SociologiadainfâncianoBrasilII PDF
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Ana Lúcia Goulart de Faria
Adriana A. Silva
(Organizadoras)
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Copyright © Autoras e autores
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida
ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e dos autores.
CDD – 370
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SUMÁRIO
Prefácio 9
Maria Renata Alonso Mota
Apresentação 11
Ana Lúcia Goulart de Faria e Adriana A. Silva
Primeira parte
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Segunda parte
Terceira parte
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Situação de refúgio, infância e estrutura de 249
sentimento
Susy Cristina Rodrigues
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PREFÁCIO
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educação, mas principalmente para que, por meio de uma atitude
crítica, possamos traçar estratégias para a retomada dos princípios
democráticos no âmbito das políticas públicas brasileiras.
O Livro Sociologia da Infância no Brasil II em tempos de
pandemia e necropolítica: pedagogias colonizadoras reinventando
novas formas de vida, com o intuito de comemorar os 25 anos do
GEPEDISC, reúne textos escritos a partir das discussões realizadas na
disciplina Pedagogias Desconolizadoras, infâncias e necropolitica em
Tempos de Pandemia, ministrada em 2020, pelas organizadoras do livro,
no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de
Educação/UNICAMP. A partir de estudos realizados por
pesquisadoras e pesquisadores do GEPEDISC e de outros grupos de
pesquisa que se ocupam dos estudos da Sociologia da infância, o livro
apresenta uma discussão potente e necessária de temas do campo das
culturas infantis, do feminismo, do gênero, dos direitos humanos, das
territorialidades, por meio de uma abordagem muito contemporânea.
Nesta direção, os textos contemplam reflexões,
problematizações e até mesmo provocações acerca desses temas, em
um cruzamento com o contexto de pandemia de Covid-19, que
estamos vivendo desde 2020, e os retrocessos em termos de políticas
públicas brasileiras, em especial, no âmbito do governo federal. Um
livro potente, com textos instigantes, que, sem deixar de
problematizar o panorama de exclusões e autoritarismo que
vivemos atualmente no governo Bolsonaro, nos apresenta algumas
pistas para a construção de outras possibilidades de cuidado e
educação. Enfim, que nos ajudam a pensar em outras formas de vida,
pautadas nos direitos e na justiça social.
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APRESENTAÇÃO
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discussão muito pertinente, a partir de uma pesquisa minuciosa de
observação das crianças em coletivo, e nós entendemos que na
língua inglesa poderia perfeitamente ter sido traduzido por cultura
infantil, já observada nos anos de 1940, numa sociologia brasileira.
Florestan foi um grande intelectual, professor, pesquisador e
deputado que muito nos inspira, especialmente pela atualidade do
seu pensamento inovador, pesquisando sujeitos invisibilizados até
então no campo sociológico brasileiro: negros, indígenas e as
crianças. Ele não tem uma pesquisa específica a respeito da mulher,
mas quando faz suas pesquisas, seja com crianças, seja com
indígenas, seja com negros, ele nunca deixou de mostrar que não
são iguais os homens e as mulheres. Salientamos que, embora seja
nossa grande referência, Florestan ressaltou em diversas situações
que não existe sociologia disto e sociologia daquilo, tem Sociologia, por
isso enfatizamos que ele não foi precursor da Sociologia da
Infância, foi um grande sociólogo brasileiro que pesquisou atores
não convencionais em uma sociologia colonial, tradicional,
burocratizada por uma base eurocentrada. Seu orientador foi o
sociólogo francês Roger Bastide que, em sua obra, Brasil terra de
contrastes, afirma:
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Muitas vezes, tentando nos transformar em poetas e poetisas,
o Gepedisc – Linha Culturas Infantis, na nossa trajetória de
pesquisa, vem trabalhando com classe, gênero, raça/etnia
(ancestralidade afro e povos originários) e idade; trabalhamos com
a etnografia, que não é de inspiração etnográfica, como se diz,
fazemos etnografia a partir de observações em campo, temos a
ferramenta metodológica da interseccionalidade em interlocução
com o feminismo negro e sua potente intelectualidade; articulamos
arte, poesia, política e pedagogia.
E a partir desse panorama que apresentamos esta segunda
coletânea, que nasceu em meio a uma dupla tragédia à brasileira: a
pandemia do Covid e o pandemônio genocida do desgoverno
bolsonarista, mas nos inflamou de inquietações e energias
revolucionárias, como nos incitava Florestan Fernandes. E visando
às reexistências inerentes à produção do conhecimento crítico em
um país marcado pela opressão, exploração e a alienação de base
colonialista, organizamos este livro com o desejo de socializar os
debates ocorridos no segundo semestre de 2020 em ambiente
virtual na disciplina “Pedagogias Desconolizadoras, infâncias e
necropolitica em Tempos de Pandemia”.
Inserida no contexto dos Seminários de Aprofundamento da
Pós-Graduação em Educação da FE/Unicamp, organizado e
coordenado por nós, Ana Lúcia e Adriana, organizadoras deste
presente livro, teve na interlocução das Pedagogias
Descolonizadoras, em torno das infâncias brasileiras, presentes e
potentes nas pesquisas desenvolvidas no âmbito do Gepedisc –
Culturas Infantis um encontro com o conceito de necropolítica
(MBEMBE, 2016). Problematizando a morte das crianças Agatha
Félix, João Pedro, Miguel ..., dentre tantas outras crianças negras e
pobres assassinadas pelos aparatos ou omissões intencionais do
Estado brasileiro, historicamente marcado pela violência, com um
racismo estrutural, fascismos, homofobias, dentre outras faces do
horror capEtalista (KRENAK, 2019) nos incitando aos urgentes
desafios de visualizar outras relações possíveis de educação,
cuidado e reexistências em tempos pandêmicos.
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Nesta perspectiva, tivemos um campo polissêmico de
produção de conhecimento crítico, perpassando as dimensões
éticas, estéticas e políticas que atravessam as questões em torno das
infâncias, com pensadores/as brasileiros/as e estrangeiros/as do
campo das Ciências Sociais, contando com a participação de
pesquisadoras/es do grupo de pesquisa Gepedisc Culturas Infantis
e de outros núcleos, grupos de pesquisas, ativistas de movimentos
sociais. Em sua maioria, professoras/es ativas/os que
problematizam as infâncias, a descolonização do pensamento, as
resistências na educação e na política, a crise sociorreprodutiva,
com foco crítico no adultocentrismo que permeia a sociedade,
passando pela crítica radical ao capitalismo indissociável do
patriarcado, com a análise no âmbito dinâmico do nó estrutural
entre racismo, sexismo e a sociedade de classes. (SAFFIOTI, 2013)
Cabe destacar o resgate do feminismo brasileiro
contemporâneo, especialmente dos movimentos sociais ao pioneiro
trabalho da socióloga Heleieth Saffioti, que teve a ousadia, sendo
uma socióloga marxista, tendo Florestan Fernandes como
orientador, de escrever um trabalho de livre-docência acerca da
mulher no Brasil, na década de 1960, publicando em 1969 A mulher
na sociedade de classes: mito e realidade, reeditado em 1976, e por
quase 40 anos mantido no limbo; a 3ª e a 4ª edição pela Editora
Expressão Popular datam de 2013 e 2019. Ressaltamos também o
trabalho de Saffioti intitulado Gênero, patriarcado e violência
(2015), resultado de pesquisas referentes à violência contra a
mulher – de fins dos anos 1990 e início dos anos 2000 –, que
demonstra a perversidade sistêmica que recai sobre os corpos das
mulheres, das crianças – infâncias ameaçadas pela violência
doméstica, órfãos do feminicídio; em uma lógica em que essa
prática de muitas formas está naturalizada, uma sociedade
marcada pela crueldade e violência.
Para problematizar as infâncias ameaçadas, sobretudo em
tempos de dupla tragédia brasileira – da pandemia e do
pandemônio ‘fascistoide’, buscamos promover o debate do
conceito de necropolítica como uma importante ferramenta
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analítica descolonizadora para compreender o horror
contemporâneo nas políticas de morte: do racismo estrutural ao
fascismo misógino homofóbico, e buscamos compreender os
desafios para as infâncias contemporâneas, da cruel pedagogia do
vírus (BOAVENTURA, 2020), passando pelas pedagogias da
crueldade (SEGATO, 2014) às emergentes pedagogias
descolonizadoras: feministas, antirracistas, antifascistas,
anticapitalistas, antipatriarcais, antiburguesas, antielitistas,
antiadultocêntricas.
Com essa perspectiva que gostaríamos de oferecer nossa atual
contribuição ao campo da Sociologia da Infância no Brasil
contemporâneo com o pensamento crítico perante nossa trágica
realidade, mas deixando o pessimismo para dias melhores1,
visualizando pedagogias descolonizadoras nesta crise
sociorreprodutiva e a interlocução com as perspectivas potentes
dos feminismos plurais com múltiplas linguagens e campos de
conhecimentos fora do eixo eurocentrado. Refletindo neste
movimento nas possibilidades de articulação com os movimentos
sociais, as instituições educativas e a dimensão de “fórum da
sociedade civil” que caracteriza a creche como oásis para a defesa
da vida na responsabilidade coletiva à infância.
Reinventar novas formas de vida, resistindo com a poética de
Calvino, vamos encontrar o que não é inferno dentro deste inferno:
vidas infantis nos interessam! Como Marco Polo, o grande e mítico
viajante veneziano relatou em sua viagem fantástica inventada por
Ítalo Calvino, reunida em As Cidades Invisíveis (1972),
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui,
o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos.
Existem duas maneiras de não sofrer: a primeira é fácil para a maioria das
pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de
percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas:
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tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e
preservá-lo e abrir espaços. (p. 156)
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desafio para a Sociologia (da infância?), de Eduardo Pereira
Batista e Leila Oliveira Costa.
Na segunda parte, centramos na questão do trabalho, nas lutas
e nos movimentos de resistência, com A precarização do trabalho,
desigualdades e dinâmicas de ação coletiva: lutas de fronteira e a
Educação Infantil, de Eufrásia Gomes Costa, Helena Cristina
Velardi dos Santos e Priscila Capeli de Paula Dias; O brutalismo
vai à escola, de Carolina Catini; Direitos humanos em disputa:
entre as lutas sociais e as políticas públicas, de Edson Teles,
seguido por Desde o outro lado: crianças e as imagens
sobreviventes em meio a fagulhas e escombros, de Marcia
Aparecida Gobbi; Infâncias e a cidade em tempos de pandemia do
Coronavírus: o direito à cidade em tempos sombrios, de Maria
Tereza Goudard Tavares.
Na terceira e última parte, apresentamos reflexões,
experiências que contribuem na construção do conhecimento a
partir das múltiplas linguagens do campo social, no qual se situam
as diversas infâncias com suas poéticas e potências, a partir dos
textos Por rastros do entre: histórias, memórias e o Ainda-Não no
território das infâncias, de Heloísa A. Matos Lins; Infâncias
Migrantes, Territorialidades e Interseccionalidades, de Rosali
Rauta Siller; Situação de refúgio, infância e estrutura de
sentimento, de Susy Cristina Rodrigues, e Localizar(-se) (n)o
entorno: entre o agir para nada e o projeto pensado Traçados do
primeiro ano do Projeto Lugar-Escola e Cinema, de Wenceslao
Machado de Oliveira Junior.
Por fim, retomamos nosso grande sociólogo Florestan
Fernandes, contra as ideias da força, a força das ideias e ressaltamos que
perante as perversidades sistêmicas que vivemos, históricas no
Brasil, porém, aprofundadas na pandemia do Covid com o
pandemônio bolsonarista, potencializando a nossa extrema
indignação com o desprezo à vida e nos convoca constantemente à
máxima gramsciana do otimismo da vontade. Semeando novos
conhecimentos e celebrando a pequena, mas expressiva vitória nas
últimas eleições em 2020 das mulheres pretas, trans, LGBT’s,
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indígenas, e visualizando as múltiplas e potentes formas, presenças
e linguagens de reexistências das mulheres, do passado, do
presente e do futuro.
Referências
2Fragmento de uma das suas últimas cartas, na prisão antes de seu assassinato,
aos 47 anos, e como salienta na apresentação ‘A cada época, sua Rosa’, de Isabel
Loureiro “Esta Rosa assassinada em janeiro de 1919, continua, cem anos depois,
mais viva do que nunca.” Publicada na biografia em quadrinhos, Rosa Vermelha,
de Kate Evans, 2017.
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FARIA, Ana Lúcia Goulart; FINCO, Daniela. Sociologia da
Infância no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2011.
FERNANDES, Florestan. As trocinhas do Bom Retiro:
contribuições ao estudo folclórico e sociológico da cultura e dos
grupos infantis IN Folclore e Mudança Social na Cidade de São
Paulo. Petrópolis: Ed. Vozes, 1979. p. 153-175.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de
exceção, política de morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.
SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e
realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo:
Expressão Popular, 2015.
SEGATO, Rita L. Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las
mujeres. Revista Sociedade e Estado (Departamento de Sociologia
da UNB). V. 29 Número 2, p. 341-371, Maio/Agosto 2014.
OYÊWÙMÍ, Oyèrónkè. A Invenção da Mulheres: construindo um
sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de
Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
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Primeira parte
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22
Sobre Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí: por outras formas
de ser e estar no mundo
“Sororidade”2
A irmã branca me disse
que todas as mulheres são uma
unidas na face
do chau’vinismo
(pa’don meu inglês)
eu sorria
pa…paa
pa…tri…arca…do é a cruz
que as mulheres carregam, ela cobrou
que devemos nos unir
para lutar
com todas as nossas forças
eu ri…
atormentada por espasmos
a minha cabeça sacudiu para trás
em trêmula oscilação
de um lado para o outro.
irmã mimada
estimule a si mesma
para o frenesi
com contos quixotescos
de ‘xploração masculina.
“Sisterhood”. In: OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. (ed.). African Women and Feminism: Reflecting
on the Politics of Sisterhood, edited. Africa World Press, Trenton: New Jersey. 2003, p. vii.
Nkiru Nzegwu chama a atenção que a sororidade, modelo que traduz as relações de
solidariedade entre “mulheres”, na teoria e na prática é uma sororarquia. O poema de
Nkiru Uwechia Nzegwu foi traduzido por Aline Matos da Rocha, disponível em
https://filosofiapop.com.br/texto/sororidade-nkiru-nzegwu/
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eu…
mulher negra “burra”
ri sem alegria,
afastando as lágrimas
de dor dos olhos.
olhei acima
da minha tarefa
no chão da cozinha
onde, nova irmã encontrada
tinha ordenado que eu fosse
de joelhos
esfregar o chão limpo
pela ninharia que ela pagou:
de joelhos
esfregar o chão limpo
para a sororarquia.
Nkiru Uwechia Nzegwu
Apontamentos iniciais
24
construído e; 2) que as experiências de subordinação das mulheres
estão amparadas em dados universais, inquestionáveis.
É importante afirmar que a questão de Oyèrónkẹ́ não é uma
luta contra as teorias feministas, mas revelar como o processo de
colonização impõe os lugares dos corpos visíveis que têm cor e
gênero/sexo. Suas pesquisas nos convidavam a entrar em contato
com os significados dos papéis e leituras sociais que se fazem dos
corpos sexuados e de seu funcionamento hierárquico: lugares de
poder aos corpos masculinos e desprestígios para os corpos
femininos, a partir de uma narrativa que surgiu com a colonização.
A pesquisadora recupera conceitos africanos fundamentais para o
entendimento de como os lugares dos homens e das mulheres na
sociedade nigeriana até a atualidade são contaminados pelo
colonialismo, e a chegada do patriarcado ocidental e como o
processo de colonização contribuiu para a difusão de ideias
generalizadas a respeito de África, equivocadamente entendida
como um todo machista e misógino, onde, por tradição, mulheres
ocupam lugares de subalternidade.
Conhecemos outros fenômenos da sociedade iorubana que
surgem depois da colonização e interessam Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí,
dentre outros, a organização da cidade, a divisão generificada do
trabalho determinando os lugares no governo para machos ou ainda
as narrativas referentes ao comércio se constituir em um lugar para a
mulher e a guerra e a política como um lugar para os homens.
Para a pesquisadora, a linguagem iorubá se constitui em uma
importante instituição a ser investigada, em especial quando a
tradução potencializa as diferenças entre homens e mulheres, uma
vez que se trata de uma linguagem sem gênero e sem categorias de
parentesco generificadas.
Sem dúvida, a percepção dos iorubás para a diferença dos
corpos existe, entretanto, naquele contexto, ela só faz sentido
apenas quando se trata da reprodução e para os adultos, pois, até o
século XIX, crianças não eram chamadas de ọkùnrin e obìnrin,
traduzidos como homem e mulher, no sentido patriarcal e de
25
acordo com a sociedade ocidental, configurando-se num forte
problema de tradução do iorubá para o inglês.
E novos aprendizados continuam a respeito das tentativas de
generificação da linguagem, tendo em vista que não há palavras
específicas para menino ou menina:
26
O desafio de pensar “africanamente”
27
´Sendo um trabalho com características interdisciplinares, o
que se depreende dele é que a pesquisadora coloca em primeiro
plano um ponto de vista africano, que permanece
consideravelmente sub-representado na academia, em especial
naquela de origem grega conhecida como o local onde se
convencionou ser o das discussões filosóficas. Toda a sua obra nos
presenteia com inúmeras experiências africanas que iluminam
questões teóricas relativas a uma série de áreas de conhecimento,
dentre outras Sociologia, ciência política, estudos sobre as
mulheres, religião, história e literatura.
Em conferência proferida por Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, em
02/07/2021, na II Jornada Feminismos Decoloniais, a respeito de seu
livro A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os
discursos ocidentais de gênero, lançado no Brasil pela editora Bazar do
Tempo, em evento organizado pelo Fórum de Ciência e Cultura da
UFRJ, a pesquisadora contou que realizou sua pesquisa em
Sociologia e não em Antropologia, porque a Antropologia é
reconhecida em África como uma ferramenta da colonização. Ela
relatou ainda que era constantemente questionada por seus
professores a respeito da razão de sua investigação não acontecer
no campo da Antropologia, por entenderem que se tratava de um
estudo de outras sociedades, dentre outras, as primitivas. Para seus
professores, o campo da Sociologia é aquele que se dedica ao
estudo das sociedades modernas, sendo assim, África estaria
excluída deste campo de investigação.
Mas Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí não cedeu e empreendeu com
enorme propósito ampliar a compreensão acadêmica, incluindo no
campo da pesquisa acadêmica, culturas para além do norte global,
com a intenção de oferecer a quem a lê uma compreensão mais
refinada dessas sociedades, no caso a iorubana, a partir do campo
da Sociologia, evitando, assim, formulações reducionistas.
Em sua pesquisa, Oyěwùmí argumenta, a partir da
investigação da língua iorubá, de etnografias, relatos de viajantes e
outras pesquisas sobre os povos iorubás, que, antes da colonização,
na sociedade Oyó-Iorubá do sudoeste da Nigéria, os papéis sociais
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não eram organizados em torno das hierarquias advindas da
divisão, por gênero, dos tipos de corpos e sim pela senioridade, a
partir de uma descendência ancestral.
A principal unidade social política nas cidades de Oyó-Iorubás era a agbo ilé
– uma habitação que abrigava o grupo de pessoas que reivindicavam uma
descendência de um ancestral como fundador. (OYĚWÙMÍ, 2021, p.86)
29
Com a finalidade de construir seu argumento, Oyěwùmí
destaca que a percepção ocidental organiza a lógica cultural em
torno do sentido da visão, identificando pelo olhar lugares sociais
destinados a determinados tipos de corpos, o que não se sustenta
nas sociedades iorubás. Além disso, o apego ocidental ao corpo
trataria a própria organização da sociedade em termos de corpo
político, apontando para uma espécie de raciocínio corporal,
fundado em uma bio-lógica, que naturalizaria relações sociais.
Para Oyěwùmí, há uma certa contradição nos discursos
feministas ocidentais, ao afirmarem gênero como uma categoria
culturalmente construída, universal, interpretando tal
compreensão como residual de uma crença ocidental conectada ao
que ela nomeia como bio-lógica, que leva ao direcionamento das
estruturas sociais para um paradigma naturalizado da divisão dos
corpos e papéis. Assim, a questão que se coloca é:
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especial quando o fazem a partir de lentes ocidentais. Para
exemplificar, é possível encontrar, como resultados desse tipo de
investigação, a própria história dos iorubás contada como sendo
uma sociedade na qual governantes seriam apenas reis, enquanto
as rainhas, se existissem, seriam excepcionalidades.
A esta informação é preciso destacar que, no espaçamento
geográfico da chamada Iorubalândia, os nomes iorubás não são
marcados pelo gênero; uma questão importante que se coloca é
como as pessoas que pesquisaram as estruturas de governo iorubás
puderam inferir, ou ter certeza, que o trono era ocupado por um
macho e não por uma fêmea?
entretanto, esta foi a cultura delimitada por ela, para as finalidades de sua
pesquisa, como principal unidade de análise.
4 Entre outras designações do título, Marcio de Jagun define a ìyálóde também
31
O prefixo ìyá (mãe) sugere uma fêmea. Mas também significa “mulher mais
velha”; portanto, é uma indicação e idade adulta, senioridade e,
consequentemente, responsabilidade e status. Assim, Ìyálodé também pode
ser traduzido como “anafêmea mais velha encarregada de assuntos públicos
(OYĚWÙMÍ, 2021, p.169 e 167, grifo nosso)
32
de gênero para os nomes, as funções ou estruturas sociais. Deste
modo, surge um problema, uma vez que a própria cultura sendo
traduzida e, assim, o gênero é introduzido nela como uma das
heranças coloniais, criando os homens patriarcais e as mulheres
subordinadas que hoje encontramos em território iorubá na Nigéria.
Ainda da publicação original em 1997, nos Estados Unidos, o
livro The Invention of Women: Making an African Sense of Western
Gender Discourses é referência, grande repercussão e influência
graças à crítica etnograficamente bem fundamentada à
transposição de categorias ocidentais para realidades africanas,
notadamente a categoria “gênero”, como descrito pela autora.
A importância da obra de Oyěwùmí se dá principalmente
pelas contribuições para pensar a teoria feminista, nos estudos
decoloniais, uma vez que a autora discute gênero como uma
categoria de organização colonial. Aliás, na conferência proferida
por Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, ela afirma ter sido uma das primeiras
pesquisadoras a falar em decolonialidade e suas implicações para
a África; para ela, a degradação das narrativas africanas afirmaram
as narrativas ocidentais, reforçando as dominações coloniais e suas
consequências, a partir do sequestro dos africanos.
Em seu livro, Oyěwùmí explicita uma percepção crítica e
inovadora, pela qual recebeu o prêmio Distinguished Book Award in
the Genderand Sex Section of the American Sociological Association,
sendo ainda finalista para o Prêmio Herskovits da African Studies
Association, o prêmio para livro mais importante que um africanista
pode receber. Ainda em 2014, ela recebeu o Distinguished Africanist
Award da New York African Studies Association. Assim, o que se
conclui é que tanto no próprio continente africano, como no espaço
dos debates decoloniais e críticos da Diáspora Africana na América
Latina, e da sociologia do gênero, a obra de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí
está coberta de grande significado sociológico e político.
33
Ainda sobre os encontros com o pensamento de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí
34
E, embora a existência dos órgãos sexuais das pessoas seja
reconhecida, eles não atuam no interior da sociedade Oyó-Iorubá
como um instrumento de diferenciação, mas de distinção anatômica.
Tanto que ao criar os conceitos de anafêmea e anamacho para se
referir à anatomia sexual do corpo, Oyěwùmí não evoca oposições
binárias. O fato de uma pessoa possuir órgãos genitais masculinos
ou femininos não a coloca automaticamente em lugares de regalias,
status e posições de poder, e nem mesmo define privilégios
hierárquicos e lugares de subordinação.
É sempre importante destacar que, para a autora, os termos em
iorubás obìnrin e ọkùnrin, quando consideradas respectivamente como
categorias “mulher” e “homem”, apresentam equívocos de tradução
praticados pelas pessoas que pesquisam o pensamento iorubá, a partir
de lentes ocidentais. Isto porque obìnrin e ọkùnrin não são categorias
que se opõem, e tampouco que se hierarquizam de modo fixo nas
relações que estabelecem. Dessa forma, uma possível tradução para
essas categorias poderia ser fêmea anatômica e macho anatômico, como
modos de diferenciá-las fisiologicamente, sem, contudo, estabelecer
em si mesmas classificações sociais primárias e secundárias.
Vale ressaltar que Oyěwùmí, ao afirmar a existência de
hierarquias em Oyó antes da colonização, destaca que elas não eram
baseadas em gênero, e, embora os conflitos e as relações de poder
entre as pessoas existissem, eles se davam sob outras
cosmopercepções, e que apesar dos processos coloniais e da contínua
colonialidade da vida, o lugar da senioridade existe e resiste.
Por outro lado, é relevante destacar que Oyěwùmí não
descarta o gênero como um conceito legítimo e importante para
se refletir as relações patriarcais, mas nos chama a atenção de que
se trata de uma categoria derivada do Ocidente, cujas noções de
família, casamento, maternidade, linhagem e parentesco foram
construídas em um contexto ocidental e patriarcal, portanto,
impossível de serem aplicados em sua inteireza para analisar as
sociedades africanas.
35
Do livro traduzido às reflexões possíveis
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Assim, o progresso de sua pesquisa se dá quando ela percebe
que a categoria “mulher”, fundamental nos discursos ocidentais de
gênero simplesmente não existia nas terras iorubá, antes do seu
contato direto com o Ocidente e do processo de colonização.
Ainda do livro emerge a compreensão da autora acerca
daquilo que diz respeito ao domínio ocidental dos estudos
africanos, obrigando-a a empreender um reexame dos conceitos
que baseiam tal discurso nos referidos estudos, levando em conta,
de forma consciente, a experiência africana. Ou seja, determinados
conceitos com sua própria bagagem filosófica e cultural seriam
distorcidos em culturas diferentes daquelas das quais eles se
originam. Assim, em busca da compreensão da lógica cultural de
uma sociedade africana como a iorubá, as categorias conceituais e
as formulações teóricas que derivam de experiências ocidentais
tiveram que ser desconstruídas por Oyèrónkẹ́.
Compreendendo que não poderia fazer um estudo de
“gênero” enquanto uma categoria concebida biologicamente, em
uma localidade iorubá, no livro, ela escreve primeiro uma história
dos discursos de gênero nos estudos dessa sociedade. Um estudo
que documentou o porquê e como o gênero foi construído na
sociedade Iorubá no Sudoeste da Nigéria, formalmente colonizada
pelos britânicos, de 1862 a 1960, e ainda s como o gênero é
constituído enquanto uma categoria fundamental nos estudos
acadêmicos referentes aos povos iorubá. A maior questão aqui é:
quais são as relações entre, de um lado, as distinções bio-
anatômicas e as diferenças de gênero como parte da realidade
social, e, por outro lado, as construções de gênero como algo que o
observador traz a uma situação particular?
Oyèrónkẹ́ interroga as maneiras pelas quais os pressupostos
ocidentais acerca das diferenças sexuais são usados para
interpretar a sociedade iorubá e, nesse processo, criam um sistema
de gênero local. Sua análise desafia uma série de ideias, comuns à
maioria dos escritos das feministas ocidentais:
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1. As categorias de gênero são universais e atemporais e estiveram presentes em
todas as sociedades em todos os tempos. Muitas vezes, a ideia é expressa com
frequência em um tom bíblico, como se sugerisse que “no princípio era o gênero”.
2. O gênero é um princípio organizador fundamental em todas as sociedades
e, portanto, é sempre proeminente. Em qualquer sociedade, o gênero está
em todo lugar.
3. Há uma categoria essencial e universal, “mulher”, que é caracterizada pela
uniformidade social dos seus membros.
4. A subordinação da mulher é universal.
5. A categoria “mulher” é pré-cultural, fixada no tempo histórico e espaço cultural
em antítese à outra categoria fixada, o “homem”. (OYĚWÙMÍ, 2021, p. 18)
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como a posição no casamento. Mesmo o controverso papel de aya
(posição de quem entra na linhagem pelo casamento e não posição
de nascimento), não seria atribuído às anafêmeas, apontando para
o aspecto da delimitação anatômica específica em relação à
reprodução e não a papéis sociais. Ou seja, a designação de ọkùnrin
como anamacho e obìnrin por sua condição de anafêmeas não se dá
pelo tipo de corpo, mas por elas entrarem como forasteiras/outsider
e não como nativas/insider da linhagem. Oyěwùmí demonstra que
as diversas instituições vinculadas com o casamento - como o dote,
a poligamia e o acesso e controle sexual -, não estão vinculados com
o tipo de corpo e, portanto, não estão vinculados com gênero na
sociedade iorubá, antes da colonização da Nigéria pela Inglaterra.
Os capítulos do livro exploram diferentes dimensões de seu
trabalho na sociologia do conhecimento, também chamada de
epistemologia crítica, enquanto ela articula as particularidades das
epistemologias eurocêntricas propostas como universalidades,
ampliando concepções de gênero para além do biologismo e
corporeidade e, em especial, quando a pesquisadora chama atenção
para os riscos da generificação da linguagem na tradução das
culturas, a partir do Ocidente. Tais temas emergem explicitamente
nos capítulos “Visualizando o corpo: a ordem social e a biologia:
naturais ou construídas?”, “Fazendo história, criando gênero: a
invenção de homens e reis na escrita das tradições orais de Oyó” e
“A tradução das culturas: generificando a linguagem, a oralitura e
a cosmopercepção iorubás”, nos quais a autora desconstrói
particularidades do pensamento feminista ocidental, apresentadas
como universalizações.
Apesar das inúmeras contribuições de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí,
ainda urge o acesso e a apropriação de propostas teóricas, nas quais
o ponto de partida seja a centralidade africana para compreensão da
temática do gênero, considerando as pessoas e suas experiências,
tanto no continente africano, quanto das pessoas em diáspora.
Por fim, é importante salientar que o livro A invenção das
mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de
gênero se constitui num importante convite para compreender a
39
sociedade iorubá a partir de sua cosmopercepção, considerando que
a organização das sociedades ocidentais se dá com outras dinâmicas,
muitas delas em conjunturas patriarcais, e que é relevante saber que
há outras constituições e formas de ser e estar no mundo, para além
das sociedades criadas a partir da experiência de colonização.
Referências
40
Disponível em https://filosofiaafricana.weebly.com/uploads/1/3/2/
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nascimento. Disponível em: https://filosofia-africana.weebly.com/
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ROCHA, Aline Matos da. Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí: tessituras
filosóficas comprometidas com a decolonialidade. Acervo Online.
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em: https://diplomatique.org.br/oyeronke-oyewumi-tecituras-
filosoficas-comprometidas-com-a-decolonialidade/#_ftn2 . Acesso
em: 02 jun. 2021.
41
42
TRANSversas:
gênero e educação
Primeiras palavras
conforme registro cível. O direito de uso do nome social é assegurado pelo Decreto
nº 8.727/2016. Sara assina com os dois nomes.
43
na instituição no ano de 2014, uma vez que já havia outras pessoas
trans naquela universidade.
Nestas linhas, faz-se um convite a desacostumar o olhar a
partir de sua experiência de vida. E de vida no exercício do fazer
docente. O convite é voltar-se para os “cistemas”, como Sara York
(2020) denomina em sua dissertação; sistemas grafados com “C”,
que derivam de cisgeneridade5.
Manoel de Barros (2003) afirmava que as palavras eram como
conchas. Conchas que carregam clamores antigos – acrescenta-se,
da história. Dizia que queria escovar palavras. “Cistemas” e
“Transversas” são duas palavras que buscam os vestígios históricos
encerrados nos termos que usamos cotidianamente.
Etimologicamente, o termo conversar vem do latim conversãri
(CUNHA, 1986, p. 213), que significa conviver com alguém. Sua
raiz, verso, significa voltar ou direcionar-se para algum lado. Em
um jogo de palavras e inícios, escolhemos TRANSversar,
objetivando ir além do binarismo.
Esses “cistemas” excluem possibilidades outras de
subjetividades, ancorando-se na suposta essencialidade binária: ou
você é homem ou você é mulher. Um sistema que tenta fixar
identidades. Um sistema cisgenerificado, que pauta suas ações a
partir da ideia de que o gênero é algo biológico e imutável, e que
qualquer apontamento diferente desta conexão sexo/gênero é uma
distorção da natureza.
Por outro lado, enquanto o sistema fixa, modula, põe fôrma, a
transgeneridade desafia, desloca, convoca. A transgeneridade
desacomoda noções dadas como naturais e as coloca sob a
perspectiva da história, do privilégio, dos modos aceitáveis de ser,
da invenção de certos padrões culturais.
44
A invenção refere-se a algo que não esteve sempre ali, que não
é natural. Os binarismos não são naturais, mas construções datadas
de um tempo e de uma cultura. Fomos aprendendo ao longo da
história acerca dos modos de ser homem e modos de ser mulher
nessa sociedade.
Mas como fugir do “ou isso ou aquilo”? Pela multiplicidade.
Abordar os processos, os fluxos e não aquilo que se deveria ser, a
incansável busca de um perfil desejado. Habitar o caos e dele
produzir outras estéticas de existência. A noção não binária
convida à desconstrução, ao deslocamento e ao desafio de inventar
outras docências, outra escola e outras relações, problematizando
nossos olhares e fazeres binários.
Nas páginas seguintes, sem pretensão de esgotar as
contribuições das práticas e pesquisas de Sara York,
problematizam-se os modos como os corpos habitam a escola e os
espaços acadêmicos. Especialmente a partir das marcas de um
corpo trans na escola, traçamos a possibilidade e os inícios de um
pensar desde a noção de docências múltiplas, além de abordarmos
questões referentes à ideologia.
Deste modo, pensar as contribuições de ações e pensamentos
não binários para a Sociologia da Infância é nosso esforço de escrita
e convite. Traçamos uma composição teórica e propositiva, desde
produções teóricas, algumas reportagens veiculadas de modo
online em jornais e duas charges de Larete Coutinho6. As imagens
não têm caráter representacional ou exemplificativo, elas compõem
a tessitura dos nossos pensamentos e do texto.
Para tal intento, selecionamos três unidades de abordagem e
problematização: 1) (in)visibilidade e o “cistema”; 2) o corpo trans
na escola; 3) a ideologia de gênero. As subseções que seguem
abordam cada uma destas unidades.
45
Visibilidade e invisibilidade parecem ser desses binarismos
cotidianos com os quais nos esbarramos em cada esquina. Vemos o
que queremos ver? Ou vemos o que nos é permitido ver? A
metáfora do olhar trata do que é visível e nos permite aproximar
dos movimentos, em redes sociais e programas de pós-graduação,
por exemplo, que buscam fazer com que os corpos trans sejam
perceptíveis. É esse olhar revelador que coloca em evidência algo
que antes estava escondido, algo que estava atrás das cortinas.
A luz tem sido utilizada, em alguns contextos, como uma
metáfora para designar revelação, ou seja, a possibilidade de ver
certos mistérios, certas verdades. O mito da caverna de Platão
(2014) coloca esse dualismo entre escuridão e luz, ignorância e
conhecimento. Na caverna, os homens veem somente sombras do
que se passa no exterior, e acreditam que todas as sombras e os ecos
que ouvem são o mundo. As sombras seriam a imagem distorcida
do real e a possibilidade de acesso ao exterior da caverna, o acesso
à realidade como ela é. A luz seria o esclarecimento e a razão.
Entretanto, a partir de retratos cotidianos com materiais de
sites e jornais, torna-se perceptível a noção de que visibilidade e
invisibilidade não são mutuamente excludentes. Problematiza-se a
ideia de que quando se torna visível algo, ou se coloca em pauta a
visibilidade das pessoas trans, os lastros cotidianos de
invisibilidade deixariam de existir. Travestis sentem e vivem isso
com e no corpo.
Visibilidades e invisibilidades são coexistentes e são nos
movimentos, nas insurgências, que estas movem os “cistemas”.
(In)Visibilidades que tensionam modos de pensar, de existir, de se
relacionar, de brincar, de vestir, de se conduzir e significar o mundo.
Segundo matéria da Folha de São Paulo (PERRIN, 2015), entre
2014 e 2015, por exemplo, a rede social Facebook passou a oferecer
no Brasil outras opções de identificação, totalizando dezessete
identidades de gênero. Além disso, caso o usuário não se
identifique com nenhuma das opções, ainda pode escrever sua
própria identificação em uma caixa de texto. Em outros locais,
46
como o Facebook estadunidense, são listadas cinquenta identidades
de gênero. Contudo,
embora seja interessante o contraste com o “conservadorismo de gênero” —
a ideia de que só existem dois gêneros, que seriam determinados pelo sexo
—, com uma abordagem leve, não deixa de ser um empreendimento teórica
e concretamente incorreto, levando adiante um entendimento de gênero que
desconsidera completamente — ou quase completamente — as restrições
que podem ser atribuídas à identidade do sujeito por outros entes que não a
sua mente individual. À essa altura, é interessante lembrar que toda
identidade é coletiva, e que gênero, longe de ser uma mera descrição de
características, é uma categoria concreta que expressa determinado limite de
existência, do qual não se pode escapar (...) se pretende-se continuar
sobrevivendo em uma sociedade materialmente generificada: ou seja, que
está inteiramente determinada e constituída em relação com a diferenciação
de múltiplos gêneros. (COMUNISMOTRANSVIADO, 2020)
47
nove universidades federais possuem cotas em programas de
mestrado e doutorado, segundo levantamento da Folha de São Paulo
(MAIA, 2019). Tais políticas afirmativas buscam lutar contra a
exclusão de pessoas trans em cursos superiores, fazendo com que
essas pessoas tenham mais visibilidade e oportunidades de estudos.
Enquanto no ambiente universitário travestis são
considerados invisíveis, pela baixa presença, em outros, como a
prostituição, esses corpos marcam presença pela exclusão sofrida
desde a escola, como aponta York (2020). Os retratos de exclusão e
de luta por liberdade de gênero foram abordados em matéria do
Correio Braziliense, intitulada “Mês da Visibilidade Trans: a história
de crianças e jovens transgênero” (CABRAL, 2020) e mostram como
crianças sofrem com o preconceito escolar relacionado ao uso do
nome social e do banheiro, por exemplo. E chegamos a mais um par
binário inclusão-exclusão.
No mês da visibilidade trans, janeiro de 2021, Keron, 13 anos,
tornou-se estatística, sendo a vítima mais jovem do transfeminicídio,
segundo reportagem do jornal O POVO (SISNANDO, 2021). O
suspeito, um adolescente de 17 anos, disse à polícia que matou Keron
Ravach, como gostava de ser chamada, em razão de um
desentendimento no pagamento de um programa sexual. Os amigos
de Keron discordaram desta versão contada pelo adolescente, e
disseram que ela tinha o sonho de ser digital influencer.
Travestis com e no corpo vivem as marcas de uma educação
que tradicionalmente não tem se disponibilizado a repensar as
noções sobretudo binárias. Uma educação que tem feito
exatamente o contrário, e reforça o binarismo, segundo o qual
“meninas vestem rosa e meninos vestem azul”, profanado pela
Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos8, Damares Alves,
em um vídeo, referindo-se a uma “nova era” no Brasil. Uma “nova
48
era” com velhas receitas e repetidos ingredientes e modos de
preparo para os poucos que se sentam à mesa.
Também circula nas redes um outro vídeo, em que a ministra
afirma que Elsa, personagem principal do filme Frozen, produzido
pela Disney, por ser lésbica, terminou em um castelo de gelo,
sozinha. Damares tem defendido que a ideologia de gênero quer
influenciar a sexualidade das crianças.
Entretanto, cabe apontar, na ação cotidiana percebemos que de
fato há uma ideologia presente na vida social de todos/as, e ela é
significada por agentes reguladores e representações nada
inocentes, que coadunam com práticas falocentradas, machistas,
misóginas e muito eficientes na exclusão de qualquer sujeito que
ouse romper com este pacto: a cisgeneridade. Tais discursos e
tantos outros põem em circulação certas verdades presentes no
imaginário social, deixando de problematizar a generificação como
uma invenção datada historicamente, e que hoje se assentam em
agendas ultraconservadoras. Essas verdades que circulam colocam
em funcionamento a ideia de que a atribuição de cores-gênero, os
modos de conduta aceitáveis e tantas outras características seriam
noções naturais, a-históricas e aculturais.
Nos contextos político-educativos, não há a possibilidade de
pensar a multiplicidade e sempre há um desejo de colocar em
caixinhas: ou você é isso ou você é aquilo. E aqui não se trata de
apontar política no âmbito de partidos políticos, mas política como
um modo de inventar a si e ao mundo (KASTRUP, 2007). Há uma
necessidade de rotular, de nomear e, principalmente, de exercer um
controle e uma relação de poder sobre os corpos. São fazeres e
saberes da tradição que nos atravessam, nos constituem e, como
podemos perceber nas reportagens elencadas, têm deixado rastros,
efeitos e marcas nas crianças. São sinais de uma educação que
pretende regular os corpos. São marcas que matam. Marcas de
crimes bárbaros.
Considerando esse contexto, cabe destacar que a Sociologia da
Infância tem imprimido um esforço para que possamos ouvir,
observar e considerar, no coletivo infantil, a voz das crianças a
49
respeito de suas experiências. Os retratos que apresentamos acima
contribuem para a problematização dos modos pelos quais
construímos relações com as crianças na escola.
Há tantos outros retratos como esses que convocam nosso
pensamento, nosso olhar, como a transcrição de um trecho de
conversa a seguir:
“- Você quer ser menina? - Às vezes.”
Esse é um diálogo entre uma profissional da área da saúde,
que tinha ido à escola realizar uma atividade de higiene bucal, e
uma criança que brincava no pátio; ouvido e registrado no caderno
de campo por Eleonora Simões (SIMÕES, 2015), uma das autoras
deste texto, enquanto realizava sua pesquisa de Mestrado em
Educação. Um diálogo que se inicia com a criança, um menino, que
usava uma espécie de lenço, bem comprido, na cabeça, fazendo-o
de cabelo. Considerando essa conversa, espera-se que a essa altura
a/o leitora/leitor esteja se perguntando qual a relação entre cabelos
compridos e ser menino ou menina.
Percebe-se que junto com o banheiro – problematizado pelas
autoras Sussekind; York; Carmo, 2020 - e o nome social, o cabelo é
uma problemática que condiciona modos de ser na nossa
sociedade. Modos que tradicionalmente estão atrelados aos scripts
de gênero considerados normais, desde uma visão biologizante:
homem ou mulher.
Cabe questionar: Quais preconceitos esta pergunta carrega?
Quais visibilidades essa pergunta lança? Quais possibilidades
exclui? Destituirmos as ideias binárias e compormos
multiplicidades na formação de professoras e professores e nas
docências enfatizam um modo de relação com as crianças no
exercício da atividade docente. É a partir dessas perguntas e dessa
perspectiva que nos deslocamos para a próxima temática já iniciada
nessas linhas.
50
Pensar o corpo trans na escola envolve considerar crianças,
adolescentes e professoras/es. Comecemos pelas/os docentes.
Nesse processo de invenção da docência como profissão é
importante considerá-la na relação com as ideias acerca de gênero.
Para auxiliar nesta tarefa, trazemos um excerto de um texto de
autoria de Guacira Louro.
51
assentar em outras bases que não a referência homem ou mulher,
que não as referências tradicionalmente transmitidas.
Mombaça (2015) contribui ao abordar a questão da evasão
escolar, a qual ele entende como expulsão, quando a escola se
apresenta como um ambiente hostil, violento, excludente dos
corpos e das mentes dissidentes, lugar no qual as relações entre as
pessoas e os espaços não ocorrem a partir do contexto da
pluralidade e da diferença existente nas escolas. Ainda, nas
conclusões do mesmo autor, essa evasão causa uma ausência da
voz de pessoas trans dentro das instituições educacionais, inclusive
nas Universidades, e quando conseguem se inserir nesses espaços,
essas pessoas são colocadas em um lugar subalterno e silenciadas,
mesmo nos estudos acerca das experiências trans.
Nas reportagens mencionadas anteriormente (SISNANDO,
2021; CABRAL, 2020; MAIA, 2019), especialmente na matéria do
Correio Braziliense (CABRAL, 2020), as crianças trans apontam o
caos que se forma quando querem ir ao banheiro, uma necessidade
fisiológica. O uso do banheiro já virou, inclusive, matéria jurídica,
no site, do Superior Tribunal Federal (STF), em que o tema da
discussão é o que segue:
Tema 778 - Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos arts. 1º, III,
5º, V, X, XXXII, LIV e LV, e 93 da Constituição Federal, se a abordagem de
transexual para utilizar banheiro do sexo oposto ao qual se dirigiu configura
ou não conduta ofensiva à dignidade da pessoa humana e aos direitos da
personalidade, indenizável a título de dano moral.9
9http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProces
so.asp?incidente=4657292&numeroProcesso=845779&classeProcesso=RE&numer
oTema=778> Acesso em: 30 jun. 2021.
52
ideias bastante hipotéticas e fantasiosas acerca de possíveis
violências sexuais contra as mulheres e os homens cisgênero,
pautadas em uma compreensão das pessoas trans como
pervertidas e sem caráter.
Denardin (2019) analisa como questões relativas a gênero e à
sexualidade colocam em funcionamento, no discurso jurídico,
silenciamentos dos sujeitos trans. Aponta como as leis analisadas,
apresentam gênero sob a perspectiva do que foi convencionado na
sociedade heteronormativa, ao determinismo biológico sexo-
genitália-gênero. Como conclusão, destaca que “existe uma
resistência do jurídico em tornar o sujeito trans um sujeito
contemplado pela lei em sua integridade, um sujeito de direito
como todos os outros não trans” (DENARDIN, 2019, p. 48).
Silenciamentos: no mês de junho de 2021, mês da História da
visibilidade LGBTQIAP+, uma criança de 11 anos10 foi hostilizada
no grupo de mensagens instantâneas da escola, após sugerir que
fizessem um trabalho referente ao mês LGBTQIAP+. No tal grupo,
foram solicitadas sugestões de temáticas para um trabalho. A
criança sugeriu o tema, como pedido. Em seguida, foi hostilizada
por famílias, outros colegas e até pela própria direção da escola,
com comentários que diziam que o tema era inapropriado; pediam
para que a criança fosse retirada do grupo e inclusive indagavam
“quem é você?”. No vídeo, a criança aparece chorando depois do
episódio, e a família lhe apoiando, especialmente a mãe,
comentando: “Não precisa chorar. A mãe te ama muito”.
Esses retratos cotidianos evidenciam as tensões entre visibilidade
e invisibilidade e o modo como tal tema movimenta o “CIStema” (o
modo de governamentalidade que insere pessoas e agentes no
(i)mundo a partir da lógica do sexo igual ao gênero, ou do gênero
como sinônimo equivalente ao sexo designado no nascimento e,
10O vídeo circula em uma rede social e foi matéria do site Hugo Gloss, no dia 14
de junho de 2021. Disponível em: <https://hugogloss.uol.com.br/brasil/crianca-de-
11-anos-e-atacada-em-grupo-da-escola-apos-sugerir-trabalho-com-tema-lgbtqia-
e-familia-faz-desabafo-ele-foi-massacrado> Acesso em: 14 jun. 2021.
53
portanto, binário, dentro dos preceitos sexo igual ao gênero, que é
igual à expressão de gênero). São retratos instantâneos, ou seja,
visibilidades que se dão em curto espaço de tempo. Visibilidades
momentâneas que movimentam aqui e ali o “cistema”, tensionam,
rompem linhas de força cisbinárias e trans-excludentes.
Em seus textos, Sara York (2020) problematiza a percepção do
corpo trans como um corpo público, corpolítico e corpúbico – de
púbis. De acordo com a autora, há uma certa convenção de que
determinadas perguntas não podem ser feitas ao corpo cisgenêro,
pois compreende-se que pertence à intimidade. O mesmo não
ocorre com o corpo trans. As pessoas, de modo geral, querem saber
e querem que a pessoa torne pública (ou púbica), assim como seus
gostos, suas relações e seus modos de agir e ser no mundo. Há uma
ideia de que a pessoa trans precisa tornar público que é trans,
porque é trans e sua vida privada torna-se uma manchete. Uma
dessas perguntas dá corpo ao título da dissertação de Sara York:
“TIA, VOCÊ É HOMEM?” (YORK, 2020).
Destarte, no geral, há um imaginário social de que o
comportamento das pessoas trans influenciaria o modo como as
crianças se percebem. Nesse cenário, cabem os destaques de Sara
York (2020), ao apontar que determinados modos de conduta na
docência são aceitáveis quando se trata de pessoas cis-hétero. Ela
enfatiza como “nuances da sala de aula” no aprender a fazer, a
conhecer, a ser e, principalmente, no aprender a conviver.
O que pode um corpo professor(a) Trans? O que pode um
corpo trans na escola? O que pode uma criança trans na escola? O
que é ideologia de gênero? O que os discursos contra uma suposta
ideologia de gênero produzem? É a respeito dessas questões, nos
seus interstícios, que precisamos nos mover e traçar
microrrevoluções cotidianas.
54
Começamos estas linhas com uma charge da cartunista Laerte
Coutinho (2015), elaborada após a aprovação do texto do Estatuto
da Família.
Fonte: <http://redacaoemrede.blogspot.com.br/2015/10/ideias-charge-de-laerte-
sobre.html>. Publicado no Jornal Folha de São Paulo. Acesso em: 26 jun. 2021.11
Universal Music.
55
indica pelo cenário de composição, o cantor se referia aos jovens
que não se engajavam em lutas.
Atualmente, ideologia tem sido abordada como algo ruim.
Fato é que aprendemos com e no nosso cotidiano valores, atitudes,
crenças, modos de conduta e de pensar.
56
Quando alguém afirma que meninas brincam com bonecas e
meninos com carrinhos, há um certo grupo que quer manter a
relação discursiva binária, que traça brinquedos típicos para
crianças a partir de seu sexo biológico, segundo características
cultural e historicamente atribuídas a estes. Por exemplo, meninas
devem ser delicadas e cuidar da casa, e meninos devem ser
arrojados e habitar a rua. Há, nesta construção, uma ideologia.
Ideologia, produzida nas normais heteronormativas, que é,
muitas vezes, transgredida pelas crianças. As crianças, desde bem
pequenas, se apropriam dos discursos ideológicos, transformando-
os. Na charge de Laerte Coutinho, abaixo, o menino transgride as
fronteiras do modo de brincar de boneca, transformando-a em um
carrinho. Transgredindo brinquedos produzem junto às demais
crianças outras culturas e, quiçá, podemos afirmar, uma ideologia.
57
(...) de forma incisiva, a igreja católica, mais especificamente, arregimenta,
intelectuais (professores, antropólogos, biólogos e tantos outros estudiosos)
que atuam em suas universidades e, também nas igrejas (...) (GONÇALVES
JR, 2019, p. 114).
58
opinião particular, advinda de experiências particulares. Santos
(idem) nos provoca com algumas questões: “O padrão estético de
genital de bebês está servindo a quem?”, “Por que eu preciso definir,
fazer uma plástica genital para uma criança entrar numa escola de
Educação Infantil ou numa creche?”
O termo ideologia de gênero tem povoado os discursos
midiáticos e políticos na contemporaneidade. No entanto, desde
antes do ano de 1500, no Brasil, essa ideia já estava posta e
expressada por cartas de padres jesuítas à Europa, como se lê nas
linhas abaixo:
59
Na atualidade, pessoas como Sara York seguem
TRANSgredindo essas normas e regras que o “Cistema”
heteromormativo, sexista, machista, europeu, branco caucasiano
inventou. São regras que constrangem e expulsam das escolas, e da
vida, sujeitos como Keron, e tantas outras pessoas, e sonhos.
Ser transgênera, no Brasil,
60
regulamentos. Usa-se neste texto a ideia de contravenção como
significação para os modos de TRANSgredir convenções dadas
socialmente como naturais acerca dos modos de conduta dos corpos.
É possível que em vez de um reformismo, precisemos avançar
para uma revolução em sexo-gênero-sexualidade. Que não mais
precisemos de denominações, de modo que as categorias de gênero
atuais só sirvam por um breve momento e logo possamos seguir
para além disso. Que crianças, como Keron, possam morrer de
velhice. Talvez para isso, no momento, seja necessário nos
juntarmos e irmos para a luta, com pessoas que estejam ao nosso
lado, e saibamos que:
Então é isso. Histórias que a gente ignora, que a gente não vê, que a gente
precisa muito compreender, isso tudo tá dentro da sala de aula. Tudo isso
que a gente tá falando Daniel, corrobora para uma sala de aula excludente e
sem a diferença, todos nós perdemos. Com a diferença, todo mundo aqui
ganha, porque a gente aprende a lidar com o outro, a gente aprende a
respirar, a viver e a ser melhor no mundo. (YORK, 2020, p.29)
Sara York (2020, 2019) faz parte de uma ínfima parcela que
sobreviveu ao processo escolar – o que algumas/alguns podem até
alegar como esforço e mérito individual. Fato é que a maioria tem
sido “expulsa” da vida, da escola, do sistema de oportunidades,
com o nome de evasão e “escolhas de vida”. O que pode a
multiplicidade convocar a pensar a respeito e com os coletivos
infantis? Que possamos a partir daqui continuar a TRANSversar.
Referências
61
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jovens transgênero. Correio Braziliense, 2020. Disponível em: <
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/revista/2020/01
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62
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doi.org/10.5902/1984644458266
64
“VENHAM PRA RODA, VAMOS COMEÇAR A
BRINCAR!1”: AS DANÇAS POPULARES E O
ENCONTRO DE GERAÇÕES
Eldorado.
65
Situar-nos, um negócio enervante que só é bem-sucedido parcialmente, eis
no que consiste a pesquisa etnográfica como experiência pessoal. Tentar
formular a base na qual se imagina, sempre excessivamente, estar-se situado,
eis no que consiste o texto antropológico como empreendimento científico.
Não estamos procurando, pelo menos eu não estou, tornar-nos nativos... ou
copiá-los. Somente os românticos ou os espiões podem achar isso bom. O
que procuramos, no sentido mais amplo do termo, que compreende muito
mais do que simplesmente falar, é conversar com eles, o que é muito mais
difícil, e não apenas com estranhos, do que se reconhece habitualmente.
(GEERTZ, 1989, p.10)
66
aprendiz o livro que reúne os relatos dos diários das viagens, e
Danças Dramáticas do Brasil uma obra que contextualiza o histórico
das danças, além de apresentá-las a partir dos documentos
provenientes das pesquisas de campo.
Telê Ancona Lopez aponta que Mário de Andrade não
entendia o Folclore como algo isolado, estático, mas como ciência
social, não separando-o dos demais fenômenos da sociedade
(LOPEZ apud ANDRADE, 1976, p.16). Seguindo uma mesma
perspectiva, o presente estudo baseia-se em um conceito de
culturas no plural, portanto, múltiplas, e em transformação,
compreendendo que:
67
dizerem policiadas, bem-educadinhas e atuais. São tudo isto, com Cheganças
ou sem elas. Mas quem que pode com o delírio de mando dum polícia ou dum
prefeito ou com a vergonha dum cidadão enricado que viajou na avenida Rio
Branco! Cocos viram besteira, Candomblé é crime, Pastoril ou Boi dá em briga.
Mas ninguém não lembra de proibir escravizações ditatoriais, perseguições
políticas, e ordenados misérrimos provocadores de greves, que de tudo isso
nasce crime e briga também. Está se vendo: criaram preconceitos de
policiamento, de briga, de crime também... Mas talvez as civilizações evitem
com cuidado criar o conceito de felicidade, que desse lado é que estão
Cabocolinhos e Congados... A decadência das danças dramáticas é
“estimulada” pelos chefes, o seu empobrecimento é “protegido” pelos ricos.
(ANDRADE, 1982a, p.69-70)
68
considera-se que entre elas estejam a diversão e a libertação, esta
última em um sentido subjetivo.
Registra-se que Mário tinha formação na área musical, e atuou
como professor de piano, todavia, moveu-se por seu grande
interesse em investigar a música tradicional. Dessa maneira,
entende-se que ao se referir a esse campo, paralelamente, abarcam-
se as danças, que muitas vezes são intrínsecas a esse contexto.
Se é certo que tudo o que se relaciona com a música está situado no interior
da esfera lúdica, o mesmo se pode afirmar, e em mais alto grau, da irmã
gêmea da música, a dança... ela é sempre, em todos os povos e em todas as
épocas, a mais pura e perfeita forma de jogo. (HUIZINGA, 1971, p.183-184)
69
Referindo-se aos grupos artísticos que recriam danças e
músicas populares, Arantes (2006) apresenta os principais aspectos
que os diferenciam dos que não são submetidos aos interesses do
mercado, explicando que a produção empresarial retira-lhes as
dimensões sociais fundamentais:
70
As danças e o protagonismo das crianças
71
cantando na praia. Gente predestinada pra dançar e cantar, isso não tem
dúvida. Sem método, sem os ritos coreográficos do coco, o pessoalzinho
dançava dos 5 anos aos 13, no mais! Um velhote movia o torneio batendo no
bumbo e tirando a solfa. Mas o ganzá era batido por um piazote que não
teria 6 anos, coisa admirável. Que precocidade rítmica, puxa! O piá cansou,
pediu para uma pequena fazer a parte dele. Essa teria 8 anos certos, mas era
uma virtuose no ganzá. Palavra que inda não vi, mesmo nas nossas
habilíssimas orquestrinhas maxixeiras do Rio, quem excedesse a
paraibaninha na firmeza, flexibilidade e variedade de mover o ganzá. Custei
sair dali. (ANDRADE, 1976, p.308)
72
nessas danças, como mencionado anteriormente, que, de acordo com
Huizinga (1971), também é reconhecida como jogo, possivelmente as
crianças poderiam atuar em diferentes frentes, dançando, cantando
ou tocando, independente de seus gêneros e idades.
Vinculado aos estudos pioneiros acerca das danças populares
brasileiras, Mário de Andrade revelou, dentre outros aspectos, a
participação de meninas e meninos, paralelamente, também o
protagonismo delas/es. De acordo com Bianca Guizzo et al. (2019),
ser protagonista é ocupar um lugar de destaque em um evento ou
situação; as autoras afirmam que esse conceito retorna com força em
referenciais educacionais italianos, e explicam que na atualidade as
crianças são reconhecidas como sujeitos de direitos e produtoras de
conhecimentos; desta forma, o protagonismo infantil relaciona-se à
participação efetiva delas em seu crescimento, na resolução de
situações e de problemas vivenciados em seu cotidiano, com
orientação de pessoas adultas com as quais convivem.
Ao abordar a participação de crianças, referindo-se
especificamente à obra O turista aprendiz, a produção de Mário
apresenta-se como fonte de pesquisa para conhecer um pouco das
infâncias que, como a de seus grupos sociais, foram invisibilizadas
na história; embora o pesquisador não tivesse escolhido as meninas
e meninos como suas/seus interlocutoras/es, as suas “vozes” não
passaram despercebidas, havendo elementos que podem contribuir
com o campo da Sociologia da Infância, uma vez que esse é
(...) um campo recente que estuda a infância em si mesma, isto é, como uma
categoria sociológica do tipo geracional. Para a sociologia da infância, as
crianças são atores sociais ativos; por isso, torna-se prudente dar visibilidade
aos processos de socialização com base no que as crianças fazem e como
fazem. (MARTINS FILHO, 2011, p.88)
73
(...) necessária atenção para a questão das várias infâncias, isto é, para a
problematização das vivências infantis, levando-se em conta que as crianças
são constituintes da realidade social, fazem parte de grupos sociais, sendo
impossível pensar em uma criança “genérica”, quando pensamos na infância
no Brasil, nos dias atuais ou em tempos pretéritos. (DEMARTINI, 2011, p.12)
74
demonstrada no canto, o que provavelmente fosse algo esperado
vindo de pessoas adultas, e não de crianças.
Em Educação Infantil: contrariando as idades, Patrícia Prado
(2015a) relata que investigou as relações etárias entre crianças
pequenas da Educação Infantil; sua pesquisa aponta que as
crianças menores também eram imitadas pelas maiores,
provocando assim que se problematize a normatização e a
padronização que as idades cristalizam nos espaços educacionais;
o episódio acima também mostra que o sentido pode ser inverso,
no caso em questão, pessoas mais velhas aprenderiam com os
meninos a cantar o coco.
75
MPF 0240- Cabocolinho (Figura de roda). Itabaiana, PB, 04/05/1938. Fotógrafo
Luis Saia.
76
MPF 0291- Coco de roda. Baia da Traição, PB, 12/05/1938. Fotógrafo Luis Saia.
77
MPF 0152- Grupo de “Cabocolinhos Índios Africanos”/ José Rocha. Torrelândia,
PB, 31/03/1938. Fotógrafo Luis Saia.
78
MPF 0168- Roda/ Nimia Santos. Patos, PB, 07/04/1938. Fotógrafo Luis Saia.
79
outra utilização das fotografias, uma utilização muito mais alinhada com a
perspectiva qualitativa, isto é, quando estudamos fotografias retiramos
pistas acerca do que as pessoas valorizam e quais as imagens que preferem.
(BOGDAN, 1994, p.185)
80
(...) Por causa que meu pai foi reis do congo, o primeiro rei do congo foi meu
pai, ele morreu aí ficou (...) ele sempre dizia: brinque meu filho (...) a gente
vai desaparecendo, o mais véio vai desaparecendo, e vocês vai ficando no
lugar da gente. (Joca- Reis de Congo; Pombal-PB)
81
MPF 0185- Reis de Congo. Pombal (PB), 11/04/1938. Fotografia de Luis Saia.
82
MPF 0235- Coco de Roda. Itabaiana (PB), 03/05/1938. Fotografia de Luis Saia.
83
MPF 0433- Bumba-meu-boi: A figura feminina em primeiro plano representa
Catherina no bailado do Boi-bumbá, não havendo informações a respeito. Belém
(PA), 29/06/1938. Fotografia de Luis Saia.
84
idade, pertencentes ao acervo Mário Andrade, localizado no
Instituto de Estudos Brasileiros da USP, sendo parte dessas
produções feitas por meninas e meninos que frequentavam os PI.
Segundo a autora, a variedade das práticas promovidas nos
Parques privilegiou as infâncias, pois,
Desta forma, numa espécie de banquete, nos fartamos dos desenhos, das
festas, das danças, das músicas, e de tantas expressões destes seres humanos
de pouca idade numa brasilidade macunaímica com todos os caráteres de
maneira a assegurarmos a manutenção da vida em sua inteireza
expressando-se nos grupos compostos por crianças pequenas e
pequenininhas, procurando adquirir as virtudes de suas próprias raízes
históricas reforçando seu poder, suas idéias, suas propostas, seu ser
transbordando-se. (GOBBI, 2004, p.124)
85
(Ato n. 767 de 09/01/1935 apud SANTOS, 2005, p.280). Ainda em se
tratando desse contexto, a mesma autora registra que:
86
O grande encontro de gerações
87
autora para afirmar também que a idade é outro elemento que
hierarquiza as relações entre os indivíduos:
88
(...) sabemos que as exibições das crianças mostram, desde a mais tenra
infância, um alto grau de imaginação (...) A criança fica literalmente
“transportada” de prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase
chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa, sem contudo perder
inteiramente o sentido da “realidade habitual” (...)sua representação é a
realização de uma aparência: é “imaginação”, no sentido original do termo.
(HUIZINGA, 1971, p.17)
Quer seja durante os seus cotidianos, nas vivências junto aos seus
grupos, nas apresentações de suas agremiações ou em suas
comunidades, são esses homens, essas mulheres, meninos e meninas
que surpreendem ao mostrarem seus bailados, retratando também
“(...) uma memória guardada nos músculos, nos nervos, no estômago,
nos olhos, das coisas que viveu” (ANDRADE, 1976, p.237). Pessoas
que impressionam por sua capacidade de superação, perante as
dificuldades que enfrentam no processo de manutenção dessas
culturas, pois persistem em cultuarem suas identidades brincantes.
Expressam por meio da brincadeira as insatisfações, as alegrias, os
desejos e uma ordem contrária à estabelecida.
89
Por uma pedagogia brincante
90
Telê Ancona Lopez (1972, p.11) coloca que: “Segundo Luckacs,
as obras são revitalizadas pelo tempo, desde que possam responder
as ânsias semelhantes às do período em que foram produzidas”.
Com essa afirmação, considero que, mesmo originariamente as
obras em questão não tendo priorizado as infâncias, revisitá-las nos
permite identificar aspectos importantes relacionados às meninas e
aos meninos, paralelamente às suas infâncias, trazendo pistas de
como se davam as construções de identidades desses sujeitos, por
conseguinte, desses coletivos, também podendo confrontar com a
contemporaneidade.
Entende-se que tal cenário remete a um espaço valioso para
relações de trocas de saberes entre pessoas de diferentes idades, por
promoverem o convívio de crianças, jovens, pessoas adultas e
velhas, reconhecendo suas contribuições a partir das suas
individualidades, portanto, um campo profícuo para as pesquisas
das infâncias. Jucirema Quinteiro (2002) avalia que:
91
Ratifico que voltar-se para a obra de Mário de Andrade com o
objetivo de aprofundar os conhecimentos referentes às danças
populares é recolher elementos do passado, para enxergá-las no
presente, permitindo verificar a capacidade da ressignificação das
identidades dos sujeitos, que ao realizarem essas manifestações
artísticas, são elas/eles as/os protagonistas, meninas, meninos,
homens e mulheres, independente de suas idades, permitindo-se
expressarem ludicamente.
Danças, cantos e ritmos que remetem a tempos nos quais essas
vivências talvez fossem os raros momentos de afirmação das suas
próprias culturas, sendo assim, ações vitais que contribuíram de
forma a transcender às torturas impostas aos corpos que resistiram,
cantando e dançando.
Outro aspecto relevante que se mostra ao se deparar com esse
campo é a sua manutenção que tem se dado pela tradição oral,
contrariando a lógica das sociedades grafocêntricas, que legitima o
conhecimento escrito, no entanto esses conhecimentos vêm sendo
compartilhados por meio de outras linguagens, como a oral e a
corporal. Música, canto e dança perpassam gerações, resistindo
perante aos intensos ataques históricos para seu apagamento, para sua
repressão e criminalização, mantendo-se vivas em nós, e entre nós!
92
dance e que festejemos muito mais esses elementos das nossas
culturas populares. Conforme Amélia Conrado (2004):
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93
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97
98
Corpo e cuidado:
um desafio para a Sociologia da Infância
99
Corpo e cuidado na Sociologia
100
Cuidado e Corpo na experiência com as crianças pequenas
101
as crianças são capazes de resistir; de reexistir na luta contra a
morte. Elas vivem, nesses casos, em uma região de fronteira entre
o mundo dos vivos e o mundo dos mortos; sobrevivem. Embora as
crianças dependam dos adultos para a satisfação das necessidades
da vida, em situações limítrofes nas quais a vida e a morte se
degladiam em seu próprio corpo, elas resistem e, de forma
persistente, elas nos comunicam seu desejo de viver.
Esses corpos matáveis e abandonados são invisibilizados, na
medida em que seus direitos são violados desde o nascimento.
Essas crianças não estão matriculadas em uma creche pública, não
participam de uma rede de proteção social e, abandonadas à
própria sorte, sobrevivem sem ter acesso a nenhum sistema de
saúde. Não obstante possam viver em um grande centro urbano,
onde há creches, hospitais e outros dispositivos capazes de lhe
darem o estatuto de atores sociais, elas continuam na fronteira
entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. É nessa fronteira
que buscaremos a partir de agora compreender nossa experiência
de educadora e educador com as crianças pequenas.
Para nós, adultas/os, há sempre a possibilidade de atravessar
essa fronteira, mas essa possibilidade não se abre do mesmo modo
para as crianças. E foi assim, trabalhando na fronteira já há muitos
anos, que o tema dos cuidados (sua ausência ou sua presença) se
tornou não apenas uma questão de ordem teórica, mas também
uma questão de ordem prática.
A primeira observação que gostaríamos de fazer é a de que o
cuidado não corresponde aos processos puramente fisiológicos. Em
nossa visão de ser humano, as necessidades fisiológicas não podem
se separar das demais esferas da vida. Em nossa experiência como
educadora e educador na creche, a observação sistemática nos
permite afirmar que as crianças pequenas, em seus primeiros anos
de vida, passam por muitos processos de adoecimento. Muitas
vezes, elas estão parcialmente privadas de suas necessidades.
Enquanto o corpo luta para se reestabelecer, as crianças modificam
a relação com sua própria autonomia. Os cuidados com o corpo, a
alimentação, o banho, o sono, a troca de fraldas, etc. são sempre
102
relacionais, isto é, constituem modos de relação com a crianças. E a
atitude da educadora ou do educador para com o corpo das
crianças pequenas pode ser uma maneira de promover a
autonomia ou estabelecer processos de subalternidade.
No campo da Pedagogia, a discussão em relação aos cuidados
– há mais de cinquenta anos! – gira em torno da indissociabilidade
entre cuidar e educar. Mas haveria alguma experiência de cuidado
não educativo?
Na fronteira, a partir de nossa experiência com as crianças que
habitam essa região sombria, tivemos a oportunidade de
reformular as nossas questões relativas ao cuidado. Sua presença
ou sua ausência tinha relação com um emaranhado de relações
sociais das quais nós também fazíamos parte.
A compreensão conceitual do cuidado em um caráter mais
abrangente só foi possível quando nós nos envolvemos com os
estudos da Sociologia, Filosofia, Política e História. Assim,
partimos de uma concepção pública e coletiva de cuidado, na qual
o cuidar é entendido como prática social. Um direito restitutivo que
cada pessoa que faz parte de uma comunidade deve ter e também
como uma expressão da intersecção entre a natureza e a cultura
(BARROS, 2020). Uma prática que acontece no corpo por meio de
microrrelações entre diferentes atores sociais. Portanto, o cuidar
não se restringe à extensão de um corpo, mas o extrapola e pode
modificar uma rede de relações. Para as crianças, é a presença ou a
ausência de práticas de cuidado que podem colocá-las em ou retirá-
las de uma região de fronteira.
Na chegada a uma destas fronteiras, avistamos em um deque
a alguns metros de distâcia um pequeno vulto que parecia uma
boneca. Era por volta das dez da manhã. Perguntamos quem havia
deixado aquele brinquedo ali e ouvimos a seguinte resposta: “ –
Não é um boneco. É uma criança!”
A criança com a qual nos deparamos tinha dez meses e
pesava em torno de seis quilos. Quando nos aproximamos daquele
ser abandonado à própria sorte, sentimos a crispação daquele
pequeno corpo que urgia de cuidados.
103
Quem cuidava daqula criança? Quem eram seus pais? Não
tínhamos tempo para obter essas respostas. Poderia ser tarde
demais. Decidimos levá-la ao médico imediatamente.
A resposta das responsáveis pelo espaço coletivo3 foi a
seguinte: “ – Nós já levamos no médico, mas ele quer tirá-la da mãe. Se
voltarmos lá assim com ela nesse estado, vai chamar o conselho tutelar e é
quase certo que ela irá morrer no abrigo”.
Olhamos novamente para a bebê que agora já estava no colo.
Os olhos azuis e fixos em nós queriam nos dizer algo. Eles
demandam cuidados imediatos. E a essa demanda só poderíamos
responder com uma ação. Enrolamos a criança em um lençol e a
levamos ao posto de saúde mais próximo. O médico nos atendeu
com o discurso já prenunciado pelas gestoras da instituição:
- A mãe não cuida dela, não tenho o que fazer. Escrevi para o conselho tutelar e pedi
para virem buscá-la, mas a creche escreveu um relatório contrário dizendo que a mãe
poderia cuidar.
104
grupo de trabalhadoras e trabalhores que viviam em pequenas
acomodações em uma fazenda de produção de alface. Longe da
cidade, a maioria das crianças e jovens que nasciam e cresciam ali não
tinham acesso à escola, nem ao hospital ou a qualquer outro
atendimento que garantisse minimamente os direitos fundamentais
previstos na Constituição de 1988. Em regime de semi-escravidão, eles
nasciam, cresciam e trabalhavam na Colônia em condições insalubres
e desumanas. Nesse espaço onde a única lei existente era a da
sobrevivência, a situação das crianças e jovens era muito preocupante
– em especial, a situação das meninas. Muitas delas tinham filhos
ainda adolescentes e a bebê que tínhamos nos braços morava nesse
lugar com a mãe, seus dois irmãos e seu pai. Ela nasceu, cresceu e foi
mãe nesse espaço medonho até o dia em que seu pai foi chamado para
trabalhar em outro lugar.
A instituição, uma organização não governamental, que
funciona como uma creche, matriculou três crianças, após um
pedido da assistente social do posto de saúde.
Acometida de uma suposta doença mental, a mãe não sabia
como cuidar da bebê sozinha. Na colônia, ela recebia o apoio de
outras mulheres, mas agora, morando no bairro, estava sozinha e
só tinha a creche como um espaço de apoio.
A mãe manifestava sua vontade de cuidar de seus filhos, mas
nós precisaríamos de um plano comunitário para garantir os
direitos da bebê. Olhamos de novo aquele pequeno corpo que
dormia depois de ter tomando o leite fórmula receitado pelo
médico. No colo, a respiração parecia mais calma e o corpo menos
crispado. Era possível sentir o desejo que ela tinha de viver.
Direito ao cuidado
105
atendimento médico. Este, por sua vez, considera a mãe incapaz e,
por isso, a criança deveria ser entregue a uma casa de acolhimento.
Onde está a criança? A criança está no umbral dessa região de
fronteira. Entre a casa, a creche, o posto de saúde, a ficha da
assistência social e a casa de acolhimento. Ela está envolvida em um
emaranhado de relações de poder. Ao recorrer ao atendimento
médico e satisfazer minimamente as necessidades da vida,
poderíamos afirmar que agora a criança foi cuidada? Será que o
acesso ao atendimento médico era suficiente para atender às
demandas daquela bebê? Uma coisa é certa e pudemos
testemunhar na brevíssima consulta: o médico, por sua autoridade
e conhecimento anatômico e fisiológico, não considerou em
momento algum a experiência de vida daquela pequena e
experiente criança.
Sua dignidade de pessoa enquanto sujeito de direitos
desaparece nessa região de fronteira, assim como desaparece o
estatuto jurídico e moral daqueles que vivem nas inúmeras regiões
de fronteira (zonas de guerra, campos de refugiados e nas
“Colônias” existentes ainda em nosso país).
É preciso distinguir entre as diferentes relações de poder aquelas
que estabelecem uma relação de dominação e subalternidade
daquelas que estabelecem relações assimétricas, mas não são
necessariamente opressoras ou excludentes. Todas são, com efeito,
relações de poder, mas somente as primeiras destroem a dignidade da
pessoa humana, chegando muita vezes a colocar em risco a vida da
criança. Essas relações de dominação e subalternidade podem ocorrer
tanto no espaço doméstico, na esfera privada da vida humana, que,
dentro de um sistema de dominação patriarcal, entende as práticas de
cuidado como uma função das mulheres ou dos espaços
institucionalizados, como hospitais, creches e abrigos.
Essas instituições desempenham um papel social, econômico,
ideológico, científico e político nas sociedades urbano-industriais.
Elas são atravessadas por relações de dominação e subalternidade.
Essas relações, ao invés de garantir os direitos fundamentais da
pessoa humana, atentam contra a sociedade e, sobretudo, contra as
106
crianças. No entanto, parafraseando Michel Foucault (2010), onde
há exercício do poder, há também formas de resistências – e as
crianças resistem! Mas para que isso seja possível, é preciso assumir
a responsabilidade pelo mundo. Em nossos encontros com as
crianças, a responsabilidade pelo mundo e pelas crianças é
indissociável! Para que as crianças possam não apenas resistir, mas
reexitir, jamais podemos abandoná-las à própria sorte. É preciso
uma prática pública e coletiva de cuidados que garanta os direitos
das crianças. E, para tanto, é preciso assumir a responsabilidade
pelo mundo e resistir com elas!
107
formação para desempenhá-la, seja dentro ou fora de casa. Basta
ser mulher para assumir essa função e desempenhar as práticas de
cuidado das crianças tanto no lar quanto na creche. É como se não
houvesse diferença entre cuidar de uma criança ou um coletivo de
20, 25, 30 crianças. Basta ser mulher e pronto! Sob essa lógica da
desiguldade, uma mulher que trabalha diretamente com as
crianças em uma instituição educativa e que dedica a maior parte
de sua jornada de trabalho com o cuidado corporal das crianças não
é considerada uma professora. Além disso, como essa função
supostamente não carece de formação, pois emana do própria
essência da mulher, dirão os machistas da administração pública,
remunera-se pouco a trabalhadora que atua diretamente com os
cuidados das crianças na creche.
A ampliação das noções de cuidado como resistência e
transgressão desta lógica está na dimensão relacional do cuidado.
Nas palavras de Barros (2020, p. 231):
108
Práticas de cuidado e resistência
109
daquelas pesquisas que identificavam a instituicionalização como
fonte originária das mazelas infantis. Para Pikler, era possível
pensar em práticas e em um modo de organizar os contextos
educativos que não estivessem pré determinados e cujos resultados
não poderiam ser previstos, como apontavam as pesquisas de seus
colegas médicos e psicólogos. Baseada em um modelo relacional
alternativo, que acolhe a história de vida das crianças e as considera
como capazes de estabelecer relações, Pikler desenvolveu uma
aborgagem que considera aquilo que as crianças são capazes de
fazer, de dizer e de saber. Os resultados surpreenderam os
cientistas da época, pois as milhares de crianças que ali passaram,
usufruindo do direito ao cuidado, puderam ao longo do tempo
tomar para si o cuidado de seus próprios corpos e inciar novos
começos para suas histórias de vida.
Atualmente, esta pesquisa longitudinal, iniciada por Emmi
Pikler na segunda metade do século XX, está próxima de completar
noventa anos - talvez seja a maior pesquisa longitudinal acerca da
vida das crianças em uma instituição. Infelizmente, no Brasil, a
abordagem Pikler tem sido disseminada como uma metodologia –
o que é equívoco! Trata-se, pois, de uma abordagem que pode ser
compreendida como uma experiência de cuidado emancipador.
Essa experiência tem um valor emancipatório, na medida em que
busca, a partir do encontro com as crianças, diminuir consciente e
consistentemente “os impedimentos dos experientes aos seus
próprios corpos” (BARROS, 2020, p. 230).
Nos coletivos em que trabalhamos, acolhemos a premissa de que
as crianças sabem dizer sobre si, mesmo quando ainda não pronuciam
nenhuma palavra. Por isso, é preciso estar atento ao fato de que
instituições por meio de suas práticas e modos de organização dos
ambientes educativos podem atuar como mecanismos de
silenciamento dos corpos. Trata-se de um cuidado mecanizado dos
corpos ou, pior ainda, da ausência do cuidado. Em outras palavras,
trata-se de abandonar as crianças em uma região de fronteira.
É urgente construir os pressupostos éticos e políticos para uma
sociologia dos cuidados que nos possibilite pensar em caminhos
110
alternativos para potencializar nossa experiência de resistir e
reinventar novas formas de vida com as crianças. Esses
pressupostos não devem ser considerados apenas no plano teórico
ou epistemológico, mas tomados como um valor para toda ação.
Talvez uma sociologia dos cuidados, apoiada axiologicamente em
uma sociologia pública e reflexiva (BURAWOY, 2009), pudesse
oferecer uma importante contribuição para Sociologia da Infância.
Referências
111
DAVID, Myriam; APPEL, Geneviève. Maternagem Insólita.1. ed.
Omnisciência. São Paulo. 2021.
FINE, Michael. Individualization, risk and the body: Sociology and
care. Journal of Sociology, v. 41, n. 3, p. 247-266, 2005
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Graal, 2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à
prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
OLIVEIRA, Fabiana Luci de. Sociologia da Infância no Brasil: quais
crianças e infâncias têm sido retratadas? Contemporânea – Revista
de Sociologia da UFSCar, v. 8, n. 2,jul.- dez. 2018, p. 441-468.
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Ethnographic Turn in Performance and the Performative Turn in
Ethnography, Text and Performance Quarterly, 26:4, 339-346.
THOMAS, Carol. De-constructing conceptes of care. Sociology. V.
27, No. 4 (November 1993), p. 649-669
112
Segunda parte
113
114
A precarização do trabalho, desigualdades e
dinâmicas de ação coletiva: lutas de fronteira e a
Educação Infantil
Introdução
115
também é professor titular3. Seus principais trabalhos de referência
para as discussões aqui apresentadas são: “Um padrão
“thompsoniano” de agitações trabalhistas? Movimentos sociais e
rebeliões no Sul global” (2020b); a Apresentação “Memorabilia” e
o Capítulo 4 “A angústia dos subalternos” do livro A política do
precariado – do populismo à hegemonia lulista (2012). A Live
Divisão sexual do trabalho e o precariado: Reexistências de
mulheres negras e indígenas, organizado pelo Grupo de Estudos
e Pesquisas em Diferenciação Sociocultural – Linha Culturas
Infantis da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de
Campinas (GEPEDISC), em 2020a, também será uma das
referências para as análises aqui apresentadas.
Este texto está dividido em três partes. Na primeira, são
apresentados os conceitos de precariado, padrões de agitação
trabalhistas e lutas de fronteira a partir dos estudos citados de
Braga. Na segunda, esses conceitos são relacionados às
especificidades da Educação Infantil para se pensar possibilidades
de experiências organizativas na educação contra as desigualdades
em todos os seus aspectos, e a favor da construção de dinâmicas de
ação coletiva para a emancipação humana. Por fim, na terceira
parte são elaboradas as considerações finais acerca de toda a
discussão tecida.
116
mundial4, acentuando as relações de exploração e dominação
trabalhistas, intensificando o assujeitamento à mercantilização e
resultando em opressões e no exacerbado número de mortes
contínuas e diárias registradas em quantidades alarmantes desde o
ano de 2020, além daquelas subnotificadas por falta de uma agenda
política de Estado5.
Santos (2020) explica que, em seu sentido etimológico, crise é
um processo com duração limitada e com causa específica, mas a
exemplifica apontando a crise financeira no sistema capitalista
mundial como um processo que tem sido permanente desde a
década de 1980, com o alinhamento ao neoliberalismo e à lógica do
setor financeiro, tornando-se justificativa para a implementação de
cortes nas políticas sociais e nos salários.
Esses cortes nos direitos sociais trouxeram
117
dessa classe que vive de maneira sistêmica em condições de trabalho
degradante, tanto na formalidade quanto na informalidade, sem a
garantia dos direitos sociais trabalhistas próprios da relação de
proteção salarial conquistada no modelo clássico de conflito entre
capital e trabalho, o chamado modelo fordista.
Dessa maneira, os padrões de agitação trabalhistas
configuram-se como formas de mobilização coletiva das pessoas
trabalhadoras6 assalariadas na luta pelos direitos sociais, em escalas
nacional e mundial, e como formas de resistência aos processos de
mercantilização que precarizam ainda mais as condições de
trabalho e de reprodução de suas existências. Para discutir as
especificidades das agitações trabalhistas contemporâneas e
propor a hipótese de um padrão, o autor primeiro caracteriza os
anteriores; os quais são sistematizados brevemente a seguir.
O primeiro padrão de agitação trabalhista, e aquele que
fundamentou a maior parte das análises realizadas em diferentes
pesquisas da sociologia do trabalho global foi o modelo fordista com
a marca da “[...] institucionalização do conflito trabalhista [...]”
(BRAGA, 2020b, p. 4), a partir da atuação dos sindicatos mediando a
negociação entre pessoas trabalhadoras, empresas e governos. Porém,
o autor reflete que esse padrão foi uma exceção histórica e geográfica,
já que “[...] dificultou a identificação de padrões alternativos de
mobilização dos trabalhadores, sobretudo no chamado Sul global”
(BRAGA, 2020b, p. 3), mas sistematiza que apesar “[...] da natureza
excepcional do compromisso fordista, ele pode e deve servir como um
padrão a ser preservado pelos trabalhadores dos países centrais e
conquistado pelos trabalhadores dos países periféricos e
semiperiféricos [...]” (BRAGA, 2020b, p.6).
6 Neste texto faremos uso do gênero feminino por corresponder à maioria das
pessoas que atuam na Educação Infantil, conservando o masculino apenas nos
trechos extraídos das pesquisas devidamente registradas como referências.
118
Fonte: Elaboração das autoras
119
Group do Centro Fernand Braudel, associado à Universidade de
Binghamton, na qual foram reunidos e disponibilizados dados
referentes aos protestos trabalhistas no Norte e no Sul global. Ao
analisá-los, Silver identificou, tanto do ponto de vista geográfico
quanto do ponto de vista histórico, a existência de dois grandes
padrões de agitações trabalhistas, o marxiano e o polanyiano.
120
Fonte: Elaboração das autoras
121
Ao analisá-las, Braga (2020b) elabora reflexões acerca de
evidências de um possível “[...] surgimento de um padrão
alternativo de agitação trabalhista [...]”. (BRAGA, 2020b, p. 13)
122
Fonte: Elaboração das autoras
123
públicos em áreas sociais por 20 anos, sendo que em 2017 essa
determinação representou uma redução de 9% do orçamento da
saúde e 35% da educação. (MATUOKA, 2017)
Associado a todo esse cenário, em 2020, alastrou-se no mundo
a pandemia do coronavírus, a qual, no Brasil, além de já ter matado
mais de 500 mil pessoas até o momento, intensificou a crise
sociorreprodutiva e acentuou a problemática educacional em seus
diferentes aspectos. O fechamento das escolas impactou toda a
sociedade, fomentando reflexões e debates em torno de questões
como a essencialidade da educação, os impactos intelectuais,
psicológicos, emocionais e sociais para crianças e famílias, assim
como as condições precárias de trabalho para as/os profissionais
docentes e não docentes.
Ao analisar-se a situação do estado de São Paulo, por meio dos
dados apresentados no 2º Boletim Epidemiológico da Educação
Básica, entre 3 de janeiro a 1 de maio de 2021, foram registradas
28.064 notificações de casos suspeitos e confirmados da COVID-19,
contemplando as redes estadual particular e municipal de ensino,
havendo, também, 39 óbitos entre estudantes e profissionais. O
Secretário da Educação, Rossieli Soares, declarou que a taxa de
incidência da COVID-19 nas escolas é 31% menor que a média
estadual de contaminação da sociedade.
Contrapondo-se a essa sistematização, um grupo de
pesquisadores da Rede Escola Pública e Universidade (Repu)
analisou dados de 299 escolas da rede estadual paulista entre 7 de
fevereiro a 6 de março, e constatou que “[...] a incidência da doença
entre os professores foi quase o triplo (2,92 vezes), da registrada na
população de 25 a 59 anos do estado de São Paulo” (BRASIL, 2021),
assim como o percentual de propagação da doença é 80% maior
entre docentes e a população na mesma faixa etária. Os
pesquisadores explicaram essa divergência de resultados devido às
diferentes metodologias usadas pelo governo paulista na
apresentação dos dados, a fim de justificar o retorno presencial das
aulas (SÃO PAULO, 2021), corroborando com a propaganda pró
retorno pautada por uma agenda política ultraneoliberal. Não
124
obstante o risco de contaminação a que as profissionais, crianças e
famílias estão expostas, há um ocultamento das reais condições
estruturais e operacionais das escolas, assim como a invisibilização
das reivindicações da classe.
Nesse contexto, pensar a Educação Infantil é refletir acerca das
lutas de fronteira fundamentadas em análises das políticas públicas
formuladas e implementadas desde o fechamento das escolas em
março de 2020 no Brasil. Os três documentos, a Carta Aberta da
Rede Nacional Primeira Infância dirigida ao presidente do
Conselho Nacional de Educação7 (2020); o posicionamento da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
(Anped), Educação a Distância na Educação Infantil, Não!8 (2020)
e o PRÔ, TÔ sem COLO!9 (2021), elaborado pelo Fórum Paulista
de Educação Infantil, discutem as especificidades da identidade da
Educação Infantil que caracterizam essa etapa da Educação Básica
relacionada às políticas públicas em curso desde então.
125
Imagem extraída do documento PRÔ, TÔ sem COLO! elaborado pelo Fórum
Paulista de Educação Infantil
126
pandemia, como fez o Governador Dória (PSDB), mais uma vez
foram transferidas para a escola responsabilidades constitucionais
que vão muito além da formação cidadã e para o trabalho.
Nesse processo tentou-se desviar a atenção do público, de modo
a ocultar a incapacidade do Estado em formular políticas públicas,
desconsiderando-se a construção social da infância e sua pluralidade
e a necessidade de garantia da sobrevivência para crianças e famílias
por meio de propostas inclusivas. Inviabilizou-se, novamente, a
discussão de questões estruturais, políticas e econômicas mais
complexas, além da ausência de articulação de estratégias com formas
coletivas por meio de uma perspectiva interseccional, não limitada
àquela com o propósito de alinhamento às ações do Estado aos
interesses do setor privado e do mercado.
As lutas contra a implementação do ensino remoto e de um
processo formativo regido por distanciamentos, a favor dos
direitos das crianças pequenininhas e de suas famílias e em defesa
de uma Educação Infantil que se constitua enquanto educação e
não ensino, sistematizadas nos três documentos anteriormente
citados, são características de lutas de fronteira que desafiam
limites estabelecidos a partir de dinâmicas de ação coletiva de
movimentos sociais, entidades e comunidades de profissionais.
Outro movimento importante ocorrido no primeiro semestre do
ano de 2021, em defesa das marcas da própria identidade, uma luta
de fronteira, foi a greve docente10 ocorrida na cidade de São Paulo,
com duração de quase cento e vinte dias, contra o retorno das
atividades presenciais na educação.
Em relação à Educação Infantil, as agitações trabalhistas
atrelaram a luta pela defesa das especificidades da formação
educativa das crianças pequenininhas às formas contemporâneas
de reprodução presentes na vida vivida nos espaços domésticos,
127
discutindo a inserção subalterna de muitas famílias em ocupações
no mercado de trabalho com baixos salários, grande rotatividade,
pouca ou nenhuma qualificação, ou a partir do trabalho por conta
própria (BRAGA, 2012), de maneira articulada às políticas públicas
educacionais normatizadoras de práticas que não são aquelas
próprias da Educação Infantil, demandando ocupações às famílias,
principalmente à mulher, que são próprias das profissionais
atuantes em creches ou pré-escolas, para além da dupla jornada de
trabalho das mulheres trabalhadoras fora e dentro de casa
responsáveis pelo cuidado da casa e da família, agora uma tripla
jornada sendo professora dos/as filhos/as.
Corrobora com esses apontamentos Fraser (2016), ao discutir a
relação entre todo o conjunto da segunda onda do feminismo e o
capitalismo, e ao analisar que as lutas de fronteira, características
desse movimento, tiveram seus princípios incorporados nos
discursos veiculados por diferentes instituições presentes e
atuantes nesse regime de acumulação, mas sem uma transformação
na estrutura do sistema, de modo que práticas patriarcais ou
androcêntricas continuaram a ser materializadas.
128
Variados elementos configuram, assim, a precariedade tanto
na vida das crianças como para a própria Educação Infantil
brasileira nesse momento pandêmico: relações familiares marcadas
pela potencialização da crise sociorreprodutiva (BRAGA, 2020a);
aprofundamento de desigualdades sociais; instrumentalização da
educação por meio da implementação de fronteiras que fomentam
exclusões nas formas de se viver a vida e a Educação Infantil, desde
2020, com os fechamento das escolas, num momento de agudização
das condições de dominação e exploração vividas principalmente
por mulheres11 e crianças, sobretudo as negras (BRAGA, 2020a).
Considerações finais
11Em pesquisa realizada no começo dos anos 2000 nas duas maiores empresas do
setor de call center no Brasil, uma de capital nacional e outra de internacional,
Braga (2012) discute as condições precárias e degradantes de trabalho a que as
teleoperadoras ou operadoras de marketing eram submetidas na inserção
ocupacional em serviços na área da tecnologia da informação. As trabalhadoras
eram, em sua maioria, mulheres negras tendo a primeira experiência de trabalho
formal, mas sem chances de ascensão vertical, com baixos salários, com
rotinização do trabalho e a vivência contínua com o despotismo dos
coordenadores de operação.
129
preservação dos direitos políticos e sociais da docência; das
crianças e suas famílias; das mulheres e da Educação Infantil, foram
lutas de fronteira que desafiaram políticas públicas educacionais,
mas que continham demandas intersetoriais porque sempre
estiveram articulados Estado, interesses do mercado e política no
processo de precarização das relações trabalhistas, compreendendo
o aprofundamento das relações de dominação e exploração e que,
no contexto brasileiro e em especial da Educação Infantil,
subordinou, ainda mais, crianças e mulheres, principalmente as
negras, a uma lógica mercadológica e excludente.
Assim, as diferentes mobilizações coletivas materializadas
por diferentes protagonistas desde que a Educação Infantil, em
esfera federal, foi tomada a partir dos mesmos pressupostos que
orientam as duas outras etapas da Educação Básica – Ensino
Fundamental e Ensino Médio – desde o fechamento das escolas em
março de 2020, foram imprescindíveis para as lutas pela
descolonização do modo com que essa etapa da Educação Básica
foi concebida na perspectiva escolarizante e não como instrumento
de emancipação humana das crianças e suas famílias.
Referências
130
Boitempo: USP, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, 2012.
Capítulo 4, p. 181-221. Coleção Mundo do Trabalho.
BRAGA, Ruy. O que é precariado? 23 fev. 2027. TV Boitempo.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZT471IlJ7
Vg>. Acesso em: 3 jun. 2021.
BRAGA, Ruy. LIVE. In: Grupo de Estudos e Pesquisas em
Diferenciação Sociocultural – Linha Culturas Infantis da Faculdade de
Educação da Universidade Estadual de Campinas (GEPEDISC).
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youtube.com/watch?v=2DG8oxQcZps>. Acesso em: 3 de jun. 2021.
BRAGA, Ruy. Um padrão “thompsoniano” de agitações
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do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a
ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da
solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da
131
Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Disponível em: <http://
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Acesso em: 20 jun. 2021.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus.
Coimbra: Almedina, abr. 2020. Livro digital.
SÃO PAULO. Decreto nº 65.597, de 26 de março de 2021.
Acrescenta dispositivo ao Decreto nº 65.384, de 17 de dezembro de
2020, que dispõe sobre a retomada das aulas e atividades
presenciais no contexto de pandemia de COVID-19, institui o
Sistema de Informação e Monitoramento da Educação para
COVID-19 e dá providências correlatas. Disponível em: <https://
www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2021/decreto-
65597-26.03.2021.html>. Acesso em: 12 jun. 2021.
SÃO PAULO. Secretaria da Educação. Número de casos prováveis
de Covid-19 nas escolas é 31 vezes menor que a incidência
estadual. 07/05/2021. In: Portal do Governo. Disponível em:
<https://www.educacao.sp.gov.br/numero-de-casos-provaveis-de-
covid-19-nas-escolas-e-31-vezes-menor-que-incidencia-estadual/>.
Acesso em: 20 jun. 2021
133
134
O brutalismo vai à escola
(com notas acerca do infanticídio)
Carolina Catini1
135
de valas (PICHONELLI, 2020). Neste código, cada linha é um número,
nas palavras de Marcelino, porque não estamos falando de “pais,
mães, irmãs. E aí vira código de barras, mano. Vira uma coisa
industrial, uma esteira de morte, aquela coisa da fábrica que passa,
cola o código e saem lotes e lotes e lotes e lotes de morte".
Impossível não pensar em outras indústrias da morte em
massa ou nas guerras que nosso momento extremo cita e recoloca
na ordem do dia. Ou melhor, nas guerras que deixam de ser
classificadas como tal, porque se tornaram permanentes e deixam
de gerar comoção. “Um país só pode ficar tão apático”, diz Silvio
de Almeida (2020), “quando é um país que já se acostumou com a
morte, principalmente de trabalhadores e de pessoas negras”. Para
ele, mais de cem mil mortes se torna corriqueiro num país em que
50 mil pessoas morrem assassinadas por ano, e no qual se morre de
fome. Dessa forma, aquilo que devia nos tirar do conformismo e
levar à desnaturalização de toda violência, desde a mais trivial, se
torna o contrário: a acomodação à nova escala de brutalidade como
forma de vida. É novamente o “menino do drone” que fala dessa
imensa capacidade de naturalizar o massacre:
Fala mil mortes, choca. Quando a gente fala 20 mil mortes, choca. Só que
quando a gente fica falando de mil em mil, todos os dias por três meses, o
ouvido está calejado e aí vira normal. Parece que essa é a nossa nova
condição da vida e assim seguimos. A quebrada sempre fez isso: tem
mancada, tem fome, faltam coisas. Só que não é um dia, dois dias. Falta a
vida toda e banalizou.
136
participação nos lucros das empresas educativas, que pressionam o
retorno às aulas presenciais porque deixam de ganhar dinheiro com
o confinamento. O empresariado está também se apropriando
privadamente da educação estatal, interessado em movimentar a
economia e tornar a educação dos pobres produtiva. Basta acessar o
site da Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo e verificar
quem são os “parceiros” do direito à educação: Instituto Unibanco,
Instituto Natura, Fundação Telefônica, Movimento de Empresários,
etc. Assim como em tantos outros estados e munícipios, esse tipo de
“parceria” tem em comum algumas estratégias de ação política,
dentre as quais uma nova pedagogia, que está centrada nas atitudes
e nos comportamentos das crianças e dos jovens.
Aliás, outro motivo para a naturalização da brutalidade na
política educacional encontra suas razões pedagógicas por estar
relacionado ao experimento da introdução das ditas competências
e habilidades socioemocionais nos conteúdos escolares. Essa é a
última grande moda pedagógica empresarial de educação dos
pobres, que preenche milhares de materiais pedagógicos atuais.
Em tempos de desespero e falta de perspectivas, uma vasta
literatura pseudocientífica com linguajar de autoajuda ganha muita
adesão, e invade todos os meios educativos.
A prescrição do manejo das emoções busca ajustar as atitudes
diante de situações de instabilidade e de horror, cada vez mais
corriqueiras em nossa vida social, pelo controle das emoções. Deve-
se aprender desde cedo como permanecer em sua trilha individual,
mesmo em situações de catástrofes familiares ou sociais. A
estabilidade deve ser atributo de cada um, independente da
turbulência do contexto, e o projeto de formação se torna a gestão
de um projeto de vida, por uma sequência de cumprimentos de
metas, num simulacro individual da forma empresarial. Trata-se
da fabricação do sujeito empresarial, conforme expressão de
Dardot e Laval (2016), mas num contexto de crise e precariedade
alarmante das condições de trabalho e de vida. Na verdade, um
programa curricular de formação para subserviência ao capital,
diretamente definido por aqueles que o personificam.
137
Do modo que aparece neste texto, a pedagogia emocional
buscaria domesticar o sentimento e a chance de uma reação de
revolta. Considerando o modo com o qual estamos lidando com o
morticínio, é fácil imaginar que, com auxílio da gestão das emoções
alheias, nossa brutalidade possa produzir a imensa façanha de
introduzir a morte no cotidiano escolar, com naturalidade. É o que
prevê a política pública.
Prescrever atitudes diante da morte e permitir “a expressão de
sentimentos em relação à pessoa que faleceu” é dispositivo de
gestão e controle mal disfarçado de gesto humanitário. Mas
tamanha é a falta de consideração pela dor do outro que até pode
parecer uma generosidade que emana das leis do Estado, o mesmo
que faz a gestão da barbárie. A afetividade objetificada em lei é o
aprofundamento da coisificação das pessoas, não o seu contrário
À interiorização da violência de guerra, que vai muito além da
brutalidade, Mbembe (2020) está chamando de brutalismo: a
matéria-prima da vida se brutaliza e uma nova forma de
desumanização se generaliza. Com a normalização de situações
extremas, a morte deixa de ser um evento de exceção e a
seletividade que define qual a classe de pessoas que será destinada
à eliminação se torna puramente aceitável, sem questionamento.
O brutalismo é a violência extrema e sua “desrealização”, nas
palavras de Mbembe: o crime hediondo se esconde na falta de
parâmetros, no sofrimento sob suspeita diante da naturalização
massiva, na transformação das histórias de vida e de morte em
estatísticas, no ritmo da sucessão de eventos, na forma de circulação
das notícias, etc. Por isso é preciso denunciá-lo a todo tempo.
A violenta lógica da roleta russa (CÁSSIO; CORTI, 2020) do
retorno às aulas presenciais está inscrita também na responsabilização
individual dos profissionais da educação, que devem assumir todos
os danos possíveis, inclusive pelo contágio. Mães, pais e responsáveis
também assumem os riscos (SCHEUER, T.; GIANCOLA, C., 2020) e
podem escolher privadamente se enviam ou não filhos para escola,
como decisão que diz respeito à vida privada e não à vida coletiva ou
às condições de trabalho de professores e professoras, que é do que se
138
trata a vida escolar. Parece que às vezes se esquecem de que a
educação é fruto de muito trabalho.
Professores e professoras passariam, então, a se
responsabilizar pela implementação do ensino híbrido: introdução
dos encontros presenciais justapostos à manutenção do ensino a
distância, atividades remotas ou mitigadoras. Para os empresários
e gestores, mais uma meta a ser atingida mediante o sacrifício
alheio. Para trabalhadores e trabalhadoras, mais um esforço a ser
enfrentado depois de mais de cinco meses de trabalho exaustivo
com o ensino remoto, com a intensificação de trabalho da imensa
maioria, com o desgaste excessivo e muitas situações de conflito.
De qualquer forma, mais uma cama de gato armada para
professores e professoras pelo fracasso dos resultados da educação
em 2020 (RATIER, 2020).
É verdade que as condições de trabalho são muito distintas em
cada rede de ensino ou escola, mas, de modo geral, como em todo
trabalho, as condições pioraram drasticamente, e as mentiras dos
programas de “valorização do magistério” se explicitaram de
maneira radical. Tem se falado bastante do ônus do trabalho
remoto para o trabalho docente. A cobrança é intensa e a vigilância
cresce, assim como a ansiedade pela prática de avaliação
permanente à qual está submetido o trabalho.
Nas redes públicas, as situações também variam muito, mas
docentes eventuais de vários tipos foram dispensados ou estão sem
receber – no caso da rede paulista, na qual os contratos precários
compreendem cerca de 40% do corpo docente, estão sem receber
desde o início da pandemia. A invasão das empresas privadas, com
tecnologia, formações, projetos, programas, etc., faz avançar de
maneira desmedida a apropriação privada do trabalho e da formação
para a prática docente. Nas redes privadas, além do trabalho
exaustivo e muito além das horas-aulas, há notícias de demissões em
massa, sobretudo no Ensino Superior e na Educação Infantil. Muitos
acordos de diminuição de salário sem redução de jornada, e relatos de
professores e professoras em situação de risco de saúde, que não
pararam de trabalhar por medo do desemprego se multiplicam.
139
Não é de invisibilidade do trabalho docente que se trata, nem
da falta de escuta por parte dos gestores: trata-se de evidenciar
nossa descartabilidade, o caráter substituível que ganha o trabalho
de educar, como qualquer outro trabalho simples.
Essa pedagogia das emoções é colocada em xeque ao dar tanta
importância às condições psíquicas de estudantes e nenhuma às
condições - objetivas e subjetivas - de milhares de professores e
professoras. Pode-se verificar a indiferença e a desqualificação do
trabalho docente na cartilha de orientações psicossociais do Projeto
Jovem de Futuro do Instituto Unibanco, indicado pela Secretaria de
Educação do Espírito Santo (no mesmo plano de retorno em questão).
Como é possível desenvolver “habilidades emocionais” de jovens,
abstraindo o fato de que educação é trabalho de adultos? Do ponto de
vista da gestão, isso só se faz possível quando são os lucros e índices
que importam e não o processo educativo. A obsessão pela
demonstração da performance educacional torna até mesmo a emoção
objeto de mensuração e classificação pelas avaliações (SMOLKA et al,
2015). Segundo Mbembe (2020), o brutalismo se expressa também pelo
ímpeto de não deixar nada às margens do cálculo, pela busca de
submeter tudo o que até então permaneceu movendo-se por fora dos
mecanismos de controle, com alguma liberdade.
É evidente que alguma liberdade só pode se manifestar pela
negação da barbárie desde suas formas mais elementares, pelo
confronto, pela luta que se desenha em cada escola, que é também
uma trincheira. Ela está nos coletivos de estudantes, mães, pais ou
responsáveis, professores e professoras decidindo juntos/as o que
fazer, ao invés de esperar a ordem dos patrões ou prefeitos; está
nos novos coletivos de trabalhadores e trabalhadoras da educação
que se formam em meio à maior degradação de relações que já
vivemos; está nas greves planejadas em ambientes virtuais.
É também nessa vida cotidiana de organização que lembramos
o tempo todo que a luta pela educação é a mesma luta contra a
violência estatal, contra a escassez, o desemprego, a fome, e toda
destruição que está em curso. Como educadores e educadoras que
140
somos, sabemos que nosso trabalho concreto não diz respeito aos
índices e às estatísticas, mas sim às pessoas.
E se não nos protegermos e não nos organizarmos
coletivamente, poderemos virar mais uma linha do código de
barras e ganhar uma homenagem emotiva, conforme as normas
prescritas pela moderna burocracia estatal-empresarial.
141
disfarce na linguagem e se passa a declarar com naturalidade a alta
mortalidade do trabalho de educar.
“Número de desligamentos por morte na educação mais do que
dobram no início de 2021” é o título do Boletim “Emprego em
Pauta”, do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e
Estudos Socioeconômicos) de junho de 2021. Enquanto isso, gestores
e gestoras de escolas ou de secretarias de educação passaram a
celebrar, sem censura, a nova e radical tecnologia de gerenciamento
do trabalho educativo: foram muitas postagens de diferentes gestões
de escolas ou sistemas de ensino que circularam nas redes sociais de
grupos de professores e professoras, que demandavam antecipação
de planos de ensino, para que, em caso de internações, o andamento
dos trabalhos não contasse com interrupções bruscas e pudesse ser
rapidamente substituído. A mensagem mais emblemática, no
entanto, e que circulou como um vírus nas redes sociais, referia-se a
um áudio de gestora de escola de Santa Catarina, que dizia que
docentes precisavam preencher a plataforma diariamente, pois
estaria havendo “casos de professores que não estão completando o
Professor online e estão sendo contaminados pelo coronavírus, vindo
a óbito e deixando o professor on-line sem preencher, depois quem
vai preencher isso?” Sem nenhuma menção à preocupação com a
vida de trabalhadoras e trabalhadores da educação, ela manifesta a
indiferença com a morte, mas não com o ritmo do trabalho ditado
pelas plataformas virtuais.
Mas se o retorno foi compulsório aos profissionais da
educação, a resistência continuou a se manifestar pela pouca
adesão de mães e pais, que evitaram enviar crianças às escolas
públicas. O aumento da circulação do vírus é muito maior com a
reabertura das escolas, com a impossibilidade estrutural de fazer
valer protocolos, com a falta de condições físicas e materiais dos
prédios públicos, com as impossibilidades próprias das formas de
movimentação e contato das crianças, cujos riscos relacionados à
impossibilidade de manter o distanciamento são maiores quanto
menores são as crianças.
142
Há aqui outro dado chocante que, não obstante, não tem
provocado choque: o Brasil é o segundo país com maior número de
crianças mortas por COVID, segundo o Sistema de Informação e
Vigilância da Gripe (HALLAL; LUIZ, 2020). De acordo com a
mesma reportagem, os bebês de até 2 anos de idade são as
principais vítimas, e dentre as crianças mortas pelo novo
coronavírus no Brasil, 57% são negras. Entre indígenas, cuja
população não ultrapassa 0,5 % da população em geral, os índices
também são altos e chegam a 4%. Enfim, se é verdade que os
contágios e mortes de jovens são muito menores do que entre
adultos e pessoas mais velhas, não é verdade que inexiste, e o risco
é radicalmente ampliado pela reabertura das escolas.
Infelizmente esse não é o único índice de um infanticídio em
curso, porque a violência “é o vírus mais contagiante”, nas palavras
de Maria Rita Kehl (2021). A autora percorre a dura sequência de
mortes violentas de crianças desde março de 2021, quando o
menino Henry Borel, de oito anos, foi morto, depois de anos em
que foi frequentemente espancado pelo padrasto, o vereador
Jairinho. Pouco tempo depois, Kaio Guilherme Baraúna, com a
mesma idade, é atingido por uma bala perdida, o jovem João Pedro,
de 14 anos, é morto a tiros de armas policiais, numa festa da sua
escola no Rio de Janeiro. Poucos dias depois, foi o corpo de Ketlen,
de seis anos de idade, encontrado com marcas de tortura e
evidências da violência de seus pais. Ainda teve Maria Clara, com
4 anos, assassinada pela mãe. Isso tudo precedido de mais uma
chacina escolar, quando, em maio de 2021, um jovem de 18 anos
entrou armado numa creche de Santa Catarina, matou uma
professora, um agente educacional e três crianças com menos de
dois anos. E para não deixar de falar da gravidade do brutalismo,
essa sequência de mortes espetaculares foi seguida pela invasão da
polícia militar em Jacarezinho, mais uma chacina que entra na
cadeia dos massacres urbanos desde Carandiru, Vigário Geral,
Candelária, Osasco, dentre outros símbolos do genocídio que
marcam época da nossa chamada “democracia”.
143
É o caso de chamar atenção aqui para a série de mortes
violentas de crianças durante a pandemia. Por que há tantas
crianças como vítimas da violência doméstica e policial nos últimos
tempos é o que a psicanalista pergunta em seu texto. Mais do que
isso, ela indaga “o que essas pequenas vítimas representam – isto
é, representavam – a ponto de se tornarem intoleráveis?” Ela
mesma responde que tais crianças representavam “a ternura, a
candura, a inocência”. Foram mortas por suas mães, pais, padrastos
viventes numa sociedade “perplexa e ferida”, que recebe e propaga
mais e mais violência. Essa violência se contrasta com a grandeza
das crianças que, diferentes dos adultos, sabem perdoar, e com isso
elas conseguem perturbar “nossos esforços para nos adaptar sem
muita dor ao novo estado deteriorado em que vivemos”. O
infanticídio, assim, representa o desejo de eliminar aquilo que
escancara sem rodeios a nossa própria deterioração.
Haveria ainda muitas outras razões para perscrutarmos o
infanticídio em curso, pensando não apenas em uma sociedade que
se volta contra as crianças, mas nos elementos constituintes de um
conceito histórico e social, profundamente marcado pelas
mudanças nas relações entre gerações. Se a infância surgiu,
historicamente, como processo progressivo de criação de
diferenciação entre adultos e crianças, num desenvolvimento de
categorias antagônicas, que passam a vivenciar processos sociais
distintos, há muito para se observar em relação ao conceito no
momento atual. Aqui se destaca somente um dos aspectos do
desmantelamento do mundo infantil criado por tal diferenciação,
que havia se especializado também em proteger as crianças de
temas e vivências que passam a ser considerados “coisas de
adulto”. Quando a descartabilidade humana está diante de todos e
todas, com a dureza das chacinas e do genocídio, quando as cenas
de violência explícita estão mais disponíveis dos que as histórias de
faz de conta para as crianças de todas as classes sociais, é também
o próprio conceito de infância que é colocado em questão.
É evidente que não é apenas gente que morre na pandemia. E
do mesmo modo que o essencial é a vida, são as condições em que
144
vivemos que nos permitiriam fazermos história e interrompermos
a produção de barbárie, ou sermos espectadores do
aprofundamento do brutalismo como forma de vida.
Referências
145
GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Plano de
Retorno às aulas presenciais da rede pública Estadual de ensino
do Espírito Santo, 2020.
KEHL, Maria Rita. O Vírus mais contagiante. São Paulo, 18 de
maio de 2021, a Terra é Redonda. Disponível em https://aterrae
redonda.com.br/o-virus-mais-contagiante/?doing_wp_cron=16247
41119.2635428905487060546875. Acesso em: 3 jul. 2021.
MBEMBE, Achille. Brutalisme. Paris: La Découverte, janeiro de 2020.
PICHONELLI, Matheus. Código de barras: o drone deu asas ao
menino da quebrada, e então ele descobriu o cemitério São Luiz:
é a banalização da morte. Tilt, reportagens especiais da UOL,
publicado em 22 de junho de 2020. Disponível em: https://
www.uol.com.br/tilt/reportagens-especiais/menino-do-drone-
fotografa-codigo-de-barra-de-valas/. Acesso em: 28 jun. 2021.
SCHEUER, Thiago; GIANCOLA, Carolina. Escolas de SP enviam
termo de responsabilidade aos pais caso filhos se contaminem
com o coronavírus na volta às aulas. São Paulo, G1, 06/08/2020.
Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/08/
06/escolas-de-sp-enviam-termo-de-responsabilidade-aos-pais-
caso-filhos-se-contaminem-com-o-coronavirus-na-volta-as-
aulas.ghtml. Acesso em: 28 jun. 2021.
SMOLKA, Ana Luiza Bustamante et al. O problema da avaliação
das habilidades socioemocionais como política pública:
explicitando controvérsias e argumentos. Educação & Sociedade
[online]. 2015, v. 36, n. 130, p. 219-242. Acesso em: 28 jun. 2021.
Disponível em: <https://doi.org/10.1590/ES0101-73302015150030>.
ISSN 0101-7330. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302015150030.
RATIER, Rodrigo. Volta às aulas: tudo pronto para culpar os
professores, esses "insensíveis". São Paulo, UOL, 07/09/2020.
Disponível em https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/rodrigo-
ratier/2020/09/07/volta-as-aulas-tudo-pronto-para-culpar-os-
professores-esses-insensiveis.htm. Acesso em: 28 jun. 2021.
146
Direitos humanos em disputa:
entre as lutas sociais e as políticas públicas
Edson Teles1
Introdução
pouco tempo após a derrota militar no Vietnã. Durante seu mandato, ao mesmo
passo em que se procurou fomentar as saídas sem rupturas das ditaduras do Cone
Sul, manteve o apoio a novas ditaduras como a da Argentina (1976-1983) e ao
governo do ditador Anastácio Somoza (Nicarágua), inclusive com o envio de
tropas da Força Nacional. Esses, dentre outros atos, foram combinados com
discursos e políticas públicas afirmativas e sociais, operando um novo olhar sobre
as formas contemporâneas de governo, segundo a qual as políticas públicas de
direitos humanos, paradoxalmente, podem servir ao controle da revolta social. É
uma alternativa de gestão das populações com um custo econômico e político
menor e com maior efetividade do que se obtinha anteriormente com as guerras
regulares como a do Vietnã.
147
Neste artigo, procuraremos compreender as relações
elementares dos direitos humanos a partir da fricção entre as políticas
públicas de Estado e a ação das lutas e dos movimentos sociais. Nosso
percurso se baseará em aspectos dos processos políticos da transição
da Ditadura para a democracia no Brasil, assim como nas políticas de
memória e verdade na atual democracia.
Busca-se compreender e analisar, sob o compromisso de trazer
à tona, de fazer emergir, as lutas locais, paralelas, singulares,
desqualificadas, em oposição à política dos especialistas, da fala
autorizada, do cálculo do ato possível realizado em nome de uma
governabilidade do social (CASTEL, 2009). Não temos a pretensão
de produzir uma teoria crítica dos direitos humanos, ou de fazer
um estudo empírico de seus movimentos políticos. Nem,
tampouco, de descartar as críticas já produzidas no âmbito da
Filosofia Política e do Direito3.
Não se trata de uma negação dos conhecimentos e saberes das
políticas públicas de direitos humanos. Porém, de uma genealogia4
3 Acerca da tradição crítica aos direitos humanos ver: Reflexões sobre a revolução
em França (BURKE, 1997); Sobre a questão judaica (MARX, 2010); Origens do
totalitarismo (ARENDT, 1989); Homo Sacer (AGAMBEN, 2002); e, O fim dos
direitos humanos (DOUZINAS, 2009).
4 Utilizamos uma conceituação foucaultiana de genealogia, tendo em vista que esta
abordagem da política “(...) supõe que o poder nela exercido não seja concebido
como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação
não sejam atribuídos a uma ‘apropriação’, mas a disposições, a manobras, a táticas,
a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações
sempre tensas, sempre em atividade, que um privilegio que se pudesse deter; que
se seja dado como modelo antes a batalha perpetua que o contrato que faz uma
cessão ou uma conquista que se apodera de um domínio. Temos, em suma, de
admitir que esse poder se exerce mais do que se possui, que não é ‘privilégio’
adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas
posições estratégicas – efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos
que são dominados” (FOULCAULT, 2009, p. 29-30). Interessa-nos refletir acerca
dos direitos humanos como estratégias e táticas de mecanismos de lutas oriundas
do choque entre seus aspectos singulares e menores e a instrumentalização feita
pelas instituições de governo. “A genealogia seria, portanto, com relação ao
projeto de uma inscrição dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência,
um empreendimento para libertar da sujeição os saberes históricos, isto é, torná-
148
das lutas políticas contra a centralização do poder, vinculada à sua
institucionalização por meio da lógica de governo e fundamentada
em um discurso verdadeiro. Não pretendemos priorizar a história
dos coletivos e movimentos, o registro do tamanho de seu
sofrimento ou, por outro lado, se o discurso verdadeiro acerca
desses elementos se cristaliza na universidade, no partido político,
na ONG, ou nas políticas de direitos humanos. Buscamos
compreender as lutas que emergem como produto das relações de
forças e dos efeitos de poder próprios da institucionalização.
149
gestão dos níveis de pobreza como responsabilidade de cada
sociedade e dentro da estratégia de avanço da política neoliberal.
No contexto brasileira, vivíamos a transição da Ditadura para
a democracia. Um dos principais elementos estruturais mantidos
nesse processo foi o aparato de repressão social, associado à
ideologia de segurança nacional e de produção do inimigo. Assim,
a democracia nasce sob o signo da promessa de se desfazer das
injustiças ou mazelas do passado, e de realização futura de algo que
nos colocasse em seu “verdadeiro lugar”, em que a desigualdade
social fosse atenuada. Não se tratava, no nascente discurso, de
eliminá-la, mas de tornar seus efeitos mais brandos. No âmbito da
segurança pública, o aparato de combate ao inimigo interno
subversivo e comunista se converte na guerra contra a
criminalidade, voltando-se para um alvo localizado nas classes
populares e nos territórios periféricos (MARQUES, 2018).
Por outro lado, ocorrem as lutas sociais periféricas, “menores”,
do ponto de vista da política institucional, pois não visavam à tomada
de lugares de poder, mas à defesa da vida. Nesse contexto, é
interessante notar como toda uma tradição de luta dos movimentos
de mulheres e feministas no país, nas lutas desde meados dos anos 70
por creches e contra o custo de vida, são colocados na rota de sua
institucionalização pelas lógicas de governo, a partir da
redemocratização nos anos 80 (TELES, 2017, p. 87-94).
Paralelamente, a partir do fim dos anos 90, emerge uma
imensa multiplicidade de coletivos nas escolas, universidades,
bairros, regiões, cidades, instituições, locais de trabalho, etc.
Poderíamos mesmo levantar a hipótese de que a perda da potência
de parte dos movimentos sociais tradicionais, especialmente com o
início de um governo composto por militantes e ativistas (com o
presidente Lula, a partir de 2003), pode ter sido a abertura para o
fortalecimento de coletivos autônomos e independentes de uma
política institucional.
Nessas lutas, não se trata de saber prioritariamente quem foi o
vencedor e o vencido, mas como, quando, sob qual contexto os
coletivos dispersos, junto com os movimentos sociais mais
150
tradicionais, tornaram-se fortes. Ou, do contrário, como
determinados movimentos se enfraqueceram? De que forma a ação
política em torno das lutas dos direitos humanos apareceu como
um cálculo de forças e, em última instância, como pragmática e
objeto do cálculo de governo?
De modo paradoxal, as ações de direitos humanos seguiram
dois percursos, em paralelo, mas estabelecendo alguma forma de
relacionamento. Por um lado, produzindo, por meio dos
conhecimentos históricos das teorias e da institucionalização,
políticas públicas. Normalmente conduzidas pelo Estado, nas duas
primeiras décadas após a redemocratização, especialmente no
Brasil, ganharam o acréscimo da estrutura das chamadas
organizações não governamentais, as ONGs, protagonistas ao
funcionarem como executoras das políticas institucionais.
Concomitante, o outro percurso se constitui no chão dos
conflitos sociais, animado pelas demandas locais, diversas,
específicas. É ativado não por protagonismo de quem venha a
figurar como ator principal da encenação. Mas como fruto da ação
dos “desqualificados” politicamente, dos vitimizados, de quem
está em condição marginal na institucionalização dos direitos
humanos, os quais seriam seus objetos de incidência. No percurso
das lutas, o próprio sujeito menorizado assume para si a condução
autônoma de seus atos.
A potência das ações de direitos humanos parece estar
justamente na fricção entre os conhecimentos clássicos e
institucionalizados e os saberes menores e seus sujeitos em
experimentações singulares e locais. Ganha em relevância o
questionamento a respeito do que se refere a crítica aos direitos
humanos surgida, emergida, desses coletivos. Trata-se da história
das lutas sociais, daquilo que é produzido pelo acúmulo do saber
acerca dos conflitos. Também são os resultados do vivido pelos
corpos em situação de vulnerabilidade, indicando certa
continuidade histórica.
Uma das mais fortes características das lutas específicas e dos
coletivos paralelos é a conectividade de seus saberes e suas
151
estratégias, sua potência em assumir memórias de conflitos
passados, mesmo que sem uma relação orgânica entre
movimentos. Os processos de desumanização dessas
subjetividades acionam modos de lidar com a sobrevivência, assim
como estratégias comuns de resistência. O modo como seus corpos
estão inseridos na sociedade e as estruturas de dominação incitam
ações similares de lutas. A continuidade histórica, segundo Beatriz
Nascimento, seria algo como um “mundo sem intervalos”, “a vida
dos homens continuando aparentemente sem clivagens, embora
achatada pelos vários processos e formas de dominação”
(NASCIMENTO, 2006, p.110).
É o caso da adoção de um vocabulário contra o legado ou o
espectro da Ditadura, tanto pelos movimentos de vítimas diretas
do regime militar, quanto pelo Movimento Independente Mães de
Maio, o qual denuncia o genocídio do Estado paulista contra quase
600 pessoas no ano de 2006, em acontecimento relativamente
distante do período militar. A conectividade de seus saberes e
estratégias e sua potência em assumir memórias de conflitos
passados denotam uma relação orgânica entre os movimentos.
É a forma de ação que permite ao Movimento Independente Mães
de Maio mobilizar dizeres semelhantes a outras movimentações de
direitos humanos (Mães de Maio, 2012). Apesar de formado por
pessoas não oriundas de militância política, um de seus primeiros
símbolos foi o da bandeira do Brasil em preto e branco, com cerca
de metade de seu desenho original e com a inscrição ao centro:
“contra o terrorismo de Estado”. A conexão com uma história
política se verifica tanto no nome, referência direta às Madres da
Plaza de Mayo, da Argentina, quanto no lema, com os dizeres
engajados em discurso que se encontraria entre as denúncias de
direitos humanos e as lutas anticapitalistas. Ambos os movimentos
de mães reúnem mulheres cujos corpos encarnam a catástrofe
sofrida por consequência da violência de Estado.
152
O grito inaudito pelas democracias liberais
153
tratamento, o que eles pretendem5? Com que direito realizam o ato?
Qual a consciência política dos indivíduos desse coletivo, elemento
de legitimação na sociedade dividida entre esquerda e direita?
Haveria um outro direito, uma outra ação política, para estas
minorias paralelas?
Tais protestos acontecem como se houvesse alguma
manifestação que excede o direito e o legítimo, ameaçando o
Estado, a paz, o mercado, a norma. “Por modesta que seja uma
reivindicação, ela apresenta sempre um ponto que a axiomática não
pode suportar, quando as pessoas protestam para elas mesmas
levantarem seus próprios problemas a determinar, ao menos, as
condições particulares sob as quais aqueles podem receber uma
solução mais geral” (DELEUZE; GATTARI, 2012, p.187). Nesse tipo
de acontecimento, o direito tende a silenciar e invisibilizar as lutas,
fazendo-as aparecerem como sem linguagem, ou sem a forma
apropriada para um protesto. Não há uma representação, nenhuma
ordem, falas desconexas e inaudíveis para os instrumentos de
medição das instituições e do direito. “Talvez por isto que toda
pretensão se transforma em grito, mesmo quando o grito
permanece mudo ou inaudito” (LAPOUJADE, 2015, p.28).
A cada novo governo da democracia pós-Ditadura, mais
instrumentos de militarização foram sendo acionados a partir de
5Um exemplo dessa cena que se repete cotidianamente nas principais cidades do
país ocorreu no dia 15 de julho de 2016. O Jornal G1 da Rede Globo noticiou assim
o fato: “Protesto pela morte de garoto terminou em violência na Av. Santa Inês.
Os moradores atearam fogo a pneus e outros objetos e interditaram a via”. A
descrição assemelha-se a de uma guerrilha urbana: “Os manifestantes escreveram
no chão o nome do adolescente e fizeram uma oração. Depois, ocuparam a via
gritando o nome do outro adolescente que está em estado grave no hospital. No
começo da noite, um carro trouxe uma carga de pneus e atearam fogo nos objetos.
Um ônibus foi incendiado às 19h30. Os policiais usaram bombas de gás e balas de
borracha. Alguns manifestantes encapuzados atiravam pedras e fogos de artifício
em direção aos agentes”. Disponível em http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/
2016/07/pm-entra-em-confronto-com-manifestantes-na-zona-norte-de-sp.html.
Acesso em: 01 jul. 2021.
154
dispositivos legais precariamente regulamentados6. Ocorrem
operações que desfazem as separações jurídicas e éticas entre o
legítimo e o ilegítimo, o democrático e o autoritário. Encontram-se
cada vez mais disseminadas e permanentes, normalizando o que
surge perante a opinião pública como exceção. “A fim de facilitar a
repressão, os regimes no poder buscaram despolitizar o protesto
social” (MBEMBE, 2020, p. 63). Tais formas de contenção das lutas
sociais emergem com base na construção de perfis e
comportamentos de territórios e coletivos, aos quais são atribuídos
qualificações e graus de risco à ordem.
155
política global, com pretensões universais de direitos humanos
para países em saída de regimes políticos autoritários e violentos.
A justiça de transição é uma política global, obtendo a
recomendação da Organização das Nações Unidas (ONU) para sua
aplicação7. É recomendada para novas democracias surgidas após
conflitos violentos ou ditaduras. Apresenta quatro eixos principais: (1)
direito à reparação, pecuniária ou simbólica; (2) direito à memória
para o esclarecimento dos fatos e homenagem às vítimas; (3) direito à
verdade, com acesso às informações de arquivos e comissões de
apuração das violações; (4) direito à justiça para a investigação e
responsabilização jurídica. A principal estratégia de efetivação
consiste em considerar os quatro eixos de ação como recomendações,
negociando-os de acordo com as situações locais e recompondo as
diretrizes a partir da correlação de forças em disputa.
A maior qualidade da estratégia de justiça de transição é a
maleabilidade de sua aplicação, característica que se confirma,
paradoxalmente, como um mecanismo de bloqueio das
possibilidades de acesso a processos de ruptura e de
transformações profundas. O direito se submete às condições
políticas, as quais em geral se encontram dominadas por forças e
pactos de controle e de produção do consenso sob o silêncio e a
invisibilidade das lutas pelos direitos à vida. Esse foi o caso da Lei
de Anistia brasileira, de 1979, interpretada como passível de uso na
inimputabilidade dos agentes do estado brasileiro envolvidos em
graves violações de direitos humanos. Quando incitado a se
posicionar, em 2010, o Superior Tribunal Federal (STF) decidiu por
manter intocada a nociva interpretação das décadas anteriores. Nos
argumentos debatidos no STF admitiu-se que tal intepretação
estava em choque com o direito internacional e com os tratados de
direitos humanos que o Estado brasileiro havia aderido, mas
7Sobre essa política global ler a página da ONU sobre “justiça de transição”: “Paz,
direito e governo, o fundamento de legitimação do discurso verdadeiro de certo
Direitos Humanos”. Disponível em: https://www.un.org/ruleoflaw/thematic-
areas/international-law-courts-tribunals/transitional-justice/. Acesso em: 01 jul. 2021.
156
manteve a postura, alegando que não iriam alterar o pacto da
redemocratização. Em pleno Estado de Direito, o ilícito foi aceito
em favor de não alterar acordos políticos realizados ao fim do
regime militar.
No Brasil, sob o manto de fundamentação, legitimação e
produção de sujeitos estáveis e prontos a se inserirem nas normas
do direito, foram produzidas políticas de reparação, de mudança e
inscrição de nomes de vítimas da ditadura em logradouros, de
institucionalização da Comissão Nacional da Verdade, dentre
outras. Entretanto, isso não gerou processos de transformação, tais
como a mudança do sistema de segurança pública militarizado e
sob a ideologia do “inimigo interno”, ou os julgamentos penais dos
torturadores e assassinos publicamente identificados e impunes.
Mais grave, a permanência de mecanismos autoritários ocorreu sob
a justificativa de se aplicar uma política de reconciliação nacional e
de consolidação da democracia.
Na administração da justiça de transição reconhecem-se
discursivamente os limites das políticas públicas indicando que,
em casos de saída de regimes autoritários, deve-se fazer aquilo que
é possível. Contudo, sem provocar instabilidades aos governos de
consenso da democracia. As lutas pelo direito à memória e à justiça
e os movimentos de familiares de vítimas e de ex-presos políticos
entram em choque com as práticas limitadas de direitos humanos
do Estado brasileiro (incluindo, além do poder Executivo, o
Legislativo e o Judiciário).
A partir das lutas emergentes na democracia brasileira, como o
caso citado dos conflitos em torno da “justiça de transição”,
destacaram-se as formas de emergência de corpos, saberes, técnicas,
forças, desejos constituídos pelos efeitos de poder. Assim, seria
produtivo pensar o poder como algo que se movimenta, em constante
deslocamento e incidência, funcionando em rede, com seus elementos
sendo submetidos e, também, exercendo os poderes.
Pensando em termos de lutas em torno dos direitos humanos,
poderíamos afirmar que nos interessa mais as formas com que se
produziu a exclusão de determinados sujeitos ou resistências do que
157
a identificação da categoria dos excluídos. Em torno das lutas por
memória e justiça referentes aos crimes da Ditadura seria preciso
entender como elas produziram, a partir de certo momento, um
rendimento político, um privilégio de governo, de condução de
ações, sendo aos poucos colonizadas pelas políticas públicas, pelo
conhecimento verdadeiro e pelas instituições do estado democrático.
Dessa forma, para utilizar as políticas possíveis geradas pelo
discurso da justiça de transição é preciso estar preparado,
condicionado, qualificar-se para pronunciá-lo, de modo que se
determine um conjunto reduzido dos especialistas autorizados a
essa fala e a essa prática.
A retórica de um processo de transição permite à instituição
afirmar-se como esfera de concretização da consolidação da
democracia e de seus mecanismos de justiça, mesmo que o país não
tenha aberto um único processo penal contra os crimes da ditadura
e nunca tenha aberto os arquivos militares acerca dos aparelhos de
repressão política, as mortes e torturas e a localização dos corpos
dos desaparecidos políticos.
Sob as mesmas condições que permitiram a setores da
sociedade elaborarem demandas por justiça com proposições
próximas das que seriam integradas ao discurso da justiça de
transição, setores do estado democrático, alegando a condição de
exceção e de transição, aprovaram e mantiveram a interpretação
simbólica dos “dois lados” em conflito durante a ditadura. O pano
de fundo para essa linha de ação do governo democrático teria sido
a constante ameaça de desestabilização política, o que justificaria
uma política do possível, fundamentada na lógica da
governabilidade e na retórica da paz e da reconciliação.
158
legitimação central advém do discurso de uma história de violações,
diante dos quais haveria a esperança de se desfazer do passado
indesejado com políticas de diminuição dos sofrimentos sociais. A
nova lei, a Constituição de 1988, seria a promessa de novas práticas,
de produção de sujeitos universais – mulher, índio, idoso, adolescente,
quilombola, trabalhador – cujas naturezas eram a história de
vitimizações contínuas. A lei legitimada na fundamentação futura de
uma outra vida seria a redenção para esses sujeitos.
Nosso intuito, em vez de partir de sujeitos gerais ou de
condições naturalizadas discursivamente, foi o de considerar as
relações de forças constantes das lutas experimentadas
efetivamente. Assim, mais do que objetivar a condição dos grupos
precarizados enquanto sujeitos incapazes para lidar com a ordem
instituída, preferimos levar em conta a situação de corpos
colonizados por uma matriz social e histórica racista e patriarcal.
Aparentando realizar o projeto democrático de sujeição da
política à razão e à lei, os direitos humanos tomam parte dos
movimentos de dissidência e ruptura, marcando a queda do Muro
de Berlin, do Apartheid e o fim das ditaduras na América Latina. No
entanto, em um movimento paralelo, o discurso e as práticas passam
a ocupar novos lugares ao serem incluídos nas convenções, falas dos
especialistas e nas políticas públicas, sendo utilizado também para
legitimar violações de direitos por parte dos estados democráticos.
A democracia dos direitos humanos nos leva a algumas
questões necessárias para a compreensão da ação política na
atualidade: como e por que as democracias têm feito a tradução das
práticas sociais para a linguagem da lei e dos direitos? Seria a ação
política democrática uma astúcia ou terapia para minimizar o
sofrimento social das mais distintas vítimas sem uma profunda
transformação social? Ou, como sugerimos acima, o caráter de
denúncia e protesto das lutas sociais carrega em si mesmo uma
política de aprofundamento da democracia, sem a qual as decisões
da democracia podem permanecer restritas às salas palacianas e
aos gabinetes oficiais?
159
Referências
160
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião
Nascimento. São Paulo: N-1, 2020.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. Kilombo e memória comunitária:
um estudo de caso. In: RATZ, Alex. Eu sou atlântica. Sobre a
trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituto
Kuanza e Imprensa Oficial: 2006 a. p. 109-116.
TELES, Amélia. Breve história do feminismo no Brasil e outros
ensaios. São Paulo: Alameda, 2017.
TELES, Edson; QUINALHA, Renan. O alcance e os limites do
discurso da ‘justiça de transição’ no Brasil. In: Espectros da
Ditadura. Da Comissão da Verdade ao bolsonarismo. São Paulo:
Autonomia Literária, 2020. p. 15-58.
WORLD Bank. Governance and Development (1992). Disponível
em: https://documents.worldbank.org/en/publication/documents-
Acesso em: 01 jul. 2021.
161
162
Desde o outro lado:
crianças e as imagens sobreviventes em meio a
fagulhas e escombros
163
direcionadas para questões concernentes à infância e à luta por
moradia na cidade de São Paulo em que também estão envolvidas
as várias formas de remover moradores de edifícios ocupados por
pessoas, geralmente, ligadas a movimentos sociais de luta por
habitação. Ao longo da noite em que ocorreu a aula aqui
rememorada, conversamos a respeito de uma pequena, mas
importante parte das desaparições, sobretudo aquela que envolveu
pessoas em mais um dos inúmeros incêndios em prédios ocupados
para moradia e que se encontrava no cerne das reflexões contidas
no artigo mencionado.
Tratamos do incêndio ocorrido em 1 de maio de 2018, no
edifício Wilton Paes, que levou centenas de moradoras/es, inclusive
dois ou duas bebês recém-nascidos/as, a ocuparem o Largo do
Paissandu, na região central da cidade de São Paulo, fazendo dele
local de precária morada por 110 dias, até agosto do mesmo ano. O
edifício público incendiado fora ocupado devido à escassez
habitacional para grande parte da população5 que, por não ter
condições de moradia, e sendo privada de outros direitos que
assegurem a manutenção de suas vidas, ocupa edifícios ou terrenos
que não cumprem sua função social. Este capítulo apresenta um
desdobramento do que fora tratado naquela noite, qual seja, as
vistas desenhadas por crianças frequentadoras de uma Escola
Municipal de Educação Infantil (EMEI) que por lá passavam
diariamente, e desenharam cenas desse acontecimento, no que
estou chamando aqui de olhar “desde o outro lado”, porque
posicionado fora dos gradis ou de onde as pessoas viveram após o
incêndio que será mais bem apresentado nos próximos parágrafos.
Desenhos são aqui concebidos como fontes documentais e
manifestações expressivas das crianças. As crianças registraram a
seu modo o que fora um dos fatos marcantes na história recente da
164
cidade de São Paulo e, por isso, ainda que elaborados por
diletantismo, provocados pelo desejo de registrar o fato, ou, ainda,
para compor a exposição realizada na EMEI, como pertencentes
temporariamente ao acervo de desenhos da escola, eu os considero
como fontes documentais que me permitem refletir e aprender com
elas acerca de um determinado acontecimento, conjugadas ou não
a outras fontes. Como afirma Didi-Huberman, há nas imagens uma
encruzilhada que resulta de sua inespecificidade, do que contém, e
que exige de nós o cruzamento, seja com outras fontes, seja com
reflexões oriundas de diferentes áreas e seus sentidos. Por ora,
importa afirmar que essas imagens não são um corte no tempo, mas
“uma impressão, um rastro, um traço visual do tempo que quis
tocar, mas também de outros tempos suplementares – fatalmente
anacrônicos, heterogêneos entre eles – que, como arte da memória,
não pode aglutinar” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 207).
Serão apresentados 6 desenhos criados em 2018, entre os 10
que me foram doados e produzidos ao longo do período de
ocupação do Largo, todos com temáticas recorrentes, em que
prevalecem pessoas nas ruas (Nicolas e Mariah); festa e pessoas,
majoritariamente mulheres com trajes de festa (Mariah); pessoas
nas ruas com prédios pegando fogo (Beatriz, Brunno e s/nome).
Considero que há marcas do tempo passado e do presente e de
compreensões, impressões e imaginação das crianças. Esses
desenhos foram elaborados por meninas e meninos frequentadores
da EMEI Armando Arruda6, situada na Praça da República, área
vizinha ao Largo do Paissandu, compondo um território nessa
região atualmente em expansão ao se relacionar a outras EMEIs.
Eles foram criados em folha sulfite A4, usada na horizontal, com
fundo branco. Vale sublinhar que não foram elaborados no local do
incêndio como desenhos de observação. Entendo que foram
produzidos no aconchego e na intimidade das folhas e da própria
escola, entre colegas e professora, e não para serem exibidos de
imediato. Esse uso foi dado mediante autorização da escola e das
165
crianças consultadas à época, após sua elaboração, no tocante a
possibilidades de tornarem-se publicados. Desconheço quem os
fez, suas origens, locais de moradia, desejos, necessidades, e este
desconhecimento provoca outras formas de olhá-los, desprovidas
da oralidade que poderia orientar a compreensão do que foi criado
pelas crianças desenhistas. Mantive as anotações escritas realizadas
pelas professoras da EMEI, que funcionaram como legendas em
diálogo com os desenhos, compondo-os. Devo afirmar, desde o
início, que sempre me coloquei contrária a essas anotações, por
acreditar que elas podem embaçar as vistas para o desenho
propriamente. Contudo, a riqueza dos assuntos e a composição das
imagens levaram-me a trazê-los para este texto, mas com esta
ressalva. Isso deve ser considerado, pois são elementos que
informam a respeito dos desenhos e, seguramente, podem
contribuir com nossas formas de olhar. As reflexões feitas derivam
apenas dessas informações, dos assuntos contidos, das condições
de produção, por terem sido elaborados na EMEI. Os desenhos são
considerados, dentre outros aspectos, como recursos fundamentais
que produzem a memória de um acontecimento e nos permitem
guardá-la e montá-la, remetendo ao tempo presente e outros
tempos. Eles foram elaborados e doados posteriormente em cópias
para mim por um ex-estudante de graduação e por uma das
professoras da EMEI à época, assim que manifestei meu interesse
em conhecer essas criações, aos quais agradeço enormemente pela
generosidade7. Outra importante informação da história desses
desenhos é que posteriormente foram expostos em um evento
chamado Virada Educação8, que ocorreu no mesmo ano, 2018, na
mesma EMEI. Não consta que resultem de alguma solicitação
adulta, mas derivam do interesse destes meninos e destas meninas
166
pelo assunto e por expô-lo de algum modo, nesse caso, sobre o
papel. Os lápis, os gizes de cera e as canetas hidrocores foram a
ponta dos corpos das crianças desenhistas, que deixaram esses
fundamentais registros de um tempo informadas por sua visão de
mundo à época e nas condições possíveis de percepção e sentidos.
Apresentar esses desenhos agora implica colocá-los em
movimento, descongelando-os e impondo sua presença entre nós,
quem sabe, convocando a outros movimentos. Conjugo-os aqui
com 3 fotos do local – embora não vá abordá-las – por mostrarem,
segundo meu ponto de vista, alguns dos rastros seguidos por mim
que, de algum modo, coadunaram-se àqueles das crianças,
possibilitando certa aproximação e me permitindo olhá-los melhor,
ora comparando-os (embora se trate de linguagens diferentes), ora
investigando pequenos detalhes que minha memória apagou.
Incêndios encontram-se entre os motivos dos processos de
retirada9 de ocupantes que são, na maioria das vezes,
responsabilizados pelo fogo, ao serem acusados de terem deixado o
fogão ou fogareiro aceso, o que principiaria os incêndios, ou seja, há
uma responsabilização das próprias vítimas. A ausência do Estado
em prover o direito à moradia, e tudo o que dele advém, para todas
as pessoas, geralmente não é citada, naturalizadas que estão as
compreensões sobre os usos da terra urbana tornada mercadoria, em
função do capital. Não foi diferente com o incêndio do edifício
Wilton Paes, que mobilizou muitas pessoas, tornando-as
observadoras contumazes do ir e vir desses novos moradores e
moradoras – ainda que momentâneos – da região. A falta de
alimentos para corpos já frágeis e as dores presenciadas e
provocadas em todas/os envolvidas/os e a quem observava as cenas
compuseram os debates, acalorando-os, recheando-os de outros
sabores, em especial aqueles referentes às desigualdades sociais,
167
cada vez mais agudizadas em nosso país e em suas cidades
indistintamente. Pessoas, relações, coisas e sentimentos que
alimentaram uma pesquisa etnográfica com duração breve, entre
01/05/2018 e 10/08/2018, ou seja, enquanto as pessoas permaneceram
no local e do qual iam saindo aos poucos, à medida que encontravam
outros locais onde morar, motivados pelo parco auxílio moradia,
indo viver temporariamente em abrigos do município de São Paulo,
ou em outras ruas, embaixo de pontes e avenidas.
À noite, ao longo da aula, tratávamos especificamente
daquelas e daqueles que, acometidos pelo incêndio e
desprovidas/os, mais uma vez, de um teto, passaram a ocupar o
Largo do Paissandu, situado na região central da cidade de São
Paulo. Isto é, voltávamo-nos para o entendimento a partir de
observações de dentro desse espaço. Em entrevista a mim,
concedida logo no primeiro mês no Largo, Tatiana, uma das
coordenadoras momentâneas dessa ocupação, afirmou: “de dentro,
a sensação é ser vista como se fôssemos bichos entre as grades”.
Isso se refere aos gradis colocados como forma de delimitar espaços
de ir e vir. Pareceu-me que o intuito da Secretaria Municipal de
Habitação era fazer com que os gradis funcionassem como manto
mágico que encobrisse as pessoas que estavam lá dentro, tornando-
as invisíveis e, portanto, apagando o problema. O efeito, contudo,
contrariava o desejo de apagamento e suscitava ainda mais olhares
curiosos de quem passasse por lá. Dentro dos gradis, encontravam-
se barracas, roupas, organização coletiva para o momento da
refeição, que era derivada de doações, e crianças, várias crianças,
desde bebês. Em suma, dentro dos gradis, havia vidas que
representam outras tantas que vagarosa, diária e violentamente são
furtadas e, na maioria das vezes, desde o nascimento, ao terem seus
direitos e sonhos vilipendiados. Ainda que em condições tão
adversas, era visível o estabelecimento de relações entre as pessoas
que evidenciavam certo espírito de coletividade numa briga com a
morte para que vidas fossem mantidas. A afirmação de Tatiana
ainda ressoa em mim, fazendo-me refletir e buscar entender o que
era visto, sentido e compreendido desde o outro lado desses gradis.
168
Fruto da espoliação urbana (KOWARICK, 2019), é possível
afirmar que esse grupo podia ser traduzido como parte da
humanidade excedente (DAVIS, 2013) que resulta de uma classe
trabalhadora espoliada, inserida em mercado informal de trabalho,
atuando em atividades rudimentares que permitem unicamente a
subsistência, sobretudo daquelas e daqueles que se encontram em
situação de insegurança alimentar10. A presença das mulheres era
majoritária, o que permite a concordância com Davis (2013, p. 180),
ao destacar que a informalidade em que se encontra essa população
garante o abuso extremado de mulheres e crianças ao serem
convocadas para os cuidados e o trabalho que permitam a
manutenção da vida. Contudo, nesse caso especificamente, via-se o
que é possível denominar de museu vivo de exploração humana
em altíssimo grau, ou do que restou da exploração, quando sequer
o ato de explorar é desejado, e o humano torna-se, não apenas
indesejado, mas o resultado de uma realidade nefasta, ignóbil e,
portanto, objeto de rechaço e hostilidades. Estava um aglomerado
de mulheres, crianças e homens de tudo desprovidos e na luta
incessante para não desaparecerem. Estavam aquém do mínimo
para uma existência digna.
Didi-Huberman (2018) afirma que determinados povos estão
sob ameaças constantes e se expõem na desaparição que acontece
cotidianamente diante de nossos olhos, o que pode ser visto
também em imagens. Estas pessoas que ocupavam o Largo e
169
compunham famílias inteiras, mães solo11, com bebês e crianças de
bem pouca idade, e homens apresentavam aspectos que
misturavam uma superexposição ao desaparecimento forjado
minuciosamente pelas mãos de quem descuida da promoção e
garantia de direitos básicos e faz da morte de negros, indígenas,
pobres, mulheres e crianças – e de florestas inteiras,
transformando-as em áreas para monoculturas e pastagens –, a
forma escolhida para gerir com enorme bem-estar a vida de outros,
majoritariamente brancos, ricos e ricas.
As pessoas que olhavam surgiam de modo fugaz e
desapareciam sob os olhares dos outros. As crianças não
moradoras dessa ocupação no Largo do Paissandu não estavam
distantes dessas cenas. Ao contrário, encontravam-se presentes,
levadas por suas mães ou crianças mais velhas, ao passarem
rapidamente ou se dirigindo à EMEI, próxima ao local. As crianças
frequentadoras da EMEI, passantes atentas, mas figurantes no
momento do incêndio e o que dele derivou junto ao Largo do
Paissandu, serão tornadas protagonistas neste cenário. Os olhos e
o olhar dessas crianças promoveram a fatura de desenhos aqui
compreendidos como registros do acontecimento, registro daquele
exemplo de uma humanidade excedente, aludindo a Davis (2013).
As imagens produzidas sobreviveram ao acontecimento e
colaboram para que pensemos a respeito deles.
As pessoas e as condições em que se encontravam eram
também criadas e recriadas pelo olhar de quem por lá passava e
inferia no que – e não exatamente quem –, afinal, seriam aquelas
pessoas, gerando e demonstrando a cada fala certas representações
do acontecimento. Durante minha estada em campo, e, mais
especificamente, ao longo dos primeiros dias, ouvia debates
acalorados e outras falas solitárias, que me permitiram configurar
um amplo leque de expressões proferidas pelos passantes – que
170
circulavam mais rapidamente – e ficantes – que por algum tempo
paravam, observavam e até fotografavam os escombros e as
pessoas. Os termos utilizados variavam e demonstravam diferentes
qualificações, que passavam por percepções distintas: vagabundos,
desempregados, prostitutas, vadios, despossuídos, pobres,
injustiçados, inconsequentes. Era notório que a aparição dessas
pessoas só se fez possível porque passaram a atrapalhar o trânsito
de pedestres e automóveis, incluindo os transportes públicos, que
alteraram os locais de suas paradas para “bem mais longe dali”,
atrapalhavam também o caminho do olhar e de práticas religiosas
de pessoas que deviam estar acostumadas a frequentar a Igreja
Nossa Senhora dos Homens Pretos ali situada há mais de um
século, e que compõe a história da cidade e de seus pretos e pretas.
Se quem conta um conto aumenta um ponto, tínhamos ali várias
histórias produzidas do outro lado dos gradis que versavam acerca
das tantas vidas existentes dentro deles. De que lado estamos nos
aprisionamentos? As manifestações de uns e outros alimentavam
representações das mais diferentes formas. As expressões e os
olhares curiosos daqueles e daquelas que por lá passavam criavam,
a partir de suas falas e narrativas, as pessoas e as condições em que
estavam vivendo, mas também eram criadas por quem estava
olhando de dentro das grades, visões e narrativas distintas eram
construídas, resultantes do lado em que estavam. Desde fora, a cada
palavra dita, traço registrado sobre o papel, corpo que passava mais
rápido ou vagarosamente, conferia-se certa existência a quem,
devido ao fogo, passou a ocupar o Largo do Paissandu como
precária morada. Criavam representações e lhes conferiam corpo.
Seguramente, elas e eles, desde as crianças muito pequenas, eram
pouco ou nada conhecidas e conhecidos enquanto moradores do
edifício ocupado e incendiado, e agora estavam hipervisíveis,
apontando, emblematicamente, com os dedos em riste, para um
tempo presente ordenado por diferentes misérias e urgências.
“Todo o asfixiante sentimento de impotência que esta
organização social cultiva em cada um de nós, a perder de vista, é
apenas uma imensa pedagogia da espera” (COMITÊ INVISÍVEL,
171
2017, p. 14). Parte dessa afirmação do Comitê Invisível ecoa em
mim quando revisito as imagens-fotográficas, feitas por mim, e
desenhos criados pelas crianças – vasculhando-as na memória e o
que construí em indagações sobre crianças e cidade a partir do que
foi visto e sentido ao longo da pesquisa de campo. Em curso há
tanto tempo, essa pedagogia da espera tem gerado, a partir de suas
práticas políticas e da produção de cenas e ações como essas, o
sentimento do vazio e da impotência. Ela produz, como um de seus
resultados, frágeis junções de pessoas, cujas experiências comuns e
resistências mais contundentes não vão, muitas vezes, para além da
sobrevivência diária.
Este texto será apresentado contando com esta introdução, que
ora se finda, e as reflexões contidas em sua segunda parte,
intitulada O FOGO E A CAPTURA DO EFÊMERO: desenhos e o olhar
de quem passa, imagens sobreviventes, em que destaco o Pensar por
imagens, com desenhos produzidos pelas crianças da EMEI
Armando Arruda, situada na Praça da República, vizinha ao Largo
do Paissandu. O outro lado dos gradis, o lado de fora e de quem
não está ocupando o Largo, como já mencionado, foi registrado por
elas e eles espontaneamente, e a partir de conversas com suas
professoras dentro da EMEI, que merece destaque pelo sensível
trabalho em que buscou dialogar com as crianças acerca dessa vista
traumática e, ao mesmo tempo, permitiu que essas imagens aqui
estivessem e que, com elas, tivéssemos acesso não só à memória,
mas àquela que se faz construída conosco pela via das crianças.
Optei por destacar alguns detalhes dos desenhos apenas para
ressaltá-los e provocar o pensamento numa montagem de imagens
orientada por mim, acreditando que, seguramente, outras serão
orientadas pelas leitoras e pelos leitores a partir do que trazem para
as imagens, o que retêm e desejam delas. Os desenhos feitos pelas
crianças são os sobreviventes imagéticos deste momento trágico.
No último dia de ocupação, as pessoas que restaram no Largo
foram tiradas com jatos de água. Emblematicamente, a água que
purificava o local, tornando-o novamente “limpo”, sem a presença
do que fora palco por meses, como se a forçar o esquecimento. Era o
172
final de um processo de desumanização e descaso, o
desaparecimento limpo com água reforçaria o esquecimento, já que
a vida, supostamente, voltaria ao normal. Vale reforçar que
promover o esquecimento, de diferentes formas faz parte dos modos
encontrados para o aniquilamento de determinadas populações.
Esse acontecimento foi vivido, mas, para não ser finito lá em 2018,
defendo que essas imagens-testemunhos sejam vistas e lembradas
para que não tenham limites e atravessem tempos. Sabemos que não
se trata apenas de mais um incêndio e que enquanto um acontece
outros são iniciados, ainda que sem o fogo, moradias ardem em
outras brasas, que trocam de nomes e passam a chamar remoções,
ou limpeza, ou desapropriações, misérias que aumentam a cada dia.
As crianças e os registros desses atos recolocam a capacidade infantil
de produzir memórias por imagens – implicando-nos a elas, já que é
preciso olhá-las – o que amplia a valorização de suas criações,
colocando-as em outros patamares.
Figura 1 – Trecho de mapa da região referida neste capítulo com foto do local.
173
Desenho 1 – Prédio pegando fogo. Desenhista: Beatriz.
174
Desenho 3 – Processo de produção do desenho: prédio pegando fogo.
175
Desenho 5 – Moradores de rua na chuva - Desenhista: Nicolas.
176
Fotografia 1 – Homens, em discussão Fotografia 2 – Gradis: dentro e fora,
acalorada, debatem sobre o 10/05/2018.
acontecimento, 04/05/2018.
177
forjadas em nós ao longo do tempo, criando múltiplos pontos de
vista numa só pessoa que, neste caso, vê e registra ao desenhar ou
fotografar o que olha.
Quanto à elaboração de desenhos pelas crianças, Staccioli
(2021) afirma que há duas articulações nesse processo e produto:
consiste na descoberta de certos sinais que, sobre o papel ou outra
superfície, assumem algo de “real”. São imagens que têm alguma
aproximação com o mundo visível, relacionando-se a outras
realidades ocultas ou imperceptíveis. Nos desenhos aqui
apresentados, ambas as possibilidades estão presentes e em
relação. De acordo com o autor, temos diante de nós algumas
tentativas de traduzir a complexidade de uma cena em imagem
bidimensional, após procura por respostas e encontro de formas
tão sofisticadas de elaborar os contatos com o mundo. Juntaria à
compreensão de Staccioli a ideia de transcriação ao traduzir.
Tradução bem entendida, não como cópia de um real, mas como
resultante de processos e atos criativos, nesse caso, das crianças,
que transcriam o que fora olhado por elas. Estar diante da imagem
é estar diante do tempo. O tempo presente é reconfiguração do
passado, em que a imagem só se torna pensável numa construção
da memória (DIDI-HUBERMAN, 2015) que, afirmo, se dá na
junção de atos criativos, inclusive na infância.
Estar diante do tempo na relação com as imagens implica,
neste caso, pensar acerca da sobreposição de agruras, que, ao longo
de nossa história, no Brasil, o poder público tenta esconder, mas
que ressurge com força ocupando brechas, pontes, viadutos e
praças chamuscadas, assim como nos assuntos presentes nestes
desenhos infantis. As pessoas que ficaram sem casa, como nas
palavras das crianças, chamaram muito a atenção, compondo a
quase totalidade dos desenhos, e, por isso, não bastasse o destaque
nos próprios desenhos, escolhi por recortá-las, destacando-as ainda
mais, convocando pensamentos. Trata-se de um real possível e
vivido, ainda que mais distanciadamente, e aqui representado e
perceptível quando conjugamos os desenhos a diferentes fontes
178
produzidas à época, temos o gesto da criança que, ao desenhar,
apresenta, neste caso, o terrível e o belo do mundo, ou de parte dele.
Trata-se de desenhos comprometidos com as cenas e que ao
mesmo tempo nos envolvem a elas. Mas, mais do que isso,
mostram as crianças implicadas no acontecimento registrado de
diversos modos e com tantos detalhes. No Largo do Paissandu, a
paisagem entorpecia, vista a uma distância de pouco mais de 100
metros, do outro lado da Avenida São João, caminho das crianças
até a EMEI e daquelas que habitam a região. Suspensão do tempo
que evocava diferentes temporalidades: num giro rápido, a igreja
do século XIX contracena com ônibus, carros modernos e a
presença gritante do modo capitalista de produzir misérias, qual
seja, tornando algumas vidas ainda menos importantes e passíveis
de extermínio a céu aberto. A atual Avenida São João, cuja história
remonta ao século XVII, é via pedonal e de veículos para várias
crianças em seu cotidiano escolar e de possíveis moradoras da
região. Passam, esquivam-se das pessoas que cortam seus
caminhos, dialogam, correm, observam, como fazem muitos
meninos e muitas meninas nos espaços públicos desta e de tantas
cidades, às vezes, como estrangeiro, à parte do universo observado
e em meio a multidões, comportando-se como flaneur à procura de
refúgio, em que a cidade familiar se transforma em fantasmagoria
(BENJAMIN,2009).
Como é possível observar, os prédios cambaleantes se
misturam às pessoas que, sem casas, ficaram nas ruas. São
elementos que podem nos remeter a outras condições sociais
cotidianas e a tempos que surgem quando nos colocamos a montar
as imagens e refletir a respeito do que cada posicionamento implica
e produz de conhecimentos sobre esse e outros acontecimentos. São
como portais abertos para diferentes relações e formas de
compreendê-los. O desenho 6, que aparentemente destoa dos
demais em sua composição, parece espelhar provocativamente
algumas práticas que revelam contrastes: o homem pegando lixo
enquanto outros vão à festa. Desconheço o que originou
objetivamente esta afirmação, mas, em si, ela contém muito a
179
pensar acerca de nossas condições e concepções de vida em que
estamos imersos, e com as quais contribuímos quando nos
silenciamos ou apenas usufruímos de condições mais abastadas de
vida. Lixo versus festa.
Esses desenhos feitos pelas crianças nos colocam defronte a
cenas, pessoas, rostos do acontecimento em si. As imagens, que na
arte muitas vezes apresentam os figurantes da história, aqui
conferem certo protagonismo – ainda que breve – aos que seriam
rapidamente esquecidos, numa exposição que leva ao silêncio e
esquecimento, e que só passam a existir quando incomodam e
problematizam a rotina. Insisto que essas imagens podem ser
consideradas como levantes produzidos por crianças de pouca
idade. Talvez, tenhamos aqui, por suas mãos, um dos poucos – senão
únicos – testemunhos desse tempo. São fontes documentais que
permitem a montagem de tempos heterogêneos. Nos desenhos, há
sempre algo inédito a descobrir, eles contêm narrativas que podem
recontar episódios singulares ou histórias inteiras, tendo um caráter
mnemônico. São veículos que transportam momentos inscritos nas
crianças, na cidade como cicatrizes e permanecem na memória de
alguns, podendo ser tocadas e alimentadas a partir do que fora
criado pelas crianças, nem sempre percebido como algo passível de
consideração. Ressalto que os desenhos com os quais abro este
subcapítulo trazem elementos bons para pensarmos sobre o
capitalismo – sim, o capitalismo – e o que ele nos faz cotidianamente
ao produzir, em suas tantas manifestações de exploração, a forma da
morte, do descaso, da exploração, das diferenças transformadas em
desigualdades, tal como ressaltadas nas imagens dos “moradores de
rua ou pessoas que ficavam nas ruas” como denominados pelas
crianças e dos edifícios cambaleantes dos quais saem chamas
amareladas. Deste modo, permito-me afirmar que há uma
importância política nas imagens criadas pelas crianças, por reunir
processo e produto de criação de meninos e meninas de tão pouca
idade ao conteúdo que pode ser visto em cada um deles. Além disso,
há uma importância política no ato de defender essas mesmas
expressões infantis, em todas as idades, sem esquecer de bebês, por
180
retirá-las de contextos em que são vistas, ora segundo concepções
etapistas, ora como produções plásticas de menor relevância em
comparação com as adultas e, ainda mais, com isso, considerar seus
pontos de vista como fundamentais para se continuar a pensar sobre
diferentes aspectos da vida e de nossa história propriamente dita,
contribuindo com a inversão da predominância de lógicas adultas
como únicas possíveis e confiáveis.
Esses desenhos não são em si o ato de resistência, mas podem
nutri-la, na medida em que existem e se fazem presentes diante de
nós, provocando reflexões e outros atos. São índices desse estado
de coisas, fios a serem puxados e que, talvez, possam provocar a
construção de conhecimentos a respeito da infância, de desenhos
nela produzidos. Seria o ato de desenhar uma forma de conviver
com aquela cena dolorida de ser vista, com a tormenta, presente em
tantas pessoas em seu ir e vir diário, e outras, com o olhar perdido
à espera de algo que mudasse a vida? Seria meu ato de olhar e rever
a todas as imagens um modo de me manter acesa em relação aos
acontecimentos e à posição política tomada quanto ao
acontecimento presenciado e a todos que aprofundam as
desigualdades sociais? Seria o ato de guardar e rememorar uma
fundamental forma política de estar no mundo e provocar tomadas
de posição? Creio que escrever a respeito disso e a partir dessas
imagens é uma forma de colocar a lume e tentar abrir
possibilidades de compreensão com as crianças.
Alio a defesa das crianças, em especial expostas a essas
condições de tamanha desigualdade, a outras defesas e lutas tão
necessárias, entre elas aquelas em que se afirma a importância do
que as crianças criam como testemunhos de diferentes tempos,
fundamentais para que os compreendamos amplamente e não
apenas do ponto de vista adulto. Desacelerar a vida e olhar para
isso exige um tempo de parada para pensar e sentir sobre o papel,
linha a linha, cor a cor e seus assuntos, ainda que aparentemente
indecifráveis, como numa composição abstrata. Temos neste
capítulo imagens concomitantemente sublimes e fortes, realçadas
nos detalhes apresentados e que podem ressoar espalhando-se em
181
nós e nos outros/as que as olhem. Essas imagens, quando bem
olhadas, seriam, portanto, imagens que souberam “desconcertar,
depois renovar nossa linguagem, e, portanto, nosso pensamento”
(DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 216). Ainda me pergunto se
intentamos “bem olhar” as imagens criadas pelas crianças, em
especial, seus desenhos, ou se seguimos, guardando o tempo e o
aprendizado do bem olhar e o tocar-se apenas para aquelas
produções consagradas e adultas.
182
podemos, com isso, conferir-lhes fundamental importância para
conceber compreensões diversas referentes a um acontecimento.
São desenhos sobreviventes que permitem pensar em povos
expostos, não somente estes, em alguns dias, mas tantos ao longo
de nossa história, porque estão ameaçados de desaparecer,
considerados como gente obsoleta, inservíveis, ameaças. Como
imagens, elas sobrevivem a esse estado de coisas e se mostram
fortes, gerando força ao provocar pensamentos.
Desenhos dão outra forma ao ocorrido e afirmam que as
crianças não são espectadoras passivas. Se esquecer o extermínio
faz parte do extermínio, como afirma Didi-Huberman (2012b), não
podemos esquecer o que nos acomete e tem acometido tão de perto
e de modo cada vez mais trágico neste país, e as crianças trazem
mostras disso e estão conosco registrando, pensando, emitindo
suas opiniões e seus sentimentos. Guardar seus desenhos para
recordar do que nos tem solapado de modo cruel em distintas
formas de exterminar populações: indígenas, negras, pobres,
LGBTTQIA+ e as crianças que compõem esses grupos e são, muitas
vezes, vítimas desses extermínios. Sua imaginação nessas imagens
fica em nós, marca-nos e permite rastreios sobre tempos que se
sobrepõem, que vão e vêm. Seus desenhos são muitas coisas, dentre
elas, um passado recente que se reconfigura e se mostra cutucando
nossa sensibilidade e capacidade de movimentação crítica diante
dele. Que posição tomamos? As imagens ardem (DIDI-
HUBERMAN, 2012), e os desenhos podem arder e queimar em nós
quando nos debruçamos sobre eles e pensamos junto deles e das
crianças em todos os tempos. No que fora aqui tocado, os desenhos-
testemunhos, como os chamei, foram produzidos a partir de cinzas
de um incêndio e arderam também nelas e por elas, em seus
criadores e suas criadoras e, defendo, por exercer semelhante ato
em nós, em quem se debruça sobre, quando nos acercamos deles.
Finalmente, a imagem arde pela memória, quer dizer que de todo modo
arde, quando já não é mais que cinza: uma forma de dizer sua essencial
vocação para a sobrevivência, apesar de tudo. Mas, para sabê-lo, para senti-
lo, é preciso atrever-se, é preciso acercar o rosto à cinza. E soprar suavemente
183
para que a brasa, sob as cinzas, volte a emitir seu calor, seu resplendor, seu
perigo. Como se, da imagem cinza, elevara-se uma voz: “Não vês que ardo?”
(DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 216).
PASSAGEM DA NOITE
184
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
185
Referências
186
Infâncias e a cidade em tempos de pandemia do
Coronavírus: o direito à cidade em tempos sombrios
› rj › sao-goncalo
187
habitantes, localizada no Leste Fluminense, do Estado do Rio de
Janeiro. Com base em minha trajetória de estudos e investigações
no GIFORDIC, constituído em 2010, na FFP, o artigo pretende
convidar a uma reflexão dos processos formativos de crianças e
profissionais da Educação Infantil, tendo o território material e
simbólico como um campo de forças, no qual objetivamente e
subjetivamente são (re)constituídos diferentes modos de
subjetivação na cidade, ou melhor, os diferentes modos de pensá-
la, praticá-la, e vivê-la. (TAVARES, 2019).
Dentre os mais de cinco mil e quinhentos municípios
brasileiros, na cidade de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro,
a multiplicação das desigualdades sociais vem afetando a vivência
cotidiana na cidade de modo contínuo e profundo. Até a crise da
escola, fenômeno contemporâneo dos grandes centros urbanos,
ganha nuanças próprias. No Brasil e, particularmente, nesse
município, a crise da sociedade escolarizada apresenta matizes
singulares. Os indicadores educacionais explicitam,
paradoxalmente, que o direito à educação vem se dando sob a
égide da inclusão degradada (MARTINS, 2002), isto é, a ampliação
da oferta de vagas e acesso à Educação Infantil na cidade é
combinada com uma crescente precarização material e simbólica
da escola pública, sobretudo no processo de educação das
infâncias pobres e negras que vivem nas favelas e periferias
urbanas de São Gonçalo.
A dimensão política e epistêmica de investigar o lugar,
tomando-o como densidade analítica e compreensiva de processos
formativos de professoras de crianças pequenas, nos leva ao
diálogo com Santos (1994) que, em sua formulação teórica a
respeito de sua epistemologia existencial, nos instiga a realizar o
exercício de estudar o que cada lugar tem de singular, de
específico, de diferente e original, para compreendermos como os
Área Territorial. 248,160 km² [2019]. População estimada. 1.084.839 pessoas [2019].
Densidade demográfica. 4.035,90 hab/km² [2010]. Acesso em 20 de junho de 2021.
188
sujeitos e sujeitas agem e produzem modos de vida, relações e
práticas sociais, dentre elas o direito à educação na cidade.
Com relação aos processos de educação de crianças pequenas,
tomar o lugar como parte do real implica compreender que o
espaço social se retraduz no espaço físico, e a relação entre a
distribuição de bens e serviços no espaço físico define o valor do
espaço social reificado. Ao recorrermos a esta formulação teórica
de Santos (1994), podemos ler, pela análise do autor, o alcance das
políticas de democratização do direito à educação que, a despeito
dos consideráveis avanços nas duas últimas décadas no Brasil, tem
se confrontado com paradoxos produzidos no abrigo de uma
política universal. Vale afirmar que o avanço na oferta quantitativa
da Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, não foi
capaz de superar a dualidade quantidade-qualidade como uma das
expressões da inclusão precária de crianças de 0 a 6 anos, das
classes populares nos equipamentos educacionais, creches e pré-
escolas disponíveis.
Em nossas pesquisas no campo das políticas públicas e
Educação Infantil no município de São Gonçalo, vimos recorrendo
às contribuições de Freire (1997), cujo trabalho político-epistêmico e
político-metodológico, em profundo diálogo com Milton Santos
(1994), toma a perspectiva do lugar como espaço por onde se
engendram ações e diferentes relações de força que dinamizam e
produzem o território.
Deste modo, delimitar um campo de estudos e suas possíveis
configurações e interseções não é tarefa simples, requerendo uma
razoável capacidade para focar questões mais candentes na
temática investigada. Neste sentido, entendemos que esta breve
contextualização poderá contribuir para a compreensão dos/das
possíveis leitores/as deste texto, uma vez que a provisoriedade dos
resultados dos estudos ainda em fase de desenvolvimento nos
exige um recorte, tendo em vista as intencionalidades e os objetivos
do presente texto em tela.
Para a estruturação deste texto, optei por enfocar algumas
questões que dizem respeito à temática das infâncias gonçalenses
189
e o direito à cidade(LEFEBVRE, 1991) em tempos da pandemia do
Coronavírus, problematizando algumas questões que atravessam
e expõem a vulnerabilidade desse segmento geracional no
contexto pandêmico.
190
brasileira, distribuindo cestas básicas, quentinhas, materiais de
higiene corporal aos moradores de favelas, periferias urbanas e de
áreas rurais. É esse afeto político fundamental chamado
solidariedade que atravessa o meu texto, convidando a pensar que
no Brasil contemporâneo, apesar de termos uma estrutura societal
fundamentada na necropolítica (MBEMBE, 2016), que se
acostumou com a gestão dos mortos oriundos de uma sociedade
historicamente genocida e escravocrata, na qual indígenas, negros
e negras, homens e mulheres favelados são considerados coisas e
não pessoas, a solidariedade social ainda se faz presente, ocupando
o vazio da ausência de posicionamentos oficiais e governamentais.
Diante dessa catástrofe anunciada ao vivo e a cores pelos
veículos de comunicação de massa, tais como TVs e rádios, revistas
e jornais, sendo contínua e solenemente ignorada pelo presidente
da República e seus asseclas, que contradizem autoridades médicas
e sanitárias do Brasil e do mundo, desafiando o coronavírus e a sua
letalidade, faz-se necessário e urgente pensar, arguir esse “estado
de exceção” (BENJAMIN, 2013) no qual, como um pesadelo,
vivemos todas e todos. Tempo de quarentena e isolamento social,
instaurando outro tempo, um tempo de incertezas frente à
complexa crise na qual todos estamos enredados: uma crise da
própria Medicina (os debates em torno de como tratar da pandemia
em si), uma crise econômica (que afeta todo o sistema produtivo e
cujos impactos não sabemos antever) e uma crise pessoal, de nossas
próprias condições mentais, de como cada um/cada uma está
vivendo esse período de quarentena, sendo que os impactos
subjetivos não podem ser subestimados –principalmente pelo
elevado número de óbitos que já nos colocam como o 2º país de
mundo em perdas de vida pela Covid-19.
Em diálogo com a epígrafe acima, me interrogo acerca das
relações das crianças pequenas com os espaços da cidade em
tempos de pandemia do Novo Coronavírus. Em tempos de tantas
incertezas, face ao isolamento social iniciado no Brasil, em 16 de
março de 2020, vimos nos perguntando da presença ruidosa das
crianças na cidade. Como num passe de mágica, num tipo de
191
encantamento, as crianças parecem ter desaparecido, sumindo das
ruas, das calçadas, das praças, dos playgrounds, dos portões de
entrada das creches e pré-escolas, das feiras livres e outros lugares
da cidade, permanecendo isoladas e encerradas em seus
apartamentos, barracos, casas, cortiços, moradias inúmeras vezes
precárias e com grande adensamento social, compartilhando o
espaço com muitas pessoas, entre adultos, idosos e outras crianças.
Com o avanço avassalador da COVID-19, é importante
assinalar que as creches e pré-escolas públicas e instituições
educativas em São Gonçalo, depois de mais de um ano ainda
continuam fechadas, como forma de prevenção e combate à
pandemia e a sua terrível propagação. Diante desse cenário, faz-se
necessário problematizar e provocar reflexões acerca de como vem
se produzindo a vida cotidiana, as diferentes táticas (CERTEAU,
1994) pelas quais crianças de creches e pré-escolas públicas vêm
lançando mão no período da pandemia para garantir o seu direito
à vida e à cidade, aos espaços citadinos. Para tanto, intencionamos
colocar em diálogo como vêm se dando as atuais condições de vida
de crianças pequenas oriundas de classes populares na cidade de
São Gonçalo, território de nossas pesquisas há mais de 20 anos.
Portanto, falar de crianças que vivem em periferias da Região
Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro (RMRJ), e que nos
desafiam a pensar práticas favoráveis à educação e ao seu cuidado
cotidiano nesses tempos pandêmicos.
No Brasil, os dados do Ministério da Educação (MEC)
relativos a março de 2021 ainda indicam a suspensão das atividades
presenciais em todas as redes escolares, tanto públicas quanto
privadas, nos 26 estados e no Distrito Federal. Segundo dados do
Censo Escolar de 2019, seriam quase 9 milhões de crianças
matriculadas na Educação Infantil (creches e pré-escolas) nas redes
públicas e privadas em todo o país (INEP, 2019), ou seja, muitas
crianças de 0 a 5 anos de idade afetadas diretamente pelo cenário
descrito. Nesse contexto de tantas incertezas e rompimento de
vínculos, perguntamos: E as crianças pequenas das periferias
urbanas gonçalense, como estão vivendo esses tempos? O que estão
192
fazendo e como estão usando os tempos da vida cotidiana durante
o isolamento social forçado?
Em linhas gerais, o cotidiano vivenciado por muitas famílias e
crianças das periferias metropolitanas fluminenses coloca em
xeque a aplicação das determinações da Organização Mundial de
Saúde (OMS) e das próprias Secretarias de Saúde locais, em face da
pandemia da COVID-19. Dados organizados pela ONG “Casa
Fluminense”, a partir do Censo de 2010 (IBGE), apontam que cerca
de 300 mil casas na RMRJ têm mais de 3 pessoas por cômodo. E que
em termos de moradia, a RMRJ concentra o maior número de
adensamento populacional do país. Além disso, há pouco menos
de 1 ano, o Estado do Rio de Janeiro sofreu uma gravíssima crise
hídrica de abastecimento e qualidade da distribuição de água,
piorando substancialmente os índices de saneamento básico,
especialmente nas favelas e bairros das periferias urbanas
(MACEDO; PESSANHA; TAVARES, 2021).
Para complexificar as condições e qualidade de vida no
Estado, o Rio de Janeiro apresenta, ainda, um dos piores índices de
acesso a saneamento básico, ao passo que no ranking das cidades
com piores condições de saneamento básico do Brasil, cinco
cidades do Estado estão entre as piores do país, todas concentradas
na RMRJ (CASA FLUMINENSE, 2020).
Por outro lado, o direito à vida e à segurança nas regiões
metropolitanas densamente povoadas do estado do Rio de Janeiro
tem sido um agudizador das condições de isolamento social dos
moradores das periferias urbanas, principalmente em São Gonçalo.
O caso do assassinato do menino João Pedro, de 14 anos, baleado
dentro de sua casa, durante uma operação policial na favela do
Salgueiro, localizada no complexo de favelas do Salgueiro, expõe
de maneira visceral como crianças e jovens pobres,
majoritariamente negros e negras, estão vulneráveis à escalada da
violência, principalmente pelas operações policiais realizadas de
forma letal, em favelas e bairros populares em São Gonçalo.
Trazemos à memória algumas questões referentes ao
assassinato de João Pedro Mattos Pinto, adolescente negro de 14
193
anos. Lembro que, no dia de sua morte, ele estava em sua
residência, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. João Pedro
estava em casa, respeitando as recomendações da Organização
Mundial da Saúde (OMS), quando na tarde do dia 18/05/2020,
enquanto brincava com seus primos no quintal de sua casa, foi
alvejado com 70 tiros e estilhaços de granadas, durante uma
operação do Batalhão de Operações Especiais (BOPE).
Um tiro de fuzil atingiu João Pedro na barriga, e ao ser levado
pela polícia para ser supostamente socorrido, ele foi sequestrado.
Madrugada adentro, e sem notícias do menino, a família e amigos
procuraram-no em hospitais e movimentaram as redes sociais com
vídeos desesperados na esperança de encontrar João Pedro com
vida. A incessante procura termina com o pior: o corpo de João
Pedro Mattos Pinto foi encontrado 17 horas depois, no Instituto
Médico Legal (IML) de São Gonçalo, mais precisamente no bairro
de Tribobó, bairro de São Gonçalo, localizado na fronteira com
Niterói, cidade vizinha. (LISBOA, 2021).
Assim, pergunto: o que valida o direito de um órgão do estado
desaparecer com um corpo alvejado por tiros, sem a presença
sequer de um familiar? Se não bastasse a dor da perda brutal, a
família precisou procurar de forma desesperada o corpo de João
Pedro, além de ter de apelar nas mídias televisivas pelo acesso ao
corpo do menino.
A esse respeito, Silvio Almeida (2019), em seu livro Racismo
estrutural, evidencia, a partir do pensamento do filósofo Achille
Mbembe, o conceito de necropolítica, que ocorre quando o Estado
adota como natural políticas de morte. Quando se nega a
humanidade do/a outro/outra e este/esta outro/outra é colocado/a
como a exceção. É nesse contexto que o poder de matar opera.
194
especialmente nos países da periferia do capitalismo, em que as antigas
práticas coloniais deixaram resquícios. (ALMEIDA, 2019, p. 125)
O racismo pode ter sua forma alterada pela ação ou pela omissão dos
poderes institucionais – Estado, escola etc.-, que podem tanto modificar a
atuação dos mecanismos discriminatórios, como também estabelecer novos
195
significados para a raça, inclusive atribuindo certas vantagens sociais a
membros de grupos raciais historicamente discriminados. Isso demonstra
que, na visão institucionalista, o racismo não se separa de um projeto político
e de condições socioeconômicas específicas. (ALMEIDA, 2019, p. 41).
196
encontram mais vulneráveis e expostas às situações de desigualdade
social e econômica. Isso revela o agravante do recorte de gênero, que
é altamente atingido por essas desigualdades, cuja concentração está
nas periferias das regiões metropolitanas brasileiras.
Mais especificamente, ao refletir acerca das condições da vida
cotidiana das crianças com as quais trabalhamos nas instituições de
Educação Infantil da cidade de São Gonçalo, urge
problematizarmos as condições concretas nas quais elas estão
realizando o isolamento social, mediante o imperativo do
fechamento das creches e pré-escolas. É importante ressaltar que
São Gonçalo faz parte da RMRJ, segunda maior área metropolitana
do país, apresentando, no contexto da pandemia, um expressivo
número de óbitos e infecções pela COVID-19.
Talvez, neste momento em que milhares de famílias, de
crianças e de professores/as estão em casa, buscando garantir em
isolamento social o seu direito à vida, cabe a pergunta: e as crianças
das favelas e periferias urbanas de São Gonçalo, como garantir-lhes
protocolos sanitários de proteção e de prevenção ao vírus, num
cenário como o acima descrito? Qual a importância das creches e
pré-escolas para as crianças pequenas, familiares e profissionais
que atuam na Educação Infantil? Ou, ainda: que sentidos são
construídos por familiares de crianças das classes populares, a
partir da garantia do direito à Educação Infantil aos seus filhos
pequenos, conforme já nos alertavam Pessanha, Macedo e Tavares
(2021), em seus estudos a respeito da educação das infâncias em
munícipios do Leste Fluminense?
As questões acima elencadas tangenciam o presente artigo, cuja
premissa é de que as instituições educativas voltadas à pequena
infância, juntamente com familiares e professionais da Educação
Infantil, são fundamentais para pensar processos educativos a
contrapelo (TAVARES, 2003), e que possam se nutrir da dúvida como
método (GARCIA, 2009), constituindo comunidades de afetos
(CARVALHO, 2009) e de resistências à barbárie inscrita em seus
territórios de vida. E por isso mesmo, em um momento tão
dramático, torna-se relevante e inadiável refletir a respeito das atuais
197
condições e circunstâncias de educação da pequena infância, a partir
da suspensão do cotidiano das creches e pré-escolas e do
consequente isolamento de suas experiências de construção de
conhecimentos nos espaços privados de suas famílias, focalizando
esforços de territorialização de uma pedagogia da liberdade
(FREIRE, 2001).
198
Por outro lado, os impactos da COVID-19 na vida dessas
famílias, sobretudo pelo longo período de isolamento social,
agravado pelo fechamento das creches e pré-escolas, trazem, dentre
outras vulnerabilidades, a falta de um lugar para as crianças. Com
efeito, é fundamental ressaltar que, na sociedade em que estamos
inseridos, as crianças circulam na casa de avós, madrinhas,
parentes e na própria vizinhança, sobretudo crianças das camadas
populares, por inúmeras motivações de suas “gramáticas de
viração” (TAVARES, 2003). Com o Coronavírus e a necessidade de
se permanecer em casa, esses territórios de acolhimento se
tornaram interditados, proibidos, ampliando a vulnerabilidade
social, tornando a vida de crianças pequenas mais frágil, mais
precarizada e expostas a uma maior vulnerabilidade social.
O breve cenário apresentado, ainda que com muitas variáveis
a serem investigadas, nos fornece elementos vigorosos para colocar
em diálogo as condições em que essas famílias e crianças estão
vivenciando a atual crise provocada pela COVID-19. Esse contexto
é trazido como pano de fundo para o debate proposto a respeito
das relações que crianças pequenas constroem em seus territórios
existenciais, nos quais os equipamentos de creche e pré-escolas
possuem uma dimensão educativa fundamental. Procuramos
enfatizar em quais condições e circunstâncias a educação da
pequena infância vem ocorrendo, mediante a suspensão do
funcionamento das Unidades Municipais de Educação Infantil
(UMEIs), e o consequente isolamento de suas experiências
educativas nos espaços privados de suas famílias.
No bojo da discussão acerca do impacto das atividades
remotas na educação das crianças pequenas, ressaltamos a
preocupação com uma possível descaracterização das concepções
epistêmicas e pedagógicas que fundamentam o trabalho na
Educação Infantil. Perguntamo-nos, então, de que forma, e se o uso
das tecnologias pode contribuir para a educação das crianças
pequenas, sem descaracterizar as bases e princípios da Educação
Infantil. Como, então, as UMEIs gonçalenses estão se fazendo
presentes nesse cenário pandêmico, sem desejar institucionalizar o
199
espaço privado das famílias ou reafirmar arranjos emergenciais
que ferem princípios democráticos de nossa sociedade diversa,
plural e imoralmente desigual?
Nesse caminho, reafirmamos a pertinência de retomar a
pergunta feita por Santos (2020): “Que potenciais conhecimentos
decorrem da pandemia do coronavírus?” Atentando,
principalmente, para as possibilidades de construção de outras
perspectivas e pedagogias favoráveis à educação e ao cuidado das
crianças pequenas das favelas e periferias gonçalenses. Enfatizo a
importância de aprofundar os conhecimentos da pluralidade das
infâncias e as especificidades da Educação Infantil, levando em
consideração diferentes questões pedagógicas, sociais, culturais,
históricas e econômicas que circunscrevem o campo do direito à
educação das crianças pequenas e de suas famílias.
Para tanto, procurei elaborar questões, experiências e reflexões
que, no nosso entendimento, podem contribuir para o
levantamento de questões e para a construção de “potenciais
conhecimentos”, a partir das provocações que a COVID-19 está
imprimindo às UMEIs, às famílias e às crianças, de uma maneira
ainda muito complexa e de difícil apreensão, em especial pela
conjuntura do isolamento social que, na condição de professorxs e
pesquisadorxs, estamos todxs a vivenciar.
Neste esforço de elaboração de uma síntese, mesmo que
inconclusiva, ressalto uma questão que, longe de ser uma
obviedade, configura-se como um desafio fundamental, em
especial no Brasil, com a pandemia da COVID-19: torna-se
importante (re)pensar e (re)discutir o papel político e social da
educação da pequena infância, dos espaços coletivos de educação
e cuidado de crianças pequenas. Para tanto, é primordial
compreender as crianças e famílias das classes populares como
autoras de soluções potentes e legítimas em seus territórios de vida,
isto é, investigar os seus modos de uso (SANTOS, 1996) no
território concreto de suas existências.
O diálogo aberto e as interações práticas, construídas e
fundamentadas em pedagogias possíveis, inspiram e complexificam
200
os movimentos singulares que as UMEIs de São Gonçalo vêm
trilhando para se vincular às crianças e suas famílias. Trata-se de
apontar para a potência do estabelecimento de vínculos, a
construção de encontros, a partilha de reflexões diante de tantos
desafios, e de pensar a vida como possibilidade do ainda por vir,
como nos provoca o cenário pandêmico.
Com efeito, problematizar os impactos da pandemia na vida
de crianças pequenas e famílias das classes populares nas favelas e
periferias urbanas gonçalenses nos remete ao desafio de continuar
a investigar que potenciais conhecimentos decorrentes da
pandemia podem mobilizar reflexões e práticas favoráveis ao
cuidado e maior proteção das referidas crianças e suas famílias,
além do acolhimento amoroso dos/das profissionais das UMEIs.
Nesse sentido, enquanto professora e pesquisadora
compromissada com a pequena infância e o direito à cidade
(TAVARES, 2003), insisto em apostar em ações de diálogo e de
parceria com esses sujeitos, crianças e suas famílias, em seus
territórios de vida, potencializando oportunidades de
materialização de processos formativos indissociáveis a um projeto
de cidade menos desigual, menos fragmentada, menos violenta e
racista. Que possa acolher a multiplicidade de vidas
territorialmente diferentes, com igualdade e justiça social.
Compreendo ser cada vez mais urgente e inadiável, tanto
política, quanto epistemicamente, conhecer e dialogar com processos
educativos produzidos pelas forças vivas nos territórios,
interrogando-as, aprendendo com elas na perspectiva do
enfrentamento das desigualdades sociais e da necropolítica
(MBEMBE, 2016), que dizima crianças e jovens pobres e negros que
(sobre) vivem nas favelas e áreas de favela de São Gonçalo. Nesses
tempos tão sombrios, entendo ser urgente produzir estudos a respeito
do campo das infâncias, da Educação Infantil e do direito à cidade
(LEFEBVRE, 1991) em sentido ampliado, fortalecendo pedagogias da
liberdade (FREIRE, 2001), afirmando a vida em tempos de pandemia
e a democracia como um valor indispensável ao bem comum.
201
Referências
202
LISBOA, Adrielle S. A quem é dado o direito de respirar neste país?
Por um mundo em que todos possam respirar. In: TAVARES,
Maria Tereza G.; CARVALHO, Rosa Malena A. Lições da
Pandemia: Movimentos Sociais e a luta por Direitos no Brasil. Rio
de Janeiro: NAU Editora, 2021.
LEFEBVRE. Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Editora
Documentos. 1991.
MACEDO, Nayara A; PESSANHA, Fabiana N.; TAVARES, Maria
Tereza G. Impactos da Pandemia de Covid-19 na Educação Infantil
de São Gonçalo/RJ. Dossiê Especial: Educação Infantil em tempos
de Pandemia. Revista Zero- a– Seis. Florianópolis, V.23; N.23, N.
especial. P.77-100, Jan/2021. Universidade Federal de Santa
Catarina.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2016.
MARTINS, José de Souza. A Sociedade vista do abismo.
Petrópolis: Vozes, 2002.
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pobreza deve subir 15%no mundo até o fim do ano. 29 de maio
de 2020. Disponível em https://www.unicef.org/brasil/comunica
dos-de-imprensa/unicef-faz-apelo-para-atender-as crecentes -
necessidades-de-crianças-afetadas-pel -covid-19. Acesso em: 20
jun.2021.
PAINEL COVID. Governo do Rio de Janeiro. Painel corona vírus-
covid19. 2020. Disponível em htpps://painel. saude.rj.gov.br/
monitoramento/covid19.html#. Acesso em: 28 mar. 2021.
PÚBLICA, I. D. S. INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA,
2021. Disponivel em: <http://www.ispdados.rj.gov.br/>. Acesso
em: 20 maio 2021.
SANTOS, Boaventura Souza. A Cruel Pedagogia do Vírus.
Portugal: Edições Almedina, 2020.
SANTOS, Milton. A Natureza do espaço: Técnica e tempo, razão e
emoção. São Paulo: Hucitec, 1994.
203
TAVARES, Maria Tereza G. Os pequenos e a cidade: o papel da
escola na construção de uma alfabetização cidadã. Tese de
doutorado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), 2003.
TAVARES, Maria Tereza G. Pensando a formação de professores
das infâncias a contrapelo: desafios contemporâneos da formação
de docentes em periferias urbanas. In: MARTINS, Denise A.A.;
CARRIJO, Menissa Cícera B.; ROLIM, Carmen Lucia A. (Orgs.).
Singularidades e resistências na Formação de Professores: novos
e velhos enfrentamentos. Jundiaí: Paco Editorial, 2019.
204
Terceira parte
205
206
Por rastros do entre: histórias, memórias e o
Ainda-Não no território das infâncias
207
encontros/acontecimentos nesse trajeto (com obras, colegas,
parceiras (os), etc.): aquilo que posso ter/ser apenas numa relação e
não em “essência”, tal como recupero aqui algumas passagens de
nossa conversa, na referida ocasião.
Aponto, então, a ideia deleuzo-guattariana para essa força de
agenciamento (aqui pessoal, profissional e afetiva), a partir das
diferenças nesse contexto de pesquisa/ envolvimento: um entre
escolhido por fragmentos do pensamento e pelas correntezas dessa
conversa (re)começada. Um entre, um meio, um intervalo também
com distintas abordagens na “grande área”3 que, mesmo
considerando-na plural, tende ainda a evocar perguntas e
possibilidades outras de compreensão. Concebo, com Néstor
Canclini, que “ [...] é preciso desconfiar dos saberes sobre a
totalidade [...]” (2016, p.51), num mundo cada vez mais estranho,
de decomposições democráticas como regra e que vai nos
impondo, assim, o reconhecimento de nossa insuficiência
explicativa, de certa estraneidade a respeito de nós mesmos (ainda
que situacional), dos nossos lugares, nossos focos de interesse e
estudo, tal como nos lembra também o antropólogo argentino.
Venho refletindo acerca das infâncias, portanto, desse lugar:
fronteiriço, tateante, experimental e vertiginoso.
Nessa direção, conhecer é atravessar abismos, assumir
provisórios e incertezas como meio e fim (inclusive conceituais), já
que os conceitos, parecidos às metáforas - por não condensarem o
sentido de um único e definitivo modo -, possuem “sedes de
debates” (CANCLINI, 2016, p. 68). Essa é a compreensão que
pretendo destacar no entre aqui, partilhado (como substrato) no
diálogo que segue, e minha tentativa cotidiana em torno de uma
estraneidade, num território pulsante e sempre em movimento. Na
mesma esteira sugerida por Canclini e seu projeto “interdisciplinar
errorista”, busco as zonas de intercâmbio; assumindo o incômodo
e o estranhamento como base de minhas reflexões; busco, então,
208
partir de um saber ensimesmado - pretensamente definitivo - para
um saber vacilante e polifônico.
Desse nosso encontro, trago, inicialmente, algumas memórias do
meu trajeto profissional que foram compartilhadas, assim como uma
breve discussão em torno de uma epistemologia não antropocentrada,
para refletirmos a respeito das infâncias e os processos educativos
nessa direção. Na sequência, apresento um projeto recém-concluído
(desenvolvido em parceria), com foco na literatura para a infância,
formação de professoras (es) da/para a Educação Infantil e o
fortalecimento do Estado democrático de direito (desde a participação
e a cidadania ativa das crianças). Por fim, saliento algumas
preocupações e rotas que têm me movido como professora e
pesquisadora da infância, rascunhando alguns futuros.
209
experiência incrível de formação. Enfim, fui para a Universidade
Federal de São João Del Rei, concursada numa disciplina específica
de Educação Infantil, mas, pelo vira e mexe da vida, volto para
Campinas um ano depois e minha entrada na Faculdade de
Educação foi através [do tema] da diferença. Era uma vaga para um
estágio no campo da tal educação especial (nem vou discutir isso
agora). Então, nessa disciplina que tinha esse enfoque da diferença
e tudo mais e o corpo do desejo vai chamando para as coisas que a
gente vai sentindo, vendo mais sentido e, então, dez anos depois
da entrada na Unicamp, quase onze, eu consegui juntar coisas que
me apaixonam muito e as principais são infância e diferença. As
coisas começam a ficar muito melhor agora, do meu ponto de vista,
porque eu consigo explicar mais como é que eu estou transitando
nesses espaços, mas eu me vejo também como uma estrangeira no
campo da infância, não me concebo como “especialista” e gosto de
ser “o fora”4, gosto de pensar que estou no “fora” de Deleuze e
Guattari que são também referências importantes nesse meu
trajeto, nos encontro que eu fui fazendo na vida, não só com as
pessoas que eu conheci pessoalmente, mas também com as
referências teóricas. No geral, então, meus grandes focos de estudo
vão se dando nessa articulação e nos desdobramentos entre
infância e diferenças. Mais recentemente, venho mergulhando na
pedagogia decolonial, [...] a partir da minha própria história de
vida também, alguém que sofreu processos de exclusão,
principalmente materiais, e muito envolvida com histórias que eu
acompanhei das crianças do Movimento dos Trabalhadores Sem-
Terra (crianças Sem Terrinha5), das quais eu fui professora por um
210
bom tempo, quando trabalhava num acampamento em zona rural
de Sumaré/ São Paulo. Então, são histórias assim que movimentam
o modo da gente escolher o que vai pesquisar, aquilo que faz mais
sentido nas nossas vidas… Fui também mãe nesse meio tempo e,
então, a infância veio de um jeito ímpar. Na academia, como um
“fora” e na vida como um “dentro”... Mais recentemente, venho
colocando a materialidade como um foco de interesse… A
materialidade na infância e alguns(mas) autores(as) têm me
ajudado muito a entender como conceber essa dimensão do pós-
humano para pensar as infâncias - e as diferenças também - como
é que isso nos ajuda a entender o mundo de uma maneira também
decolonial, porque essa condição (decolonial) também está em nós
pesquisadores(as) [...] como nós somos colonizados(as) e
precisamos dessa consciência e é um processo de desconstrução
subjetiva. É fundamental entender qual a nossa posição, como
pesquisadores, pesquisadoras, então, Tim Ingold tem me ajudado
bastante, Peter Moss, Rosi Braidotti e também, por exemplo, a
Gabriela me envolveu numa pesquisa sobre bebês6 [...] Esse é um
outro motivo de a gente “trocar figurinhas” e pensar em projetos
coletivamente [...] também na Linha 8, Linguagem, Arte e Educação
[...], então os meus projetos de pesquisa atuais vão trazer uma
busca, uma maior investida sobre as diferenças, no que diz respeito
aos direitos das crianças, de acesso às informações sobre essas
diferenças, os temas chamados fraturantes, temas sensíveis,
heréticos... Enfim, isso aparece de várias maneiras na literatura
para a infância e eu tenho investigado como é que esses temas,
considerados tabu, vão sendo tratados, em momentos
principalmente ultra conservadores, como a gente vem vivendo no
Brasil, mas não só [...] Como é que as crianças têm sido apartadas
do direito à participação ativa, pensando naqueles três “Ps”
(proteção, provisão e participação) que vão sustentar a Convenção
211
sobre os Direitos das Crianças que, aliás, recentemente, completou
trinta anos. Temos a Doutrina da Proteção Integral muito mal
resolvida, portanto, do ponto de vista também da nossa formação,
ainda na Pedagogia, nos cursos de formação de professores e na
Pós-Graduação.... Então, estou tentando colocar isso nos meus
objetivos mais centrais de pesquisa. Então, também convidei a
profa. Gabriela Tebet e ela topou [...] É ótimo! Recentemente,
coordenamos juntas um projeto no PIBID, [com tema dos] direitos
humanos e não humanos e a participação política das crianças, com
intervenções literárias e pedagógicas decoloniais e um outro que eu
vou levando em paralelo que é “literatura infantil e direitos
humanos: cartografia sobre diferenças nos catálogos editoriais”,
dando alguns exemplos [...] Nas questões da literatura, mais
especificamente, com a materialidade sendo o foco de interesse, o
Alexandro7 tinha falado das crianças refugiadas, então...Um dos
temas sensíveis é essa exclusão dos refugiados. Estou pesquisando
livros nas editoras; esse aqui é sobre as crianças refugiadas, por
exemplo8, mas é muito difícil encontrar esses tais temas fraturantes
nos catálogos editoriais do mundo inteiro, praticamente, mas no
Brasil é quase nada...Então, a gente pode pensar nas questões
interseccionais - em classe/ “raça”- etnia, gênero/ sexualidade, (isso
sem falar aqui em geração9, especificamente) e são os temas que
menos aparecem como direito à informação para as crianças.
Pra “resumir a ópera”, esse projeto com a Gabi10 [...] queria
rapidamente mostrar para vocês...Terminou no ano passado e nós
ficamos dois anos com a turma da Pedagogia dos anos iniciais, para
uma intervenção mais específica no CEMEI Agostinho Páttaro, e foi
em que sou evocada para tecer algum comentário, como destaco a seguir.
10 Refiro-me novamente à Profa. Gabriela Tebet, parceira em alguns projetos aqui
mencionados.
212
um trabalho muito interessante! Eu acho que ele pode materializar
um pouco do que tenho investido nos últimos anos, tem um link
que eu vou mandar para vocês do vídeo que é curtinho11 [...]
A gente não tinha dinheiro para comprar livros, no PIBID não
tem essa rubrica específica para compra de livros, então, a gente
inventou de fazer livros, as meninas iam inventando essas
histórias, ou escolhendo, como no caso da Rosa Caramelo que é
uma história já feita, uma história publicada em espanhol12, e a
gente adaptou [...] Não sei se vocês conhecem, mas - eu também
recomendo bastante - é sobre questão de gênero e a gente consegue
entrar na escola e falar de gênero sem ser expulsa (risos). Então, tem
todo esse impacto, da sociedade ultraconservadora, diante dos
adeptos do Escola sem partido, com a gente discutindo nas rodas
de formação e entrar em um território de formação para falar de
direitos humanos e falar dos direitos da infância, os direitos
políticos, de cidadania da infância… Enfim, é algo bastante
delicado. Trouxe aqui uma citação do Manoel Sarmento, de
Portugal: “É sobretudo porque os direitos sociais das crianças são
tão decisivos, que, nas circunstâncias atuais da crise do capitalismo
financeiro, a invocação da criança cidadã se constitui menos como
um tópico de reflexão académica sobre as perplexidades
conceituais geradas, mas um programa de resistência e de
afirmação propositiva13”, e é evidente que a gente sabe o quanto
ainda a infância é um território disputado pelos grupos mais
distintos e é em torno de um projeto de sociedade que vai se dar e
a gente está nesse campo, disputando, através também da
literatura, das mídias (não fico só com a mídia impressa, a mídia de
11 Parte final do vídeo PIBID de Pedagogia (composto por mais outros 3 sub-
projetos coordenados por outras pesquisadoras): https://drive.google.com/file/d/
1UEb3Wfp1xd9wGkZfloWcKW9gyVcYhKpY/view . Acesso em 30 jun. 2021.
12 Obra das italianas Adela Turin e Nella Bosnia (ilustrações), da editora Lumen,
213
modo geral me interessa), na formação e na garantia dos direitos
da crianças [...] Acho que no geral é isso... Minhas orientações todas
- em nível de iniciação científica, mestrado e doutorado - vão passar
pelas questões interseccionais, a maior parte vai trazer dimensões
da infância e da materialidade da infância, mas sempre com esse
recorte das diferenças, de classe, raça/etnia, gênero/sexualidade.
214
agora desse projeto com a Gabi, que ela comentou do bebê surdo
[...] que vai falar um pouco desse pós-humano e desse esforço nosso
teórico metodológico, em que a cartografia entra, e ali eu tento
conceituar15 [...] E o outro é um mapa conceitual que o Sarmento
fala, explica um pouco essa questão da geração e como é que essa
discussão que a Ana faz também, do meu ponto de vista, poderia
ser incorporada. Eu acho que não são coisas excludentes. Da forma
como eu vejo, evidentemente, a gente pode discutir em outros
momentos; é só a forma como agora eu venho lidando com isso. Eu
queria só destacar que nessa dimensão do pós-humano, trans-
humano, tecno-humano, vai aparecer de várias maneiras como
coisas afeitas à relação que se estabelece. Ele não vai dizer de coisas
materiais só. Ele vai falar que nós somos coisas no mundo, coisas
materiais, coisas imateriais. Então, o humano se coloca aí. Quando
a Gabi fala do não antropocentrismo, isso é fundamental também
para a decolonialidade. É um pensamento dos povos originários.
Então, nesse artigo eu tento mostrar como esse pensamento
europeu sobre o pós-humano é muito próximo, em alguma
medida, evidentemente - eu não estou colocando como semelhante
- ao pensamento decolonial latino-americano. Pensamento
indígena, africano, afro-brasileiro também, enfim, esse pensamento
originário. A cosmogonia originária. É basicamente isso.
215
Ana: Ela fala que nós somos natureza, não é O homem e A
natureza...
Heloísa: Muda tudo, sim.
Ana: Para as populações originárias, somos natureza. Só que
nós, não né? [...]
Heloísa: Não, foi ótimo você ter lembrado, porque a Alik é
fundamental nessa nossa pujança, [...] para o pensamento trans-
humano, e como é que isso impacta o modo da gente ver as crianças
e os emaranhados das crianças com as coisas imateriais e materiais.
Então, um jeito de pensar educação, eu termino esse artigo falando
um pouco disso, de quanto a gente tem que estudar nessa direção,
mas assim - já anunciando, e muito influenciada pelo Peter Moss,
que vai olhar a proposta de Reggio Emília, discutindo essa dimensão
do pós-humano com a Braidotti, não só, por exemplo - como é que
isso impacta no modo da gente conceber a criança como um
corpo/mente vazado, um corpo para além dele mesmo, um corpo
estendido nas coisas. Daí que as coisas materiais, elas fazem muita
diferença para a gente pensar a educação, porque a gente pensa a
centralidade antropocêntrica. A gente está subjetivada a colocar a
criança no centro só [...], mesmo quando se pensa progressista, se
pensa decolonial. A questão é que esses autores vão trazendo esse
refresco teórico, mostrando que tudo interessa nas relações [no entre].
As crianças são coagentes. Elas são impactadas pelas coisas. Elas não
fariam o que fariam, o que fazem, se outras coisas estivessem em
outros lugares, de outra maneira. Então é um outro modo de pensar
no que está acontecendo com as crianças. Eu me apaixonei pela ideia
aparentemente “nova”, de certa forma, quando a gente olha, vai ver
que não é bem assim, como eu estou dizendo, isso já vinha do
pensamento ancestral, mas é um encontro belíssimo. A gente que
vinha desde a modernidade, pelo menos, apartada, do ponto de vista
corpo-mente, com a ciência moderna, como é que isso ficou
impregnado em nós, e a gente acreditou, a gente apartou a criança
do meio, a gente apartou o humano do meio [...]
216
Um projeto no caminho: direitos humanos/ não humanos e
participação política das crianças através da literatura17
217
as crianças, as estudantes de Pedagogia e as professoras parceiras
outros começos com as pedagogias decoloniais, na direção dos
Direitos Humanos não universais/ não antropocêntricos e, nesse
trajeto, produzimos livros diversos.
Rodas de contação de histórias eram formadas e as crianças
convidadas a protagonizar os debates, expressando seus
posicionamentos políticos de diversas formas, como através de
desenhos, verbal ou gestualmente (no caso de crianças surdas também
participantes) e através de outros registros/ expressões que lançavam.
218
Imagens do projeto: experiências gráficas das crianças
em-direitos-humanos-atraves-da-relacao-corpo-e-lingua-perspectivas-
decoloniais__688443. Acesso em: 29 jun.2021.
219
Roda de conversa com estudantes da UFSCar, em 01 novembro de 2019.
220
no país enfrenta muitos obstáculos, a partir do fortalecimento do
neoconservadorismo. Como se tem observado, cada vez com mais
frequência, em escala também mundial, além dos ataques (de toda
ordem) às referidas minorias, muitas informações que possibilitam
e fortalecem o Estado de Direito (UNESCO/UNODOC,2019;
UNICEF, 2018) têm sido fragilizadas ou combatidas,
destacadamente, nos processos de educação da infância e suas
políticas públicas.
A seguir, alguns exemplos das obras criadas ou reproduzidas
pelas estagiárias e estagiários (em alguns casos, com a participação
das crianças):
221
Livro-história de Marielle Franco
222
Algumas armadilhas e o Ainda-Não no território-infância
223
distintas concepções), no lugar do que Boaventura S. Santos nomeia
de “razão indolente” (2002), que aqui busquei aproximar como as
“grandes certezas” cognitivas/ conceituais (“monocultura do
saber”, segundo SANTOS, 2002) que precisam ser desestabilizadas,
colocadas em perspectivas, tensionadas. Algo na direção do
incômodo (sobre o que acreditávamos saber), estranhamento
(como base do conhecimento), da incerteza e do pensamento-
experiência vacilante/ tateante/ desejante, como ponto de partida,
porque “esfumam-se as fronteiras que nos davam certezas”
(CANCLINI, 2016, p. 61), enquanto todas as mazelas se
intensificam diante de nós.
Faço, então, eco a algumas das perguntas de Canclini (e aqui
circunscritas ao nosso campo de pesquisa/ intervenção): como
transformar esse mal-estar em novas utopias? Como não incorrer na
sacralização de saberes compartimentados? Como mudar as perguntas,
mais do que juntar saberes (muitos dos quais já não nos servem)?
São urgentes, nessa chave interpretativa, novas zonas de
intercâmbio, que rompam com a lógica moderna da divisão das
ciências - armadilha poderosa da colonialidade/ da dominação
(principalmente política) – e que podem se avizinhar. Nessa
tentativa de construção do que seria essa “interdisciplinar
errorista” no território-infância, sem pretensão de encerrar, lembro
das importantes contribuições de Grada Kilomba a respeito da
tarefa de criarmos configurações de saber e poder21 - ao buscarmos
pela descolonização do pensamento/ conhecimento - e de Pepe
Mujica22 a respeito de como o capitalismo domesticou as nossas
capacidades inventivas/ imaginativas e práticas, ditas “científicas”.
224
Mas isso (esse imenso desafio que é nossa principal rota de fuga;
nosso Ainda-Não) vai ficando para uma outra conversa...
Referências
225
ning_the_rule_of_law_through_education_a_guide_for/ Acesso
em: 28 jun. 2021.
UNICEF (1989). Convenção dos Direitos das Crianças. Consultado
em 12.08.2018. Disponível em:https://www.unicef.org/brazil/
convencao-sobre-os-direitos-da-crianca.Acesso em: 28 jun. 2021.
UNICEF (2018). Communication for Development (C4D): Global
Progress and Country Level Highlights Across Programme Areas.
Consultado em 11.10.2019. Disponível em: https://www.unicef.
org/publications/index_102938.html Acesso em: 28 jun. 2021.
226
Infâncias migrantes, territorialidades e
interseccionalidades
227
território no sentido da desterritorialização e reterritorialização
apresentado pelo geógrafo Rogério Haesbaert (2014, 2020).
Assim, algumas das indagações que guiaram a discussão
foram: por que as pessoas migram? O que leva indivíduos e/ou
grupos a atravessar continentes, rios e mares em busca de novos
territórios? Quem são as crianças migrantes em nosso país? Quais
as origens das crianças que migraram e experienciaram processos
de desterritorialização, ato de “abandonar o território” no lugar de
origem, e de reterritorialização, aqui entendida como “recriação do
território” no lugar de destino? Em que medida esses movimentos
impactam a vida das crianças? Tais questões, antes disso,
motivaram-me a buscar a compreensão dos fluxos migratórios de
vários países no território brasileiro, de um modo geral, e a
imigração pomerana no território de Santa Maria de Jetibá (ES), em
particular, com foco nas crianças pomeranas.
Os fluxos migratórios são determinados por fatores estruturais
conjunturais, de ordens econômica, política, cultural, ambiental,
subjetiva, os quais ocorrem em diferentes tempos e espaços
(LANG, 1992). Fundamentada no aporte teórico dos estudos de
Sayad (1998) e de Haesbaert (2014, 2020), concebo a imigração sob
a ótica do território, como um movimento de desterritorialização e
reterritorialização. A partir disso, falar de migrações implica
discorrer também acerca das configurações territoriais, visto que o
ato de migrar é exatamente deslocar-se de um território a outro.
Mas, o que é território? A palavra, segundo explica Haesbaert
(2009, p. 43), deriva do latim territorium, que, por sua vez, tem
origem na palavra terra, assumindo o significado de “pedaço de
terra apropriado, dentro dos limites de uma determinada
jurisdição político-administrativa”. Todavia, ao dialogarmos com
esse autor, trabalhamos com um conceito de território que
ultrapassa essa visão tradicional. Na concepção do pensador, o
território envolve características físicas, estáticas de uma área,
porém, mais que isso, é compreendido como espaço político,
dinâmico e de vida, de saberes e práticas ancestrais, de trocas
geracionais, de afetos, de amizades (HAESBAERT, 2009). Em uma
228
“perspectiva integradora”, Haesbaert (2020, 2014) agrupa as
várias concepções de território em quatro vertentes básicas:
política, econômica, cultural e natural. Essas vertentes estão
presentes nos movimentos migratórios nos quais, como sabemos,
milhares de crianças estão envolvidas no mundo neste momento.
Um ponto a se destacar é que não podemos perder de vista a
indissociabilidade entre os movimentos de desterritorialização
dos lugares de origem e de reterritorialização nos lugares de
destino. A territorialidade é compreendida como o esforço
coletivo de um grupo social para ocupar, controlar e usar um
ambiente físico, identificando-se com o território (HAESBAERT,
2014). Na interpretação das ideias deste autor oferecida por
Monardo (2002, p. 41), a territorialidade é essa “capacidade/
qualidade de criação de relações simbólico-afetiva e político-
disciplinar-econômica em uma parcela circunscrita do espaço”.
Por esse prisma, as crianças territorializadas são aquelas que
participam do território em todas as suas dimensões – econômica,
política, cultural, ambiental.
Deixar de participar ou partilhar do território em algum de seus
aspectos, segundo Haesbaert (2020), não desemboca na
desterritorialização de forma definitiva, mas propicia a
reterritorialização. Em suas territorialidades, como os adultos, as
crianças migrantes constroem e ressignificam o território no qual
vivem por meio das suas características individuais ou das de seu
grupo étnico, manifestadas pela língua e por outros aspectos da
cultura – por exemplo, festas, danças, culinária, religião, monumentos,
produtos e técnicas agrícolas, dentre outros elementos.
Isso posto, como argumenta Haesbaert (2020, p. 146), o
“imigrante é uma categoria muito complexa e, no seu extremo,
podemos dizer que há tantos tipos de migrantes quanto de
indivíduos ou grupos sociais envolvidos nos processos
migratórios”. É por essa razão, prossegue o autor, que “falar
genericamente em migração pode mesmo tornar-se temerário –
somos sempre obrigados a qualificá-la” (p. 146).
229
Há, nesses movimentos, uma pluralidade de crianças
migrantes envolvidas, as quais vivenciam suas infâncias de formas
as mais distintas. Em função disso, é importante identificar quem
são as crianças envolvidas nas migrações. Assim, a seguir,
apresento uma breve síntese do panorama dos movimentos
migratórios em território brasileiro, buscando dar visibilidade à
pluralidade de crianças migrantes, para, em seguida, apresentar as
crianças pomeranas, foco deste estudo.
230
havia uma ‘escolha’ da parte dos emigrantes e, segundo, as regiões
africanas de onde se originaram os escravos não se caracterizavam
por problemas de excesso de população” (LEVY, 1974, p. 50).
Compradas ou capturadas na África, as pessoas negras
escravizadas foram tratadas como simples mercadoria, como
objetos, peças destinadas a alimentar, com o trabalho forçado e
realizado sob condições absolutamente indignas, os três
continentes: Europa, África e Américas. No tráfico transatlântico,
em razão das condições sub-humanas nas viagens realizadas nos
navios negreiros, as crianças – embora em pouca quantidade, pois
a prioridade era trazer pessoas adultas e do sexo masculino –
raramente sobreviviam à longa travessia marítima. Se e quando
aqui chegavam, poucas eram aquelas que conseguiam chegar à
idade adulta. Essa baixa expectativa de vida também afetava as
crianças negras nascidas já aqui em nosso país (GOES;
FLORENTINO, 2007). Ainda segundo os mesmos autores, as que
sobreviviam eram forçadas a se desvincular dos pais e mães, sendo
introduzidas desde a mais tenra idade no ofício de ser escravo, o
que evidencia como “o trabalho era o campo privilegiado da
pedagogia senhorial” (p. 184).
Mais tarde, antes mesmo da Independência, entre o período
de 1808 a 1859, chega ao país um número elevado de imigrantes, os
quais se dirigem às regiões Sul e Sudeste. Baseando-se na tradição
da pequena propriedade rural e da agricultura familiar, formaram
os primeiros núcleos coloniais. As famílias que fundaram esses
núcleos, em maior ou menor quantidade, vieram com seus filhos e
filhas, muitos dos/das quais ainda recém-nascidos/as. Esse fluxo
migratório foi formado por suíços, italianos e outros grupos
oriundos de várias províncias da então Confederação Alemã –
Reno, Hunsrück, Hesse, Bavaros, Treves, Prússia, Pomerânia –,
bem como outros povos germânicos, como os tiroleses, austríacos,
luxemburgueses, holandeses, badeneses (DIEGUES JÚNIOR,
1994). Esse fluxo de imigração foi intensificado, também, pelo
grande contingente de pessoas que chegavam principalmente para
as cidades, atraídas pelo desenvolvimento urbano e pelo
231
crescimento industrial que o Brasil experimentava sobretudo no
período entre os dois grandes conflitos mundiais (DIEGUES
JÚNIOR, 1994). Neste caso, destacam-se os japoneses, libaneses,
poloneses, espanhóis, chineses e coreanos.
Para mostrar a presença das crianças nesses movimentos de
imigração internacional, Demartini (2006) destaca dados relativos à
chegada de imigrantes ao Porto de Santos (SP) nas primeiras décadas
do século XX, apontando a presença das crianças em três faixas etárias:
até sete anos; entre sete e 12 anos e maiores de 12 anos.
232
das embarcações, tal como ocorria às crianças negras, poucas foram
as crianças europeias que sobreviveram, em função de inúmeros
casos de doenças bem como da fome. Em geral, elas eram as
primeiras vítimas. Com base em cópias de registros do Núcleo de
Estudos Teuto-Brasileiro do Programa de Pós-graduação da
Unisinos, a autora relata que os recém-nascidos a bordo dos navios
tinham seus corpos jogados ao mar.
A política imigratória esteve carregada de sentidos
ideológicos, marcados pela cultura capitalista, na qual o imigrante
era visto como mão de obra barata, permanecendo no país em meio
à precarização das condições de trabalho (SAYAD, 1998). A
imigração foi seletiva e excludente: na medida em que buscava uma
ocupação territorial que forjasse uma identidade nacional nos
moldes europeus, não acolheu a população imigrante não branca
da mesma forma que o fez com a população europeia. A tradição,
como ficou revelado, era receber imigrantes europeus, visando à
política de branqueamento.
Todavia, em menor proporção, no início do século XXI, o Brasil
volta a ser um país de atração de novos imigrantes, os quais aqui
chegam com seus/suas filhos/as, oriundos de diferentes partes do
mundo, em especial da América Latina. Desses imigrantes, “cerca
de 40% deles de países da América do Sul – Argentina, Chile,
Bolívia, Paraguai, Peru e Uruguai; mais de 20% da Europa; 12,5%
da Ásia e 9,1% da América do Norte” (PATARRA apud
NASCIMENTO; MORAIS, 2020, p. 443). Além disso, ocorre uma
“imigração forçada” (BEZERRA, 2006) de refugiados de diversas
nacionalidades, os quais chegam com suas crianças, fugindo de
conflitos armados. Entre estes imigrantes estão os sírios, haitianos,
angolanos, colombianos, congoleses, palestinos, venezuelanos,
cubanos, chineses e bengaleses (BEZERRA, 2006; ASSUMPÇÃO;
AGUIAR, 2019).
Não obstante esse deslocamento de crianças de outros países
para o Brasil, a imigração não se dá exclusivamente em âmbito
internacional, pois, internamente, há, também, uma verdadeira
“andança nacional”. Os primeiros brasileiros a vivenciarem os
233
deslocamentos internos foram os índios, que, retirados de suas
terras, foram levados à força para outros espaços, principalmente
para trabalhar na agricultura. Aqueles que fugiam para o interior
eram escravizados para plantar em terras que pouco antes eram
suas. Posteriormente e ainda hoje foram ocorrendo no país outros
deslocamentos de crianças, as quais, acompanhadas por suas
famílias, deslocam-se dos “campos para as cidades, das cidades
para os campos, dos campos para os campos, das fronteiras para
o centro, do centro para as fronteiras, do Nordeste para o Sudeste,
do Sul para o Centro-Oeste e para o Norte, do Centro-Oeste e do
Norte para o Sul” (BANETTI; VAINER, 1988, p. 8).
Esses movimentos remetem-nos àquele que Saramago (2006)
descreve em “As pequenas memórias”, em que narra uma
passagem de sua vida como migrante. Com menos de dois anos
de idade, acompanhado de seus pais migrantes e empurrados
pela necessidade, ele teve que sair de Azinbaga, recanto de seus
avós maternos, para Lisboa. Desse lugar de destino, com outros
modos de sentir, de sonhar, de viver, chegara o dia em que ainda
teria de voltar ao seu lugar de origem, em suas palavras, para
acabar de nascer.
Frente a esses movimentos, corroboro a defesa de Maher
(2007) de que não mais é possível tentar compreender nossas
escolas sem considerar as diferenças que existem em seu interior.
Para as crianças que participam desses fluxos migratórios, a língua
portuguesa, constitucionalmente oficializada no Brasil, é a segunda
língua dessas crianças, dentre as quais estão, por exemplo, crianças
indígenas de diferentes etnias, falantes de 274 línguas (IBGE, 2010).
Estão, ainda, crianças das comunidades surdas, que falam as
línguas de sinais; crianças de comunidades de imigrantes e de
grupos culturalmente diferenciados (alemães, pomeranos,
italianos, japoneses, dentre outros), os quais mantêm viva a língua
de seus ancestrais. Há, também, as crianças com a língua dos “[...]
terreiros de candomblés, que reúnem brasileiros descendentes e
não descendentes de africanos” (CAVALCANTI, 1999, p. 388); há
crianças das comunidades de brasileiras/os não descendentes de
234
imigrantes que vivem em regiões de fronteira – por exemplo, na
divisa entre Brasil, Argentina e Paraguai, pelo menos três línguas
(português, guarani e castelhano) estão em constante contato.
Também devemos lembrar das crianças que se comunicam por
meio da multiplicidade de variações linguísticas do português-
padrão (QUADROS, 2017). Há, ainda, as crianças falantes das
línguas de tantos outros povos, refugiados ou não, que,
cotidianamente, chegam ao Brasil.
Essa configuração define o Brasil como um país
multicultural, formado por sujeitos e grupos com “línguas de
origem diferente e possuem cada um patrimônio histórico-social
específico”, como descreve Silva (2020, p. 131), para quem a
multiculturalidade “é um fenômeno conatural à história da
humanidade: cada sociedade foi sempre multicultural, pois é
composta por sujeitos e grupos que se diferenciam por crença
religiosa, modos de vida, classe social etc.” (p. 132).
Frente a essa composição étnica, cultural e linguística da
sociedade brasileira, ao serem desterritorializados de seus locais de
origem, contraditoriamente, esses sujeitos, incluindo aí as crianças,
em suas territorialidades, são cotidianamente pressionados a abrir
mão de suas línguas e outras especificidades que os diferenciam e
a se apresentar como sujeitos pretensamente homogêneos. Nessa
dinâmica, as crianças que escapam ao padrão homogêneo são
subalternizadas e inferiorizadas.
Isso posto, agregamos à análise aqui realizada a abordagem
teórico- metodológica da interseccionalidade. Definida por
Kimberlé Crenshaw (2002), tal abordagem busca formas de
capturar as consequências de interação entre duas ou mais formas
de subordinação, por exemplo, pobreza, sexismo, racismo,
patriarcalismo. Mediante a discussão a que este texto se dedica, a
essas formas de subordinação acrescentamos, ainda, etnia, língua
materna e origem territorial. Falando especificamente das crianças
pomeranas, estas estão posicionadas em um território no qual
ocorre uma intersecção de elementos excludentes, no que se
destacam a xenofobia, por vinculação étnica, pelo uso de sua língua
235
materna, pela origem territorial. Ao se cruzarem ou se
interseccionarem, tais aspectos colocam essas crianças em condição
de desigualdade.
Nesse cenário, tal como Maher (2007, p.68), avalio que “sem, de
fato, entender o diferente em sua complexidade, não conseguiremos
criar provimentos para acomodá-lo, acolhê-lo, de forma respeitosa,
na escola. Não conseguiremos ir além do mero reconhecimento de
sua existência, da mera ‘tolerância’ para com ele”. O desafio que se
apresenta, nas palavras de Silva (2020, p. 34), é
236
criado o Império Alemão (TRESSMANN, 2005). Empobrecidas e
desprovidas de suas terras, antes mesmo da unificação da
Alemanha, a maioria das famílias pomeranas oriundas de
Hinterpommern (Pomerânia Oriental) migrou para o Brasil.
Uma nova configuração se deu no território pomerano com a
derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Os territórios
em que se subdividia a Pomerânia, Hinterpommern e Vorpommern
(Pomerânia Ocidental), foram distribuídos, respectivamente, para
a Polônia e a Alemanha. No fim do conflito, a população pomerana
foi expulsa pelo Exército Vermelho e teve de deixar sua terra natal
às pressas. A maior parte fixou residência na Alemanha, enquanto
outros emigraram para os Estados Unidos e Austrália. Assim, a
partir de 1945, a Pomerânia não mais existiu como unidade
geográfica (TRESSMANN,2005).
Ao Brasil, os pomeranos chegaram antes disso, em meados do
século XIX. Um dos territórios que ocuparam atualmente constitui
o município de Santa Maria de Jetibá, destino no qual se fizeram
colonos. Aqui, buscavam reproduzir a língua e outros aspectos do
modo de vida que tinham na Pomerânia. Por meio do Decreto
6.040/2007, os pomeranos são reconhecidos como povo tradicional.
Em seu artigo 33, inciso I, o dispositivo legal assim define povos e
comunidades tradicionais:
237
transição entre o Cerrado e a Caatinga, pantaneiras, caiçaras,
seringueiras, castanheiras, integrantes de povos atingidos por
barragens, dentre tantas outras.
As características da colonização pomerana são expressas na sua
territorialização: no uso da língua materna, na organização das
pequenas propriedades familiares, na religião e nas crenças religiosas,
na alimentação, na arquitetura, na música e em tantos outros traços
mantidos ainda hoje e que caracterizam esse grupo étnico.
Com o passar do tempo, novas relações, novos vínculos foram
sendo cultivados, no que se desvela um movimento no qual sempre
há mudanças, rupturas. No entanto, ainda hoje, há ligações entre
os descendentes daquelas famílias que migraram e seus ancestrais,
de modo que o povo tradicional pomerano não se desvinculou dos
modos de viver e estar no mundo dos pomeranos que
permaneceram no território de origem. Isso fez com que Santa
Maria de Jetibá se tornasse um território específico, com
identidades, particularidades, especificidades em relação às dos
demais povos que habitam aquele território.
As crianças pomeranas, principalmente as do campo, chegam
às creches e pré-escolas monolíngues, com uso de sua língua
materna e trazendo todo um modo de vida associado aos primeiros
imigrantes, que, no movimento de se desterritorializar do seu lugar
de origem, buscaram incansavelmente a territorialização nos
lugares onde passaram a residir.
Em seus territórios tradicionalmente pomeranos, a partir de
informações advindas de contextos multiculturais, essas crianças
produzem, reproduzem e ressignificam uma pluralidade de
culturas infantis. Nesse processo, interseccionam-se aspectos como
língua materna, cultura, origem étnica, territórios, faixa etária,
classe social, gênero, sexo, raça, religião. Elas nascem, ocupam,
usam, participam de seus territórios com suas “cem” formas de
falar, de se comunicar, como lembra o pedagogo Loris Malaguzzi,
na poesia “As cem linguagens”. (2005).
As crianças pomeranas revelam seus diferentes jeitos e
maneiras de viver suas infâncias, vinculadas à sua ancestralidade,
238
que se faz presente nas diferentes formas de brincar e trabalhar com
a terra, de organizar a produção da agricultura, de usar os seus
artefatos e de falar em sua língua materna, a língua pomerana, de
usar, reproduzir e ressignificar os rituais das festas comunais, as
narrativas da tradição oral camponesa. Nisso, revelam, portanto,
suas diferenças em relação a crianças de outras localidades.
A Educação Infantil, reconhecida pela Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) como primeira etapa da
Educação Básica, tem grande impacto na vida dessas crianças, na
medida em que, orientada pela Constituição Federal de 1988,
reafirma o caráter pluricultural e plurilíngue do Brasil. O texto
constitucional assegura o direito das comunidades indígenas e
afro-brasileiras a uma educação intercultural, bilíngue, específica e
diferenciada, mas o faz somente no Ensino Fundamental (BRASIL,
1988). Desse modo, deixa à margem as crianças da Educação
Infantil e das outras etapas da Educação Básica. Além disso, as
crianças pomeranas e as que integram os demais povos tradicionais
não são mencionadas nesses dispositivos legais.
Outro ponto a ser ressaltado é que a Constituição Federal em
vigor também reforça o português como língua culta, em detrimento
da variedade de línguas faladas no Brasil, como já anunciado.
Seguindo tais preceitos legais, as crianças e outros sujeitos das
demais etapas de ensino “têm aulas em uma língua que não é a
língua que usam em casa, em contraste com seus colegas, que usam
a mesma língua em casa e na escola” (QUADROS, 2017, p. 9). Em
decorrência disso, já no ano de 1998, por ocasião de uma pesquisa
que desenvolvi com crianças de 4 a 5 anos matriculadas em um
centro municipal de Educação Infantil localizado no centro de Santa
Maria de Jetibá (SILLER, 1999), famílias pomeranas anunciavam
uma proposta de educação bilíngue desde a Educação Infantil.
Seguindo essa perspectiva, em âmbito regional, a Secretaria
Municipal de Educação de Santa Maria de Jetibá, em parceria
interinstitucional com outras Secretarias dos municípios capixabas
com populações pomeranas (Domingos Martins, Vila Pavão, Pancas
e Laranja da Terra), criou o Programa de Educação Pomerana
239
(Proepo), que referencia a língua pomerana e a cultura como
elementos indispensáveis ao reconhecimento dos pomeranos, como
grupo diferenciado que são na sociedade brasileira.
O Proepo é, portanto, um programa público, criado para
atender às crianças regularmente matriculadas desde a Educação
Infantil até os anos finais do Ensino Fundamental. Seu objetivo geral
é “desenvolver nas escolas públicas um projeto pedagógico que
valorize e fortaleça a cultura e a língua pomerana, representadas por
meio da língua oral e escritas, danças, religião, arquitetura e outras
tradições” (HARTUWIG; KÜSTER; SCHUBERT, 2010, p. 126), sendo
os seguintes os seus objetivos específicos:
240
portuguesa, um ambiente em que, não tendo com quem interagir
em sua língua materna, a criança será forçada a abandoná-la e a
aprender a língua portuguesa. Além disso, tal estratégia, a meu ver,
faz com que as crianças abdiquem não somente de sua língua
materna, mas dos seus modos de vida, assimilando e incorporando
os valores e comportamentos da sociedade nacional. Nesse modelo,
o convívio total com a língua majoritária leva ao desuso da língua
minoritária, a língua pomerana. Para Cavalcanti (1999, p. 387), a
expressão educação bilíngue é,
241
estará relacionando sua língua à cultura, saberes e práticas sociais
de seu grupo social.
[...] contribuírem para os estudos das crianças e das culturas infantis, dando
maior visibilidade às crianças como protagonistas de uma sociedade
adultocêntrica, podendo dessa forma romper com as influências de uma
242
ciência androcêntrica e adultocêntrica. Oferecem também elementos para a
desconfiança dos discursos que pretendem construir verdades absolutas
sobre as infâncias (FARIA; FINCO, 2011, p. 4).
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247
248
Situação de refúgio, infância e
estrutura de sentimento
249
fechamento de fronteiras de 99 países devido à pandemia, os riscos
de infecção ao coronavírus e de tráfico humano aumentam
substancialmente para essa população, devido às detenções,
deportações e retornos forçados (NETO; MENACHO apud
BAENINGER et al, 2020).
Historicamente, a humanidade se desloca dos seus territórios
de origem, impulsionados por fatores físicos ou de insegurança e
ameaça humana, como catástrofes naturais, escravidão, guerras e
instabilidade sociopolítica (CASTRO, 2012; HALL, 2003).
Contemporaneamente, o encurtamento de fronteiras e a
mobilidade criam fluxos migratórios na busca por refúgio e asilo.
Os deslocamentos forçados significam a última alternativa para
70,8 milhões de pessoas no mundo (ONU, Organização das Nações
Unidas, 2019), sendo metade desse contingente composto por
crianças e adolescentes, e, ainda desse número, 138,6 mil ser
composto por meninos e meninas separados da família no
momento da busca por refúgio ou asilo.
Vale ressaltar que, no Brasil, o número de refugiados aumentou
em sete vezes, desde dezembro de 2019, havendo desde o final do
ano de 2020 cerca de 43 mil pessoas registradas como refugiadas,
com mais de 50 nacionalidades, somados 300 mil solicitantes de asilo
(ONU, 2020). A critério de comparação, na Alemanha, por exemplo,
somente entre janeiro a julho de 2020, foram recebidas 55.756
solicitações pelo Departamento Federal para Migrações e
Refugiados (BAMF, Bundesamt für Migration und Flüchtlinge), sendo
que, no mesmo período do ano anterior, foram apresentados 86.350
pedidos iniciais; isto representa uma redução de 35,4% no número
de pedidos em comparação com o ano anterior, justificada pela
condição da pandemia do coronavírus (BAMF, 2020).
Diante das diversas consequências negativas em âmbito de
alienação dos direitos das crianças refugiadas, além de questões
que afetam a sua saúde física e mental, a sociabilidade e o acesso às
políticas públicas básicas, ainda sofremos com os discursos de ódio
contra as pessoas em situação de refúgio, proliferados em massa
principalmente nas mídias:
250
É lamentável como o modo hegemônico da disseminação das narrativas
intolerantes está presente no cotidano, invadindo as redes sociais e
conteúdos televisivos, apenas para citar, como modo ilustrativo, a agressão
violenta de um brasileiro contra um sírio, retratada na reportagem “Saia do
meu país: agressão a refugiado expõe a xenofobia no Brasil” (CARTA
CAPITAL, 2017), a declaração do próprio presidente da República Jair
Messias Bolsonaro, ao nomear os refugiados como “escória” (JORNAL
OPÇÃO, 2015), ou ainda na Alemanha, como o partido de extrema direita
AfD (Alternativ für Deutschland) se aproveita da crise do Coronavírus, para
incitar campanhas de ódio contra os refugiados (SWR/ DAS ERSTE, 2020).
Infelizmente, uma grande parcela da população aceita e reproduz esses
discursos (MEDIENDIENST, 2018) (RODRIGUES, 2021, p. 484-485).
251
condições de estresse e sofrimento – com a quase obrigatoriedade
do aprendizado de uma nova língua e um novo modo de se
posicionar como sujeito, em uma sociedade e cultura totalmente
diferentes de suas origens que foram aprendidas e apreendidas.
Ao pensar em tais alterações nos hábitos sociais e mentais, é
oportuno acrescentar à discussão o termo “estrutura de sentimento”,
de Raymond Williams2, no que diz respeito à relação entre o
abandono da terra natal, vivenciado já pelas crianças pequenas, e
suas respectivas perdas, para poder sobreviver e produzir novos
modos de viver no pós-fuga. Tais fatores produzem uma estrutura
de sentimento com caraterísticas específicas, que desenham modos
de vida “em comum” do grupo social minoritário das crianças
refugiadas, e evidenciam diferenças e marcos nítidos que afetam o
seu desenvolvimento, principalmente quando comparamos as vidas
dessas crianças com as das outras, que nunca experimentaram a
situação do refúgio ou asilo.
A definição de estrutura de sentimento parte do pressuposto
de que ao distinguirmos os modos como vivemos a vida daquilo
que apenas acreditamos estarmos vivendo, surge o interesse em
significados e valores tal como são vividos e sentidos ativamente.
Desse modo, é realizada uma relação de modificação com as
crenças, as experiências vividas e com os elementos que ao longo
de cada período histórico se movimentam dentro de uma cultura
ou sociedade, tais como a linguagem, as roupas, as construções, etc.
Williams (1977, p. 121 - 135) denomina, assim, estrutura de
sentimento como uma hipótese cultural, na tentativa de
compreender seus elementos e suas ligações numa geração ou
período, de modo interativo. Paixão (2017, p. 26-27) esclarece esse
termo como “todo um modo de vida ou significados comuns que
252
são conhecidos ou que precisam ser aprendidos como parte
básica”, e acrescenta que estamos diante de uma estrutura de
sentimento com características endêmicas3.
O termo “estrutura de sentimento” expõe tanto questões
estruturais da vida em sociedade, ligadas aos sistemas de
manutenção (economia) e decisão (política), quanto à vida
ordinária em comum e seus processos de produção da linguagem
e dos sentimentos.
Robinson (2020, p. 5) afirma que “uma estrutura de sentimento
não é algo flutuante. Ela está intimamente ligada a sua correspondente
economia política. Como nos sentimos é moldado pelo que
valorizamos, e vice-versa”4. Assim, compreendemos que pensar a
comunicação com as crianças refugiadas permite correlacionar o
conteúdo dessa estrutura de sentimento5 com a proposta de
compreender e cartografar os modos como a sobrevivência durante a
fuga e após o refúgio são vividos e experimentados, ao considerar-se
um universo bastante díspar, em comparação com os países de origem
dessas crianças, com os países de acolhida.
A constante insegurança, o medo, a perseguição e a
desesperança podem ser equiparadas à experiência de soldados em
guerra, porém, com um lastro muito mais pesado e até mesmo
injusto, por se tratar de crianças. Diante de tamanha dor, choque e
thing. It’s tightly coupled with its corresponding political economy. How we feel is
shaped by what we value, and vice-versa”.
5 Para evitar mal-entendidos diante da complexidade da definição de estrutura de
253
sofrimento, parafraseando Paixão (2019), as crianças podem vir a
se silenciarem para a vida, a recusarem a realidade, a suspenderem
as experiências vividas. Daí a importância da valorização e do
incentivo à intimidade, interações e comunicações mais profundas,
para proporcionar segurança, confiança e estabilidade consigo
mesmo e com as famílias ou pessoas próximas (PAIXÃO, 2020).
Não é intenção da presente discussão lançar luz e ênfase em
traumas ou ainda em psicoses ou neuroses, mas sim identificar em
que medida a comunicação, as formas de linguagem entre as
crianças refugiadas, consideradas aqui sempre sob a perspectiva de
sobreviventes, se alinham com o cuidado, a proteção, a segurança,
junto aos processos de formação de subjetividades e identidades,
em contrapartida com o risco de produzirem um olhar de desafeto
contra si e sua realidade ou de “abandonarem a si mesmas”6.
As situações adversas vividas em contextos de desastres,
violências, fugas e perseguições, como as que as crianças
refugiadas enfrentam, são potencialmente influenciáveis para o
comportamento suicida, conforme afirmam os dados da literatura
(SCHMID, 2019). Nesse sentido, evoca-se a atenção para a temática
em discussão, por tratar-se de um compromisso societário, uma vez
que, ao se debruçar para o campo de pesquisas com o tema crianças
refugiadas, há escassez de trabalhos que tratem os deslocamentos
internacionais na infância. Ainda há a necessidade de estudos que
expressem os fatores de entraves na adaptação, inclusão e
integração, incluindo pesquisas que avaliem as experiências
pessoais de crianças e jovens refugiados, como sugerem Silva e
Filizola (2019). Os autores alemães Söhn e Marquardsen (2017)
também afirmam haver uma escassez de produção de bibliografia
acadêmica que referencie o tema dos refugiados, partindo do
pressuposto de que a discussão acerca dos aspectos biográficos,
254
subjetivos, de interesses e necessidades da população refugiada
ainda seja limitada.
Ao englobar fenômenos sociais complexos relevantes,
emergentes e atuais, a saber, a situação de refúgio vivida e
experimentada na infância e os meios de sobrevivência dessa
população, salienta-se a importância para a realização de debates,
novos estudos e pesquisas que corroborem para a visibilidade da
infância nos contextos dos deslocamentos internacionais, para
compreensão de seus modos de (sobre)viver, sua relação com a
educação, o cuidado e seus cuidadores. Priorizar possibilidades de
revisão e implantação de novas ações, projetos, planos e pesquisas
envolvendo a população infantil refugiada reflete em processos de
humanização nos campos pedagógico e societário, colaborando na
produção de uma política pública. Além disso,
255
estratégias que as crianças refugiadas possuem, suas reais
necessidades e os recursos externos recebidos no processo de
acolhida nos espaços de proteção e cuidado; a comparação de
resultados obtidos em diferentes países de acolhida, com os
devidos cuidados em reconhecer se os parâmetros de
comparabilidade como os diferentes contextos (tamanho dos
países, diversidade intranacional de cada nação, etc.), as variações
e aspectos comuns entre si tornam as diferenças significantes ou
não (MANZON apud BRAY; MASON, 2015), a fim de produzir
conhecimento científico com enfoque em políticas preventivas de
cuidado e proteção em âmbitos de saúde mental, educação e
integração cultural, social e política.
Partindo dessas ponderações, os Estudos Culturais, baseados
principalmente em Raymond Williams, contemplam os termos
“estrutura de sentimento”, “cultura”, ou, de modo mais amplo,
“teoria cultural” e “linguagem”, palavras-chave para entender e
discutir as subjetividades e identidades das crianças em situação de
refúgio. Para compreensão teórica de tal relação, é relevante
retomarmos inicialmente ao conceito de linguagem, que, para
Williams (1977, p. 21-44), é uma atividade prática constitutiva do
ser humano e é ação social constituinte histórica. A linguagem é
ainda entendida como uma experiência ativa; por meio da
linguagem é possível a compreensão da realidade, de modo social,
contínuo, dentro de uma sociedade ativa e em transformação,
sendo uma faculdade de abertura para o mundo, de presença social
e dinâmica no mundo. As crianças que vivenciam o refúgio
possuem uma “marca em comum” que, de antemão, destaca-se:
elas são praticamente reféns e dependentes do aprendizado e
domínio de uma linguagem estranha à sua, inserida em uma
cultura completamente nova, sob condições emocionais e sociais
desfavoráveis e vulneráveis, tais como o estresse, a pressão, o
medo, a insegurança, a confusão, em razão da não compreensão
total dos acontecimentos do refúgio em si, a dor e o sofrimento, em
um momento histórico assinalado pela fuga e separação de seu
país. Tal marca em comum pode hipoteticamente conectar-se como
256
um dos elementos-chave da estrutura de sentimento, único e
exclusivo, de crianças que vivem a situação de refúgio. O
entendimento dos aspectos expostos se relaciona igual e
diretamente com as subjetividades e identidades, conceitos que,
por sua vez, imbricam-se com a teoria cultural. Williams
compartilha esse pensamento em Culture is Ordinary (1958, p. 4),
Culture and Society (1958, p. 295), em Long Revolution (1961, p. 116)
e em Marxism and Literatur (1977, p. 121-135)7. Com fins de expor
brevemente a teoria cultural baseada nos referidos trechos, parte-
se do pressuposto de que a cultura produz significados e valores, e
é estruturada em formas, relações, instituições, conhecimento e
artes, de tal modo que sistemas de decisão, de comunicação, de
geração e criação, de aprendizagem e de manutenção se relacionam
e se materializam na produção cultural, de modo a modificar e
estruturar o modo de vida de uma sociedade específica. Assim, a
formação e o desenvolvimento de uma sociedade se constroem e
reconstroem, no modo de pensar dos sujeitos que perpassa uma
relação permanente com os sistemas citados, onde assume-se os
significados que seguem linhas de direção em comum, sejam eles
envolvidos de elementos já conhecidos, comuns (o caráter
“tradicional” da cultura) e os novos elementos apresentados, que
serão experimentados (o aspecto “criativo” da cultura). Tanto o
tradicional – entendido também como características do dominante
ou residual – quanto o criativo – o emergente – constituem os
processos ordinários, que envolvem as mentes humanas, ocorre no
formato de experiência social em processo, o que define traços ou
marcas de uma determinada geração ou período histórico,
solidificando a compreensão do termo estrutura de sentimento8.
257
A partir de um aprofundamento da análise exposta acima,
estabeleço uma conexão com os modos como as crianças se
posicionam e vivem no mundo – ou especificamente no país de
acolhida – como sujeitos, problematizando os impactos desses
processos e demandas, na formação de suas subjetividades e
identidades. O elo entre ambos conceitos articula-se com a
“hegemonia”em Williams (1977, p. 109-112), cuja definição não
pode ser reduzida à ideologia ou consciência; ao mesmo tempo em
que assume as relações de dominação e subordinação, a hegemonia
não se reduz aos conceitos de manipulação e adoutrinamento, mas
corresponde a processos de organização e controle social nas
sociedades; compreende as atividades políticas, econômicas e
sociais, bem como toda a essência de identidades e relações vividas,
as pressões, tensões, que fazem parte de um sistema cultural,
político e econômico; constitui ainda um conjunto de práticas e
expectativas ligados à totalidade da vida, envolvendo sentidos,
percepções que atribuímos a nós mesmos e ao mundo; é um
sistema vivido de práticas, significados e valores fundamentais
constitutivos, que, ao serem experimentados enquanto práticas,
parecem confirmar-se reciprocamente, adotando sentido de
realidade em absoluto, para a maioria das pessoas que vivem em
uma sociedade. Para finalizar, hegemonia não é sistema, nem
mesmo estrutura, mas é sempre processo, é conjunto de
experiências, relações, atividades e nunca pode ser somente
individual, nem tampouco ocorrer de modo passivo, porém, é
continuamente renovada, recriada, defendida e modificada, pois
sofre resistências e é desafiada pelas pressões. Consolidada a
compreensão dos modos como a hegemonia e o desenvolvimento
da linguagem, em conjunto com a teoria cultural, operam, delineia-
se um repertório complexo de relações diretas para entendimento
Jürgen Habermas (1962), Antonio Candido (1965), dentre outros. O termo estrutura de
sentimento agrega complexidade, porém, não o torna impossível de compreensão.
Beatriz Sarlo (apud PAIXÃO, 2017, p. 26) afirma que “(...) a estrutura de sentimento (...)
foi uma pedra de toque da teoria cultural de Williams”.
258
da estrutura de sentimento e seu elo com as subjetividades e
identidades. Pode-se concluir que, caracterizam-se, assim,
processos de formação ampla e complexa, que engendram, ora para
opacidades, ora para reforços à determinados sentidos, percepções,
sentimentos, emoções e pensamentos, que demarcam os
posicionamentos dos sujeitos no mundo e os modos de sentir e
viver seus pertencimentos em determinados grupos, em uma
sociedade e em um tempo específicos.
Como conclusão desta breve reflexão que atinge
impiedosamente e diretamente as crianças, urge, portanto, a
responsabilidade do incentivo no movimento do debate e trabalho a
respeito da infância na situação de refúgio, como ferramenta de
compromisso societário capaz de ser utilizada em instituições no
fomento de programas, projetos e ações profissionais, em parceria
com outras instituições que estejam inseridas na referida temática, nos
campos dos Estudos Culturais, Educação, Saúde e Direitos Humanos.
Que sejam fomentadas a regulação e implementação de
políticas públicas na defesa dos direitos humanos da população
infantil, bem como as discussões democráticas contra “todas as
formas de discriminação étnica, a saber, a necessidade de uma
abertura intercultural, a construção de uma ‘cultura em comum’
(WILLIAMS, 1989), ao abarcar uma política antidiscriminatória de
sensibilização em todos os níveis da sociedade” (RODRIGUES,
2021). As crianças não podem continuar a contar com a “sorte” de
sobreviver, nem tampouco pagar o alto preço, sacrificando suas
próprias vidas.
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263
264
Localizar(-se) (n)o entorno:
entre o agir para nada e o projeto pensado
traçados do primeiro ano do projeto lugar-escola e cinema
Introdução
3 Elas ocupam uma mesma quadra, estando seus prédios geminados e tendo uma
265
Trago para esse texto4 um trecho do Projeto Lugar-escola e cinema:
afetos e metamorfoses mútuas5, que é um dos desdobramentos desse meu
encantamento pelo trabalho com cinema que já acontecia e segue
4 Uma primeira versão dele foi publicado com título homônimo da Revista Trajeto
Errático n. 1, 2021, Disponível em: http://cidadaniaporimagem.uff.br/wp-
content/uploads/sites/304/2021/01/TRAJETO-ERRATICO-1a-ed-jan-2021.pdf Nesta
nova versão foram realizadas algumas atualizações e incluída esta Introdução.
5 Projeto iniciado em 2019, contando com o apoio da Fapesp [2018/09258-4 – Ensino
266
acontecendo, com mais intensidade e diversidade, desde a
implementação, em 2017, do Cineclube Regente/Cha no escopo do
citado Programa Cinema e Educação. A citação a seguir aponta como
uma situação de cinema vivenciada em uma das escolas se desdobrou
no referido Projeto de extensão e pesquisa.
“Nossa! Como a escola é bonita!” Essa foi a frase, dita durante a exibição de
um dos primeiros filmes feitos por lá, que me levou a decidir realizar essa
pesquisa naquele contexto escolar. Afinal, a escola sempre esteve lá, como
lugar, e foi somente ao ser tornada imagem que sua beleza se fez presente
(se fez intensidade, afetou os corpos). Algo nessa frase me levou à seguinte
passagem de Migliorin (2015, p.129): “Em oposição ao feio, não estava o
bonito. Ela não disse que o que era feio [uma parte do bairro onde morava]
havia ficado bonito, mas que o que era feio havia virado cinema”. O cinema
transforma os lugares: a visualização da tomada feita num dado local
colocou ambos os lugares em devir ao dobrar sobre eles outros (sem)
sentidos que ainda não estavam dados.
Essa me pareceu uma boa pista para perseguir como “problema de
pesquisa” (problema como aquilo que me força a pensar): o que estaria
ocorrendo naquele lugar-escola onde outros modos de lidar com o cinema
estavam se fazendo presentes? Junto a essa, muitas outras perguntas se
fizeram desafios a serem enfrentados:
1. Seriam essas frases indícios de que há dimensões do espaço cotidiano –
dos lugares – que se tornam sensíveis somente quando e se são tornadas
imagens? Ou ao tornarem-se sensíveis enquanto imagens essas mesmas
dimensões do espaço cotidiano deixam de ser aquilo que eram até então e o
que se filma seria o devir delas (as diferenças e o processo de diferenciação)
e não elas mesmas (a representação)?
2. Nesse sentido, as imagens seriam uma das referências necessárias para ver
o mundo em seu devir contemporâneo?
3. Que mundo – que lugar-escola – emerge das imagens, forçando a escola a
devir outra? Nesse caso, o mundo visto através das imagens seria sempre
outro, algo que está deixando de ser o que era, uma vez afetado pela
imagem? As imagens, então, desabam sobre as paisagens…
4. Um “corpo-com-uma-câmera” é sempre híbrido e mira o espaço – é
afetado pelo lugar-escola – em seu devir imagem? Portanto, não é sensível
às coisas, mas ao devir delas enquanto imagens?
5. O que ocorre quando essa criação de imagens se dá nas proximidades da
arte, criações “para nada” (DELIGNY, 2015), sem objetivo algum que não o
de trazer ao mundo um novo objeto sensível (uma imagem)?
267
Essas imagens, palavras e perguntas formam tanto o material empírico que
pretendo focar quanto foram aquilo que me afetou para propor essa
pesquisa à escola6. É importante salientar que a pesquisa não busca conhecer
uma escola através das imagens, mas sim acompanhar as
transformações/variações no lugar-escola quando um outro cinema ali se
instala como nova trajetória na constelação/no encontro de trajetórias
heterogêneas e copresentes que compõem um lugar, conforme o conceitua a
geógrafa Doreen Massey (1991; 2008).
O que nos interessa são as afetações das trajetórias – humanas e inumanas –
que configuram um lugar-escola na produção de imagens cinematográficas.
Em outras palavras, o que afeta um corpo-câmera a mirar em certa direção,
bem como ligar-se e desligar-se em certo momento?
Na expressão corpo-câmera dobra-se uma perspectiva conceitual (LEITE,
2011; 2015; LEITE; CHISTÉ, 2015) de que não filmamos apenas com os olhos,
mas também (e talvez principalmente) com as mãos, com as vísceras, com os
pés e joelhos, enfim, com todo o corpo que, ao ter acoplado a si uma câmera,
passa a compor um híbrido em que ambos se metamorfoseiam ao se
afetarem mutuamente: corpo-câmera que, por isso, liga-se e desliga-se
conjuntamente. (OLIVEIRA JR, 2018, p. 5-6)
268
que emergem do e no próprio encontro entre os corpos humanos –
profissionais da educação e crianças – e os demais corpos, não
humanos, que configuram um lugar-escola7 – prédios, paredes,
vidro, água, árvores, chão, pedras, brinquedos, alimentos, vento,
linguagem, câmeras, telas, imagens, sons etc etc etc.
São muito mais diversos e proliferantes os corpos não
humanos que povoam um lugar do que os corpos humanos. No
entanto, o humanismo educacional de tantos séculos quase sempre
nos impede de considerar os não humanos como presentes e
atuantes em nós mesmos, humanos expostos a todos os outros
corpos do entorno, com suas forças, formas e materiais. O cinema,
e a atenção a ele associada, muitas vezes tornam sensíveis esses não
humanos que povoam os lugares... esta é uma das apostas das
experimentações cinematográficas que temos realizado e da
pesquisa a elas associada8.
Esse lugar-escola, composto de duas escolas de Educação
Infantil, entrou em devir cinema desde 2017, com o estabelecimento
ali do Cineclube Regente/Cha, bem como o cinema ali realizado
entrou em devir Educação Infantil, pois, segundo Doreen Massey
(2008), um lugar é sempre um encontro, uma interação entre
trajetórias heterogêneas – corpos, forças, materiais, formas, etc – que
gesta negociações e devires mútuos, muitos deles imprevisíveis.
269
Ornando com o entorno
270
O ornado, portanto, é este estar aí “para nada” ou, se há alguma
intenção, é justamente a de deixar emergir os agires, gestos de
espécie fossilizados pelas camadas de cultura, que podem emergir
no topos, encontro entre um indivíduo da espécie humana e outro
indivíduo de outras espécies e naturezas, como as pedras9.
Entendo que a “liberdade sem nome” referida por Deligny tem
muitas possíveis interpretações no próprio texto. Uma seria aquela
que efetivamente não podemos nomear como sendo liberdade,
uma vez que “poder e liberdade estão no mesmo barco” e, como
aponta a citação, os autistas são refratários ao poder,
consequentemente, à liberdade. Ela simplesmente não se coloca
para estas “crianças sem falar”, não só por não lidarem com a
linguagem e seus signos, mas também por não se reconhecerem
como algo separado/distinto do entorno no qual vivem. Outra
interpretação seria a “liberdade sem nome” dos adultos –
“presenças próximas” (DELIGNY, 2015) – que acompanham estas
“crianças sem falar” e que alcançariam esta “liberdade” quando se
acostumam a elas e, ao fazerem isto, são “libertados da
perplexidade e da consternação” (DELIGNY, 2015, p. 183) diante
dos gestos que “não querem dizer nada e não significam, gesto
nenhum, nunca” (DELIGNY, 2015, p. 183). Concluindo com as
palavras deste mesmo autor: “[e]is então a liberdade à deriva, sem
ter nada a ver com o menor projeto” (DELIGNY, 2015, p. 185), sem
ter nome algum.
De muitas maneiras, penso que esse autor propõe, já na década
de 1970, algo que várias vertentes da educação contemporânea
também propõem: os adultos que acompanham as crianças
deveriam se “acostumar” com elas e entregarem-se aos seus
“desvios” no encontro com seu entorno, um encontro refratário a
projetos e intenções prévias e aberto a experimentar as “trajetórias
271
heterogêneas” (MASSEY, 2008) que, assim como elas e estes
adultos, também compõem o lugar onde vivem e vivificam
justamente através deste encontro plural.
No caso do Projeto Lugar-escola e cinema: afetos e metamorfoses
mútuas, o encontro se faz em um lugar-escola em que uma de suas
apostas foi na (in)certa “condição autista” a que foram forçados os
adultos-professores que se dispuseram a realizar experimentações com
o cinema na Educação Infantil, a despeito de seu desconhecimento ou
pouco conhecimento da linguagem audiovisual. Esses professores
tornaram-se corpos-câmera (LEITE, 2015) que, ao desconhecer ou
conhecer pouco a linguagem do cinema, experimentaram seu entorno,
muitas vezes, “sem (o) falar” audiovisual(mente), uma vez que
desconheciam e não controlavam seus signos.
272
Este é o contexto empírico e conceitual em que linhas intensivas
emergiram neste primeiro ano do Projeto. De um lado, o cada vez
maior conhecimento da linguagem audiovisual leva as filmagens (e,
principalmente, os filmes) a serem realizadas a partir de projetos
pensados pelos professores. De outro, os desvios e os agires seguem
emergindo devido à nossa insistência na experimentação de formas
distintas de fazer cinema, através da invenção de “dispositivos de
criação de imagens” (MIGLIORIN, 2015) ou da abertura para
(produzir) os acontecimentos (VILELA, 2010).
273
lugar-escola apareçam de maneiras bastante variadas nos filmes e
filmagens realizados no entorno onde emergem o agir e o fazer dos
corpos-câmera.
274
recebermos a doação de um celular para ser usado somente nas
filmagens do Cineclube e, posteriormente, do Projeto. Desta forma,
o risco de perdas de dados e estragos de equipamentos pessoais
seria eliminado. Facilitaria deixar as crianças levarem o celular para
filmar onde quisessem.
Vivenciamos muitas situações em que o celular esteve nas
mãos das crianças. Em minhas estadias semanais no lugar-escola,
fiquei responsável por realizar algumas destas experiências e me
recordo de acompanhar diversas filmagens, tendo, inclusive,
assistido a algumas delas na própria tela do celular, acompanhado
ou não de quem filmou ou de outras crianças. Mas não somente eu
acompanhei situações como essas. As bolsistas do Projeto também
o fizeram, e cheguei a ouvir relatos de disputas entre as crianças
para decidir quem iria filmar primeiro e de filas para filmar e falas
do tipo “agora sou eu”.
Mas a quase totalidade das filmagens das crianças permanece no
arquivo, tendo sido utilizadas somente em três filmes realizados
até agora: FiOs TrAmAdOs Ao AcaSo, Sohlepse e Sem direção12, este
último um “filme de arquivo”13.
Nas filmagens dos adultos vemos crianças crianças crianças em
todos os ângulos e distâncias. Podemos afirmar que, justamente
por serem as crianças o seu foco de trabalho, os professores e as
professoras têm seus olhos e corpos direcionados a elas e para elas
direcionam suas câmeras. Filmam a infância que é vivida na escola,
como costumam dizer. Talvez por isto, mesmo quando o
“problema” cinematográfico é a sombra ele se converte em “como
275
filmar as sombras das crianças”? Ou “como utilizar as silhuetas das
crianças como matéria-prima do cinema”?14
Desta maneira, o lugar-escola que emerge dos filmes vistos nas
sessões do Cineclube ou de um passeio pelo Canal Regente/Cha15,
no Youtube, é um lugar povoado de crianças de todos os tipos
interagindo entre si e com outras “trajetórias heterogêneas” que
compõem aquele lugar-escola, sejam os brinquedos existentes no
parque ou entregues pelos profissionais às crianças, sejam
materiais e seres que encontram no parque das escolas, aí incluídos
todos os tipos de chão.
São raríssimas as cenas em que não há uma criança ou muitas
delas. Elas aparecem de infinitas maneiras e em diferentes
“pedaços”: pés, cabelos, pernas, peitos, braços e mãos. Mas
raramente aparecem focadas na cintura, sejam vistas de frente ou
de costas; com isto, raras são as bundas vistas de perto e,
geralmente, assim como no cinema e televisão comerciais, há o
privilégio do rosto (e de partes dele), quando o enquadramento é
próximo, assim como há o privilégio do corpo inteiro quando o
enquadramento é de conjunto ou em grande plano.
O mais importante é mostrar o que as crianças estão fazendo. Se
estão fazendo algo detalhado, como “comidinhas de areia” ou bolhas
de sabão nas mãos, então o enquadramento é próximo; se estão
fazendo algo coletivo, como futebol, então o enquadramento é
distante. O filmador adulto não entra no meio da brincadeira para
filmar de outros modos. Parece impedido de fazê-lo, pois isto
“atrapalharia” a brincadeira. É um impedimento escolar, estabelecido
sob o imperativo de uma suposta espontaneidade das crianças.
Interessante pensar em como esses impedimentos vão fazendo
parte das práticas cinematográficas e auxiliando a criar uma certa
9&view_as=subscriber
276
“estética geral” dos filmes, em que passa a ser notado aquilo que
aparece muito e aquilo que permanece ausente.
Nesta estética geral, por exemplo, podemos afirmar que
importam somente as personagens, que são elas a matéria-prima
utilizada pelos bolsistas-cineastas para produzir seus filmes e
expressar “o que se passa” ali, num esforço muito próximo ao do
documentarista clássico: mostrar como é a vida das pessoas – neste
caso, das crianças – sem interferir nela.
Na cartografia deste primeiro ano do Projeto, esta foi a linha
dura mais comum e persistente que configura nosso modo de fazer
cinema. Mas há também linhas flexíveis, como aquelas que
promovem cenas filmadas nas quais se nota a interferência de
algum adulto; são cenas “roteirizadas”, quase sempre com roteiros
que visam repetir algo ocorrido ou registrar algo corriqueiro. Há
também linhas de fuga, experimentais, como no filme Gustavo
entrevista16, em que duas filmagens simultâneas são realizadas, uma
provocando desvios na outra: um tanto de roteiro, um tanto de
incômodo, um tanto de surpresa, um tanto de...
Seja como for, são os personagens-crianças que regem o
cinema que temos feito. As demais trajetórias que compõem o
lugar-escola tornam-se visíveis somente como fundos das cenas da
“infância filmada como ela é”. Raramente algumas destas outras
trajetórias, sejam árvores, sejam brinquedos, sejam animais, sejam
gramados são tomadas como elementos cinematográficos que
poderiam trazer sentidos e sensações para a filmagem e o filme17.
277
Mesmo assim, sem grande importância nos projetos pensados
de filmagens e filmes, podemos afirmar que há certas presenças
mais constantes para além das crianças. A mais marcante delas é o
parque. Mais de 80% das filmagens foram feitas nele, quase sempre
como cenário onde alguma cena da infância foi filmada. Outras
presenças como cenário também podem ser notadas, tais como a
sala do cineclube – nas filmagens das sessões coletivas de cinema –
, o pátio interno aberto (entre as duas escolas), a horta, o pátio
interno fechado e os dois refeitórios (um em cada uma das escolas),
bem como as salas de aula dos profissionais envolvidos no
Cineclube Regente/Cha (mas não só, pois há outros profissionais
que filmam, realizam pequenos filmes e/ou enviam filmagens para
os membros do Cineclube fazerem os filmes). Os locais da escola
onde as crianças não frequentam, como as cozinhas de ambas as
escolas e as salas da direção, são praticamente ausentes nas
filmagens e filmes.
Mas se é verdade que em 90% das filmagens aparecem
crianças, os 10% restantes expõem os topos que emergiram nas
conexões com o entorno próximo. Em primeiro lugar aparecem as
filmagens de insetos e pássaros e galinhas, animais que vivem ou
passam pelo parque. Junto com eles aparecem as árvores ou os
locais onde estes animais vão comer. Os animais são tomados como
personagens foco da filmagem e, por estarem normalmente em
movimento, raramente são filmados em câmeras fixas ou quase
fixas. O enquadramento é tão próximo quanto foi possível para o
filmador ou o programa de edição que porventura tenha sido
usado e permitido a “aproximação digital” sem que se perca a
identificação do animal.
As árvores seriam o segundo elemento do lugar-escola que mais
atrai os corpos-câmera adultos que, geralmente, as filmam em
panorâmicas de baixo para cima ou somente fixando suas copas tendo
o céu ao fundo. Não há, por exemplo, panorâmicas de cima para baixo
ou filmagens de detalhes das árvores ou demais vegetais que existem
nos parques. Estes detalhes aparecem somente nos fundos de cena das
filmagens das crianças, dos insetos e demais animais.
278
Ainda assim, é possível verificar que há algo que “remete ao
selvagem” no cinema que temos produzido nas duas escolas, uma
vez que a grande maioria dos filmes (e isto é ainda mais marcante
nas filmagens não utilizadas presentes no nosso arquivo) se passa
no parque, em meio ao que há de mais próximo das trajetórias
daquilo a que chamamos natureza, fazendo com que, em todas as
sessões de cinema, o conjunto das imagens vistas na telona nos
desloca dos espaços fechados, das salas de aula e pátios, para os
espaços abertos, sob o céu, em meio às árvores e sobre o chão de
terra e grama. Esta característica do cinema que temos realizado
está no centro do ensaio A floresta não (a)parece selvagem por todos os
lados: encontros inumanos no cinema em escolas infantis (OLIVEIRA JR,
2020), cujo resumo apresento a seguir:
Wanessa Oliveira.
279
visibilidade das crianças chorando, mantendo, no entanto, a
sonoridade do choro na composição da cena, conforme pode ser
lido no relato da bolsista Sandra Amaral, realizadora do filme
Fogueira, publicado no capítulo Arte e democrazia tra cinema e scuola
dell'infanzia.
Este filme trouxe à tona uma questão que causou um pouco de incômodo:
as disputas (brigas) entre as crianças, principalmente quando isso é
registrado e pode vir a ser cena de um filme. Por conta da disputa acirrada,
o empurra-empurra entre duas crianças, o filme Fogueira teve mais de uma
versão e foi objeto de longas conversas entre os componentes do Cineclube.
Colocar ou não o momento em que a menina chora? O momento em que o
menino empurra mais forte? Isto seria algo que coloca a criança em situação
vexatória ou seria somente uma situação corriqueira entre crianças, dentro e
fora das escolas de educação infantil? Como uma questão ética da imagem,
deveríamos conversar com os pais das duas crianças envolvidas antes de
finalizar o filme, perguntando a eles o que pensavam? Somente após isto
poderíamos decidir se as imagens do conflito comporiam ou não o filme?
Quando entramos em contato com as filmagens da disputa e do choro, elas
nos levaram a pensar nas questões éticas acima, relativas à exposição destas
crianças e das famílias, o que fez com que a manutenção destas cenas na
versão final não fosse propriamente tranquila. Isto gerou algumas versões
do filme, para decidir o que seria ou não retirado deste embate entre as duas
crianças. Algumas vezes tirei demais e o filme ficou com um “buraco”; em
outra versão, em que tirei de menos, as cenas ainda geravam algum
desconforto. Foram feitas também duas versões em que o som ambiente (o
choro) foi retirado, mas mesmo assim as cenas pareciam incomodar.
Após muitas conversas e opiniões divergentes, a versão final do filme
Fogueira seguiu com cortes na edição da imagem na parte do acirramento da
disputa entre duas crianças. Foi retirado cerca de um minuto dos quatro de
filmagem inicial. Contudo, o áudio deste momento se manteve no filme, pois
consideramos que assim o filme poderia apresentar, com veracidade maior,
o que se passou naquele momento entre as crianças. A solução fílmica para
a questão ética foi dessincronizar o som da imagem, fazendo com que, em
muitos momentos, escutemos os sons de imagens que não estão sendo vistas.
(OLIVEIRA JR; AMARAL, 2019, p. 113 – tradução nossa)
280
mantendo somente a sonoridade do choro a compor a cena, na qual
vemos um corredor vazio.
20 No caso dos bebês isto é ainda mais marcante e a imagem que mais vemos nas
filmagens feitas por eles é a mistura de cores, luzes e escuridões gravadas na imagem
por conta dos dedinhos que são colocados sobre a lente que filma. Sobre isto, ver parte
O cinema no berço do capítulo Encantamentos e desassossegos - fragmentos dos (des)encontros
entre cinema e escola de educação infantil (OLIVEIRA JR et alii., 2019).
281
Nas crianças um pouco maiores, há certamente uma tentativa
de filmar de um determinado jeito ou uma determinada coisa, mas
estas crianças ainda não estão tão “dentro de si mesmas” (não têm
projetos pensados tão fortes e enrijecidos) e, justo por isto, o
entorno ainda é por demais sedutor em suas variações e surpresas,
fazendo com que os “ornados” e “desvios” ocorram com muita
frequência. Esta frequência de “desvios” é ainda maior quando elas
experimentam “filmar qualquer coisa” ou quando algo do entorno
(lugar-escola) os afeta capturando seu corpo e seus gestos de filmar:
nestes momentos filmam aquilo que as afetou e não propriamente
aquilo que queriam filmar (seu projeto pensado). Mas se a
intensidade do afeto for tamanha, certamente a câmera será
“esquecida” nas mãos ou mesmo deixada de lado (filmando
“autonomamente” o que tiver diante dela). Estas “imagens
autônomas” tornam sensível ao espectador a intensidade do
extracampo, não visível, mas passível de ser sentido no abandono
da câmera e no “nada” que foi filmado.
Em outras palavras, as crianças já estão presentes “atrás” das
câmeras, mas esta presença ainda não se fez notar nas telinhas do
canal do Youtube e na telona das sessões de cineclube, fazendo com
que certos tipos de filmagens e certos modos de “aparecimento” do
lugar-escola estejam, ainda, ausentes do público maior, estando
restritos àqueles que acompanharam ou assistiram às filmagens no
arquivo do Cineclube Regente/Cha.
Ainda nos falta trazer à tona tanto nos filmes quanto nos
escritos e reflexões a presença das crianças como realizadoras de
filmagens e filmes, a exemplo do que fizemos com a presença delas
que impregna as telinhas e telonas quando assistimos ao filme
Composição Coletiva I - Homenagem a Len Lye21 produzido em oficina
de cinema direto na película com uma turma de crianças de quatro
282
a seis anos22. Neste filme, a presença das crianças – e de diversos
tipos de infâncias – torna-se sensível não na visibilidade direta de
seus corpos, mas nas marcas deixadas por eles na película utilizada
para fazer o filme.
São exatamente estas marcas indiretas que se tornam sensíveis
(visíveis? audíveis?) quando as crianças estão atrás das câmeras,
ainda que atrás seja um modo equivocado de dizer, uma vez que,
nas mãos delas, as câmeras não necessariamente se identificam aos
olhos, mas se parecem muito mais a um brinquedo que, uma vez
seguro nas mãos, pode “servir para o que vier” em seu encontro com
o entorno do lugar-escola, situação esta que está expressa nos
planos-sequência do citado filme FiOs TrAmAdOs Ao AcAsO em que
somos colocados junto ao corpo (e não diante dos olhos) de uma
criança de menos de dois anos a andar e correr pelo parque da escola.
22O processo de produção deste filme está relatado e discutido no texto Infancia y
afectos in-comunes entre la mise-en-expérience y la mise-en-situation-école. Algunas notas
sobre modos de experiencia cinematográficos en una escuela infantil de Campinas (Brasil)
(WIEDEMANN; AMARAL; OLIVEIRA JR, 2021 – no prelo).
283
A primeira destas diferenças emerge do “modo geral” como o
lugar-escola aparece nas filmagens. Nas filmagens dos adultos
estamos perto ou longe de determinado fragmento do lugar-escola.
Por exemplo, se a filmagem se inicia perto de uma criança ou
animal ou gesto, caso ocorra algum movimento naquilo que está
sendo filmado, o filmador busca manter o mesmo enquadramento
de proximidade, “movimentando-se” junto. O mesmo ocorre nas
filmagens de longe. Muito raramente temos uma ampliação ou
redução da “quantidade de espaço” enquadrado e raramente
temos o acompanhamento de uma situação filmada por um longo
“espaço percorrido”. O que se pode intuir dessas filmagens de
adultos é que são realizadas por corpos-câmera parados ou com
pouco movimento.
Nas filmagens das crianças vemos que o “tema” é filmado
preferencialmente de perto ou com aproximações. Quando estas
últimas ocorrem, o espaço é mostrado em travellings para frente,
vamos nos aproximando mais ou menos lentamente de algo ou
alguém. O que se depreende deste espaço visível nas filmagens é
que as crianças caminham em direção a “algo” e, mais do que isto,
quando este “algo” é um local, elas entram no meio dele, sejam
moitas de arbustos ou salas de aula, sejam brinquedos, como o
labirinto, sejam brincadeiras, como o futebol. Neste sentido,
podemos afirmar que nestas filmagens temos mais comumente o
perto e o longe em um mesmo plano-sequência ou em duas ou mais
tomadas distintas, mas feitas na sequência uma da outra.
Talvez como resultado de corpos-câmera mais parados e
corpos-câmera em movimento, a segunda diferença aparece na
dinâmica estabilidade/instabilidade (ou seria melhor pensar em
velocidade?) das filmagens do espaço.
Nas filmagens das crianças, o lugar-escola aparece instável em
suas visibilidades, em que ali “tudo oscila”, como se estivéssemos
em um barco no oceano ou que a própria superfície em que
“pisamos” é “ondulante”, como o chão das “casinhas de bolinhas
de plástico” das escolas infantis. Esta oscilação daquilo que vemos
faz com que, para o espectador, a “horizontalidade habitual” com
284
que se observa o mundo (a de um corpo parado de pé ou sentado)
só seja alcançada com um esforço de imaginação (o que estaria em
cima e embaixo? O que estaria à frente, atrás e na diagonal? O que
estaria...) ou abandonada de vez, deixando o corpo-espectador
entregue ao que as imagens solicitam dele.
Essa estranheza em pensar que as imagens solicitam (ou
mesmo exijam) ações do corpo-espectador que as assistem é o que
efetivamente temos vivenciado diante das filmagens feitas por
crianças pequenas, como já vem apontando fazem alguns anos as
pesquisas de César Donizete Pereira Leite23, e é também o que
temos vivenciado ao acompanhar as crianças pequenas nas sessões
de cineclube, uma vez que elas realizam gestos e movimentos que
são nitidamente acionados pelas imagens (e sons) que estão vendo
(e ouvindo) no filme.
Ainda que estas sejam características presentes nas filmagens
das crianças, há um filme de adulto, Quem quer casar?24, realizado
como uma experimentação, um Minuto Lumière, ainda no ano de
2017, que tem feito seus espectadores “marear” diante das
“imagens rotativas” a que ele nos expõe, fazendo com que o corpo-
espectador se mova forçado pelas imagens; muitas vezes os
movimentos dos adultos frente a este minuto de imagens são os de
fechar os olhos e/ou segurar em algo ao redor.
Temos pensado bastante a respeito desta “característica
estética” da oscilação das filmagens, apontando-a como uma
potencialidade para experimentarmos outros modos de espectação
do cinema em que o corpo não fique sentado e/ou parado,
apoiando-nos, inclusive, no que vem sendo cada vez mais comum
em exposições de artes visuais.
Neste sentido é que, talvez, seja mais interessante pensarmos
em velocidade das filmagens e não em oscilação/instabilidade,
dando sentido à velocidade tanto a partir do modo como ela
285
aparece nos escritos de Deleuze e Guattari quanto a partir do
próprio acompanhamento empírico dos movimentos corporais das
crianças (e adultos) nas sessões do cineclube.
Por fim, aponto que esse modo de filmar das crianças também
tem uma outra característica instigante, que é vermos quem está
filmando, uma vez que é comum a criança que filma também se filmar
num mesmo plano-sequência em que filma o entorno onde se situa.
Cabe salientar que esta é uma característica completamente ausente
nas filmagens dos adultos, pois eles filmam “de fora”, como
observadores da infância que se efetiva diante deles.
Nas filmagens realizadas pelos adultos, a “horizontalidade
habitual” é reafirmada todo o tempo, seja quando as câmeras
estavam paradas em algum local ou suporte, seja quando estavam
nas mãos dos filmadores (quando há uma ligeira oscilação nas
imagens). São muito raras, por exemplo, filmagens na diagonal da
superfície, enquanto são frequentes as panorâmicas, especialmente
quando o “tema” filmado abarca espaços amplos. Panorâmicas são
raríssimas nas filmagens das crianças, talvez porque realizar um
panorama “responde ao desejo de abarcar e de circunscrever o
espaço” (CASTRO, 2015, p. 28) e este desejo seja mais presente nos
adultos que buscam contextualizar o que filmam “de fora”,
enquanto as crianças, digamos, filmam de dentro da situação
filmada, filmam enquanto vivenciam o que está sendo filmado.
Por outro lado, é justamente o foco nas ações das crianças, a
busca por circunscrever o espaço e a maior estabilidade das
filmagens dos adultos que nos permite acompanharmos os infinitos
movimentos dos corpos das crianças em interações variadas com
as demais trajetórias heterogêneas que compõem o parque da
escola. Foi justamente ao vermos em muitas destas filmagens o
movimento de girar que notamos como ele é insistente e repetitivo
entre as crianças, levando-nos a relacioná-lo com um possível agir,
nos termos de Fernand Deligny (2009; 2015)25.
25Ver o já citado ensaio Geografias giratórias - o agir da espécie e seu acionamento pelo
lugar.
286
Interessante notar que a câmera fixa (fixada no chão ou em
algum outro local ou suporte) foi a mais exercitada como estratégia
para experimentar(-se) outros modos de criação de imagens,
principalmente entre os adultos (ver, por exemplo, filmes como
Fogueira – câmera no chão dentro de uma “coluna” de pneus – e
Fogo26 – câmera colocada no chão próximo a crianças brincando).
Entendemos este tipo de experimentação com câmera fixa como
uma tentativa de reduzir a extrema centralidade daquilo que está
em quadro e explorar as inúmeras possibilidades do extracampo
cinematográfico, uma vez que a fixidez das câmeras impede o
acompanhamento dos personagens que entram e saem do quadro.
As potencialidades de “fazer ver sem mostrar” já aparecem em
alguns filmes e vieram a ser exploradas como estratégia para lidarmos
com alguns “problemas” que o próprio lugar-escola nos colocou, seja
a não identificação da criança que chora (como nos filmes Despedida e
Fogueira), seja na não identificação individual para que ocorra uma
identificação coletiva (a exemplo da utilização das sombras no filme
Magia de brincar). No entanto, o extracampo ainda é pouco utilizado
para criar sensações e outros sentidos em nossos filmes.
Como terceira e última diferença que constitui esta linha,
aponto a que está diretamente vinculada à altura dos corpos-
câmera: a ângulo alto e “de cima para baixo” das filmagens dos
adultos e o ângulo baixo e “frontal” das filmagens das crianças. Ela se
faz bastante previsível quando lembramos serem as crianças o foco
largamente priorizado nas filmagens dos adultos. Sendo eles mais
altos do que as crianças, as filmam como as olham, ainda que de
uma altura um pouco menor, aquela em que as mãos
habitualmente seguram o celular quando filmamos algo mais baixo
que nós, adultos. Mas nem sempre é desta posição superior de
filmagem que os adultos filmam. Em algumas filmagens e filmes
notamos, inclusive, que há uma deliberada busca de filmar na
altura onde estariam os olhos de uma criança e essa altura da
287
filmagem fica mais próxima do chão entre os profissionais que
trabalham com os bebês, chegando mesmo a colocarem mais
frequentemente a câmera no chão.
Quanto às filmagens das crianças, as aspas na palavra “frontal”
são devidas ao fato de, como já apontado, as crianças filmarem na
“velocidade dos seus gestos e corpos” e, se é verdadeiro que há a
tentativa das crianças um pouco maiores (entre 3 e 6 anos) de filmar
frontalmente (conforme elas veem), é verdadeiro também que,
mesmo quando foram crianças maiores as filmadoras, vemos
oscilação no quadro-espaço filmado, no qual chão e céu sempre
podem aparecer (mesmo que para desaparecer em seguida), não
sendo eles os focos das filmagens. Também para os lados o quadro-
espaço oscila nestas filmagens, sendo estas oscilações diretamente
vinculadas aos afetos do entorno que chegam ao corpo-câmera: se
alguém chama seu nome ou grita por qualquer motivo, se um
mosquito ou besouro toca seu braço, se algum barulho ocorre por
ali, se um pássaro ou algo inesperado passa ao seu redor, se...
Crianças são corpos muito mais abertos ao inesperado na medida
mesma que são mais abertos a serem afetadas pelo que lhes chega do
entorno, do que constitui o lugar-escola e é copresente às crianças que
filmam. Por isto, podemos asseverar com certa tranquilidade que as
diferenças entre as filmagens dos adultos e as filmagens das crianças
apontadas nesta última linha intensiva são traços que emergiram do e
no encontro entre cinema e lugar-escola cheio de crianças.
No filme À espera27, realizado durante a pandemia, com a
escola vazia de crianças, temos outros tipos de filmagens realizadas
pelos adultos. Nele caminhamos rápido por alguns locais através
de travellings, subimos e descemos, vendo céu e chão, sentados no
balanço. Neste filme, a escola aparece plena das outras trajetórias
heterogêneas que compõem o lugar-escola, tais como árvores,
288
brinquedos grandes e pequenos, flores, paredes e pátios, pinturas
e desenhos, carteiras empilhadas atrás das portas de vidro...
Estas “coisas da escola”, trajetórias não humanas que
convivem conosco na CEI Regente Feijó e na CEI Cha Il Sun, estão
no filme para dar expressão a uma grande ausência, a das crianças
(ainda que, em certo momento do filme, ouçamos risos e conversas
delas enquanto vemos o parque sem criança alguma). Neste filme,
adentramos nas escolas como um grande extracampo onde o que é
mais sensível não é o que está no plano do visível, a escola vazia,
mas sim aquilo a que isso remete: as crianças, invisíveis no filme e
isoladas em suas casas.
Forçados pelas novas necessidades para se fazer cinema na
escola durante a pandemia, os bolsistas cineastas seguem
inventando outros possíveis, na medida mesma em que o
impossível se torna nítido: não tem sido possível fazer cinema com
as crianças na escola. No último filme citado um novo possível
emergiu do esgotamento, durante a pandemia, de todas as
possibilidades de fazer cinema com e para as crianças; não havendo
mais possíveis, inventamos um novo possível: fazer cinema na
escola sem as crianças.
Assim seguimos, isolados no plano corporal-extensivo, e cada
vez mais próximos no plano intensivo e coletivo, criado pelo
comum que temos vivenciado no encontro entre cinema e escola de
Educação Infantil.
Continuidades (im)possíveis
289
reduzindo a parcela do agir e ampliando a do fazer em seus modos de
produzir cinema no encontro com o lugar-escola.
No entanto, esta “condição autista” permanece muito presente
entre as crianças, mesmo as maiores. Nas experiências já realizadas,
as crianças-corpos-câmera seguem se relacionando com o entorno
como um “encontro aberto”, realizando seus traçados a partir
daquilo que afeta seus corpos no momento em que têm uma câmera
acoplada a eles: “vou filmar no labirinto”, “vou filmar a fulana no
escorregador”, “vou filmar...”. Este “vou filmar...” emerge quase
sempre quando a câmera acaba de ser colocada em suas mãos. Ou
seja, a decisão do que e como filmar não antecede a câmera, mas é
disparada pelo contato dela com o corpo da criança, pela efetiva
possibilidade de filmar.
Isso faz com que seja nas filmagens das crianças que temos mais
nitidamente a coincidência dos dois mapas, o dos afetos e o dos
trajetos, refletidos nas filmagens: “os dois mapas, dos trajetos e dos
afectos, remetem um ao outro” (DELEUZE, 1997, p. 88), lembrando
sempre que “o trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que
percorrem um meio mas com a subjetividade do próprio meio, uma
vez que este se reflete naqueles que o percorrem” (DELEUZE, 1997, p.
83). Nesse sentido, o lugar-escola – o meio – ganha expressão nas
filmagens e filmes ali realizados, os quais apontam quais as “coisas”
que mais afetam os humanos que o habitam. Acompanhar os trajetos
realizados pelas imagens é impregnar-se de tudo aquilo que afetou
adultos e crianças em seus encontros com o entorno escolar, mediados
pelas câmeras acopladas aos seus corpos.
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