às notícias dirigidas a audiências adultas, em parti-
cular notícias de acontecimentos violentos (van der MOLEN; KONIJN, 2007).
Defendem que estas experiências podem ser traumáticas para os mais novos e
que há factos e eventos que são inapropriados para determinadas idades. Estes
estudos colocam a ênfase na necessidade de proteger as crianças e de as privar
de contactar com acontecimentos potencialmente perturbadores.
Embora o presente trabalho se enquadre teoricamente numa perspetiva ca-
pacitadora, que defende o desenvolvimento de competências para os mais no-
vos aprenderem a lidar com a exposição a certos acontecimentos e para assumi-
rem uma postura crítica e esclarecida face aos media e às suas representações do
mundo, entendemos que será no equilíbrio destas duas posições - capacitadora
e protetora - que poderá ser construída uma perspetiva que proteja mas que
também prepare; uma perspetiva centrada nas crianças, nos seus interesses e
necessidades, que considere os seus pontos de vista e que promova tanto o di-
reito à proteção como o direito à informação.
Tendo por base estes pressupostos, o presente trabalho visa analisar espa-
ços de notícias produzidos especificamente para as crianças, com o objetivo de
evidenciar a sua importância para estimular o interesse das crianças pela atua-
lidade e para ajudar a compreender, de forma significativa para os mais novos,
o mundo em que vivem, contribuindo para a sua literacia mediática. No ponto
seguinte apresentamos a metodologia seguida para a seleção e análise dos casos
em estudo.

2. Produção noticiosa para as crianças: metodologia da análise de


casos

Tendo por base a importância da oferta de serviços noticiosos especifica-


mente dirigidos às crianças, este trabalho visa fazer o levantamento e análise
deste tipo de espaços, a nível nacional e internacional. Este levantamento per-
mitirá ter uma melhor perceção da oferta de serviços de informação destina-
dos às crianças: quem são as entidades que os promovem, que conteúdos são
abordados, que formatos são utilizados, que temáticas são privilegiadas e que
conceções de criança prevalecem. Permitirá igualmente perceber por que é im-
portante oferecer ‘programas’ sobre a atualidade especificamente dirigidos ao
público infantojuvenil.

260
Para fazer o levantamento da oferta existente foram estabelecidos critérios
de pesquisa distintos para o contexto nacional e para o internacional. Para am-
bos os contextos foram apenas considerados os espaços, meios, produtos ou
programas que difundem notícias sobre a atualidade especificamente para as
crianças e jovens. Assim, publicações ou programas focados em assuntos, por
exemplo, de entretenimento, de celebridades, de passatempos, não foram con-
templados para análise.
Para o contexto Português, a pesquisa teve por base o conhecimento profis-
sional e académico das autoras deste trabalho, bem como estudos anteriores de
autores portugueses (PONTE, 1998; PEREIRA, 2007; PEREIRA et al., 2009), e
recaiu sobre os meios impresso, televisivo e online. O estudo dos casos nacio-
nais baseia-se numa descrição e caracterização geral dos meios e programas
identificados, apontando a empresa produtora, o público-alvo e os conteúdos
principais. A opção por uma análise mais geral deveu-se sobretudo ao facto de
a maior parte dos meios ou programas identificados não estar já em circulação
ou a ser exibida. A exceção é a Revista Visão Júnior que, no entanto, não é uma
publicação que tenha como enfoque central os assuntos da atualidade.
Relativamente ao contexto internacional, foi realizada uma pesquisa através
do Google, utilizando as palavras-chave “crianças” e “notícias” ou “atualidade”
em diferentes línguas: português, espanhol, francês, inglês e italiano. Dos re-
sultados obtidos, foram considerados apenas sítios em que é dada atenção a
notícias de atualidade. A pesquisa permitiu inventariar uma lista de cerca de 40
websites nesta categoria, verificando-se que, em vários casos, o site é o comple-
mento de um jornal impresso ou de um programa televisivo para crianças. Os
Estados Unidos da América surgem no primeiro lugar da tabela em termos de
oferta de projetos deste género, seguidos pela França e pela Inglaterra.
Na impossibilidade de fazer uma análise de todos os sites identificados, ele-
gemos um de cada destes três países, optando por portais que tivessem uma
atualização frequente, oferecessem notícias de atualidade tratadas jornalistica-
mente e que não se centrassem apenas numa categoria, mas abordassem vários
temas. Assim, a análise recaiu sobre o Newsround (Inglaterra), sobre o Dogo
News (Estados Unidos) e sobre o 1 Jour, 1 Actu (França). Estes sites foram anali-
sados a partir de um conjunto de categorias, a saber2:
2
São exemplos de outros sites nestes países: www.thekidsnews.com, www.newsela.org,
www.studentnewsnet.com (E.U.A), www.jde.fre, www.griffe-info.com, www.monquoti-
dien.fr (França), www.timeforkids.com, www.whatsyournews.com (Inglaterra).

261
1. Autoria
2. Destinatários
3. Temas abordados
4. Formato: texto, vídeo, áudio
5. Espaço dedicado à participação do público
6. Caraterização do tipo de participação
7. Relação com o sistema de ensino
8. Número médio de notícias por dia/frequência de publicação
9. Presença ou ausência de publicidade
10. Preocupação com a Educação para os Media
11. Preocupação com a receção das notícias pelas crianças
12. Possibilidade de registo no site
13. Conexão com redes sociais

Para tornar possível uma análise comparativa dos três sites estudados, rela-
tivamente aos temas tratados e ao número de notícias publicado, analisámo-los
diariamente durante uma semana, de 22 a 28 de novembro de 2014. Apesar de
cada site apresentar um conjunto de editorias, verificou-se que estes elementos
eram insuficientes para uma abordagem comparativa. No site Newsround, por
exemplo, não existe uma categoria intitulada ciência, embora haja notícias sobre
o tema. Assim, houve necessidade de criar uma grelha de análise de categorias
mais detalhada, de modo a poder obter uma noção mais precisa dos temas abor-
dados. Optámos, então, por enquadrar as notícias publicadas em cada um dos
sites segundo a seguinte lista de categorias: Ambiente, Animais, Ciência, Crian-
ças, Cultura, Curiosidades, Desporto, Entretenimento, Espaço, Política (nacio-
nal), Política (internacional), Saúde, Sociedade, Música e Tecnologia.

3. Espaços de informação da atualidade para as crianças: casos


nacionais e internacionais

Apresentamos, neste ponto, os casos que foram objeto de análise, em Portu-


gal e internacionalmente, procurando tirar ilações sobre a sua relevância para o
público infantojuvenil.

262
4. O caso português

Portugal não é um país em que se invista muito em meios, serviços ou pro-


gramas sobre notícias da atualidade especificamente dirigidos ao público in-
fantojuvenil. Em alguns momentos, a televisão pública (RTP) contemplou na
sua grelha de programação um noticiário dedicado aos mais novos, mas este
tipo de programa está longe de ser uma aposta da estação pública, apesar do
Contrato de Concessão de Serviço Público estipular que deve incluir “espaços
regulares de informação, adequadamente contextualizada, dirigidos ao público
infantojuvenil (CONTRATO DE CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO DE
TELEVISÃO, 2008, Cláusula 10ª, artigo 11).
Entre 1984 a 1987, a RTP emitiu o Jornalinho, um magazine de informação
semanal criado pelo jornalista António Santos, dirigido ao público jovem. No-
tícias, reportagens, entrevistas, sugestões culturais, eram alguns dos ingredientes
que compunham este noticiário que procurava informar as crianças sobre o que
se passava no país e no mundo, através de uma linguagem simples. Os apresen-
tadores do programa eram acompanhados por dois bonecos, o Elias e o Horácio
(a quem se juntou mais tarde a Clementina), contando ainda com a colaboração
de crianças. Estas enviavam para o programa cartas e desenhos com notícias das
terras onde moravam, funcionando como uma espécie de correspondentes do
programa. ‘Jornalinho, a informação dos mais novos’, era o slogan do programa
que contou com 122 exibições.
Três anos após o desaparecimento do Jornalinho das grelhas, a RTP re-
gressa (em 1990) com o Caderno Diário, um “noticiário pensado e concreti-
zado especificamente para idades entre os 8 e os 14 anos, de modo a que estas
crianças também pudessem compreender e estar informadas” (http://www.rtp.
pt/programa/tv/p1117). Era “preenchido com notícias da actualidade, reporta-
gens feitas nas escolas e eventos para crianças e jovens. A linguagem utilizada
era simples e informal, muito próxima da utilizada pelas crianças” (PEREIRA,
2007). Este programa esteve em antena ao longo de mais de uma dúzia de anos,
terminando em 2002, aparentemente por falta de jornalistas (PEREIRA, 2007).
Só em 2010 volta à grelha da estação pública um programa deste tipo – o Diá-
rio XS, caracterizado pela RTP como “um noticiário extra sofisticado que informa
os jovens dos 8 aos 12 anos sobre os acontecimentos nacionais e internacionais
da política, da ciência, das artes, do desporto, da escola e da meteorologia de uma
forma extra simples” (http://www.rtp.pt/programa/tv/p26161). Interrompido em
2012, o Diário XS volta a ser exibido em 2014 na RTP2, de segunda a sexta-feira,

263
com uma duração de cinco minutos. Não sendo de menosprezar a oferta deste
programa, verifica-se no entanto que não há um grande investimento financeiro
na sua produção, o que leva a questionar se a sua presença na grelha será apenas
para cumprir uma exigência do Contrato de Concessão do Serviço Público de
Televisão.
No quadro da estação pública de televisão de Portugal será ainda de registar
o lançamento, a 14 de janeiro de 2014, do Ensina, um projeto da RTP (http://
ensina.rtp.pt/) que conta com o apoio do Ministério da Educação e Ciência.
Este portal integra vídeos, áudios, infografias e fotografias produzidos nas últi-
mas oito décadas pelos diferentes canais da estação pública de televisão e rádio,
com interesse educativo. Atualmente contempla nove áreas principais: artes, ci-
dadania, ciência, conhecer a RTP, educação para os media, filosofia, história,
português e RTP nas escolas. Dispõe igualmente de uma área dedicada a ‘Atuali-
dades’ onde são publicados, numa linha cronológica, acontecimentos relevantes
da história antiga e recente. Integra também uma área Infantil onde o público
pré-escolar pode encontrar vídeos, jogos e música que fazem parte do acervo do
espaço infantil Zig Zag, da RTP2.
No que diz respeito à imprensa, dois dos jornais de referência no país - Diá-
rio de Notícias e Público - trouxeram para as bancas, no passado, um suplemen-
to e um jornal, respetivamente, dedicados aos mais novos. Em 1983, o Diário de
Notícias (Grupo Global Notícias Publicações, SA), por iniciativa do seu então
diretor Mário Mesquita, criou um suplemento destinado a captar leitores entre
os 18 e 24 anos. O DN Jovem foi inspirado num suplemento do Diário de Lis-
boa, o “Juvenil”, publicado entre 1967 e 1970, com coordenação de Alice Vieira
e Mário Castrim. Inicialmente pensado como um espaço privilegiado para o
jornalismo de investigação, o DN Jovem acabaria por assumir um percurso mais
próximo do universo literário e artístico. O seu ADN foi moldado pela partici-
pação de jovens colaboradores que encontraram no suplemento (chegou a ser
de oito páginas) uma forma de publicar contos, poesia, fotografia, ilustração.
Escritores como José Eduardo Agualusa ou José Luís Peixoto, ilustradores como
João Fazenda, fotógrafos como Bruno Rascão foram alguns dos nomes que o
DN Jovem projetou. Em 1996, o suplemento migrou do papel para o suporte
digital. Numa altura em que a internet chegava ainda a uma parte diminuta da
população, o DN Jovem perdeu força e viria a ser extinto em 2007, com 14 anos
de existência3.

3
O DN Jovem foi objeto de uma pesquisa de mestrado intitulada “O DN Jovem entre o
papel e a Net: dinâmicas, implicações e consequências de uma transição extemporânea”,
da autoria de Helena de Sousa Freitas (ISCTE, 2009). Neste estudo a autora procedeu a

264
Relativamente à Revista Público Júnior, do jornal Público (Grupo Sonaecom,
SGPS, SA), foi lançada em março de 1991, um ano após o primeiro número
do Público ter saído para as bancas. Durante mais de um ano, a revista chegou
todos os domingos a casa dos ‘juniores’ portugueses. Entrevistas, Histórias Fe-
lizes com Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada (duas escritoras portuguesas
para a infância), História, Natureza, Filmes e Jogos e Cartas dos Leitores, eram
algumas das rubricas do Júnior. Ao comemorar o 1º aniversário, a revista passou
a promover encontros de leitores (nas instalações do Público em Lisboa) para
falar de jornais, e da Júnior em particular, e para experimentar escrever para os
leitores da revista da semana seguinte. Tratou-se, sem dúvida, de uma iniciati-
va inovadora e única neste tipo de meio, que abria as portas à participação de
crianças e jovens.
Ainda no âmbito do meio impresso, hoje com uma presença também online,
a Visão Júnior (do Grupo Impresa) começou por ter um formato exclusivamente
impresso. Nasceu em agosto de 2004, num projeto inicialmente pensado apenas
para esse mês de férias. O sucesso ditou que passasse a ter uma periodicidade
mensal, que se mantém até hoje. Trata-se de uma revista de informação dirigida
a crianças dos 7 aos 14 anos de idade, que se rege pelos princípios deontológicos
e profissionais da «irmã» mais velha, a revista Visão e integra o Plano Nacional
de Leitura. As notícias de atualidade marcam presença, embora lhes seja de-
dicado pouco espaço. O conteúdo centra-se em temas como animais, ciência,
diferenças culturais, reportagens várias de interesse para os mais novos, divul-
gação de livros e escritores, curiosidades, entre outros, com um forte convite à
participação. O site não tem atualização diária e, além de algumas notícias de
atualidade, tem passatempos, vídeos de artigos publicados na revista, galerias de
fotos e divulgação de alguns eventos culturais.
No meio online, são praticamente inexistentes os sítios dedicados à apresen-
tação de notícias sobre a atualidade para as crianças e jovens. É exceção o portal
Sapo Kids, criado em 2009 pela Sapo (Grupo PT Portugal) e dirigido a crianças
dos 3 aos 12 anos com uma tripla vertente: educativa (conteúdos didáticos, ví-
deos de ciência), entretenimento (jogos, vídeos divertidos, agenda cultural) e
informação (notícias musicais, desportivas e outras). Oferecia ainda um serviço
uma análise dos conteúdos publicados pelo DN Jovem em quatro períodos distintos e
realizou entrevistas semiestruturadas a cerca de 20 colaboradores e coordenadores deste
suplemento, metodologia que, segundo Helena Freitas, “permitiu ainda perceber a im-
portância do suplemento enquanto veículo artístico, espaço de livre expressão e montra
semanal de criatividade juvenil” (http://hdl.handle.net/10071/1902). Este estudo foi pu-
blicado em livro em 2011 pela Editora Esfera do Caos com o título “O DN Jovem entre o
papel e a Net. História e Memórias de uma Transição”.

265
de email e mensagens instantâneas com controlo parental. Em 2010, o portal
deu origem ao Superstars (superstars.kids.sapo.pt), que se assume como o pri-
meiro site de desporto português para jovens e crianças, embora tenha também
curiosidades e notícias sobre celebridades.
No que diz respeito à rádio, verifica-se que as crianças não têm sido um
público-alvo das estações radiofónicas nacionais. Em 2009, a principal emissora
de rádio pública, a Antena 1, estreou o programa Portugal dos Pequeninos, da
autoria da jornalista Sónia Morais Santos, um vox pop diário de três minutos
que dava a voz a crianças de várias idades sobre temas vários, de atualidade
ou não, abarcando áreas tão diversas como a política, o ambiente, a família, a
religião, o amor. Embora o formato deste programa não se baseie na difusão de
notícias para crianças, e apesar de não se dirigir a este público, o facto de ter os
mais novos como protagonistas, procurando ouvir as suas opiniões sobre diver-
sos assuntos, revela alguma atenção a este público por parte da rádio pública, o
que nos levou a incluir a sua referência neste texto. Será, no entanto, de referir
que o programa deixou de ser emitido em 2010, não tendo sido substituído por
nenhum outro que tenha as crianças como protagonistas ou como público.

5. Casos internacionais

O panorama internacional é bem diferente daquele que encontramos em


Portugal. Com efeito, não existe no país nenhum serviço informativo para
crianças do género dos que aqui são analisados, sendo de destacar o facto de um
desses serviços ser da responsabilidade da estação pública britânica.
Como referido anteriormente, através dos critérios de pesquisa utilizados
foi possível identificar cerca de quatro dezenas de espaços online que têm como
função explicar o que se passa no mundo às crianças. Deste conjunto, seleciona-
ram-se três para análise, a saber: Newsround (Reino Unido), Dogo News (EUA) e
1 Jour, 1 Actu (França). A Tabela 1 (em Anexo) ilustra uma análise comparativa
tendo por base algumas categorias.
Transmitido desde 1972, o Newsround apresenta-se como um dos primeiros
magazines informativos do mundo destinado a crianças. Hoje é emitido no ca-
nal da BBC dirigido aos mais novos, o CBBC, e já não, como sucedeu até 2002,
na BBC1. Tal como o programa televisivo, com uma duração de dez minutos,
o site é pensado para uma faixa etária entre os seis e os 12 anos. Em www.bbc.
co.uk/newsround, além de ser possível ver diariamente o programa na íntegra
(só para internautas no Reino Unido), é dado destaque a quatro categorias men-

266
cionadas no site: Notícias, Desporto, Entretenimento e Animais que, no entanto,
se subdividem em muitas outras (ver Tabela 1 em Anexo sobre divisão de temas
por categorias). Cada artigo tem, por norma, entre quatro e seis frases e é acom-
panhado da peça televisiva ou de um vídeo. No final das notícias, não há espaço
disponível para comentários. No entanto, a participação dos leitores é solicitada
numa rubrica intitulada «chat», onde pelo menos uma vez por semana é lança-
da uma questão relacionada com uma notícia ou com um tema respeitante ao
universo infantil (como o bullying) para que os leitores expressem a sua opinião.
Os participantes, a quem não é solicitado qualquer tipo de registo, são identifi-
cados apenas pelo nome e cidade de origem. Há, ainda, uma outra parte do site
que permite fazer ouvir a ‘voz’ do público, o «News and Sport Message Board»,
apenas acessível a internautas no Reino Unido. O mesmo sucede, precisamente,
com outra secção que permite aos visitantes interagir com o site, o «Quiz of
the Week», onde são convidados a testar os conhecimentos sobre as notícias da
semana tratadas pelo Newsround.
Este site da estação pública de televisão inglesa não apresenta publicidade e
também a relação com as redes sociais afigura-se inexistente (a página do News-
round no Facebook não parece ser oficial). Embora não de uma forma explícita,
transparece uma preocupação com a Educação para os Media. Na secção
‘Frequently Asked Questions’, os internautas têm à disposição uma galeria
fotográfica, onde são apresentados os bastidores do programa televisivo e,
através de legendas, são explicados os diferentes passos do trabalho jornalístico.
Noutra secção do site, onde se reúnem vídeos sobre dossiers especiais, há
uma preocupação em ajudar as crianças caso estas se sintam perturbadas por
alguma notícia que possam ler/ver. Na rubrica “What to do if the news upsets
you”, é explicado às crianças que podem confiar no Newsround para lhes con-
tar todos os factos relevantes sobre determinado tema, mas que algumas coisas
podem soar assustadoras ou deixá-las preocupadas. Para as tranquilizar, relem-
bram aspetos que remetem para o que é o jornalismo, como por exemplo, “his-
tórias preocupantes são frequentemente notícia por serem raras”, “é altamente
improvável que o que estás a ler ou a ver aconteça perto de ti”. Nesta mesma ru-
brica, dão-se muitos outros conselhos, como o de dialogar com os pais sobre as
histórias noticiadas ou equilibrar a leitura de uma notícia triste com uma de teor
mais positivo. De registar que o site tem uma secção de entretenimento, com
jogos (cujo acesso está também vedado a cibernautas fora do Reino Unido).
Os sites de notícias para crianças não são apenas uma iniciativa de empre-
sas públicas, como a BBC. Um dos mais visitados sítios deste género nos Esta-
dos Unidos, o Dogo News, nasceu em 2009, por iniciativa de uma mãe que não

267
encontrava na Internet fontes de informação fidedignas que permitissem aos
filhos acompanhar temas da atualidade. O sucesso do site, hoje seguido por mi-
lhares de crianças e professores em todo o mundo, foi tal que deu origem a uma
empresa que alimenta um conjunto de sites para crianças ligados entre si – além
do de notícias, existe um dedicado a livros, outro a filmes e outro a sites para
crianças (em qualquer um dos três, os internautas podem atribuir pontuação
ou escrever uma crítica). O site oferece, ainda, a possibilidade de ver no mapa
a localização da zona onde sucedeu um determinado acontecimento noticiado.
Os utilizadores do site têm a possibilidade de dividir as notícias (que são
não apenas dos Estados Unidos, mas de todas as partes do mundo) por cinco
graus de ensino, nomeadamente, do pré-escolar aos 14 anos. Ao contrário do
Newsround, o Dogo News apresenta uma estrutura que facilmente remete para
o universo escolar. Grande parte dos artigos apresenta a definição de vocábulos
que possam suscitar dúvidas, um conjunto de questões de compreensão da no-
tícia e uma hiperligação para a localização do local do acontecimento no mapa.
Os professores têm um espaço próprio, que lhes permite adaptar os conteúdos
às suas necessidades letivas.
Além dos graus de ensino, é possível dividir as notícias pelas seguintes ca-
tegorias: Ciência, Desporto, Estudos Sociais, Curiosidades (‘Did you know?’),
Ambiente, Geral, Entretenimento, Internacional, Surpreendente, Divertido e
Vídeo da Semana.
Em cada notícia, o texto (de extensão variável, por norma entre as 700 e as
1200 palavras) é intercalado por fotografias e/ou vídeos. No final, os usuários
podem escrever os seus comentários/opiniões sobre o que leram, desde que se
tenham registado no site, escolhendo um nickname e um avatar. Este é um con-
vite bem-sucedido a avaliar pelo número de comentários de cada artigo - na
ordem das centenas. Muitos dos comentários resumem-se a poucas palavras,
mas, em alguns temas, a caixa de comentários acaba por tornar-se num espaço
de diálogo entre os diversos participantes, que expressam acordo ou desacordo
com opiniões manifestadas por outros. Durante uma semana de análise das no-
tícias publicadas (de 22 a 28 de novembro de 2014), constata-se que as notícias
sobre curiosidades são as que suscitam um maior número de comentários por
parte do público. E, dentro das curiosidades, os artigos sobre animais são os que
mais reações provocam. Na semana em análise, a notícia mais comentada (792
opiniões) foi a de um gato de um centro de reabilitação que se julga ser capaz de
pressentir a morte de um doente terminal.
No extremo oposto, estão as notícias de política. Os leitores do site tendem
a comentar menos este tipo de artigo, mesmo quando são as crianças que estão
em destaque, como a notícia de uma cimeira que reuniu jovens de vários países

268
do mundo para apontarem soluções para problemas que afetam a humanidade
(170 comentários). Por uma questão de reserva da privacidade, a informação
sobre os internautas que interagem com o site é diminuta, pelo que se torna
difícil analisar o perfil destes.
A atualização do site é frequente, com uma média de uma a três notícias
publicadas quase todos os dias da semana. Para grande parte das notícias, é
colocada uma questão para estimular o pensamento crítico nos jovens leitores
(por exemplo, no final de uma notícia sobre um programa para combater a obe-
sidade, questiona-se os leitores sobre qual o principal fator que contribui para
este problema no país em que vive: dieta, estilo de vida ou educação), além das
perguntas de compreensão do artigo.
A publicidade presente no site divulga livros e filmes apresentados nos ou-
tros sites da Dogo. A relação com as redes sociais é forte, dando a possibilidade
de partilhar os artigos em sete plataformas, como o Facebook ou o Google+.
Em França, os sítios com notícias de atualidade e informação para crianças
são, geralmente, o complemento de edições impressas. É o caso do Mon Quoti-
dien, Le Journal des Enfants ou 1 Jour 1 Actu. Este último é produzido por uma
editora francesa, a Milan, que edita livros para crianças e adultos. O site é uma
das ferramentas que serve para «traduzir e explicar com palavras simples a in-
formação dos adultos» a crianças com idades compreendidas entre os oito e os
12 anos, sem tabus. A prová-lo está a cobertura do atentado ao jornal satírico
Charlie Hebdo, em Paris, a 7 de janeiro de 2015. O assunto não foi silenciado
no site do 1 Jour, 1 Actu, bem pelo contrário. Depois de 7 de janeiro, foram
publicadas 23 notícias relacionadas com o sucedido (e 18 sobre outros temas).
Os repórteres explicaram o que aconteceu naquele dia e nos seguintes, as razões
por detrás do atentado, não ocultando informação e utilizando termos como
“fuzilar”. Os factos, eventualmente chocantes, serviram de pretexto para tocar
em questões como o que é a liberdade de expressão, a laicidade ou o antisse-
mitismo; entrevistar um especialista em Direitos Humanos e um fotógrafo que
captou uma imagem emblemática da grande manifestação contra o terrorismo
ocorrida em Paris; ouvir o que tinham a dizer as crianças de uma escola vizinha
à redação do Charlie Hebdo.
Os atentados justificaram a publicação de um maior número de notícias du-
rante o mês de janeiro do que é usual, mas ilustram o que é a postura do 1 Jour,
1 Actu durante todo o ano, ao cobrir temas de atualidade, tratados nos jornais
para adultos, independentemente do assunto.
Por norma, de segunda a sexta, é publicada uma notícia de uma das seguin-
tes categorias: Mundo, França, Desporto, Ciências, Planeta, Insólito ou Cultura,
que contempla sempre um jogo para atestar a compreensão, a explicação do sig-

269
nificado de uma palavra - a «palavra do dia» - e a localização geográfica do sítio
onde teve lugar a notícia. Diariamente, de segunda a sexta, é também disponi-
bilizado um vídeo de um minuto e meio em que se responde a uma questão co-
locada por um jovem leitor (por exemplo, o que são os paraísos fiscais) através
de desenhos animados, com um tom humorístico. Os alunos e os professores
que assinem a edição impressa do jornal semanal têm possibilidade de aceder
a mais conteúdos no site, mas, com um simples registo, mesmo os leitores que
não sejam assinantes podem aceder, de segunda a domingo, a diversos materiais
sobre temas de atualidade. Os professores assinantes do semanário têm acesso
a ferramentas pedagógicas que facilitam o trabalho dos artigos publicados na
sala de aula.
Os leitores registados no site do 1 Jour, 1 Actu com um nickname são
convidados a comentar os conteúdos publicados online, com a certeza de que as
opiniões são sempre moderadas pela redação do jornal. As notícias que estimu-
lam um debate maior entre os leitores dizem respeito a Curiosidades, Animais,
Meio-Ambiente e Ciência. Também aqui, como no Dogo News, são os temas de
política a suscitar um menor número de reações por parte dos leitores (como um
artigo em que se explica o significado dos diferentes logótipos dos partidos polí-
ticos franceses). Estes podem partilhar os artigos em diferentes redes sociais (Fa-
cebook, Twitter, It!, Google+, Pinterest). A publicidade diz apenas respeito à assi-
natura do jornal impresso. A preocupação de Educar para os Media transparece,
em particular, numa rubrica intitulada «Foto do dia» (apesar do nome, não tem
frequência diária), em que é feita uma análise crítica e detalhada de uma imagem.
De distintos países, promovidos por entidades de natureza diferente e com
uma frequência de publicação de notícias e meios humanos visivelmente diver-
sos, os três sites analisados coincidem na forma como encaram a criança. Trans-
parece uma visão desta como sujeito capaz de entender tudo o que se passa no
mundo que a rodeia, a par de uma preocupação notória em explicar as notícias
de forma clara, simples, sem, no entanto, pender para a infantilização. Dir-se-ia,
pelo contrário, que todos os sites em questão revelam um esforço para desenvol-
ver o pensamento dos jovens leitores, estimulando o espírito crítico, elevando a
cultura geral, convocando-os para participarem e manifestarem opiniões de di-
ferentes formas. Newsround, Dogo News e 1 Jour 1 Actu parecem coincidir, ain-
da, na forma como equilibram temas que se poderão designar por mais sérios
com outros mais ligeiros, a cuja leitura as crianças estão, como referem estudos
anteriormente mencionados, mais predispostas, nomeadamente notícias sobre
música, celebridades ou desporto.
Proporcionando às crianças um meio adequado para acederem à informa-
ção, respondendo à sua curiosidade natural e, simultaneamente, estimulando

270
nelas outros interesses, os três portais cumprem algo de que o jornalismo, mes-
mo quando exercido em entidades privadas, nunca se deve distanciar: a sua
missão de serviço público.

6. Notas finais: porquê espaços de informação destinados aos


públicos infantojuvenis?

A análise levada a cabo neste trabalho mostra que tem havido uma preo-
cupação por parte dos vários tipos de meios – a imprensa, a televisão e a Inter-
net – em produzir informação especificamente dirigida ao público mais jovem.
Centrando-nos especificamente no contexto português, verifica-se no entanto
que este tipo de oferta está muito dependente da capacidade financeira das em-
presas mediáticas, parecendo sucumbir em períodos de maior dificuldade e
contenção económica. Considerando a realidade internacional, é um facto que
em Portugal se tem verificado pouco investimento ao nível do meio online, se
considerarmos o potencial que a Internet fornece a este nível.
Embora no nosso ponto de vista a criação destes espaços seja da responsa-
bilidade de empresas e associações tanto públicas como privadas, consideramos
que os media de serviço público têm aqui um papel acrescido, não apenas para
assegurar o cumprimento de eventuais obrigações legais, mas por fazer parte da
sua função oferecer conteúdos inovadores e de qualidade, que contribuam para
a formação de cidadãos críticos e informados. Numa época caracterizada pela
convergência mediática, e procurando tirar proveito das potencialidades ofere-
cidas pelos meios digitais, o serviço público de media, no caso específico de Por-
tugal, a Rádio e Televisão Pública, poderia ter um importante papel na criação
de sinergias entre os canais públicos e os espaços que disponibilizam na Internet,
promovendo um serviço informativo integrado para o segmento mais jovem.
Na base da defesa de serviços informativos concebidos especialmente para
os mais novos estão argumentos de vária ordem, mas todos se centram numa
perspetiva de criança como sujeito de direitos e todos são matizados pela ênfase
que a Convenção sobre os Direitos da Criança coloca na necessidade de a infor-
mação ser “apropriada à idade da criança”, de conduzir “ao seu bem-estar social,
espiritual e moral, assim como a sua saúde física e mental” e ainda de “proteger
a criança de materiais que sejam prejudiciais para o seu bem-estar”.
Com efeito, um dos primeiros argumentos é enquadrado pelo articulado da
Convenção, ao estipular, no artigo 17º, que os Estados Partes devem “encora-

271
jar os órgãos de comunicação social a difundir informação e documentos que
revistam utilidade social e cultural para a criança”, e ao declarar, no artigo 13º,
que “a criança tem direito à liberdade de expressão”. Este direito “compreende a
liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie,
sem considerações de fronteiras, sob forma oral, escrita impressa ou artística ou
por qualquer outro meio à escolha da criança”.
Outros argumentos são enquadrados pelos resultados de pesquisas nacio-
nais e internacionais que mostram que as crianças têm noção do valor das no-
tícias para o conhecimento do que se passa no mundo, mas gostariam que as
mesmas fossem tratadas de forma mais adequada às suas necessidades e interes-
ses. O público mais novo tende a seguir e a procurar notícias que exploram te-
mas que lhes interessam, podendo este interesse ser alargado a outros assuntos,
mesmo aqueles que muitas vezes são denominados do mundo adulto (política
e economia, por exemplo), se forem trabalhados através de linguagens que pos-
sam captar a atenção dos mais novos e que eles possam compreender.
A análise que realizámos a três sites internacionais de notícias para crianças
deixa transparecer o importante papel que exercem na mediação do mundo,
explicando-lhes, de modo acessível e apropriado às suas idades e níveis de de-
senvolvimento, assuntos relacionados com a política, a ciência, a economia,
o desporto, a cultura e as artes, entre outros. Além do mais, há também uma
preocupação forte em relação ao modo como as crianças lidam com deter-
minados acontecimentos, sobretudo aqueles que podem ser perturbadores e
traumáticos, como foi o caso da cobertura do 1 Jour 1 Actu do atentado terro-
rista ao jornal francês Charlie Hebdo, já mencionado anteriormente. O News-
round é também um bom exemplo de como conciliar o direito das crianças à
informação com o seu direito à proteção. E no que diz respeito ao Dogo News,
é um bom exemplo de como este tipo de iniciativas podem partir dos próprios
cidadãos.
A existência destes espaços noticiosos proporciona aos mais jovens uma
melhor compreensão do mundo em que vivem, podendo estimular (ou aumen-
tar) o seu interesse por estar a par dos assuntos da atualidade. Olhando para as
crianças como ‘human beings’ e não como ‘human becomings’ este tipo de espa-
ços mostra que a cidadania não pode ser adiada para a idade adulta (PEREIRA,
2013), que é na infância que se começa a formar cidadãos mais envolvidos do
ponto de vista cívico, cultural e político, motivados para participar no mundo
que os rodeia. Será também de referir o importante papel que exercem ao nível
do desenvolvimento de competências de literacia mediática, ao proporcionar-
-lhes oportunidades para analisarem a informação da atualidade, para com-
preenderem o modo como os media representam a realidade (oferecendo-lhes

272
ângulos de abordagem e de leitura) e para participarem e expressarem os seus
pontos de vista.
Neste trabalho, defendemos, à luz da nossa própria análise, mas também
de outros estudos, que a existência deste tipo de espaços ajuda a estimular o
interesse pela atualidade, a formar uma opinião sobre os assuntos da sociedade
e a desenvolver capacidades críticas em relação aos media, podendo contribuir
para uma maior intervenção no espaço público. Contudo, temos presente que
o interesse das crianças por estas matérias depende de outros fatores, como se-
jam, o contexto familiar e também o contexto escolar. Com efeito, estes agentes
socializadores exercem um importante papel de mediação do mundo e dos pró-
prios media e dos seus conteúdos, podendo nessa função mediadora assumir
tanto um papel dialogante com as crianças, estimulando o seu interesse pelas
notícias e por acompanhar os acontecimentos do mundo, como um papel pro-
tetor, restringindo ou proibindo o acesso a estas matérias, ou ainda um papel
negligente, ignorando o impacto que as notícias podem ter nas crianças bem
como a importância de conversar sobre estes assuntos.
No que diz respeito ao meio escolar, Jacques Gonnet, fundador do Centre
de Liaison de l’Enseignement et des Moyens d’Information (CLÉMI), nota o
papel fulcral que a atualidade deveria desempenhar na escola, ao permitir des-
pertar a consciência dos alunos para o facto de o que aprendem nas aulas ser
fonte de construção de sentidos. Considerando as notícias “como uma forma
de motivação insubstituível para valorizar o saber fornecido”, Gonnet vê com
preocupação uma escola onde “parece que, cada vez mais, o único sentido re-
conhecido tem a ver com o sucesso nos exames” (GONNET, 2007, p. 40-41),
que se afasta da realidade do mundo, “dos saberes (e dos valores) diretamente
ligados à sociedade”.
Sem desconsiderar então o papel específico que a família e a escola, bem
como os grupos de pares, desempenham na descoberta e no conhecimento do
mundo pelas crianças, e lembrando aliás o diálogo intergeracional que as notí-
cias podem ajudar a promover, destacamos o papel significativo que os media
desempenham no processo de socialização dos mais novos, sendo de toda a
relevância que lhes ofereça serviços informativos específicos, dos quais a família
e a escola possam também tirar partido. Será com certeza num diálogo entre
agentes socializadores, em que a criança toma também parte ativa, que podere-
mos fazer os mais novos sentirem-se cidadãos de pleno direito, com uma voz, o
que facilita certamente a valorização de direitos fundamentais como o direito ao
voto ou à liberdade de expressão.

273
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275
Tabela 1 – Análise comparativa, por categorias, dos três sites analisados.

NEWSROUND DOGO NEWS 1 Jour 1 Actu


Fundado por uma mãe,
Autoria Children´s BBC deu origem a uma em- Editora Milan
presa, a Dogo Media
Alunos de diferentes
Crianças dos 6 aos Crianças dos 8
DesƟnatários graus de ensino: do
12 anos aos 12 anos
pré-escolar aos 14 anos
Ciência, desporto,
estudos sociais, sabias
Mundo, França,
Noơcias, desporto, que?, ambiente, en-
desporto, ciên-
Temas entretenimento e tretenimento, interna-
cias, planeta,
animais cional, surpreendente,
insólito e cultura
diverƟdo, vídeo da
semana

Texto, vídeo e peças Texto, fotografia e Texto, fotografia


Formato
televisivas vídeo e animação

Pergunta semanal Comentar noơcias;


ParƟcipação endereçada ao fazer críƟca ou atribuir Comentar noơ-
do público público; Sport and pontos a livros, filmes e cias
Message Board sites infanƟs
Quiz de com-
Questões de com-
preensão da no-
Teste de conheci- preensão dos arƟgos;
Componente ơcia, localização
mentos semanal, localização geográfica
pedagógica geográfica dos
“Quiz of the week” dos acontecimentos;
acontecimentos;
significados
significados
Uma noơcia e um
Frequência de Entre 5 a 18 noơcias Entre 1 a 3 noơcias vídeo de anima-
publicação por dia por dia ção novos de
segunda a sexta

A filmes e livros infan-


Publicidade Não
tojuvenis

Fotografias legen- Análise críƟca


dadas sobre a pro- e detalhada de
Componente “CriƟcal thinking
dução do magazine uma imagem na
EPM challenge”
televisivo diário rubrica “imagem
homónimo do dia”

276
NEWSROUND DOGO NEWS 1 Jour 1 Actu
Conselhos
para lidar com
Guia “What to do if
noơcias po- Não Não
the news upset you”
tencialmente
perturbadoras

Registo no Escolha de avatar e Escolha de avatar


Não
síƟo nickname e nickname

FB, Google+, Tumblr, FB, twiƩer, it!,


Conexão com
Não Stumble Upon, Pinte- Google+, Pinte-
redes sociais
rest, Reddit, Edmodo rest

277
SOBRE OS/AS AUTORES/AS

Alexandre Barbalho
Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Fede-
ral da Bahia com estágio pós-doutoral em Comunicação na Universidade Nova
de Lisboa. Professor dos Programas de Pós-Graduação em Políticas Públicas da
Universidade Estadual do Ceará (UECE) e em Comunicação (PPGCOM) da Uni-
versidade Federal do Ceará (UFC). Líder do Grupo de Pesquisa em Políticas de
Cultura e de Comunicação – CULT.COM. Autor e organizador de diversos livros
nas áreas de comunicação e cidadania e de política cultural.

Amanda Nogueira de Oliveira


É mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade
Federal do Ceará (UFC), e bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes). É especialista em Teorias da Comunicação
e da Imagem pela UFC e graduada em Comunicação Social - Jornalismo, pela
Universidade de Fortaleza (Unifor). e em Artes Cênicas pelo Centro Federal de
Educação Tecnológica do Ceará (Cefet-CE).

Ana Jorge
Pós-doutoranda em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa,
com bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2013-16). Doutorada
pela mesma Universidade, é mestre em Sociologia da Comunicação (ISCTE).
Participa em projectos de investigação internacionais em torno dos usos e pro-
dução de media por crianças e jovens (EU Kids Online, RadioActive Europe), e
da educação para os media (ANR Translit-COST, Alfamed).

Andrea Pinheiro Paiva Cavalcante


Professora do Curso Sistemas e Mídias Digitais da Universidade Federal do
Ceará, pesquisadora do Grupo de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e
Mídia, GRIM. Concluiu mestrado e doutorado em Educação Brasileira pela
Universidade Federal do Ceará. Jornalista graduada pela Universidade Federal
do Ceará (1993) e especialista em Teoria da Comunicação e da Imagem (1995).

278
Trabalhou como repórter do Jornal O POVO e da Rádio Extra Produções. Inte-
grou por dez anos a Rede de Comunicadores Solidários (Pastoral da Criança/
UCBC).

Bruno Carriço dos Reis


Docente nos cursos de Ciências da Comunicação da Universidade Autónoma
de Lisboa e do Instituto Universitário da Maia. Leccionou anteriormente na
Universidade de Cabo Verde e na Universidad Rey Juan Carlos, de Madrid. É
membro do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (PUC/SP) e perito da
Agencia Nacional de Evaluación y Prospectiva (ANEP) do Ministerio de Cien-
cia e Innovación de Espanha.

Cristiane Parente
Jornalista e professora, investigadora do Centro de Estudos de Comunicação
e Sociedade, da Universidade do Minho, onde realiza o seu doutoramento
em Educação para os Media. Mestre em Mídia e Educação pela Universida-
de de Brasília e pela Universidad Autónoma de Barcelona. Sócia-Fundadora
da Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em Educomunicação
(ABPEducom). Bolsista CAPES de Doutorado - Processo 2247/15-1.

Cristina Ponte
Professora Associada na FCSH/UNL e investigadora do Centro Interdisciplinar
de Ciências Sociais dessa Faculdade (CICS.NOVA), tem estudado e publicado
sobre a relação entre crianças e media. Coordena a equipa portuguesa na rede
europeia EU KIDS ONLINE. Coordenou os projectos Inclusão e Participação
Digital (2009-2011) e Crianças e Jovens em Notícia (2005-2007), financiados
pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Dirigente do Grupo Chil-
dren, Youth and Media, da European Communication Research and Education
Association (ECREA).

Denise Cogo
Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação
e Práticas de Consumo da ESPM-SP (Escola Superior de Propaganda e Mar-
keting), onde coordena o grupo de pesquisa Interculturalidade, cidadania,
comunicação e consumo e atua como editora da Revista Comunicação Mídia
e Consumo. É pesquisadora 1D do CNPq. É pesquisadora associada do Insti-

279
tuto de la Comunicación da Universidade Autônoma de Barcelona. Realizou
pós-doutorado na Universidade Autônoma de Barcelona (2007-2008), onde at-
uou como professora visitante entre 2004-2008 no Departamento de Publicidad
y Comunicación Audiovisual e atua, desde 2010, como co-orientadora de teses
de doutorado.

Edgard Patrício
É jornalista, mestre e doutor em Educação Brasileira e graduado em Tecnologia
de Processamento de Dados pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Professor Curso de Jornalismo e do PPG em Comunicação da UFC. Membro
do grupo de pesquisa Mídia, Política e Cultura (UFC). Coordena os Programas
de Extensão Comunicação e Políticas Públicas e Liga Experimental de
Comunicação (UFC). Participa da organização não-governamental Catavento
Comunicação e Educação. Membro do Conselho Gestor da Rede ANDI Brasil -
Comunicação pelos Direitos da Criança e do Adolescente.

Inês Sílvia Vitorino Sampaio


Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, com
período sanduíche na Westfälische Wilhelms Universität Münster, Alemanha.
Realizou estágio Pós-Doutoral na Université du Québec à Montréal, UQÀM,
Canadá. É Vice-diretora e Coordenadora Acadêmica do Instituto de Cultura
e Arte da Universidade Federal do Ceará (gestão 2011-2015). Professora do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC. É atual vice-presidente
da Associação Nacional de Pós-Graduação em Comunicação - Compós (biênio
2014-2015). Coordena o Grupo de Pesquisa da Relação Infãncia, Juventude e
Mídia (GRIM - Núcleo UFC) e o Projeto de Extensão TVez: Educação para o
uso crítico da mídia.

Joana Fillol
Licenciada em Jornalismo pela Universidade de Coimbra. Começou a trabalhar
na imprensa escrita em 2004, tendo sido colaboradora permanente da revista
Visão e Visão Júnior ao longo de quase dez anos. O interesse pelas questões de
cidadania e formação de leitores levou-a ao Centro de Estudos de Comunicação
e Sociedade, da Universidade do Minho, onde está a fazer o doutoramento em
Ciências da Comunicação.

280
João Pissarra Esteves
Professor Agregado em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lis-
boa. Com extensa publicação, destaca-se: Sociologia da Comunicação (2012), O
Espaço Público e os Media (2005), Espaço Público e Democracia (2003, PT/BR),
A Ética da Comunicação e os Media Modernos (1998) (autor) e Comunicação
e Identidades Sociais (2008), Media e Sociedade (2002), Niklas Luhmann - a
improbabilidade da comunicação (1993) (organizador).

Juciano de Sousa Lacerda


Prof. Adjunto IV do Dep. de Comunicação Social e do PPG em Estudos da
Mídia da UFRN. Doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos. Coorde-
nador do Laboratório de Pesquisa e Estudos em Comunicação Comunitária e
Saúde Coletiva (Lapeccos) no GP Pragma/CNPq/UFRN. Membro fundador do
Instituto Nacional de Pesquisa em Comunicação Comunitária (Inpecc). Pesqui-
sador do Núcleo de Saúde Coletiva (UFRN) e da Rede AmLat.

Lidia Marôpo
Professora adjunta na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de
Setúbal e investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da FCSH-
-Universidade Nova de Lisboa (CICS.NOVA). É autora dos livros A Construção
da Agenda Mediática da Infância e Jornalismo e Direitos da Criança - Conflitos
e Oportunidades em Portugal e no Brasil. Publicou inúmeros artigos científicos,
especialmente sobre a relação entre as crianças e os media.

Liliana Pacheco
Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação (ISCTE-IUL) e
doutoranda em Ciências da Comunicação (ISCTE-IUL/UFRJ), com uma tese
sobre jovens, imprensa e movimentos sociais em Portugal e no Brasil. É inves-
tigadora do Centro de Investigação e Estudos em Sociologia e estuda as áreas
da juventude, participação, jornalismo, movimentos sociais e novos media. É
autora de vários artigos e capítulos de livros.

Luciana Lobo Miranda


Doutora em Psicologia pela PUC-RJ. Professora do Programa de Pós-Gradua-
ção em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do Labo-

281
ratório em Psicologia, Subjetividade e Sociedade (LAPSUS) e Coordenadora do
Programa de Extensão TVEZ: Educação para o uso Crítico da Mídia.

Manuel Pinto
Professor catedrático da Universidade do Minho, onde leciona matérias como
Educação para os Media e Estudos Jornalísticos. É investigador do Centro de
Estudos de Comunicação e Sociedade, trabalhando sobre literacia mediática,
jornalismo e cidadania e políticas da comunicação e dos media. É diretor do
curso de doutoramento em Ciências da Comunicação (UMinho) e foi jornalis-
ta, editor e ombudsman do diário Jornal de Notícias.

Márcia Bernardes
Bacharel em Comunicação social - Jornalismo pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos; Especialista em história, comunicação e memória do Brasil Con-
temporâneo pela Universidade Feevale; Mestre em Ciências da Comunicação
pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Atualmente cursa Doutorado em
Ciências da Comunicação na UNISINOS.

Maria José Brites


Professora Auxiliar na Universidade Lusófona do Porto e investigadora in-
tegrada do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, na Universida-
de do Minho, onde realiza pós-doutoramento em Ciências da Comunicação
(SFRH/BPD/92204/2013). Coordenadora em Portugal (2013-2014) do projeto
RadioActive Europe, integra duas ações Cost (Cost/FP1104 e Cost/IS1401) e
dois projetos europeus (Cross-media news repertoires as democratic resources
e E-audiences – a comparative study of European media audiences).

Mauro Michel El Khouri


Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela
UFC, na linha Cultura e Subjetividades Conteporâneas. Bacharel em Filosofia
pela Universidade Estadual do Ceará – UECE e em Psicologia pela Universida-
de Federal do Ceará – UFC. Atualmente é professor temporário da Faculdade
de Educação de Itapipoca.

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Patrícia Gonçalves Saldanha
Possui mestrado e doutorado em Comunicação e Cultura pela Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é Professora Adjunta III do curso
de Publicidade e Propaganda da Universidade Federal Fluminense e membro
Permanente do Programa de Pós-graduação em Mídia e Cotidiano (PPGMC
- UFF). Vice-Coordenadora do GT de Cidadania do ALAIC (2012-2016).
Coordenadora do LACCOPS (Laboratório de Investigação em Comunicação
Comunitária e Publicidade Social) e membro fundador do INPECC (Instituto
Nacional de Pesquisa em Comunicação Comunitária).

Patrícia Silveira
Doutoranda no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da
Universidade do Minho, a sua pesquisa é financiada pela Fundação para a Ciên-
cia e a Tecnologia (FCT). As suas áreas de interesse são literacia mediática e
leitura crítica das notícias, media e direitos das crianças. Tem colaborado em
projetos de investigação nacionais e internacionais e publicado artigos em revis-
tas científicas e atas de congressos.

Raquel Paiva
Possui graduação em jornalismo pela Faculdade de Comunicação da Universi-
dade Federal de Juiz de Fora, especialização em Taller de Post-Grado pelo Cen-
tro Internacional de Estudios Superiores de Comunicación Para América Latina
e aperfeicoamento em Latin America Electronic Media Exchange Program pela
ARIZONA STATE UNIVERSITY. Mestrado e doutorado em Comunicação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997), PDE pela Università degli Studi
di Torino, Itália. Atualmente é Professor Associado da Escola de Comunicação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora do CNPq, coordena-
dora do LECC e atual diretora do INPECC, escritora e jornalista.

Sara Pereira
Professora associada no Departamento de Ciências da Comunicação e investi-
gadora no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, da Universidade do
Minho. As crianças, os jovens e os media e a literacia mediática são as suas prin-
cipais linhas de pesquisa. Tem coordenado projetos nacionais e internacionais e
publicado em revistas indexadas. É Diretora do Dep. de Ciências da Comunica-
ção e do Mestrado em Comunicação, Cidadania e Educação.

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Sueli Alves Castanha
Docente de Saúde Coletiva e Bioética no Curso de Enfermagem da Faculdade
Maurício de Nassau, Natal-RN. Pós-Graduada em Saúde Coletiva (2004) e em
Saúde da Família (2008) pelo IELUSC-SC. Bacharel e Licenciada em Enferma-
gem pelo IELUSC-SC. Integrante do Lapeccos (GP Pragma/CNPq/UFRN).

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