Leituras Freirianas - Diálogos Que Permanecem

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LEITURAS FREIRIANAS:

DIÁLOGOS QUE PERMANECEM

1
2
Organizadoras:
Joelma Carvalho Vilar
Sheyla Gomes de Almeida
Patrícia Martins Lima Pederiva

LEITURAS FREIRIANAS:
DIÁLOGOS QUE PERMANECEM

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Copyright © Autoras e Autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos dos autores.

Joelma Carvalho Vilar; Sheyla Gomes de Almeida; Patrícia Martins Lima


Pederiva (Organizadoras)

Leituras freirianas: diálogos que permanecem. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2020. 217p.

ISBN 978-85-7993-827-6 [Impresso]


978-85-7993-835-1 [Ebook]

1. Paulo Freire. 2. Diálogos. 3. Leituras Freirianas. 4. Educação popular. 5.


Epistemologia Freiriana. I. Título.
CDD – 370

Escultura em barro de Paulo Freire: Josiene de Carvalho Santana e Mony


Grazielle Barros Santos (Aracaju/SE, 2019).
Arte da capa: Josiene de Carvalho Santana e Mony Grazielle Barros Santos.
Capa: Andersen Bianchi
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil);
Ana Cláudia Bortolozzi Maia (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de
Almeida (UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de
Melo (UFF/Brasil): Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil)

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos – SP
2020

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“A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de
estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão,
vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai
humanizando-a”.

“Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno,


será em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandada pela
publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando
cada vez mais, sem o saber, à sua capacidade de decidir”.

“A distância social existente e característica das relações


humanas no grande domínio não permite a dialogação. A dialogação
implica na responsabilidade social e política do homem. Implica num
mínimo de consciência transitiva, que não se desenvolve nas condições
oferecidas pelo grande domínio”.
Paulo Freire (Livro: Educação como Prática da Liberdade)

“Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão,


da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não
ser assumindo-nos como sujeitos éticos”.

“Reconhecer que somos seres condicionados mas não


determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não
de determinismo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático e
não inexorável”.
Paulo Freire (Livro: Pedagogia do Oprimido)

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SUMÁRIO

PREFÁCIO 11
Patrícia Lima Martins Pederiva

APRESENTAÇÃO 15
Joelma Carvalho Vilar

SOBRE A ESCULTURA DE PAULO FREIRE EM ARGILA CRUA, 23


CRIADA PARA A CAPA DESTE LIVRO
Josiene de Carvalho Santana
Mony Grazielle Barros Santos

PAULO FREIRE VIVE 25


Luiza Erundina

UMA PEQUENA CARTA DE AUGUSTO CHARAN A PAULO 33


FREIRE
Augusto Charan Alves Barbosa Gonçalves

A CONSTITUIÇÃO DO SER-HUMANO EM PAULO FREIRE: 39


TRANSFORMANDO VIDAS E LIBERTANDO REALIDADES.
Renato Hilário dos Reis
Ângela Dumont Teixeira

UM ENSAIO SOBRE A DIALÉTICA NO MÉTODO 51


EPISTEMOLÓGICO DE RACIOCINAR DE PAULO FREIRE.
Augusto Charan Alves Barbosa Gonçalves

DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE À SOMBRA DA 63


MANGUEIRA: RAÍZES EPISTEMOLÓGICAS
Andrea Vieira

7
OLHARES: PAULO FREIRE E PEDAGOGIA DO OPRIMIDO 91
Leila Maria de Jesus Oliveira

REFLEXÕES SOBRE AUTONOMIA, AUTORIDADE, 101


LIBERDADE E RESPONSABILIDADE NOS PROCESSOS
EDUCATIVOS NAS PERSPECTIVAS DE PAULO FREIRE E
VYGOTSKI.
Sheyla Gomes de Almeida
Maria Aparecida Camarano Martins

ESCOLA NACIONAL DE FORMAÇÃO DA CONTAG (ENFOC): 117


PRÁTICAS E SABERES DE UM JEITO DE SER ESCOLA
Carlos Augusto Santos Silva
Marleide Barbosa de Sousa Rios
Raimunda de Oliveira Silva

PRESENÇA DE PAULO FREIRE NA EDUCAÇÃO POPULAR NO 133


PARANOÁ –DF
Maria de Lourdes Pereira dos Santos
Maria Creuza Evangelista de Aquino
Leila Maria de Jesus Oliveira

PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE PAULO FREIRE E 145


COMÊNIO: ORIENTANDO UMA REFLEXÃO ACERCA DA
EDUCAÇÃO E DA ESCOLA.
Darliane Silva do Amaral
Queina Lima da Silva

FREIRE E VIGOTSKI: DIÁLOGOS SOBRE EDUCAÇÃO 157


Ana Paula de Medeiros Ferreira

PRÁTICAS DE LETRAMENTO DE ALUNOS DA EDUCAÇÃO DE 167


JOVENS E ADULTOS NO CONTEXTO DA COMUNIDADE
Edinei Carvalho dos Santos

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SENTIDOS E SIGNIFICADOS DA ESCOLA PARA ESTUDANTES 181
DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS DA REDE PÚBLICA
DE ENSINO DO DISTRITO FEDERAL
Erlando da Silva Rêses
Lukelly Fernanda Amaral Gonçalves

SEMINÁRIO PAULO FREIRE, VIDA E OBRA: DIÁLOGOS QUE 203


PERMANECEM
Joelma Carvalho Vilar

SOBRE OS AUTORES 211

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10
PREFÁCIO

Em janeiro de 2015 embarquei rumo à UAM - Univesridad


Autônoma de Madrid, na cidade de Madri, España, para a realização de
meu pós-doutoramento. Parti em busca de novos conhecimentos e
diálogos com outros profissionais e autores que arejassem minhas
formas de fazer e pensar educação e desenvolvimento humano.
Naquele ano, a Espanha, assim como muitos países da Europa, já
enfrentava o desafio da chegada de imigrantes e refugiados de várias
partes do mundo, que convidavam a novas formas de organização
social, frente aos desafios que essa mudança instaurava no cotidiano
do povo espanhol em meio a esse fenômeno migratório.
A equipe da UAM havia, em minha programação de pós-
doutoramento, planejado que eu fizesse rodas de conversa com
estudantes e professores de lá, além de estudos específicos com
minha supervisora, professora Dra. Marta Morgade. Como sou
estudiosa da Teoria Histórico-Cultural de Lev Semionovich Vigotski,
imaginei que as conversas girassem em torno desse assunto.
Entretanto, qual foi minha surpresa, quando minha supervisora
anunciou: queremos saber sobre Paulo Freire. Respondi a ela que não
era especialista no autor, apesar de ter lido e estudado alguns de seus
livros, mas, que poderia conversar sobre o que eu sabia, até então,
com os estudantes e professores da universidade.
Antes desse encontro, perguntei à professora Morgade sobre o
porquê do interesse em discutir as ideias de sobre Paulo Freire, ao que
ela me respondeu: por que sabemos que ele pensou e se debruçou sobre
vários dos problemas sociais que agora estamos enfrentando em nosso
país. Jamais pensamos que pudéssemos nos deparar com tantas
diferenças sociais, tantas formas de ser e de estar, tantas culturas e
formas de pensar em nossos processos educativos, principalmente na
escola pública. O Brasil de Paulo Freire deve ter a resposta.
Frente ao desafio proposto, ciente de que o Brasil ainda não tinha
todas as respostas esperadas e, que não havia estudado Paulo Freire
como deveria, fui à biblioteca da universidade, onde encontrei várias
obras traduzidas para o idioma espanhol da obra de Freire. Debrucei-
me sobre tudo o que pude ter acesso e organizei-me para a roda de

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conversa. Quiseram saber dos principais conceitos dos problemas
sociais e educativos que enfrentávamos, como lidávamos com a
diversidade brasileira e com os problemas educativos, econômicos e
sociais a partir do autor.
Saí dessa conversa admirada com o acontecimento, apesar do
meu pouco estudo sobre Paulo Freire, propondo-me a voltar para o
Brasil e estudar tudo o que eu pudesse de Freire. Assim o fiz. Antes
disso, estive em outros países da Europa, França, Alemanha, Itália,
entre outros. Em todos os lugares por onde passei, lá estava Paulo
Freire, traduzido, reconhecido e respeitado nos mais diversos idiomas.
Voltei para o Brasil no segundo semestre de 2015. Nesse ano, o
país já caminhava para o Golpe, para a retirada da Presidenta Dilma
Rousseff do poder, para o declínio de um país que, nos anos de
esquerda começava a se reerguer de toda uma história de ditadura,
opressão, medo, silenciamento. Os pobres, os marginalizados, as ditas
minorias estavam nas universidades, nos cargos públicos. Vários
investimentos, desde o governo Lula, tinham sido feitos na área de
educação e, Paulo Freire, apesar de ainda ser tão pouco estudado nos
cursos de Pedagogia erguia-se majestoso como patrono da educação
brasileira.
Estamos em outubro de 2019. O atual governo, neoliberal de
extrema direita, tenta retirar Paulo Freire como patrono da educação.
O incriminam, mesmo depois de morto, dos mesmos nomes, das
mesmas acusações sobre suas ideias e práticas, e que o levaram ao
exílio. Eles sabem e temem a potência de seu pensamento.
Mas, as sementes lançadas por Paulo Freire por tantas décadas
ao redor do mundo, em livros, artigos e práticas pedagógicas, por mais
que não sejam tão respeitosamente cultivadas em nosso país,
sobrevivem. Elas vivem na esperança e na resistência para que o
conhecimento seja de todos para todos, na luta por uma sociedade
mais justa, humana e equânime. Na consciência da potência de que
cada ser humano pode ser um agente transformador, de si e do
mundo. No saber da experiência, na convivência das diferenças
culturais, no respeito a todas as formas de ser e de existir.
O presente livro carrega a chama freiriana. É uma bandeira que se
ergue em meio às atrocidades do governo atual contra a educação,
contra a universidade, a ciência e o povo brasileiro, convidando, ainda
e mais uma vez, a permanecermos no ato de resistência por meio do

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livre pensar, do esperançar, do dar as mãos e a seguirmos juntos,
entoado o hino à fraternidade, na luta por novas formas de relações
sociais e educativas, mais humanas, em meio a uma sociedade mais
justa.
Esse livro, portanto, convida a todas e a todos a resistir. Inspiradas
e inspirados em nosso patrono da educação, Paulo Freire. As autoras e
autores dos artigos aqui presentes, convidam, sob as lentes freirianas,
ainda e mais uma vez, ao diálogo, ao desenvolvimento humano por
toda a vida, sobre o pensar, organizar e fazer educação dialógica, ao
entendimento das raízes epistemológicas do autor, à luta com e pelos
oprimidos, a não esquecer experiências passadas e presentes que nos
indicam à possibilidade de transformação da escola e da educação, a
reconhecer a presença constante de Paulo Freire na educação popular,
a conhecer o diálogo do pensamento freiriano com outros autores,
como Comênius e Vigotski, por exemplo, a compreender práticas
pedagógicas nessas bases e a dar ouvidos para quem vive o processo
educativo com e a partir de Paulo Freire.
Gostaria de encerrar essas breves palavras, compartilhando a
alegria que tenho em participar desse livro com amigas-irmãs, como
Joelma Vilar e Sheyla Almeida. Obrigada por caminharmos juntas
parceiras queridas!
Muito me honra também, saber que aqui estão gravadas as
palavras de Luiza Erundina, exemplo de cidadã brasileira, de mulher,
de militante. Lembro-me de uma palestra sua no Seminário Paulo
Freire, organizado pela professora Dra. Joelma Vilar, em junho de 2017,
na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, auditório da
ADUnB, em que, perguntada por um estudante, sobre o momento
político atual, se isso não a preocupava, ela, que com seus cabelos
brancos, com muitas histórias para compartilhar, respondeu: meu
filho, tudo é história...como outras, estas também passarão! Obrigada
por dividir esperança Luiza!
Outra presença que muito me orgulha, por estar ao seu lado
nesse trabalho, é a do professor Dr. Renato Hilário. Seu trabalho
durante a vida, como pesquisador, educador e amigo é um caminhar
fraterno e amoroso, digno de suas raízes freirianas. Obrigada por tanta
amorosidade Renato, você, assim como Freire, é um exemplo para
mim!

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A todas as autoras e autores aqui presentes, obrigada pela
parceria. Que continuemos espalhando a semente de Paulo Freire pelo
mundo. Ontem, hoje e sempre. Avante!!!

Professora Dra. Patrícia Lima Martins Pederiva


Uma aprendiz de Paulo Freire
Brasília, 29 de outubro de 2019.

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APRESENTAÇÃO

Esse é um Livro feito de Diálogos...

Dos mais francos e belos diálogos de pessoas que, em dado


momento de suas existências, estudaram, trabalharam e viveram sob
a inspiração da obra do Mestre Paulo Freire. É um livro formado por
pessoas muito diferentes, de distintas gerações e ocupações sociais
que tiveram suas trajetórias de vida, pessoal e profissional, marcadas
pela presença amorosa e potente do pensamento educacional
revolucionário do maior educador brasileiro de todos os tempos.
Alguns tiveram a oportunidade de conhecer de perto Paulo Freire e
trabalhar com ele, imagine você leitor que experiência ímpar. Outros
estudaram quase todas as suas obras, tornando-se exímios
conhecedores da epistemologia profunda e das proposições
ontológicas sobre o ser humano e a educação. Todos pautaram seu
labor profissional e relacional a partir das diretrizes seguras e
imorredouras de respeito e de amor ao humano e da verdade que isso
emana.
Todos os autores são pessoas comprometidas com as pequenas
e silenciosas revoluções cotidianas que ocorrem nas relações com as
pessoas em nosso tempo-lugar (nas escolas, sindicatos, nas
associações, no congresso, universidades onde esses sujeitos autores
vivem a experiência de construir sua própria humanidade). São
pessoas lindas, éticas e cheias de fé e de esperança no ser humano e
no mundo, pois guardam dentro de si uma histórica teimosia Freiriana
de acreditar no ser humano e no mundo melhor.
Os textos presentes nesse livro são bonitos e, ao mesmo tempo,
necessários para esse momento do Brasil. Bonitos porque trazem as
marcas da identidade de cada um e da vivida influência da teoria do
conhecimento de Paulo Freire na ontogênese textual. Necessário
porque toca no campo da ação e da utopia, salvando-nos da alienação
do ativismo e da intransitividade da consciência ingênua que a
turbulência da anti-democracia e do anti-diálogo dos tempos atuais,
por usar uma terminologia de Freire, pode provocar.

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Os textos têm múltiplas direções e sentidos. Alguns trazem
análises profundas, com complexas relações conceituais que ajudam
na capacitância filosófica e científica que todo intelectual competente
da educação deve acessar para o trabalho com a Educação e as
Pedagogias. Outros trazem memórias, vivências, experiências e afetos
das aproximações teóricas e práticas com Freire. Todos trazem à vida
e à educação como pauta vivencial, sejam textos mais acadêmicos ou
intimistas.
A linguagem múltipla e polissêmica dos textos enaltece a
identidade e alteridade dos autores. Alguns usaram uma linguagem
objetiva e pouco usual para tratar com precisão da episteme do
pensamento de Freire, sem se descuidar da dimensão subjetiva
inerente ao pensar genuinamente filosófico e científico. Outros, pelo
afeto, dialogaram com Freire com liberdade, como que de um saudoso
amigo. O uso dos recursos e metáforas da natureza para falar está
muito presente nos relatos e ilações teóricas inspiradas em Freire.
Tudo isso sem descuidar da qualidade estilística, do valor e da
autenticidade científica que uma obra dessa monta solicita. Todos, à
sua maneira, escreveram com sua verdade pessoal, fazendo um
contributo para o pensamento desse grande intelectual brasileiro.
No primeiro texto, intitulado “PAULO FREIRE VIVE”, é improvável
não se entregar à emoção da narrativa de Luiza Erundina. O texto
remonta, em palavras cálidas e firmes, as memórias de uma mulher
admirável e sua relação profissional e afetiva com Freire. As palavras
revelam as fibras que tramaram tão nobre vida, vida sofrida, forjada na
luta pela humanização das mulheres e dos homens brasileiros. Com
Paulo Freire aprendeu as lições de esperança e de fé na vida e no país.
Contigo aprendemos o sentido de resiliência e do exercício da
coragem e da humildade que fecundou o seu corpo de mulher
“entregue a boniteza doida de servir”.
Em “UMA PEQUENA CARTA DE AUGUSTO CHARAN A PAULO
FREIRE”, Charan conversa com o “Patrono da Educação Brasileira
como se ele ainda existisse materialmente entre nós”, sim, o autor está
certo, Paulo Freire Vive entre nós através de seus livros e dos seus
pensamentos que inspiram o fazer e o saber em educação. É uma carta
amorosa, cingida por uma interlocução teórica profunda e instigadora.
No texto “A CONSTITUIÇÃO DO SER-HUMANO EM PAULO
FREIRE: TRANSFORMANDO VIDAS E LIBERTANDO REALIDADES de

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Renato Hilário dos Reis e de Ângela Dumont, adentramos na ambiência
sonora de um poema de Thiago de Melo feito para Freire, que nos
conecta com as típicas narrativas que Freire fazia em suas exposições
orais públicas no Brasil e no mundo e em alguns de seus livros
dialógicos, nos quais dialogava com outros autores. Cria-se assim, no
texto, um clima de aproximação do leitor com a voz e a forma-
pensamento de Paulo Freire para assim iniciar uma discussão madura
sobre temas ácidos da educação e sua relação com o sistema
capitalista. Em clima de diálogo Renato Hilário e Ângela Dumont fazem
uma conversa franca com Freire e interrogam: “Você acha Paulo, que
existe alguém que nasce sem uma herança biológica cultural capitalista,
num mundo, em que impera este modo de produção? Que oprimida/o
não tem o germe do opressor dentro dela ou dentro dele mesmo?” Nesse
ponto, os autores fazem uma provocação-reflexão inédita que pode
apontar caminhos para repensar as formas de reprodução da
educação no capitalismo. Além disso, no texto, outros temas como
indignação, a raiva como ato de amor, a esperança, o saber de
experiência feito, o trabalho, a natureza de produção do
conhecimento, práxis, diálogo e coletividade, entre outros, são
abordados em um clima de curiosidade e cumplicidade
epistemológica, matizado por uma apropriada dialética que se
enaltece com as contribuições de Vigotsky e Bakhtin.
Seguindo com a série de diálogos, o livro apresenta o potente e
vibrante texto de Augusto Charan que faz com sua peculiar maneira
“UM ENSAIO SOBRE A DIALÉTICA NO MÉTODO EPISTEMOLÓGICO DE
RACIOCINAR DE PAULO FREIRE. Nesse texto, o autor demonstra
sobejamente que Freire compôs uma autêntica forma de raciocinar
que se estrutura em uma Teoria do Conhecimento, caracterizada por
uma epistemologia e por um método dialético específico desenvolvido
por esse intelectual. A síntese histórica e múltipla que Charan realiza
acerca da dialética e os diálogos diretos travados com o pensamento
de Freire, a partir de suas obras, levam o leitor a atingir a complexidade
da temática e compreender a grandeza do pensamento Freiriano, para
além de um método de alfabetização.
No texto “DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE À SOMBRA DA
MANGUEIRA: RAÍZES EPISTEMOLÓGICAS”, de Andrea Mara Vieira,
segue-se com a intenção de aprofundar a compreensão das bases
epistemológicas do pensamento de Freire. Nesse sentido, a autora

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dialoga, profunda e rigorosamente, com o idealismo de Hegel e o
materialismo de Marx e apresenta a teoria de Paulo Freire como uma
síntese dialética forjada com essas duas vertentes do pensamento
histórico humano. Para tanto, apresenta as categorias Consciência,
Práxis e Dialogia que dão o tom e a cor das interpretações trazidas à
lume pela autora. Argumenta-se sobre a validade e a fecundez da
epistemologia Freiriana, como diretriz para a estruturação dos
fundamentos principiológicos do Sistema de Educação Brasileiro. O
texto é belo, contundente e apresenta uma posição política desejável
para os tempos presentes e vindouros. A sombra de tão frondosa
Mangueira, à qual a autora se sentou para produzir esse texto, tem um
elevado potencial para produzir frutos sazonados que podem inspirar
uma educação nacional democrática, consciente e dialógica. Oxalá,
que isso se manifeste.
“OLHARES: PAULO FREIRE E PEDAGOGIA DO OPRIMIDO” é o
título do texto de Leila Maria de Jesus Oliveira. Com boniteza poética
a autora usa a metáfora elaborada a partir do Bioma Cerrado para falar
de Paulo Freire, um cidadão brasileiro “casca grossa”. Não se preocupe
que isso não é um descaramento, porque essa foi a maneira poética e
comprometida de Leila referir-se ao educador que inspira sua vida
profissional e afetiva. E sobre o significado de “casca grossa”? Isso,
caro leitor, você vai ter que ler para entender. Sugiro que leia debaixo
de uma árvore. Pode ser um ipê branco, ou alguma outra do seu lugar
de afeto. E, assim, se encontrará com as palavras dessa educadora
popular que ao estudar e experienciar a práxis em si mesma da
Pedagogia do Oprimido afirma: “Por me reconhecer na condição de
oprimida e opressora, tomo consciência da necessária superação em
mim e no outro, do oprimido e do opressor”.
No texto “REFLEXÕES SOBRE AUTONOMIA, AUTORIDADE,
LIBERDADE E RESPONSABILIDADE NOS PROCESSOS EDUCATIVOS
NAS PERSPECTIVAS DE PAULO FREIRE E VYGOTSKI”, de autoria de
Sheyla Gomes de Almeida e Maria Aparecida Camarano, encontramos
o prazer de conhecer de perto, a partir dos relatos dos processos
educativos da Escola Âncora, a vivência genuína da autonomia
Freiriana. No texto, as autoras discutem com delicadeza a complexa
categoria autonomia de PAULO FREIRE, eivada da intricada relação
epistemológica da AUTORIDADE e DIALOGICIDADE. Um belo texto
que aguça nossa reflexão, de natureza dialética, sobre a AUTONOMIA

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e sua implicação sobre a LIBERDADE e a RESPONSABILIDADE, sem as
quais a autonomia Freiriana simplesmente não existiria.
No capítulo seguinte, “ESCOLA NACIONAL DE FORMAÇÃO DA
CONTAG (ENFOC): PRÁTICAS E SABERES DE UM JEITO DE SER
ESCOLA”, a experiência da Escola Nacional de Formação da CONTAG
(ENFOC) evoca as lições do pensamento político, ético e educativo de
Paulo Freire e seu valor para o fortalecimento das lutas dos
trabalhadores e trabalhadoras rurais. O artigo, elaborado por Carlos
Augusto Santos Silva, Marleide Barbosa de Sousa Rios e Raimunda de
Oliveira Silva, traz, através da enunciação das metodologias, dos
processos e itinerários formativos da ENFOC, a semente úbere da
concepção pedagógica Libertadora de Freire que inspira os povos do
campo, da floresta e das águas a produzirem a educação em sua face
emancipadora. As lições dessa escola estão presentes no texto que
mostra, através das práticas e saberes existentes, “um jeito de ser
escola onde as escritas e leituras em Paulo Freire” iluminam o sentido
de fazer educação popular e humanizadora.
“A PRESENÇA DE PAULO FREIRE NA EDUCAÇÃO POPULAR NO
PARANOÁ – DF” é sentida na escrita de Maria de Lourdes Pereira dos
Santos, Maria Creuza Evangelista de Aquino e Leila Maria de Jesus
Oliveira que descrevem, calidamente, a história e os desdobramentos
da experiência de alfabetização popular de jovens e adultos, através
da luta dos homens e das mulheres pelos direitos básicos de existência
às margens do Paranoá. O texto é de puro encantamento, pois capta a
força da mobilização comunitária em tempos de opressão, a
participação da UNB nesse processo e revela o poder transformador
da educação na perspectiva libertária de Freire. Realmente, é possível
sentir a presença de Freire entre trabalhadoras e trabalhadores que ao
entender sua realidade, foram capazes de a problematizar e a
transformar. Gratidão às “três Marias”, Maria de Lourdes, Maria
Creuza e Leila Maria, educadoras e alfabetizadoras popular, por tão
benfazeja partilha.
O artigo “PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE PAULO FREIRE E
COMÊNIO: ORIENTANDO UMA REFLEXÃO ACERCA DA EDUCAÇÃO E
DA ESCOLA” tem autoria de Darliane Silva do Amaral e Queina Lima da
Silva. Ele traz uma reflexão acerca das aproximações teóricas,
guardadas suas distinções ideológicas, do pensamento pedagógico de
Freire e de Comênio, entre os quais se destacam: o poder atribuído à

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educação como mecanismo de transformação social e pessoal da
realidade humana, o compromisso social da educação com os
excluídos do mundo, e a educação como um processo democrático e
universal de formação humana, no qual a própria vida, natural e
cultural, é uma escola. Vale a pena aproximar-se das proposições das
autoras para conhecer, mais de perto, algumas semelhanças e
divergências das teorias desses dois intelectuais que lastreiam a
Pedagogia contemporânea.
Seguindo o sentido dos diálogos de Freire com outros
pensadores, o texto “FREIRE E VIGOTSKI: DIÁLOGOS SOBRE
EDUCAÇÃO” de Ana Paula de Medeiros Ferreira, traz uma apropriada
contribuição para pensar a Educação em nossos tempos. Com as lentes
subversivas do pensamento de Freire e Vigotski, que se encontram no
materialismo histórico-dialético, a autora reflete sobre a concepção de
educação como prática pedagógica histórica e cultural dos seres
humanos em sociedade e apresenta a tese de que é pela educação que
se dá o processo de constituição da nossa humanidade. A crença no
poder da educação para transformar e o compromisso com o
desenvolvimento humano, contra as injustiças sociais, são os pontos
de contato entre os dois grandes intelectuais, segundo a autora.
Continuando os diálogos desse livro, no qual teoria e prática
conversam declaradamente, o artigo, resultante de uma pesquisa
qualitativa na comunidade de Taguatinga-DF, aborda as “PRÁTICAS DE
LETRAMENTO DE ALUNOS DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO
CONTEXTO DA COMUNIDADE”, de autoria de Edinei Carvalho dos
Santos. A partir de sua pesquisa, o autor apresenta os múltiplas
funções e sentidos da escrita e leitura, relacionando-as à vida social,
cultural e política das pessoas, extrapolando os limites meramente
instrumentais da alfabetização. É notória a influência do pensamento
de Freire na configuração da estrutura metodológica da pesquisa,
assim como em sua base teórica. De fato, é um texto valioso para
educadores que exercem a atividade de ensino-aprendizagem da
leitura e da escrita, desde uma perspectiva de democratização e
participação social, ou seja, no letramento.
Nessa linha de diálogo, apresentamos o texto “SENTIDOS E
SIGNIFICADOS DA ESCOLA PARA ESTUDANTES DA EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS DA REDE PÚBLICA DE ENSINO DO DISTRITO
FEDERAL” de Erlando da Silva Rêses e de Lukelly Fernanda Amaral

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Gonçalves, que traz os resultados de uma pesquisa feita na
comunidade de Santa Maria - DF, cuja fonte de inspiração teórico-
metodológico está também em Freire. O texto toca na categoria dos
oprimidos/oprimidas presentes na escola pública, ou seja, dos
alunos/alunas oriundos da classe trabalhadora, e analisa a trajetória
escolar de jovens e adultos, identificando quem são os alunos/alunas
da EJA, os sentidos e significados atribuídos por eles à escola, assim
como os motivos do retorno e as expectativas depositadas na escola
da EJA. Tudo isso na intencionalidade de “corroborar na construção de
uma educação voltada às especificidades e expectativas desse
público”.
Para concluir a composição desse livro, e dá ainda mais sentidos
e significados à sua estrutura, o texto “SEMINÁRIO PAULO FREIRE,
VIDA E OBRA: DIÁLOGOS QUE PERMANECEM” conta a história do
nascimento desse livro através da memória de Joelma Carvalho Vilar.
Para tanto, faz-se um retrospecto dos fatos e acontecimentos que
geraram essa composição, desde a realização do estágio Pós-
doutoral à realização do seminário que culmina com a Carta a la Paulo
Freire, apresentada no próprio evento. É um texto simples e breve,
escrito com a singela intencionalidade de apresentar ao leitor a
gênesis desse livro.
Como se pode ver, são muitas as faces e identidades presentes
nesse livro, que aqui se unem com a intenção maior de mostrar as
contribuições de Freire para a educação na atualidade. E nesse
momento, no qual as palavras se demoram a sair de minhas mãos, eu
me aproximo dos escritos iniciais, quando nos reunimos na sala de
aula da Pós-graduação em Educação da UNB e desenhamos a
proposta do Seminário Paulo Freire, vida e Obra: Diálogos que
permanecem, para recriar e continuar o diálogo:
“Depois de mais 20 anos de despedida de Paulo Freire, seu
pensamento reverbera em muitos educadores e educadoras que,
amando a humanidade, assumem o compromisso histórico de viver na
pele a densidade e a beleza da vida através da educação. Esse livro abre
as possibilidades de reflexão sobre as múltiplas pedagogias desse
educador que influenciou o mundo ocidental no século XX e que até a
atualidade mobiliza profissionais e intelectuais de diferentes áreas do
conhecimento. No cenário educativo atual precisamos veementemente
das lentes múltiplas de Paulo Freire presentes nas Pedagogias da

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Liberdade, do Oprimido, da Autonomia, da Pergunta, da Indignação, por
citar algumas, para ver e compreender a pauta histórica da
contemporaneidade e criar, desde uma ação pedagógica da Esperança,
um reencontro com nossa humanidade que se manifesta na relação com
os outros e com o mundo”.
De fato, esse é um livro de diálogo, do mais perene, radical e
humano diálogo.

Joelma Carvalho Vilar


Brasília, Verão de 2020.

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SOBRE A ESCULTURA DE PAULO FREIRE EM ARGILA
CRUA, CRIADA PARA A CAPA DESTE LIVRO.

O trabalho com argila em si é a expressão do modo de ser do povo


nordestino. Um fazer ancestral tão rico que une o inconsciente
coletivo e a identidade de cada artesão - aquele que é mestre na vida,
em seu labor, cria e recria, forja o que é mais puro, genuíno, do que é
"ser gente", em Arte! Cultura!
A escultura "Paulo Freire inacabado", retratada na capa deste
livro, carrega a sabedoria desse povo, que transmite esse "fazer"
através da oralidade às novas gerações. As mesmas mãos que
amassam o barro, modelam a vida com traços fecundos porque
confiam na força dessa ação e, por isso, nutrem e são inspiração, assim
como esse grande educador.

Escultoras/Artistas:
Josiene de Carvalho Santana
Mony Grazielle Barros Santos

Aracaju, Dezembro de 2019.

23
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PAULO FREIRE VIVE!

Nada teria a acrescentar a respeito da obra de Paulo Freire que os


acadêmicos e pesquisadores da área de educação, como vocês, já não
o conheçam, inclusive quem foi Paulo Freire e o legado que ele deixou,
e que o torna eterno.
Talvez minha contribuição seria partilhar com os/as participantes
deste seminário um pouco do que eu vivi com Paulo Freire, o privilégio
que foi conviver com aquela figura humana extraordinária e beber na
sua fonte de sabedoria.
Conheci Paulo Freire por meio do seu método de alfabetização de
adultos que adotei no meu trabalho com os camponeses no interior da
Paraíba. E durante os anos em que ele esteve no exílio tive acesso a
alguns dos seus livros, como, “Educação como prática da liberdade”,
“Pedagogia do oprimido” e outros, que conseguíamos adquirir
clandestinamente e lê-los escondido. Foi assim que, aos poucos,
conheci a obra monumental do grande mestre da educação.
Na época, para nós jovens, ele era um mito, arrancado do nosso
meio, como um perigoso “subversivo”, por ser um professor que, não
só alfabetizava os trabalhadores, mas também os conscientizava,
tirando-os da alienação. Isso para o regime militar era uma ameaça,
portanto tinha que ser eliminado. Ele foi preso, mas conseguiu fugir e
exilar-se.
A arma que ele usava contra o arbítrio e a força bruta da ditadura
civil-militar era poderosa: a conscientização que transformava o/a
trabalhador/a em sujeito político e, como tal, agente transformador de
si mesmo e da sociedade, aquela onde vivia e que o oprimia.
Durante os quase 16 anos de exílio de Paulo Freire, nosso contato
com ele se dava por meio dos seus livros, editados em diferentes
países por onde passou e em línguas estrangeiras e que entravam
clandestinamente no Brasil, por meio de pessoas que viajavam para o
exterior e que não participavam da luta de resistência ao regime, e que
por isso conseguiam incluí-los em suas bagagens, sem despertar
suspeita.
Mais do que nunca, as obras de Paulo Freire eram fonte de
inspiração para nossa reflexão como ativistas na resistência à

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repressão política, e no trabalho junto aos setores populares da
sociedade, no campo e na cidade.
Por ordem do comando militar da Paraíba, fui vetada, por
restrições ideológicas, a integrar o corpo docente da Universidade
Federal daquele Estado, o que me levou a migrar para São Paulo. Saí
de lá magoada, com a sensação de estar deixando a luta para trás. No
entanto, a máxima de que “Deus escreve certo por linhas tortas” no
meu caso se confirmou.
Chegando em São Paulo, fiz concurso público para o cargo de
Assistente Social da Prefeitura Municipal e, tendo conseguido uma boa
classificação, fui nomeada logo e designada para trabalhar nas favelas
e nos cortiços na periferia da cidade, onde estavam instalados os
camponeses sem terra, que tiveram que sair do seu lugar de origem
em razão da mudança da política agrária do governo militar, que
substituiu a atividade de produção agrícola pela pecuária, gerando
excedente de mão-de-obra no campo. Daí o aumento do fluxo
migratório para o sul do país, e a cidade de São Paulo era o destino da
maior parte dos imigrantes.
O primeiro problema que essa população enfrentava ao chegar à
cidade era, exatamente, onde morar. Aí passaram a ocupar os espaços
vazios da cidade, dando origem ou adensando os núcleos de favelas já
existentes. Então, tiveram que enfrentar os conflitos com os donos
dos terrenos ocupados, tanto os proprietários privados, como o poder
público a quem os terrenos públicos pertenciam. Daí me dei conta de
que eu havia mudado apenas de frente de luta em relação à mesma
causa: a divisão da terra no campo e na cidade, ou seja, a luta pela
Reforma Agrária e Reforma Urbana.
Nosso compromisso profissional como Assistentes Sociais era o
de ajudar na organização da população para enfrentar os despejos e a
repressão policial a mando dos proprietários de terra e/ou do próprio
Estado.
Uma contradição se colocou para nós, profissionais e agentes
públicos, por termos que executar uma política pública contrária aos
direitos e interesses populares. Não havia como escaparmos do
dilema: estar a favor ou contra a população excluída. Assim, tivemos
que enfrentar também na cidade de São Paulo a perseguição dos
governos em razão do nosso compromisso com o povo. Tudo isso me
preparou para assumir responsabilidades ao longo da minha trajetória

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pessoal e política, e em todas as circunstâncias tive sempre as lições de
Paulo Freire como referência.
Como Assistente Social da Prefeitura também trabalhei no
programa de alfabetização de adultos do governo militar: o MOBRAL,
na condição de coordenadora da equipe técnica. Então, conseguimos
engendrar uma saída para aplicarmos o método de alfabetização de
adultos de Paulo Freire, sem que fôssemos flagrados. Elaboramos um
material para substituir o que era distribuído pelo governo e adotado
em todo o Brasil, da Editora Abril. Assim, tínhamos as nossas apostilas
e capacitávamos os monitores seguindo outra orientação pedagógica
inspirada em Paulo Freire. Claro que passávamos por grandes riscos,
mas isso fazia parte da luta de resistência ao regime militar. É verdade
que sofremos alguns processos administrativos e graves ameaças de
demissão. A luta de resistência continuou, bem como a perseguição
aos que lutavam pelas liberdades democráticas.
Outro meio que usamos na luta de resistência à ditadura militar
foi a organização política da categoria. Reativamos a Associação
Profissional das Assistentes Sociais de São Paulo, para apoiar e
defender os assistentes sociais que trabalhavam com o povo e que
sofriam perseguição. Contribuímos também na organização dos
movimentos sociais populares que se mobilizaram em defesa dos seus
direitos sociais, inclusive o direito à moradia, que resultou no forte
movimento dos moradores de favelas e cortiços da cidade de São
Paulo, que se expandiu por todo o país e se tornou um importante
movimento nacional.
Em um dado momento desse processo de resistência nos demos
conta de que a luta reivindicativa dos movimentos sindical e populares
não eram suficientes para enfrentar a ditadura e para transformar a
realidade no interesse dos trabalhadores e trabalhadoras. Aí, então,
tomamos consciência da necessidade de um instrumento mais eficaz
na luta que travávamos, ou seja, um partido político, sem, no entanto,
abandonarmos a luta sindical nem a luta reivindicativa dos
movimentos populares. Foi quando fui convidada por Luís Inácio Lula
da Silva para nos juntarmos a ele e a outros companheiros(as) na
construção de um partido político, o Partido dos Trabalhadores (PT),
que envolvesse os trabalhadores do campo e da cidade. Assim,
comecei minha primeira experiência político-partidária que procurei
articular com minhas experiências profissional e sindical, no sentido de

27
ampliar meu sonho de transformação da realidade, na perspectiva de
construção de uma nova sociedade. A partir de então, passei a
participar da construção do PT e iniciei a minha militância política na
formação dos núcleos de base do partido.
Como candidata do P.T. fui eleita vereadora à Câmara Municipal
de São Paulo; deputada estadual da Assembleia Legislativa de São
Paulo; e prefeita de São Paulo, abrangendo o período de 1983 a 1992.
Por um curto período de tempo fui Ministra da Administração Federal
do governo Itamar Franco. Atualmente, exerço o quinto mandato de
Deputada Federal pelo PSOL.. Essa caminhada continua até hoje e
sempre foi coletiva; sozinha não se chega a lugar nenhum, muito
menos na ação política.
Conheci Paulo Freire pessoalmente só depois que ele voltou do
exílio, no final da década de 70, por ocasião de uma solenidade de
formatura de uma turma de Assistentes Sociais das Faculdades
Metropolitanas Unidas (FMU), onde eu era professora, e que havia me
escolhido paraninfa e Paulo Freire patrono. Aquela festa de formatura
se realizou fora do espaço da Universidade por restrições da sua
direção a mim e a Paulo Freire, considerados por ela subversivos. Foi,
portanto, naquela oportunidade que se deu meu primeiro encontro
pessoal com Paulo Freire, que representou para mim um momento
mágico ao abraçar alguém cuja imagem e história de vida povoaram o
imaginário da minha adolescência e inspiraram meu sonho de ver
nosso povo emancipado e feliz.
Eu esperava que Paulo Freire fizesse um discurso ressentido e de
denúncia sobre o que a ditadura lhe fizera e aos demais opositores do
regime. Ao contrário disso, ele mostrou doçura e falou do seu afeto
pelas pessoas, do seu amor pela vida, e do quanto era feliz por estar
de volta para “reaprender” o seu país, de poder estar novamente com
a sua gente e de se deliciar com a comida típica do Nordeste. Enfim,
ele não falou do passado, nem do que havia sofrido no exílio. Falou,
sim, do presente e do futuro e do quanto estava feliz naquele
momento. Esta foi a primeira lição que recebi dele naquele
extraordinário e inusitado primeiro encontro. Foi incrível ver que ele
conseguira transformar a dura e cruel experiência de um longo período
de exílio, e projetá-la em uma perspectiva de esperança e de fé na vida
e no país.

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Algum tempo depois, fui eleita vereadora à Câmara Municipal de
São Paulo pelo PT, o que serviu de pretexto para me demitirem após
dez anos em que lecionei naquela Faculdade. É verdade que há muito
queriam se livrar de mim, por causa de minhas posições político-
ideológicas. Como vereadora, apresentei e consegui que fosse
aprovado um Requerimento à Mesa Diretora da Câmara Municipal de
São Paulo, concedendo a Paulo Freire o Título de Cidadão Paulistano.
Anos depois fui eleita, também pelo PT, prefeita do Município de
São Paulo, primeira mulher a ocupar esse cargo. Foi, sem dúvida, uma
vitória inusitada, não só para o PT, mas para toda a esquerda brasileira.
Antes da posse, fui a Uiraúna, na Paraíba, cidade onde nasci, para
visitar minha gente, beber na fonte e reiterar meu compromisso de
luta com meu povo. Passei por várias cidades do Estado nas quais vivi
em busca de oportunidade de estudar. Campina Grande foi uma delas,
e de lá telefonei a Paulo Freire para convidá-lo para ser o Secretário de
Educação do nosso governo, embora sem muita expectativa de que
ele aceitasse, pois sabia da sua aversão a cargo público. Mesmo assim,
ousei fazer o convite. Liguei para sua residência, em São Paulo, e quem
atendeu foi Nita, sua esposa, que informou que ele se encontrava em
Campinas dando aula na Unicamp. Então, liguei e consegui falar com
ele.
Foi enorme minha alegria e surpresa ao ouvi-lo dizer ao telefone:
“Eu jamais pensei assumir novamente um cargo público, mas não
ficaria em paz com a minha consciência se recusasse a colaborar com
a primeira experiência de governo democrático e popular. Eu aceito o
convite”. Do outro lado da linha, a milhares de quilômetros de
distância, me emocionei com a sua resposta e generosidade. Estava,
portanto, escolhido o primeiro nome para o meu secretariado. O
Nordeste e o país inteiro vibraram e aplaudiram minha escolha.
A partir de 1º janeiro de 1989, Paulo Freire foi o Secretário
Municipal de Educação do Município de São Paulo, cargo em que
permaneceu por quase dois anos e meio, marcando definitivamente a
histórica da educação na maior cidade do país, terceira maior cidade
do mundo. As crianças pobres da periferia de São Paulo, a quem ele
chamava de “meninos populares”, se tornaram sua paixão de
educador e, para elas, criou uma “escola alegre”.
Foi competente e democrático na condução da pasta. Formou
uma equipe de auxiliares a quem delegou poder e autonomia. Exercia

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autoridade de forma democrática e enfrentava situações conflituosas
com muita paciência e dizia que o trabalho educativo exigia paciência
histórica porque a educação é um processo de longo prazo. Encontrou
uma secretaria com prédios e equipamentos deteriorados, os
educadores desmotivados e sem qualquer orientação pedagógica.
Em entrevista a um jornal, em 19 de fevereiro de 1989, menos de
dois meses do mandato, ele afirmou: “Se não apenas construirmos
mais salas de aula, mas as mantivermos bem cuidadas, zeladas, limpas,
alegres, bonitas, cedo ou tarde a própria boniteza do espaço requer
outra boniteza: a do ensino competente, a da alegria de aprender, a da
imaginação criadora tendo liberdade de exercitar-se, a da aventura de
criar”.
Dedicou-se à formação permanente dos educadores e defendia
ardorosamente melhores salários para os professores. A propósito, ele
me escreveu a seguinte carta, em julho de 1990: “Prezada Erundina, se
há algo que não precisamos fazer, você e eu, é tentar convencer, você
a mim, eu a você, de que é urgente, entre inúmeras mudanças neste
país, mudar a escola pública, melhorá-la, democratizá-la, superar seu
autoritarismo, vencer seu elitismo. Este é, no fundo, seu sonho, nosso
sonho. A materialização dele envolve, de um lado, o resgate de uma
dívida histórica com o magistério, de que salários menos imorais são
uma dimensão fundamental, de outro, a melhoria de condições de
trabalho, indispensáveis à materialização do próprio sonho. Suprem
estas condições a possibilidade de trabalho coletivo para a efetivação
da reorientação curricular e a formação permanente dos educadores e
das educadoras, que não se pode realizar a não ser mudando-se
também o que se entende hoje por jornada de trabalho nas escolas”.
“Se há muito estou certo e absolutamente convencido hoje de
que, só na medida em que experimentamos profundamente a tensão
entre a “insanidade” e a sanidade, em nossa prática política, de que
resulta nos tornarmos autenticamente sãos, é que nos faremos
capazes de separar as dificuldades só aparentemente intensas
possíveis que nos apresentam na busca da concretização de nossos
sonhos”.
“Na verdade, querida Erundina, é isso o que você vem sendo e é
isso o que você vem fazendo ao longo de sua vida de militante,
amorosa da verdade, defensora dos ofendidos, entregue sempre à
boniteza doida de servir”.

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“O texto que se segue, de produção coletiva, amorosamente
militante também, é uma espécie de grito manso, de apelo, em busca
de concretização de nossos sonhos. Do amigo, Paulo Freire”.
Depois de dois anos e meio ele me pediu para deixar o cargo: “A
equipe que formei e que vou deixar é plenamente capaz de continuar
o trabalho que começamos. Quero ir para casa, para escrever sobre a
experiência que realizamos”. Relutei em aceitar a sua saída, porém eu
sabia do quanto o cargo lhe pesava, sobretudo devido aos problemas
que enfrentava na relação com o partido. Outra questão que lhe
custava muito era conviver com as críticas injustas e ofensivas da mídia
ao nosso governo; com o preconceito e discriminação contra nós.
Todos nós que convivemos com ele no governo nos lembramos
com emoção de sua presença humilde e discreta nas reuniões do
Secretariado, da profundidade e riqueza de suas intervenções. Ele nos
marcou a todos e todas com a beleza da sua sabedoria e coerência, e
com a leveza do seu afeto e compreensão humana.
A última vez que estive com Paulo Freire foi no ato de lançamento
do seu último livro, “Pedagogia da autonomia”. Ele escreveu no meu
exemplar: “Para Erundina, com a mesma esperança, com a mesma
força com que briguei a seu lado, pela educação em São Paulo. Com o
querer bem de Paulo Freire”. Vi, na ocasião, como ele estava feliz e,
brincando, me disse: “Como vê, estou cumprindo a promessa que fiz a
você. Este é o sétimo livro que escrevi depois que saí do governo”.
Terminando o mandato de prefeita, fui eleita deputada federal
pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) em 1998, e nessa condição tive
a oportunidade de prestar mais uma homenagem a Paulo Freire que já
havia partido. Sou autora da Lei nº 12612, de 13/04/2012, que declara
Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. Justo tributo do povo
brasileiro, por meio de seus representantes no Congresso Nacional, a
um dos maiores mestres e filósofos da educação do Brasil e do mundo.
Por tudo isso e muito mais “Paulo Freire Vive” na história da
Educação brasileira e na mente e no coração de todos(as) nós!!!

LUIZA ERUNDINA DE SOUSA


04/01/2019

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32
UMA PEQUENA CARTA DE AUGUSTO CHARAN A
PAULO FREIRE

De acordo com a segunda esposa de Freire e herdeira legal de sua


obra – Nita Freire – Paulo, como ela comumente o chama ainda,
gostava de escrever textos em formato de carta (FREIRE, 2000a, p. 9).
Assim, tive a ideia ousada de escrever algumas palavras para o Patrono
da Educação Brasileira como se ele ainda existisse materialmente entre
nós. Pois, vivo ele está! De uma certa maneira, ele se faz presente em
nossas mentes quando nos debruçamos sobre os seus livros, sobre
seus pensamentos. Freire dizia, conforme relato de Nita que “as
verdadeiras ações éticas e genuinamente humanas nascem de dois
sentimentos contraditórios e só deles: do amor e da raiva” (FREIRE,
2000a, p. 13). Sendo assim, é com muito amor que me comunico aqui
com Freire. Interlocução teórica que começou a mais de uma década.
Poderia começar falando sobre a “Pedagogia do Oprimido”, escrito
que lhe proporcionou renome internacional. Antes disso, porém, irei
brevemente me deter em como eu conheci o referido educador. Quando
eu cursava a graduação na Universidade de Brasília, li em um determinado
artigo científico que agora não me recordo nem o título e muito menos o
autor, a seguinte frase escrita por Freire: “Quando a educação não é
libertadora o sonho do oprimido é ser o opressor”. Eu fiquei fascinado e
doido (à la Freire) e extremamente contente (à la Spinoza). Essa espécie
de axioma proferido por você, Freire, marcou tanto meu espírito que se
tornou a epígrafe de minha tese de doutorado (GONÇALVES, 2017). Freire,
eu objetivei defender em minha pesquisa uma educação musical
conforme os princípios oriundos da Teoria Histórico-Cultural de Lev
(Leão) Semionovitch (Filho de Simeão) Vigotski de cunho marxista e
spinozista (GONÇALVES, 2017).
Para demonstrar que a teoria de Vigotski possibilita a proposição
de uma educação musical em novas bases, auxiliando a conceber a
música como atividade educativa forjada na unidade educação-música
voltada para a educação do desenvolvimento da musicalidade das
pessoas, utilizei, ao longo de todos os capítulos, o método materialista
histórico-dialético (tão caro a você, Freire) de raciocínio que me
permitiu extrair todos os fundamentos da psicologia histórico-cultural

33
necessários para a consolidação epistemológica de um outro modo de
educação musical que pensa, dentre muitas outras coisas, a
experiência, a vivência (radical experience), a emoção, a educação, o
professor, o estudante, o ensino, a escola, o desenvolvimento, a
aprendizagem, a estética, a arte e a música de uma forma singular e
extremamente humana (GONÇALVES, 2017).
Por falar neste assunto, sobre Vigotski, sei que você é um notório
admirador e já afirmou o seguinte:

[...] É preciso que a escola progressista, democrática, alegre, capaz,


repense. [...] Que reveja a questão da compreensão do mundo,
enquanto produzindo-se historicamente no mundo mesmo e também
sendo produzida pelos corpos conscientes em suas interações com ele.
Creio que desta compreensão resultará uma nova maneira de entender
o que é ensinar, o que é aprender, o que é conhecer de que Vygotsky não
pode estar ausente (FREIRE, 1993 [1997, pp. 49-50] apud PEDERIVA,
2018, p. 21).

Assim como Spinoza, Marx e Vigotski, eu o considero meu Mestre,


Freire. E isso eu fiz questão de explicitar em minha investigação
(GONÇALVES, 2017, p. 259). Você brilha pelo respeito que guarda pelos
diversos autores que estudou, pelo amor que possuía ao conhecimento,
pela amorosidade ética que a sua epistemologia irradia aos quatro cantos
do mundo, pela defesa que sempre fez dos oprimidos, dos “esfarrapados
do mundo”, dos que vivem no terceiro mundo do primeiro, pelas minorias
(populações negras, indígenas, pobres, etc.) que na realidade são
maiorias dominadas por uma pequena elite serviçal (verdadeira minoria)
das leis impostas pelo mercado financeiro.
Você ilumina o mundo por sua boa luta, pela “boa raiva” e pela
indignação contra as ideologias fatalistas que pregam a ideia de que as
coisas sempre foram assim desse jeito mesmo ou que a pobreza ou as
favelas foram eternamente dessa forma, isto é, nessa direção, não haveria
como mudar (!) e isto é para você, algo a ser combatido, uma ideia e
postura que merecem ser postas em xeque. Sobre isto especificamente,
Freire assegura que “[...] mudar o mundo é tão difícil quanto possível [...]
não há cultura nem história imóveis” (FREIRE, 2000, pp. 30- 39). Tudo está
na permanente impermanência, não é mesmo, Freire?
Você clareia os horizontes quando critica a perversidade de
alguns teóricos e pessoas que juram, por interesses nebulosos, não

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haver mais lutas de classes, explorados e exploradores, oprimidos e
opressores. Não, você assevera com todas as palavras: há pessoas que
para ser, tiveram que não saber e para saber, tiveram que não ser. Ao
serem exploradas, as pessoas foram e ainda são proibidas ou de ser ou
de saber ou ambas as coisas.
Freire, devo lhe confessar: como é difícil libertar o opressor que
habita em nós! Como é complexo nos libertar! Como é difícil não oprimir
e ser oprimido cotidianamente! Como é problemático entender que não
há liberdade sem autoridade (o que não quer dizer autoritarismo)! Como
é difícil ser neste mundo governado por lógicas que vão na contramão de
nossa humanização e emancipação social! Você sempre brigou pela
possibilidade do SER ser mais, ser epistemologicamente curioso e
politicamente consciente de si e do mundo social.
De modo semelhante ao que Marx propunha, você defende a
ideia de que a ideologia seria uma “falsa consciência”, um
“mascaramento”, uma “neblinização”, um “ofuscamento” da
realidade objetiva. Por isso você também lutou pela constituição de
uma pedagogia da “desocultação da verdade”, como você costuma
chamar! Na minha opinião, Freire, você conseguiu este feito e nos
legou uma teoria que ainda merece ser mais estudada, mesmo
sabendo que tu és um dos autores mais citados do mundo.
Sua epistemologia é de uma riqueza imensurável. Digo
epistemologia pela razão de que o seu método de alfabetização
permite muito mais do que chamá-lo de alfabetizador, possibilita
denominá-lo de filósofo ou um pensador que considerava, segundo
você mesmo, a alfabetização apenas como um momento do fluxo das
coisas e das leituras da palavra e do mundo.

Eu tenho até minhas dúvidas se pode falar de Método. E há, há um


método. Aí é que está um dos equívocos dos que, por ideologia, analisam
o que eu fiz procurando um método pedagógico, quando o que
deveriam fazer é analisar procurando um método de conhecimento e, ao
caracterizar o método de conhecimento, dizer, “mas esse método de
conhecimento é a própria pedagogia”. Entendes? O caminho era o
caminho epistemológico. Evidentemente tem gente que descobriu isso
[...] não é o método do ba-be-bi-bo-bu. Se o sujeito ler direitinho os
textos que eu tenho escrito, sobretudo os recentes, sobre o problema
da alfabetização, ele descobre que o que eu estou fazendo é teoria do

35
conhecimento. A alfabetização enquanto um momento da teoria do
conhecimento (FREIRE, 1978, p. 4 apud OLIVEIRA, 2012, p. 513).

Um momento tão importante, que se por um lado começou a te


fazer conhecido no Brasil e no mundo todo, por outro lado, fez de você
uma persona non grata para a Ditatura Militar Brasileira (e todos os
seus asseclas) iniciada no ano de 1964 e oficialmente encerrada em
1985, data em que eu nasci, no mesmo mês em que você veio ao
mundo: setembro, perto da primavera.
Como você pôde ter sido exilado, Freire? Que culpa você teve ao
querer alfabetizar (conscientizando gnosiologicamente, politicamente
e epistemologicamente, etc.) uma quantidade esmagadora de
brasileiras e brasileiros trabalhadores e oprimidos? Você foi condenado
a sair do país porque a sua intenção era muito luminosa para um
período histórico tão sombrio, com a utilização da tortura, da censura,
da mentira, da calúnia, da difamação, da injúria, da truculência, da ira e
da violência em todos os âmbitos imagináveis. Tenho meus
pressupostos e o principal é: você não almejou apenas que as pessoas
aprendessem a ler e a escrever.
Na realidade, você conseguiu em parte que milhares de pessoas
mundo afora aprendessem a ler e a escrever a história humana pelo
ponto de vista dos que foram saqueados, dos que foram
amordaçados, dos que foram excluídos, dos que foram invisibilizados
pela sociedade. Sei que no tempo de exílio a saudade e a nostalgia do
Brasil eram enormes, do sabor das frutas daqui: do cajá, do caju...
Freire, como pôde a “Pedagogia do Oprimido” ter sido publicada
primeiramente em outras línguas (e países) que não o português,
nossa língua natal? Eu sei, meu amigo... Não foi tua culpa... Não precisa
se justificar para mim. Originalmente, o livro “Pedagogia do Oprimido”
foi confeccionado para caber no bolso de toda trabalhadora e
trabalhador brasileiro, sei disso. Freire, você fez muito bem ao pensar
antes no povo do que nos acadêmicos. É que estes últimos, muita das
vezes tem uma dificuldade enorme de seguir teus conselhos,
sobretudo um: “Encurtar cada vez mais o que se diz com o que se faz”.
Mas não posso ser injusto. O exercício de coerência é um desafio
para todas as pessoas (sejam elas acadêmicas ou não). E nisso você
está de parabéns. Como você foi coerente com você mesmo e com a
sua teoria! Você não teve medo de ser humano. Não teve receio de
assumir que você algum dia foi machista (escrevendo em seus textos

36
apenas o termo homem e se esquecendo das mulheres), o como foi
difícil parar de fumar os maços de cigarros que diariamente você
tragava. Você não tinha temor de se (re)pensar. Você não tinha timidez
de se assumir humano e admitir seus próprios preconceitos. Freire,
realmente creio que não podemos ter preconceito de ter
preconceitos. Devemos aceitar os nossos conceitos prévios, nossos
condicionamentos históricos e culturais e declarar para nós mesmos
que somos seres “inacabados”, como você mesmo advogava.
Temos que ter a humildade para compreender que sabemos
alguma coisa, mas não sabemos tudo, como você gostava de escrever
em seus livros. E mais, ter a certeza (como você tinha) de que ninguém
é melhor ou pior do que ninguém. Você não sentia paúra de alegar que
a educação é permeada pelos conflitos de classes e que nós
precisamos saber de que lado estamos dispostos a lutar: pelos
oprimidos ou pelos opressores? Não existe neutralidade para você e,
para ser sincero e honesto, nem para mim. Você escreveu certa vez
que a professora e o professor “progressista ensina os conteúdos de
sua disciplina com rigor [...] mas não esconde sua opção política na
neutralidade impossível de seu que-fazer” (FREIRE, 2000, p. 44).
Vivemos em uma época tenebrosa no Brasil atual, Freire. Temos um
Projeto de Lei criado há alguns anos intitulado “Escola sem Partido” que
pretende retirar das salas de aula quaisquer assuntos que se relacionem à
política (como se não fôssemos seres essencialmente sociais e políticos)
ou às questões de gênero, dentre outras coisas. Você já deixou claro que
essa pretensa despolitização do ser humano é na realidade uma cilada. É
um absurdo o que querem fazer ao quererem tirar das classes a criticidade
dos educandos, a possibilidade de ler o mundo com “rigorosidade
metódica” na esperança por um mundo mais bonito, onde haja mais
“boniteza”, termo tão utilizado por você!
A esperança para você é ontológica, isto é, faz parte mesmo da
natureza social do ser humano. Eu acho uma verdadeira “boniteza” a
maneira como você concebe a esperança, até o tornou verbo!
Esperancear! Não é aquele tipo de esperança do esperar, do se sentar e
ver passivamente as coisas acontecerem ao nosso redor. Não! É uma
esperança que só faz sentido lutando, esbravejando, enfim, sendo
sujeitos ativos e transformadores. Você realmente não se dá muito bem
com a passividade política, não é mesmo, Freire? É por isso que na
“Pedagogia do Oprimido” você se refere ao termo “educação bancária”

37
a todo modo de educação que respalde um educador supostamente
detentor de todo o saber e educandos “tabula rasa” que necessitariam
receber passivamente depósitos de conhecimentos empacotados em
suas “cabeças vazias” e desprovidas de espírito crítico.
Bom, chegou a hora de me despedir de você, meu querido
educador. Estou ouvindo algo que você também adorava escutar: as
“Bachianas” de Villa-Lobos, exímio compositor brasileiro. Aliás, foi
inesquecível a homenagem que eu e alguns educadores lhe prestamos
no ano de 2017, no auditório da Associação dos Professores da
Universidade de Brasília. Foi muito marcante quando eu toquei em
meu violão e meu amigo Tiago Romão (no violino) a “Bachianinha nº
5” para a Nita Freire e algumas pessoas ilustres que se fizeram
presentes naquele dia tão especial e emocionante.
Um grande abraço, Mestre.
Ass.: Augusto Charan

Referências

FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Apresentação. In: FREIRE,


Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos.
São Paulo: Editora UNESP, 2000a.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros
escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
GONÇALVES, Augusto Charan Alves Barbosa (2017). Educação Musical
na Perspectiva Histórico-Cultural de Vigotski: A Unidade Educação-
Música. Tese de Doutorado em Educação. Brasília: Faculdade de
Educação da Universidade de Brasília.
OLIVEIRA, Edna Castro de. Alfabetização como ato de conhecimento
em Freire: escrita e leitura de mundo. In: Linhas Críticas: revista da
Faculdade de Educação/UnB. Universidade de Brasília: FE/UnB, 2012.
PEDERIVA, Patrícia Lima Martins. Apresentação: Educação na
Perspectiva Histórico-Cultural. In: PEDERIVA, Patrícia Lima Martins;
BARROS, Daniela; PEQUENO, Saulo (Orgs.). Educar na perspectiva
histórico-cultural: diálogos vigotskianos. Campinas: Mercado das
Letras, 2018.

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A CONSTITUIÇÃO DO SER-HUMANO EM PAULO FREIRE:
TRANSFORMANDO VIDAS E LIBERTANDO REALIDADES

Prof. Dr. Renato Hilário


Profª. Ms. Ângela Dumont Teixeira

“Mudar é difícil, mas, é possível: a história como possibilidade”


(FREIRE, 1996, p. 85-94 e 2001, p. 161-
184).

“Querido Paulo,
Começamos esta carta com um trecho de um poema de Thiago
de Mello, seu particular amigo, faz em sua homenagem:
“Peço licença para algumas coisas
Primeiramente para desfraldar
Este canto de amor publicamente
Sucede que só sei dizer amor
Quando reparto o ramo azul de estrelas
Que em meu peito floresce de menino”
(Thiago de Mello, em Canto Geral, 1984, p.223)

A poética do Thiago de Melo, introduz nossa carta, e quer dizer,


de nossa gratidão também de quantas saudades temos de você, que
continua sendo, uma fogueira de esperança, um círculo de
possibilidades dialógicas, uma presença inspiradora nestes tempos
difíceis no Brasil e no Mundo.
Neste texto, Paulo, como evidência de sua continuidade entre
nós, fazemos uma evocação e significação de sua vida e obra, com
ênfase na sua Pedagogia da Autonomia, Pedagogia da Indignação e
Pedagogia dos Sonhos Possíveis. Pedimos sua licença, para fazer este
esforço hermenêutico, destacando o que nos ensina como
possibilidade histórica de mudança a uma sociedade, que seja
diferente e melhor para todas e para todos, particularmente, para os
esfarrapados do mundo.
Estamos em um mundo talvez, ainda mais complexo do que
quando nos deixou há cerca de 21 anos atrás (1997). O capitalismo

39
mostra sinais de expansão. Permanece não respondendo aos anseios
e necessidades da distribuição igual, fraterna e solidária da riqueza
produzida pelo conjunto dos seres humanos.
Imaginávamos, em tempos idos, a superação eminente, do modo
de produção capitalista, mas, eis que refulge vigoroso e globalizado,
sem contraponto dialético e na sua natureza mais selvagem. No nosso
Brasil, as classes dominantes, através da presteza e subserviência de
um governo ilegitimamente empossado e a fragilidade da democracia
representativa (quando teremos a participativa?), a classe
trabalhadora é violentamente surrupiada em seus direitos trabalhistas
e previdenciários. O desespero, a polaridade certo/errado, a
intolerância no mundo e no Brasil fazem você, cada vez mais atual,
sobretudo, com sua Pedagogia da Esperança.
Em seu livro Pedagogia da Autonomia (1996, p. 88), você nos diz
que “Mudar é Difícil, mas, é Possível”; que “a rebeldia é ponto de
partida indispensável, é deflagração da justa ira, mas não é suficiente”.
A rebeldia enquanto denúncia precisa se alongar até uma posição mais
radical e crítica, a revolucionária, fundamentalmente anunciadora.
Você ainda nos diz, que “é a partir deste saber fundamental
'mudar é difícil, mas, é possível: a história como possibilidade' que vamos
programar nossa ação político-pedagógica, não importa se o projeto
com o qual nos comprometemos é de alfabetização de adultos ou de
crianças, se de ação sanitária, se de evangelização, se de formação de
mão de obra técnica”. Como, sempre, Paulo, você denuncia uma
sociedade injusta, mas, anuncia ao mesmo tempo, uma sociedade de
iguais, fraterna, solidária, amorosa. Anticapitalista, pois.
Com sua licença, vamos abordar agora nesta carta, alguns de seus
enunciados práxicos, que estão, a nosso ver, a base desta sua
ontologia revolucionária de mudança, transformação, libertação e
emancipação. Não são todos. São alguns. Mas, que julgamos
adequados, para este momento de nossa carta. Vamos a eles:

1. Amor e Raiva/Indignação.

Sua querida Nita, em 11 de fevereiro de 2000, quando da


apresentação do “Pedagogia da Indignação” (2000, p. 13), nos lembra,
que: “não podemos esquecer que Paulo sempre dizia que as
verdadeiras ações éticas e genuinamente humanas nascem de dois

40
sentimentos contraditórios e só deles: do amor e da raiva. E este livro
(Pedagogia da Indignação), talvez mais do que os outros, está
‘empapado’, como ele dizia, de seu amor humanista e de sua raiva ou
indignação que se traduziram em toda sua obra, porque as vivia na sua
existência. Quer sob a forma de antropologia política/ compaixão/
solidariedade genuinamente humanista__, quer sob a forma de uma
epistemologia histórico cultural __crença/fé nos homens e nas
mulheres e certeza na transformação do mundo a partir das(os)
oprimidas(os) e injustiçadas(os), através da superação da contradição
antagônica opressor/oprimido__ quer ainda sob a forma de uma
filosofia sociontológica com base, sobretudo, na esperança. Esta, pois,
entendida em relação com o amor e a indignação. “[...] Paulo nos
conclama para a concretização deste ‘inédito’, desta utopia que é a
democratização da sociedade brasileira, através do amor-indignação-
esperança”.

2. Saber Só de Experiência Feito.

Tenho que contemplar, também, seu “saber só de experiência


feito”, que se inspira em Camões e que está em um capítulo muito
bonito, elaborado com as Professoras Maria Luísa Pinho Pereira e Rita
Carolina Verezza Bruzzi e o professor Renato Hilário dos Reis, com o
nome de “Implicações da Pesquisa-Ação no Proeja”, publicado no
livro: “Proeja-Transiarte: construindo novos sentidos para a educação
de jovens e adultos trabalhadores” (2012, pp. 94-110).
Com este “saber só de experiência feito”, você nos diz que todo
ser humano tem um saber acumulado, histórico, culturalmente
herdado e aprendido, a partir de sua concepção e na relação que este
ser humano estabelece dialeticamente com seu mundo interno e em
relação social. Saber este, conectado e processualmente ligado a
nossos antepassados e nossas antepassadas.
Você nos convida a considerar o “saber só de experiência feito”,
sem permanecer nele, uma vez que ele precisa ser superado. Nesta
perspectiva sinto que você se aproxima de Bakhtin, quando este nos
coloca a necessidade da transformação da palavra alheia em palavra
alheio-própria e palavra-própria.
Tendo o “saber só de experiência feito”, como eixo norteador e
referência, perguntamos ao amigo: como, ter um currículo de uma

41
educação infantil sem escutar a criança, no que tem de vida? Como ter
um currículo do ensino fundamental, médio, graduação, mestrado,
doutorado e uma base comum nacional sem escutar os adolescentes,
jovens, adultos e idosos? Como ensinar e aprender com crianças,
jovens, adultos, idosos sem considerar como ponto de partida o saber
acumulado historicamente vivo delas e deles? Como conceber um
currículo que não seja resultado e processo de um movimento
dialógico de educandas, educandos, educadoras, educadores,
sociedade civil e política e que pressuponha a organização em
disciplinas do currículo? Com estas perguntas, vamos a mais um
enunciado seu de denúncia e anúncio:

3. Consciência de Classe: Trabalho e Capital.

Como se dá na subjetividade em cada pessoa, a contradição e


resistência do trabalho frente ao capital. Você acha Paulo, que existe
alguém que nasce sem uma herança biológica cultural capitalista, num
mundo, em que impera este modo de produção? Que oprimida/o não
tem o germe do opressor dentro dela ou dentro dele mesmo? Qual de
nós não se deixa encantar pela sedução da educação bancária, com sua
exclusiva transmissão e legitimação de conhecimento historicamente
produzido e acumulado pelas classes dominantes, e seus acenos de
poder, status, prestígio e dinheiro? Do dar-se “bem” na vida!? Há
alguém imunizado desta contaminação egóica-individualista que
parece quase ontológica?
Mas, também, como não se seduzir pela educação emancipadora
e transformadora, em que vamos nos libertando, no dia a dia, do que
temos de opressor e de oprimido, dentro de cada um de nós? Em que
vamos conquistando individual e coletivamente, a hegemonia do
trabalho sobre o capital; em que vamos substituindo os valores
capitalistas de consumo, competição desenfreada e
desqualificação/assassinato do outro, pelos valores da sociabilidade
coletiva, distribuição igualitária da riqueza produzida, do
desenvolvimento humano na relação social, da ruptura e vitória sobre
o fenômeno da mais valia e em que uma ética universal do ser humano
vai substituindo uma ética do mercado e do lucro a todo custo?

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4. Dialogia Paulo Freire, Vigotski e Bakhtin.

Uma educação emancipadora/transformadora, em que


entendemos o trabalho, como eixo central da constituição da espécie,
com o qual produzimos socialmente a vida e o nosso próprio tornar-se
humano, na perspectiva de um Vigotski marxista e sua “Psicologia do
Homem Concreto”, “Transformação Socialista da Sociedade”, quando
diz que “não nascemos humanos, tornamo-nos humanos nas relações
sociais e estas são de classe”, que está em sintonia com você, quando
diz na sua “Pedagogia da Indignação”(2000, p.119), que: “a natureza
humana se constitui social e historicamente”, e na página 121: “nós
indivíduos somos o que herdamos genética e culturalmente”.O que
reforça, mais uma vez, sua perspectiva histórico cultural de base
marxista, a que agregamos também o nosso Bakhtin?
Paulo, podemos dizer, então, que é quando temos, na dialética da
vida, a vitória do trabalho sobre o capital, é que nos humanizamos? Se
assim é, a espécie animal de que somos parte, não está ainda longe de
poder ser chamada de humana? Humanizamos, então, com nossas
vitórias cotidianas micro e macro do trabalho sobre o capital,
arduamente conquistadas em nossas fábricas, escolas, entidades de
defesa do meio ambiente, igrejas, ONGs, sindicatos, partidos, pastoral
da terra, entre outras, famílias, economia solidária, serviços, mídia,
internet e todo o conjunto dialético infra e superestrutural da
sociedade? Enfim, Paulo, podemos compreender que o tornar-se
humano é libertar-se, processual e historicamente, da dominação do
capital!? É superá-lo pelo Trabalho!? O trabalho que constitui e é
constituído pelo Ser que se Torna humano ao sobreviver e existir.
Tornamo-nos humanas e humanos à medida que vamos
enfrentando e superando as “situações problemas desafio: afetivas,
econômicas, sociais, culturais” (REIS, 2011, p. 161), base da educação de
jovens e adultos do Centro de Cultura e Desenvolvimento do Paranoá-
Itapoã e da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, que
tem como eixos fundantes você, Vigotski, Bakhtin e outras/os da
perspectiva histórico cultural de base marxista.
A partir das “situações problemas desafio”, desenvolvemos o
texto coletivo; a análise de suas múltiplas determinações; os
encaminhamentos à superação das mesmas, acordados em cada sala
de aula e em reuniões coletivas (fóruns); a interrelação entre e das

43
múltiplas linguagens (língua portuguesa, linguagem matemática,
linguagem da história, linguagem da geografia, linguagem da arte,
linguagem da informática, entre outras) e o acompanhamento e
desenvolvimento humano-processual de educandas/os;
educadoras/es; gestores/as da UNB: Universidade de Brasília/Genpex:
Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação Popular e Estudos
Filosóficos e Histórico Culturais e do CEDEP: Centro de Cultura e
Desenvolvimento do Paranoá-Itapoã.
Dentro desse círculo de amor, poder e saber (REIS, 2011), a
produção de conhecimento emerge como transformação da
realidade, como intervenção na história humana e não só, como mera
constatação e não só como mera diagnose como aprendemos com
você?
Esta produção é realizada com e entre estudantes de graduação,
mestrado e doutorado da UNB, junto com educandos e educadores do
movimento popular organizado e da rede pública de ensino do
Paranoá-Itapoã, aqui no Distrito Federal, como pode ser encontrado
nas produções do Genpex – Grupo de Ensino, Pesquisa, Extensão em
Educação Popular e Estudos Filosóficos e Histórico- Culturais, e entre
estas, o livro: A Constituição do Ser Humano: amor-poder-saber na
educação/alfabetização de jovens e adultos”, gestado praxicamente
no trabalho conjunto UNB e CEDEP: Centro de Cultura e
Desenvolvimento do Paranoá-Itapoã.

5. Trabalho Coletivo como SER-MAIS.

A sobrevivência e existência da espécie, o desenvolvimento e


avanço da espécie humana se deram e se dão com o Trabalho Coletivo.
Fica cada dia mais nítido, com os estudos da evolução humana, que
nossas e nossos ancestrais só sobreviveram no passado porque
aprenderam a viver coletivamente. Frente ao desafio de sobreviver e
existir estabeleceram um elo entre mãos, mentes, corações e puderam
vencer animais maiores e mais fortes. Não é o que deveríamos e
poderíamos fazer hoje, para um movimento de permanência de um
tornar-se humano em movimento e consigamos superar os desafios
que se nos colocam de sobrevivência e existência, a começar pela
educação?

44
Cremos que mais uma vez, estamos a concordar com você,
quando na sua Pedagogia da Indignação, p. 119, nos diz que: “o ser
humano é, naturalmente, um ser da intervenção no mundo, à razão de
que faz a história. Nela, por isso mesmo, deve deixar suas marcas de
sujeito e não pegadas de puro objeto”.
Você é ainda mais enfático quando afirma na página 121, da
Pedagogia da Indignação: “uma das coisas mais significativas de que
nos tornamos capazes mulheres e homens ao longo da longa história
que feita por nós, a nós faz e refaz, é a possibilidade que temos de
reinventar o mundo e não apenas de repeti-lo ou reproduzi-lo”, que
nós do Genpex/FE/UNB e do CEDEP denominamos de “inserção
contributiva participativa transformativa superativa mútua”. Mas,
Paulo, vamos a mais um enunciado práxico, que estabelecemos como
base de sua obra:

6. Dialogia.

Como tornar-se humana ou humano sem a dialogia? Sem uma


imbricada relação dialética fala e escuta, escuta e fala?
Mas, como sermos dialógicas e dialógicos, se a fala não é
permeada da escuta ao outro e a outra, e vice-versa? Como acontecer
dialogia, sem interpenetração mútua de sentimentos, valores,
energias entre e com as pessoas? Como dizer que a relação é dialógica?
Poderíamos dizer Paulo, que o princípio da sua dialogia são uma
fala e escuta elaborantes (BOGOMOLETZ, 1990), em que ressignifico
objetivamente minha subjetividade no intercâmbio reciprocamente
constitutivo com o outro e suas relações sociais? E relações sociais de
classe? Eu, a Outra, o Outro, constituindo Humanos e cada vez mais
Humanos?
Na sua Pedagogia da Indignação, p. 131, você insiste que “no
processo de fala e da escuta, a disciplina do silêncio a ser assumido
com rigor e a seu tempo pelos sujeitos que falam e escutam, é “sine
qua” da comunicação dialógica”? Da construção de uma sociedade
dialógica do trabalho e contra a sociedade antidialógica do capital?
Paulo, querido, aí vem mais um enunciado:

45
7. Tornarmos Seres de Ciência, com Arte, Sabedoria Popular,
Espiritualidade e Subjetividade.

Quando abordamos a natureza da produção do conhecimento, não


tendemos a permanecer e considerá-la, exclusivamente, numa
perspectiva racionalidade instrumental, tanto à esquerda, quanto á
direita? Será que não deificamos a razão, como critério único de verdade,
o que ao longo de séculos indica o quanto insuficiente isto tem
representado, para com a vida e a felicidade no planeta? As
consequências predatórias e depredatórias de uma ciência sem
subjetividade, arte, sabedoria popular e espiritualidade não estão cada dia
mais evidentes em todo o planeta? Basta ver como estamos ameaçados
em nossa sobrevivência e existência de espécie humana: contaminação
da água, do ar, dos alimentos produzidos e tantas outras coisas.
Extinguir-nos, é o que queremos? Quando você fala de um sujeito
libertado, não está falando também libertação de tudo que é
predatório, depredatório e que ameaça a vida de todos os seres vivos
da nossa mãe Terra?
Não desejava você, uma sociedade e educação em que há o
aprendizado e constituição de um saber que é poder (Foucault), mas
saberes e poderes exercidos à conquista do bem coletivo, de todas e
todos, independente de raça, cor, classe, sexo, gênero?
Paulo, uma constituição de sujeitos de amores, poderes, saberes,
porque, decorrência de uma sociedade permeada não da verdade
observável, demonstrável, contável, experimentável, mas,
igualmente, banhada na subjetividade estética, ética, espiritual, da
sabedoria popular, numa subjetividade que é também objetividade,
como nos lembra Mikhail Bakhtin?

8. A práxis constituinte de um Sujeito de AMOR e do AMOR.

Buscamos compreender Paulo, que esta sua categoria práxica é


fundante em uma existência humanizante/humanizadora, e como tal,
na educação pública e privada de crianças, adolescentes, jovens,
adultos e idosos. A constituição de Um Sujeito de Amor. De um Sujeito
Amoroso, base de um saber e poder que produzem felicidade e bem
viver no coletivo do universo.

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Este sujeito amoroso acolhe a outra e o outro. E é também
acolhida/o pela outra e pelo outro. Creio que a constituição deste
sujeito amoroso, é condição imprescindível, à dialética constituição
nossa em humanas e humanos, como você viveu com Elza, Maria
Madalena, Maria Cristina, Maria de Fátima, Joaquim, Lutgardes e Nita.
As pessoas me constituem. Eu constituo as pessoas. Nós nos
constituímos mutuamente, na relação social, que é de classe, como
você nos lembra junto com Vigotski e Bakhtin.
Você sempre enfatiza veementemente, que as diferenças e os
diferentes nas várias pessoas e suas relações sociais são crise, ou seja,
oportunidade de desenvolvimento humano da nossa espécie, quando
você anuncia em Pedagogia dos Sonhos Possíveis”, (2001, p. 22), que
“Amar é um ato de libertação”.
O desafio, Paulo, é que nosso corpo e nossa mente enraizados no
chão possam tocar-se numa ciranda de amor, numa entrega recíproca,
fazendo-nos cúmplices uns dos outros e uma das outras, na
constituição dessa aventura chamada vida. Mas, temos ainda outro
enunciado.

9. Pesquisa-ação em Paulo Freire:

Você nos diz, em sua Pedagogia da Autonomia (1996, p. 32):


“Não há ensino sem pesquisa e não há pesquisa sem ensino. Esses
que fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino
continuo buscando, re-procurando. Ensino porque busco, porque
indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar,
constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para
conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade”.
“Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca,
a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente,
o professor se perceba e assuma, porque professor, como
pesquisador” (Ibidem, p. 32, nota de rodapé).
E por fim, você assinala que a “reflexão crítica sobre a prática se
torna uma exigência da relação teoria-prática, sem a qual a teoria pode
ir virando blá, blá, blá, e a prática ativismo” (ibidem, p.24).
Em seu sentido de ser e pesquisar pressupõe-se, que vivemos a
contradição de seres incompletos que buscam a completude.
Inacabados, conquistando o acabamento. Inconclusos, buscando a

47
conclusão. Nesta relação ontológica dialética de inacabamento/
acabamento, inconclusão/conclusão, incompletude/ completude, o
diferente, a diferença, tem sentido essencial no desenvolvimento
humano e em nosso desenvolvimento humano como espécie.
Na dialogia de e entre todas as pessoas presentes na leitura desta
carta-texto, estamos permeados da polissemia e polifonia, como nos
diz Bakhtin. Polissêmicos porque estamos atribuindo vários sentidos à
vida, à educação, às coisas, aos fenômenos. E polifônicos, porque
estamos em uma sociedade em relação, de e com múltiplas vozes.
Vozes da raça, do gênero, da classe, do sexo, da cor, da religião, no
enredo da convivência cotidiana, condições indispensáveis à
democracia participativa e holística, em que homem, mulher e
natureza são uma coisa só.
Neste sentido, você nos chama a atenção em Pedagogia da
Indignação (p. 132): “parece-me uma contradição lamentável fazer um
discurso progressista, revolucionário e ter uma prática negadora da
vida. Prática poluidora do ar, das águas, dos campos, devastadora das
matas, destruidora das árvores, ameaçadora dos animais e das aves”.
Ao concluirmos esta carta, Paulo, quereremos celebrar sua
trajetória e caminhada como “Estadista da Esperança Amorosa”, À
semelhança de um D. Hélder Câmara, Mahatma Gandhi, Amilcar
Cabral, Nelson Mandela, D. Paulo Evaristo Arns e Educadoras e
educadores populares anônimos, você anunciou e anuncia com
testemunho de sua vida, um mundo em que a Esperança com Amor
são a base de uma sociedade e humanidade fraternas, justas e livres,
porque amorosas.
Obrigado, Paulo, e nossa gratidão, pela acolhida e doçura de
sempre.
Carinhosamente,
“Renato Hilário e Ângela Dumont”.

Referências

BAKHTIN, Mikhailovitch Mikhail. Estética da Criação Verbal. Prefácio à


edição francesa Tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo
Paulo Bezerra – 6ª Ed. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2011.

48
BOGOMOLETZ, David. Crise de Cidadania: paroxismo da
individualidade. Revista Tempo Brasileiro, vol. 5/8, n. 100,
jan/mar/1990, p. 31-52.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1995
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo, Paz e Terra, 1996.
_______. Pedagogia da Indignação. São Paulo, Editora da UNESP,
2000.
_______. Pedagogia dos Sonhos Possíveis. São Paulo, Editora da
UNESP, 2001.
_______. FAUNDEZ, Antônio. Por uma Pedagogia da Pergunta. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1985.
GADOTTI, Moacir et al. Paulo Freire: uma biobibliográfia. São Paulo:
Cortez-Instituto Paulo Freire; Brasília, DF: UNESCO, 1996.
MAYO, Peter. Gramsci, Freire, e a Educação de Adultos: Possibilidades
para uma ação transformadora. Porto Alegre, Artmed, 2004.
PINO, Angel. O social e o cultural na obra de Vigotski. Educação e
Sociedade. Campinas, ano XXI, n. 71, jul. 2000, p. 45-78.
_______. Prefácio. In REIS, R.H. dos. A Constituição do Ser Humano:
amor-poder-saber na educação/alfabetização de jovens e adultos.
Campinas, Autores Associados, 2011, p. XVII a XXIV.
REIS, Renato Hilário dos. A Constituição do Ser Humano: amor-poder-
saber na educação/alfabetização de jovens e adultos. Campinas,
Autores Associados, 2011.
REIS, Renato Hilário dos; RIOS, Guilherme Veiga. Alfabetização de
Adultos, como Linguagem-Desenvolvimento do Ser Humano.
Emancipação: revista on line da Universidade Estadual de Ponta
Grossa, v. 16, p. 205-217, 2016.
RESES, Erlando; Reis, Renato Hilário dos; Vieira, Maria Clarisse.
Presença e Pegadas de Paulo Freire no Distrito Federal. Linhas
Críticas: revista da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília,
v.18, n. 37, set/dez/2012, p.529-550.
VIGOTSKI, L.S. “The socialist alteration of man”. In: Veer, Renée Van
Deer & Valsiner, Jaan. The Vygotsky Reader. Oxford, Blackwell, 1994,
p. 175-184.
_______. Manuscrito de 1929. Educação e Sociedade. Campinas, ano
XXI n. 71, jul. 2000, p.21-44. [Tradução de Alexandra Marenitch,
assistente de tradução Luiz Carlos de Freitas e revisão técnica de Angel
Pino. Apresentação de A. A. Puzirei].

49
50
UM ENSAIO SOBRE A DIALÉTICA NO MÉTODO
EPISTEMOLÓGICO DE RACIOCINAR DE PAULO FREIRE

Augusto Charan Alves Barbosa Gonçalves

La Dialéctica es la luz elemental interior, el ojo penetrante


del Amor, el Alma íntima que no es oprimida por el Cuerpo
de la Escisión material, el lugar interior del Espíritu [...] por
eso Plotino la llama medio para la [...] unión inmediata
con Dios, una expresión en la que se unen ambas cosas [...]
la teoría de Aristóteles con la Dialéctica de Platón (MARX,
1982, p. 137 apud VARELA, 2012, p. 91-92).

Dialética, um termo tão caro à filosofia. Algo que foi tão


exaustivamente tratada ao longo dos milênios e ainda hoje não
absolutamente compreendida (GOLDMANN, 1967). Até porque, caso
ela seja, já não seria mais dialética no sentido mais adequado da
palavra. A dialética é assim mesmo, contempla o passado, se fixa no
presente, mas reside é no devir, no fluxo, nas passagens de algo para
outro, na imprevisibilidade dos acontecimentos, na necessidade da
liberdade e na liberdade da necessidade de existir na permanente
impermanência. Vale ressaltar que do ponto de vista da dialética, o
permanente é uma impossibilidade lógica. Estamos de acordo com as
palavras de Montaigne (Essais, II, p. 2) apud Konder (2004, p. 15):

Todas as coisas estão sujeitas a passar de uma mudança a outra; a razão,


buscando nelas uma subsistência real, só pode frustrar-se, pois nada
pode apreender de permanente, já que tudo ou está começando a ser –
e absolutamente ainda não é – ou então já está começando a morrer
antes de ter sido (grifos nossos).

Em um resgate histórico, dialética era,

Na Grécia Antiga, a arte do diálogo. Aos poucos, passou a ser a arte de, no
diálogo, demonstrar uma tese por meio de uma argumentação capaz de
definir e distinguir claramente os conceitos envolvidos na discussão.
Aristóteles considerava Zênon de Eléa (aprox. 490-430 a.C.) [discípulo de
Parmênides e defensor de que o movimento era ilusório] o fundador da

51
dialética. Outros consideram Sócrates (469-399 a.C.) [...] na acepção
moderna, entretanto, a dialética significa outra coisa: é o modo de pensarmos
as contradições da realidade, o modo de compreendermos a realidade como
essencialmente contraditória e em permanente transformação. No sentido
moderno da palavra, o pensador dialético mais radical da Grécia Antiga foi,
sem dúvida, Heráclito de Éfeso (aprox. 450-580 a.C.). Nos fragmentos
deixados por Heráclito, pode-se ler que tudo existe em constante mudança,
que o conflito é o pai e rei de todas as coisas. Lê-se também que vida ou morte,
sono ou vigília, juventude ou velhice são realidades que se transformam umas
nas outras [...] os gregos [...] chamaram o filósofo de Heráclito, o Obscuro.
Havia certa perplexidade em relação ao problema do movimento, da
mudança. O que é que explicava que os seres se transformassem, que eles
deixassem de ser aquilo que eram e passassem a ser algo que antes não eram?
Heráclito respondia a essa pergunta de maneira muito perturbadora,
negando a existência de qualquer estabilidade do ser. Os gregos preferiam a
resposta que era dada por um outro pensador da mesma época: Parmênides.
Parmênides ensinava que a essência profunda do ser era imutável e dizia que
o movimento (a mudança) era um fenômeno de superfície. Essa linha de
pensamento – que podemos chamar de metafísica – acabou prevalecendo
sobre a dialética de Heráclito [...] embora menos radical que Heráclito,
Aristóteles (384-322 a.C.) foi um pensador de horizontes mais amplos que o
seu antecessor; e é a ele que se deve, em boa parte, a sobrevivência da
dialética (KONDER, 2004, p. 7-8-9-10).

Em outras palavras, complementando a explicação do autor


acima, Netto (2011) assegura:

Dialética denotava um método discursivo, uma forma retórica. Ao longo da


história da filosofia no Ocidente, ora a dialética se referiu a esse significado
original, ora ganhou outros sentidos. Na entrada da Modernidade, ela se
constituiu como pedra angular do pensamento de Hegel, um filósofo que é,
até hoje, para muitos, um pensador enigmático ou, no limite, cheio de
obscuridades. Para Hegel, o que era dialética? De forma muito breve, pode-
se dizer que era um modo de pensar o mundo, um ‘método’. Em Hegel, esse
método constitui uma superação da grande tradição intelectual que vem
desde Aristóteles. Se você fala em método, logo está pensando em lógica.
Aristóteles é o fundador de uma lógica rigorosa que vai ser conhecida nos
manuais de filosofia como ‘lógica formal’, que se funda numa série de
princípios e elementos. Um princípio importante, por exemplo, é o da não
identidade: A não é igual a não-A. Hegel diria que essa é uma forma de
pensar o mundo que não é falsa, mas é unilateral, insuficiente. Por quê?
Porque A, se é diferente de não-A, é simultaneamente igual a não-A. Pode

52
parecer muito confuso, mas o que Hegel está querendo dizer é que o
‘mundo é um processo, movimento’. Em Hegel, o ser é processualidade. A
dialética, para ele, é o método para pensar o mundo enquanto movimento
(NETTO, 2011, p. 334, grifos nossos).

Perante o que foi exposto até agora, nos deteremos a partir deste
momento a explicitar aos poucos o quão dialético o pensamento de Paulo
Freire é. Sem sombra de dúvidas, Freire se filia, dentre alguns outros eixos
epistemológicos, ao materialismo histórico-dialético de Marx que,
conforme Varela (2012, p. 39) e concordamos com ele, tem uma linhagem
histórica característica de pensadores dialéticos: Spinoza-Leibniz-
Aufklärung1-Kant-Fichte-Schelling-Hegel (mas não só). O estudo que Freire
fez de Marx, de Sartre, de Jaspers e de tantos outros diversos autores
(inclusive vários latino-americanos), lhe permitiu uma síntese tão potente
que se singularizou numa teoria do conhecimento que é de Freire e de
ninguém mais. É uma epistemologia que não apenas norteia (em
referência às teorias advindas do que se convencionou politicamente ser
o Hemisfério Norte). Mas, sobretudo, suleia2.
Em outros termos, existe um método em que Freire conhece (e
por isso mesmo nos deixa conhecer também) as coisas - que não é tão
somente epistemológico, científico, etc., mas é em boa medida
gnosiológico também, isto é, abrange o conhecimento como um todo,
não apenas o escolástico, o acadêmico3. É como se Freire não tivesse
nenhum temor em descobrir as máximas imbricações (políticas,
pedagógicas, filosóficas, etc.) que estão impregnadas em cada
atividade humana (e nelas todos os diferentes momentos que a
causam e a resultam), é como se houvesse um método envolto nas
ações perpetradas pelas pessoas ou nas palavras dele mesmo, um
“saber de experiência feito” (FREIRE, 2011).
Experiências que se fazem e se encarnam em saberes, em seres.
Assim, podemos depreender que, para Freire (2016, p. 292), do ato de
pensar ao exercício da escrita científica: há método, há técnica, uma

1 Iluminismo em alemão.
2 Paulo Freire (2016, p. 33) nos chama a atenção para sulear nossas práticas. Inclusive,
antes mesmo de Boaventura de Sousa Santos (um europeu) ter publicado quaisquer
textos nessa direção (até que se prove o contrário).
3 Aqui Freire (2016) se sintoniza bastante com o seu amigo Ivan Illitch (1985) que teceu,

a partir da década de 1970, uma severa crítica à mente ou “lógica escolarizada” de


controle social da aprendizagem.

53
gnosiologia e uma epistemologia que unas, não se desfalecem jamais.
Em Freire (2011), há uma unidade dialética entre ser e conhecer.
Unidade, que no mundo empírico, científico e filosófico tem sido
fragmentada, produzindo, grosso modo, indivíduos que ora deixam de
conhecer porque não tiveram a oportunidade de ser ou que para ser
tiveram que abrir mão de conhecer. No primeiro caso, podemos citar
os “esfarrapados do mundo”, os oprimidos que não conseguem ler o
mundo adequadamente não só porque não lhes foram permitidos
compreender as palavras — algo que é extremamente prejudicial e
socialmente desumano per se. Mas, sobretudo, porque foram
proibidos de ser, de existir. No segundo caso, mencionemos a maioria
das pessoas que nascem no mundo social, mas muitas das vezes
deixam de vivê-lo para se exaurirem no trabalho alienado que lhes
retiram o tempo de existência, o esforço para perseverarem naquilo
que mais as aprazem e as potencializam. De acordo com Freire (2007),
viver é uma coisa e existir, outra. Ouçamos sensivelmente o que o
autor nos tem a dizer neste sentido:

Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar


nele e com ele. E é essa capacidade ou possibilidade de ligação
comunicativa do existente com o mundo objetivo, contida na própria
etimologia da palavra, que incorpora ao existir o sentido de criticidade
que não há no simples viver. Transcender, discernir, dialogar (comunicar
e participar) são exclusividades do existir. O existir é individual, contudo
só se realiza em relação com outros existires. Em comunicação com eles
(FREIRE, 2007, p. 48-49, grifos nossos).

Ou seja, em relações que se dão no espaço-tempo histórico-


cultural, natural-social. Para existir, ser, conhecer e se conhecer, é
sumamente necessário do ponto de vista quantitativo e qualitativo,
experiências e vivências, enfim, um certo tempo. Este? Não o temos de
modo a conseguirmos, no processo mesmo de nossas trajetórias,
investigarmos satisfatoriamente quem podemos ser (ética), quem
realmente somos (ontologia), por quais meios são possíveis para
conhecermos adequadamente a vida, a natureza, o universo, a ciência,
dentre tudo o que pode ser cognoscível (gnosiologia) e
cientificamente investigado (epistemologia).
Freire estava atento a todas essas questões mencionadas acima,
dentre muitas outras. Isso se deve, em boa medida, à sua forma de

54
raciocinar forjada por diversas sínteses históricas de múltiplas
determinações. Determinações que para Freire (2012), deveria não
significar fatalidade ou que somos programados como seres autômatos
desprovidos de quaisquer desejos ou ímpetos de transformações de nós
mesmos e da sociedade a que pertencemos. A dialética freiriana, para
singularizá-la como um modo específico de dialética, nos possibilita
extravasar, por um lado, os cânones ou as leis “clássicas” da dialética
(unidade dos contrários, transformação da quantidade em qualidade e
vice-versa, negação da negação, etc.) e por outro lado, sendo, a nosso ver,
uma autêntica dialética do devir, da transformação e da emancipação,
permite coloca-la no campo da essencialidade, na eticidade, na
esteticidade, no campo do que podemos conquistar (pois não se trata de
inatismo e nem de um empirismo grosseiro): a racionalidade, a
colaboração, a “busca do ser mais”, a curiosidade, a esperança, a
“amorosidade”, a “boa raiva”, a indignação, a liberdade.
Quando dizemos que a racionalidade não está dada é porque caso
estivesse, não veríamos atitudes contrárias à própria manutenção de
nossa espécie e de outras também. Em síntese, diz-se que o ser
humano é um animal racional. Mas, no cotidiano, não raro cometemos
atos irracionais que vão contra nós mesmos e os outros. De igual
maneira, a “boa raiva” também é uma conquista. Pois, caso ela já fosse
inata, teríamos um outro Brasil e Freire sequer teria sido exilado por
querer, dentre outras coisas, alfabetizar as brasileiras e os brasileiros
conscientizando-as/os ética, gnosiológica e politicamente, etc. Sobre
isso e em tom de protesto e desabafo, Paulo Freire (2007), como se
fosse hoje mesmo (pela atualidade da triste situação política
vivenciada no Brasil), tem algo a nos esclarecer:

O Brasil nasceu e cresceu sem experiência de diálogo. De cabeça baixa,


com receio da Coroa. Sem imprensa. Sem relações. Sem escolas.
“Doente”. Sem fala autêntica. Depois de uma citação latina, que termina
com a palavra infans, diz Vieira num dos seus sermões: “Conhecemos por
esta última palavra, infans, infante, quer dizer o que não fala. Neste
estado estava o menino Batista, quando a senhora o visitou, e neste
estado estava o Brasil muitos anos que foi, a meu ver, a maior ocasião de
seus males. Como doente não pode falar, toda outra conjectura dificulta
muito a medicina. Por isso Cristo nenhum enfermo curou com mais
dificuldade, e em nenhum milagre gastou mais tempo, que em curar um
endemoniado mudo; o pior acidente que teve o Brasil em sua

55
enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar
justamente, muitas vezes quis pedir os remédios de seus males, mas
sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência:
e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem devera
remediar, chegaram também as vozes do poder e venceram os clamores
da razão (FREIRE, 2007, p. 74-75, itálicos do original, grifos nossos).

Após essa pequena e necessária digressão, voltemos à dialética


de Freire ou como ele rigorosamente raciocinava o mundo. Mas, para
os que duvidam que é possível extrair de um autor a forma-conteúdo
que ele pensa, demos um exemplo de como Marx (que é uma das
maiores referências de Freire) metódica e dialeticamente raciocinava,
conforme Varela (2012).

1. La Ciencia es concebible sólo como “realización del Principio mismo”


(Marx), o sea, en la jerga hegeliana que utiliza significa la exigencia de un
círculo de continuidad y necesidad entre Principio y Resultado. La exigencia
es que para Marx, como para Hegel, el método es, en efecto, sino la
estructura del Todo, presentada en su essencialidad pura; 2. La realidad
está compusta no sólo por determinaciones materiales, es decir empíricas
y las cuales experimentamos mediante los sentidos, sino además y en
especial de determinaciones ideales como las llama Hegel, o según ya la
terminologia propria del joven Marx [...] determinaciones formales o
construcciones, que se estructuran y unifican la realidad empírica, aunque
no son visibles ni directamente perceptibles en ella; 3. Entre las
determinaciones materiales y las determinaciones formales se encuentra la
gran heterogeneidad [...] (VARELA, 2012, p. 42-43).

Freire é ainda tachado de alfabetizador. E isso, a nosso ver, não é


algo pejorativo, depreciativo. Muito pelo contrário! Mas, é pouco, é
redutivo, não contempla tudo aquilo que Paulo representa no campo
da educação, da ciência. Não é à toa que ele foi o terceiro autor mais
citado do mundo em 20164 e recebeu incontáveis títulos de Doutor
Honoris Causa respeitosamente concedidos por variadas universidades
do Brasil afora5. Se o método de alfabetização concebido por Freire é
em si mesmo revolucionário (!), o método de conhecer as coisas

4 Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2016/06/paulo-freire-e-terceiro-


teorico-mais-citado-em-trabalhos-academicos-no-mundo/. Acesso em: 01/07/2018.
5 Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2016/06/paulo-freire-e-terceiro-
teorico-mais-citado-em-trabalhos-academicos-no-mundo/. Acesso em: 01/07/2018.

56
proporcionado por ele é ainda mais. Leiamos atentamente o que Freire
pensa sobre método:

Eu tenho até minhas dúvidas se pode falar de Método. E há, há um método.


Aí é que está um dos equívocos dos que, por ideologia, analisam o que eu fiz
procurando um método pedagógico, quando o que deveriam fazer é
analisar procurando um método de conhecimento e, ao caracterizar o
método de conhecimento, dizer, “mas esse método de conhecimento é a
própria pedagogia”. Entendes? O caminho era o caminho epistemológico.
Evidentemente tem gente que descobriu isso [...] não é o método do ba-be-
bi-bo-bu. Se o sujeito ler direitinho os textos que eu tenho escrito, sobretudo
os recentes, sobre o problema da alfabetização, ele descobre que o que eu
estou fazendo é teoria do conhecimento. A alfabetização enquanto um
momento da teoria do conhecimento (FREIRE, 1978, p. 4 apud OLIVEIRA,
2012, p. 513, grifos nossos).

Alfabetização que, na concepção de Freire (2007, p. 120), se dá


por distintas “fases”: 1. Levantamento do “universo vocabular” do
coletivo social em que se trabalhará; 2. Escolha das palavras,
“selecionadas do universo vocabular pesquisado”; 3. “Criação de
situações existenciais típicas do grupo com quem vai se trabalhar”; 4.
“Elaboração de fichas-roteiro, que auxiliem os coordenadores de
debate no seu trabalho”; 5. “Feitura de fichas com a decomposição das
famílias fonêmicas correspondentes aos vocábulos geradores”
(FREIRE, 2007, p. 121-123). Diante disto, o método de alfabetização de
Freire é uma maiêutica que permite aos homens e mulheres
conhecerem e fazerem parte da dialética histórica que está envolta na
leitura do mundo social e na fala escrita. O Método (de Freire) que com
“m” maiúsculo entendemos por um modo de descobrir e desvelar o
mundo, permite compreender e vivenciar a existência como um fluxo
heraclitiano de revoluções, transformações e saltos qualitativos.
O ímpeto que Freire tinha de modificar as condições de ser e estar
dos oprimidos sociais era enorme e para isso ele possibilitava, de modo
sistemático, algumas saídas para que os oprimidos se libertassem e ao
se libertarem, libertassem os opressores de si e dos outros. A
alfabetização foi uma dessas escapatórias juntamente com a criação
de uma epistemologia particular que não reside tão somente no saber
local, mas que parte dele, contudo.

57
O “universo vocabular mínimo” naturalmente emerge da pesquisa
necessária que se faz e é fundando-nos nele que organizamos o
programa de alfabetização. Nunca, porém, eu disse que o programa a
ser elaborado à base deste universo vocabular deveria ficar
absolutamente adstrito à realidade local. Se o tivesse dito não teria da
linguagem a compreensão que tenho, revelada não apenas em trabalhos
anteriores, mas neste ensaio também. Mais ainda, careceria de uma
forma dialética de pensar (FREIRE, 2016, p. 120, grifos nossos).

A pergunta que podemos nos fazer é o que caracteriza o método


dialético específico que Freire se utiliza para conhecer. Veja-se que aqui
não iremos tratar do método de alfabetização. Mas, especular como
Freire conhecia o mundo em busca da verdade, em uma constante
procura por desmistificar ou desocultar a realidade, retirando todo o
papel muitas vezes perverso imposto pela ideologia que é entendida por
nós e por Freire (2007; 2016) como o mascaramento ou o embaçamento
da realidade. Nada mais adequado do que o método dialético para não
apenas criticar a ideologia, mas para destruí-la em troca da revelação da
realidade objetiva na consciência6 (FREIRE, 2016). Com a palavra, Freire
(2016, p. 139, itálico do original, grifos nossos):

Só numa perspectiva dialética podemos entender o papel da consciência


na história desvencilhada de qualquer distorção que ora exacerba sua
importância, ora a anula ou a nega. Nesse sentido, a visão dialética nos
indica a necessidade de recusar, como falsa, por exemplo, a
compreensão da consciência como puro reflexo da objetividade
material, mas, ao mesmo tempo, a necessidade de rejeitar também o
entendimento da consciência que lhe confere um poder determinante
sobre a realidade concreta.

A citação acima nos adverte o seguinte: há na vertente dialética


uma unidade contraditória e conflituosa entre matéria e consciência,
corpo e mente, extensão e pensamento em que um elemento não
domina o outro, mas guarda uma relação de paralelismo, de
simultaneidade. É a interpenetração dos contrários! Uma coisa não

6Diga-se de passagem, fazer ciência, conforme Freire (2012, p. 113, itálicos do original,
grifos nossos) “é descobrir, desvelar verdades em torno do mundo, dos seres vivos,
das coisas, que repousavam à espera do desnudamento, é dar sentido objetivo a algo
que novas necessidades emergentes da prática social colocam às mulheres e aos
homens”.

58
existe sem a outra. É o devir sempre incerto, como parece nos
esclarecer Freire (2016) logo abaixo:

A visão dialética nos indica a incompatibilidade entre ela e a ideia de um


amanhã inexorável que já critiquei antes [...] não importa que o amanhã
seja a pura repetição do hoje ou que o amanhã seja algo pré-datado ou,
como tenho chamado, um dado dado. Esta visão “domesticada” do
futuro, de que participam reacionários e “revolucionários”,
naturalmente cada um e cada uma à sua maneira, coloca, para os
primeiros, o futuro como repetição do presente que deve, porém, sofrer
mudanças adverbiais e, para os segundos, o futuro como “progresso
inexorável”. Ambas estas visões implicam uma inteligência fatalista da
história, em que não há lugar para a esperança autêntica (FREIRE, 2016,
p. 140, itálicos do original, grifos nossos).

Esperança que para Freire (2007, 2012, 2016) é ontológica, ou seja,


constitui os seres humanos. É, além de tudo, uma esperança que
implica a “boa raiva”, a luta, um indivíduo ativo e transformador de sua
condição e posição sociais. É uma esperança que não espera o tempo
acontecer, mas que faz no e com o tempo mesmo. Daí que se torna
equivocado qualquer argumento que coloque Freire na ala dos
conformados, dos fatalistas, dos passivos inexoráveis. Escutemos
Paulo Freire (2016, p. 141, grifos nossos) falar:

Na percepção dialética, o futuro que sonhamos não é inexorável. Temos


de fazê-lo, de produzi-lo, ou não virá da forma como mais ou menos
queríamos [...] enquanto para as posições dogmáticas, mecanicistas, a
consciência, que venho chamando de crítica, toma como uma espécie de
epifenômeno, como resultado automático e mecânico de mudanças
estruturais, para a dialética, a importância da consciência está em que,
não sendo a fazedora da realidade, não é, por outro lado, como já disse,
puro reflexo seu.

O Patrono da Educação Brasileira encerra a citação precedente


ressaltando a educação como algo fundamental:

É exatamente neste ponto que se coloca a importância [...] da educação


enquanto ato de conhecimento, não só de conteúdos, mas da razão de
ser dos fatos econômicos, sociais, políticos, ideológicos, históricos, que
explicam o maior ou menor grau de “interdição do corpo” consciente, a
que estamos submetidos (idem, p. 141).

59
Essa “interdição do corpo” que Paulo critica certamente é um dos
resultados de práticas e teorias antidialéticas que congelam o Outro e,
portanto, o movimento, a negação da negação, o atrito, o conflito, em
suma, o diálogo. Este tem para Freire (2007) um significado que se
cristaliza nas seguintes palavras:

O diálogo [...] é uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz


crítica e gera criticidade [...] nutre-se do amor, da humildade 7, da
esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando
os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com
fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma
relação de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação. O antidiálogo
[...] implica numa relação vertical de A sobre B [...] é desamoroso. É
acrítico e não gera criticidade, exatamente porque desamoroso. Não é
humildade. É desesperançoso. Arrogante. Auto-suficiente. No
antidiálogo quebra-se aquela relação de “simpatia” entre seus pólos,
que caracteriza o diálogo. Por tudo isso, o antidiálogo não comunica. Faz
comunicados (FREIRE, 2007, p. 115-116).

Esse diálogo, que para nós é evidente ser um dos elementos que
compõem a dialeticidade teórica de Freire, se faz presente em sua
epistemologia do começo ao fim de sua existência e de sua obra. É
assim mesmo que quando começou o processo de alfabetização de
trabalhadores em Angicos (RN), jamais antidialogicizou (FREIRE,
2007). A horizontalidade presente na epistemologia de Freire e em seu
método dialético de raciocinar se faz concreta na busca constante pelo
saber permeada pela “curiosidade ingênua” que no processo do
conhecer, torna-se “curiosidade epistemológica” (FREIRE, 2011).
Isto é, parte-se do empírico, da prática, do cotidiano, mas não se
restringe apenas a ele. De uma simples pergunta do porquê os
semáforos serem em três cores e a razão de ser do vermelho nos
instrumentos de alerta, poderemos chegar à conclusão, após certas
investigações, de que o vermelho, por ter o maior comprimento de
onda, é a cor mais adequada para se chegar não apenas mais rápido no
olho do observador (piloto de avião, motorista, etc.) mas também por

7 “A humildade nos ajuda a reconhecer esta coisa óbvia: ninguém sabe tudo; ninguém
ignora tudo. Todos sabemos algo; todos ignoramos algo. Sem humildade dificilmente
ouviremos com respeito a quem consideramos demasiadamente longe de nosso nível
de competência” (FREIRE, 2012, p. 132).

60
conseguir percorrer a maior distância. Neste exemplo, partimos de um
mero questionamento do dia a dia que nos levou a obter uma resposta
social que desnaturalizou o que para muitos de nós “sempre esteve ali
e desse jeito permanecerá”, assim, sem a busca de uma explicação
minimamente satisfatória que explique a razão de ser da coisa ou de
sua existência. Não é um absurdo afirmar com toda a certeza que
Freire amava o conhecimento que, para Spinoza (2007), é o amor
eterno ao intelecto de Deus ou da natureza.
Conhecimento que dialeticamente pode ser realizado, de acordo
com as próprias palavras de Freire (2011), na rigorosidade metódica, na
pesquisa, no respeito aos saberes das pessoas, na criticidade, na
estética e na ética, na corporificação das palavras pelo exemplo, na
aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação, na
reflexão crítica sobre a prática, no reconhecimento e a assunção da
identidade cultural, na consciência de que somos seres inacabados, no
reconhecimento de sermos condicionados, no respeito à autonomia
dos indivíduos, no bom-senso, na humildade, na tolerância e luta em
defesa dos direitos humanos, na apreensão da realidade, na alegria e
na esperança, na convicção de que a mudança é possível, na
curiosidade, no comprometimento, na liberdade e autoridade (sem
autoritarismo), na consciência das decisões tomadas, na escuta
sensível, na disponibilidade para o diálogo, no querer bem das pessoas
e da humanidade (FREIRE, 2011). Em um exercício de coerência,
podemos certamente asseverar que é primeiramente a si mesmo que
Freire postulava princípios que fundamentam um modo dialético de
pensar a vida, as pessoas, as relações, o conhecimento, a pesquisa, a
ciência, dentre muitas outras coisas.
Como brevemente queríamos demonstrar ao longo deste escrito,
a dialética é, enquanto método, um modo de raciocínio que assume a
existência como um fluxo ininterrupto de diálogos, conflitos,
contradições, afirmações, negações, afecções, afetos, paixões, ideias,
superações, transformações. E é dessa forma que Freire, na nossa
maneira de compreender, conhecia e deixava-nos conhecer o mundo
por meio de sua teoria do conhecimento que jamais deixou de
propagar a amorosidade e a esperança na luta por um tempo em que
todas e todos possam verdadeiramente existir, ser, estar e pensar em
liberdade.

61
Referências

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 2007.
_______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
_______. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia
do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.
_______. Professora, sim; tia, não: cartas a quem ousa ensinar. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
GOLDMANN, Lucien. Origem da Dialética: A comunidade humana e o
universo em Kant. Tradução de Haroldo Santiago. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1967.
ILLICH, IVAN. Sociedade sem escolas. Tradução de Lúcia Mathilde
Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 1985.
KONDER, Leandro. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 2004.
NETTO, José Paulo. Entrevista. Trab. Educ. Saúde. Rio de Janeiro, v. 9
n. 2, p. 333-340, 2011.
OLIVEIRA, Edna Castro de. Alfabetização como ato de conhecimento
em Freire: escrita e leitura de mundo. In: Linhas Críticas: revista da
Faculdade de Educação/UnB. Universidade de Brasília: FE/UnB, 2012.
VARELA, Nicolás González. Karl Marx, lector anómalo de Spinoza. In:
MARX, Karl Heinrich. Cuaderno Spinoza. Traducción, estudio
preliminar y notas de Nicolás González Varela. Ulzama: Edición
propriedad de Ediciones de Intervención Cultural/Montesinos, 2012.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução e notas de Tomaz Tadeu.
Edição bilíngüe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007.

62
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE À SOMBRA DA
MANGUEIRA: RAÍZES EPISTEMOLÓGICAS

Andrea Vieira

O pensamento de Paulo Freire marcado pela


complexidade, dinamicidade e incompletude do
humano reafirma a sua atualidade e nos conduz a
analisá-lo e compreendê-lo em seu todo, não apenas na
esfera do método ou da pedagogia como boa parte dos
estudos, mas também a partir de suas raízes, isto é, da
estrutura epistemológica que constitui os pilares do
pensamento antipositivista em ruptura com a visão de
educação dogmática tradicional. Para chegarmos às
raízes epistemológicas utilizaremos os autores Wilhelm
Hegel, Karl Marx e Karl Jaspers, referências e fontes
utilizadas pelo próprio Freire ao analisar as categorias
da consciência, práxis e dialogia presentes no seu
pensamento. Com isso, além de demonstrar o lastro
epistemológico do pensamento freiriano 1, o nosso
objetivo, é também contribuir para se pensar na
viabilização do uso da epistemologia freiriana (ao lado
de outras de viés progressista) como possível
fundadora e estruturante de uma “Política Educacional
enquanto Projeto de Estado”, de forma a servir de
referência para a construção do Sistema Nacional de
Educação – SNE nos moldes propostos por Saviani
(2010), para quem a teoria da educação deve
desenvolver o papel norteador das normas, dando-lhes
coesão e consistência de forma a delimitar os objetivos
e princípios educacionais. Compreender a educação a
partir de sua epistemologia pode impactar no avanço da
sistematização das bases teóricas contribuindo para

1
Agradeço ao diretor fundador do Instituto Paulo Freire de São Paulo, professor José
Eustáquio Romão pela leitura atenta e conversas inspiradoras. Agradeço também por
me alertar para o uso correto da expressão “freiriano” em substituição a “freireano”
diante da invariabilidade do sufixo “iano”, visto que, escreve-se “eano” apenas se a
última sílaba da palavra de origem tiver o “e” tônico.

63
que a educação deixe de funcionar como “moeda de
troca” em “políticas de governo” que a desviam da sua
finalidade para atender interesses próprios,
econômicos, políticos e de mercado, sem qualquer
compromisso com a formação e o pleno
desenvolvimento da pessoa humana.

Em tempos sombrios no qual o algoz à espreita parece perseguir


a sua presa educação, coloco-me junto de Paulo Freire a pensar À
2
Sombra desta Mangueira . Freire, com sua especial maestria, ao
conceber a educação no e com o mundo nos instiga a revolver a terra
e perceber a Mangueira a partir de suas raízes e não apenas nos
contentarmos com a clareza e beleza de seus frutos. Aos incautos,
colocar lado a lado “tempos sombrios” e “sombra da mangueira”
pode soar como uma tautologia, mas não é. Os primeiros mostram-
se soturnos e manipulam a educação como financiadora de
interesses políticos, ideológicos e econômicos3 em detrimento de sua
principal finalidade - formação do ser humano a partir de uma
educação libertadora. A segunda, ao revés, significa abrigo,
acolhimento, é aquela que nos protege dos algozes para enfim
refletirmos de forma endógena sobre a educação enquanto
conhecimento científico e suas finalidades, uma vez que a
transformação social por meio da consciência crítica deve compor a
base estruturante da educação.

2 Organizado por sua esposa Nita Freire (Ana Maria Araújo Freire) e prefaciado pelo
economista Ladislau Dowbor que a pedido do próprio Paulo Freire escrevesse um
prefácio que permitisse “traçar a ponte entre uma economia que desarticula e uma
pedagogia que se quer integradora”. Dowbor classifica o livro como portador de “uma
visão explícita do mundo, da política, dos valores” [...] “voltando à mangueira como
âncora da identidade que se reencontra e se recria”. Disponível em:
http://dowbor.org/1995/01/prefacio-paulo-freire-a-sombra-desta-mangueira-2.html/.
Acesso em: 15/01/2018.
3 Poderíamos discutir aqui temas contemporâneos como: a precarização da

educação pública como etapa de implantação do projeto neoliberal, ou ainda, a onda


conservadora e repressora que defende a “Escola sem Partido”, o “Ensino Religioso
Confessional” e a “Militarização das Escolas Públicas”, à luz de autores como Louis
Althusser para quem a Escola funciona como “aparelho ideológico do Estado” ou de
Michel Foucault a partir do adestramento dos corpos pelo “poder disciplinar” ou
ainda, a partir dos conceitos de “violência simbólica”, “capital cultural”, “capital
social” e “reprodutivismo” de Pierre Bourdieu, mas no momento, extrapolaria o
objetivo deste artigo.

64
A escolha deste livro para iniciar a nossa abordagem
epistemológica sobre o pensamento de Paulo Freire não se deu ao
acaso. Na condição de intelectual Freire dialogou com diversos
autores e escolas de pensamento, e, embora sua epistemologia
encontre raízes também eurocêntricas, Freire de maneira endógena
soube pensar a educação brasileira para brasileiros. De acordo com
Dowbor, prefaciador do livro em destaque, para Freire, voltar à
sombra da mangueira é voltar ao ser humano completo, e neste
sentido, partindo do mais elevado expoente de “brasilidade”
defende que a racionalidade não deve neutralizar as emoções:

[...] manifestar minha recusa a certo tipo de crítica cientificista que


insinua faltar rigor no modo como discuto os problemas e na linguagem
demasiado afetiva que uso. A paixão com que conheço, falo ou escrevo
não diminuem o compromisso com que denuncio ou anúncio. (FREIRE,
2013, p.18).

Embora o momento histórico-político esteja propício para a


abordagem da educação como “ato político” tal como defendida por
Freire especialmente após o exílio decorrente da ditadura, entendemos
que para a construção de uma base sólida e crítica é fundamental
voltarmos às raízes. É nas raízes da teoria do conhecimento científico
que podemos encontrar a chave para a emancipação por meio da
educação, inclusive para a emancipação política.
Lembremos que em quaisquer circunstâncias a proposta
emancipatória e de liberdade freiriana decorre da “consciência
crítica”, sem ela, de acordo com o autor, não estaremos preparados
para a vida e, tampouco, para o cenário político que costuma ser um
ambiente ainda mais árido e hostil.
Mas a essa altura diante do “tema gerador” educação enquanto
ato político considerando os nossos conhecimentos prévios (por
certo um tanto limitado), eis que do diálogo com Freire fazemos a
passagem da consciência “transitiva ingênua” para a “transitiva
crítica” quando descobrimos que Freire se afirma como “inteireza e
não uma dicotomia” e prossegue: “não tenho uma parte de mim
esquemática, meticulosa, racionalista, conhecendo objetos e outra
desarticulada imprecisa, querendo simplesmente bem ao mundo”
(FREIRE, 2013, p.18), se conhece com seu “corpo todo, sentimentos,
paixão. Razão também” (FREIRE, 2013, p.18). As palavras de Freire me

65
fizeram perceber que não há como atomizar o seu pensamento, de
forma que abordar a sua epistemologia ou a sua pedagogia implica
em tratar também da política.
No entanto, o pensamento de Freire colecionou algumas
críticas4 no sentido de reduzi-lo apenas a um método, a uma
educação de Adultos, a uma pedagogia ou até mesmo a um
pensamento gnosiológico por envolver assuntos do humano, como
liberdade, igualdade, respeito e amor. Talvez em lugar da perspectiva
gnosiológica que sugere categorias universais para o humano, Freire
se aproxime mais de uma perspectiva ontológica existencialista, em
que o ser humano incompleto e em movimento se perfaz no mundo
e com o mundo.
A profundidade e a complexidade do pensamento e das ideias
freirianas aliadas à inquietação própria do intelectual e do homem
sempre inacabado teve diversas fases que subdividimos em duas
grandes fases: a primeira voltada para a “educação de adultos” e seu
método, desenvolvida nas obras Educação como prática da Liberdade
(1967), Pedagogia do Oprimido (1968), Extensão ou Comunicação?
(1968), escritas durante a ditadura e o período do exílio; e a segunda,
no período pós-ditadura quando do seu retorno ao Brasil, diz numa
conversa com Frei Betto: “vim para reaprender o Brasil, e não para
ensinar os que aqui ficaram como ‘exilados internos’” (FREIRE apud
GADOTTI, 1996, p.162), e, de fato, o fez. Aproximou-se da política e da
educação formal, em especial, quando esteve à frente da Secretaria
Municipal de Educação São Paulo (1989-1991)5 o que agregou novos
elementos ao seu pensamento, que podem ser vistos nas obras
Educação na Cidade (1991), Pedagogia da Esperança (1992), Política e

4 “Nas campanhas que se faziam e se fazem contra nós, nunca nos doeu nem nos dói
quando se afirmava e afirma que somos “ignorantes”, “analfabetos”. Que somos “autor
de um método tão inócuo que não conseguiu, sequer, alfabetizá-lo (ao autor). Que não
fomos o “inventor” do diálogo, nem do método analítico-sintético, como se alguma vez
tivéssemos feito afirmação tão irresponsável. Que “nada de original foi feito” e que
apenas fizemos “um plágio de educadores europeus ou norte-americanos. E também de
um professor brasileiro, autor de uma cartilha... Aliás, a respeito de originalidade sempre
pensamos com Dewey, para quem ‘a originalidade não está no fantástico, mas no novo
uso de coisas conhecidas’ ”. (FREIRE, 2011, p. 159).
5 Em 15 de novembro de 1988 o Partido dos Trabalhadores (PT) ganhou as eleições

municipais de São Paulo, tendo à frente a prefeita Luiza Erundina. Paulo Freire foi por
ela nomeado Secretário de Educação, assumindo o cargo dia 1º. de janeiro de 1989
no qual permaneceu até 1991.

66
Educação (1993), À Sombra desta Mangueira (1995), Pedagogia da
Autonomia (1996).
Diante de toda complexidade e dinamicidade do pensamento
freiriano, marcas da história e da incompletude humana e científica,
ainda há autores, que em fluxo contrário, insistem em cristalizar as
suas ideias, contribuindo para potencializar a acusação de
reducionismo do seu pensamento, impossibilitando de compreendê-
lo em seu todo, a partir de suas raízes.
O que propomos aqui é reinterpretar as fronteiras internas do
seu pensamento (fronteiras não criadas por Freire), substituindo as
barreiras por pontos de contato. Buscaremos compreender a
estrutura epistemológica do pensamento freiriano em especial, face
às categorias de consciência, práxis e dialogia6 que constituem os
pilares do seu pensamento antipositivista em ruptura com a visão
dogmática tradicional.
As categorias freirianas desdobradas em conceitos como:
concepção bancária e dialógica, educação problematizadora,
emancipatória e libertadora, consciência ingênua e crítica, inter-
relacionadas e integradas às variadas dimensões, cognitivas,
políticas, éticas, pedagógicas, gnosiológicas, ontológicas e
epistemológicas, ainda não foram institucionalizadas pela educação
brasileira como um paradigma capaz de se opor ao pensamento de
tradição positivista ainda dominante em parte expressiva dos
conteúdos pedagógicos e livros didáticos.
Insistir em uma epistemologia para o pensamento freiriano é
não tratá-lo apenas na esfera do método ou da pedagogia que podem
ser utilizadas por um, por outro ou por alguns educadores ou
instituições de ensino. A nossa pretensão ao contrário, é contribuir
para viabilizar ou só da epistemologia freiriana, ao lado de outros
autores, como por exemplo, os signatários do Manifesto dos
Pioneiros, como fundadora e estruturante de uma “Política
Educacional enquanto Projeto de Estado”, de forma a servir de
referência para a construção do Sistema Nacional de Educação –

6Os autores que serão aqui utilizados foram as fontes do próprio Freire para
desenvolver o seu pensamento em torno dessas categorias, sendo eles: Wilhelm
Hegel, Karl Marx e Karl Jaspers, respectivamente.

67
SNE7, contribuindo para que as bases educacionais estejam
sistematizadas, e, que a educação deixe de funcionar como “moeda
de troca” em “políticas de governo” que a desviam da sua finalidade
para atender interesses próprios, econômicos, políticos e de
mercado, sem qualquer compromisso com a formação e o pleno
desenvolvimento da pessoa humana. Aliás, Freire nos adverte que a
conscientização é um compromisso histórico, o que implica que os
homens devam assumir o papel de sujeitos que fazem e refazem o
mundo (FREIRE,1983).
Para investigar as raízes epistemológicas em que estão
assentados os três pilares do pensamento freiriano, quais sejam: a
consciência, a práxis e a dialogia, utilizaremos duas de suas obras,
Educação como Prática da Liberdade (1967) e Pedagogia do Oprimido
(1968).

A Mangueira

Estudos sobre o pensamento freiriano se voltam em grande


medida para os seus frutos que seriam o aspecto prático das suas
ideias, o que aqui chamaremos de pedagogia, ou seja, são os frutos
que podemos colher dessa Mangueira. Contudo, além dos frutos, a
Mangueira nos dá também a sombra, que metaforicamente,
poderíamos assemelhá-la à visão de mundo, que nos acolhe dando a
noção do todo, e, claro, não nos esqueçamos das raízes, que dão
sustentação à Mangueira e embora nem sempre visíveis, são elas que
conduzem os nutrientes necessários para que a árvore continue viva,
com frondosa sombra e excelentes frutos. Conhecer e cuidar das
raízes significa proporcionar a manutenção da visão de mundo, que
mesmo em constante movimento, dada à dialética da própria
natureza, a Mangueira, como um todo, responsabiliza-se por
transformar o ambiente.

7 Na perspectiva de Saviani (2010) o SNE contribui para que a educação seja portadora
de uma ação sistematicamente articulada de modo a permitir unidade e coerência ao
sistema, contudo, essa ação precisa ser orientada por uma intencionalidade, ou seja,
pela escolha de uma teoria da educação que oriente as normas educacionais dando-
lhes coesão e consistência aos objetivos e princípios educacionais. “É a organização
intencional dos meios, com vistas a se atingir os fins educacionais preconizados em
âmbito nacional, é o que se chama “Sistema Nacional de Educação” (SAVIANI, 2010).

68
Paulo Freire como todo ser histórico foi um homem do seu
tempo, tendo a sua epistemologia sido forjada a partir do universo
intelectual a que teve acesso, bem como, de suas vivências histórico-
sociais. A realidade brasileira no período desenvolvimentista pré-
ditadura de 1964, auge da industrialização e urbanização, contribuiu
para acentuar o fosso da desigualdade, fazendo emergir a pobreza, o
desemprego, a opressão e o analfabetismo, que perdurou durante a
Ditadura (1964-1985). Esse período de efervescência despertou em
Freire a defesa de direitos como a democracia, alfabetização
emancipadora, igualdade e liberdade, que foram reunidos por Freire
a partir de raízes científicas que os sustentam.
Importante estudioso e colaborador de Freire, Moacir Gadotti
(2002), no texto intitulado Los Aportes de Paulo Freire a la Pedagogia
Crítica corrobora as palavras de Paulo Freire, no sentido de não
querer que a sua teoria do conhecimento fosse reduzida a mera
metodologia, ressaltando para tanto, que a forma como Freire
cristalizou suas reflexões é bastante peculiar, talvez um pouco
distintas das formas clássicas de elaborações teóricas, uma vez que
seus escritos, reúnem além da linguagem filosófico- científica
também a literário‐poética, todas agregadas à dimensão existencial e
histórico-cultural.
Concebemos essa peculiaridade como um diferencial dos
grandes mestres que detêm a facilidade e o domínio da técnica da
“transposição didática”, no caso de Freire “mediação didática”, dada
a facilidade com que transformou um objeto de saber em um objeto
de ensino de forma leve, sem, no entanto, perder a densidade. Ao
mesmo tempo, a partir de um movimento muito próximo da
“antropofagia modernista” deglutiu os conhecimentos complexos
para a eles incorporar crítica e seletivamente “o outro”, criando um
novo conhecimento, atendendo às especificidades e demandas do
conhecimento científico local enraizado em uma epistemologia, mas
constituindo nova epistemologia a partir dos saberes locais e da
realidade brasileira.
Numa perspectiva pedagógica (mas não só) Freire defende uma
educação libertadora e emancipatória, o que conduz alguns de nós
que tentam implementar a pedagogia de Freire em ações práticas,

69
especialmente, quando se pensa em inovação8 e se procura encaixá-
lo na expressão simplista e atual “pensar fora da caixa”9, acabamos
por implodir toda uma teoria científica densa e complexa sobre
emancipação e libertação pelo pensamento, que embora proponha
uma ruptura com o pensamento dogmático hegemônico, não guarda
qualquer relação com inovação nos moldes “mágicos” e
descomprometidos com a tradição no formato proposto por
defensores mais entusiastas.
Esses entusiastas movidos pela “modernidade líquida” tão
combatida por Zygmunt Bauman, parecem defender a efemeridade,
desconsiderando a tradição, substituindo “o velho” pelo “novo” sem
sequer considerar o primeiro, o que de início contradiz o pensamento
de Freire em sua estrutura, posto que lhe retira o seu motor, a
dialética (contrariar a tese, ou seja, utilizar a antítese para formar a
síntese), comprometendo também a dialogia. Pensam Freire como
revolucionário e inovador que “criou” categorias sem qualquer lastro
epistemológico, o que por certo, para a ciência atual, jamais faria do
seu pensamento um conhecimento científico. Para Freire, a educação
que cumpre o seu papel emancipador e que liberta, é aquela
submetida à dialética dentro dos “limites da caixa”, ou seja, a que faz
uso da antítese que promoverá síntese que extrapolará esses limites
e será o novo, e deverá estar acompanhada da crítica que necessita
de desenvolvimento, posto que não imanente. Assim, estaremos

8 Esse conceito associado a Paulo Freire é contrário à proposta freiriana para Educação.

De acordo com Christopher Freeman (1988) inovação é o processo que inclui as


atividades técnicas, concepção, desenvolvimento, gestão e que resulta na
comercialização de novos (ou melhorados) produtos, ou na primeira utilização de
novos (ou melhorados) processos. É quando o protótipo se transforma em produto
comercializável.
9 Em tempos de discussões acerca de “descolonialidades” e “epistemologias do sul”,

talvez à muitos causa a impressão de um possível “vale-tudo científico”, no qual a


hegemonia do saber europeu e norte- americano devem ser extirpados do nosso
conhecimento científico. Todavia, a não ser que o conceito de ciência seja totalmente
reformulado, atualmente isto não seria possível, haja vista que os conhecimentos se
encontram amalgamados. Algumas correntes contra-hegemônicas propõem o
protagonismo cultural, epistemológico e metodológico dos saberes locais, mas não a
substituição de um pelo outro como se fosse possível depurá-los, ou seja, assumem
que protagonizar não implica em eliminar totalmente os conhecimentos eurocêntricos
e do norte. Diante deste quadro Romão sugere que está surgindo uma nova
“geopolítica do conhecimento” (ROMÃO, 2008, p. 64).

70
diante do novo, em diálogo e/ou contradição com a tese, concebido
de maneira crítica e não ingênua.
A inovação promovida pelo “pensar fora da caixa” encontra-se
muito próxima da doxa (δόξα)10 que é a crença comum ou opinião
popular, utilizada pelos retóricos gregos como ferramenta para
formar seus argumentos através de opiniões comuns, opondo-se à
episteme (ἐπιστήμη) grega de Aristóteles, o saber “verdadeiro”.
Diferentemente da doxa e da episteme grega, a ciência moderna a
partir do século XVII (no séc. XIX surge Comte com o Positivismo e
aplica-o às ciências humanas), transforma-se em um saber
sistematizado, metódico, que permite explicações acerca de fatos e
fenômenos passíveis de críticas, confirmações ou refutações, posto
que, onde “no senso comum vemos fatos e acontecimentos, a
atitude científica vê problemas e obstáculos, aparências que
precisam ser explicadas [...]” (CHAUÍ, 2010, p. 274).
A epistemologia propõe a clareza demarcatória entre os limites
da ciência e do senso comum. Pressupõe a existência de teorias,
reflexões, métodos e metodologias utilizadas na construção do
conhecimento, sem os quais, não teremos uma teoria do
conhecimento científico da qual fora acusado Freire. Ernest Nagel em
The Structure of Science (1961) arrola entre as características da
ciência: existência de uma forma sistematizada de organização do
conhecimento; definição do método ou metodologia que
estabeleçam o objeto de estudo e a forma de estudá-lo;
incompletude e falibilidade do conhecimento científico. Essas
características podem ser encontradas na epistemologia freiriana.

Dos frutos às raízes

Diversos autores contribuíram substancialmente para a análise


do pensamento freiriano a partir do viés epistemológico. Gadotti
(1989) ao apresentar o pensamento humanista de Freire, respalda a
sua estruturação no “existencialismo, na fenomenologia e no
marxismo” (GADOTTI, 1989, p. 107). Saviani (1987) se refere à filosofia
de Freire como de inspiração de “concepção humanista moderna de

10 Na perspectiva freiriana, a doxa corresponde à “transitividade ingênua” da


consciência e a ciência no sentido moderno corresponderia à almejada
“transitividade crítica” que implica em tomada de consciência.

71
filosofia da educação” e na fase de constituição e implantação de sua
pedagogia no Brasil (1959-1964) suas fontes de referência foram
Emmanuel Mounier, Gabriel Marcel e Karl Jaspers. Ainda, segundo
Saviani (1987), a filosofia dialética de Freire é idealista, uma espécie
de “dialética de consciências”, que, com base no método
fenomenológico existencial é sinônimo de diálogo.
Os frutos da educação libertadora a serem colhidos a partir da
Pedagogia do Oprimido11 no qual o diálogo com o oprimido exige a
superação da contradição opressor/oprimido para que ambos
tornem-se sujeitos do processo e juntos se libertem, encontra raízes
na epistemologia hegeliana.

A violência dos opressores, que os faz também desumanizados, não


instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser
mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem
os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos,
ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la,
não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato,
opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em
ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos –
libertar-se a si e aos opressores (FREIRE, 2003, p. 30).

Referindo-se expressamente à dialética do “senhor x escravo”


de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) Freire ressalta que não
basta aos oprimidos “saberem-se numa reclamação dialética com o
opressor — seu contrário antagônico — descobrindo, por exemplo,
que sem eles o opressor não existiria (Hegel), para estarem de fato
libertados” (FREIRE, 2003, p. 22), mais do que isso, será preciso que
se entreguem à práxis libertadora (FREIRE, 2003, p.36).
Assim, se o que caracteriza os oprimidos como sendo uma
“consciência servil”12 em relação à “consciência do senhor” é fazer-se

11 No primeiro Capítulo intitulado “Justificativa da ‘pedagogia do oprimido’”, Freire


esclarece que tem por objetivo aprofundar alguns pontos discutidos no seu primeiro
livro Educação como Prática de Liberdade.
12 Antes de Hegel, no século XVI um jovem francês estudante da l’université d’Orléans,

Étienne de La Boétie amigo de Montaigne, escrevera em 1548, aos 18 anos o Discours


de la Servitude Volontaire, na qual não há imposição direta do opressor. Tomando
como epígrafe de seu livro o Canto II da Odisseia de Homero em que Ulisses diz:
“D'avoir plusieurs seigneurs aucun bien je n y voi: Qu'un, sans plus, soit le maître et
qu'un seul soit le roi” (LA BOÉTIE, 1922, p.49). La Boétie disse que bastaria a Ulisses

72
quase “coisa” e transformar-se, como salienta Hegel, em
“consciência para outro”, “a solidariedade verdadeira com eles está
em com eles lutar para a transformação da realidade objetiva que os
faz ser este “ser para outro” (FREIRE, 2003, p. 36).
Para Hegel o senhor tem com o escravo uma relação que,
inicialmente, não se vislumbra a possibilidade do escravo se libertar
na luta, posto que a sua independência encontra-se na coisa externa,
isto é, no senhor e não em si.
No entanto, Hegel e Freire propõem que a solução para a
libertação está em si, na própria consciência. O conceito de
consciência, tão caro ao pensamento freiriano, foi abordado por
Hegel na Fenomenologia do Espírito13 onde a bordou aspectos sobre a
formação da consciência (Bewusst) humana e intencional
(Gegenstand). Hegel emprega Bewusstsein (ser consciente) “para
denotar não só a consciência de um sujeito, mas o próprio SUJEITO

escrever que “ter vários senhores não é nenhum bem”. Esse fragmento faz com que
La Boétie questione sobre o que nos seduz na servidão, no desejo de “abrirmos mão”
da nossa liberdade para servirmos voluntariamente, e, apresenta três razões: a
primeira é que nascemos servos e somos criados como tais, de maneira que
"acostumados à sujeição” nos contentamos em viver como nascemos, o que não nos
conduz a pensar em ter outros bens ou direitos; a segunda é que sob tirania, as
pessoas tornam-se covardes e submissas, não têm ardor e não lutam por uma causa,
mas, por obrigação, situação que é estimulada pelos tiranos que mantêm os homens
estúpidos dando-lhes "pão e jogos" (próximo ao Panem et circenses romano); e a
terceira apresenta-se como "suporte e fundamento de toda tirania" e está nos
homens fiéis ao tirano, nos "cúmplices de suas crueldades" responsáveis por
submetê-las a outros, que por sua vez, estendem-nas a outros subordinados, isto é,
os tiranizados tiranizam os que estão abaixo (oprimidos tornam-se opressores),
onde todos eles, em caso de punição, não devem estar sujeitos às leis, mas devem
depender da proteção do tirano. O autor conclui: “Soyez résolus de ne servir plus, et
vous voilà libres” (Seja resoluto em não servir mais e você estará livre) (Ibid, p. 60).
Em outras palavras, utilizando-se da metáfora da lenha e do fogo, La Boétie defende
que basta não apoiar e não alimentar a tirania (contemporaneamente podemos
substitui-la pelo sistema) porque assim ela perde as forças e consome a si mesmo.
13 Vale lembrar que “não é, contudo, a fenomenologia hegeliana que iria se perpetuar

no século XX sob a forma do movimento de pensamento que traz o nome de


fenomenologia” (DARTIGUES, 1992). Quem dá novo significado à fenomenologia
utilizada por autores como: Maurice Merleau-Ponty, Martin Heiddeger, e Karl
Jaspers, para citar alguns, será Edmund Husserl (citado por Freire (2003) p. 50 e
Freire (1983) p.35) influenciado por Franz Brentano, para quem a consciência, por ser
sempre “consciência de algo”, é caracterizada pela intencionalidade.

73
consciente, em contraste com o objeto do qual ele está consciente”
(INWOOD,1997, p. 78). Na linha do pensamento hegeliano Freire diz:

Se a tomada de consciência abre o caminho à expressão das


insatisfações sociais, se deve a que estas são componentes reais de
uma situação de opressão. O medo da liberdade, de que
necessariamente não tem consciência o seu portador, o faz ver o que
não existe. No fundo, o que teme a liberdade se refugia na segurança
vital, como diria Hegel preferindo-a à liberdade arriscada (FREIRE,
2003, p.13). Por que não fenecem as elites dominadoras ao não
pensarem com as massas? Exatamente porque estas são o seu
contrário antagônico, a sua “razão”, na afirmação de Hegel, já citada.
Pensar com elas seria a superação de sua contradição. Pensar com elas
significaria já não dominar (FREIRE, 2003, p. 90).

O senhor encontra-se em relação imediata com a consciência e


com a coisa relacionando-se com os dois e com cada um de forma
mediata, por intermédio do outro. É o senhor consciência “para-si”
mediada consigo mesma por outra consciência ou pelas coisas em
geral. Sendo assim, o senhor enquanto conceito da consciência de si
é relação imediata do “ser-para-si”, mas também, simultaneamente,
mediação, ou seja, um ser-para-si que só o é por meio do outro.

São essenciais ambos os momentos; porém como, de início, são desiguais


e opostos, e ainda não resultou sua reflexão na unidade, assim os dois
momentos são como duas figuras opostas da consciência: uma, a
consciência independente para a qual o ser-para-si é a essência; outra, a
consciência dependente para a qual a essência é a vida, ou o ser para um
Outro. Uma é o senhor, outra é o escravo (HEGEL,1992, p. 130).

O idealismo14 alemão hegeliano propõe uma filosofia da


atividade da consciência (ou do espírito), uma consciência que se
encontra em relação com circunstâncias históricas, reais e concretas,

14 No idealismo o ponto central é o da subjetividade que concebe a ideia como


essência da realidade, ou seja, o real é redutível à ideia e tem como oposto o
materialismo. O idealismo alemão é uma espécie de muitos outros e também
diferente entre si, visto que temos, por exemplo, o idealismo transcendental de Kant
e o “idealismo absoluto” de Hegel caracterizado pela defesa de que a única realidade
plena e concreta é de natureza espiritual (da consciência), cujo percurso da
consciência do mundo se dá na história.

74
posto que, para Hegel uma revolução implementada por ato da
consciência corresponde a uma revolução em termos práticos
históricos. Neste sentido, Hegel admite a separação entre a teoria e a
prática, questão que foi abordada posteriormente por Marx, mas não
separa sujeito e objeto15, consciência (espírito) e mundo. Reconhecer
o mundo é autoconhecimento do sujeito e objeto, sendo a sua
história real também a sua história espiritual. Entretanto, a
autoconsciência não pode manter-se em sua singularidade, de
maneira que a “autoconsciência só o é na medida em que se
reconhece”.
Hegel concebe a sua dialética em sentido estrito como “a
compreensão dos contrários em sua unidade ou do positivo no
negativo” (HEGEL, 1997, p. 56).
É o método que permite ao pensador dialético observar o
processo pelo qual as categorias, noções ou formas de consciência
surgem umas das outras para formar totalidades cada vez mais
inclusivas, até que se complete o sistema de categorias, noções ou
formas, como um todo.
A consciência dialética de Hegel envolve o esquema triádico de
tese, antítese e síntese. A tese é a ideia absoluta ou razão, o “eu”; a
antítese é o sair de si da ideia, a natureza, o “não eu”; e a síntese é a
regeneração da ideia na consciência espírito, o “eu absoluto”. Por ser
idealista, a dialética hegeliana considera que o mundo se movimenta
a partir da consciência e das ideias, cujos círculos dialéticos que
atravessam a história com vistas à ampliação da liberdade e
consciência humana.
Importante lembrar que Hegel não separa o sujeito do objeto
(assim como Freire não separa homem-mundo)16, transferindo para o
sujeito a condição de fenômeno que em Kant pertencia ao objeto. Com
isso o fenômeno é para si mesmo no próprio ato em que constrói o

15 O seu pensamento opõe-se ao dualismo cartesiano e kantiano entre sujeito e


objeto. Hegel como crítico do pensamento de Kant que admite a existência da “coisa-
em-si”, eleva a consciência (espírito) ao absoluto, onde a própria constituição do
objeto é feita pelo sujeito e aquele (objeto), por sua vez, interfere no sujeito.
16 A relação que se estabelece entre homem-mundo é dialética, “ninguém educa

ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados


pelo mundo” (FREIRE, 2003, p. 47).

75
saber de um objeto - é o sujeito no processo de formação da
consciência do “ser-em-si-e-para-si” e somente “para nós ele é-para-si”:

[...] a experiência do que é o Espírito, essa substância absoluta que, na


liberdade acabada e na independência da sua oposição, a saber, de
diversas consciências-de-si que são para-si, é a unidade das mesmas; Eu
que é Nós, e Nós que é Eu” (HEGEL, 1997, p. 18).

Freire por sua vez assume que “ninguém liberta ninguém,


ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”
(FREIRE, 2003, p. 34).
A dialética hegeliana da qual Freire se aproxima assume a ideia
de uma razão progressista, em constante movimento, devir e
expansão. A consciência do mundo desperta progressivamente para
a consciência de si-mesmo, cada vez mais consciente de seu valor
obtido com a cultura e desenvolvimento humano. Essa mesma
consciência culmina num desenvolvimento dentro da história.
Segundo Vaz (1992) o processo de formação do sujeito para o saber,
une dialeticamente as experiências da consciência que encontram
expressões exemplares na história da cultura ocidental (VAZ, 1992, p.
11). Hegel em sua filosofia adotou o enfoque histórico, no qual via o
mundo de forma abrangente como “um processo histórico em
perpétua evolução” (STRATHERN, 1998, p. 37).
Contrário ao pensamento de seus antecessores René Descartes,
Baruch Spinoza, David Hume e Immanuel Kant que compreendem
que o fundamento de todo conhecimento humano, são atemporais e
eternos, Hegel não acredita na existência de verdades eternas, numa
razão atemporal, mas na existência de verdade temporal, histórica,
logo, mutável. Para ele a base do filósofo é a sua própria história.
Ao trazer a história para a filosofia Hegel consolida sua crítica à
Kant, que por acreditar que sujeito e objeto são apartados defendia
que o homem não conhecia o mundo em si. Em Hegel os princípios
dialéticos da contradição, mediação e totalidade, tornam-se
explícitos quando o sujeito diz o que é o mundo em contato com ele,
assim, sendo o mundo cambiante, também o é a sua configuração e
a do sujeito, logo, se modificam a todo instante. Essa inter-relação
contraditória, fruto da historicidade, é chamada de “mediação” cuja
dialética entre “ser” (sujeito) e “ser outro” (mundo) formam a
“consciência de si”, que será duplicada por uma nova “consciência de

76
si”, dado ao movimento do mundo, que em que pese as contradições
internas gera uma totalidade, uma unicidade em si mesma. Do
pensamento hegeliano podemos extrair que o sujeito é um ser
histórico, cuja realidade é dinâmica e dialética.
A dialética da consciência simultânea ao mundo, ou seja,
histórica, também está em Freire:

[...] “consciência e mundo se dão ao mesmo tempo”. Na medida em


que os homens, simultaneamente refletindo sobre si e sobre o mundo,
vão aumentando o campo de sua percepção[...] (FREIRE, 2003, p. 50).

A formação da consciência em Hegel consiste num processo em


que no primeiro instante valoriza o papel que o outro exerce na
formação, na medida em que o indivíduo só se reconhece quando o
outro o reconhece, e, este, por sua vez, depende do reconhecimento
daquele para se reconhecer como tal. Ao final, essa consciência
absoluta do ser intervém no real.
A história é o processo e seu motor é a dialética. A contradição
impulsiona o autoconhecimento que expande a consciência e a torna
“consciência de si” para somente então, tomar consciência do outro,
retornando a si integrada ao outro, para posteriormente, ter a
consciência do todo.
Freire promove uma síntese e inova ao aplicar a dialética hegeliana
e marxista à educação, porque ele utiliza tanto como atividade da
consciência considerando uma situação histórica como Hegel, quanto a
materializa na educação como Marx. É clara a aproximação do
pensamento de Freire com o idealismo hegeliano, especialmente,
quanto à consciência como forma de libertação. Todavia, Freire constrói
o seu pensamento a partir da promoção de uma síntese entre o
idealismo de Hegel e o materialismo de Marx. Mas como isso é possível?
Já que em princípio, a proposta de Marx rompe com a teoria hegeliana.
Por certo, Freire (2003) defende a emancipação e libertação pela
consciência, mas segundo ele não existe consciência crítica sem
comprometimento histórico, não existe fora do processo de ação-
reflexão, uma vez que os homens são seres da práxis.
É preciso que haja uma emancipação do ato da consciência do
oprimido em relação ao opressor ou do educando em relação ao
educador, mas também, é preciso que essa libertação se dê

77
materializada na luta de classes, ou seja, historicamente, com vistas
também à emancipação da consciência.

O educador se põe frente aos educandos como sua antinomia


necessária. Reconhece na absolutização da ignorância daqueles a razão
de sua existência. Os educandos, alienados, por sua vez, à maneira do
escravo na dialética hegeliana, reconhecem em sua ignorância a razão
da existência do educador, mas não chegam, nem sequer ao modo do
escravo naquela dialética, a descobrir-se educadores do educador
(FREIRE, 2003, p. 40).

Aproximando-se do feito de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich


Engels (1820 – 1895) que ao fundarem o materialismo histórico, fizeram
o mesmo, apreendendo a dialética na história que está sempre em
movimento, Freire aplica o pensamento hegeliano à educação, onde,
ora refere-se à dialética que está na consciência (às duas consciências do
senhor e do escravo) e é o ponto chave da educação libertadora e
emancipadora, ora refere-se às pessoas do oprimido e do opressor
(relações da sociedade e entre professor e aluno).
No jovem Marx, por alguns autores visto como neohegeliano
“porque estava mergulhado na corrente de autores, que mais tarde
se convencionou chamar de “jovens hegelianos, dominante na
filosofia alemã depois de Kant” (BARROS, 2011, p.224), percebemos
também um movimento dialético no qual, ao lado de seu amigo
Friedrich Engels, escreveu o livro A Sagrada Família ([1844] 2011)17 que
significou uma crítica ao pensamento hegeliano dos irmãos Bauer.
Não há como negar os impactos do pensamento de Hegel em
Marx, em especial, da dialética18, bem como, da percepção hegeliana
de mundo enquanto processo histórico19, que ao incorporar a

17 O nome é uma referência aos irmãos Bauer: Bruno, Edgar e Egbert. Também
chamado A crítica da Crítica crítica: Contra Bruno Bauer e consortes, jovens hegelianos
que após a morte de Hegel submeteram à crítica o seu idealismo.
18 “No Posfácio à segunda edição alemã de O capital (escrito em janeiro de 1873),

Marx registra a enorme importância da dialética de Hegel para a filosofia e seu


próprio trabalho. Por outro lado, ele nunca foi um “discípulo” de Hegel e não se via
como um hegeliano. Apesar de ter assimilado sua dialética na primeira fase, Marx fez
severas críticas a Hegel” (BARROS, 2011, p.224).
19 “A filosofia alemã foi completada por Hegel, o qual, pela primeira vez [...] concebeu

o mundo da natureza, da história e do espírito como um processo, isto é, como um


mundo sujeito à mudança” (ENGELS, 1990, p. 22).

78
historicidade à filosofia, viria ser a principal referência para o
materialismo histórico de Marx.
O que distancia Marx de Hegel é que a dialética deste é idealista,
cujo mundo movimenta-se a partir do espírito, isto é, da consciência.
Marx inverteu a dialética de Hegel de modo a situar a “base material
da sociedade” como ponto de partida da história, num materialismo
dialético. “Se em Hegel o espírito situa-se no início e no centro do
movimento da história, em Marx essa centralidade será ocupada pela
“atividade de produzir o mundo” (BARROS, 2011).
O materialismo histórico utiliza-se - da totalidade, movimento e
contradições - ou seja, de todas as categorias do pensamento
dialético hegeliano. Em carta a Kugelman, Marx esclarece:

Ele sabe muito bem que meu método de desenvolvimento não é


hegeliano, já que sou materialista e Hegel é idealista. A dialética de
Hegel é a forma básica de toda a dialética, mas só depois de ter sido
purgada de sua forma mistificada, e é precisamente isso que distingue
meu método. (Carta a Kugelmann, 6 de março de 1868) (MARX apud
BOTTOMORE, 1988, p. 169).

De acordo com Konder (2008) Engels tinha como preocupação


a defesa do caráter materialista da dialética, tal como Marx e ele a
concebiam, sendo preciso evitar que a dialética da história humana
fosse analisada “como se não tivesse absolutamente nada a ver com
a natureza, como se o homem não tivesse uma dimensão
irredutivelmente natural” (KONDER, 2008, p. 55). Uma certa dialética
na natureza era para Marx e para Engels condição prévia para que
pudesse existir a dialética humana.
Além da apropriação materialista da dialética hegeliana, Marx
faz a apropriação dialética do materialismo, distanciando-se do que
ele próprio denominou de “materialismo vulgar” e, para tal utiliza
como ponto de partida o materialismo de Ludwig Feuerbach (1804-
1872), embora tenha sido criticado por Marx por ser um modelo
materialista que desconsidera a história20. O materialismo histórico
tem como fundamentos centrais o materialismo, a dialética e a

20 Nas Teses sobre Feuerbach, Marx critica as teses 6 e 7 ao argumento de que o


filósofo faz uma “abstração da marcha histórica” não compreendendo que o
“indivíduo abstrato que analisa pertence a uma determinada forma social”.

79
historicidade, a ausência de qualquer desses elementos dissolve ou o
transforma em outro conceito.
Engels escreveu em 1892 na introdução Do socialismo utópico ao
socialismo científico que o materialismo histórico, que segundo Marx
seria “o fio condutor” de todos os seus estudos subsequentes:

[...] designa uma visão do desenrolar da história que procura a causa


final e a grande força motriz de todos os acontecimentos históricos
importantes no desenvolvimento econômico da sociedade, nas
transformações dos modos de produção e de troca, na consequente
divisão da sociedade em classes distintas e na luta entre essas classes
(ENGELS apud BOTTOMORE, 1988).

Em entrevista21 Paulo Freire destaca que foi a realidade dos


camponeses que o conduziu a aproximar-se de Marx, reafirmando a
importância do materialismo histórico em seu pensamento:

A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como
produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se
os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “inversão da
práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade
opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens (FREIRE, 2003, p. 24).
[..] Não há realidade histórica — mais outra obviedade — que não seja
humana. Não há história sem homens, como não há uma história para
os homens, mas uma história de homens que, feita por eles, também
os faz, como disse Marx (FREIRE, 2003, p. 89).

As citações acima aproximam a vivência prática a que Freire se


refere, ainda mais do pensamento marxiano22 no qual Marx propõe
transformar o mundo sem deixar de interpretá-lo, defendendo a
noção de práxis23 que significa a junção entre teoria e prática. Mesmo

21 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Uvdc2YlcZkE. Acesso em:


10/04/2018.
22 Utilizamos “marxiano” quando nos referimos à produção pessoal de Karl Marx

(texto ou análise própria). “Marxismo” quando nos referimos à ação política e


“marxista” quando fazemos referência aos ativistas do programa político e também
quando nos reportamos aos teóricos do materialismo histórico.
23 No texto a “Crítica da filosofia do direito de Hegel: introdução (Deutsch-Französiche

Jahrbücher, 1844) Marx proclama a práxis como a meta da filosofia verdadeira (isto
é, da crítica da filosofia especulativa) e a revolução como a verdadeira práxis (a práxis
à la hauteur des principes)” (BOTTOMORE, 1988, p.462).

80
o “mergulho pragmático na ação política revolucionária” (KONDER,
2006, p. 24), que seria na esfera do ativismo político não representa
apenas a prática, mas também a interpretação responsável pela
autocrítica e revisão das posturas e objetivos. Interpretar o mundo ao
mesmo tempo em que o transformamos.
Transformar o mundo com plena consciência. Teoria e prática
juntas representavam a práxis em Marx e também em Freire (2003):

Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual,


mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a
mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho de reflexão, para
que seja práxis. O diálogo crítico e libertador, por isto mesmo que
supõe a ação, tem de ser feito com os oprimidos, qualquer que seja o
grau em que esteja a luta por sua libertação. (FREIRE, 2003, p. 34)

Segundo Sánchez Vázquez (2007) as primeiras Teses sobre


Feuerbac24 são as responsáveis pelo desenvolvimento da noção
emancipadora da práxis de Marx, para quem “o mundo não muda
somente pela prática: requer uma crítica teórica (que inclui fins e
táticas) tampouco a teoria pura consegue fazê-lo” (SANCHEZ
VÁZQUEZ, 2007), fazendo-se, portanto, necessária a conjugação de
ambas. A práxis exclui o materialismo ingênuo, no qual sujeito-objeto
está em relação de exterioridade, bem como, o idealismo que
desconsidera os aspectos sociais da ação.
O conceito de práxis em Marx desde as suas primeiras obras até
aquelas escritas na maturidade sofreu algumas variações, como por
exemplo, n’O Capital [1867] que além da teoria e prática o próprio
autor acrescenta a poiesis, que corresponde ao fazer concreto que
configura a produção material, ou seja, o trabalho. Representa o
resgate do homo faber (o homem que fabrica) integrado ao homo
sapiens25 (homem da teoria da prática).
Freire (2003) complexifica ainda mais o conceito de práxis ao
conceber a “práxis autêntica” a partir de uma “solidariedade” entre
subjetividade-objetividade como unidade dialética:

24 Frase emblemática de Karl Marx sobre a Tese 11 de Feuerbach: “os filósofos não
fizeram mais do que interpretar o mundo; cabe a nós transformá-lo”.
25 Além desses conceitos da Poética (384-322 a.C.) de Aristóteles, Marx retoma nos

Grundisse o conceito aristotélico do homem como animal político (zoon politikon),


que por meio da práxis realiza-se na pólis.

81
Este fazer “a opressão real ainda mais opressora, acrescentando-lhe a
consciência da opressão”, a que Marx se refere, corresponde à relação
dialética subjetividade-objetividade. Somente na sua solidariedade, em
que o subjetivo constitui com o objetivo uma unidade dialética, é
possível a práxis autêntica (FREIRE, 2003, p. 24).

Importante destacar que a “práxis autêntica” surgiu da


abordagem da práxis fundada no “marxismo humanista” realizado
por filósofos iugoslavos (SOUZA, 2017) participantes da “Escola de
Verão em Korčula” nas décadas de 1950 e 1960, que numa tentativa
de libertar Marx das errôneas interpretações stalinistas e de reviver
e desenvolver o seu pensamento original passaram a considerar o
conceito de práxis como central no pensamento deste.
Na visão desses autores o homem para Marx era um ser de
práxis, não apenas no sentido da atividade econômica, política ou
revolucionária, mas sim de uma práxis especificamente humana do
ser, do homem, como atividade livre criadora e auto criadora
(BOTTOMORE, 1988). Autores importantes da teoria crítica marxista
como Herbert Marcuse, Jürgen Habermas e Lucien Goldmann26,
dentre outros, mantinham diálogo com filósofos iugoslavos.
Essa perspectiva teórica passou à história do pensamento social sob
a denominação de “marxismo humanista”. Para alguns desses autores
Marx utilizou-se do conceito de “práxis” no sentido aristotélico (praxis,
poiesis e teoria) restrito à “boa práxis” ou “práxis autêntica” no sentido
ontológico e antropológico, em oposição à “má práxis” ou alienada
(BOTTOMORE, 1988). Em Freire, a pedagogia do oprimido humanista e
libertadora se caracteriza por homens cuja vocação ontológica é
humanizar-se, por homens que lutam permanentemente pela sua
libertação (FREIRE, 2003, p. 32) por meio da reflexão sobre a opressão e
suas causas, sempre com vistas à transformação.
No Capítulo 1 do livro Pedagogia do Oprimido em que Paulo Freire
busca explicar o título aproximando-se do “marxismo humanista”, ao
defender que o homem precisa enfrentar a classe dominadora que

26Freire cita Goldman na Pedagogia do Oprimido, quando aborda a “consciência real”:


“Real consciousness is the result of the multiple obstacles and desviations that the
different factors of empirical reality put into opposition and submit for realization by this
potential consciousness” (FREIRE, 2003, p. 75).

82
pela violência, opressão, exploração e injustiça tenta perpetuar-se, e
para isso, precisa transformar-se num sujeito da realidade histórica em
que está inserido, humanizando-se, lutando pela liberdade, pela
desalienação e pela sua afirmação.
Mas Freire (2003) avança em seu pensamento e ao longo de sua obra
percebemos claramente uma aproximação com a filosofia
existencialista27, ao defender que não basta que o homem se reconheça
enquanto ser histórico e social, mas que perceba que é na inserção no
mundo que nos tornamos seres históricos, visto que “é atuando no
mundo que nos fazemos”, de maneira que “consciência e mundo se dão
ao mesmo tempo” (SARTRE apud FREIRE, 2003, p. 49). Para que o
homem saia do estágio da “consciência ingênua” para a “consciência
crítica” é preciso que ele possua “integração ao seu contexto, resultante
de estar não apenas nele, mas com ele” (FREIRE, 2003, p.42).

[...] “descodificando-o” [o mundo] criticamente, no mesmo movimento


da consciência o homem se re-descobre como sujeito instaurador desse
mundo de sua experiência. Testemunhando objetivamente sua história,
mesmo a consciência ingênua acaba por despertar criticamente, para
identificar-se como personagem que se ignorava e é chamada a assumir
seu papel. A consciência do mundo e a consciência de si crescem juntas e
em razão direta; [...] (FREIRE, 2003, p. 6).

Embora a corrente existencialista seja heterogênea, na qual


encontraremos diferenciação de linhas de pensamento e classificações, a
exemplo do existencialismo ateu de Sartre28 e cristão29 ou teísta de

27 Paulo Freire cita os existencialistas Karl Jaspers (pp.40,107 e 108) e Gabriel Marcel
(pp. 42, 60 e 62) no livro Educação como Prática de Liberdade e Karl Jaspers (pp.47) e
Jean Paul Sartre (pp.49,50) no livro Pedagogia do Oprimido.
28 “O que torna as coisas complicadas é que existem duas espécies de

existencialistas: os primeiros, que são os cristãos, e entre os quais eu listaria Jaspers


e Gabriel Marcel, de confissão católica; e por outro lado, os existencialistas ateus,
entre os quais é preciso colocar Heidegger e também os existencialistas franceses e
eu próprio” (SARTRE, [1946] 2010, p. 23 apud MENDES,2017). Em Carta sobre o
humanismo Martin Heidegger rejeita essa classificação.
29 O Programa de filosofia de Jaspers chamado de “fé filosófica” tem por objetivo

explicitar situações históricas e espirituais que enfrentadas em determinadas


épocas, pauta-se no questionamento, no filosofar, e por isso em constante
movimento, diferenciando-se da “fé cristã e religiosa” que é dogmática e doutrinária.
A “fé filosófica” não está relacionada à teologia, mas à transcendência que é quando

83
Jaspers (Freire cita os dois), a tensão com a estranheza da existência
que surge o pensamento que marcará o primeiro momento da história
do existencialismo, virá com o pastor protestante dinamarquês Søren
A. Kierkegaard (1813 – 1855).
O que as variadas correntes da filosofia existencialista possuem
em comum é a análise da existência compreendida como o modo de
ser do homem no mundo. A relação homem-mundo constitui o
principal tema de toda filosofia existencialista. Em primeiro lugar, o
existencialismo se caracteriza pelo fato de questionar o modo de ser
do homem no mundo; em segundo lugar, se caracteriza por questionar
o próprio mundo, sem por isso pressupor o ser como já dado ou
constituído.

A análise da existência não será então o simples esclarecimento ou


interpretação dos modos como o homem se relaciona com o mundo, nas
suas possibilidades cognoscitivas, emotivas e práticas, mas também, e
simultaneamente, o esclarecimento e a interpretação dos modos como
o mundo se manifesta ao homem e determina ou condiciona as suas
possibilidades. (ABBAGNANO, 1984, p. 127).

Tanto no livro Educação como Prática de Liberdade (2011) quanto


na obra Pedagogia do Oprimido (2003) Freire dá ênfase ao conceito de
comunicação utilizado pelo filósofo existencialista Karl Jaspers (1883-
1869). Freire enfatiza a comunicação, a dialogia, como forma de
combate à “educação bancária” para dar lugar à “educação
problematizadora” caracterizada pela intencionalidade, posto que
alfabetizar é conscientizar:

Ao contrário da “bancária”, a educação problematizadora, respondendo


à essência do ser da consciência, que é sua intencionalidade, nega os
comunicados e existência a comunicação. Identifica-se com o próprio da
consciência que é sempre ser consciência de, não apenas quando se
intenciona a objetos, mas também quando se volta sobre si mesma, no
que Jaspers - chama de “cisão”. Cisão em que a consciência é consciência
de consciência (FREIRE, 2003, p. 47).

tomamos consciência de nós mesmos em relação a um mundo que não tem


explicação em si mesmo.

84
No pensamento de Jaspers uma existência humana não é isolada,
mas se confirma na comunicação da Existenz de outros, sendo que
esses nunca podem destruir a nossa existência já que ela se consolida
no estar-junto no mundo. A existência em Jaspers (também em Freire)
não se apresenta como algo pronto e acabado, está em movimento e
se efetiva no curso da história.
Na visão de Hannah Arendt (1946) o pensamento de Karl Jaspers
é uma importante referência para a filosofia da existência por romper
com a visão tradicional de compreensão do ser sob o viés de estruturas
filosóficas sistematizadas que o definem como tal, de maneira que a
existência para Jaspers associa-se à liberdade humana, pois, ao se
definir o ser retira-se a liberdade, dando lugar a um ser humano
definido e não inacabado como propõe o autor.
Neste sentido, a existência proposta por Jaspers associada à
liberdade humana propõe que a filosofia se transforme num
“filosofar” como uma espécie de preparação para que o ser humano
enfrente a sua própria realidade no mundo e crie a sua liberdade,
propiciando uma comunicabilidade. E Freire (2011) converge para esse
pensamento:

Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar


nele e com ele. E é essa capacidade ou possibilidade de ligação
comunicativa do existente com o mundo objetivo, contida na própria
etimologia da palavra, que incorpora ao existir o sentido de criticidade
que não há no simples viver. Transcender, discernir, dialogar (comunicar
e participar) são exclusividades do existir. O existir é individual, contudo
só se realiza em relação com outros existires. Em comunicação com eles.
Neste aspecto ver Jaspers em: Origen y Meta de la História e Razão e Anti-
Razão de Nosso Tempo” (FREIRE, 2011, p. 40).

Com destaque para a comunicabilidade em Jaspers e sua


perspectiva fenomenológica, Arendt (1946) esclarece que se a
existência não se dá de maneira isolada, mas em diálogo com o outro,
nessa comunicabilidade encontra-se a possibilidade do surgimento de
um novo conceito de humanidade e dignidade, posto que, em
constante movimento o homem percebe-se como senhor dos seus
próprios pensamentos. Quanto a Paulo Freire, este concebe cada ser
como autor responsável pela construção de sua existência e de seu
saber e no estar-junto no mundo.

85
E que é o diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma
matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da
humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo
comunica. E quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor,
com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo.
Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos. Só aí há
comunicação. “O diálogo é, portanto, o indispensável caminho”, diz
Jaspers, “não somente nas questões vitais para nossa ordenação
política, mas em todos os sentidos do nosso ser. Somente pela virtude
da crença, contudo, tem o diálogo estímulo e significação: pela crença
no homem e nas suas possibilidades, pela crença de que somente chego
a ser eu mesmo quando os demais também cheguem a ser eles mesmos”
(FREIRE, 2011, p.107).

Sombra para todos

Não se trata apenas de aspectos gnosiológicos ou pedagógicos, mas


também de ontologia e epistemologia. A importância da análise do
pensamento freiriano a partir do viés epistemológico é fundamental para
a educação como visão de mundo, inspiradora de um “projeto de estado”
para educação, sistematizado pelo Sistema Nacional de Educação,
conforme dito anteriormente, evitando que a educação fique exposta às
mudanças propostas pelos diversos governos.
Não tratar toda a obra freiriana como uma pedagogia apenas, mas
também como epistemologia possibilita adotar o seu pensamento como
estruturante de uma sociedade, no sentido de estabelecermos o que
pretendemos para o futuro da educação. A epistemologia freiriana está
na base, é constitutiva da educação brasileira (mais como aspiração do
que implementação enquanto políticas públicas), e claro, não estática ou
dogmática, posto que enraizada em princípios norteadores acompanha o
movimento histórico.
Tivemos por propósito demonstrar a complexidade e as
profundas raízes do pensamento freiriano tensionado por muitos para
que se classifique apenas com o método ou pedagogia. O pensamento
de Freire é também isso, mas muito mais, o que o torna atemporal, um
clássico no qual estabelece um projeto de educação para a nação
brasileira, a partir do diálogo com fontes clássicas da filosofia mundial
considerando as especificidades da educação no Brasil.

86
Conceitos que formam o eixo estruturante do seu pensamento
pressupõem que a educação deve ser formadora e não “bancária” ou
impositiva, cuja escola e professor devem estimular o
autoconhecimento e o reconhecimento pelo outro para ter a
consciência de si, libertando-se da opressão até atingir a consciência
crítica e conceber a educação como ato político transformador.
Revolver a terra e chegar às raízes epistemológicas fez emergir
do pensamento freiriano, ao contrário das acusações de seus
detratores, a existência de um diálogo com outras epistemologias que
serviram de referência para pensar a epistemologia educacional
brasileira e contra-hegemônica, de modo a romper com o ciclo
reprodutivista e de preservação do poder das classes dominantes,
possibilitando a construção de uma epistemologia local.
Paradoxalmente, sentados à sombra desta frondosa Mangueira
com elevado potencial de produzir bons frutos, a realidade
educacional brasileira a despreza preferindo os tempos sombrios que
se avizinham, estimulando a “educação bancária” e reprodutivista
dando lugar à uma educação alienada com vistas a atender a
demandas governamentais pautadas na lógica neoliberal globalizada.

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89
90
OLHARES: PAULO FREIRE E A PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

Leila Maria de Jesus Oliveira

Um olhar: sobre (ser) Paulo Freire

Não sei precisar em minha trajetória quando aconteceu o


primeiro encontro com Paulo Freire, mas certamente faz muito tempo
que ele habita minha vida-existência.
É sempre desafiante falar desse nordestino pernambucano,
nascido em Recife, numa segunda-feira com a Lua se preparando para
encher o céu de brilho e, certamente, aqui no Cerrado central os ipês
brancos florindo como capuchos de algodão anunciando a chegada da
primavera. Era o dia 19 de setembro de 1921, exatamente o início da 38ª
semana do ano, o que me faz pensar que Paulo Freire foi um presente
de Natal que chegou em setembro do ano seguinte.
Paulo Freire, um sujeito para além dos seus livros, artigos e
legado, resgata sua amorosidade e humanização quando fala de sua
família e origens. Por ele mesmo, deixo que nos apresente seus pais:

Joaquim Temístocles Freire, do Rio Grande do Norte, oficial da Polícia


Militar de Pernambuco, espiritista, embora não fosse membro de
círculos religiosos, extremamente bom, inteligente, capaz de amar: meu
pai. Edeltrudes, de Pernambuco, católica, doce, boa, justa: minha mãe.
Ele morreu há muito tempo, mas deixou-me uma marca indelével. Ela
vive e sofre, confia sem cessar em Deus e sua bondade. Com eles aprendi
o diálogo que procuro manter com o mundo, com os homens, com Deus,
com minha mulher, com meus filhos (FREIRE, 1980, p. 13-14).

Ouso dizer que, além de (e por) tamanha amorosidade, Paulo


Freire é um casca-grossa. Sim, Paulo Freire é um sujeito casca-grossa.
Assim mesmo, com a força do verbo no presente. Mas não é o casca-
grossa apontado pelo Dicionário Aurélio e tantas outras definições que
adjetivam o substantivo composto, referindo-se a uma pessoa rude,
sem educação ou de modos grosseiros. Não é desse casca-grossa que
estou falando.
Explico, então.

91
Foi meu irmão, Flávio do Carmo, sujeito entendido dos mistérios
do cerrado, quem um dia me apresentou esse termo fazendo
referência a um sujeito valente, duro na queda, que sobrevive
resistente às lutas todas. Tempos depois fui entender o significado
dessa palavra presente com tanta força no bioma Cerrado1, vegetação
característica do Planalto Central.
Casca-grossa, na linguagem do povo do cerrado, é referência para
designar sabedoria, força, mistério e teimosia de vida. Marca de
resistência, a casca-grossa é um importante elemento que permite à
árvore do cerrado sobreviver às queimadas e à seca.
Explico de novo.
O mistério da natureza traz, para o bioma Cerrado, características
que o protegem da morte pelas queimadas, muito comuns,
principalmente no período de seca. As árvores do cerrado têm a
peculiaridade de casca-grossa, o súber, um tecido externo que, ao
envolver troncos e galhos, age proporcionando à planta um
isolamento térmico, impedindo que as queimadas atinjam os tecidos
internos vivos presentes nos caules, o que propicia uma rápida
recuperação das árvores diante de uma queimada, rebrotando após o
fogo. Ou seja, a casca-grossa é uma parte importante para que a árvore
sobreviva, preservando e renovando si mesma e o cerrado.
As árvores do cerrado são de valentia, resistência, amorosidade e
beleza. Seus troncos tortos, porque nada na vida tem de ser
estritamente em linha reta, guardam as contradições e a dialética dos
segredos de cores, cheiros e sabores inigualáveis. Segredos
apaixonadamente vivos, como Paulo Freire nos faz sentir quando
adentramos em seus pensamentos, reflexões, posicionamentos e
questionamentos do oprimido, da esperança, da autonomia, da
indignação.
Paulo Freire é muito casca-grossa, ou não sobreviveria ao
conservadorismo reacionário sempre presente neste país. Em sua
trajetória, Paulo Freire tem sobrevivido a muitas queimadas e
incêndios da ignorância, do poder, da classe dominante, do opressor.
Exemplo infeliz é a lembrança da manifestação pública ocorrida em 15
de março de 2015, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília-DF, onde

1O Cerrado tem como característica árvores espaçadas, de troncos retorcidos, cascas


e folhas grossas. É um bioma exclusivo da América do Sul, predominante no Centro-
Oeste do Brasil, cuja vegetação é típica e resistente ao clima seco.

92
uma faixa carregada por estudantes universitários trazia dizeres que
pediam um basta a Paulo Freire. São de ferir a alma essa história e
tantas outras que vieram na esteira do ódio sem porquês!
Digamos que a seca e as queimadas (criminosas, na maioria) são
a parte opressora do cerrado. Como opressora, silencia, queima,
acinzenta e destrói a vida na ansiedade da devastação. Quantos
incêndios criminosos no cerrado escondem a cruel intenção de limpar
o terreno para o agronegócio (principalmente)? Estritamente
bancário!
Porém, a força da vida que brota no impossível do cerrado
queimado, pela sua natureza de resistência, transforma cinzas em
renascimento, ressignificando a existência da natureza do seu ser,
rompendo com a condição imposta. Isto é Freire! E desse modo a
revolução acontece diante do impossível, do hostil, da desesperança.
Entre as árvores que florescem no cerrado, quero destacar o ipê,
o meu favorito! E novamente encontro em Paulo Freire a energia
contagiante das floradas dos ipês. Ipê, cujo significado vem do tupi-
guarani e quer dizer “árvore de casca grossa”, é uma espécie nativa do
cerrado e do pantanal. Há muitas referências do ipê considerando-o
como árvore símbolo do Brasil devido às suas floradas, e em especial o
amarelo. Embora o Pau-Brasil tenha reconhecimento legal2, as floradas
dos ipês são puro encantos do Brasil.
Uma das espécies mais resistentes das Américas, o ipê tem sua
florada no final do inverno. Quando tudo parece não ter mais vida, ele
anuncia o início da primavera, colorindo radiantemente o tom
acinzentado e seco, abrindo as portas para a nova estação, para o novo
que se anuncia. A casca-grossa do ipê é o que favorece a sua floração,
é ela quem mantém a hidratação da árvore no inverno. Para
economizar energia e água, a árvore perde suas folhas para dar força
à sua florada que, em meio ao cinza, colore desafiando qualquer
ausência de vida. Suas flores se juntam formando uma espécie de
buquê e nesse desafio de vidas se estabelece uma ordem de beleza,
primeiro florescem o roxo e o rosa, depois o amarelo e, por último, o
branco, já com a porta aberta para a primavera. A florada dura poucos
dias e cai no chão formando um tapete encantador. O ipê tem raízes

2Lei n.º 6.607, de 7 de dezembro de 1978, declara o Pau-Brasil árvore nacional, institui
o Dia do Pau-Brasil, e dá outras providências.

93
exploradoras capazes de buscar água nas profundezas do solo e assim
se manterem na hostilidade da seca extrema.
Por isso, eu considero Paulo Freire um sujeito casca-grossa. Ele
venceu tantos invernos, secas e queimadas, que lhe permitiram cair
folhas, mas não se deixou morrer e, como o colorido das floradas, isso
se materializa em suas obras.
O ipê ainda tem propriedades medicinais anti-inflamatórias, anti-
infecciosas e cicatrizantes, chegando a ser apelidado pelo costume
indígena de “para tudo”, dadas as suas propriedades medicinais para
“quase tudo”. Sua casca e entrecasca são utilizadas há muito tempo
pelas culturas de origem indígena e quilombola. E a sua madeira,
considerada de lei devido à sua dureza, resistência e flexibilidade, é
muito utilizada em construção civil, naval e para artefatos de arco e
flecha. Como vemos, tudo se aproveita de um ipê. Paulo Freire,
também, é um “para tudo”.
Paulo Freire, reconhecido como Patrono da Educação Brasileira, é
hoje dialogado não apenas na educação, mas talvez em todas as áreas
do conhecimento. Seu legado, registrado em livros, entrevistas,
artigos e ou imagens, demonstra o quanto sua passagem criou raiz.
Para tudo haverá a possibilidade de diálogo, mesmo que oposto ou
contraditório, debate do qual Paulo Freire nunca se opôs.
Mas o ipê é também aventureiro e se põe ao vento para percorrer
novos territórios. Depois da florada em pequenos e românticos
buquês, os frutos, em formato de vagem, quando secam se rompem
liberando as sementes, que, percorrendo levemente os ares ao
movimento do vento, assim espalham novas árvores, outras
distâncias.
Quando Paulo Freire inicia a escrita de Pedagogia do Oprimido,
ainda no exílio, vivendo o seu cerrado queimado, não tinha dimensão
de quantos terrenos férteis acolheriam as sementes ao vento da
produção sempre atual em todos os tempos.

Outro olhar: do encontrar-me (ser) oprimida

Pedagogia do Oprimido nasce comigo, no conturbado ano de


1968, e mais tarde eu renasço com ela. Cinquentenária, Pedagogia do
Oprimido completou meio século com vigor revolucionário e é
certamente uma das obras de Paulo Freire que mais inquieta e que por

94
isso alcançou germinar e transformar tantas práticas pedagógicas,
ressignificar sujeitos e esperançar a vida. Discutindo a contradição em
“opressor” e “oprimido”, Paulo Freire convida ao debate e à reflexão
sobre o aprisionamento do sujeito nas relações sociais. Paulo Freire é
tão casca-grossa que ousou escrever um livro para dialogar com a
pedagogia e com o oprimido.
Com ele eu entendi que o exercício da “liberdade” é uma
conquista que se dá no coletivo, pois não há o libertador nem a
autolibertação, mas a liberdade em comunhão, na qual ressignificar o
eu e o outro é uma via de mão dupla. Não é a minha atuação no
movimento popular que vai libertar o sujeito, somos eu e ele a nos
libertar das amarras do oprimido e da opressão em mim, nele e em nós.
Oprimido e opressor conflitam dentro de mim e dentro do outro o
tempo todo. Por isso, libertamo-nos! Libertemo-nos uns aos outros!
Paulo Freire me leva a entender a educação que eu vivi desde o
tempo em que sentei pela primeira vez no banco da escola. Eu só posso
libertar o outro se primeiro me libertar do princípio da educação
bancária, aquela em que não há espaço para a problematização. A
problematização é parte fundamental do processo educativo porque
a liberdade de expressar-me se faz num contínuo coletivo.
A concepção bancária de educação é um instrumento para
opressão dos sujeitos, pois, ao apresentar formas de controle e
dominação, de manipulação, mantém-se uma sociedade com essência
opressora. Ela é tida como depósito de conhecimento, pois o que está
historicamente construído como saber, sem problematizá-lo, é
descontextualizado da realidade desses sujeitos. Não há espaço para
o debate, para o coletivo.
O encontro com Paulo Freire me leva a compreender também que
a inquietude em mim instalada é resposta da minha inconclusão como
ser humano, levando-me a buscar e querer mais, resultante do estado
consciente de inconclusão que incomoda.
Meu encontro com a Pedagogia do Oprimido desmonta todo e
qualquer desejo, ainda que escondido, de silenciamento a mim e ao
outro. Compreendo aquilo que já exercitávamos na educação popular:
o diálogo (dialogicidade) é a base para a construção de uma educação
que se faz libertadora. A antidialogicidade se apresenta como
elemento que serve à contramão da liberdade, uma vez que se mostra

95
instrumento de dominação e silenciamento dos sujeitos e era isso que
tentávamos (e tentamos) derrotar.
Encontro em Freire o diálogo como a chave para disparar o
processo de libertação do sujeito. Compreendo que não existe troca
sem diálogo e por isso não existe conhecimento sem troca. A ausência
do diálogo no processo de ensino-aprendo-ensino torna-se mera
repetição. Quando há diálogo, a palavra é a própria transformação
minha e do outro. Se me silencio, silencio também o outro; se me
permito dessilenciar, dessilencio o outro.
E não existe diálogo sem fala, mas, sobretudo, sem escuta. E para
escutar o outro, eu preciso primeiro escutar a mim e ao mundo. E, ao
escutar o mundo, preparo-me para escutar o outro e isso não se dá
distante da natureza humana, do ser humano, da amorosidade, pois
“Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos
homens” (FREIRE, 1987, p. 45).
Contudo, é importante destacar que o diálogo não significa anular
o eu em detrimento do outro, até mesmo porque não existe diálogo
de uma só parte, mas se estabelece uma comunhão com o outro a
partir de suas próprias experiências e daí surge outra construção,
decorrente da soma dos conhecimentos de cada um. E essa nova
construção é a base da transformação da realidade minha, do outro,
da nossa, sem que nenhuma das partes precise se anular, se destruir,
se negar. Mas, garantindo suas essências, suas experiências e seus
saberes avançam no caminho para outros saberes constituídos
coletivamente. E são estes novos saberes o caminho para a libertação.
É da natureza humana a capacidade de reflexão, de consciência e
de ação. Portanto, é o diálogo que abre a palavra-ação-reflexão-práxis
no caminho de mão dupla, onde não há uma hierarquia na sequência
dos atos, mas uma comunhão. Assim, para Freire, o diálogo é um
mecanismo de defesa e superação da opressão e do opressor no qual
nos amparamos em nossas vozes e ouvidos para esta comunhão, que
só se dá no campo da fraternidade humana e, também, amorosa.

Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos


homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação
e recriação, se não há amor que o funda. Sendo fundamento do diálogo,
o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente tarefa de
sujeitos e que não possa verificar-se na relação de dominação (FREIRE,
1987, p.45).

96
E, ao compreender a educação como princípio libertador, não
posso distanciá-la da humanização, da “desalienação”. Para Freire, a
sociedade cada vez mais coisificada, individualizada e “bancária” torna
indivíduos silenciados e, por isso, oprimidos. Somente por meio de
uma educação que respeite o sujeito como ser (total), esse será visto
como homens, como pessoas (FREIRE, 1987, p. 16).
A Pedagogia do Oprimido me levanta questões que inquietam
dialeticamente a contradição do opressor e do oprimido, que não está
só no outro, pois está também em mim. Por me reconhecer na
condição de oprimida e opressora, tomo consciência da necessária
superação em mim e no outro, do oprimido e do opressor. Porque eu
não me liberto sozinha e tampouco serei capaz de libertar o outro sem
me libertar. Libertamo-nos em comunhão no conjunto de relações
contraditórias, mas necessárias a esta superação. É complexo o
aprendizado e não é fácil, porque se faz no cotidiano das relações
comigo mesma e com o outro.
Opressor e oprimido, na dialética da contradição e na construção
da liberdade, não se processam isoladamente. O sujeito, como ser
social, não alcança consciência e transformação de si só e por si só. É
um processo que se dá nas relações sociais, não se dá de forma isolada
em cada um/uma ou um pelo outro, pois “Ninguém liberta ninguém,
ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”
(FREIRE, 1987, p. 29).
Encontro-me educadora popular e a sintonia imediata de nossa
busca com Freire em Pedagogia do Oprimido faz-me compreender
ainda mais o lugar do educador como problematizador da realidade do
educando e de seu papel na construção de uma educação liberadora
de si e do outro. Mas a realidade do educando é também a minha e, ao
problematizar a realidade dele, educando, problematizo a minha.
Não é uma tarefa fácil, uma vez que a situação de oprimido está
instalada em nossas vidas, muitas vezes como uma situação tão
normalizada que nem mesmo conseguimos identificar o estado de
opressão em que nos encontramos. Libertar-se é, pois, uma tarefa que
não acontece de forma instantânea, mas mediante a necessária tomada
de consciência de seu estado oprimido para a necessidade de caminhar
para a libertação. Só quem vive de perto a condição de opressão e toma
consciência do estado de opressão é capaz de entender o que é ser
oprimido.

97
Segundo Freire, as relações sociais são tão perversas em uma
sociedade opressora que leva o oprimido a sonhar em ser um opressor.
A opressão leva a um sentido de poder, de dominação do homem pelo
homem, que leva o oprimido à falsa ilusão da liberdade ao se tornar
um opressor. Aí Freire sugere uma tarefinha bem difícil, a tarefa de
libertar os opressores! Segundo ele, cabe aos oprimidos, conscientes
e libertos, libertar os opressores, pois “Somente os oprimidos,
libertando-se, podem libertar os opressores”. Oprimidos libertos,
opressores libertos, pois estes deixariam de existir por não haver mais
a quem oprimir (FREIRE, 1987, p.24).
Em toda a sua obra, Paulo Freire provoca a reflexão da
necessidade de mudança em mim e no outro, de superação do
opressor e do oprimido em mim e no outro. Não há, segundo Freire,
mudança se não houver movimento para caminhos construídos
coletivamente no desafio de sair da inércia minha, e do outro. Desafia-
nos, educadores, a sair da condição de depositantes do conhecimento
no educando, da fórmula pronta e mecânica de transmissão do
conhecimento (FREIRE, 1987, p. 33).
Para isso, no entanto, é necessário que também nós, educadores,
tenhamos a consciência de que somos sujeitos oprimidos e que
precisamos nos libertar de nossas amarras, do formato como
aprendemos a ser professores, para um novo modo de fazer-ser-
educação. Tomar a consciência talvez seja mais desafiante que se libertar.
Mas, assim sendo, também nós, educadores, estaremos libertos
para libertar outros sujeitos no processo dialógico e práxico da
construção do conhecimento e não mais nos curvaremos à dominação do
currículo imposto, da repetição, da memorização e, sobretudo, da tirania
do saber absoluto e silenciador. Seremos sujeitos aprendizes, narradores
dos nossos processos, de vivências historicamente constituídas e a
dialogicidade estará presente na práxis diária do fazer pedagógico.
Esse desafio de Paulo Freire por uma educação problematizadora,
que transforme a realidade, é a essência de sua obra e, digamos, a casca-
grossa desta “pedagogia”. Uma pedagogia que me faz compreender que
a consciência em mim e no outro, uma vez instalada, não estagna como
finalizada em si própria, mas desperta o processo de mais e mais buscas.
Não há o esgotamento de saberes, porque haverá sempre mais a
aprender e sempre mais a ensinar na troca dialética e mútua entre quem

98
ensina e quem aprende, na qual a incompletude humana está
conscientemente presente no educador e no educando.
Não é ficar na contradição, é superar a contradição. Não é ficar na
seca, ou nas cinzas da queimada, é superar e fazer brotar a superação,
coletivamente, como em cachos de flores a encantar. Encanto que não
serve à dominação, mas serve à libertação da opressão, do oprimido e do
opressor.
Por fim, Freire, em Pedagogia do Oprimido, me deixa o aprendizado
de que não se faz educação sem a ação consciente do eu, do outro, de
nós. Compreender que a transformação do cerrado cinza em ipês floridos
depende do quanto há de vida interna em cada ipê, mas também da
resistência de sua casca-grossa. Eis um desafio bem atual, a resistência às
investidas do opressor. A resistência ao retrocesso.
Paulo Freire resistiu e ainda resiste. Só um sujeito casca-grossa é
capaz de movimentar tantos seres humanos em processos de
libertação do seu estado opressor, todos os dias e de forma tão atual.
Freire é um casca-grossa que, aos 75 anos, aguardou passar o Dia do
Trabalhador e em uma sexta-feira, quando a Lua se preparava para ser
nova, faltando pouco mais de um mês para a chegada do inverno, fez
a sua passagem no dia 2 de maio de 1997, em São Paulo, a cidade mais
nordestina do Brasil depois do Nordeste. Voou levemente como uma
semente de ipê ao vento. Mas continua florindo em todas as estações
e partes do Mundo. Paulo Freire não é nosso, ele é do Universo.

Eu oprimido.
Eu opressor.
Você oprimido.
Você opressor.
Para sempre?
Não!

Referências

FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação – uma


introdução ao pensamento de Paulo Freire. Trad. Kátia de Mello e
Silva. 3. ed. São Paulo: Centauro, 1980.

99
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987.
CONSULTAS - http://www.caliandradocerrado.com.br

100
REFLEXÕES SOBRE AUTONOMIA, AUTORIDADE,
LIBERDADE E RESPONSABILIDADE NOS PROCESSOS
EDUCATIVOS NAS PERSPECTIVAS DE
PAULO FREIRE E VYGOTSKI

Sheyla Gomes de Almeida


Maria Aparecida Camarano Martins

Refletir sobre educação e autonomia, na perspectiva Freiriana,


possibilita-nos perceber e entender uma dimensão da educação,
efetivamente integrada e integradora do ser humano com o mundo,
na qual, não se definem dimensões especificas a serem priorizadas no
processo educacional, mas, relações sincréticas do indivíduo com o
mundo e vice-versa, com tudo e em tudo que os constituem, objetiva
e subjetivamente. Em movimentos dialéticos sucessivos, ininterruptos,
divergentes, convergentes, mas, num sempre caminhar, onde
ninguém, nem nada, é estático, mas sim, inconcluso e com potencial
de se modificar e de “ser mais”.
Entretanto, definir por realizar uma educação voltada para o “ser
mais”, está intrínseco o reconhecimento de que cada ser humano
envolvido com e por ela é um “ser de possibilidades” (Vigotski, 2001),
educandos(as) e educadores(as). Para tanto, as relações e processos
inerentes a essa educação, precisam estar imbuídas de elementos
essenciais, como: liberdade, diálogo, dialeticidade e ética.
Nesse sentido, estes elementos precisam ser vivenciados e
desenvolvidos com amplitude, para que possa florescer um efetivo
campo de relações e conhecimentos que leve ao autoconhecimento e
conhecimento do mundo, do meio social e cultural que os cerca, de
modo a impulsionar o sentido ontológico humano de transformar-se e
transformar, como afirma Freire (1996),

Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente,


nos tornamos capazes de apreender. Por isso, somos os únicos em quem
aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico
do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir,
reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco

101
e à aventura do espírito. [...] toda prática educativa demanda a
existência de sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que,
aprendendo, ensina, daí o seu cunho gnosiológico; a existência de
objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; envolve o uso de
métodos, de técnicas, de materiais, implica, em função de seu caráter
diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideias. Daí a sua politicidade,
qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser
neutra (FREIRE, 1996, p. 60 e 70).

No âmbito da educação, observa-se ainda, preocupações, críticas


e inseguranças em torno de processos e métodos, que vem se
desenvolvendo em várias instituições educativas, como a que
identificamos no Projeto Âncora1 objeto desta abordagem.
As quais, tem priorizado fundamentar-se naqueles elementos,
contudo, sob críticas como: que as crianças precisam aprender a ter
disciplina, e para tal, precisa-se tratá-las com rigor e energicamente;
que é prejudicial às crianças muita liberdade, porque com isso, não
aprendem a ter limites, responsabilidades e a cumprir as regras e as
obrigações escolares; entre tantos outros argumentos
fundamentados em concepções autoritárias e moralistas.
Essas visões, entende-se ser, sobretudo, consequência de uma
cultura histórica de relações hierárquicas, que movimentam-se pela
opressão e pelo medo, que nos imbui de uma ‘necessidade’ e/ou
‘direito’ de controle e dominação sobre o outro. Sobre isto, Freire
(1996) aponta que,

[...] Não há nada que mais inferiorize a tarefa formadora da autoridade


do que a mesquinhez com que se comporte. [...] A reação negativa ao
exercício do comando é tão incompatível com o desempenho da
autoridade quanto a sofreguidão pelo mando. [...] A autoridade docente
mandonista, rígida, não conta com nenhuma criatividade do educando.
Não faz parte de sua forma de ser, esperar, sequer, que o educando
revele o gosto de aventurar-se. [...] Se recusa, de um lado, silenciar a

1 A abordagem feita neste texto sobre o Projeto Âncora, foram extraídos da


dissertação de mestrado de Sheyla Gomes de Almeida, sob a orientação da Profª. Dra.
Patrícia Lima Martins Pederiva, com título: Projeto Âncora: Uma perspectiva de
educação para a integralidade humana. Defendida em Dez/2017, no Programa de Pós
Graduação da Faculdade de Educação (PPGE/FE) da Universidade de Brasília (Unb).
Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/31471.

102
liberdade dos educandos, rejeita, de outro, a sua supressão do processo
de construção da boa disciplina (FREIRE, 1996, p. 92-93).

Em contraponto a esse viés de relações autoritárias, o autor faz


uma interessante reflexão, quando discorre sobre a “autoridade
docente democrática”, quando indica que,

[...] Uma das qualidades essenciais que a autoridade docente


democrática deve revelar em suas relações com as liberdades dos alunos
é a segurança em si mesma. É a segurança que se expressa na firmeza
com que atua, com que decide, com que respeita as liberdades, com que
discute suas próprias posições, com que aceita rever-se. [...] A arrogância
que nega a generosidade nega também a humildade [...] O clima de
respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes, generosas, em
que a autoridade docente e as liberdades dos alunos se assumem
eticamente, autêntica o caráter formador do espaço pedagógico
(FREIRE, 1996, p. 91-92).

Entretanto, compreende-se que, concepções como autoridade,


liberdade, responsabilidade e tantas outras que se convencionaram e
regem o âmbito e relações educativas, principalmente nos ambientes
escolarizados, podem e devem ter outros significados e sentidos,
quando pretende-se realizar uma educação voltada para a
integralidade humana. Que objetive contribuir com o desenvolvimento
de atitudes, comportamentos e personalidades dotadas de
capacidades criativas, críticas, autônomas, solidárias, éticas e que
vislumbre a construção de outras culturas e relações sociais, de fato,
democráticas e justas, nas quais tenha na centralidade e prioridade de
tudo que a constitui o reconhecimento do ser humano.
Para tanto, entende-se que a educação – dentro ou fora da escola
-, está no centro desse caminho, por ter se tornado a principal
instituição que dissemina conhecimento e cultura, e a forma,
processos e relações com as quais realizam sua função social, contribui
essencialmente com a sociedade que somos e poderemos vir a ser, se
estática, acrítica, autoritária, desigual, injusta, excludente e
antidemocrática ou se progressista, crítica, solidária, dialógica, justa,
includente e democrática.
Nesse sentido, Freire (1996), contribui com suas reflexões com os
outros sentidos que as concepções de autoridade, liberdade,

103
responsabilidade, entre outras, podem ter no âmbito da educação e de
qualquer ato educativo independente do tempo e lugar que a
desenvolva.

A autoridade coerentemente democrática, fundando-se na certeza da


importância, quer de si mesma, quer da liberdade dos educandos para a
construção de um clima de real disciplina, jamais minimiza a liberdade.
Pelo contrário, aposta nela. Empenha-se em desafiá-la sempre e sempre;
jamais vê, na rebeldia da liberdade, um sinal de deterioração da ordem.
A autoridade coerentemente democrática está convicta de que a
disciplina verdadeira não existe na estagnação, no silêncio dos
silenciados, mas no alvoroço, dos inquietos, na dúvida que instiga, na
esperança que desperta. A autoridade coerentemente democrática,
mais ainda, que reconhece a eticidade de nossa presença, a das mulheres
e dos homens, no mundo, reconhece, também e necessariamente, que
não se vive a eticidade sem liberdade e não se tem liberdade sem risco.
O educando que exercita sua liberdade ficará tão mais livre quanto mais
eticamente vá assumindo a responsabilidade de suas ações, decidir é
romper e, para isso, preciso correr o risco (FREIRE, 1996, p. 93).

Numa visão histórico-materialista, fundadas nas relações sociais,


buscam-se os pormenores destas, a inserção de todos no mundo, no
mundo da consciência de estar no mundo, de fazer parte dele e,
qualquer condição que não represente este “estar”, seria uma
deturpação de nossa humanidade, que é possível, como seres
inconclusos que somos, mas não determinista no que podemos ser.
Na perspectiva Freiriana, o ser humano deve estar sempre na
centralidade de qualquer processo da existência humana e
prioritariamente no da educação, afinal, estamos no mundo para nos
educar, e “ensinar inexiste sem aprender e vice-versa. Foi aprendendo
socialmente, que historicamente, mulheres e homens descobriram
que era possível ensinar” (FREIRE, 1996, p. 23-24).
Freire, em toda sua obra, defende uma pedagogia humanizadora,
baseada em práticas educativas de concepções progressistas e
problematizadoras, fundamentalmente, guiadas por uma “ética
universal do ser humano”, baseada no diálogo, elemento essencial no
ato educativo, convergente ao fazer política2.

2A palavra política nesse contexto, consiste “em sentido amplo, política significa sair
da individualidade para encontrar-se no coletivo, na comunidade, para debater,

104
Para ele, a educação precisa ser conscientizadora, para levar ao
autoconhecimento e ao conhecimento do mundo, o que só é possível
através de ações e movimentos pautados na liberdade de agir e
pensar, o que leva à autonomia, elementos imprescindíveis à
efetivação de uma educação emancipatória e humanizadora.
A concepção educativa e pedagógica de Paulo Freire é uma das
mais autênticas expressões de um pensamento pedagógico
progressista, gestada no seio de grupos populares na década de 1950,
no movimento das Ligas Camponesas3, no sertão do nordeste
brasileiro, e por isso, muito bem entendida e desenvolvida pelos
movimentos sociais populares4. O exemplo mais concreto dessa
“apropriação” são os movimentos sociais populares do campo no
Brasil, como desenvolvem suas relações e processos educativos.
A dialogicidade inerente a essas relações, expressa o respeito à
autonomia do ser dos(as) educandos(as), que segundo Freire (2002),
para haver esse respeito, é necessário o reconhecimento da
“inconclusão do ser”, afinal, “o inacabamento de que nos tornamos
conscientes nos fez seres éticos. O respeito à autonomia e à dignidade
de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não
conceder uns aos outros” (FREIRE, 2002, p. 65-66). O autor afirma
ainda, que,

empreender. Isso traduz mudanças e transformações nas individualidades. A dinâmica


da experiência do coletivo produz novos pensamentos, novos valores, novos
comportamentos, novas ações. Superam-se problemas. A isso se pode chamar de
educação política” (FRANTZ, 2006, p. 7).
3 “No ano de 1955, trabalhadores rurais revoltados contra a quebra de acordos por

parte dos fazendeiros para quem trabalhavam, fundaram a Liga Camponesa da


Galileia, em Pernambuco, que iria servir de exemplo para que novas ligas camponesas
se organizassem em outros estados” (RIBEIRO, 2010, apud Vários autores, 2003;
Morissawa, 2001; Priore; Venâncio, 2001; Pessoa, 1999; bezerra Neto, 1999; Bastos,
1984). “Mera associação de autodefesa e solidariedade, no princípio, as ligas
camponesas não tardam em situar-se no cenário político com uma bandeira arrancada
das classes dominantes: a reforma agrária radical” (RIBEIRO, 2010 apud Marini, 2000).
4 “Uma contradição está presente e, ao mesmo tempo, oculta na expressão

movimentos sociais. Tendo por sujeitos políticos coletivos os movimentos sociais,


estes tanto podem significar a ação de transformar a sociedade e a educação quanto
a reação, ou a retroação para defender o status quo. [...] Desse modo, a luta de classes
está no cerne dos “movimentos sociais, seja na perspectiva de revolução, seja na de
reação, como se pode ver na magistral obra de Marx sobre os movimentos
revolucionários e de reação na França de 1848” (RIBEIRO, 2010, apud Marx, 1982a, In:
Ferraro; Ribeiro, 199, p.9).

105
É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira, em que os
sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no
respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres
que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos
(Idem, p. 67).

Foi essas dimensões de sentidos e significados que verificou-se no


Projeto Âncora, o qual tem sua atuação centrada na criança, onde a
pedagogia desenvolvida baseia-se na concepção de que:

Entendemos a escola como um espaço de humanização no qual a criança


é convidada a vivenciar os conhecimentos, as diversas formas de
compreender e estar no mundo que a cerca. A escola é um local que
propicia oportunidades para desenvolvimento de habilidades sociais
críticas e da autonomia. Para nós, cada criança é um indivíduo único e
deve ser tratado como tal. Não nos interessam as padronizações
escolares convencionais de idade, séries, gênero. O que nos importa são
os interesses do educando, suas necessidades, descobrir e encorajar
suas aptidões e potencialidades, respeitando sempre sua história e sua
cultura. Visamos a um ideal de educação: aprender sem paredes, no
convívio com os outros. O Projeto Âncora implode a tradicional relação
hierárquica entre mestre e discípulo. Aqui o aprender se faz junto, na
troca de experiências, de ideias, de gostos e de sonhos. Temos como
meta o desenvolvimento da autonomia - a do educando e a dos
educadores (Projeto Âncora, 2016).

O sentido de autonomia defendido e realizado por essa


experiência educativa está refletido no depoimento a seguir de uma
de suas educandas (que vamos denominar como Educanda X), que
com quinze anos na ocasião da entrevista, chegou no Projeto Âncora
com dez anos, a qual demonstra sua percepção sobre os valores, as
relações e os processos que vivencia nessa comunidade educativa. Na
ocasião, estava no núcleo5 do desenvolvimento e fez parte do grupo
que realizou um projeto de intercâmbio6, que viabilizou o sonho de

5 No Projeto Âncora, não existem ciclos nem turmas, as crianças organizam-se em


núcleos de aprendizagem, e o que define o núcleo que cada uma deve estar, é o nível
de autonomia e responsabilidade desenvolvido por cada uma (Nota das autoras).
6 No link https://www.youtube.com/watch?v=kLFIbk_im6M, pode-se ver um vídeo

sobre como foi realizado o projeto de intercâmbio dos(as) educandos(as) do Âncora


para Tamera/Portugal.

106
“Dezoito pessoas: 13 educandos e educandas e 2 tutores e 2 mães e um
pai partiram para Tamera, comunidade autosustentável no sul de
Portugal” (ÂNCORA, 2018).

DIALÓGO 11 – Sobre os valores e as relações humanas, pela Educanda X.


=======================================
P. – Eu fiquei sabendo que vocês fizeram uma pesquisa sobre o vestibular
e aí eu queria entender como foi que vocês fizeram essa pesquisa e quais as
conclusões ou concepções que vocês conseguiram construir disso.
Educ. X – Sim. O interesse surgiu quando alguns adolescentes que já estão
entrando ou que já estão no ensino médio, o que corresponderia o ensino
médio numa escola tradicional, tiveram a preocupação e quiseram começar
a estudar pro vestibular, porque algumas pessoas tem o interesse de fazer
o ENEM e entrar numa faculdade.
Mas antes de tudo a gente não costuma pesquisar e estudar os conteúdos
porque isso não faz sentido pra gente, mas pesquisar alguma coisa que
possa englobar esses conteúdos, mas ao mesmo tempo a gente também
levantou um estudo sobre o que é o vestibular e o que o vestibular
representa hoje pros jovens.
No começo eu não participava e quando eu entrei, eu também tive que
fazer essa pesquisa, e foi uma coisa bem tensa, porque a gente já tinha uma
noção de que provas e
avaliações, diagnósticos assim pra você ganhar uma nota, pra você passar
pra alguma coisa não funciona, e a gente tem isso aqui, a gente acredita
nisso, e as crianças também tomaram isso pra elas.
Então, o Enem é só mais uma que também não funciona, e que não é válida
pra você entrar numa faculdade, entendeu?
Então, eu comecei esse estudo também, pesquisando e falando com um
dos educadores, pra ver qual é o papel do Enem e dos vestibulares e o grupo
inteiro chegou à conclusão que é uma coisa que segrega as pessoas e que
não dá oportunidade pra todo mundo, e que às vezes você não ta num dia
bom, você não fez a prova, você não vai passar e isso pode mudar toda a
estrutura da sua vida, isso é o que o Enem representa pra gente, não é uma
coisa boa!
Mas pensando nisso também, a gente pensa pelo outro lado, que as
pessoas que hoje estão aqui, elas entendem esse lado do Enem, mas ao
mesmo tempo elas querem fazer, por acreditar que uma faculdade pode
agregar na vida delas também. Então, a gente fez esse estudo de base pra
entender o que o Enem significa pra cada um, pra depois estudar os
conteúdos que a gente acredita que vai cair no Enem.

107
E depois de um tempo a gente começou a pesquisar sobre o que cai nos
conteúdos e a gente viu que também não faz sentido pra gente, que
acredita numa coisa mais concreta e ativa dos conteúdos.
A gente pensou em montar um grupo, onde tem um assunto em comum
pra começar a pesquisar, porque aí as pessoas ficam mais interessadas, não
fica estudando só continhas e fórmulas, porque isso pra gente é bem chato,
inclusive pras outras crianças também e o grupo do vestibular ele
continuou e eu tive que sair porque eu tenho outro projeto também que é
o projeto de intercâmbio.
Mas ao mesmo tempo eu acredito que isso também pode englobar os
conteúdos que eu vou precisar pra estudar no Enem, o que também não
exclui a possibilidade, se eu tiver uma necessidade de abrir uma pesquisa à
parte e começar a estudar com algum assunto que eu goste pra eu estudar
pro Enem.
Eu tenho todo suporte pra isso mas, hoje eu assim, como educanda e vendo
a demanda de coisas que eu tenho pra fazer eu acho que isso não cabe
agora no momento que eu tenho bastante coisa pra fazer. É isso.
P. – E como está esse projeto de intercâmbio de vocês?
Educ. X - É, agora é a fase final7. Assim: final que eu digo pra arrecadação e
ta sendo bem tenso, a gente tá ficando a tarde, tá ficando semanas aqui,
vai ter evento de lançamento.
Durante dois anos, a gente fez um processo muito grande, com muitos
roteiros, muito aprendizado envolvido também.
Eles vieram pra cá né? Porque a gente tá fazendo intercâmbio com uma
comunidade de Portugal, onde tem os jovens e eles vieram pra cá,
conheceram nossa escola, aprenderam várias coisas e agora o segundo
passo é a gente ir pra lá e tá sendo bem legal assim agora, porque a gente
ta bem engajado e tem algumas pessoas que fazem mais, tem outras
pessoas que fazem menos, mas todo mundo tá bem assim, concreto que a
gente vai conseguir e assim ta bem tenso mesmo.
P. – Qual é a previsão da viagem agora?
Educ. X – Pra setembro, dia 30 de setembro a 28 de outubro.
P. – Então, você já estudou em outras escolas?
Educ. X - Já estudei em outras escolas.
P. – Você percebe alguma diferença entre essas duas estruturas?
Educ. X – É bem engraçado porque essa pergunta, todas as pessoas que
vem aqui fazem essa pergunta, e eu sempre... mas, não é cansativo pra mim
responder.

7O depoimento da Educ.X, foi concedido em jun/2017, o intercâmbio foi realizado em


out/2017. (Nota das autoras).

108
Porque eu gosto de enfatizar isso que quando as pessoas perguntam qual
a diferença, eu sempre respondo “que é toda a diferença, tudo é
diferente”, e ao meu ver assim, como educanda, como aluna, eu penso que
é tudo diferente, tudo melhor pra diferente!
Porque além da gente ter toda essa abertura pra escolher, pra entender o
que, que a gente precisa aprender, e pra ter o gosto de aprender mesmo,
além da gente ter isso, a gente tem também, a coisa que a gente é escutado
como aluno, como educando.
Então, a gente é sempre escutado pra tudo, uma opinião que eu tenho,
com construção de argumentos, tem a assembleia que é um dispositivo
ótimo pra gente decidir coisas pra escola.
Então, a gente sente mesmo que a escola é nossa e que o que for melhor
pro coletivo a gente pode fazer.
Então toda é a diferença quando você não tá enfileirado e quando você não
tem que obedecer ordens e quando você tem que fazer provas e a diferença
também é justamente essa, de você ser escutado como pessoa, como
indivíduo, mas tratado como indivíduo pra trabalhar num coletivo, então
pra mim essa é a maior diferença.
P. – Qual teu sentimento ou entendimento em relação aos valores que
norteiam o Âncora?
Educ. X - Os valores eles foram construídos desde o começo da escola,
então, todo mundo sabe quais são esses valores desde o começo, e eles
passaram a se tornar não só uma coisa que eu preciso viver dentro da
escola, uma coisa que eu preciso viver na minha vida também, que você
precisa ter em todo lugar, que são o respeito, a afetividade, tudo isso. A
responsabilidade com o que você fala, com o que os outros falam,
responsabilidade de arcar com as suas coisas, entendeu? Então, esses
valores é uma coisa que passam a fazer sentido pra você, na sua vida
externa, não só dentro do Âncora.
=======================================

Por tudo que foi observado na comunidade do Projeto Âncora,


tanto a fala, quanto a postura expressa pela Educanda X, simbolizam
as possíveis consequências na constituição da personalidade dos(as)
educandos(as) dessa escola. A capacidade reflexiva, crítica e
autônoma que demonstra ter, sobre todos os assuntos a que foi
instigada a falar. Quando trata da pesquisa sobre o vestibular, com
elaborações complexas de argumentação e visões diversas,
apresentando questões e soluções, com base não só no campo da
racionalidade, mas também dos sentidos e sentimentos que o
processo do vestibular pode engendrar individual e coletivamente.

109
Quanto a sua percepção sobre como o Projeto Âncora desenvolve
seus processos e relações educativas e o que tudo isso, oportuniza e
contribui para o desenvolvimento de todos(as). Como essa educanda
demonstra sentir pertencente a esta comunidade, o senso de
responsabilidade e compromisso com tudo e todos e a liberdade e
autonomia que demonstra ter em agir e realizar ações neste lugar. O
engajamento no projeto de intercâmbio, que durou dois anos e
oportunizou a ida de um grupo de educandos(as), educadores(as) e
familiares para uma viagem à Europa, para conhecer uma comunidade
de Tamera no interior de Portugal.
A Educanda X, demonstra com segurança, uma capacidade de
autoavaliação de si mesma, no que tange às suas condições objetivas
e subjetivas para realizar seus compromissos e consciência de suas
capacidades para realizá-las. Expressa-se com liberdade quanto às suas
escolhas, partindo do que faz sentido ou não para ela, analisando os
prós e contras, ou seja, identificando as possíveis consequências de
suas escolhas e atitudes, o que se configura em um senso de
responsabilidade muito consciente.
Essa habilidade de análise e avaliação de si mesmo e do meio
social que está inserida, quanto às suas capacidades, condutas e
comportamentos, percebe-se em todos(as) os(as) educandos(as), em
menor ou maior grau, de acordo com a trajetória e condições
expressadas por cada um(a), o que são plenamente respeitadas pelos
educadores(as). No entanto, é evidente que o objetivo é o incentivo
constante para o desenvolvimento dessas capacidades. Até em
relação às crianças menores, percebe-se esse movimento, dentro da
constituição e condições que cada uma apresenta. Entretanto,
identifica-se o gérmen desses movimentos que vão constituindo-se
como hábito, por estarem convivendo e sendo instigados
cotidianamente por essa prática inerente a essa comunidade. Nesse
sentido, Vygotski (2001, p. 63), afirma que,

[...] a consciência deve ser entendida como uma das formas mais
complexas de organização de nosso comportamento humano – como
frisa Marx – como certa duplicação da experiência, que permite prever os
resultados do trabalho e orientar as próprias reações para esse
resultado.

110
Portanto, identificar o gérmen desse movimento de
desenvolvimento de consciência nas crianças pequenas e em plena
progressão nas crianças maiores e adolescentes, nesse espaço
educativo, confirma-se as possibilidades e competências que são
inerentes às capacidades humanas, independente de sua idade, mas
considerando e respeitando suas condições, que acompanham à
princípio suas condições biológicas, mas desenvolve-se sobretudo,
pelas vivências e relações sociais, inseridas numa cultura, que
caracteriza-se num conjunto de ideias, concepções, valores, que
direcionam as atitudes, condutas, comportamentos e
consequentemente vai constituindo a personalidade de cada um.
Nesse sentido, Freire (1996), discorre sobre a responsabilidade
e coerência que precisa existir no ato educativo por parte dos(as)
educadores(as) que se propõem a realizar uma educação progressista,
efetivamente comprometida com o desenvolvimento da integralidade
humana, para a constituição de seres autônomos, solidários e criativos.
O autor afirma também que, como professor,

[...] não posso negar que meu papel fundamental é contribuir


positivamente para que o educando vá sendo o artífice de sua formação
com a ajuda necessária do educador. Se trabalho com crianças, devo
estar atento à difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a
autonomia, atento à responsabilidade de minha presença que tanto
pode ser auxiliadora como pode virar perturbadora da busca inquieta
dos educandos; se trabalho com jovens e adultos, não menos atento
devo estar com relação a que o meu trabalho possa significar como
estímulo ou não à ruptura necessária com algo defeituosamente
assentado e à espera de superação. Primordialmente, minha posição
tem de ser a de respeito à pessoa que queira mudar ou que recuse mudar
(FREIRE, 1996, p. 70).

Evidencia-se que essa autonomia, não é uma ideia de


autonomia rasa, a exemplo, que é comum difundir-se em muitos
ambientes educacionais, onde restringe o entendimento de
autonomia a uma concepção mercadológica e monetarista, que a
confunde com uma suposta ‘independência financeira’, pela
possibilidade de ter um emprego e ganhar um salário, disseminando
uma ilusão de que autonomia restringe-se a poder ter alguma
liberdade de consumo e de auto sustento material, o que a depender

111
da condição social e econômica que o indivíduo se encontre,
dificilmente se concretizará.
Como educadores(as), torna-se imprescindível, revermos
nossas concepções e sentimentos em relação a nós mesmos, em
relação ao mundo que nos cerca, onde e como estamos e atuamos
sobre ele, o que faz ou não sentido e como se constituem esses
‘sentidos’, porque é exatamente como nos constituímos emocional,
sentimental, moral e eticamente, que vai refletir como ‘ensinaremos’
e ‘compartilharemos’ os conhecimentos, as culturas e o mundo com
nossos(as) educandos(as), independente da idade.
Tudo isso evidencia a importância de definir que tipo de lugar,
ambiente e principalmente processos e relações humanas queremos
ou precisamos realizar nos espaços educativos, que educação
queremos conceder as atuais e futuras gerações.
Afinal, se temos um ambiente escolar competitivo, autoritário,
antidialógico, opressor, onde os instrumentos de formação baseiam-
se na transmissão e recepção de conteúdo para resultar numa nota, na
prova constante de atender às expectativas do outro, do professor, do
colega, do sistema de ensino, da família, pois, para muitos, essas
expectativas se restringem a uma nota, que independente do que seja
efetivamente aprendido ou não, irá referendar a passagem pelos
sequenciais ciclos de ensino e prioritariamente um possível lugar e
status profissional.
Isso nos faz refletir sobre quando Freire (1996) evidencia que,

[...] não devamos reduzir a atividade docente em nome da defesa da


curiosidade necessária, a puro vai e vem de perguntas e respostas, que
burocraticamente se esterilizam. A dialogicidade não nega a validade de
momentos explicativos, narrativos em que o professor expõe ou fala do
objeto. O fundamental é que o professor e alunos saibam que a postura
deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora
e não apassivada, enquanto fala ou em quanto ouve. O que importa é
que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos
(FREIRE, 1996, p. 86).

Que tipo de sociedade, que tipo de cultura, estamos e estaremos


difundindo e ensinando à essas crianças e adultos também? Uma
sociedade nos mesmos moldes e relações. Porque tudo isso, contribui
com a orientação de visão de mundo e relações que essas crianças

112
terão. Sabemos que esse tipo de configuração social e educacional
atende ao ideário e concepções de mundo de muitas pessoas e quanto
a isso, só nos cabe – a quem não comunga -, respeitar, o que não quer
dizer resignar.
E o que vemos no Projeto Âncora e em outras experiências
educacionais que decidiram e estão decidindo mudar esse cenário, nos
ambientes educativos, é que, desenvolver educação em outras
configurações, sobre perspectivas dialógicas, solidárias, respeitosas,
afetuosas, democráticas, com liberdade e ampliando suas relações
com as comunidades e ambientes ao seu redor, demonstram com
muita competência que também desenvolve educação e de forma
mais ampla, e tudo isso mobilizado principalmente pela convicção de
que outras relações humanas precisam ser desenvolvidas, e desta
forma constituir outras configurações sociais e culturais.
Quando a Educanda X externa o autorreconhecimento e
sentimento de pertencimento dessa comunidade educativa, como
pessoa ativa, que como ela relata, a reconhece, “de você ser escutada
como pessoa, como indivíduo, mas tratado como indivíduo pra trabalhar
num coletivo”. Desta forma, responsabiliza-se por esse lugar. Quando
ela afirma que a diferença que existe entre o Projeto Âncora e as
“escolas tradicionais”, está principalmente na não existência de
relações autoritárias e pré-definidas.
No que concerne aos valores8, ela confirma que como eles são
vivenciados no cotidiano, passam a fazer sentido, e por isso, integram-
se às suas condutas, comportamentos e personalidade, refletindo em
todas as suas relações. Ela afirma serem importantes não só para a
convivência dentro da escola, mas em todos os outros lugares, que
ensinam a ter responsabilidades consigo e com os outros e que eles
passam a fazer sentido para a sua vida.
Toda a reflexão externada por essa aluna reporta-nos a
concepção de desenvolvimento das funções psíquicas superiores de
que trata Vygotski (1995), sobre as quais afirma que, “sobre a conduta
humana cabe dizer, em geral, que em primeiro lugar, sua peculiaridade
se deve ao que o homem intervém ativamente em suas relações com
o meio e que através desse meio, modifica seu próprio

8 Todas as relações, ações e processos educativos desenvolvidos no Projeto Âncora,


são fundamentados nos valores da afetividade, honestidade, respeito,
responsabilidade e solidariedade (Nota das autoras).

113
comportamento” (VYGOTSKI, 1995, p. 90, tradução nossa). Ainda, que
esses processos ativos, de convivência e influências sobre o objeto,
sobre as outras pessoas e sobre si mesmo, “agrupam-se em um todo
na estrutura complexa da conduta. A criança começa a utilizar, com
relação a si mesma, aquelas formas de conduta que os adultos
geralmente aplicam em sua relação com ele” (Ibidem, p. 128, tradução
nossa).
Concepção esta, que converge com o pensamento de Freire
(1996), quando afirma que,

Um esforço sempre presente à prática da autoridade coerentemente


democrática é o que a torna quase escrava de um sonho fundamental: o
de persuadir ou convencer a liberdade de que vá construindo consigo
mesma, em si mesma, com materiais que embora vindo de fora de si,
reelaborados por ela, a sua autonomia. É com ela, a autonomia,
penosamente construindo-se, que a liberdade ou preenchendo o
“espaço” antes “habitado” por sua dependência. Sua autonomia que se
funda na responsabilidade vai sendo assumida (FREIRE, 1996, p. 93-94).

Portanto, contribuir para o desenvolvimento de seres


autônomos, responsáveis, críticos e criativos, não pode estar
dissociado de relações pautadas na liberdade. Nós só aprendemos a
ser autônomos, responsáveis e solidários, por meio das vivências e
experiências que respeitam nossa liberdade de ser, de experimentar,
criar, criticar, errar, refletir, de recriar e recriar-se, só assim
conseguimos nos autoconhecer, conhecer o mundo e ter condições de
reinventá-lo, se assim for nossa vontade e/ou necessidade. Esses são
tipos de conhecimentos que só aprenderemos exercendo-os na
vivência cotidiana.

Referências

FRANTZ, Walter; TEIXEIRA, Ana Maria Rotili. Organizações solidárias e


cooperativas: espaços de educação e bases da Economia Solidária e
Associativismo: iniciativas que reforçam os laços sociais. Ijuí: Unijuí,
2006. Série Economia Solidária, caderno n° 03.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (Coleção Leitura).

114
PROJETO ÂNCORA. Intercâmbio – Quando um sonho coletivo é
realizado. Disponível em: https://www.projetoancora.org.br/blog/
conteudo-vivo/intercambio-quando-um-sonho-coletivo-e-
realizado.html. Acesso em: 17 de jun. 2018.
VIGOTSKI, Liev Semionovich. Psicologia Pedagógica – edição
comentada. Tradução: Não informado. São Paulo: Artmed, 2001.
VYGOTSKI, Lev Semiónovich. Obras Escogidas III. Problemas del
desarrollo de La psique. Traducción em lengua castellana: Lydia Kuper.
Madrid: Visor, 1995.

115
116
ESCOLA NACIONAL DE FORMAÇÃO DA CONTAG (ENFOC):
PRÁTICAS E SABERES DE UM JEITO DE SER ESCOLA

Carlos Augusto Santos Silva


Marleide Barbosa de Sousa Rios
Raimunda de Oliveira Silva

Este artigo nos remete ao desafio de partilhar nosso diálogo no


“Seminário Paulo Freire Vida e Obra em Movimento: diálogos que
permanecem” apresentando a experiência da Escola Nacional de
Formação da CONTAG1 (ENFOC), que adota em sua prática educativa a
perspectiva pedagógica libertadora de Paulo Freire que afirma
“educação que, liberte a alienação, seja uma força de mudança e de
liberdade” (FREIRE, 1967, p. 36). O que se pretende nos limites deste
texto é discorrer sobre um jeito de ser escola onde as escritas e leituras
em Paulo Freire são pressupostos para a concepção político-
pedagógica em seu itinerário formativo articulado ao propósito de
fortalecer as lutas dos trabalhadores e trabalhadoras rurais. A
contribuição do legado de Paulo Freire por meio do seu pensamento
político, ético e educativo, se mantém necessária no atual contexto
político e nos remete segundo Rossel (2012, p. 452) reconhecermos em
Freire a ligação da educação como uma concepção de mobilização
social.

A obra de Paulo Freire, baseada na ação educativa com as classes


populares e influenciada por suas experiências de perseguição e exílio
durante a ditadura militar, registram a dimensão política da educação
popular, [...]. Na caminhada e no aprendizado com o povo trabalhador,
Freire percebe que esse povo assume a identidade de classe e o papel de
sujeito político coletivo de educação e de transformação, no próprio
processo de luta (RIBEIRO, 2013, p.46).

Para Aranha (2006, p.128) a história da educação tem uma


tradição de exclusão, onde a escola é excludente e não democrática, e
por consequência os sujeitos são diminuídos em sua cidadania. A

1 Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras


Familiares – CONTAG.

117
democracia pressupõe, entre outros, participação e consciência crítica
e requer uma educação baseada nesses pressupostos. Paulo Freire
afirma que é necessário “um empenho sério e coerente no sentido da
superação das velhas marcas autoritárias [...]. E sem o exercício dessa
tentativa de superação [...] toda tentativa da escola para pô-la numa
direção democrática, tende a não vingar” (FREIRE, 1992, p. 168-169).

A educação não está desvinculada da situação na qual está inserida e,


como tal, reflete os confrontos de força presentes na sociedade e a
influência dos conflitos de interesses, sobretudo pelo papel que ela
desempenha. Sendo a educação um fenômeno social, pressupõe-se que
a escola deva promover oportunidades iguais de estudo para todos. Do
contrário, a essência da educação será descaracterizada à medida que
representa apenas os objetivos do grupo dominante (RIOS, 2018, p. 68).

É fundamental colocar em prática uma educação que considere a


compreensão de mundo e o pensar crítico dos sujeitos envolvidos.
Portanto, a educação popular deve ser uma referência para outra
concepção de educação enquanto prática e teoria social voltada para
a transformação social e humanização dos sujeitos. De acordo com
Paludo (2013, p. 281) a educação popular vai se firmando como teoria
e prática educativas alternativas às pedagogias tradicionais e liberais,
que estão a serviço da manutenção das estruturas de poder político,
de exploração da força do trabalho e de domínio cultural. Para a
autora:

A educação popular, em sua origem, indica a necessidade de reconhecer


o movimento do povo em busca de direitos como formador, e também
de voltar a reconhecer que a vivência organizativa e de luta é formadora.
Para a educação popular, o trabalho educativo, tanto na escola quanto
nos espaços formais, visa formar sujeitos que interfiram para
transformar a realidade. Ela se constituiu, ao mesmo tempo, como uma
ação cultural, um movimento de educação popular e uma teoria da
educação (PALUDO, 2012, p. 284).

Desse modo, a educação popular “nasce e constitui-se como


‘Pedagogia do Oprimido’ vinculada ao processo de organização e
protagonismo dos trabalhadores do campo e da cidade visando à
transformação social” (PALUDO, 2012, p. 281). Para Arroyo (2012)
Pedagogia do Oprimido é uma concepção e prática pedagógica

118
construídas nas experiências sociais e históricas de opressão e nas
resistências dos oprimidos, dos movimentos sociais pela libertação de
tantas formas persistentes de opressão. Essa pedagogia assevera o
autor, “nos obriga a assumir que todo conhecimento é inseparável dos
sujeitos históricos dessas experiências produtoras de conhecimentos,
de valores, de cultura e de emancipação” (ARROYO, 2012, p. 556).
Paludo (2012) afirma que a educação popular decorre em sua
origem do modo de produção da vida em sociedade no capitalismo e
emerge a partir das lutas das classes populares ou dos trabalhadores
mais empobrecidos na defesa de seus direitos. E que as raízes da
educação popular são a teoria de Paulo Freire, a teologia da libertação,
as elaborações dos Centros de Educação e Promoção Popular e as
experiências históricas de enfrentamento do capital pelos
trabalhadores. Para Freire (1996, p.128) diz que, o sistema capitalista
alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua
malvadeza intrínseca. Necessária e urgente se fazem a união e a
rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a da negação de
nós mesmos como seres humanos submetidos à “fereza” da ética do
mercado.
Para Arroyo (2012) a ênfase no direito à educação como formação
humana plena é uma opção política que se contrapõe aos
reducionismos mercantis do trabalho e da formação humana, e deve
se articular aos interesses dos trabalhadores e trabalhadoras, ao seu
direito a se humanizarem plenamente no trabalho e na produção de
sua existência. O autor destaca a importância de inserir cada tempo
humano na sua especificidade, nas lutas e nas ações coletivas e
ressalta que:

Essas propostas incorporam também as concepções de educação


popular, com sua ênfase na educação como humanização, assim como
as concepções dos diversos movimentos sociais, em sua condição de
movimentos pedagógicos que reafirmam os vínculos entre as lutas pelo
trabalho, pela terra, pelo espaço, pelos territórios, pelas identidades
coletivas e o direito humano à formação humana plena (ARROYO, 2012,
p. 736).

Em meio à crise civilizatória que estamos vivendo, ao contexto de


desmonte e retrocessos aos direitos individuais e coletivos, à
mercantilização da educação e ataques à democracia continua sendo

119
imprescindível a influência do pensamento e da prática freiriana. Freire
(1996, p. 78) aponta que é preciso que tenhamos na resistência que nos
preserva vivos um dos fundamentos para a nossa rebeldia e não para
nossa resignação. É na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos.
Diante disso, frente ao cenário de tensões e conflitos, é necessário
ampliar e intensificar ações formativas para o fortalecimento das lutas de
resistência e transformação buscando apreender as experiências de
educação popular e as relações das concepções de liberdade, autonomia
e emancipação que a fundamentam.

Escola Nacional de Formação da CONTAG (ENFOC): lugar de


transformação política2

“[...] diversas vozes possibilitaram identificar o despertar


da consciência política e crítica que o conhecimento
produz, quando este é produzido mediante diálogo,
interagindo assim com um jeito de ser escola, cujo
objetivo é a transformação política dos sujeitos” 3.

Uma experiência que tem efetivação de processos de lutas dos


trabalhadores e trabalhadoras rurais ancorada nos princípios da
educação popular é o que apresentaremos – a experiência da Escola
Nacional de Formação da Contag (ENFOC)4. Uma escola orgânica5 à
Contag, que em seus 12 anos de atuação, completados em 2018 tem
uma vasta trajetória na realização de processos formativos com
amplitude e alcance do seu itinerário formativo no conjunto do
Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
(MSTTR), coordenado pela CONTAG.
A CONTAG foi a primeira organização sindical nacional no campo,
fundada em 22 de dezembro de 1963, pela organização dos trabalhadores
em sindicato de trabalhadores rurais e das federações estaduais de
trabalhadores na agricultura. Consolidou-se como organização de
representação sindical e de lutas dos povos do campo. Essa organização

2 A fundamentação teórica tem como base as produções da ENFOC.


3 ENFOC: Multiplicação criativa, um entrelaçar de práticas e saberes (ENFOC, 2012, p. 13).
4 Colaboração: Raimunda de Oliveira Silva, Educadora Popular, Coordenadora
Pedagógica da ENFOC.
5 Entende-se como orgânica, uma organização vinculada politicamente à outra, com

espaços comuns de deliberação e construção política. (CONTAG/PNF, s/d, p. 47).

120
representa atualmente mais de 4.000 sindicatos e 27 federações filiadas.
Em 2018 completou 55 anos de existência e tem “uma trajetória marcada
pela defesa incansável dos direitos e dos interesses dos trabalhadores e
trabalhadoras rurais” (CONTAG, 2013, p. 11).
Em seu 9º Congresso Nacional, a CONTAG, ancorada em torno do
debate sobre a formação política para as mulheres e a necessidade de
criação de uma escola de formação política do MSTTR com cursos
específicos, deliberou pela criação de uma Escola Sindical com
atividades voltadas para formação dos(as) dirigentes e assessores(as),
indicando como perspectiva uma formação militante, processual e
ampla nas temáticas que desafiam a luta sindical. Portanto, o referido
congresso visando consolidar a relação formação-organização
aprovou pela retomada da formação político-sindical e pela
constituição de uma Escola de Formação com atribuição de construir e
desenvolver processos formativos articulados nacionalmente.
O Conselho da CONTAG se tornou um espaço de diálogo sobre a
escola, para a definição do caráter e das estratégias a serem
desenvolvidas para a concretização dos objetivos e construção dos
primeiros documentos orientadores da concepção e da prática da
escola, bem como, elaborar um esboço do primeiro curso que seria
desenvolvido. A partir daí constituiu-se um desenho, a várias mãos, do
Projeto Político Pedagógico (PPP), dos espaços de gestão e da
estratégia formativa. “Aprender a fazer fazendo” foi o caminho
encontrado para dar conta das demandas exigidas para desenvolver
uma ação formativa transformadora e libertadora que alcançasse o
conjunto das organizações sindicais.
Assim, no dia 14 de agosto de 2006, a ENFOC foi inaugurada como
a missão de “desenvolver processos formativos continuados numa
perspectiva crítica, libertadora e transformadora” em um mesmo
referencial pedagógico, crítico e dialógico, dirigido à formação humana.

ENFOC – um espaço construído a várias mãos

A ENFOC se consolida como um espaço de reflexão crítica da


prática sindical e por meio de sua estratégia, o movimento sindical vem
experimentando processos formativos amplos que alcançam, desde as
comunidades rurais até as esferas nacionais, envolvendo lideranças
locais, dirigentes de sindicatos, federações e confederação. E investe

121
na capacidade das pessoas ao acreditar que estas, ao terem acesso à
formação qualificam sua prática política, contribuem de forma
significativa para a organização e luta do movimento sindical.
Para Freire (2001, p. 25) a compreensão dos limites da prática
educativa demanda indiscutivelmente a consciência política dos
educadores(as) com relação ao seu projeto e demanda que o
educador(a) assuma a politicidade de sua prática.
A pedagogia que fundamenta a formação política da ENFOC está
embasada nas matrizes discursivas da educação popular que Freire
considera como uma teoria de conhecimento com metodologias
incentivadoras à participação e de transformação social; no marxismo,
em especial a abordagem dialética do processo formativo; no
pensamento pedagógico e na formação humanística de Gramsci e na
teologia da libertação.
Desse modo, A ENFOC define processos educativos, norteia sua
linha pedagógica, orienta as ações e estabelece seus conteúdos
criando condições para a pluralidade de ideias em sua prática e para
transformação de realidades.

Quando situamos a educação como um processo de transformação


humana, de emancipação humana, percebemos quanto os valores do
campo fazem parte da história da emancipação humana. Então, como a
escola vai trabalhá-los? [...]. A questão é [...] ir às raízes do campo e
incorporá-las como uma herança coletiva que mobiliza e inspira lutas
pela terra, pelos direitos, por um projeto democrático e que também
pede educação (ARROYO, 2004, p. 80).

Para Arroyo (2012) ter os movimentos sociais como sujeitos políticos


que contribuem para a conformação de uma concepção de educação que
incorpore a pluralidade de dimensões e funções formadoras e ter
militantes - educadores(as) traz uma concepção ampliada de formação,
onde as matrizes carregam processos totalizantes: o trabalho, a terra, a
cultura, as experiências de opressão-libertação.
Essas matrizes orientam as abordagens, os fundamentos políticos
pedagógico-metodológicos dos processos formativos que a Escola
desenvolve. Portanto, pretende-se com isso que a Escola contribua para:
a) constituir e desenvolver itinerários formativos que valorize a
abordagem ideológica e classista para estimular o protagonismo dos
trabalhadores e das trabalhadoras na disputa por um projeto de

122
sociedade; b) construir e desenvolver metodologias que respeite a
pluralidade de ideias, as especificidades dos sujeitos políticos e possibilite
aos educandos e educandas o acesso às diversas visões existentes sobre
um tema; c) estimular o desenvolvimento de processos formativos
continuados nas diversas áreas temáticas, que possibilitem dialogar,
interagir e aprofundar reflexões sobre o Projeto Alternativo de
Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (PADRSS); d) qualificar o
debate sobre concepção sindical; identidade camponesa, de gênero e
geração étnico-racial; campo; desenvolvimento; modos de produção;
políticas públicas e inclusão social; democracia e participação cidadã;
organização sindical; e ação político-sindical; e) qualificar e ampliar
quadros de militantes do MSTTR, potencializando capacidades e
habilidades dos sujeitos para atuarem na luta por uma sociedade justa,
democrática, soberana e solidária.

Referenciais políticos-pedagógicos e metodológicos da formação


sindical

A organicidade da ENFOC com a CONTAG é construída por meio


da integração efetiva das entidades sindicais na vida e na gestão da
Escola, criando condições para que a pluralidade de ideias,
experiências e a diversidade de sujeitos do MSTTR se expressem em
sua prática pedagógica, no fazer coletivo e na luta pela emancipação,
ou seja, uma pedagogia que “transformada a realidade opressora,
deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em
processo de permanente libertação” (FREIRE, 1987, p. 23). Para o autor
a pedagogia do oprimido é definida:

Como aquela que tem que ser forjada com ele e não para ele [...]. Na luta
incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da
opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que
resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em
que esta pedagogia se fará e refará (FREIRE, 1987, p. 17).

A ENFOC se consolidou como um espaço coeso e dinâmico com


estratégia e itinerário próprios e missão de desenvolver processos
formativos continuados. Uma formação que traz o legado da educação
popular para subsidiar o debate sobre a luta de classe e as estratégias
de contraposição e enfrentamento ao modelo de desenvolvimento em

123
disputa, fundamentado nos referenciais políticos, pedagógicos e
metodológicos do MSTTR, a saber: Projeto Alternativo de
Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (PADRSS), Política
Nacional de Formação (PNF) e o Projeto Político Pedagógico (PPP).
O PADRSS é o projeto político do MSTTR para o desenvolvimento do
campo cujos pilares estruturadores são a luta pela reforma agrária para
democratizar o acesso à terra, ampliar e fortalecer a agricultura familiar
reconhecendo os povos do campo, das florestas e das águas como
sujeitos políticos que mobilizam e dinamizam ações capazes de
transformar as relações sociais e construir o bem viver. No PADRSS o
meio rural é concebido como um espaço político, social, econômico,
produtivo, ambiental e cultural, que possuem sujeitos organizados e
dinâmicas de desenvolvimento potencializadoras da sustentabilidade.
Com essa concepção o PADRSS se articula a um projeto de
desenvolvimento de sociedade que visa a garantia de direitos e o pleno
exercício da cidadania.
A Política Nacional de Formação (PNF) por sua vez está articulada à
concepção do PADRSS e do PPP ao contemplar conteúdos e abordagens
às diversidades dos sujeitos, ritmos e tempos do ensino aprendizagem.
Para tanto “os princípios e as abordagens devem se pautar pela
articulação permanente entre prática e teoria e pela construção coletiva
de conhecimentos [...]. Uma prática que articule as dimensões:
mobilização-proposição-organização-formação” (CONTAG, s/d (a), p. 27).
A ENFOC se referência nas reflexões e proposições do Encontro Nacional
de Formação (ENAFOR) que, desde 2005, vem sendo realizado para
refletir e impulsionar os processos formativos.
O ENAFOR acontece a cada três anos, em 2018 teve sua 5ª edição,
e se consolida como efetivo espaço de debates sobre formação
política, na perspectiva da educação popular emancipadora,
comprometida com os interesses da classe trabalhadora engajada nas
lutas pela construção de uma sociedade soberana e inclusiva.

Estratégia pedagógica e itinerário formativo da ENFOC

Em sua atuação, a ENFOC considera a pluralidade de culturas e


ideias e estimula a leitura ampla do universo rural, com suas dinâmicas,
atenta às demandas, necessidades e potencialidades daqueles e
daquelas que reúne. Devido à amplitude da base social do movimento

124
sindical e à diversidade de temas que envolvem sua atuação, a
estratégia é da formação de educadores e educadoras populares que,
em rede, promovem a multiplicação criativa6 dos processos
vivenciados nos níveis regionais, estaduais e locais. A estratégia
pedagógica tem concretude por meio de um itinerário formativo7
composto por: 01 Curso Nacional de três módulos de oito dias cada; 05
Cursos Regionais de três módulos de sete dias cada; 27 Cursos
Estaduais de três módulos de cinco dias cada; e Cursos Microrregionais
e/ou Municipais. Todos esses espaços de formação são precedidos por
um participativo processo preparatório por meio de oficinas
pedagógicas de auto formação nas quais são revisitados os conteúdos
dos cursos e definidas as metodologias a serem vivenciadas.
Os cursos têm como principal objetivo proporcionar uma formação
política que fortaleça e qualifique a atuação do movimento na disputa
por políticas e projetos na sociedade, enfatizando a importância do
projeto político, como enfrentamento às políticas neoliberais e
valorização do campo como espaço de qualidade de vida e de
construção da identidade dos sujeitos do campo, suas pautas e lutas.
Com a Escola, o MSTTR constituiu espaço de caráter estritamente
formativo, crítico, reflexivo, potencializando a luta sindical e os demais
espaços formativos existentes. A ENFOC, embora guarde autonomia
quanto ao fazer pedagógico, se efetiva politicamente pelos espaços
deliberativos como conselhos e congressos. A vivência escola estimula
outras formas organizativas, também horizontais, como redes de
educadores(as), de colaboradores(as) e de parceiros(as)
institucionais, que potencializam a ação formativa numa perspectiva
transformadora e dinamizadora da ação sindical.
Por sua vez, sustenta uma prática militante, continuada e
articulada em âmbito nacional, regional, estadual e municipal,
corresponsabilizando cada educando e educanda e as organizações
das quais participam com os desdobramentos do processo formativo
que a ENFOC desenvolve estimulando reflexões sobre práticas
educativas emancipatórias em consonância com o projeto de

6 Por multiplicação criativa compreende-se a recriação do curso de formação política


da Enfoc nos âmbitos estaduais, municipais, microrregionais e a constituição de
Grupos de Estudos Sindicais (GES) nas comunidades (ENFOC, 2012, p. 11).
7 Caminho político e metodológico adotado pela ENFOC para desenvolver o processo

formativo (ENFOC, 2016, p. 29).

125
sociedade que queremos construir, e contribui para fortalecer e
consolidar a Rede de Educadores e Educadoras Populares da Enfoc e a
Equipe Pedagógica da CONTAG.
O enraizamento e fortalecimento do trabalho coletivo em rede
realizado pela prática militante da escola deu robustez para construir
uma rede de formação como um espaço de articulação horizontal que
proporciona a conexão entre educadores(as) que fazem desse espaço
um lugar de experiências vivenciadas e compartilhadas, de reflexões
sobre essa prática e da construção coletiva sobre o próprio processo
formativo.
Portanto, a Rede é comprometida com a educação popular por
meio da multiplicação crítica do conhecimento de um jeito solidário,
criativo e participativo; planeja, articula, mobiliza, prepara, cria e recria
processos formativos com um jeito próprio. Dessa forma, a Rede
“fortalece a atuação do sujeito e de suas organizações na perspectiva
classista; ressignifica e afirma a luta e a militância como estratégia e
prática de resistência que oportuniza e dá força à atuação da base”
(ENFOC, 2016, p. 53).
Entre os módulos dos cursos os educandos(as) são estimulados a
formar Grupos de Estudos Sindicais (GES) que são parte do itinerário
formativo e espaços formativos articulados à comunidade e aos
sindicatos com a participação dos trabalhadores e trabalhadoras de
base, animados pelos educadores e educadoras populares da ENFOC.
O GES em sua prática experimenta elementos chave como a
problematização, o diálogo e a ampliação da consciência crítica sobre
a realidade. Isso nos remete aos círculos de cultura, em que “o
aprendizado ou a discussão das noções de “trabalho” e “cultura”
jamais se separa de uma tomada de consciência, pois se realiza no
próprio processo desta tomada de consciência. E esta conscientização
muitas vezes significa o começo da busca de uma posição de luta”
(FREIRE, 1967, p. 8).
Diante disso, Freire (1967) aponta que uma pedagogia que
estrutura seu círculo de cultura como lugar de uma prática livre e crítica
não pode ser vista como uma idealização a mais da liberdade, pois as
dimensões do sentido e da prática humana encontram-se solidárias em
seus fundamentos.
Os processos formativos da ENFOC estabelecem dois tempos: o
tempo-escola e o tempo-comunidade. O tempo escola é o da vivência

126
coletiva durante os cursos com educandos(as) e educadores(as). O
tempo comunidade é o momento de olhar para as relações nos
espaços de vida e militância, a partir de suas realidades e suas frentes
de atuação política no MSTTR, combinando a formação político-
militante a uma atuação sindical transformadora desde o local onde as
ações sindicais acontecem. O período alternado de estudo e vivência
(alternância) exerce uma função metodológica e pedagógica no
processo formativo dos educandos e educandas.
Em 2016 a ENFOC incluiu a Plataforma Moodle como um recurso
pedagógico vinculado à estratégia formativa, como forma de
aprimorar as atividades intermódulos do tempo comunidade. O uso
desse ambiente virtual de aprendizagem nos mostrou que é possível
lançar mão das tecnologias da comunicação e informação sem,
contudo, comprometer a matriz humanizadora da educação popular.
A inserção da plataforma atribuiu maior qualidade as atividades, maior
troca de vivências e comunicação, construção coletiva do
conhecimento e maior conexão entre os módulos, estimulando
compromissos e corresponsabilidade dos educandos e educandas com
a integralidade do processo formativo.

Eixos e unidades de aprendizagens

Todo processo se estrutura a partir de eixos pedagógicos e


unidades temáticas, ambos contêm um conjunto de conteúdos,
desenvolvidos em diálogo com os contextos históricos e da atualidade,
com as realidades, diversidades e demandas do MSTTR e dos sujeitos
que compõe cada turma. Um eixo é Ação Sindical e Desenvolvimento
Rural Sustentável e Solidário que consiste em resgatar, avaliar,
reorientar e fortalecer coletiva e criteriosamente, as práticas e as lutas
sindicais, as conquistas e o projeto político do MSTTR, explicitando as
contradições, os desafios, as possíveis saídas e atribuindo maior
sentido a corresponsabilização (militância e institucional) de modo à
ressignificar as práticas e as lutas. O outro eixo é o pedagógico que
articula Memória, Identidade e Pedagogia para uma Nova
Sociabilidade que consistem em refletir sobre aspectos da história,
antiga e mais recente, explicitando as contradições e desafios; os
sujeitos da luta, as lutas e as conquistas em uma perspectiva crítica. E
as atuais pautas e demandas, a especificidade, diversidade e os

127
desafios da luta contemporânea. Destaca-se que este processo apesar
de evidenciar dois percursos, estes na prática são vivenciados de
maneira articulada.
As unidades temáticas são: I – Estado, Sociedade e Ideologia; II –
Vida sindical: história, concepção e prática; e III – Desenvolvimento
Rural Sustentável e Solidário. Estas estão interrelacionadas ao eixo
estruturante e aos eixos pedagógicos, “levando em consideração o
contemporâneo, o histórico, o contexto sindical, social, político e
econômico, contextualizados de acordo com a abrangência das
atividades nacionais, recortes regionais, estaduais e locais em seus
respectivos âmbitos de realização” (CONTAG, s/d (b), p. 56).
As três unidades temáticas são vivenciadas articuladamente, ou
seja, nos momentos em que uma unidade adquire centralidade, as
demais constroem pontes que facilitam o entendimento dos
conteúdos, conceitos e concepções apoiadas pelos diálogos
pedagógicos8 que são espaços de reflexão sobre prática-teoria-prática
do processo de aprendizagem. Freire (1987, p. 45) aponta:

O diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se


solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser
transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar
ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de
ideias a serem consumidas pelos permutantes.

As três unidades temáticas são entrelaçadas por dinâmicas de


modo a favorecer um ambiente estimulador de leituras, pesquisa e
reflexões sobre a prática e a construção coletiva do conhecimento e
pelas dimensões da mística que fortalece as diversas vivências e
expressões do processo formativo. Mística essa:

[...] compreendida como um processo presente em todos os momentos


do curso, com passos consonantes com os temas e objetivos do módulo.
É planejada e realizada coletivamente a partir de recursos e vivências
criativas, a partir da expressão artística e corporal, valendo-se de ritmos,
sons, o uso e a reinvenção de símbolos, ressignificação das inquietações
e dos sentimentos. Busca, com isso, proporcionar vivências e reflexões

8 Espaços especialmente planejados aprofundar reflexões sobre os temas trabalhados

e construir sínteses e articulações entre temas e subtemas explicitando o


encadeamento lógico eixos e unidades temáticas (ENFOC, 2012, p. 247).

128
que alimentam os sonhos e a utopia, na perspectiva de fortalecer o
desejo por uma sociedade igualitária, solidária e democrática (CONTAG,
2010, p. 33).

A ENFOC tem em sua estratégia formativa a Sistematização de


Experiência em processo, que possibilita um olhar crítico sobre a
caminhada, refletir sobre a prática sindical, construir novas
aprendizagens, produzir conhecimentos valorizando os sujeitos da
experiência e traçar novos caminhos para a construção de uma nova
sociabilidade. Une pessoas que se desafiam a escrever sobre suas mais
encantadoras e também conflituosas vivências formativas é “uma
dinâmica de produção coletiva de conhecimentos situada sobre
práticas sociais, mediante diálogo entre vivências, reflexão e teoria”
(FALKEMBACH, 2006, p. 38).
Essa sistematização ocorre ao tempo em que acontecem os
processos formativos, de modo que os educandos(as) se desafiam a
vivenciar essa experiência e atuar na multiplicação criativa. Essa
experiência permite aos educadores(as) populares um maior
conhecimento de suas práticas, dos diferentes saberes, do poder da
comunicação, das aprendizagens. A consolidação dessa prática
pedagógica coletiva do conhecimento se referência na educação
popular e fortalece a Rede de Educadores e Educadoras Populares.

Gestão política e pedagógica da ENFOC

A gestão da ENFOC coerente com as deliberações das instâncias


do MSTTR se efetiva nos seguintes espaços: Coordenação Política;
Conselho Político Gestor; Coordenação Pedagógica e Equipe
Operativa. Além desses espaços a Escola conta também com uma
Secretaria Administrativa. A Secretaria de Formação e Organização
Sindical da Contag coordena a ENFOC em diálogo direto com a
Coordenação Política, Equipe Pedagógica e com o Coletivo Nacional de
Formação. A escola conta também com uma rede de
colaboradores(as) multidisciplinar que atuam durante os processos
formativos continuados. Isso também exige consolidar parcerias com
forte afinação e alto grau de identidade ideológica e política.
A ENFOC integra a Equipe de Coordenação estratégica do
Conselho de Educação Popular da América Latina e Caribe (CEAAL) e

129
no Brasil integra o Coletivo CEAAL Brasil o em conjunto com 15
organizações.

Considerações finais

A estratégia da Escola Nacional de Formação da CONTAG (ENFOC)


alcançou diversos lugares e se enraizou com seu jeito próprio de ser e
fazer formação, dar continuidade a construção coletiva do
conhecimento articulando teoria e prática de forma dialética e
problematizadora conforme requer um processo de formação política.
Partilhar essa experiência, recontar essa trajetória representa de
maneira significativa compartilhar fazeres e saberes de uma escola que
ainda terá muito desafios ao desenvolver processos formativos
próprios ancorados na concepção da educação popular.
No 5º Encontro Nacional de Formação (ENAFOR) realizado em
maio de 2018 o tema foi “Educação popular é resistir, é transformar”
afirmando a importância de se ampliar e intensificar ações formativas
para o fortalecimento das lutas de resistência para combater os
retrocessos e para defender a democracia em nosso país. A tônica está
em fortalecer as estratégias formativas articuladas às lutas populares
de resistência ao conservadorismo e ao neoliberalismo.
Estamos em um crescente e intenso processo formativo cuja
intencionalidade é construir visão crítica sobre a realidade, de modo a
favorecer a transformação e emancipação dos sujeitos. Os caminhos
da formação e da multiplicação criativa constroem novos e
revolucionários saberes, afinal a educação popular requer estar aberto
à convivência com o diferente, pois cada processo é singular e cada
educador(a) é único(a). Os passos da ENFOC se realizam por vários
caminhos nutrindo o sonho de construir um mundo mais humano,
justo, includente e amoroso.
É preciso ter um campo de atuação que contemple projetos
emancipatórios que ressignifiquem as lutas no campo da educação e
promovam a transformação da realidade social, e os movimentos
sociais têm um papel importante na luta por garantias e direitos, pois
são protagonistas da sociedade civil organizada na luta pela educação.
Que o diálogo, a construção coletiva e a intencionalidade política
da ação educativa do pensamento Freiriano sejam perenes em nossos
atos de militância, no saber-fazer cotidiano e na formação política. Que

130
esta publicação possa celebrar o encontro com o pensamento e a
prática de Paulo Freire, os 50 anos da Pedagogia do Oprimido e as
diversas experiências educativas emancipadoras. Que o seu legado
esteja presente em nossas utopias e esperanças e que possamos
intensificar a educação crítica, humanizadora e emancipadora
acreditando na construção de outro mundo possível.

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132
PRESENÇA DE PAULO FREIRE NA EDUCAÇÃO POPULAR
NO PARANOÁ – DF

Maria de Lourdes Pereira dos Santos


Maria Creuza Evangelista de Aquino
Leila Maria de Jesus Oliveira

Uma capital construída por oprimidos

O ano de 1956 marca o início das obras que dariam formato à


idealizada Brasília. O projeto de construção da nova capital do país não
foi realizado sozinho. Para que ele se materializasse, no concreto que
forma os monumentos e edifícios que abrigam as esferas do poder, foi
necessária muita mão de obra de sujeitos vindos dos vários cantos do
Brasil.
O sonho de Juscelino Kubitschek torna-se o sonho de muitos
brasileiros e brasileiras, arrancados de suas origens em busca de
melhores condições de vida na terra profetizada por Dom Bosco:
aquela que jorra leite e mel. No Planalto Central, trabalhadores e
trabalhadoras vieram com o que nada tinham, e aqui quase nada
obtiveram. Sujeitos que trouxeram, em suas bagagens, o peso de suas
histórias de vida já tão marcadas pela exclusão, pela negação de
direitos e pela opressão.
Foram estes trabalhadores que chegaram para a construção da
Barragem do Lago Paranoá1, em 1956, obra que deu início à
constituição da hoje cidade de Paranoá2. No alto do morro que
margearia as águas do Rio Paranoá, represado para formar o Lago

1O Lago Paranoá é projeto inicial da construção da Capital e tem por finalidade o lazer
e o embelezamento paisagístico da região. Suas águas resultam do represamento do
rio Paranoá e vários córregos e riachos afluentes. Embora esteja sofrendo a ação
devastadora da ocupação do solo, que tem secado várias nascentes, o Lago Paranoá
dá leveza ao clima árido do cerrado central do Brasil.
2 Há de se considerar que, antes mesmo da construção de Brasília, havia moradores

nessa região, o que inclui a região ribeirinha do rio Paranoá. Por isso, reconhecemos
que, historicamente, havia uma comunidade antes mesmo da construção da
barragem.

133
Paranoá, foi erguido o primeiro conglomerado de barracos do que
futuramente se tornaria a parte mais antiga da Vila Paranoá.
Os acampamentos das construtoras, muito comuns naquela
época, abrigavam os peões que realizavam o trabalho braçal das obras,
barracões de madeira serviam de moradia quase que coletiva para
aqueles que chegaram sem ter onde morar e necessitavam cumprir uma
jornada diuturna para dar conta do calendário de entrega da obra e
inauguração da nova capital. Barracos, esses mais estruturados, mesmo
sendo de madeira, abrigavam os trabalhadores mais escolarizados e
com grau mais elevado de poder dentro da construção civil.
O perfil dos trabalhadores que vieram para o canteiro de obras da
Barragem do Paranoá não era muito diferente dos demais espalhados
por toda a região do Distrito Federal, principalmente a parte central,
com muitas construções, onde abrigaria o poder. As pessoas eram de
baixa escolaridade, que não tinham concluído o percurso escolar ou
mesmo que nunca haviam frequentado escola.
Ao findar a construção e a inauguração da Barragem, o canteiro
de obras foi extinto, mas os trabalhadores, como não tinham onde
morar, ali permaneceram. Familiares e agregados foram chegando e,
aos poucos, mais e mais famílias oriundas de todas as partes do país e
do Distrito Federal foram ocupando a área. O conglomerado dos
moradores foi dando forma à Vila Paranoá, como carinhosamente é
lembrada pelos moradores mais antigos.
Com o crescimento populacional, os problemas também
aumentaram e o território que abrigava cada vez mais moradores
começava a travar uma luta por moradia e melhores condições de vida,
já no final dos anos 1970. Esta luta se deu em meio a enfrentamentos e
estratégias dos moradores da Vila Paranoá, já organizados em
entidades representativas, como a Associação de Moradores, fundada
em 1979, e o Centro de Cultura e Desenvolvimento do Paranoá e
Itapuã, fundado em 1987.
Segundo Jesus (2007), o crescimento da Vila Paranoá faz destacar
ainda mais as mazelas da comunidade e a luta se fortalece com a
adesão cada vez maior da comunidade.

O crescimento dos problemas como a falta d’água, esgoto, iluminação,


transporte, saúde e educação, dentre outros, segue junto com o
populacional. A Vila Paranoá cresce também em graça, raça, força, luta e
resistência. A mobilização da comunidade, encabeçada pelos jovens do

134
Movimento Pró-Melhorias, toma espaço dentro e fora da Vila Paranoá.
Cresce a adesão da comunidade e o movimento, os jovens e as lutas se
fortalecem (JESUS, 2007, p. 29).

Esta intensa organização e mobilização da comunidade possuía


objetivos claros em fortalecer a luta para transformar a realidade em que
vivem. Mas, para transformar a realidade, é preciso transformar as
consciências. O pensamento de Paulo Freire já aparece, mesmo que de
forma velada, na organização da comunidade ainda sem que um conheça o
outro. Ainda segundo Jesus (2007), a luta por serviços e equipamentos
públicos era parte da estratégia para fortalecer a fixação da Vila
Paranoá. Desse modo, “reivindicar bens de serviço, construir novos
barracos, organizar a comunidade e promover atividades são
estratégias de fortalecer o movimento, legitimar a ocupação e garantir
condições favoráveis à fixação” (JESUS, 2007, p. 40).
Por fim, a Vila Paranoá conquista a fixação em agosto de 1988 e a
expansão em outubro de 19893, como resultado da luta dos moradores
que já marcava mais de 30 anos após a instalação do acampamento da
construtora da Barragem do Lago Paranoá. Mas a luta não findou e o
processo de transferência dos moradores foi tão opressor quanto os
30 anos já vividos até o momento. Sendo assim, Jesus (2007)
caracteriza essa transferência dos moradores como arrancamento,
isto pelo modo como os moradores foram arrancados (novamente) de
suas raízes.

Consideramos o processo de transferência como um arrancamento.


Primeiro porque a área que ocupávamos já estava decretada como área
de fixação. Segundo porque o processo de transferência se dá da forma
mais bruta e desumana que se pode pensar. Os moradores foram mesmo
arrancados de suas raízes, daquele pedacinho de terra em que plantara
a mangueira, o abacateiro, a graviola, a jaca, os sonhos, as lutas. O
umbigo dos filhos (JESUS, 2007, p. 44).

É nesse contexto de luta pela fixação e por moradia digna que,


como estratégia para fortalecer o movimento, inicia-se o trabalho de
alfabetização de jovens e adultos na Vila Paranoá, ainda em 1985, e que
permanece até os dias atuais.

3 Lei n. 49/89, que cria a área para a cidade de Paranoá.

135
A Alfabetização de Jovens e Adultos do/no Paranoá e Paulo Freire.

Pouco ou nada se lia ou sabia de Paulo Freire entre os militantes


naquela época, mas parece que a sinergia daqueles tempos trazia meio
que telepaticamente a conversa de ponto a outro, apresentando-nos
Paulo Freire em cada roda de conversa, em cada atividade de cultura e
em cada ação pela educação, seja ela com crianças, adolescentes,
jovens, adultos ou com idosos da comunidade.
Para Jesus (2007), a alfabetização das pessoas jovens e adultas da
comunidade resulta da necessidade proeminente de oportunizar a
participação dessas pessoas de forma mais efetiva e libertadora nas
atividades e movimentos, na luta pela moradia já muito freiriana em sua
essência.

Nos muitos momentos de mobilização e contato com a comunidade,


percebemos e sentimo-nos incomodados com o fato da grande maioria
não conseguir ler os panfletos das chamadas para mobilização, não
conseguir assinar os manifestos e ter que colocar o polegar para
legitimar sua participação e concordância com os documentos
reivindicatórios aprovados e encaminhados em assembleia com os
moradores (JESUS, 2007, p. 47).

Assim, nasce no movimento popular da Vila Paranoá uma


concepção de alfabetização onde, “não basta que uns saibam, será
preciso que todos tenham o mesmo acesso às discussões,
mobilizações, leitura e escrita. Não basta aprender a ler e escrever,
mas ler e escrever contribuindo com a transformação da realidade em
que se vive” (JESUS, 2007, p. 48).
Essa preocupação de entrelaçar a luta da comunidade à
alfabetização, dando sentido a uma e fortalecendo a outra, em um
caminho de mão dupla, vai encontrar Paulo Freire em uma frase de
domínio público, quando faz referência crítica a uma educação
reprodutora, por sua vez bancária: Não basta saber ler que Eva viu a uva. É
preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social,
quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho4

4 Citação atribuída a Paulo Freire, porém, de domínio público, porque não foi localizada

em fonte oficial.

136
É importante destacar a parceira com a Faculdade de Educação
da Universidade de Brasília, que, não institucionalmente de início, mas
pelo compromisso de pessoas que fazem a Universidade, alia-se a uma
construção do conhecimento no fazer pedagógico da alfabetização de
jovens, adultos e que era inovadora, tanto para o campo acadêmico
(alfabetizar adultos) quanto para a comunidade, que tinha apenas uma
escola e cerca de 80% da comunidade com o Ensino Fundamental
incompleto. O acolhimento vindo primeiramente da professora
Marialice Pitaguary e depois do professor Renato Hilário foi a
contribuição necessária para se construir coletivamente uma proposta
que desse conta de estabelecer não apenas a leitura e a escrita, mas
de atrelar e entrelaçar esse conhecimento à leitura da realidade, aos
enfrentamentos e anseios da comunidade, fortalecendo a cada um e
estes ao coletivo e, por conseguinte, à luta de todos.
O trabalho com as turmas efetivamente começou com uma turma
de alfabetizandos/alfabetizandas, sete alfabetizadoras5 da
comunidade e sete estudantes da Universidade de Brasília, de cursos
como história, letras, pedagogia, no primeiro semestre de 1987. A
turma iniciante tinha o propósito de compreender como seria a ação
alfabetizadora, já que tudo era novo para o grupo, a comunidade e a
academia. Já no segundo semestre de 1987, foram formadas sete
turmas na Vila Paranoá, distribuídas em áreas diferentes na
comunidade e funcionando algumas na escola e outras em espaços
alternativos como salão de igrejas. O funcionamento das turmas era
sempre no noturno, visto que tanto alfabetizandos/alfabetizandas
quanto alfabetizadoras tinham o diurno como jornada intensa de
trabalho.
Essa proposta de alfabetização já nasceu essencialmente
freiriana, sem, contudo, os jovens militantes e engajados nas lutas da
comunidade terem parado para estudar ou ler Paulo Freire até então.
Assim,

Nesta trajetória só podemos nos identificar com um processo de


alfabetização que leve em conta a historicidade do alfabetizando e da
comunidade. Que o aprender a ler e escrever estejam intrinsecamente

5 Deste ponto em diante usarei a palavra alfabetizadora referindo-me ao gênero


feminino e masculino em respeito e homenagem à participação feminina nos
processos de alfabetização popular e considerando as autoras.

137
ligados à superação do processo de exclusão social que sofremos e de
enfrentamento dos problemas e desafios. Provocar a mudança/
superação no sujeito com a mudança/superação na/da comunidade
(JESUS, 2007, p. 50).

Os jovens envolvidos na luta da comunidade vinham de trajetórias


parecidas, histórias de vida marcadas por determinação. O
envolvimento com a educação popular é também reflexo das próprias
trajetórias na sua escolarização e de seus familiares. Tornam-se
educadoras forjadas na luta da comunidade, na reflexão da prática, do
que já experienciaram em suas trajetórias e movidas por um forte
desejo de fazer diferente, de permitir-se ao novo. Ninguém sabia como
fazer, nem como começar, mas sabia que precisava fazer e onde se
queria chegar. Como diz Paulo Freire em A Educação na Cidade,

Ninguém começa a ser educador numa certa terça-feira às quatro horas


da tarde. Ninguém nasce educador ou é marcado para ser educador. A
gente se faz educador, a gente se forma, como educador,
permanentemente, na prática e na reflexão sobre a prática (FREIRE,
1991, p. 58).

Ao optar por uma ação alfabetizadora que fosse transformadora


e libertadora, a comunidade escolhe um novo caminho, escolhe fazer
política, escrever uma nova história assumindo o lugar de quem
também aprende enquanto ensina, tanto comunidade quanto
academia. E, assim, vai intervindo na realidade para melhorá-la e torná-
la mais justa.
Mesmo diante das dificuldades impostas pelas condições de vida
e de sobrevivência da comunidade, onde moravam juntos
alfabetizandos/alfabetizandas e alfabetizadoras em um amontoado de
“barraquitos”, largados à beira do Lago Paranoá, a educação popular,
por meio da alfabetização de jovens e adultos, ganha força amparada
cada vez mais nos próprios problemas da comunidade, que eram não
apenas da moradia, mas de princípios básicos de vida, como água,
esgoto, energia elétrica, saúde, escola, segurança, transporte, lazer,
cultura, enfim, de toda ordem de necessidade. A alfabetização torna-
se, desse modo, um importante instrumento para fortalecer a luta por
melhores condições de vida, como aponta Paulo Freire:

138
[...] o trabalho de alfabetização, na medida em que possibilita uma
leitura crítica da realidade, se constitui como um importante
instrumento de resgate da cidadania e que reforça o engajamento do
cidadão nos movimentos sociais que lutam pela melhora da qualidade de
vida e pela transformação social (FREIRE, 2006, p. 68).

É assim que Paulo Freire entra na vida da comunidade da Vila


Paranoá, por meio da alfabetização de jovens e adultos, nas mãos do
movimento popular organizado discutindo os problemas e buscando
alternativas e meios para encaminhar as soluções, despertando cada
um em si e no outro a percepção da realidade em que viviam e
fortalecendo a organização para a luta.
Já em 1989, com o processo de “arrancamento” e transferência
da Vila Paranoá para a nova área onde seria instalada a cidade de
Paranoá, grande parte das turmas funcionava na Escola Classe 01
(escola de lata), sempre no período noturno, destacando-se o trabalho
com as palavras geradoras: fixação, água, lago, lote.
No ano de 1990, houve diminuição das turmas em virtude do
processo de arrancamento e transferência dos moradores, aliado à
distância e ainda às mais precárias condições de moradia, uma vez que
não existia iluminação pública e a insegurança era muito grande.
Porém, nesse período, as turmas que permaneceram trabalharam com
destaque para as palavras geradoras, que refletiam as problemáticas
ainda sofridas na comunidade, entre elas, água, luz, tijolo.
Quanto mais era desenvolvido o trabalho de alfabetização no
Paranoá, mais a consciência de alfabetizandos/alfabetizandas e
alfabetizadoras era tomada na leitura da realidade em que viviam. Não
era o fato de ser alfabetizado que torna o sujeito mais ou menos
consciente de sua realidade, mas sim a forma como esse enxerga e lê
a sua própria realidade. Por isso, a experiência da alfabetização no
Paranoá foi, e ainda é, uma caminhada coletiva no contraditório, no
conhecimento, na aprendizagem e na transformação do eu e do
outro/outra.
O ano de 1991 possibilitou a retomada e ampliação da mobilização
da comunidade com a formação de novas turmas e utilização das salas
de aula ociosas no noturno em escolas públicas já instaladas na nova
área. Os temas mais trabalhados, discutidos dentro dos problemas
vividos na comunidade, foram: transporte, violência e segurança. Com
o avanço das discussões, compreensão metodológica e de

139
aprendizagem, foram instituídos os Fóruns com a participação de
alfabetizadoras, alfabetizandos/alfabetizandas, estudantes e
professores/professoras da UnB, movimento popular e comunidade.
O Fórum do projeto de alfabetização do Cedep constitui-se como
um encontro mensal ou quinzenal para organização e planejamento
das ações e atividades pedagógicas. É no Fórum, como um grande
Círculo de Cultura, que emerge, após o debate, a Situação Problema
Desafio– SPD como eixo do processo de alfabetização e vai alimentar
o tema/palavra geradora que finaliza com o texto coletivo. Segundo
Reis (2011, p. 55),

O fórum é uma reunião geral, uma aula coletiva, com a participação de


todos os alfabetizandos, alfabetizadores, dirigentes da organização
popular, professores, alunos e técnicos da UnB. Há também a ocorrência
da participação dos já alfabetizados, como uma das formas de
oxigenação da práxis de alfabetização.
No fórum, alfabetizandos identificam os problemas, as dificuldades que
estão vivendo/enfrentando como moradores do Paranoá. Selecionam,
discutem e escolhem as situações-problemas-desafios mais urgentes e
prioritárias.

No caso da ação alfabetizadora no Paranoá, a SPD é a articuladora


do planejamento e dela suscitam as discussões e encaminhamentos
dos problemas da comunidade. Da SPD emergem as palavras e os
temas geradores, que, na construção, vão dando norte à
alfabetização.
Os anos 1990 foram marcados como uma década de
fortalecimento da ação alfabetizadora no Paranoá. Sempre
coordenado pelo Cedep, a formação de turmas avança para novas
parcerias com outros movimentos organizados na comunidade, ONGs
e grupos de igrejas. Turmas foram ampliadas para o campo, atendendo
à área rural e cobrindo as áreas distantes dentro da própria área
urbana do Paranoá.
Aí já havia uma consistência maior na formação e
acompanhamento das turmas, dada a experiência acumulada desde
1987. Os Fóruns constituíram-se como espaços importantes de
formação, discussão e encaminhamento da ação pedagógica, bem
como de definição da Situação-Problema-Desafio – SPD. Tanto a
Situação Problema Desafio quanto as palavras geradoras estão

140
presentes na realidade de vida dos/das alfabetizandos/alfabetizandas
e alfabetizadoras, problematizadas no seu cotidiano, e buscam
transformar e superar a sua própria realidade.
A virada do milênio, no entanto, não traz grandes conquistas, uma
vez que, na mudança de governo, as escolas fecharam suas salas para
a ação alfabetizadora dos movimentos populares em todo o Distrito
Federal, e no Paranoá não foi diferente. Com isso, retoma-se o
funcionamento de turmas em salões de igrejas, salas comunitárias, na
sede do Cedep, em garagens e salas de casas de alfabetizadoras e de
próprios alfabetizandos/alfabetizandas. Uma única escola foi ainda
mantida, por força da resistência, mas não por muito tempo. Alguns
desses espaços de escolas foram retomados em 2007, a partir de
negociação e acordo com o governo local.
Ao percorrer as ruas e ruelas da Vila Paranoá, a busca ativa não
resultava apenas em novos alfabetizandos/alfabetizandas, mas de, ao
se deparar com dificuldades e realidades que ao mesmo tempo eram
tão comuns e tão diferenciadas, trazer cada vez mais Paulo Freire para
perto. Ainda hoje a busca ativa de alfabetizandos encontra diálogo
com Paulo Freire e sua presença e pensamento continua frequente em
cada momento, em cada turma, em cada formação.
Foi-se afirmando que, no processo, o empoderamento da leitura
e da escrita, entrelaçado à discussão e problematização da realidade
dos moradores da Vila Paranoá, empoderava também outras pessoas
e mais pessoas empoderam o movimento, que dá força à luta. Assim,
Reis (2011, p. 202) dialoga freirianamente sobre esse empoderamento
das e nas relações sociais no e do Paranoá:

O Paranoá é um micromundo de relações sociais, dentro do


macromundo da totalidade das relações sociais. E nestas relações estão
presentes a luta histórica pela fixação, os bens de serviço e a luta pela
alfabetização de jovens e adultos. Esta com a ação de sujeitos falantes-
atuantes: moradores, professores e alunos da UnB e outras
organizações que mantêm a intencionalidade histórica de
transformação. Ação esta que possibilita a alfabetizadores e
alfabetizandos significação e ressignificação do seu cotidiano, estes
sujeitos produzem dialógica e dialeticamente a sua história e de suas
relações sociais: que é saber e ao mesmo tempo poder estar
mobilizado/mobilizando minorias subvertedoras da subjetividade e
objetividade hegemonicamente estabelecidas. Isso dentro das

141
contradições presentes em nível macro das próprias relações sociais
predominantes.

A ação alfabetizadora na comunidade foi sendo fortalecida ao


longo do tempo com parcerias em programas e projetos que ora
possibilitavam um número maior de turmas, ora um número menor,
mas sempre na perspectiva de avanço, tanto no atendimento quanto
na compreensão do fazer pedagógico da ação alfabetizadora.
Resgatando o ser político, epistemológico e amoroso dos sujeitos
no processo, tanto de alfabetizandos/alfabetizandas quanto de
alfabetizadoras, a experiência do projeto de alfabetização do Paranoá
constitui-se um espaço de ensino, pesquisa e extensão, onde
ressignificar a práxis, exercitar a escuta compreensiva e dessilenciar os
sujeitos é um desafio constante para as pessoas envolvidas, para a
comunidade e para a academia.
Com o desafio da proposta de alfabetização, houve também o
desafio de se romper com os muros da Universidade de Brasília, e
trazer a academia para a comunidade e comunidade para a academia,
com uma real e concreta relação de troca e construção do
conhecimento. Uma via de mão dupla em constante movimento de vai
e volta.
A Alfabetização Popular do Paranoá tornou-se uma referência
importante no Distrito Federal, contribuindo para ampliar e fortalecer
a alfabetização nas demais Regiões Administrativas. Chegou a ser
agraciada com o Prêmio Medalha Nacional Paulo Freire, do Ministério
da Educação, em 2006, pela experiência exitosa no campo da
alfabetização popular de pessoas jovens e adultas.
Em toda a caminhada da educação popular no Paranoá, Paulo
Freire se faz presente, da busca ativa à palavra geradora, aos Fóruns e
à SPD, com produção de texto coletivo, da resolução dos problemas à
participação social e comunitária, a consciência e o pertencimento do
sujeito à sua história que se faz presente no ontem, no hoje e no que
virá. Paulo Freire ainda está presente nas formações, nos momentos
de debate, nas saídas da escola, nos momentos de busca ativa, na
relação com a comunidade, na leitura de mundo, da palavra, da vida,
quando dialogada com a realidade.
Mas é preciso estar atentos e fortes, porque chegamos ao tempo
de, mais que defendermos avanços, defender as conquistas
historicamente construídas na luta para que essas não se percam em

142
meio ao retrocesso conservadorista. Atento a isso, Paulo Freire já
alertava que a ação alfabetizadora por si só não é transformadora. As
condições de justiça social far-se-ão realidade “pelas lutas coletivas
dos trabalhadores por mudanças estruturais da sociedade” (FREIRE,
2006, p. 70).
O reconhecimento da trajetória da comunidade do Paranoá, em
suas lutas e resistências, é também reconhecer que esses sujeitos
trabalhadores constituem-se em comunhão, como afirma Paulo Freire,
também, Reis (2011, p. 235):

A história do Paranoá e de sua alfabetização de jovens e adultos é um


indício sinalizador de que o sujeito produz socialmente a vida ao mesmo
tempo em que se produz, com os avanços e recuos exigidos e impostos
pelas condições objetivas. Mas que na resultante de sua iniciativa
individual e coletiva com os obstáculos que se lhe antepõem ele faz a
história e a história de seu próprio desenvolvimento como ser humano.

Foram a participação e a ação coletiva dos trabalhadores que nos


possibilitaram hoje escrever esta história assentada em um território
de luta, resistência e conquista, onde a alfabetização de sujeitos
possibilitou a consciência crítica e o empoderamento pessoal e
coletivo.
Mas os desafios ainda persistem e nos unem na alfabetização e na
educação de pessoas jovens, adultas e idosas, pela luta na garantia do
direito ao acesso, permanência e continuidade à escolarização. O
direito à aprendizagem e à garantia de uma escolarização integrada à
educação profissional.

Somos Marias, aquelas com a estranha mania de ter fé na vida.

Somos três Marias. Alfabetizadoras e educadoras populares. Por


opção de vida, a educação!
Chegamos à Vila Paranoá em diferentes momentos de nossas
vidas, mas no caminho da resistência nos encontramos nas lutas da
comunidade e na educação, havendo o encontro consigo, com a outra,
com as outras, com a comunidade.
Nossa caminhada pessoal se confunde com a caminhada coletiva
e no aprendizado seguimos em frente, ampliando o projeto de
alfabetização de jovens e adultos. Tomamos a formação individual

143
para fortalecer a formação coletiva. Construímos pontes e
derrubamos muros. Tomamos a dimensão de nossa trajetória familiar
e pessoal como desafio para fortalecer o coletivo.
Por muitas vezes vimos refletir no espelho o nosso lado oprimido
e o nosso lado opressor. Combatemos o opressor e fortalecemo-nos
para que o oprimido rompesse o silenciamento e se libertasse das
amarras da educação bancária que nos perseguia. Lutamos juntas por
nós e para nós mesmas, para dar conta de lutar pelos e com os outros.
Transformamos umas às outras, transformamo-nos. Libertamo-
nos em comunhão. Aprendemos a vencer nossos próprios desafios,
aprendemos a superar juntas. Somos três Marias: Maria de Lourdes,
Maria Creuza e Leila Maria. Somos educadoras popular.

Referências

FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática. São Paulo: Cortez &


Moraes, 1980.
_______, Paulo. Educação como prática de liberdade: a sociedade
brasileira em transição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
_______, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à
prática educativa. 27. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
_______, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2002.
_______, Paulo. A Educação na Cidade. 7.ed. São Paulo: Cortez, 2006.
JESUS, Leila Maria de. A repercussão da atuação de educadores/as
populares do Cedep/UnB na escola pública do Paranoá-DF. 2007. 217 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação,
Universidade de Brasília, Brasília-DF, 2007.
REIS, Renato Hilário dos. A constituição do ser humano: amor-poder-
saber na educação/alfabetização de jovens e adultos. Campinas, SP:
Autores Associados, 2011.

144
PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE PAULO FREIRE E
COMÊNIO: ORIENTANDO UMA REFLEXÃO ACERCA DA
EDUCAÇÃO E DA ESCOLA

Darliane Silva do Amaral


Queina Lima da Silva

A pedagogia é reconhecida como ciência no século XV, período


em que se assiste ao fim da Idade Média e ao nascimento da
modernidade, que alterará formas de organização social, cultural,
política e educacional. A modernidade apresenta ideais de renovação
para um tempo sombrio, autoritário e estático, a partir da proposta de
um mundo novo no qual a transformação ganha uma centralidade
jamais permitida na Idade Média. Evidencia-se, nesse contexto, a
ruptura de um ciclo histórico. Com isso, a estrutura educacional passa
a ser questionada e surge, nos anos quinhentos, um ousado projeto de
revolução para a pedagogia por Jan Amos Comênio. De lá para cá,
surgem muitos outros projetos de educação e de escola com vistas, a
convergir ou divergir com o que já está posto, dentre os quais
referimo-nos aos de Paulo Freire.
Freire e Comênio almejam, em seus projetos pedagógicos, uma
transformação pessoal do homem através da educação, embora por
vieses ideológicos distintos. Para Comênio (2011), o fim último da
educação é ensinar tudo a todos, com o intuito de preparar o homem
para a eternidade a partir de vivências na terra entre o homem e Deus,
uma vez que o homem é a imagem de Deus. O eixo central do
pensamento freiriano, entretanto, fundamenta-se na libertação do
homem, pela qual se desejava uma transformação nas atitudes, a fim
de inferir na realidade em que se vive. Ambos os autores criticaram
ações educativas e propostas educacionais pautadas em métodos de
ensinos enfadonhos. Freire (2016) foi categórico ao denunciar o
modelo “bancário” de educação, em que se perpetuava o
autoritarismo e a alienação do homem diante da sua condição social,
e, ao defender uma reforma educacional, Comênio (2011) propõe uma
didática que observa a necessidade de o ensino teórico ser associado

145
à prática a fim de que o conhecimento fosse ensinado a todas as
pessoas.
Paulo Freire e Comênio pensaram, a seu tempo, o compromisso
social da educação e da educação escolar com os excluídos. Comênio
rompe paradigmas ao incluir todos, inclusive mulheres e crianças, em
seu pensamento pedagógico. Freire confronta as práticas escolares,
responsabilizando-as pela exclusão do homem de seu processo de
libertação, uma vez que essas práticas acabavam por reproduzir um
sistema opressor e autoritário.
É inegável reconhecer que, ao falar de escola, deparar-nos-emos
com conflitos, sejam dos que consideram essa instituição como
promotora de liberdade ou dos que a vêem como reprodutora de
opressão. De todo modo, entendemos como uma mais-valia o diálogo
entre os pensamentos pedagógicos desses autores, uma vez que
propicia conhecimento e reflexão pedagógica. Desconsiderar o
diálogo como ferramenta pedagógica é acentuar processos de
exclusão nas escolas e na pedagogia.

Comênio e seu pensamento pedagógico.

Jan Amos Comênio (1592-1670) nasceu no século XVI, na Morávia,


região da Europa Central, atualmente República Tcheca. Graduou-se
em Teologia pela Universidade Calvinista de Herborn, na Alemanha.
Após sua formação, atuou como professor primário e pastor da Igreja
Moraviana, na qual fez parte da congregação dos Irmãos Morávios,
que, posteriormente, fora destruída pela Guerra dos Trinta anos.
Muito jovem, torna-se órfão. Já adulto, perde duas esposas e os filhos,
que morrem ainda jovens. Logo em seguida, para fugir da perseguição
da igreja, peregrina exilado por vários lugares, por onde vai
escrevendo suas obras e pregando sobre o retorno voluntário à vida
interior (PIAGET, 2010).
Esse contexto em que Comênio se inseria era, justamente, o final
da Idade Média, cujo cenário fora de implosão dos conflitos de ordem
religiosa pela Europa. “O clima de perseguições, guerras e constante
instabilidade política, foram características marcantes da vida de
Comênio” (GARCIA, 2014, p. 314). É nesse momento que ele escreve
Didática Magna, o qual, na visão de Piaget (2010), constitui-se como
uma obra que apresenta uma reforma radical no ensino. A nosso ver,

146
essa obra propõe pensar a relação entre educação, divindade e
humanismo, tecendo críticas e sugestões às escolas e aos modelos
escolares vigentes nos anos de 1612. Para Gasparini (1997), é consenso
que Didática Magna seja a obra prima de Comênio, uma vez que se
constitui como uma didática no tempo em que a pedagogia se torna
ciência. Comênio almejava que aquele escrito fosse propagado quando
da ascendência das navegações e do desenvolvimento do comércio.
Para Cambi (1999), Comênio é um espírito luminoso e grandioso,
pois, frente aos conflitos, ele se empenha em pensar uma renovação
social por meio da educação, inclusive, a defendê-la como uma
prioridade a qual se deve atribuir centralidade na sociedade moderna.
Comênio é considerado o pai da pedagogia, o que primeiro
sistematizou um discurso pedagógico que pensou uma didática sobre
os aspectos técnicos da formação, da universalidade da educação e de
uma organização escolar.

Com ele se delineiam pela primeira vez de maneira orgânica e sistemática


alguns dos problemas já relevantes da pedagogia: desde o projeto
antropológico-social que deve guiar o mestre até os aspectos gerais e
específicos da didática, para chegar às estratégias educativas referentes
às diversas orientações da instrução (CAMBI, 1999, p. 281).

Uma das máximas defendidas no pensamento pedagógico de


Comênio (2011) era ensinar tudo a todos. “Ele se dirige a todos os
homens sem levar em conta as diferenças de condição social ou
econômica, de religião, raça ou nacionalidade” (PIAGET, 2010, p. 30). A
partir dessa premissa, Comênio almejava que, por meio da educação,
o homem se tornasse virtuoso e capaz de buscar a salvação.
Especialmente na Didática Magna, ele desenvolve seu método de
ensino pautado no conhecimento como um caminho de encontro do
homem com Deus.

Paulo Freire e seu pensamento pedagógico.

Nascido no século XX, Paulo Reglus Freire (1921-1997) é natural de


Recife, Pernambuco. “Paulo Freire sentiu a dureza da vida. Ele conta
da dificuldade que teve para estudar devido à precariedade financeira
da família, mas, ao mesmo tempo, lembra o afeto e a amorosidade que
nunca lhes faltaram e que serão uma marca de sua vida e obra”

147
(STRECK, 2010. p. 329). Graduou-se em Direito em 1946, na Faculdade
de Direito do Recife, contudo, não exerceu a profissão nessa área.
Escolheu o viés da educação e nele construiu seu legado e uma vasta
obra, na qual desenvolveu uma perspectiva de educação com vistas à
libertação do homem. Sua pedagogia esteve voltada a afirmar que
“[...] não há educação fora das sociedades humanas e não há homem
no vazio” (FREIRE, 2003. p. 43).
Um dos marcos do autor foi sua atuação na alfabetização de
adultos, inicialmente atribuindo-lhe visibilidade nacional e,
posteriormente, internacional. Para Cambi (1999), o movimento da
educação de adultos representa um enriquecimento para a pedagogia
e a educação, uma vez que propiciou uma releitura dos modelos
eurocêntricos, oportunizando aos homens e mulheres excluídos da
cultura começarem a ter contato com o alfabeto, integrando-os à
vivência de um conhecimento crítico. Pensando a educação de adultos
especificamente na perspectiva de Freire (2016), cumpri-nos ressaltar
que ela é forjada com os educandos e não para os educandos, pois só
assim é possível que o homem resgate a sua humanidade. Um
elemento fundamental nesse percurso de constante resgate pela
humanidade é a tomada de consciência da realidade. É preciso “[...]
que ultrapassemos a esfera espontânea da apreensão da realidade,
para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como
objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição
epistemológica” (FREIRE, 1980, p. 26).
Essa mudança de consciência é vista por Saviani (2013), como um
processo de trabalho que não se dá automaticamente. Chama a
atenção, ainda, que as pessoas, ao vivenciarem essa transição “[...] da
consciência ingênua para a consciência crítica, podem cair na
consciência fanatizada, configurada pelo fenômeno da massificação”
(SAVIANI, 2013, p. 324). É recorrente o questionamento de Freire para
que a educação não seja uma espécie de modelo assistencialista, no
qual o homem não desenvolva uma autonomia para a tomada de
decisão, engajamento social e político, mas defenda, sobretudo, a
responsabilização com as problemáticas do mundo onde está inserido.
Freire foi convidado em 1963 para coordenar o Plano Nacional de
Alfabetização no Brasil e, em menos de um ano, o projeto foi
interrompido em decorrência do golpe militar de 1964 no país
(SAVIANI, 2013). “Esse Plano previa a alfabetização de 5 a 6 milhões de

148
brasileiros em 1964 através da formação de 20.000 “Círculos de
Cultura” (SCOCUGLIA, 1999, p. 9). Com o golpe militar, Freire fica
alguns meses preso e, depois, vive quinze anos de exílio, passando
pelos Estados Unidos da América (EUA), Bolívia, Suíça e Chile,
ampliando, assim, suas lutas em outros continentes. Com a Anistia de
1979, volta ao Brasil, inicia seu trabalho na Universidade de Campinas
e na Pontifícia Católica de São Paulo e, ainda, aceita o cargo de
Secretário de Educação do Município de São Paulo.
Diante de uma infância difícil no Nordeste brasileiro, uma vida
adulta durante a ditadura e uma década de exílio, Paulo Freire não
desanima nem adere ao discurso de se tornar vítima. Ao contrário,
ampara suas lutas também em sua vida e, corajosamente, rompe com
consensos e propõe uma práxis educativa que acaba por ser a
renovação da própria pedagogia. Freire (2016) denuncia a educação
“bancária” na obra Pedagogia do Oprimido, e defende que o homem
seja um ser mais. “Esta busca no ser mais, porém, não pode realizar-se
no isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade
dos existires, daí que seja impossível dar-se nas relações antagônicas
entre opressores e oprimidos” (FREIRE, 2016, p. 129). Assim, o
pensamento pedagógico daquele educador pode ser considerado
inovador, ao passo que se propõe uma Pedagogia que se sobreponha
ao modelo escolar que reproduz a educação “bancária”, respeitando
o ser humano em sua integralidade, onde nenhuma prática educativa
pode diminuir ou excluir a possibilidade do homem de ser mais.

Freire e Comênio: aproximações e distâncias das concepções sobre os


pensamentos pedagógicos.

Identificamos nas ideias pedagógicas de Paulo Freire e Comênio


proximidades e distâncias abissais. Apoiar-nos-emos em algumas
dessas percepções de distanciamentos e proximidades para
desenvolver uma apreciação dos pensamentos desses autores e dos
seus contributos para a educação. Esclarecemos que não é nosso
interesse eleger um dos pensadores como o que mais contribuiu ou foi
mais revolucionário para a pedagogia.
Na concepção pedagógica de Paulo Freire é defendida uma visão
antropocêntrica do homem, ao passo que em Comênio é defendido o
teocentrismo, que elege como principal objetivo da educação formar

149
o bom cristão nos pensamentos e na verdadeira fé. A arte de ensinar
tudo a todos é a máxima de que todos devem ser conduzidos a Deus
pela educação. “A constituição do nosso ser mostra que não nos
bastam as coisas que possuímos nesta vida” (COMENIUS, 2011, p. 59).
Em Freire, o homem deve lutar pela libertação como um caminho que
o torna mais humano. “Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas
pela práxis de sua busca: pelo conhecimento e reconhecimento da
necessidade de lutar por ela” (FREIRE, 2016, p. 65).
Um aspecto comum aos dois autores é o de que o ser humano
não nasce formado. Freire chama de inconcluso e, consciente dessa
inconclusão, busca ser mais (FREIRE, 2016). “É evidente que todo o
homem nasce apto para adquirir conhecimento das coisas: primeiro,
porque é imagem de Deus” (COMENIUS, 2011, p. 59). Comênio e Freire
acreditavam que, por meio da educação, era possível haver uma
mudança de consciência no homem, a qual, por vezes, repercute na
ação pessoal, social e política. Comênio defende que o aluno, ao
terminar o curso, é capaz de interagir no mundo. Para Freire (2016, p.
128), “[...] não há homens sem mundo, sem realidade, o movimento
parte das relações homens-mundo”.
Acreditando que o homem é um ser em transformação e que a
educação é um processo de aprendizado constante, identifica-se, no
pensamento de ambos, que o ensino teórico deve estar vinculado à
prática, a fim de promover o que, anteriormente, foi designado por
consciência e conscientização. Referindo-se a esse ideal de ensino,
Comênio tece crítica à desvinculação entre teoria e prática, afirmando
que “[...] quase nunca os espíritos são alimentados com coisas
verdadeiramente substanciosas, mas na maior parte dos casos, são
atulhados com palavras ocas” (COMENIUS, 2011, p. 149).
Corroborando essa crítica, Freire (2016, p. 118, grifo do autor) refere
que a libertação autêntica, ou seja, a conscientização “[...] não é uma
coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca,
mitificante. É práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre
o mundo para transformá-lo”.
Cumpri-nos referir uma crítica, no tocante a autonomia pensada a
partir da perspectiva comeniana, pois se torna limitada ao
considerarmos que todo o processo de tomada de consciência
humana já seja para direcionar e induzir o homem ao encontro com
Deus. Conforme Freire (2015, p. 105), “[...] uma pedagogia da

150
autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da
decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas
da liberdade”. Junto com a libertação, outra categoria presente na
pedagogia de Freire é a concepção humanista, uma vez que ele
acreditava na humanização do ser humano e na possibilidade de
transformação do mundo em que se vive. Atribui-se que parte de tal
pensamento se deu em decorrência de sua vivência com a Igreja
Católica, uma vez que Freire se engajou em movimentos
socioreligiosos.
Outrossim, no pensamento pedagógico de Freire é condenada,
veementemente, a concepção “bancária” da educação, para que o
ensino não seja um ato oco, de transferência de conhecimento ou o
aluno seja depositário e o professor o depositante. Comênio (2011, p.
154) dizia:

[...] que o homem, enquanto animal racional, se habitue a deixar-se


guiar, não pela razão dos outros, mas pela sua, e não apenas a ler nos
livros e a entender, ou ainda a reter ou a recitar de cor as opiniões dos
outros, mas a penetrar por si mesmo até o âmago das próprias coisas e
a tirar delas conhecimentos genuínos e utilidade.

Num processo dialético de idas e vindas entre os dois autores,


deparamo-nos com aproximações ideológicas que, por vezes,
sentimos haver mútua inspiração entre Comênio e Freire, embora cada
autor tenha posicionamentos distintos. Um dos fatores presentes nos
dois autores é a importância da relação do homem com o meio cultural
em que vive, pois esse meio é entendido como um aliado do processo
educacional de formação e constituição do ser humano, seja ele numa
visão teocêntrica ou antropocêntrica. A esse respeito, Comênio (2011,
p. 105) exemplifica casos em que atesta sobre a ausência do convívio
em ambiente cultural para demonstrar que o homem acaba por ser o
que, culturalmente, vive: “[...] temos exemplo que alguns que,
raptados na infância pelas feras e crescidos no meio delas, nada mais
sabiam que os brutos”.
Outra aproximação nas concepções pedagógicas dos autores em
questão é a visão sobre a responsabilização do professor/educador, ao
referirem que “[...] todos aqueles a quem cabe a missão de formar
homens façam com que todos vivam conscientes desta dignidade e
excelência” (COMENIUS, 2011, p. 57). É na Didática Magna que as

151
mulheres são incluídas no processo educacional, como também ele
almejava desenvolver uma didática que ensinasse tudo a todas as
pessoas. Freire (2015, p. 28) defende que “[...] o educador democrático
não pode negar-se ao dever de, na sua prática docente, reforçar a
capacidade crítica do educando, sua curiosidade e sua insubmissão”.
Ademais, Comênio (2011) atribuiu importância à natureza,
entendendo-a como uma ferramenta de aprendizagem pela qual o
homem deveria instruir-se.
Uma categoria de Freire como condição existencial para a
aprendizagem é o diálogo. Este assume um papel central, uma mais-
valia na constituição educacional e pessoal de formação do homem no
processo educativo. É através do diálogo que o homem elimina as
relações de autoritarismo (FREIRE, 1967).

Ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos


endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode
reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem
tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos
permutantes (FREIRE, 2016, p. 135).

A presença do diálogo no processo educacional favorece a


libertação do homem da condição de oprimido, uma vez que se tem
como frágil qualquer relação de dominação que impeça o homem de
ser mais. Assim, Freire (1967) amplia o discurso sobre o diálogo para
pensar a relação, colonizado-colonizador, elegendo o antidiálogo
como uma ferramenta vertical de imposição de reforço da opressão no
colonizado. Aquele educador foi revolucionário ao questionar a
estrutura do conhecimento científico como o único conhecimento
validado em virtude do conhecimento popular. Tanto Freire quanto
Comênio marcam a Pedagogia com propostas educacionais
inovadoras.
Reiterando ainda sobre as proximidades desses ideais
pedagógicos, evidenciamos a importância da alfabetização que,
embora com menor centralidade em Comênio, foi bastante prezada
por Freire. “Comênio teria aplaudido as campanhas modernas contra
o analfabetismo, entendidas como campanhas de educação de base e
reintegração social” (PIAGET, 2010, p. 30). Vale salientar que, nas
concepções pedagógicas em análise, foram criticados métodos de
ensino enfadonhos.

152
Os autores supramencionados estabeleceram relações próximas
com a Igreja e a religião. Comênio foi um líder religioso, e tinha a
religião como um meio pelo qual o homem poderia evoluir sua
humanidade com base no crescimento concomitante do binômio
espírito-intelecto. Freire integrou ações educativas em diversas igrejas
em Recife. Foi nas paróquias católicas que ele participou de projetos
educacionais. Antes do exílio, colaborou com o Movimento de
Educação Popular (MEP), cujo objetivo era problematizar com a classe
trabalhadora temas da realidade cultural e política, para que
conscientizado da realidade, o homem pudesse transformá-la. “De 70
a 79, quando voltou do exílio, trabalhou no Conselho Mundial de
Igrejas, sediado em Genebra (Suíça) e lecionou na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo” (GADOTTI, 1999, p. 253). Ainda
após o exílio, Freire trabalhou nas Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs), dando continuidade ao projeto de alfabetização de adultos nas
classes populares da sociedade.
Propondo um apontamento que distancia, substancialmente,
Comênio de Freire, estabelecendo um abismo ideológico entre os dois,
apontamos a doutrinação religiosa, que fundamenta todo o
pensamento pedagógico de Comênio e se opõe à condição de
libertação do homem, defendida, insistentemente, por Freire. “O que
nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos
homens, não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados”
(FREIRE, 2016, p.118). Cumpri-nos salientar que, de modo algum, essa
divergência é motivo para exaltar ou menosprezar o pensamento de
um dos autores. Piaget (2010) afirma não haver nada mais fácil ou
perigoso que a tentativa de modernizar o pensamento de Comênio,
querendo encontrar, nele, as origens de tendências contemporâneas.
Assim, julgamos ser pertinente o exercício do entendimento de cada
autor no tempo em que viveram e, a partir disso, desenvolver a
abordagem mais importante para o recorte do estudo que se pretende
investigar. Consideramos que cada um deu a sua contribuição a seu
tempo e para além dele, permanecendo vivo na história da pedagogia.

Considerações finais.

Freire e Comênio ainda hoje auxiliam no debate sobre a educação


e a escola atualmente existente. Eles inquietam a pensar em que

153
medida a escola atual ainda rege sua prática pela educação bancária e
sobre os processos de inclusão e exclusão. Não obstante, uma questão
que impõe um abismo entre os ideais pedagógicos destes é a
percepção acerca da instituição escola, pois, Comênio se apresenta na
defesa da educação e do ensino institucionalizado, ao passo que
Freire, por um lado, se opõe à institucionalização e, por outro, propõe
uma educação escolar pautada nas vivências sociais e culturais do ser
humano.
No que concerne ao modo de ver o homem, Freire defende o
antropocentrismo ao passo que Comênio perspectiva o homem a
partir de uma visão teocêntrica. Quanto à educação, os dois autores
constituem-na como um mecanismo de transformação capaz de
possibilitar uma mudança de consciência. Em Comênio (2011), a
educação é um meio pelo qual se supera a condição humana e se
conhece a Deus e as suas manifestações. Ainda propõe um método de
ensino que aproxima o aluno da natureza, a fim de que desenvolva sua
autonomia e, consequentemente, se alcance o conhecimento. Em
Freire (1967, 2016), a educação deve incidir numa tomada de
consciência para que o homem possa refletir e agir no seu cotidiano.
Nele, o método de ensino defende a imersão no mundo cultural do
educando para que o conhecimento seja resignificado na prática.
De fato, aqueles autores convergem em seus pensamentos
pedagógicos ao acreditarem na educação como um mecanismo
transformador da realidade humana. Ambos viam o homem como um
ser inacabado, sendo a escola um meio de constante aprimoramento
da vida, de importância e responsabilidade na constituição do ser
humano, nas práticas sociais, nas vivências culturais e nos processos
metodológicos de ensino. Grosso modo, o pensamento pedagógico de
Freire denuncia modelos educacionais que não respeitam a condição
de ser do homem, que o oprime e não o capacita para uma tomada de
consciência do mundo em que vive. Comênio propõe seu pensamento
pedagógico em uma educação que incluísse a todos no processo
educativo, mas pauta seu pensamento na oportunidade de aproximar
o homem de Deus.
Sem dúvida, têm-se dois pensadores que entre convergência e
divergência, podem ser considerados revolucionários por uma
proposta de uma Pedagogia que questionasse o fazer educativo,
confrontando a escola com práticas inovadoras. Dessa conclusão, é de

154
suma importância que a educação e a escola atuem de maneira a
promover o desenvolvimento e a libertação do homem. Em Comênio
(2011), a educação é um meio pelo qual se supera a condição humana
e se conhece a Deus e as suas manifestações. Ainda propõe um
método de ensino que aproxima o aluno da natureza, a fim de que se
desenvolva autonomia e, consequentemente, se alcance o
conhecimento. Em Freire (2016), a educação deve incidir numa tomada
de consciência para que o homem possa refletir e agir no seu cotidiano.
Nele, o método de ensino defende a imersão no mundo cultural do
educando para que o conhecimento seja resignificado na prática.
Freire viveu 76 anos e, em 2017, completou duas décadas de sua
morte. Comênio viveu 78 anos e, em 2017, faz 347 de sua morte. Ambos
viveram anos de exílio e desenvolveram pensamentos pedagógicos
reconhecidos, embora não tenham sido implementados na íntegra. A
educação popular de Freire ainda se faz necessária, uma vez que há
homens e sistemas escolares opressores e oprimidos. A pedagogia de
Comênio proclamou deveres do Estado na universalidade do ensino,
mas torna-se, ainda, necessária quanto à ênfase de que a tarefa
educativa é uma ação de toda a sociedade.

Referências

CAMBI, F. História da pedagogia. Trad. de Álvaro Lorencini. São Paulo:


Editora UNESP, 1999.
COMENIUS. A. J. Didática magna. São Paulo: Editora WMF; Martins
Fontes, 2011.
FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade. 11 ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2003.
_____. Conscientização: teoria e prática da libertação – uma
introdução ao pensamento de Paulo Freire. 4. ed. São Paulo: Cortez &
Moraes, 1980.
_____. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1967.
_____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. 52 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
_____.Pedagogia do oprimido. 60 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

155
GADOTTI, M. Convite à leitura de Paulo Freire. São Paulo: Scipione,
1999.
GARCIA, R. A. A Didática magna: uma obra percussora da pedagogia
moderna? RevistaHISTEDBR On-line, Campinas, n. 60, p. 313-23, dez.
2014.
GASPARIN, J. L. Comênio: a emergência da modernidade na educação.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
PIAGET, J. Jan Amos Comênio. Recife: Fundação Joaquim Nabuco;
Massangana, 2010.
SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4. ed. Campinas,
SP: Autores Associados, 2013.
SCOCUGLIA, A. C. A história das ideias pedagógicas de Paulo Freire e
a atual crise de paradigmas. João Pessoa: Editora Universitária UFPB,
1999.
STRECK, D. Fontes da Pedagogia latino-americana: uma antologia. In:
_____ (Org.). Paulo Freire e a consolidação do pensamento
pedagógico na América Latina. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

156
FREIRE E VIGOTSKI: DIÁLOGOS SOBRE EDUCAÇÃO

Ana Paula de Medeiros Ferreira

Refletir sobre educação em uma perspectiva emancipadora em


tempos de golpe político e sob ameaças de intervenção militar torna-
se um ato de subversão na sociedade brasileira na atual conjuntura.
Este artigo pretende elucidar a importância dos escritos de dois
dos mais subversivos autores da história moderna, um da Rússia, outro
do Brasil, ambos desafiando todas as regras sociais, de opressão e
subjugação humana: Vigotski e Paulo Freire.
Ambas as teorias foram construídas em tempos e contextos
distintos, realidades e culturas distintas, no entanto, carregam algo em
comum: o compromisso com a educação. Além do mais, são duas
teorias críticas, ancoradas no materialismo histórico-dialético (ALVES,
2012) e numa concepção ética no que tange a constituição humana.
Como aporte teórico para a construção deste artigo, utilizaremos,
além das próprias obras de Freire e Vigotski, o livro de Solange Maria
Alves, publicado no ano de 2012, ''Freire e Vigotski: um diálogo entre a
pedagogia freiriana e a psicologia histórico-cultural''.
De acordo com Caruso (2007) na introdução histórica do livro
''Pensamiento y habla'', o redescobrimento da obra de Lev Vigotski
desde a década de 1980, significa uma revalorização de uma produção
intelectual no campo da educação e da psicologia.
Vigotski, nasceu e cresceu na Rússia, num contexto de Revolução
e busca por um homem novo para um mundo novo. Caruso (2007),
coloca que Vigotski cresceu em meio às mudanças sociais
desencadeadas na revolução, transformando, também, a educação do
país.

Lev Vigotski creció en ese momento de divisoria de aguas y de creciente


descontento liberal en la ciudad de Gomel, en lo que hoy es la república de
Bielorrusia . Gomel era una ciudad periferica, cerca de las fronteras con
Rusia y Ucrania misma. [...]Los Vigotski pertenencían a la numerosa
comunidad judía de la ciudad . Su padre, un empleado bancario con
estudios superioresm pertenecía a la floreciente burguesía judía local. Su

157
madre, una docente que lo sobrevivió un año, era una políglota de sólida
formación cultural (CARUSO apud Vigotski, 2007, p. 13).

Lev Vigotski termina seus estudos na efervescência da Revolução


de 1917. Nomes como Lênin e Krupskaia, trabalhavam na construção
de uma nova sociedade e de uma nova escola, baseada em uma
Pedagogia condizente com a revolução cultural que acontecia naquele
período, buscavam uma educação social.

Los teóricos de la educación social imaginaban una sociedad de pequeñas


comunidades y ponían un énfasis considerable en la vida campesina. La
educación era de por sí educación social y, aunque las posiciones de
reinvindicación de la individualidad no faltaban, se veía una posible
concordancia entre las individualidades y los conceptos de colectividad
(CARUSO apud Vigotski, 2007, p. 29).

Foi neste contexto, que segundo o autor, Vigotski, deu seus


primeiros passos na psicologia, como educador e militante político,
escrevendo importantes obras como Psicologia da Arte, na qual
afirmava que o conceito de educação deveria ser ampliado (CARUSO,
2007).
Do outro lado do mundo, um século depois, nascia Paulo Reglus
Neves Freire, no ano de 1921, na cidade de Recife. Assim como Vigotski,
Freire também foi alfabetizado pela mãe, dona Edeltrudes Neves
Freire.

Quando relembrava de sua infância, dizia: “Eu aprendi a ler na sombra


da mangueira no quintal dessa casa, meus pais, sobretudo minha mãe;
ela pegava os pequenos gravetos, e escrevia palavras, escrevia frases de
minha vida cotidiana, daquilo que eu estava presenciando, que eu estava
vivendo”. Dessa maneira aprendeu, já na infância, que a vida deve ser
tratada na sua concretude, que o ato de educar vem da solidez da
própria vida (FREIRE, 2017, p. 3).

Paulo Freire, mesmo com todas as dificuldades de uma infância


pobre, conseguiu formar-se advogado no ano de 1947, tendo apenas
uma única causa no exercício dessa profissão, segundo Ana Maria
Freire, sua segunda esposa,

158
Sua primeira e única causa era a seguinte: Um credor pedia para
confiscar todos os instrumentos de um dentista que devia aluguel há
meses da sala onde ele atendia como dentista. Paulo Freire ao saber
daquilo se sentiu constrangido e foi conversar com o dentista, que lhe
diz: “Doutor não faça isso, se o senhor me tira os instrumentos como é
que eu vou trabalhar se o que eu ganho mal dá para sustentar minha
mulher e meu três filhos, eu não estou podendo pagar o aluguel, não que
eu não seja sério, é que eu não posso. Se o senhor me tira os aparelhos
o que é que vai ser da minha vida, como é que eu vou chegar em casa e
dizer para minha mulher que eu não tenho mais como trabalhar?”.
Diante desta situação, Paulo Freire respondeu: “Fique sossegado, vai
aparecer outro advogado aí”. Foi embora, ao chegar no escritório, disse:
“Eu não vou ser mais advogado coisa nenhuma, eu vou embora para
casa!” (FREIRE, 2017, p. 6).

Paulo Freire teve seu primeiro contato com a alfabetização de


adultos quando foi trabalhar no Serviço Social da Indústria - SESI, no
ano de 1947.

Este trabalho, pode-se assim dizer, será a “semente” do grande


“Pensamento Pedagógico de Paulo Freire”, pois é nesse momento que
ele vai ter contato com o povo, que ele vai escutar o povo, valorizar e
compor sua Teoria do Conhecimento (FREIRE, 2017, p. 7).

Tornou-se doutor em 1959, lecionando de 1960 a 1964. Quando


ocorreu o golpe militar foi aposentado aos 42 anos de idade. Neste
período, suas ideias eram consideradas subversivas e uma ameaça aos
ideais militares, dessa forma, foi exilado. “Tive três exílios que me
fizeram sofrer, o exílio de sair do útero de minha mãe, o exílio de ter
ido para Jaboatão e o exílio político que me fez ficar dezesseis anos
fora do País” (FREIRE, 2017, p. 6).
A maior contribuição de Paulo Freire para a educação talvez tenha
sido o seu olhar sensível às causas sociais e a importância que deu a
uma educação que surgisse da realidade dos educandos e
vislumbrasse a superação da opressão e uma transformação social.
''Vigotski e Freire são diferentes, uma vez que vivem contextos
sociais e políticos diferentes e olham o desenvolvimento humano a
partir de lugares teóricos distintos'' (ALVES, 2012, p. 71). No entanto, o
que os aproxima, é o compromisso social em seus determinados

159
tempos e lugares, e seus esforços e comprometimentos com a
educação, com o desenvolvimento humano e com as injustiças sociais.

Os encontros teóricos entre Freire e Vigotski

Para a construção de uma prática pedagógica emancipadora, de


acordo com a teoria de Freire, é preciso uma educação para além da
escola, acolhendo a comunidade e tendo o conhecimento como
ferramenta de libertação. Para Freire (1989, p.28) ''O homem deve ser
o sujeito de sua própria educação. Não pode ser o objeto dela. Por isso,
ninguém educa ninguém''.

Quando o homem compreende sua realidade, pode levantar hipóteses


sobre o desafio dessa realidade e procurar soluções. Assim, pode
transformá-la e com seu trabalho, pode criar um mundo próprio (FREIRE,
1989, p. 30).

Neste contexto, a fala tem grande importância, pois é o lócus de


ação para a prática pedagógica, lugar de onde emergem diferentes
interpretações da realidade. Dessa forma, para a construção de novas
bases para a educação como ferramenta de libertação, é importante
dar voz às pessoas.
Para Vigotski (2007) a fala tem papel importante nos processos
educativos, pois é um signo de transmissão dos conhecimentos. A fala
possibilita o compartilhamento de idéias, de experiências e de histórias
de vida. ''La función primaria del habla, tanto en los adultos como en el
niño, es la de comunicación, de vinculación social, de influencia sobre las
personas circundantes'' (VIGOTSKI, 2007, p. 74). Para o autor, a fala tem
o papel de organizar o pensamento e é um meio de comunicação
social, de expressão e de compreensão. A fala humana surge como
uma necessidade de comunicação em meio aos processos de trabalho.
Para Freire (2005), a palavra tem uma força transformadora, no
entanto, na educação bancária, a mesma assume o único papel de
som, se eximindo de sua prática política.

A interpretação de falas como manifestações vivas e conteúdo histórico,


cultural e ideológico da concreticidade humana (como quer Freire) não
cabe em concepções pautadas na meritocracia individual, na passividade
do ser humano compreendido como um acumulado de reflexos, de

160
estímulos e respostas ou marcado pelo destino absoluto de suas
condições físicas e/ou espirituais. Ao contrário, o exercício de interpretar
falas como manifestações de um sujeito humano concreto, que vive,
sente e significa a experiência histórica nas condições de vida real em
que se encontra, requer outros parâmetros teóricos (ALVES, 2012, p. 17).

Como novos parâmetros teóricos que forneçam aporte para uma


nova concepção de interpretação da realidade, aponta-se a teoria
histórico-cultural de Vigotski, para a qual, o ser humano é constituído
pelas suas relações socioculturais.
As relações socioculturais, pelas quais encontram-se atrelada a
constituição humana, de acordo com Alves (2012), é o resultado de um
longo processo histórico marcado fundamentalmente pela invenção e
pelo uso de instrumentos técnicos utilizados para o trabalho -
atividade vital humana - e pela linguagem, fruto da necessidade de
comunicação e intercâmbio entre os homens.

Assim, podemos dizer que o ser humano é síntese de um processo


complexo e relações sociais desde a sua origem. E compreender o
pensamento e o comportamento humano implica compreender os
processos sociais constitutivos desse pensamento e/ou
comportamento. Pensamento que, na concepção de Paulo Freire,
manifesta-se da palavra, cujo conteúdo é analisado e transformado em
conteúdo mediado de novas interpretações acerca da realidade vivida,
pelos sujeitos (ALVES, 2012, p. 19).

Neste contexto podemos compreender as proximidades entre


ambas as teorias. Para Freire, nos tornamos humanos na relação
Homem-Mundo, na sua interação com a realidade. Para Vigotski, a
humanização acontece na cultura, na apropriação histórica de
artefatos e símbolos presentes no meio cultural.
Segundo Alves (2012), Paulo Freire defende que a organização da
práxis pedagógica libertadora só se efetiva observando-se a
manifestação do mundo pela palavra pronunciada por sujeitos
humanos. Considera a ação educativa como ação de tomada de
consciência. O processo pedagógico deve exercitar essa tomada de
consciência do mundo.
Da mesma forma, Vigotski defende o papel de auto-regulação que
a cultura pode desenvolver nos sujeitos. Esta auto-regulação seria, de

161
acordo com Alves (2012), uma tomada de consciência de seu próprio
funcionamento psicológico.

Essas observações sinalizam para um diálogo entre as teses freireanas


acerca da consciência e da conscientização e as formas culturais de
pensamento, cuja compreensão exige situar o homem em termos sócio-
historicos? Não abriria espaço de diálogo com uma psicologia que
concebe a consciência como um reflexo psíquico cuja gênese só pode
encontrar na vida, na atividade do sujeito inserido, numa dada realidade
sócio-histórica e cuja realização traduz um movimento de deslocamento
do sujeito em relação aos processos sociais e culturais vivenciados? E,
ainda, porque afirma que a elevação da consciência como resultado do
trabalho pedagógico escolar só se efetiva pela mediação de conteúdos
fortemente articulados com a realidade vivida e significada pelo sujeito,
possibilitaria uma aproximação forte com a ideia de elaboração
conceitual tal como proposta por Vigotski? (ALVES, 2012, p. 30).

Para Vigotski (2001), a educação ''é a influência premeditada,


organizada e prolongada no desenvolvimento de um organismo''
(VIGOTSKI, 2001, p. 37).

Já vimos que o único educador capaz de formar novas reações no


organismo é a própria experiência. Para o organismo, só é real o vínculo
que ocorreu em sua experiência pessoal. Por isso, a experiência pessoal
do educando transforma-se na principal base do trabalho pedagógico. A
rigor, do ponto de vista científico, não se pode educar a outrem
[diretamente]. Não é possível exercer uma influência direta e produzir
mudanças em um organismo alheio, só é possível educar a si mesmo, isto
é modificar as reações inatas através da própria experiência (VIGOSTSKI,
2001, p. 75)

Dessa forma, a educação não se encontra restrita apenas aos


espaços formais, ela acontece também em outros meios sociais da vida
cotidiana. Para o autor, ''Nossos movimentos são nossos professores''
(VIGOSTSKI, 2003, p. 75). Com essa afirmação, Vigotski (2003) rompe
com algumas ideias no campo da educação, como por exemplo, a de
que o professor deve ser o centro do processo educativo, concepção
que ainda encontra-se arraigada em nosso sistema educacional formal.
Menosprezar as experiências pessoais dos alunos é um grande erro, de
acordo com o autor. Para ele, a ideia de passividade do estudante nos

162
processos educativos deve ser ultrapassada, pois em sua base, deve
estar em primeiro lugar, a atividade pessoal do mesmo e a função do
educador seria a de orientar e regular essa atividade, direcionando
seus movimentos.
Na escola, na maioria das vezes, não há aplicabilidade prática do
que é aprendido, não tem sentido para os alunos, pois os conteúdos
são vazios de significado. De acordo com Vigotski (2007) há mil
caminhos para o ensino de uma pessoa sem que seja baseado apenas
no aprendizado mecânico e na memorização ou em uma concepção
bancária, como bem destacou Freire.

Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem-


comportado, quando não falar ou dissertar sobre algo completamente
alheio à experiência existencial dos educandos vem sendo, realmente, a
suprema inquietação desta educação. A sua irrefreada ânsia. Nela, o
educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito,
cuja tarefa indeclinável é ''encher'' os educandos dos conteúdos de sua
narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da
totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação
(FREIRE, 2005, p. 65, grifos nossos).

Na concepção do autor, nessa educação bancária, na qual os


professores são os depositantes e os educandos os depositários, não
há conhecimento, mas sim, memorização e arquivamento de
informações em arquivos humanos ''Arquivados, porque, fora da
busca, fora da práxis, os homens não podem ser'' (Freire, 2005, p. 66).
Na educação bancária o educador sabe tudo e o educando não sabe
nada.

A questão está em que pensar autenticamente é perigoso. O


estranhamento humanismo desta concepção ''bancária'' se reduz à
tentativa de fazer dos homens o seu contrário - o autômato, que é a
negação de sua ontológica vocação de ser mais (FREIRE, 2005, p. 70).

A educação tem o papel, de orientar no sentido da busca pela


humanização, levando à luta pela libertação da opressão decorrente
de uma educação bancária. Ao educador cabe acreditar no poder
criador humano, rompendo com a dicotomia homem-mundo, na qual
o homem é um expectador e não um recriador (FREIRE, 2005).

163
De acordo com Alves (2012), tanto Vigotski quanto Freire,
destacaram em seus escritos a importância do coletivo na
internalização de uma consciência individual.

A ideia de que as formas individuais de consciência têm origem na


apropriação de formas coletivas de atividade não é a única que aproxima
esses dois pensadores nas bases do materialismo histórico-dialético.
Vigotski e Freire compartilham também a crença de que o
funcionamento intelectual humano se forma e se transforma mediante
a apropriação ativa do sujeito em situação de interação, de troca, de
convívio, de atividade coletiva, e o faz mais e melhor à medida que a
atividade coletiva de reflexão estiver vinculada às práticas sociais dos
sujeitos. Ambos comungam ainda a concepção de que o funcionamento
mental ou cognoscitivo encontra seus fundamentos na história cultural
(ALVES, 2012, p. 75).

Para a autora, a censura com relação às obras dos autores é mais


um ponto de encontro entre ambos. Por defender uma transformação
da escola, como espaço de diálogo e cultura, no qual seu ponto de
partida sejam as experiências de vida, chamaram para si a atenção de
setores da sociedade que viam tais posturas como subversivas.
Ambos os autores, contrariando concepções modernas de Ser
Humano, que pregam uma individualidade, trazem a importância do
coletivo para a constituição de consciências individuais.

O Homem como tal é produto e processo desse movimento que articula


trabalho como atividade vital, coletiva e criadora. Criadora, porque cria
no homem novas e mais sofisticadas habilidades intelectuais que, por
sua vez, se aprimoram pelo desenvolvimento da linguagem decorrente
da atividade vital e coletiva. A atividade vital - trabalho - é também ação
transformadora, é uma ação pensada, uma ação consciente. A
consciência é, pois, fruto das relações concretas travadas por seres
humanos concretos em situações de vida reais (ALVES, 2012, p. 78)

Para Vigotski, por ser ato de criação, o trabalho e a linguagem


constituem um importante fundamento para o desenvolvimento das
funções psicológicas superiores. Já, na concepção de Freire, só o
homem como ser que trabalha e que tem um pensamento - linguagem
cuja gênese é social - se fez um ser da práxis, um ser de relações num
mundo de relações (Alves, 2012).

164
De acordo com a autora, a categoria trabalho é um dos alicerces
para a perspectiva histórico-cultural, pois é através das práticas
laborais que emergem no homem o que o diferencia de outras
espécies, é o que o humaniza. As funções psicológicas, tem sua origem
nas relações sociais em meio ao trabalho. Dessa forma, a atividade
laboral assume a função de elemento ontológico, através do qual
nasce e se desenvolve em cada indivíduo a humanidade (Alves, 2012).
Paulo Freire destacou em suas reflexões a humanização, a
importância do tornar-se consciente de sua historicidade, também,

A concepção e a prática ''bancárias'', ''imobilistas'', ''fixistas'', terminam


por desconhecer os homens como seres históricos, enquanto, a
problematizodora parte exatamente do caráter histórico e da
historicidade dos homens. Por isso mesmo é que os reconhece como
seres estão sendo, como seres inacabados, inconclusos, em e com uma
realidade que, sendo histórica também, é igualmente inacabada. Na
verdade, diferentemente dos outros animais que são apenas
inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Aí
se encontram as raízes da educação mesmo, como manifestação
exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens, e na
consciência que dela tem. Daí, que seja a educação um quefazer
permanente. Permanente, na razão da inconclusão dos homens e do
devenir da realidade (FREIRE, 2005, p. 84).

Temos, portanto, dois teóricos distintos, em tempos e espaços


distintos, mas com uma utopia comum: ''fazer da práxis humana, uma
práxis crítica e transformadora'' (ALVES, 2012, p. 55). Uma práxis para
a construção de uma relação mais justa e democrática (Alves, 2012).

Se de um lado, tenho um Paulo Freire que é a um só tempo pessoa,


educador e político de outro, na arquitetura da psicologia histórico-
cultural, encontro um Vigotski empenhado na construção de uma
psicologia do homem concreto. Um psicólogo comprometido com a
vivência plena das condições político-sociais e culturais de uma
sociedade pós-revolucionária, focada na tensão gerada pela necessidade
de consolidar a revolução socialista de 1917. Mas também ele
profundamente atento ao debate e ao processo de produção da ciência
de seu tempo (ALVES, 2012, p. 62).

165
Os dois autores, em seus escritos, tornam evidente o caráter
revolucionário de suas concepções educativas, reivindicando uma
educação escolar como lócus da apropriação de saberes, que em sua
relação com o mundo, impulsiona ações transformadoras.
Este artigo teve como objetivo trazer algumas considerações
acerca do pensamento de dois importantes estudiosos que pensaram
uma educação transformadora. O intuito é que essas reflexões se
multipliquem, no sentido de contribuir como uma educação para a
liberdade. A partir do encontro entre Freire e Vigotski é possível a
construção de uma prática pedagógica mais comprometida com a
realidade social.
Concordamos com Alves (2012), quando esta afirma que ambas as
teorias não são deterministas, pois consideram o desenvolvimento
humano mediante a reconstrução da cultura, ou seja, cada pessoa
aprende e se desenvolve de forma única.
Esperamos que estes dois autores continuem a inspirar uma
educação comprometida com a justiça social, que tenha seus
conteúdos relacionados à realidade de seus educandos e que
contribua para a constituição de sujeitos transformadores, que se
apropriem da realidade circundante e de mecanismos para agir nessa
realidade, considerando o ser humano como sujeito ativo.
Que as reflexões não se encerrem aqui!

Referências

ALVES, M. S. FREIRE E VIGOTSKI: um diálogo entre a pedagogia


freireana e a psicologia histórico-cultural. Chapecó: Argos, 2012.
CARUSO, M. Introducción histórica. In: VIGOTSKI, L. Pensamiento y
habla. Buenos Aires: Colihue, 2007.
FREIRE, A. M. A. PAULO FREIRE: sua vida, sua obra. In: Educação e
Revista. v. 2, 2007.
FREIRE, P. Educação e mudança. São Paulo: Paz e Terra, 1989
_______. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
_______. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
VIGOTSKI, L. Pensamiento y habla. Buenos Aires: Colihue, 2007.
_______. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003.

166
PRÁTICAS DE LETRAMENTO DE ALUNOS DA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS NO CONTEXTO DA COMUNIDADE

Edinei Carvalho dos Santos

De acordo com algumas estatísticas referentes à educação no


Brasil, a taxa de analfabetismo da população adulta vem diminuindo
gradativamente. Porém, a educação é parte de um processo histórico
e varia conforme os ideais de cada época e espaços socioculturais.
Assim, se antes o problema era apenas uma questão de alfabetização,
ou seja, de ensinar e aprender a ler e a escrever ou de saber codificar e
decodificar um código escrito, hoje surge um novo desafio para os
educadores: alfabetizar no contexto de práticas de letramento.
Essa necessidade surgiu, sobretudo, porque vivemos hoje em
uma sociedade grafocêntrica, que se estrutura fundamentalmente em
torno da escrita. Estamos em constante contato com diversos tipos de
textos escritos, com diferentes funções e usos, em ambientes também
diversificados. Saber identificar as informações presentes nesses
textos, às vezes, pode se tornar uma tarefa complexa, principalmente,
para indivíduos que estão imersos em uma cultura
predominantemente oral, levando-os, consequentemente, a serem
vítimas de exclusão, marginalização, preconceitos e subjugação, seja
pelas questões de poder presentes na linguagem escrita, seja pela falta
de acesso a essa tecnologia (SANTOS, 2014).
Diante disso, o principal desafio dos professores alfabetizadores,
sobretudo, aqueles que trabalham na Educação de Jovens e Adultos
(EJA), é encontrar um meio para alfabetizar letrando, levando-se em
conta os múltiplos letramentos da vida social e as práticas de
letramentos a eles subjacentes. Nesse contexto, é preciso refletir
sobre o processo de alfabetização nas escolas e procurar meios para
solucionar os problemas que abarcam a educação brasileira,
principalmente, a educação de indivíduos que, embora formalmente
alfabetizados, não conseguem ler, refletir e solucionar pequenos
problemas através da escrita. Nesse contexto, conhecer as práticas de
letramento de alunos desse segmento escolar é uma ação
fundamental para subsidiar a reorganização do processo pedagógico,

167
bem como para a promoção de novas práticas sociais letradas no
contexto da EJA.
Levando em consideração essa realidade social, esta pesquisa, de
caráter qualitativo, foi conduzida no segundo segmento da EJA da
rede pública do Distrito Federal (DF), em escola situada no centro de
Taguatinga – DF, e teve como objetivo principal investigar as práticas
de letramento ou, em outros sentidos, as percepções sociais e culturais
que alunos desse segmento atribuíam ao ato de ler e escrever. Em
outras palavras, como eles percebiam a importância das práticas
sociais letradas em sua comunidade de prática.

Práticas de Letramento no Contexto da Educação de Jovens e Adultos

Ao abordar a Educação de Jovens e Adultos no Brasil, uma


primeira consideração que deve ser feita é sobre a função social da
escola. Por muito tempo, a escola foi considerada uma instituição da
classe dominante, ou seja, uma instituição que conservava a função de
reprodução por meio do ensino, sem considerar em sua atividade o
conhecimento enciclopédico ou experiências letradas dos(as)
alunos(as). Essa concepção tradicional de escola nos remete ao
conceito de educação bancária problematizada por Freire (2011).
Uma educação bancária, segundo o pensamento freiriano, é uma
educação responsável pelo depósito de conteúdos nos alunos, em
suma, uma forma de ação que leva à opressão e ao silenciamento dos
educandos, uma vez que considera o(a) aluno(a) como objeto e não
como sujeito de conhecimento. Em oposição à lógica bancária de
educação, Freire propõe uma educação transformadora. Nessa visão,
a educação é compreendida de forma mais ampla, ou seja, como uma
ação dialógica, problematizadora, crítica e reflexiva. Ao defender uma
educação transformadora, Freire tem consciência de que somente um
conceito de educação tomado em um sentido mais amplo, associado
com a prática de liberdade e a conscientização política, levará os(as)
alunos(as) a se posicionarem como sujeitos de aprendizagem e como
agentes de transformação social.
Concorda-se com Freire e acrescenta-se que uma educação
tomada em um sentido mais amplo também deve assumir como ponto
de partida as percepções dos(as) alunos(as) sobre as práticas de
letramento que circulam na sociedade. Estudos em torno da

168
alfabetização, da leitura e da escrita (Cf. ASSOLI E TFOUNI, 1999),
mostram como o enfoque de letramento tem consequências e
implicações diretas para o processo de ensino-aprendizagem.
Nesses termos, as formas de se conceber letramento na cultura
escolar podem estar associadas tanto a uma concepção autônoma -
aquela que se aproxima do conceito de alfabetização, restrita ao
ensino do código linguístico-alfabético ou de um conjunto de
habilidades e de competências individuais, deslocadas, quase sempre,
de um contexto de cultura - quanto a uma concepção ideológica,
social, discursiva, política e cultural da leitura e da escrita (Cf. SOARES;
2004; ROJO, 2009; SANTOS, 2014).
Nesse sentido, compreende-se que os estudos sobre a
alfabetização e o letramento, desenvolvidos sob as várias perspectivas
de análise: histórica, antropológica, pedagógica e linguística,
sobretudo, do ponto de vista da prática social e examinados sob as
diversas concepções, representam um poderoso campo de
conhecimento que poderá dá sustentação à prática pedagógica do
professor da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no seu trabalho de
desenvolvimento da leitura e da escrita. Além disso, tais estudos
podem auxiliar o professor na promoção contínua e diária dos
múltiplos letramentos, principalmente, com grupos sociais
historicamente fragilizados, levando-os a fazerem uso-reflexão-uso da
linguagem, a contestar as relações de poder presentes na linguagem,
bem como a lutar por mudança social (SANTOS, 2014).
Seguindo essa linha, um dos conceitos centrais nos estudos de
letramento e alfabetização - e fundamental para a análise que será
apresentada -, é o conceito de práticas de letramento. Estas, conforme
define Street (2012, p.77), referem-se a uma “concepção cultural mais
ampla de modos particulares de pensar sobre a leitura e a escrita e de
realizá-las em contextos culturais”. Essa definição enfoca a dimensão
social da leitura e da escrita, além de reforçar os significados das práticas
sociais letradas desempenhadas em diferentes contextos. Em outras
palavras, faz deslocar a noção monolítica e individual do letramento para
a heterogeneidade das práticas letradas vivenciadas em diferentes
contextos socioculturais e institucionais. Tal concepção, nesse sentido,
além de destacar os múltiplos letramentos inscritos nos diferentes
domínios da vida social, também destaca a presença de identidades,
ideologias e estruturas de poder presentes nas práticas sociais.

169
De acordo com Goulart (2012, p. 63), entende-se práticas sociais
como “atividades realizadas pelo conjunto ou por grupos de pessoas
da sociedade para se desempenharem em diferentes esferas da vida:
doméstica, cotidiana, escolar, profissional, de lazer, religiosa, entre
outras”. Conforme destaca Santos (2014), essas práticas, processadas
em diferentes esferas discursivas, materializam-se por meio de
eventos de letramentos, isto é, por meio de atividades heterogêneas
mediadas pelos textos escritos, em situações de uso da escrita
variáveis conforme as demandas sociais e, também, segundo os
diferentes modos e propósitos de utilização da língua, atividades
moldadas pelas práticas de letramento ou sentidos e significados
culturais atribuídos a esses eventos.
Com isso, pode-se afirmar que cada contexto social e cultural
apresenta práticas particulares de leitura e escrita, de uso da língua, de
comportamento linguísticos e discursivos. Essas práticas estão
relacionadas a uma pluralidade de textos, com diferentes finalidades e
propósitos, produtores e interlocutores que desempenham um conjunto
de atividades ou situações que demandam a utilização de diferentes
gêneros textuais/discursivos. Isso evidencia que não há uma única forma
de utilização da língua, o que há são práticas de letramento e eventos de
letramento, cuja natureza e significados precisam ser especificados e
desvelados em cada contexto sócio-histórico onde as práticas sociais de
uso da leitura e da escrita figuram (SANTOS, 2014).
As características das práticas de letramento aqui delineadas são
fundamentais para compreender os usos e significados da leitura e da
escrita em contextos situacionais específicos, e, sobretudo, entender
a natureza plural e multifacetada do letramento, principalmente por
meio de uma visão crítica e socialmente orientada desse fenômeno.
Partindo dessas considerações, na sequência, apresentamos práticas
de letramento no contexto da Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Os significados multifacetados da leitura e escrita no contexto da EJA

Nessa seção, apresentamos as percepções1 de alunos da


Educação de Jovens e Adultos (EJA) sobre as funções e os usos da

1Tais percepções resultaram da aplicação de um questionário (com questões abertas)


aos sujeitos colaboradores. O objetivo do questionário foi retratar as expectativas dos
alunos sobre suas práticas sociais letradas.

170
leitura e da escrita. Como dito anteriormente, o presente estudo foi
conduzido com alunos(as) do segundo segmento da EJA da rede
pública de ensino do Distrito Federal (DF), em escola situada no centro
de Taguatinga – DF.
A pesquisa teve como objetivo investigar práticas de letramento
de alunos(as) desse contexto de ensino. Na sequência, no quadro 1,
apresentamos as principais falas dos sujeitos colaboradores que
evidenciam suas diferentes práticas de letramento ou concepções
sociais sobre a leitura e escrita.

QUADRO 1: PERCEPÇÕES SOBRE OS SIGNIFICADOS DA LEITURA E DA


ESCRITA
CATEGORIAS Nº EXCERTO
PROCESSO DE 1 ESCRITA: “A escrita serve para que eu tenha
PROFISSIONALIZAÇÃO um bom desenvolvimento na hora de
escrever e também até no momento de
arrumar um emprego”.
LEITURA: “A leitura tem várias
importâncias, mas para mim, ela tem muito
mais do que uma simples importância, ela
faz parte do que eu vou seguir no futuro,
que é ser advogado”.
PROCESSODE 2 ESCRITA: “A escrita é importante para mim
CODIFICAÇÃO para melhorar a nossa grafia ou caligrafia, a
letra. Escrever bastante melhora a nossa
escrita”.
PROCESSO 3 ESCRITA: “Ela nos ajuda a expressar nossa
INTERACIONAL opinião. É bom utilizá-la para nos comunicar
com as pessoas”.
LEITURA: “É importante para aprimorar a
forma de expressar e falar”.
4 LEITURA: “A leitura inicia um contato com
PRÁTICA DISCURSIVA um universo desconhecido onde te evolui
como ser humano, como pessoa na
sociedade. E tem que ser utilizada para ver
o mundo de outras formas e poder
questionar e, assim, evoluir como pessoa”.
5 ESCRITA: “É importante para o
PRÁTICA COGNITIVA desenvolvimento intelectual e exercitar o
cérebro”.

171
LEITURA: “Ao praticarmos a leitura,
estamos trazendo conhecimento para nós
mesmos. Ao lermos, estamos trabalhando
nossa mente”.
PRÁTICA SOCIAL 6 ESCRITA: “É importante porque quanto
mais escrevo, mais vou me aperfeiçoando,
consigo utilizá-la melhor em cartas, e-mails
e outras”.
LEITURA: “Ler é viajar dentro de uma
história, de um noticiário, um poema, um
conto. Para estar mais atualizado de tudo a
minha volta”.
Fonte: Elaborado pelo autor.

Ao analisar o quadro acima, percebe-se, pelos excertos, que os


alunos dessa modalidade de ensino atribuem grande importância ao
ato de ler e escrever de forma proficiente, seja para lidar com desafios
diários da vida cotidiana, seja para lidar com atividades que envolvem
estritamente o conhecimento e apropriação de um sistema escrito-
alfabético. Observa-se que os sujeitos participantes, de modo
particular, atribuem significados e funções variadas ao ato de ler e
escrever, isto é, às suas práticas de letramento, as quais podem ser
distribuídas nas seguintes categorias de análise: leitura e escrita como:
1) processo de profissionalização; 2) processo decodificação; 3)
processo interacional; 4) prática discursiva; 5) prática cognitiva; 6) e
prática social, analisadas na sequência.
No excerto 1, por exemplo, o(a) aluno(a) associa a leitura e a
escrita à possibilidade de acessão profissional ou ao acesso à
empregabilidade: “A escrita serve para que eu tenha um bom
desenvolvimento na hora de escrever e também até no momento de
arrumar um emprego”, “A leitura tem várias importâncias, mas para
mim, ela tem muito mais do que uma simples importância, ela faz parte
do que eu vou seguir no futuro, que é ser advogado”. Como sabemos, o
letramento não é garantia direta de mudança ou ascensão social, uma
vez que diversos fatores de ordem sociocultural também estão
envolvidos nesse processo. Porém, não podemos negar que, em
contextos urbanos e industrializados, o letramento desempenha um
papel fundamental no processo de execução de diversas atividades
que envolvem a leitura e a escrita, inclusive aquelas atividades
burocráticas e rotineiras demandadas pelo mercado de trabalho

172
(escrever e-mail ou relatórios, preencher currículos, formulários,
planilhas, etc.). Nesse sentido, o professor da EJA, ao ter consciência
dessas percepções, deve levar em consideração as aspirações
profissionais dos alunos, bem como promover, de forma contínua,
práticas de leitura e escrita condizentes com uma realidade social cada
vez mais tecnológica e letrada.
Outro exemplo bastante significativo é o apresentado pelo(a)
aluno(a) no excerto 2: “A escrita é importante para mim para melhorar
a nossa grafia ou caligrafia, a letra. Escrever bastante melhora a nossa
escrita”. Nesse trecho,o(a) aluno(a) associa a escrita a uma mera
identificação ou domínio de um código linguístico, em outros termos,
à codificação da palavra escrita. Aqui, é preciso ressaltar uma
constatação importante: na sociedade contemporânea, não basta
alfabetizar, isto é, ensinar apenas o código linguístico-alfabético. Pelo
contrário, é preciso letrar, ou seja, introduzir os educandos em
diferentes práticas sociais de letramento. Ressaltamos que a escrita
entendida como mero ato de decodificar é bastante restrita. No
processo de escrever como decodificação, o foco está na identificação
de códigos linguísticos e informações expressas nos textos. Nesse
sentido, leitura e escrita são compreendidas como meras habilidades
decorrentes do aprendizado escolar, mais especificamente, são
entendidas como um conjunto de competências ou habilidades
restritas ao processo de alfabetização. Como ressaltam Leal,
Albuquerque e Morais (2010, P. 25), no contexto da EJA, “precisamos
construir práticas de alfabetização que contemplem tanto a leitura e a
produção de textos, como a aprendizagem do sistema de escrita
alfabética”.
Dando continuidade à análise, no excerto 3, o(a) aluno(a)
entende que fazer uso da língua(gem) vai além da apropriação de um
código estritamente linguístico, associando o letramento à interação
e destacando a importância da leitura e da escrita no processo
sociocomunicativo:“Ela nos ajuda a expressar nossa opinião. É bom
utilizá-la para nos comunicar com as pessoas”, “É importante para
aprimorar a forma de expressar e falar”. Sobre o assunto, Arcoverde e
Arcoverde (2007, p. 39) destacam que na leitura (e na escrita), em uma
perspectiva interacional, “o significado nem está centrado no texto,
nem tampouco no leitor. O leitor nessa concepção aciona

173
conhecimentos prévios, fazendo interação entre seus conhecimentos
linguísticos, textuais e sociais”.
Nesse sentido, entendemos que o professor, ao atuar como
agente de letramento, deve assumir uma postura mais dialógica,
respeitando os conhecimentos e as experiências letradas vivenciadas
na prática interacional. Freire (2011), ao refletir sobre a prática
docente, chama a atenção para a necessidade de extrapolarmos os
conteúdos cristalizados, estandardizados. Destaca ainda a importância
de considerarmos os saberes e conhecimento construídos pelos
alunos, ou seja, considerar a sua leitura de mundo, construída e
reconstruída dentro de sua comunidade de prática. Isso representa,
como bem lembra Freire, uma preocupação do educador com a
história de vida dos educandos - fator fundamental para uma educação
que se pretende dialógica, transformadora, progressista e libertária.
Assumir uma postura dialógica e interacionista em sala de aula,
bem como levar em consideração as experiências letradas dos(as)
aluno(as), em nosso entendimento, vai ao encontro do conceito de
Pedagogia Culturalmente Sensível (PCS), um modo de educar que
compreende as experiências e as vivências que o outro traz consigo,
que permite que ele fale e se expresse no jogo discursivo da sala de
aula, ratificando-o como falante legítimo, isto é, um sujeito de
conhecimento (BORTTONI-RICARDO, 2005). Além do conceito de PCS,
compreendemos também que esse reconhecimento está em sintonia
com o conceito de amorosidade trazido por Reis (2000). Nós, alunos,
professores ou educadores, também somos seres de sentimento,
seres de solidariedade, que acolhe e é acolhido, que se sensibiliza com
a acolhida, com a escuta que recebe e com o saber que compartilha
com o outro. Da mesma forma, Freire defende uma educação baseada
no respeito, no diálogo, na compreensão, na troca de saberes,
condenando o conceito de escola como um local hermético, onde
imperam a dificuldade de comunicação, os conflitos e, principalmente,
o silenciamento dos educandos.
No enxerto 4, o(a) aluno(a) associa a leitura à prática discursiva,
que resulta na possibilidade de intervir no mundo, questionando sua
lógica de funcionamento quando for preciso: “A leitura inicia um
contato com um universo desconhecido onde te evolui como ser
humano, como pessoa na sociedade. E tem que ser utilizada para ver o
mundo de outras formas e poder questionar e, assim, evoluir como

174
pessoa”. Compreender a leitura como uma maneira discursiva de
intervir no mundo representa uma poderosa ferramenta para a
mudança social, principalmente no que diz respeito a práticas
educacionais que levam à opressão.
No livro Pedagogia do Oprimido, Freire (2011) levanta dois pares de
conceitos fundamentais para entendermos o funcionamento da
educação e sua relação com a opressão ou com a libertação: Educação
Bancária e Educação Problematizadora. O primeiro conceito está
relacionado à educação como forma de dominação, uma forma de
ensinar antidialógica, domesticadora e estritamente conservadora. Nesse
tipo de educação não é possível o diálogo, uma vez que o imperativo é a
passividade. Já o segundo conceito está relacionado à educação
entendida como prática transformadora e libertária ou como ação
dialógica, crítica, autônoma e revolucionária. Em síntese, em sua obra
seminal, Freire deixa uma importante mensagem a todos os educadores:
é preciso superar a forma contraditória de educação ainda vigente, aquela
que pretende educar, mas, ao mesmo tempo, oprime, segrega,
desqualifica e desconsidera o outro como sujeito de conhecimento,
produtor de cultura e agente de transformação social. Entendemos que,
ao assumir a leitura e escrita como práticas discursivas, o professor estará
contribuindo para esse processo de superação.
No exemplo 5, observamos as funções da escrita associada à
capacidade cognitiva. O(a) aluno(a) relata o seguinte: “É importante para
o desenvolvimento intelectual e exercitar o cérebro”, “Ao praticarmos a
leitura, estamos trazendo conhecimento para nós mesmos. Ao lermos,
estamos trabalhando nossa mente”. Lembramos que, em uma perspectiva
cognitiva, a leitura é definida como um processo de compreensão. Nesse
processo, o leitor mobiliza esquemas e habilidades mentais para ler e
buscar pista para a compreensão textual, bem como ativa repertórios de
conhecimentos acumulados com suas experiências pessoais. Nas
palavras de Arcoverde e Arcoverde (2007, p. 34), nessa perspectiva, a
leitura é compreendida como “uma construção de sentido, que envolve
um grande número de muitas habilidades mentais (percepção, memória,
inferências linguísticas, entre outras), que são necessárias para o
entendimento do que se lê”. Em outras palavras, a leitura representa uma
tarefa linguística que prioriza especialmente ação mental do leitor.
Finalmente, no exerto 6, o(a) aluno(a) associa a leitura e a escrita
à prática social e aos diferentes gêneros textuais que circulam

175
socialmente. “É importante porque quanto mais escrevo, mais vou me
aperfeiçoando, consigo utilizá-la melhor em cartas, e-mails e outras”,
“Ler é viajar dentro de uma história, de um noticiário, um poema, um
conto. Para estar mais atualizado de tudo a minha volta”. Essa forma de
interpretação revela que os alunos da EJA associam a leitura e a escrita,
isto é, as suas práticas sociais letradas a diferentes concepções de usos
sociais e não apenas à apropriação de um código alfabético.
Concordamos com Leal, Albuquerque e Morais (2010) quando afirmam
que os alunos da EJA, quando ingressam na escola, desejam
efetivamente ler e escrever para lerem e escreverem, de forma
proficiente, textos com os quais convivem. Desse modo, entendo que
aprender a ler e a escrever na perspectiva do letramento é um direito
que precisa ser assegurado a todos, já que ter acesso de forma
proficiente da cultura escrita constitui uma maneira privilegiada de
atuar na sociedade letrada.
Pelos recortes aqui apresentados, foi possível perceber que os
alunos estão em constante interação com sua cultura letrada e com ela
aprende, associando diferentes significados culturais à leitura e a
escrita. Dito de outra maneira, eles aprendem contextualmente, isto é,
os significados da leitura e da escrita estão diretamente relacionados
à atividades desempenhas em sua comunidade de prática. Nesse
processo, é imprescindível que o educador conheça o aluno, a sua
realidade, suas interpretações, ideias e percepções sobre a leitura e a
escrita para saber qual tipo de intervenção realizar e, assim, auxiliá-los
a compreender o processo mais amplo de circulação de textos e a
utilizar com proficiência a sua língua materna.

Algumas considerações

Esta pesquisa, conduzida no segundo segmento da Educação de


Jovens e Adultos (EJA) da rede pública do Distrito Federal (DF), no
Centro Educacional 02 de Taguatinga, procurou investigar as
percepções de alunos sobre a leitura e a escrita no contexto de prática
da sua comunidade. Ao propor uma pesquisa tendo como eixo central
a prática da leitura e da escrita no processo na Educação de Jovens e
Adultos, acredito, na mesma perspectiva adotada pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), que o domínio da língua escrita é

176
fundamental para a participação social efetiva dos alunos desse
segmento em uma sociedade cada vez mais letrada.
Defendemos essa ideia, pois, ao dominar a linguagem escrita, o
homem passa a ter a possibilidade de se comunicar, ter acesso à
informação, expressar e defender pontos de vista, partilhar ou
construir visões de mundo, bem como produzir conhecimentos. Ao
trabalhar a linguagem escrita em sala de aula, a escola tem a
responsabilidade de garantir a todos os seus alunos o acesso aos
saberes linguísticos necessários para o exercício da cidadania (BRASIL,
1997).
Ao final deste trabalho, fica evidente que a discussão em torno
das práticas de letramento surgiu com o objetivo de não restringir o
desenvolvimento da educação de jovens e adultos apenas à aquisição
de um código escrito. O jovem e o adulto, ao acessarem o mundo da
escrita, aprendem não só na escola, pois a alfabetização aliada ao
letramento ultrapassa os muros das instituições educacionais e ocorre
antes mesmo dos alunos ingressarem nelas, passando, também, por
uma dimensão sociocultural. O espaço lá fora, a realidade, as práticas
sociais também ensinam. Levando em conta essa realidade, o
educador precisa ter consciência de que alfabetizar letrando, isto, é
educar para vida, não é simplesmente apropriar-se de um código
escrito. É preciso ver a leitura e a escrita como práticas sociais.
Nesse processo, o aluno da EJA, munido de seu conhecimento de
mundo, não é sujeito passivo, ele traz conhecimentos prévios,
experiências acumuladas. Acreditar que todas os jovens e adultos, ao
ingressar na escola, não trazem absolutamento nada de conhecimento
e de experiências de vida, é considerá-las objetos a serem
manipulados, sem poder de decisão e sem consciência da realidade
que os envolvem. Considerar que todos os jovens e adultos pensam,
agem, conhecem da mesma forma, é não oferecer oportunidades para
que elas cresçam e se desenvolvam plenamente. Considerar jovens e
adultos “tabulas rasas” ou “folhas em em branco”, é acreditarem
seres vazios, desprovidos de conhecimento e que funcionam como
máquinas, sem raciocínio e sem vontade própria. Jovens e adultos são,
antes de tudo, seres cognoscentes. Eles pensam, conhecem e agem
em sua comunidade de prática.
Finalmente, acredita-se que, em seu processo educativo, os
jovens e adultos, ao acessar a cultura escrita, efetivamente aplica a

177
escrita nas situações vividas. Por isso, a dimensão do aprender a ler e
escrever é preciso ser vista de outra forma, é preciso ser
redimensionada. Diante disso, para uma proposta centrada na
perspectiva letramento, é fundamental que o trabalho em sala de aula,
nas classes de EJA, esteja organizado e estruturado em torno do uso e
das diversas funções sociais da leitura e da escrita. Trabalhar dessa
forma garantirá a esses sujeitos – com todas as suas singularidades, o
início de uma reflexão sobre as diferentes possibilidades de emprego
da língua materna.
Em síntese, no processo de apropriação da leitura e da escrita,
educar jovens e adultos na perspectiva do letramento não significa ter
apenas consciência fonológica, saber relacionar fonema e grafema e
sim saber interpretar de modo pleno o funcionamento da escrita e
aplicá-la no cotidiano. E esse papel cabe tanto à escola, agência do
letramento por excelência de nossa sociedade, quanto ao professor
que trabalha com Educação de Jovens e Adultos, o principal mediador
de todo esse processo.

Referências

ARCOVERDE, Maria Divanira de Lima; ARCOVERDE Rossana Delmar de


Lima. Leitura, interpretação e produção textual. Campina Grande;
Natal: UEPB/UFRN, 2007.
ASSOLINI, Filomena Elaine e TFOUNI, Leda Verdiani. Os (des)caminhos
da alfabetização. Paidéia (Ribeirão Preto) [online]. 1999, vol.9, n.17,
pp.25-34.
BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na escola, e agora?
Sociolinguística e Educação. São Paulo: Parábola, 2005.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução. MEC, 1997.
Brasília.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 50. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2011.
GOULART, C. Oralidade e escrita. Revista Guia da Alfabetização. Belo
Horizonte. v. nº 1. p. 60-75.2012.
LEAL, Telma Ferraz; ALBUQUERQUE, Eliana Borges; MORAIS, Arthur
Gomes. Alfabetizar letrando na eja: fundamentos teóricos e propostas
didáticas. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.

178
REIS, Renato Hilário dos. A constituição do sujeito político,
epistemológico e amoroso na alfabetização de jovens e adultos. Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, UNICAMP,
Campinas, 2000.
ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São
Paulo: Parábola, 2009.
SANTOS, Edinei Carvalho dos. Práticas e eventos de letramento em
uma comunidade remanescente de quilombolas: Mesquita.
Dissertação de Mestrado pelo PPGE/UnB. Universidade de Brasília,
Brasília-DF, 2014.
SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas.
Revista Brasileira de Educação. nº. 25, p. 5-17, Jan-Abr. 2004.
STREET, Brian. Eventos de letramento e práticas de letramento: teoria
e prática nos novos estudos do letramento. In. MAGALHÃES, Izabel
(Org.). Discursos e práticas de letramento. Campinas, SP: Mercado das
Letras, 2012. p.69-92.

179
180
SENTIDOS E SIGNIFICADOS DA ESCOLA PARA
ESTUDANTES DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS DA
REDE PÚBLICA DE ENSINO DO DISTRITO FEDERAL

Erlando da Silva Rêses


Lukelly Fernanda Amaral Gonçalves

Exórdio

Um dos maiores desafios da educação brasileira é sanar a


histórica dívida que o país tem com um grande quantitativo de jovens
e adultos que não teve acesso à educação escolarizada outrora. Pensar
educação para uma parcela da população para a qual as políticas
públicas e a formação de professores não estão voltadas é desafiador.
Trata-se de repensar currículo, didática, infraestrutura, entre outros
fatores, a fim de contemplar as especificidades de um público que
pode (i) nunca ter antes estudado, (ii) ter estudado até certa
escolaridade e abandonado os estudos há anos, ou ainda (iii) ter sido
reprovado e, em seguida, sido direcionado à modalidade da Educação
de Jovens e Adultos (EJA).
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN), a EJA proporcionará o nível de conclusão do ensino
fundamental para maiores de quinze anos e o de conclusão do Ensino
Médio para maiores de dezoito anos. A média de idade dos educandos
nos anos finais do Fundamental nessa modalidade é, no ano de 2015,
por exemplo, 19 anos e no Ensino Médio 23 (INEP/MEC, 2015). Isso
sugere que as escolas estão recebendo muitos estudantes do ensino
regular, sobretudo aqueles com histórico de retenção.
Em 2015 tínhamos, segundo o Censo desse ano, 3,4 milhões de
estudantes frequentando a Educação de Jovens e Adultos em todo o
país. Para atender equitativamente esse público tão grande e
diversificado “é necessário implementar uma política capaz de
resgatar a qualidade da escola pública e criar condições para combater
a evasão e a repetência que expulsam da escola os alunos oriundos da
classe trabalhadora” (GADOTTI; ROMÃO, 2006, p.114). As escolas
precisam, pois, serem inclusivas, a fim de não só absorverem essa

181
demanda, mas considerarem, no percurso desses, suas características,
interesses, condições de vida e de trabalho, tal como preconizado pela
LDBEN.
Em 2014, o Distrito Federal recebeu do Ministério da Educação
(MEC) o título “Brasília, território livre do analfabetismo”.
Contraditoriamente, segundo o Grupo de Trabalho Pró-Alfabetização
(GTPA)/Fórum de Educação de Jovens e Adultos do DF, em 2011,
“844.623 jovens e adultos trabalhadores moradores do DF com 15 anos
ou mais não concluíram o ensino fundamental.” (GTPA-Fórum EJA/DF,
2011, p. 1). Assim, uma das exigências praticadas pelo Fórum é

[...] o atendimento efetivo às demandas dessa modalidade [EJA] tendo


como princípio norteador a construção coletiva. [...] A partir de 2009,
uma ação importante articulada pelo fórum foi a implementação, a partir
de um programa do MEC, junto com a SEEDF, da Agenda Territorial de
Desenvolvimento Integrado de Alfabetização de Educação de Jovens e
Adultos do Distrito Federal, cujo fim principal é articular todos os
segmentos sociais para a construção de políticas públicas articuladas
para a EJA no DF (BORGES, 2016, p. 71).

O Governo do Distrito Federal (GDF) tem como base da política


educacional o direito de aprendizagem de todos os cidadãos por meio
de uma aprendizagem contínua. Só em 2013 a Secretaria de Estado de
Educação do DF (SEEDF) ofertou a EJA em “114 Unidades Escolares na
Rede Pública de Ensino. No 1º semestre de 2013, o número total de
matrículas foi de 51.478” (SEEDF, 2014, p. 15). O Currículo dessa
modalidade no Distrito, por sua vez, é chamado de Currículo em
Movimento. Nele, consta a preocupação de atender às expectativas
dos estudantes, assegurando ensino, em grande maioria noturno e,
em menor medida, diurno, bem como condições de acesso a unidades
próximas à moradia ou trabalho, em conformidade ao artigo 225 da Lei
Orgânica do DF. De acordo com o Currículo, uma

[...] EJA preparada para atender aos anseios de seu público-alvo exige o
avanço equilibrado em três eixos que sustentam a modalidade: o
currículo, o formato de oferta e a formação continuada dos profissionais
atuantes na modalidade. Desta forma, avançar na modalidade requer
repensar práticas e concepções, pactuar princípios, propor diretrizes,
reformular orientações e normas, rever formatos e metodologias
(SEEDF, 2014, p. 10).

182
Tendo em vista tal cenário da EJA do Distrito Federal, esta
pesquisa teve como objetivo geral analisar a trajetória escolar de
jovens e adultos em processo de conclusão do nível Fundamental II da
modalidade EJA de uma escola de Santa Maria – DF. Os objetivos
específicos, por sua vez, foram: (i) compreender os elementos que
concorreram para que os estudantes abandonassem a escola, no
passado, e retornassem a ela; e (ii) identificar os elementos que
ajudaram ou dificultaram a permanência do estudante na escola desde
o seu retorno à mesma. Concordamos com Gadotti (2014, p. 16), para
quem

[...] não há sociedades que tenham resolvido seus problemas sem


equacionar devidamente os problemas de educação e não há países que
tenham encontrado soluções para seus problemas educacionais sem
equacionar devida e simultaneamente a educação de adultos e a
alfabetização.

Proveniente do modo de produção capitalista, no contexto das


promessas que a burguesia trouxe e não foi capaz de implementar, a
educação tem um caráter contraditório em sua essência, pois, tanto
contribuiu para a reprodução social, como para sua negação e perda.
Contudo, o saber como intenção pode ser apropriado pelas classes
subalternas e, ao incorporá-lo à sua prática, torna-se o instrumento de
crítica das massas, pois no conjunto das relações sociais reside a
contradição da intencionalidade dominante: a oposição entre o saber
do dominante e o fazer do dominado (RÊSES, ALVES e OLIVEIRA, 2017).
Desse modo, os caminhos metodologicos adotados aqui, e
explicados na sequência, nos levou a suprir os objetivos geral e
específicos da pesquisa e a justificar a relevância deste estudo, o qual
dá a sua parcela de contribuição à literatura da área, à Secretaria de
Estado de Educação do Distrito Federal e à escola locus do estudo, a
qual teve seu nome preservado.

Metodologia da Pesquisa de Campo

Ainda que o trabalho se valha de variáveis quantificáveis, é uma


pesquisa qualitativa (GIL, 2008; CRESWELL, 2010). Sendo assim, este
estudo apresenta: (i) uma coleta de dados feita diretamente no local
em que os participantes vivenciam a questão – no turno noturno de

183
uma escola que oferece a modalidade EJA; (ii) múltiplas fontes de
dados – Constituição Federal (CF), Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN), Currículo em Movimento da EJA do DF,
Diretrizes Operacionais da EJA do DF 2014-2017 e (iii) foco no
significado que os participantes dão a sua própria trajetória escolar.
A coleta de dados foi realizada entre agosto e setembro de 2016
em duas turmas da 8ª série de uma escola da rede pública localizada na
cidade de Santa Maria. Segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de
Domicílio – PDAD 2015, a população estimada de Santa Maria é de
125.123 pessoas e cresce 0,97% ao ano. 48% estão na faixa etária de 25
a 59 anos, 22% tem de 0 a 13 anos e 11% são idosos. Entre os ocupados,
28% trabalham em serviços gerais, 26% no comércio, 10% na
administração pública e 8% na construção civil, sendo que a renda per
capita é de R$887,63, semelhante à de Recanto das Emas, Brazlândia,
Planaltina e Paranoá e compatível às atividades laborais realizadas.
Especificamente ao que tange à escolarização média da
população de Santa Maria, os números são preocupantes. 3,50% da
população é analfabeta, média bem maior do que a do DF, que, em
2013, era 1,90%. Somente 5,11% da população tem até graduação, 24,72%
tem até o nível médio e 3,31% até o fundamental. Como se verá no
gráfico a seguir, extraído do resumo do PNAD – 2015, o índice mais
sobressalente e que caracteriza o maior contingente da população
dessa região é o que corresponde às pessoas que possuem até o
ensino fundamental incompleto: 37, 58%.

Fonte: PDAD-2015 (GDF/CODEPLAN, 2015).

184
A escola escolhida entre as 4 (3 públicas e 1 privada) que oferecem
EJA nessa cidade satélite, é urbana, pública e oferta no período
noturno o ensino fundamental I e II, sendo quatro turmas no primeiro
seguimento e seis turmas no segundo seguimento. No ensino
fundamental I, de acordo com os dados do Censo Escolar de 2015, a
escola conta com 100 matrículas e no II com 486 (BRASIL/INEP, 2015).
Tem 17 salas de aula, biblioteca, sala de vídeo e sala de informática,
sendo essa última raramente utilizada.
Como a pesquisa concentra-se nessa escola, foi mais adequado
adotar o tipo de pesquisa denominado “estudo de caso único” (YIN,
2001). Esse, segundo Yin (2001), é uma pesquisa empírica que
“investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da
vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o
contexto não estão claramente definidos” (p. 32).
Valendo-nos, assim, da abordagem qualitativa e do estudo de
caso único, esta pesquisa foi empreendida por meio de duas etapas
que se complementaram. A primeira constituiu na pesquisa
bibliográfica realizada em livros, repositórios de busca e bibliotecas
digitais. A segunda na pesquisa de campo, a qual também incluiu a
análise documental. O propósito dessa última, para Bardin (2004), “é
o armazenamento sob uma forma variável e a facilitação do acesso ao
observador, de tal forma que este obtenha o máximo de informação
(aspecto quantitativo), com o máximo de pertinência (aspecto
qualitativo)” (p. 40). Seguindo essa perspectiva, foram aplicados, de
forma presencial, questionários aos estudantes em fase de conclusão
do ensino fundamental II, ou seja, aos das duas turmas de 8ª série da
escola em questão. Entre cerca de 68 educandos e educandas
frequentes, que compõem esse universo, 30 manifestaram interesse
em contribuir com a pesquisa, respondendo, portanto, ao
questionário.
Construído a fim de que se compreendesse, minimamente, quem
é esse grupo de educandos e educandas e que correspondesse aos
dois objetivos específicos da pesquisa, o questionário contou com 15
questões, sendo 11 objetivas e 4 discursivas, as quais foram
respondidas em uma média de 40 minutos, com autorização prévia
dos/das respondentes, do professor regente e da escola. Com os
questionários preenchidos, as respostas foram analisadas a fim de se
identificar os temas – ou unidades de significação –, que naturalmente

185
emergissem (BARDIN, 2004). O resultado desse percurso
metodológico aqui explanado é apresentado na sequência.

Achados e Discussão da Pesquisa

Identidade do sujeito da EJA

Para a LDBEN, os estudantes da EJA são aqueles “que não tiveram


acesso à educação na idade própria” (BRASIL, 1996, art. 4º). De acordo
com o parecer CNE/CEB nº 15 de 1998, “são adultos ou jovens adultos,
via de regra mais pobres e com vida escolar mais acidentada.
Estudantes que aspiram a trabalhar, trabalhadores que precisam
estudar”. (BRASIL/MEC, 1998). E para as diretrizes operacionais da EJA
2014-2017 da SEEDF, esses sujeitos são

[...] mulheres e homens que sofrem severamente as consequências de


uma lógica estrutural capitalista, notadamente injusta e perversa. São
moradores da cidade e do campo, trazem a marca da exclusão social e
buscam assegurar a sobrevivência do seu grupo familiar. Estão
compreendidos na diversidade e multiplicidade de situações relativas às
questões étnico-raciais, de gênero, geracionais, culturais, regionais e
geográficas, de orientação sexual, de privação da liberdade, de
população em situação de rua e de condições físicas, emocionais e
psíquicas. Integram os mais diversos grupos sociais, participantes ou não
de movimentos populares e sociais (SEEDF, 2014, p. 13).

Nas duas turmas de 8ª série da EJA da escola pesquisada temos


85 estudantes matriculados e 68 frequentes, sendo 31 mulheres e 37
homens. Representando esse universo de possíveis informantes,
aceitaram participar da pesquisa 30 – sendo 15 mulheres e 15 homens.
Sobre os alunos da escola, independentemente da modalidade em
questão, o Projeto Político Pedagógico da mesma considera-os
sujeitos que “já possuem conhecimentos a serem valorizados e
trazidos para a sala de aula” (PPP, 2018, p. 6).
A faixa etária predominante entre os informantes da pesquisa é
de 15 a 20 anos, ainda que os de 31 a 40 anos representem uma parcela
significativa. Esse achado vai ao encontro do que Souza; Azambuja e
Pavão (2012) caracterizam como rejuvenescimento do público da EJA.
Para os autores, a grande demanda dessa modalidade são estudantes

186
que reprovaram no ensino regular e passaram para EJA, a fim de
concluir mais rapidamente os estudos. Se, por um lado, o convívio
desses jovens recém-chegados do ensino regular e adultos que,
provavelmente, há muito não estudavam provoca uma troca saudável
de conhecimentos entre gerações, por outro lado, a chegada de jovens
pode levar ao afastamento de adultos trabalhadores. Observe o
gráfico a seguir, que explana a faixa etária dos informantes da
pesquisa.

Gráfico 1 - Faixa Etária dos participantes da pesquisa


10
8
6
4
2
0
15 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 50 51 a 60 61 ou mais

Fonte: Pesquisa de campo

Em três entrevistas (1 de uma pessoa da faixa etária de 21 a 30


anos e duas de 31 a 40 anos) reclamou-se da indisciplina dos mais
jovens. Referindo-se aos mais novos, uma estudante diz que “hoje os
alunos vêm para o colégio para bagunçar e atrapalhar quem quer
estudar”. Quanto ao estado civil dos informantes, temos um viúvo,
quinze casados e catorze solteiros, conforme gráfico a seguir.

Gráfico 2 - Estado Civil dos participantes da pesquisa


20
15
10
5
0
Solteiro(a) Casado(a) Viuvo(a)

Fonte: Pesquisa de campo

187
O que chamou atenção, nesse caso, é que entre os que se
declararam casados, quatro têm entre 17 a 19 anos, o que indica que
metade dos jovens da faixa etária de 15 a 20 anos já possuem
responsabilidades muito além de apenas estudar, tendo, obviamente,
cuidados com o lar, por exemplo.
A respeito do número de filhos dos participantes da pesquisa,
metade deles não tem filho, enquanto metade tem de um a cinco
filhos, sendo mais predominante a quantidade de 1 filho, como se
observa no gráfico a seguir.

Gráfico 3 - Quantidade de Filhos dos participantes da pesquisa


20

15

10

0
Não tem filhos 1 filho 2 filhos 3 filhos ou mais

Fonte: Pesquisa de campo

Entre as pessoas que tem um ou mais filhos, três pertencem à


faixa etária de 15 a 20 anos, o que indica que em média um terço dos
jovens que migram para a EJA nesta escola podem ter tido filho ainda
na adolescência. A isso se soma o fato de as três pessoas em questão
serem mulheres e apenas uma estar casada. Segundo Ferreira (2007),

[...] por tradição histórica, a mulher teve sua existência atrelada à família,
o que lhe dava a obrigação de submeter-se ao domínio masculino, seja
pai, esposo ou mesmo o irmão. Sua identidade, segundo esses estudos,
foi sendo construída em torno do casamento, da maternidade, da vida
privada-doméstica, fora dos muros dos espaços públicos. E por essa
tradição, construída historicamente, a mulher se viu destituída de seus
direitos civis. Não podia participar de uma educação que fosse capaz de
prepará-la para poder administrar sua própria vida e de ter acesso às
profissões de maior prestígio. Assim, por um longo período histórico, a
família, a igreja e a escola, elementos inerentes a esse processo,
enquanto instituições, vão sustentar esse projeto moralizador,

188
tutelando a mulher ao poder econômico e político do homem brasileiro
(p. 15).

Em conformidade com essa posição, temos as afirmações de uma


informante da faixa etária de 21 a 30 anos e que tem três filhos. Ela diz
que “minha maior dificuldade de ter entrado na EJA foi minhas filhas,
pelo fato de não ter com quem deixa-las.”. Outra, por sua vez, da faixa
etária de 31 a 40 anos diz o seguinte: “eu encontrei muitos problemas,
principalmente no meu casamento, que meu marido não me dá força e
nem meus filhos. Tem dia que eu chego na sala de aula com a cabeça tão
quente que eu não entendo nada”. Nenhuma reclamação desse tipo foi
feita por homens com filhos, o que demonstra que é preciso observar
essa característica a mais que compõe a identidade da mulher da EJA.
Quanto à ocupação dos informantes, chamou nossa atenção a
quantidade de pessoas que preferiram omitir essa informação (14
estudantes). Dois, por sua vez, informaram estar desempregados,
duas se declararam dona de casa e os demais têm ocupação na área de
prestação de serviços, conforme disposto no gráfico abaixo.

Gráfico 4 - Ocupação profissional dos participantes da pesquisa


15

10

0
Não informaram Desempregados Donas de casa Empregados na
área de prestação
de serviço
Fonte: Pesquisa de campo

Em uma cidade onde o serviço público é uma ocupação comum,


nenhum dos 30 informantes trabalha nessa área. Temos, por exemplo,
cinco vendedores, duas empregadas domésticas, dois marceneiros,
um conferidor de mercadoria, um cobrador de ônibus e um atendente
de balcão. Essas informações, por sua vez, são diretamente
compatíveis com a renda familiar informada no questionário,
conforme se pode ver no gráfico seguinte.

189
Gráfico 5 - Renda Familiar dos participantes da pesquisa
14
12
10
8
6
4
2
0
Até 1 salário Até 2 Até 3 Até 4 5 ou mais Não
mínimo salários salários salários salários informaram
mínimos mínimos mínimos mínimos

Fonte: Pesquisa de campo

Segundo Arroyo (2007, p. 29), desde “que a EJA é EJA esses


jovens e adultos são os mesmos: pobres, desempregados, na
economia informal, negros, nos limites da sobrevivência. São jovens e
adultos populares. Fazem parte dos mesmos coletivos sociais, raciais,
étnicos, culturais”. De fato, a maioria dos informantes desta pesquisa
tem como renda familiar até 2 salários mínimos, o que corresponde a
R$1760,00, em 2016. Não perguntamos quantas pessoas moram em
suas casas, contudo, tendo em vista que o Distrito Federal tem um dos
custos de vida mais altos do país, essa renda é, certamente, baixa.
Assim, temos que concordar mais uma vez com Arroyo (2007, p. 24),
para quem “antes do que portadores de trajetórias escolares
truncadas, eles e elas [estudantes da EJA] carregam trajetórias
perversas de exclusão social [...]. As trajetórias escolares truncadas se
tornam mais perversas porque se misturam com essas trajetórias
humanas”. Foi a luta por sobrevivência, atrelada ao trabalho, que fez
muitos abandonarem outrora a escola, e também é essa mesma luta
diária que os fizeram persistirem até a 8ª série da EJA e caminharem
rumo à conclusão dessa etapa.
Temos, com base nos questionários respondidos, dois perfis de
estudantes na EJA da escola no que tange aos motivos que os levaram
a abandonarem a escola regular. Há, primeiramente, um grupo de 15 a
20 anos (9 pessoas), em que todos atribuem a saída do ensino regular
a questões indiferentes ao trabalho. No gráfico a seguir observamos
os principais motivos apontados por eles.

190
Gráfico 6 - Motivos que levaram participantes da pesquisa de 15 a 20
anos a abandonarem a escola
4
3
2
1
0
Má influência Falta de Reprovações Envolvimento Localização da
de colegas interesse constantes com drogas escola
Fonte: Pesquisa de campo.

O Plano Nacional de Educação 2014-2024 propõe que 95% dos


estudantes concluam o ensino fundamental na idade adequada até o
ano de 2024. Esse pequeno recorte de estudantes da EJA sinaliza,
contudo, o desafio que a escola tem. Uma estudante da faixa etária de
15 a 20 anos disse que “o motivo pelo qual desisti foi porque reprovei a
8ª série duas vezes, por faltas e bagunça na sala de aula”. Como driblar,
por exemplo, a má influência de colegas e a falta de interesse dos
próprios estudantes? Como evitar a repetência? A EJA recebe jovens
frustrados com a própria trajetória escolar regular. Esses, por sua vez,
convivem com adultos cujo motivo que os levou a abandonar a escola
outrora é bastante diferente, conforme se nota no gráfico abaixo.

Gráfico 7 - Motivos que levaram participantes da pesquisa de 21 anos


ou mais a abandonarem a escola.
25
20
15
10
5
0
Trabalho Nascimento de Relacionamento Desinteresse
filho

Fonte: Pesquisa de campo.

Dos 21 informantes com 21 anos ou mais, 17 tem como motivação


a necessidade de trabalhar e apenas 4 apresentaram outros motivos,

191
quais sejam: relacionamento, desinteresse, nascimento de filho. Três
estudantes pertencentes à faixa etária de 41 a 50 anos relataram que
se mudaram para Brasília muito jovens, em busca de trabalho e de uma
vida melhor, sendo difícil estudar. Uma delas diz: “eu era ‘de menor’,
tinha que estudar a noite, era muito difícil para uma pessoa que acabou
de se mudar”. Outra informante, da faixa etária de 51 a 60 anos, disse:
“eu parei de estudar porque eu trabalhava o dia inteiro, não tinha tempo
de estudar. Só agora que continuei novamente. Eu parei na quinta série.
Tinha 35 anos que não estudava.”. Outro estudante, da faixa etária de
21 a 30 anos, por sua vez, chamou atenção ao relatar que a motivação
não era exatamente o difícil que fora compatibilizar trabalho-estudo,
mas sim um acontecimento no seu trabalho que o traumatizou
profundamente. O estudante diz: “eu comecei a trabalhar de cobrador
de transporte público. Neste tempo ainda frequentava a escola. Em certo
dia fui assaltado durante o meu trabalho e neste assalto o bandido
efetuou um disparo em direção a minha cabeça, ou seja, para me matar.
Depois disso, entrei em depressão; tinha medo de tudo e de todos, o que
me fez abandonar a escola”.
Observa-se, assim, que os informantes da faixa etária de 15 a 20
anos têm motivações não relacionadas à necessidade de trabalhar. Já
os das demais idades, têm o emprego como fator determinante em
suas vidas, algo que constitui sua história e faz parte se sua identidade.

O adulto está inserido no mundo do trabalho e das relações


interpessoais de um modo diferente daquele da criança e do
adolescente. Traz consigo uma história mais longa (e provavelmente
mais complexa) de experiências, conhecimentos acumulados e reflexões
sobre o mundo externo, sobre si mesmo e sobre as outras pessoas
(OLIVEIRA, 1999, p.16).

Ignorar o fator “trabalho” é ignorar, portanto, a identidade do


estudante. Como, por exemplo, fazer uma escola para aquele jovem
desinteressado ou negativamente influenciado e ao mesmo tempo
fazer com que a mesma escola seja também para aqueles adultos
submissos à necessidade de trabalhar e tudo o que isso acarreta?

Em alguns casos essa heterogeneidade é um fator de crescimento para


eles, pois pessoas de mais idade convivem com jovens, desde os 15 anos
(idade mínima para ingresso na modalidade EJA ensino fundamental);

192
ocorrendo uma troca de conhecimentos entre gerações, sendo saudável
aos envolvidos no processo. Em outros casos, a chegada dos jovens nos
bancos escolares da EJA pode levar ao afastamento daquelas pessoas às
quais a EJA se propôs qualificar ou requalificar para o mercado de
trabalho e assim saem da escola, abandonando-a novamente e, mais
uma vez, sendo excluídos (SOUZA; AZAMBUJA; PAVÃO, 2012, p. 6).

Do cenário complexo do mundo do trabalho participam


fundamentalmente as camadas mais pauperizadas da classe
trabalhadora e, com certeza, entre eles estão os estudantes da EJA.
Estes, além de não usufruírem das promessas da burguesia quanto ao
direito e ao trabalho, estão em uma condição de classe que não lhes
permitiu exercer na infância e adolescência o direito à educação
básica. N esperança de um futuro melhor, eles retornam para a escola
com o objetivo de ajudar na escolarização dos filhos e netos, na busca
por emprego, na locomoção em transporte, na leitura de textos, na
compreensão de estruturas de poder e de organização política ou na
abertura de um negócio próprio. Assim, não basta reconhecer que as
salas de EJA estão repletas de trabalhadores (RÊSES e PEREIRA, 2016).

Sentidos e significados da escola para o estudante da EJA

Como mostra Leão (2006, p. 36), “a escola é uma experiência em


que entram em ações valores, projetos de vida, expectativas”. O
sentido e significado da escola para o estudante da EJA relacionam-se,
portanto, às expectativas que esse faz a partir do retorno aos bancos
escolares. Todos os 30 entrevistados demonstraram colocar no
retorno à escola a expectativa de uma vida melhor no futuro. É como
se o presente fosse demasiado indigesto para pendurar.
Entre os da faixa etária de 15 a 20 anos, 6 foram mais detalhistas
ao explicarem o que seria esse ‘futuro melhor’. Duas mulheres
afirmaram estudar pelo filho. Uma, casada, diz: “voltei a estudar
porque hoje penso diferente, penso mais no meu futuro e no meu filho.
Quero ser alguém na vida, ter uma boa profissão para nunca deixar faltar
nada para ele”. Dois outros, um homem e uma mulher, informaram
retornar à escola a fim de cursar a educação superior em breve. Um
homem, solteiro, diz: “eu voltei a estudar para contemplar os estudos;
para poder estudar em uma faculdade, porque nesta vida não está fácil
conseguir emprego sem o estudo”. Outro estudante confessa que

193
retornou por incentivo de família e amigos: “voltei para a escola por
causa de eu ter escutado muito minha mãe e meus amigos que avisavam
que não valeria perder ano por causa de bobagem, seja qual for”.
Entre os da faixa etária a partir de 21 anos, 11 foram mais detalhistas
ao explicarem também o que seria esse ‘futuro melhor’. Cinco querem
ter um trabalho melhor, em termos de salário e função, ou, pelo menos,
arrumar um emprego. Uma estudante da faixa etária de 21 a 30 anos
relata: “eu voltei a estudar porque muito lugar que eu ia fazer entrevista
pedia o Ensino Médio, aí nunca dava para mim”. Quatro respondentes,
por sua vez, afirmaram terem retornado com o objetivo de fazer um
curso superior na sequência. Uma das estudantes de 51 a 60 anos disse:
“voltar a estudar, para mim, é um privilégio: poder terminar os estudos e
fazer uma faculdade... é este o meu objetivo”. Um da faixa de 41 a 50 anos
afirmou ter retornado por incentivo da esposa. Já outra, de 31 a 40 anos,
explicou que retornou por exigência do trabalho, que quer que todos os
funcionários tenham até o Ensino Médio.
A escola é, então, um caminho necessário a um futuro melhor do
que a condição de vida atual dos informantes. Pode-se pensar que o
diploma, então, seria o objeto cobiçado pelos discentes. Porém,
percebemos que não. Esses realmente esperam uma educação
pensada para eles e que agregue conhecimento e não só um
documento. A prova disso são os questionamentos sobre a escola
pesquisada e algumas comparações com o ensino regular.
No quadro abaixo, em caráter ilustrativo, apresentamos uma
síntese dos aspectos apontados como faltosos na EJA e existentes, em
certa medida, no ensino regular.

Quadro 1 - Aspectos apontados como faltosos na EJA e existentes no


ensino regular
Aspectos apontados pelos estudantes
Rigor
Disciplina
Professores frequentes
Maior tempo para aprender
Realização de atividades físicas
Respeito entre colegas e com o professor

194
Estudantes mais comprometidos com o estudo
Maior exigência com o estudante
Lanche
Fonte: Pesquisa de campo.

Entre as nove pessoas da faixa etária de 15 a 20 anos, três dizem


que o ensino regular e a EJA são iguais ou muito similares. Uma delas
chama atenção por igualar aspectos negativos de ambas: “para mim a
escola de antes e de agora são tudo parecido; têm bandidos e muita falta
de respeito”. Já entre as vinte e uma pessoas com 21 anos ou mais, duas
consideram o mesmo. Uma diz: “não vejo muita diferença, mas isso vem
de mim, talvez, porque eu quero estudar e venho para a escola mesmo,
me interesso mesmo pelos estudos”.
Entre os outros seis entrevistados da faixa etária de 15 a 20 anos,
quatro afirmaram preferir a EJA à escola regular, contudo, foram
bastante sucintos ao dizer isso. Uma disse que “tudo é melhor que
antes”, outra disse que a EJA é melhor por ser mais rápida, outro disse
que a EJA é melhor, pois está “ajudando a terminar os estudos” e outro,
por fim, afirma ser melhor a EJA porque “agora, onde eu estudo
atualmente, já não tem tanta violência; agora eu estudo e me sinto
seguro”. Entre as outras dezenove pessoas com 21 anos ou mais, cinco
dizem que a EJA é melhor que o ensino regular: uma considerando que
a primeira traz mais tecnologias para as aulas, outra dizendo que os
professores explicam melhor, duas dizendo que a distribuição de notas
leva em consideração aspectos como presença em eventos culturais e
uma chamando atenção aos conteúdos mais básicos. Essas
declarações vão ao encontro do que a escola declara em seu PPP sobre
currículo: “[u]m currículo que faz a ponte precisa e necessária entre o
conteúdo prescrito para determinada série e a vida do aluno é muito
mais eficaz que se tentar separar essas duas coisas” (PPP, 2018, p. 6).
Os últimos dois informantes da faixa etária de 15 a 20 anos acham
que o ensino regular era bem melhor do que a EJA. Uma das pessoas
desabafa: “simplesmente digo saudades do ensino regular, saudades do
ensino detalhado, com ótimos trabalhos, um desenvolvimento mais
claro”. Outra, por sua vez, exemplificando os aspectos que considera
superiores no ensino regular, afirma: “o ensino regular é bem mais
rigoroso, faltam menos professores e tem mais tempo e atividades físicas
para fazer; e deveria ser assim na EJA”. Dos outros 13 respondentes com

195
21 anos ou mais, por sua vez, sete não se posicionaram e seis
confirmaram ser melhor a escola do ensino regular. Três disseram que
na de antes havia mais respeito entre os colegas e desses com os
professores; um deles ainda diz: “agora, o EJA, é tudo bagunçado;
ninguém respeita ninguém, aprendemos muito pouco”. Um, que
também falou do respeito, disse ainda que os estudantes eram
diferentes, pois iam à escola realmente para estudar, enquanto hoje
viriam para “bagunçar”. Dois disseram que a escola de antes era
melhor por ser mais rígida, sendo que um deles acrescenta a isso
outros fatores: “a escola de antes havia mais rigor e exigia-se mais dos
alunos; a disciplina era mais aplicada do que hoje, outra questão era o
lanche, que antes era de maior qualidade”.
Dos 30 informantes da pesquisa, 5 consideram a escola regular e
a da EJA similares; 9 creem que a EJA os satisfaz mais que o ensino
regular; e 8 que o ensino regular era melhor, ficando 6, portanto, sem
posicionarem-se a respeito. Os itens apontados pelos que preferem a
EJA ou o ensino regular, por sua vez, foram vários e demonstram a
frustração dos informantes quanto à escola. Assim fica evidente para
os estudantes da EJA que a escola formal precisa fazer mudanças na
modalidade para garantir um futuro melhor.

Considerações finais

Entre idas e vindas, falta de tempo e excesso de trabalho, os


educandos das turmas de 8ª série da escola pesquisada, localizada na
Região Administrativa de Santa Maria, no DF, optaram por retornar aos
bancos escolares e concluir os estudos. Diante desta pesquisa, foi
possível perceber quem são essas pessoas, os motivos do retorno,
expectativas depositadas na escola da EJA e se esta, na visão delas,
está compatível com as esperanças depositadas.
Em nível nacional, O Plano Nacional de Educação (2014-2024),
como política de Estado, estabelece metas e estratégias específicas
para a Educação de Jovens e Adultos. As metas 9 e 10 articulam a EJA
com a necessidade de erradicação do analfabetismo e de ampliação da
escolaridade básica na forma integrada com a Educação Profissional,
retomando a questão da necessidade da preparação para o trabalho
como instrumento de emancipação humana, de inclusão social e
produtiva. Tais metas e respectivas estratégias provocam os sistemas

196
educacionais, as universidades e a rede federal de educação
profissional a protagonizarem ações efetivas para a EJA, superando a
gestão focada em programas (RÊSES e SILVA, 2017).
A partir da análise das respostas dos questionários, foi possível
compreender que a EJA tem, basicamente, dois públicos: um de
estudantes de 15 a 20 anos, com histórico de repetência e/ou
abandonos de curto prazo, e um de 21 a até mais de 61 anos, com
trajetórias escolares mais acidentadas. Todo tem origem nas classes
populares, praticamente metade são casados e com filhos (1 a 3) e a
maioria são empregados na área de prestação de serviços e com renda
familiar de até dois salários mínimos.
Os de 15 a 20 anos saíram do ensino regular especialmente por má
influência, falta de interesse e reprovações constantes, enquanto os
demais por necessidade de trabalhar, sobretudo. Todos retornaram,
por sua vez, por um mesmo motivo: perspectiva de um futuro melhor,
em que arrumar trabalho seja mais fácil e o cargo mais digno.
O sentido e o significado da escola, nessa situação, é mais do que
ensinar conteúdos escolares; é a própria simbologia do “futuro”
daqueles estudantes. Por isso, ela merece adequações. Uma nostalgia
pela escola de outrora é uma constante entre os jovens e adultos. Os
mais jovens por não terem dado o valor necessário a ela quando era
possível; e os mais maduros por terem sido obrigados a deixá-la em
prol do trabalho.
Será preciso garantir para a EJA condições básicas para o efetivo
funcionamento da modalidade e em atenção aos estudantes: 1) Alterar
o Piso Nacional do Magistério de modo a garantir recursos
suplementares aos Estados, Municípios e Distrito Federal para a
contratação via concurso público e regido pelo Regime Jurídico Único
(RJU) de professores e agentes comunitários de EJA, sem prejuízo
para esses profissionais quanto ao enquadramento funcional dentro
da carreira vigente na localidade; 2) Atuar junto ao Conselho Nacional
de Educação (CNE) e demais Conselhos de Educação para modificar as
regulamentações escolares para garantir a permanência dos
educandos na escola com turmas em turnos, horários, tempos,
quantitativos mínimos de estudantes por turma, tipos de oferta e
currículos, diferenciados; 3) Priorizar os educandos da EJA na
integração com as políticas públicas do SUS (Sistema Único de Saúde)
de prevenção e promoção da saúde; 4) Estimular a leitura e garantir o

197
acesso à produções culturais: cinema, música, teatro, museus, etc; 5)
Criar mecanismos que forcem empregadores/as a reduzirem a jornada
de trabalho dos/as trabalhadores/as que estudam, sem posterior
compensação das horas de trabalho ou redução de salários (SILVEIRA,
RÊSES e PEREIRA, 2017).
Quem garante que a EJA é melhor que a educação regular se
apoia na rapidez dessa modalidade, na explicação dos professores, na
distribuição de notas menos tradicional, nos conteúdos mais básicos,
no uso de tecnologias e, até mesmo, em menos violência encontrada
na escola. Já quem prefere o ensino regular, recorda o rigor, o tempo
maior, a disciplina, o respeito, o comprometimento dos estudantes, a
maior exigência dos professores, as atividades físicas práticas, a
frequência dos professores e o lanche mais saboroso. A EJA, sem
dúvidas, “contribui para a melhoria da qualidade de vida de homens e
mulheres em diferentes etapas de sua vida” (SOUZA; AZABUNJA;
PAVÃO, 2012, p. 6). Os resultados desta pesquisa, somados aos de
outras, podem, por sua vez, corroborar na construção de uma
educação voltada às especificidades e expectativas desse público.

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201
202
SEMINÁRIO PAULO FREIRE, VIDA E OBRA:
DIÁLOGOS QUE PERMANECEM

Joelma Carvalho Vilar

No ano de 2017, ao realizar o estágio Pós-doutoral na UNB, fui


convidada pela professora Drª Patrícia Lima Martins Pederiva, minha
supervisora, para ministrar aula sobre Paulo Freire na Pós-graduação
em Educação da UNB. Apesar de há alguns anos ter me dedicado ao
estudo de sua obra, o convite representou um desafio para mim, pois
além das atividades que havia programado para o doutoramento, teria
que dar aula sobre as intricadas e profundas teorias educacionais de
Freire, o intelectual da Educação mais complexo de estudar no Brasil,
devido à coragem e à liberdade intelectual com que transitou
coerentemente entre os marcos teóricos do existencialismo, da
fenomenologia e do marxismo em sua teoria.
Assim, naquele ano, estávamos reunidos no curso “TÓPICOS
ESPECIAIS: LEITURAS FREIRIANAS” com alunos do Mestrado, do
Doutorado e membros do Grupo de Estudo e de Pesquisa em Prática
Educativas (GEPPE) da Faculdade de Educação da UnB, coordenado
pela professora Drª. Patrícia Lima Martins Pederiva, ao qual me
vinculei.
O desafio proposto para esse curso foi estudar o pensamento
educacional de Paulo Freire, principalmente através das obras:
Educação como Prática da Liberdade (FREIRE, 1967), Pedagogia do
Oprimido (FREIRE, 1987) e Pedagogia da Esperança: um encontro com
a pedagogia do oprimido (FREIRE, 1992). A ementa do curso, analisada
e aprovada em reunião departamental, estava assim definida:
“Sociedade, educação e escola em Paulo Freire. Pedagogia
Libertadora. Fundamentos teóricos da educação: dimensão social,
cultural, política, histórica e filosófica do pensamento Freiriano. A
centralidade do diálogo na Educação Freiriana. Teoria e Prática na
educação em Paulo Freire. Atualidade do pensamento Freiriano na
contemporaneidade”.
As aulas foram intensas, banhadas por muito diálogo, estudo e
arte. Elas produziam diferentes emoções e indagações em cada um

203
dos participantes. A metodologia estava centrada nas Rodas de
Leituras e Diálogos Freirianos, metodologia inspirada nos “Círculos de
Cultura de Paulo Freire” e nos Diários da Roda.
As Rodas de Leituras e diálogos Freirianos foram momentos da
vivência dialógica entre os saberes dos alunos da disciplina e as teorias
em Paulo Freire. Nelas, cada dia era único, e as formas de condução se
desenvolviam de maneira livre a partir do que cada um trazia de suas
leituras e estudos individuais. As Rodas se configuraram em uma
autêntica experiência pedagógica na qual saíamos bem diferente de
que quando entrávamos.
Os Diários da Roda formaram os registros, em forma de narrativa,
pelos participantes do curso, das reflexões, das considerações, das
impressões e das análises, com vista à construção de sínteses acerca
do pensamento Freiriano. Esse material é de muita sensibilidade e
riqueza, pois contém parte significativa das memórias e reflexões do
grupo que ocorriam nos encontros pedagógicos com a teoria de Paulo
Freire.
Para enriquecer ainda mais a metodologia do Curso, foram
convidados professores e estudiosos de Paulo Freire para desenvolver
algumas temáticas. A Professora Drª Samantha Lodi Corrêa
(UNICAMP) tratou da “Conscientização e Emancipação em Louise
Michel e Kruspkaia”; a Me. Antônia Cadijatú Alves (UNB) abordou o
tema “Experiências Libertadoras na África”; e o professor Dr. Augusto
Charan Alves Barbosa Gonçalves (UNB), a “Educação e Esperança em
Freire e Vigotsky”.
A proposta da disciplina foi desenvolvida de maneira exitosa. Foi
um momento ímpar e de rara beleza o que vivemos naquele período.
Algumas pessoas viajavam mais de 300 quilômetros para participar das
aulas; alunos da graduação estavam curiosos para ver mais de perto as
leituras que fazíamos sobre Freire; professores do curso de Pedagogia
da Faculdade de Educação da UNB nos visitaram e contribuíam para os
diálogos Freirianos; pessoas dos movimentos sociais se acercaram do
grupo para se unir em torno das Pedagogias de Paulo Freire.
As Rodas de Leituras e Diálogos Freirianos cresciam a cada
semana, gerando a ideia de ampliar para um público maior as
discussões sobre o pensamento de Freire que estávamos
desenvolvendo em sala de aula, daí nasceu a ideia de realização do
Seminário “PAULO FREIRE: DIÁLOGOS QUE PERMANECEM”, que é o

204
título desse livro. Essa ideia foi abraçada por todos que se envolveram
e participaram do início ao fim da elaboração e execução do seminário,
tudo foi feito coletivamente, desde a definição da programação até a
elaboração dos certificados. Nesse sentido, é importante ressaltar a
participação e apoio da Contag, do Sindicato dos professores do GDF,
movimentos dos educadores e educadoras Populares do DF, da
Universidade de Sergipe (UFS) e da Pós-graduação da Faculdade de
Educação da UNB.
O seminário foi realizado no dia 29 de junho de 2017 e teve ampla
participação popular. Iniciou com uma belíssima apresentação musical
de Augusto Charan e Tiago Romão que homenageou Paulo Freire com
a execução das músicas que ele mais gostava, entre elas as bachianas
de Villa-Lobos. Em seguida deu-se a conferência de abertura por Luiza
Erundina (Deputada Federal), que falou de sua trajetória de vida
política e sua relação com Freire, especialmente do período no qual ele
foi secretário da Educação de seu governo na cidade de São Paulo -
Período significativo na produção teórica do pensamento de Paulo
Freire -. Essa conferência foi um momento histórico, e sem dúvida,
marcante para as vidas dos que tiveram presente ao evento.
Dando continuidade ao evento, os eixos temáticos do seminário
foram desenvolvidos em forma de Círculos de Diálogos que enfocaram
relevantes assuntos sobre a vida e a obra de Paulo Freire.
O primeiro Círculo teve como tema “Educação e Vida em Paulo
Freire” no qual pessoas muito próximas a ele falaram sobre a
experiência de convívio pessoal, entremeados por uma dialogação
sobre a coerência entre a teoria da Educação e a própria vida de Paulo
Freire. Esse Círculo foi iniciado pelo emocionante relato da Drª. Nita
Freire (Sucessora legal da obra de Freire), Dr. Renato Hilário dos Reis
(UNB), mediado pelo Dr. Erlando da Silva Rêses (UNB).
O segundo Círculo de Diálogo tratou dos “Sentidos da Educação
na atualidade em Paulo Freire”. Foram trazidos os relatos das vivências
de quem, pela docência, cumpre o exercício Freiriano de amar a
humanidade através dos processos de conscientização e libertação
que se fomenta através da Educação. Destacam-se, Prof. Carlos
Rodrigues Brandão (Unicamp), Me. Maria Luiza Pinho Pereira (UNB),
Profª. Maria Madalena Torres (CEPAFRE), Profª. Maria de Lourdes P.
dos Santos (CEDEP. Educ. Popular), mediado pela Drª. Patrícia Lima
Martins (UNB).

205
O terceiro Círculo, intitulado “Paulo Freire: Cultura e Educação
Popular”, trouxe o consistente e emocionante diálogo entre pessoas
que estruturaram seu labor profissional inspirados pelas teorias de
Freire. Participaram: Carlos Rodrigues Brandão (Unicamp), Maria
Eneide de Araújo Melo (Professora Angico), Carlos Augusto Santos
Silva (Secretário de Formação e Organização Sindical da CONTAG),
mediado pela Drª. Joelma Carvalho Vilar (UFS).
Além de toda a potência teórica que esses Círculos de Diálogo
proporcionaram, o seminário foi constituído por verdadeiros
momentos de cultura e arte. Destacam-se: o trabalho de musicalidade
e percussão corporal realizada por representantes do grupo
Batucadeiros - DF. A participação de educadores populares do cerrado
com dança, poesia e canção popular, sob os cuidados de Leila Maria e
Ângela Dumont. Vale fazer memória à bela e justa homenagem ao
grande educador brasileiro Carlos Rodrigues Brandão, pelos seus 40
anos de docência dedicada à Educação Popular.
De fato, o evento propôs ser um encontro com pessoas que
viveram a experiência de contato pessoal com a figura singular de
Freire, e foi um enlace entre pessoas que estudam e vivenciam o fazer
educativo sob o princípio epistemológico Freiriano da humanização
na/da relação educativa. Teve como objetivo maior dialogar com as
pedagogias Freirianas, a partir de seus fundamentos epistemológicos,
éticos, políticos e estéticos, a fim de refletir sobre as questões
educacionais que tocam de perto nossa presença no mundo na
atualidade.
Aqui registro a gratidão do meu coração a todos os corações que
realizaram com amorosidade, competência e dedicação o seminário.
Em nome de todos, cito o nome da bem-amada professora Patrícia
Pederiva, que lançou a semente inicial de tudo que foi plantado e
germinado. Agradeço também aos que participaram da feitura desse
livro que representa, em si, o estímulo à realização de outros diálogos.
A seguir, escrevo a carta lida no Seminário Paulo Freire: diálogos
que permanecem. O texto nasce em minhas mãos, e é um diálogo dele.
Em realidade, essa carta é uma síntese dos estudos que fiz das obras
de Paulo Freire e do meu olhar sobre Paulo Freire. Para tanto, usei de
licença poética a fim de escrever como se fosse ele, através de um
processo de aproximação empática que a estrutura poética pode
permitir.

206
CARTA A LA PAULO FREIRE

Brasília, 29 de junho de 2017.

À sombra dos corações amorosos encontrei o sentido da


esperança. Nas sombras das injustiças sociais descobri o sentido da
luta. E nas luzes das miríades do saber empapei-me feliz da realidade
e, usando as lentes mais vigorosas que fui capaz de alcançar, encantei-
me pela vida em suas mais simples e múltiplas expressões.
Desenhei em singelos versos o sorriso de uma vida cheia de
embates, de buscas e de doçuras que tentei construir nas andanças de
minhas inquietações de aprender a Ser Mais, a ser Mais Humano e
fazedor do meu eu, da minha história.
Das coisas simples que fiz, as que mais me emocionam são as
feitas do fundo da alma: o toque, o beijo sincero, o cheiro dos lugares
e das pessoas, as miradas cálidas do encontro com o outro, o meu não
eu.
Nas andarilhagens fiz do mundo um universo povoado de amor.
Pois consciente estava que só o amor me daria a consciência de minha
pequenez, diante das possibilidades de fazer girar as coisas do mundo,
e me daria a justa grandeza de conhecer e fazer os inéditos viáveis que
movem a história. Só o amor geraria em mim uma indignação raivosa
capaz de não aceitar o fatalismo perverso que nos imobiliza e nos torna
objeto, processos coisificantes, e assumir corajosamente no que fazer
cotidiano a História.
Penso em uma Educação que desenvolva no ser humano o maior
de seus atributos, o amor pela humanidade, e, por consequência, faça
eclodir o desejo lancinante pelo saber.
Na relação com o outro, comigo e com o mundo encontrei a
proposta mais ditosa das possibilidades educativas. Nessa ligação com
as coisas e com os seres desse mundo habitado, em consequente
trama de dialogação com os seres humanos e não tão humanos,
encontrei a Educação que mais se igualaria a um desiderato de
religação, a uma ideologia comunitarista, daquelas que se sustem pela
ideia feliz de comunidade.
Dessas ideias que povoam o mundo e que afirmam, em sua matriz
geradora, que o que há de mais comum a todos nós, é a nossa doce e

207
robusta humanidade, e, sendo tudo comum, obviamente comuns são
os direitos dos gozos e deveres a todos e todas.
Compreender que o mundo é de todos e todas e que a vida, e tudo
que há nela, é de todos e todas é uma vã utopia de suposto filósofo?
Maravilhosa utopia, dessas que encharcam a alma de esperança frente
a dura recrudescência das relações pífias da atualidade e geram a
capacidade de atuar para transformar a realidade.
Uma Educação comunitária, comum a todas as pessoas, de
herança popular, que nos religue às condições ontológicas de nosso
pertencimento mútuo. Eu me pertenço, eu pertencido do outro, o
outro pertencido do eu e do nós, numa dialética constante, a mais
radical libertação que consagra o cuidado e o reconhecimento do si e
do outro, algo que se alija veementemente da opressão vil que
desumaniza o ser e suas relações.
Pertencer é amar, em hipótese alguma deveria representar
opressão de um sobre o outro, subordinação, dominação, condição
sub-reptícia que deteriora a arqueologia do nosso saber e do nosso
viver. Situo esse pertencer nos limites da nossa condição comum de
ser comunidade, de ser unidade e múltipla diversidade que evoca
nossa ontológica condição humana. Ah! E essa Educação da Liberdade,
da Autonomia, do Oprimido, da Indignação... (do conhecer, do amar,
do fazer)? São em sínteses a verdadeira práxis pedagógica e científica
que nos torna Ser Mais e nos religa com o global e com o local numa
retomada da nossa ancestralidade, de nossa propensão futurista,
esperancista, refazendo o caminho perdido da vocação de ser humano
Mais.
Uma Educação assim pensada, vivida e sentida, exige a
capacidade de Dialogar com a ciência, com a filosofia e com a religião,
por dizer algumas das diferentes ramas dos saberes humanos. Exige a
capacidade de dialogar com o discurso das classes populares, com os
saberes das técnicas e tecnologias, da ética e da estética do ser
humano em sua simplicidade e complexidade. Do ser humano inteiro,
porque político, histórico, cultural e transcendente. Educação tão
integrada consigo, com o outro e com o mundo que nos livra das
artimanhas elaboradas pela história em um tempo que desafia a lógica
e a coerência que há de ter no fato de ser humano vivendo no mundo.

208
Referências

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e


Terra,1967
________. Pedagogia do oprimido. 17ª edição, Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987.
________. Pedagogia da esperança: um encontro com a pedagogia do
oprimido. 10ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

209
210
Sobre os autores

Ana Paula de Medeiros Ferreira


Professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Graduada
em Geografia e Pedagogia. Psicopedagoga. Mestre em Geografia pela
UFG e Doutora em Educação pela UnB. E-mail:
[email protected]

Andrea Vieira
Professora substituta da Faculdade de Educação da Universidade de
Brasília – FE/UnB. Doutoranda em Educação pela Universidade de
Brasília – FE/UnB onde desenvolve pesquisa na área de epistemologia.
Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
na linha Ciência e Cultura na História. Graduação em História
interrompida e graduação em Direito. E-mail:
[email protected]

Ângela Dumont Teixeira


Mestre em Educação/FE/UNB. Pesquisadora pedagoga do Grupo de
Ensino, Pesquisa, Extensão em Educação Popular e Estudos Filosóficos
e Histórico-Culturais-Genpex/FE/UNB. Arte-Educadora-Bordadeira do
Grupo Matizes Dumont. E-mail: [email protected]

Augusto Charan Alves Barbosa Gonçalves


Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de
Brasília (2017). Mestre em Música pela mesma instituição (2013).
Licenciado em Educação Artística - Habilitação em Música pela UnB
(2010). Técnico em Violão/Artes pelo Centro de Educação Profissional
(CEP) - Escola de Música de Brasília (2007). Em 2018, foi Redator do
Currículo em Movimento da Secretaria de Estado de Educação do DF
(SEE-DF) na área de Música. Foi professor substituto da Faculdade de
Educação da UnB em 2015 e no primeiro semestre de 2018. Desde 2007
é professor de violão clássico e teoria geral da música no Conservatório
de Música e Artes de Brasília (CMAB-DF). Membro pesquisador efetivo
do Grupo de Estudos e Pesquisas em Práticas Educativas (GEPPE-
CNPq) da Faculdade de Educação da UnB e pesquisador no Grupo de

211
Estudos e Pesquisas Afetos e Política do Centro de Formação,
Treinamento e Aperfeiçoamento (CEFOR) da Câmara Federal dos
Deputados de Brasília, Distrito Federal. Atualmente professor do curso
de Pedagogia da Estácio/Taguatinga (DF) e Representante dos
Docentes da mesma instituição junto à Comissão Própria de Avaliação
(CPA) da Estácio/Brasília.
E-mail: [email protected]

Carlos Augusto Santos Silva


Atualmente é Secretário de Formação e Organização Sindical da
Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e
Agricultoras Familiares (CONTAG). Natural de Irituia no estado do Pará.
Sua trajetória e militância começaram na Pastoral da Juventude da
Igreja Católica. No Movimento Sindical de Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais (MSTTR) foi Secretário-Geral do Sindicato de
Trabalhadores(as) Rurais; Coordenador Regional de Pólo, secretário
de Formação e Organização Sindical; secretário de Finanças;
Presidente da Federação dos Trabalhadores Rurais na Agricultura do
estado do Pará (FETAGRI) e coordenador da Regional Norte da
CONTAG. E-mail: [email protected]

Darliane Silva do Amaral


Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação - Universidade de Brasília-UnB. Mestre em Ciências da
Educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação -
FPCE da Universidade de Coimbra-UC. Atualmente os temas de
pesquisa versam sobre: socioeducação, adolescência e práticas
escolares. E-mail: [email protected]

Edinei Carvalho dos Santos


Doutorando em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB), na
linha de pesquisa Linguagem e Sociedade, no eixo Língua, Interação
Sociocultural e Letramento. Mestre em Educação pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília (PPGE/UnB),
na linha de pesquisa Escola, Aprendizagem, Ação Pedagógica e
Subjetividade na Educação, no eixo Letramento e Formação de
Professores. Licenciado em Letras/Português e Respectiva Literatura
pela Universidade de Brasília (UnB). Exerceu o cargo de Professor de

212
Língua Portuguesa (Substituto) da Secretaria de Educação do Distrito
Federal (SED-DF), atuando na Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Técnico em Assuntos Educacionais na Fundação Universidade de
Brasília (FUB/UnB). Tem experiência em Língua Portuguesa e
Educação e interesse nos seguintes temas: Língua(gem), educação,
estratégias de aprendizagem, letramentos em comunidades
quilombolas e contextos minoritários. E-mail: [email protected].

Erlando da Silva Rêses


Educador Popular, Professor da Faculdade de Educação (FE) e do
Programa de Pós-Graduação em Educação da UnB (PPGE). Líder do
Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Materialismo Histórico-Dialético e
Educação (CONSCIÊNCIA) da FE/UnB. Pós-doutorando em Educação
na Universidade de Londres (SOAS) e Doutor em Sociologia pela
Universidade de Brasília (UnB). Coordenador do Curso de
Especialização em Educação, Diversidade e Cidadania, com ênfase em
Educação de Jovens e Adultos (2013-2016). Autor ou organizador das
obras, dentre outras: Universidade e Movimentos Sociais (Ed. Fino
Traço, 2015); Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores – Políticas e
Experiências da Integração à Educação Profissional (Ed. Mercado de
Letras, 2017); Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores – Análise
Crítica do Programa Brasil Alfabetizado (2017) e Ciganidade e Educação
Escolar: Saber Tradicional e Conflito Étnico (Ed. Tagore, 2018). E-
mail: [email protected]

Joelma Carvalho Vilar (Org.)


Pós-Doutorado em Educação - Universidade de Brasília (UNB).
Doutorado em Educação - Universidade de Valladolid (Espanha).
Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de
Sergipe (UFS). Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Práticas Educativas (GEPPE – Certificado pelo CNPq). E-mail:
[email protected]

Leila Maria de Jesus Oliveira


Nascida em Brasília, tenho no sangue o rastro mineiro e
pernambucano de onde herdei o gosto pelo fogão de lenha e pelo
tempero marcante; a mansidão e a alegria; a garra e a força. Educadora
popular e militante dos movimentos sociais e populares. Membro do

213
Centro de Cultura e Desenvolvimento do Paranoá e Itapoã (Cedep);
Membro do Grupo de Trabalho Pró-Alfabetização/Fórum de Educação
de Jovens e Adultos do Distrito Federal (GTPA-Fórum EJA/DF).
Professora da Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação
do Distrito Federal. Mestra em Educação pela Universidade de Brasília
(UnB). Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Goiás
(UFG). Creio na justeza de todas as nossas lutas. E-
mail: [email protected]

Luiza Erundina de Sousa


Assistente social e Política Brasileira, filiada ao Partido Socialismo e
Liberdade (PSOL) e atualmente Deputada Federal pelo estado de São
Paulo.

Lukelly Fernanda Amaral Gonçalves


Gerente de Avaliação das Aprendizagens na Secretaria de Estado de
Educação do Distrito Federal (SEEDF), membro da Comissão Própria
de Avaliação da Universidade de Brasília (UnB) e CO da empresa de
assessoria acadêmica, revisão e tradução Certifique-se. Mestra em
Educação pela UnB, Graduada em Licenciatura em Língua Portuguesa
e Bacharelado em Estudos Literários pela Universidade Federal de
Ouro Preto (UFOP) e graduanda em Pedagogia pela Universidade
Estadual de Goiás. Tem se dedicado a pesquisas na área de educação,
com ênfase em políticas públicas de avaliação da Educação Superior e
Básica, qualidade, financiamento e Educação de Jovens e Adultos
(EJA). E-mail: [email protected]

Queina Lima da Silva


Pedagoga pela Universidade do Estado da Bahia (2014). Atuou na
Coordenação das escolas do campo do município de Barreiras-BA de
agosto de 2014 a junho de 2015, participou da Comissão Colaborativa
de Educação do Campo e suas ruralidades, para a construção do Plano
Municipal de Educação-PME. Possui mestrado pelo Programa de Pós-
graduação em Educação-PPGE da Universidade de Brasília-UnB.
Investiga as seguintes áreas: Educação do Campo, Educação
Ambiental e Educação e Movimentos Sociais. E-mail:
[email protected]

214
Maria Aparecida Camarano Martins
Pedagoga, mestre e doutoranda em Educação pela Universidade de
Brasília - UnB. Tem experiência em Docência Universitária (Faculdade
de Educação da Universidade de Brasília–UnB e Universidade Aberta
do Brasil - UAB) e no Curso de Especialização (lato sensu) em Educação
Infantil para professores da SEEDF (FE/UnB/MEC). Atualmente é
membro do Comitê Diretivo do Movimento Interfóruns de Educação
Infantil no Brasil - MIEIB e do Fórum de Educação Infantil do Distrito
Federal- FEIDF. Integra o Grupo de Pesquisa em Práticas Educativas –
GEPPE da Faculdade de Educação/UnB realizando pesquisas relacionadas
a crianças, infâncias, e Educação Infantil. E-mail:
[email protected]

Maria Creuza Evangelista de Aquino


Natural de Bom Jesus, Piauí. Deixei para trás a infância alegre dos
banhos de rio, a comida regrada e o árduo trabalho na seca. Como
muitos nordestinos cheguei em Brasília em 1977. Sou educadora
popular; militante; catequista; defensora dos direitos da pessoa
humana em todas as fases de vida. Alfabetizadora popular de jovens e
adultos. Membro do Centro de Cultura e Desenvolvimento do Paranoá
e Itapoã (Cedep); Membro do Grupo de Trabalho Pró-
Alfabetização/Fórum de Educação de Jovens e Adultos do Distrito
Federal (GTPA-Fórum EJA/DF); Membro do Genpex: Grupo de Ensino,
Pesquisa, Extensão em Educação Popular e Estudos Filosóficos e
Histórico Culturais/Faculdade de Educação/Universidade de Brasília.
Graduação em Pedagogia. Sobretudo, acolhedora! E-mail:
[email protected]

Maria de Lourdes Pereira dos Santos


Mineira de Paracatu, trago na pele a marca da minha ancestralidade.
Cheguei em Brasília no conturbado ano de 1964, aos nove anos de
idade. Sou educadora popular; militante dos movimentos sociais e
populares; Alfabetizadora popular de jovens e adultos. Membro do
Centro de Cultura e Desenvolvimento do Paranoá e Itapoã (Cedep);
Membro do Grupo de Trabalho Pró-Alfabetização/Fórum de Educação
de Jovens e Adultos do Distrito Federal (GTPA-Fórum EJA/DF);
Membro do Genpex: Grupo de Ensino, Pesquisa, Extensão em
Educação Popular e Estudos Filosóficos e Histórico Culturais/Faculdade

215
de Educação/Universidade de Brasília. Professora da Educação
Básica na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal.
Graduação em Pedagogia. Especialização em Educação Especial.
Especialista em Educação de Jovens e Adultos. Sou mãe e avó. Adoro
uma boa roda de conversa! E-mail: [email protected]

Marleide Barbosa de Sousa Rios


Assessora da Secretaria de Formação e Organização Sindical da
Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e
Agricultoras Familiares (CONTAG); Educadora Popular da Escola
Nacional de Formação da CONTAG (ENFOC); Economista; Mestre em
Educação pela Universidade de Brasília (UnB), E-mail:
[email protected]

Patricia Lima Martins Pederiva (Org.)


Possui Pós-Doutorado no Departamento de Psicologia Evolutiva y
Educación de la Universidad Autónoma de Madrid, España. Doutorado
em Educação pela Universidade de Brasília. Mestrado em Educação
pela Universidade Católica de Brasília. Especialização em Execução
Musical pela Universidade de Brasília. Licenciatura em Música pela
UNB. Professora do Departamento de Métodos e Técnicas da
Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE) da Universidade de Brasília. Coordenadora do Grupo
de Estudos e Pesquisas em Práticas Educativas (GEPPE – Certificado
pelo CNPq). E-mail: [email protected]

Raimunda de Oliveira Silva


Assessora da Secretaria de Formação e Organização Sindical da
Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e
Agricultoras Familiares (CONTAG); Coordenadora Pedagógica da
Escola Nacional de Formação da CONTAG (ENFOC); Educadora
Popular; Historiadora; Mestre pela Universidade de Brasília (UnB),
Faculdade de Planaltina (UnB-FUP) em Meio Ambiente e
Desenvolvimento Rural (MADER). E-mail: [email protected]

Renato Hilário dos Reis


Doutor em Educação pela UNICAMP. Professor Pesquisador do
Genpex: Grupo de Ensino, Pesquisa, Extensão em Educação Popular e

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Estudos Filosóficos e Histórico Culturais/Faculdade de
Educação/Universidade de Brasília. Tem como linha de orientação de
pesquisa em Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC-graduação),
Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado, a Pesquisa-Ação
Histórico-Cultural Marxista. Autor do livro: “A Constituição do Ser
Humano: amor, poder e saber na educação/alfabetização de jovens e
adultos. Campinas, Autores Associados, 2011”. E-mail:
[email protected]

Sheyla Gomes de Almeida (Org.)


Doutoranda e Mestre em Educação pela Universidade de Brasília;
Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Práticas Educativas
(GEPPE – Certificado pelo CNPq), tendo como principal objeto de
pesquisa, processos educativos voltados para a integralidade humana,
com base em relações democráticas participativas e
humanizadoras. Especialista em Gestão Pública e Sociedade. Bacharel
em Serviço Social. Licenciada em Pedagogia. Experiência como
consultora técnica de Organismo Internacional no âmbito de Políticas
Públicas Governamentais para a Agricultura Familiar; Professora e
Educadora Popular; Coordenação, assessoria, analista, elaboração e
gestão de projetos sociais para organizações de base comunitária,
associações, cooperativas e ONG’s. E-mail: [email protected]

217

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