Tese Estrangeiras Do Proprio Pais Daniela Araujo Final
Tese Estrangeiras Do Proprio Pais Daniela Araujo Final
Tese Estrangeiras Do Proprio Pais Daniela Araujo Final
Rio de Janeiro
Dezembro de 2023
DANIELA TORRES DE ARAÚJO
Rio de Janeiro
2023
BANCA EXAMINADORA
120 f.
CDD – 796.334081
This work elaborates a panorama on the media narratives about the female
presence in the football fans of the Rio de Janeiro stadiums, between the
decades of 1910 and 1950. The study was carried out through the search for the
terms “torcida” and filtered by the gender represented in the newspapers Jornal
do Brasil, O Paiz, Jornal dos Sports and the illustrated magazine Vida Sportiva:
hebdomadário esportivo e vida mundana. The temporal space, although
extensive, is important to understand the change in the representations of female
fans in the football space and how such narratives created an impact on the fans’
memory. The work sheds light on the intersectional discussion of gender, class,
and race in the sports universe from the actor-fan binomial, since the football
spectator has an active participation in the sports spectacle. From a panoramic
and diachronic view of the events in the period, it is possible to identify the
transition from the ideal of female cheering to male cheering. In the first decades,
women were the greatest representative of the performance model in the stands.
After the growth, the diversification of social classes, and the prohibition of
football practice, the female presence began to be characterized as strange to
the environment.
Figura 1: Presença das mulheres nas festas realizadas por clubes (JB, 1920,
p11). ................................................................................................................................27
Figura 6: Fotolegenda da partida do A.A palmeiras e sua torcida (VS, 918, p. 30)
.........................................................................................................................................49
Figura 13: O chefe da torcida feminina promete festa na arquibancada (JS, 1941,
p. 5) .................................................................................................................................94
Figura 14: Torcida do Flamengo retratada no Jornal dos Sports (JS, 1941, p. 1)
.........................................................................................................................................96
Figura 15: Narrativa sobre uma partida de futebol de rua (Jornal do Brasil, 1947,
p. 33) ...............................................................................................................................97
Figura 16: Propaganda do programa de rádio voltada para torcida (Jornal dos
Sports, 1942, p. 6) ......................................................................................................101
Figura 19: Olympio Pio, ilustre torcedor da Legião da Vitória (JS, 1942, p. 6) .106
Figura 20: Olympio Pio recebe escudo do Vasco ao contribuir com 2 mil carteiras
para concurso (JS, 1937, p. 3) .................................................................................107
Figura 21: João de Lucca e Olympio Pio organizam caravana da torcida do Vasco
(JS, 1940, p.9) .............................................................................................................108
Lista de Abreviaturas e Siglas
JB Jornal do Brasil
JS Jornal dos Sports
Mlle. Mademoiselle
OP O Paiz
TOF Torcida Organizada do Fluminense
TOV Torcida Organizada do Vasco
VS Vida Sportiva: Hebdomadario Sportivo e Mundano
Sumário
Introdução .................................................................................................14
Capítulo 1 ..................................................................................................22
Capítulo 2 ..................................................................................................37
Capítulo 3 ..................................................................................................72
Capítulo 4 ..................................................................................................89
14
pertencente ao grupo ao qual se aproxima, mesmo que esse sentimento de
não-pertencimento seja referente a condições produzidas pela sociedade
moderna e não somente a mudança de país e cultura. Essa condição de não
pertencimento permeia as relações dentro do meio, no caso pesquisado o
futebolístico, e solidifica as tensões de poder. Assim, a mulher é vista e
considerada como estranha ao universo do futebol, mesmo que essa esteja
presente no esporte desde a sua introdução e consolidação no território
nacional.
Portanto, a mulher torcedora sofre com a estigmatização, como se fosse
invasora de um espaço masculino por natureza. Cabe ressaltar que estigma é
um conceito antropológico, definido por Erving Goffman, no qual uma marca
nas características físicas ou sociais do indivíduo “constitui uma discrepância
específica entre a identidade social virtual e a identidade social real” (1988, p.
06). Isto é, no caso da torcedora, a marca do gênero é uma discrepância entre
a identidade social virtual e a real na categoria de torcedores de futebol.
Outro conceito importante para o estudo da participação feminina no
futebol é o gênero. Afinal, o que é ser mulher? O que é ser torcedora? Quais
as características e tensões permeiam a construção dessa identidade social?
Qual é a relação de poder que hierarquiza os sujeitos fãs de futebol? Mais que
buscar respostas para tais questões, o uso da categoria de gênero busca
“investigar o que a colonialidade de gênero apagou, destruiu ou invisibilizou”,
tal qual afirma Gomes (2018).
Leda Maria da Costa assinala que as mulheres são constantemente
dissociadas do futebol e, sendo assim, as torcedoras “carecem de
credibilidade” (COSTA, 2021, p.4). É necessário administrar sua identidade de
gênero com a sua identificação com o esporte. Ou seja, não raramente a
identidade de fã se sobrepõe à feminilidade da mulher torcedora em função do
ambiente masculino ao qual está inserido o futebol na sociedade brasileira no
século XXI. O estádio de futebol, especialmente no contexto brasileiro, marca
o ambiente no qual aspectos da virilidade, violência e intimidação caracterizam
a masculinidade esperada no espaço. Para o senso comum, é onde se
aprende a ser homem de verdade.
Entretanto, desde a introdução do futebol no Brasil, a figura feminina se
fez presente. A crônica esportiva deu conta da presença do “belo sexo” nas
15
partidas do primeiro campeonato de futebol, ocorrido em 1895, como afirma
Marcos Guterman (2009). Na década de 1920, o cronista Henrique Coelho
Neto escreveu uma crônica que denominava as mulheres, presentes na
partida de futebol do Fluminense Football Club, de torcedoras. Pois estas
torciam as luvas e os lenços devido ao nervosismo do jogo e às altas
temperaturas do Rio de Janeiro, dando início ao uso da palavra torcida como
designação para os fãs do esporte no Brasil (MALAIA, 2012).
A presença feminina nos esportes pode ser comprovada mesmo antes
do surgimento do futebol. Na transição do século XIX para o século XX, Victor
Melo (2007) aponta para o envolvimento de mulheres com os esportes como
turfe, remo, atletismo, tiro ao alvo e cricket. “De qualquer maneira, é importante
registrar que desde o início encontramos a possibilidade de envolvimento
feminino no âmbito da prática esportiva” (MELO, 2007, p. 132).
No entanto, como torcedora do Club de Regatas Vasco da Gama e
pesquisadora do período de presidência de Dulce Rosalina na Torcida
Organizada o Vasco (TOV), questiono a figura feminina como estranha ao
ambiente esportivo. Afinal, como uma mulher consegue ser presidente e líder
de torcida já na década de 1950? Como outras mulheres, igualmente
importantes, são referenciadas na história de outros clubes brasileiros?
No Rio de Janeiro, os quatro clubes com maior número de adeptos na
atualidade, por exemplo, têm mulheres como torcedores-símbolos ao longo de
suas histórias, Tia Dulce, do Vasco da Gama, Dona Chiquitota, do Botafogo,
Maria de Lourdes Pereira, a Vovó Tricolor, do Fluminense e Dona Zica, do
Flamengo. Além destas figuras celebradas, tantas outras mulheres
frequentaram os estádios brasileiros apoiando seu time de paixão e com forte
envolvimento com o clube. É preciso reconstituir a memória destas mulheres
e tornar a torcedora centro da observação e vivência do futebol.
Recontar a história do esporte mais popular do Brasil através da figura
das mulheres torcedoras é importante para debater a constante deslegitimação
do lugar de fala feminino em face da masculinidade dominante cultivada pelo
universo futebolístico nacional. Além disso, o questionamento do lugar da
torcedora na hierarquia do torcer brasileiro e o desenvolvimento da sua
participação ao longo os anos também refletem sobrea realidade das
profissionais de comunicação esportiva. Isto é, retirar as torcedoras do
16
ostracismo histórico ao qual são confinadas também reverbera na revisão do
lugar de fala da mulher profissional no ambiente futebolístico. Com efeito, a
memória destas mulheres transcende a sua existência e são referência na luta
pela legitimação do espaço das torcedoras contemporâneas.
A pesquisa tem a intenção de revisar o olhar sobre a história do futebol
através da categoria da mulher-torcedora, desde o período de consolidação
do esporte no Brasil, na década de 1910 até a década de 1950, momento de
consolidação do profissionalismo esportivo e, em paralelo, de ascensão da
primeira mulher líder de torcida no Brasil, tia Dulce Rosalina, líder da Torcida
Organizada do Vasco (TOV). O intuito é uma reinterpretação do papel social
destas na hierarquia do torcer, de acordo com o momento ao qual estão
inseridas. Portanto, propõe-se investigar os pontos de transição e apagamento
da visibilidade femininas nas arquibancadas.
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é raro perceber reportagens contemporâneas retratando como regra a falta de
conhecimento e envolvimento emocional do público feminino e como
extraordinária a paixão das fãs de futebol. Carrie Dunn (2014) narra em sua
pesquisa que a mídia esportiva presume que a audiência é masculina e assim
a sua própria experiência como torcedora não é refletida. Há um forte
investimento da sociedade para que os indivíduos moldem seus gostos de
acordo com o seu gênero. A mídia esportiva e a torcida, portanto, têm uma
relação de ressonância e reciprocidade social de seus modos.
Isto é, há um sistema de transferência e reprodução do modo torcedor
através da imprensa esportiva, que por sua vez reverbera na própria torcida de
futebol. Ou seja, o retrato do modo de torcer, comumente exaltando a virilidade
e a competitividade agressiva como ideal de masculinidade esperada no
esporte, impacta nas práticas e representações do torcedor, perpetuando os
valores retratados.
O trabalho visa preencher uma lacuna cada vez mais desvelada na
Academia, como no trabalho elaborado por Nathália Pessanha, Arquibancada
feminina: relações de gênero e formas de ser torcedora nas arquibancadas do
Rio de Janeiro (2020), a fim de traçar o desenvolvimento do envolvimento da
mulher torcedores com o esporte e a relação com os movimentos sociais de
legitimação da luta feminina.
O presente trabalho divide-se em quatro capítulos. No primeiro,
tecemos uma análise sobre o termo “estrangeira”, à luz dos conceitos
elaborados por Simmel (1983) e Schutz (2010). Entendemos como a presença
feminina no campo esportivo, ao longo dos anos, foi se construindo como
estranha ao grupo determinado como homogêneo e dominante.
No segundo capítulo, debruçamo-nos sobre as narrativas esportivas a
cerca da presença feminina nos estádios de futebol do Rio de Janeiro, nas
décadas de 1910 e 1920. Podemos observar que nesse momento a
participação das mulheres nas torcidas não causa grande desconforto e, por
vezes, é enaltecido pelos periódicos esportivos. No entanto, essa aparente
aceitabilidade é limitada pela figura masculina.
No terceiro capítulo, podemos perceber como as mudanças ocorridas
no futebol e na sociedade brasileira, nas décadas de 1920 e 1930, impactam
nas narrativas sobre mulheres torcedoras. Há uma significativa diminuição das
18
suas inserções nos períodicos esportivos e a sua performance passa a não
mais representar o ideal de torcida esperado nas arquibancadas.
Finalmente, no quarto e último capítulo observamos o quanto a
proibição das mulheres de praticarem diversas modalidades esportivas, as
imposições sociais, bem como o agigantamento e o desenvolvimento dos
modos de torcer, impactou no reforço histórico da ideia de estrangeiras ou na
representação de estranhas ao ambiente futebolístico.
Isso posto, investigar a relação da mulher com o esporte à luz do
binômio inclusão/exclusão se faz importante para entendermos os
investimentos da sociedade em designar os papeis dentro da sua hierarquia e
em contribuir com a luta feminina pela legitimação de seu espaço ante o
predomínio masculino.
Contexto Metodológico
19
“torcida” divididos entre as décadas no espaço de tempo entre 1910 e 1950.
Ou seja, a cada dez anos, foram observadas as narrativas sobre torcida e
coletados aqueles que fazem referência ao esporte e ao gênero feminino.
A tese busca correlacionar o papel feminino no futebol com os eventos
históricos ocorridos no Brasil durante o período observado e com o
desenvolvimento do jornalismo esportivo nos veículos de comunicação. Para
isso, serão analisadas as inserções sobre as mulheres torcedoras nos
periódicos: Jornal do Brasil, O Paiz, Vida Sportiva: hebdomadario sportivo e
mundano e Jornal dos Sports.
A escolha de tais periódicos é centrada na tentativa de abarcar
diferentes públicos e linhas editoriais dos veículos de comunicação do período
estudado. Importante ressaltar que, apesar da premissa de objetividade e
isenção do jornalismo, cada publicação tem seu viés editorial que direciona o
conteúdo produzido de acordo com o público a ser atingido. Assim como afirma
Tania Regina de Luca:
20
de sua redação. No entanto, torna-se importante para a temática, pois teve a
colaboração de grandes nomes da literatura e manteve uma forte ligação com
o posicionamento político da Primeira República (LEAL, 2001). Além disso,
durante o período de 1910 e 1930, o jornal tem impacto na formação do
imaginário do ideal torcedor. Em suas colunas esportivas é possível perceber
grandes inserções sobre o modo de apoiar nas arquibancadas e a atuação das
mulheres nas torcidas de futebol.
Assim como O Paiz, Vida Sportiva: hebdomadario sportivo e mundano
também tem uma duração efêmera. O semanário ilustrado tem pouco mais de
200 edições e encerra em 1922. No entanto, é uma das primeiras publicações
voltadas especificamente para o universo esportivo. Ademais, as revistas
ilustradas são, em sua maioria, publicações voltadas para o público feminino.
O Vida Sportiva, já no editorial da primeira edição, traz a imagem de Lydia
Cardoso de Oliveira, filha do ministro Carso de Oliveira, e afirma “corridas,
sports, de toda a espécie, absorvem e atraem as nossas gentis patrícias” (VS,
1917, p. 3).
O último periódico escolhido para análise é o Jornal dos Sports, que
circulou entre as décadas de 1930 e 1960. Para os amantes de esportes e os
pesquisadores do campo, o jornal das páginas cor de rosa é uma importante
fonte de estudos. O diário de notícias teve como seu principal proprietário o
ilustre Mario Filho e incentivou a participação das torcidas e das mulheres no
mundo esportivo. Como no “Duelo de torcidas”, competição de festas nas
arquibancadas enquanto os times se enfrentavam em campo.
Por fim, é importante registrar que a divisão por décadas ao longo do
trabalho é um reflexo da ferramenta metodológica e expressão do processo de
arqueologia da história do torcer feminino no Brasil. Para isso, a divisão
temporal dos capítulos dá a dimensão do traço da linha do tempo do
desenvolvimento da participação das mulheres na torcida de futebol. No
entanto, os eventos ocorridos em determinado período não se esgotam com o
tempo. Ou seja, a ocorrência de um fato em 1910 não se limita a esse espaço
de tempo. Ao longo da história, há processos de avanços e limitações
inerentes às disputas e rupturas de poder na sociedade moderna.
21
Capítulo 1
22
Aos homens se procura representar a partir de uma imagem de ação e
poder, figuras aliás bem adequadas e características do novo modelo
de prática esportiva. Já as mulheres estavam associadas à família, à
casa e ao lazer, neste apenas como expectadoras (p.155).
24
Mendonça (ARAÚJO, 2022).
Vilma Piedade sublinha que “lugar de fala é lugar de pertencimento”
(PIEDADE, 2017, p. 17). Sendo assim, a partir do momento em que a mulher
não tem a legitimidade para se auto definir como indivíduo do ambiente
futebolístico, não pode ser considerada membro do grupo social em questão.
Sua figura está à margem do perfil idealizado.
Dessa forma, a mulher é uma categoria, no campo futebolístico, que
“está fisicamente perto, mas simbolicamente distante” (MARIZ, 1988, p.86).
Isto é, tal qual Simmel, sociólogo alemão teorizador da “cultura feminina” no
início do século XX, caracteriza a categoria “estrangeiro”, pode-se dizer que
as mulheres torcedoras são integrantes próprias do grupo futebolístico que não
estão na centralidade das representações sociais: “São elementos que se, de
um lado, são imanentes e têm uma posição de membros, por outro lado estão
fora dele e o confrontam” (SIMMEL, 1983, p. 183).
Também podemos reconhecer semelhanças entre as torcedoras e os
estrangeiros, a partir da visão do filósofo alemão Alfred Schutz, que define
como quem “tenta ser aceito permanentemente ou pelo menos tolerado pelo
grupo do qual se aproxima” (SCHUTZ, 1971 apud MARIZ, 1988, p. 86). Desta
maneira, percebemos que a mulher torcedora está constantemente
reafirmando a sua identidade perante o grupo caracterizado a partir de
aspectos masculinizantes de identificação.
Dessa maneira, para entender tal pensamento, que norteará todo o
trabalho, precisamos recorrer aos conceitos de alteridade e de mulher
correlacionados com a ideia de estrangeiro propriamente dita.
Resumidamente, nas discussões sociológicas, esses três pilares dizem
respeito a indivíduos que não fazem parte do extrato social dominante. Isto é,
são aquelas que fazem parte das minorias sociais, indivíduos que,
historicamente, são alijados e exilados do protagonismo de suas vivências em
função do outro. Desse modo, sofrem diversos fatores de opressão social.
25
1.1 . Estrangeira nos territórios do torcer: distanciamentos e
adaptabilidade da mulher no campo esportivo
26
as mulheres sejam referenciadas como figuras extraordinárias em
determinados universos sociais. Por exemplo, a diferenciação entre jogadores
e jogadoras de futebol nos mostra como a figura feminina ainda é observada
como estranha no campo esportivo, principalmente relacionado a sua prática.
Simone de Beauvoir (1908 – 1986), em O Segundo Sexo, caracterizou a
mulher como “o outro” (2014, p.183). Ou seja, a sua identificação na sociedade
é a partir da relação com o homem. Nela, o masculino é absoluto em si e
autônomo em suas ações e pensamentos: “A mulher determina-se e diferencia-
se em relação ao homem, e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial
perante o essencial” (DE BEAUVOIR, 2014, p.183). Em outras palavras, a
identidade feminina é caracterizada a partir de e em oposição à identidade
masculina.
27
elegante sem deixar de ser enérgico para os demais presentes.
Esse mesmo viés narrativo na transcrição da reportagem sobre um jogo
entre Botafogo e Flamengo, publicada pelo Vida Sportiva, em 21 de agosto de
1920, pode ser observado a seguir:
28
Porém, para além dos aspectos físicos enaltecidos pela narrativa, as
mulheres possuíam performances torcedoras ativas. A exemplo dos seus
gestos ou dos seus gritos de encorajamento ou de crítica aos jogadores em
campo. Isso aparece mesmo em aspectos tidos por característicos dos
torcedores homens, como podemos ver na charge (figura 2), publicada pelo
Vida Sportiva em 4 de setembro de 1920.
29
do que se entender por torcedor. Aspectos de feminilidade são interpretados e
colocados à margem do cenário esportivo.
A mulher pode até se vincular ao grupo social, mas não comunga ethos
e o padrão cultural do futebol. Sua presença, quando aceita no grupo
futebolístico, grosso modo tem por fim satisfazer o olhar masculino, corroborar
suas expectativas estéticas. Com efeito, a torcedora passa a internalizar a
lógica hegemônica masculinizante das arquibancadas de futebol e a adaptar
seu comportamento para ser acolhida no grupo.
30
forma:
31
Destarte, a mulher torcedora de futebol também pode ser considerada
uma estrangeira dentro de um grupo ou de sua sociedade de origem.
Conquanto faça parte ativa das torcidas, as mulheres são lidas como estranhas
ao ambiente. Para serem aceitas e para ser parte integrante do grupo torcedor,
ela precisa passar por uma série de adaptações contínuas. Afinal, as
expressões e suas interpretações dentro do universo esportivo estão em
constante disputa.
A presença nas arquibancadas de futebol não garante ao gênero
feminino a sua fácil aceitação no universo esportivo. Sua participação é
estimulada e exaltada quando obedece aos olhares masculinos. Ou seja,
embora suas atitudes e seus sentimentos como torcedora se assemelham ao
esperado do público das arquibancadas de futebol, a mulher é representada a
partir de critérios de beleza e graciosidade. Comparada a uma estrangeira, não
pertencente ao território. Eis uma passagem jornalística elucidativa:
32
conforme afirma Schutz (2010, p. 124). Inserida no universo esportivo, desde a
introdução do futebol no Brasil, a sua presença obedece a esquemas e
orientações que limitam a sua performance. Abdica de elementos da sua
feminilidade para adaptar-se ao perfil esperado de torcida. Entretanto, a sua
figura nesse espaço aciona uma série de significados que ultrapassam a sua
ação como torcedora e, de certa forma, a limitam dentro do universo das
arquibancadas.
33
estabelecido torna a mulher capaz de distanciar-se para criar as condições
necessárias para a transformação, ao menos parcial, do conhecimento habitual:
34
Antes do jogo Flamengo versus Bangu, no campo da rua
Paysandu, houve uma cerimonia tocante, que reflectiu a saudade de
quantos deixarão, em breve, aquella veterana praça de sports.
Desde 1916 o Flamengo vem actuando naquelle campo, à
sombra daquellas arvores acolhedoras.
Agora, o rubro negro se prepara para deixar o gramado de
Paysandu, jungido, porém, a uma grande saudade.
Succedem-se, por isso, entre os rubro negros, manifestações de
amizade ao ambiente que viu a fama de seu club crescer.
Por ocasição do match com o Bangu, antes dos teams entrarem
para a luta, a Phalange Feminina do Flamengo, representada pela
doutora Anna Teixeira Leite e senhoritas, offereceram linda flamula aos
jogadores de football.
Foi o presente da saudade... Sabendo que vão deixar Paysandu,
o elemento feminino do Flamengo quiz demonstrar, assim , o seu bem
querer pela moçada que responde pelos destinos athleticos do rubro
negro.
A doutora Anna falou em nome da Phalange Feminina e o sr.
Milton Caldas, director de football do club, respondeu calorosamente,
nester termos:
“Exma. Sra. Dra. Anna Teixeira Leite! Brava e encantadora
Phalange Feminina fo Flamengo! Gentis senhoritas!
Nesta occasião em que é profunda a minha emoção, cumpre-
me dizer-vos que guadaremos com o mesmo carinho com que o pai
guarda o retrato de um filho estremecido, com o mesmo sentimento com
que se conserva e guarda um bem ou dom de um ente querido, com a
mesma devoção com que o crente guarda a imagem do santo de sua
devoção, esta flammula – a flammula rubro negra que sempre tremulou
em nossos corações, como symbolo de arduas jornafas, de esforços
titanicos, prellos gigantescos e triumphos brilhantes!
Conserval-a-emos bem perto de nós, bem junto ao nosso peito,
tão junto ao nosso corpo quanto as mesmas camisas em listras negras
e merbelhas que envergamos em dias de memoraveis pelejas!
Não a abandonaremos nunca, durará comnosco o quanto nos
durar a vida.
Leval-a-emos. Havemos de a exaltar por toda parte,
ufanosamente, não por orgulho nosso, mas por orgulho della, expressão
que é da nergia soberna da mocidade flamenga, oruhlho de um passado
glorioso, de um presente digno, de um porvir promissor e, mais do que
isso, um pedaço d’alma da mulher flamenga, da Phalange Feminina do
Flamengo, esta que nunca nos tem faltado nas duras horas de peleja,
que sempre tem compartilhado das nossas glorias, das nossas honras
e que nos temservido de estimulo em todos os transes da nossa vida
sportiva.
Jovens componentes da Phalange Feminina do Flamengo!
Abnegadas irmãs de ideal, que enchis de encanto, brilho e
enthusuasmo, todos os certamens do nosso gremio! Companheiras
incansaveis de luta, podeis estar certas de que esta flammula será
sagrada para nós; não descuraremos um momento, siquer, de alto, bem
alto, fazel-a tremular no mastro da victoria, para exemplo da mocidade,
para orgulho do Flamengo, para maior gloria do sport nacional.
Recebei, pois, distinctas senhortias, as expressões do nosso
profundo respeito e admiração pelo muito que já fizestes pelo nosso
Flamengo, e as demonstrações mais sinceras do nosso
reconhecimento, da nossa gratidão pelo lindo e generoso gesto de
35
agora, pela offerta da flammula – o melhor presente que podereis
offerecer.
Ao Flamengo, hurrah!
Á Phalange Feminina, hurrah!” (JS, 1932, p. 6).
36
Capítulo 2
37
transformações na conformação da sociedade moderna brasileira, ainda que
uma série de resiliências tenha permanecido do regime político anterior. Trata-
se de um período de implantação do futebol no Brasil, em que a economia
brasileira principiava seu processo urbano-industrial – em especial as indústrias
têxteis e alimentícias – e ainda se baseava na produção agrícola, notadamente
na exportação do café, entre outros bens primários. Segundo José Miguel Arias
Neto (2003), “o binômio café-indústria” (p. 195), a despeito de ter raízes mais
profundas, caracteriza o processo de desenvolvimento econômico nacional. A
política emissionista de papel moeda e a alta na exportação da cafeicultura
criaram condições favoráveis para o desenvolvimento industrial no país.
Com efeito, o crescimento urbano também apresentou uma intensificação,
especialmente na Capital Federal, Rio de Janeiro, e em São Paulo (NETO,
2003), principalmente com a inovação nos meios de transporte, por meio das
linhas de bondes (à tração animal e posteriormente elétricos), investimento em
comércios e o estabelecimento de manufaturas, ainda que rudimentares.
Segundo Humberto Fernandes Machado:
38
festa. Em terras cariocas, o jovem Oscar Cox, retornando de estudos na cidade
de Lausanne, Suíça, traz consigo a experiência do contato com o futebol. Junto
com Victor Etchegaray, torna-se um dos influenciadores da prática do esporte
bretão no Rio de Janeiro, em 1897, promove jogos e agita a juventude na então
capital federal, apesar de não receber a atribuição de introdutor dessa
modalidade esportiva no país.
Para o historiador Leonardo Pereira:
39
período. A imprensa, no início do século XX, voltava-se para a discussão política
provocada pela ainda acalorada divisão dos periódicos entre republicanos e
defensores do antigo regime imperial (SODRÉ, 1966).
40
característica que remete às modalidades de seus antecessores. O futebol se
difunde no Rio de Janeiro, junto com natação, ciclismo e atletismo, já inspirado
pelos modelos construídos pelas touradas, pelo remo e pelo turfe anteriormente
(MELO, 2012). Isso sucede tanto na organização do evento, quanto no
comportamento esperado por seus espectadores.
Nas primeiras décadas do século XIX, a modalidade popular consolidada
no Brasil era a tourada. Com a utilização do esporte como entretenimento, não
só em datas festivas, notadamente festividades católicas, foram construídas
arenas com vendas de ingressos e valores diferenciados a partir do conforto das
arquibancadas (MELO, 2012). Segundo Victor Melo (2012), as touradas
alternavam períodos de popularidade e grande desinteresse, principalmente
devido aos atos de desordem dos espectadores presentes. O público, a partir do
momento que pagava por um espetáculo e apostava dinheiro nele, se via no
direito de cobrar por maior qualidade e assim causavam brigas e destruição das
estruturas da arena.
As touradas foram, no decorrer do século XX, substituídas pelas corridas
de cavalo (turfe). Muito embora ainda atraísse um grande público, as touradas
sofriam com a conjuntura econômica e as mudanças estruturais e sociais da
cidade do Rio de Janeiro. Com os ares de modernidade chegando à capital
urbanizada, atividades que remetiam ao rural perderam popularidade (MELO,
2012). O marco dessa mudança do status de esporte mais popular, segundo
Victor Melo (2007), é a criação em 1849 do Club de Corridas.
O turfe chega ao cenário carioca ainda nas primeiras décadas do século
XIX “como mais uma atividade civilizadora” (MASCARENHAS, 1999, p. 28)
promovida pelas elites e pela colônia inglesa. De 1850 em diante, as corridas
começam a ganhar notoriedade inclusive nos periódicos. O evento de
inauguração do Derby Club, situado onde posteriormente foi construído o
Estádio Mario Filho – Maracanã –, foi assistido por cerca de 8 mil pessoas, por
exemplo, com corridas que contariam com a presença de D. Pedro II na
assistência. Melo (2012) postula que a “sua inauguração parece ter sido um dos
grandes acontecimentos sociais do ano” (p. 30). De fato, o sucesso de público
do Derby Club, creditado principalmente pela boa organização dos eventos
esportivos e por sua privilegiada localização, também retrata o crescimento do
turfe como o esporte de expressão do período.
41
Outro indício da importância do turfe na sociedade brasileira,
principalmente a da capital, Rio de Janeiro, é a associação do esporte com uma
prática de especulação econômica, o Encilhamento. A referência anedótica ao
ponto de partida dos cavalos nas corridas diz respeito à política de emissão de
capital e ações de empresas, existentes praticamente só no papel (NETO, 2003;
SEVCENKO, 1998).
O espaço para a realização das provas turfistas carregava as
características da distinção social a partir dos valores dos ingressos, os mais
caros, destinados à elite, davam acesso a lugares mais confortáveis. O turfe
inaugura uma prática relevante para o modo de torcer do futebol, a associação
aos clubes esportivos. Essa prática permite que membros da alta sociedade
tenha privilégios e suas esposas e filhas frequentem às instalações das
agremiações.
42
Figura 5: JB cita a presença da torcida na competição de turfe em 1915 (JB, 1915, p.6)
43
vigorando com mais força o conceito da missão precípua da mulher: ser
educada, ser progenitora e zelar por sua família.
O remo, por sua vez, eliminou as apostas e reformulou uma série de
conceitos e práticas esportivas. Privilegiado pela Reforma Pereira Passos (1902
– 1906), a modalidade náutica tornou-se um importante evento social, com a
reunião de enormes públicos nas enseadas e à beira-mar. Isso decorreu,
principalmente, da mudança do comportamento social, da maior frequência dos
habitantes à praia, das recomendações e prescrições médicas para o banho de
mar, da popularização da teoria higienista e do embelezamento da orla da cidade
(MASCARENHAS, 1999). Para Victor Andrade de Melo:
O Aspecto do Cais
Não se observava a concorrência memorável da regata de
abertura da temporada, dedicada pelo Natação ao Sr. General Julio
Roca, Ministro Plenipotenciário da República Argentina no Brasil.
Entretanto, o extenso cais abrigava espessos círculos de pessoas
debruçadas umas sobre a amurada, outras nas pontas dos pés para
melhor observar as guarnições, vinham céleres em demanda das balizas
de chegada.
Sobre esta facha multicor e ondulante de povo, baloiçavam-se
diversas filas de bandeiras e folhagens que eram o adorno fixo.
44
Na estrada de cavaleiros e nos jardins daquele trecho da Avenida
Beira-Mar, o número dos que se transportaram até Botafogo para assistir
às regatas era considerável.
Ali predominavam as famílias em passeio e o variado matiz dos
trajes femininos davam ao local lindíssimo aspecto (JB, 26 de agosto
de 1912. Grifo nosso).
45
No Remo, percebe-se realmente uma pequena participação direta de
mulheres. Como dirigentes, algumas sportwoman chegaram a ocupar o
cargo de diretoras sociais ou de arquibancadas. Não se tratava dos
cargos mais importantes dos clubes e regatas, mas há que se ressaltar
que, de qualquer forma, um novo passo tinha sido dado. Deve-se
destacar que anteriormente sequer existia um termo para designar as
mulheres envolvidas com o esporte, como o sportman, utilizado para
designar os aficionados masculinos. Se um novo termo chega aos jornais
e revistas, isso pode ser um indicador de que havia uma nova
sensibilidade acerca dos papéis femininos (MELO, 2007, p. 137-138).
46
transformações políticas, urbanas e comportamentais que marcou a chamada
modernidade periférica no país. Uma das primeiras medidas do governo
republicano foi a abertura da economia ao capital estrangeiro e uma corrida para
a industrialização e modernização do país (SEVCENKO, 1998). Essas e outras
mudanças provenientes da Segunda Revolução Industrial, ou Revolução
Científico-Tecnológica, impactaram diretamente no comportamento social.
Nicolau Sevcenko, em História da vida privada no Brasil- volume 03, afirma que:
47
carioca. Essa buscava aproximar-se do ideal de modernidade europeia, em
particular a francesa, não somente na arquitetura urbanista. Com isso, há uma
construção social de novas práticas consideradas de bom gosto e requinte nas
classes altas, a impactar diretamente a inserção e a participação feminina na
sociedade e nas suas representações (VOKS, 2012).
A velocidade das transformações do novo século também surtiu efeitos
nos padrões de comunicabilidade. “Durante a toda a Primeira República (1889 -
1930) observa-se o início da implantação da moderna comunicação de massa
no país” (BARBOSA, 2013, p. 236). Isto é, neste período há uma expansão do
público metropolitano, com a consolidação das novas tecnologias de
comunicação. Citem-se o uso do telégrafo para a transmissão de mensagens em
longas distâncias e a utilização das imagens fotográficas como aporte da
realidade narrada pelos periódicos (BARBOSA, 2013).
A década de 1910 na cidade do Rio assiste a um crescente número de
profissionais da fotografia, bem como de publicações impressas, que se utilizam
desse aporte imagético para uma ampliação da possibilidade de ampliação do
seu público. Os avanços tecnológicos, facultados pela abertura econômica no
Brasil e pelas transformações oriundas da Revolução Científico-Tecnológica,
também influenciam a forma como o leitor observa o mundo ao seu redor. O
trabalho não abarca a história da fotografia e da leitura no Rio de Janeiro, mas
estes fatos impelem a um novo subsídio para o comportamento social e para o
desenvolvimento das narrativas pertinentes aos periódicos da época.
Para Marialva Barbosa (2013), graças à expansão das tecnologias do
século XX surge o “observador moderno” (p.227). Ou por outra, o leitor começa
a ser capaz de decodificar a mensagem através da fotografia, da leitura e da
oralidade, ampliando a capacidade de leitura dos indivíduos. O recurso
fotográfico não só amplia as possibilidades de leitura do indivíduo, como também
contribui para o alargamento público atingido. Uma vez que a fotografia
independe do letramento do leitor para a sua compreensão.
Mesmo que lhe faltem informações pertinentes ao acontecimento
retratado, a observação da imagem iconográfica impressa já suscita no
observador a mensagem a ser transmitida. O texto escrito, portanto, passa a ser
acessório em determinadas produções impressas, tais como as fotolegendas.
Bem como afirma Marialva Barbosa (2013), ao descrever que as máquinas de
48
fotografar substituíram o registro de momentos que antes só poderiam ser feitos
através do relato escrito. Por conseguinte, só poderia ser decodificado por um
público seleto e letrado.
Figura 6: Fotolegenda da partida do A.A palmeiras e sua torcida (VS, 918, p. 30)
49
1917 e 1922 e, de acordo com a ficha catalográfica do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) 2, editada por Guimarães & C. Apesar do seu curto
tempo de circulação, o período nos indica a crescente expansão da importância
do jornalismo esportivo até alcançar seu ápice no processo de consolidação com
a criação do Jornal dos Sports em 1931, a observar nos próximos capítulos. Além
disso, a revista semanal também dá indícios do desenvolvimento feminino e da
sua correlação com a participação esportiva. Já na primeira edição de Vida
Sportiva podemos notar que a publicação tende a atingir tanto o público
masculino, quanto o feminino com a novelas e as notícias sobre o
comportamento das mademoiselles, moda, flertes e bailes ocorridos durante a
semana.
O semanário ilustrado Vida Sportiva surge com a opção de compra avulsa
ou de assinaturas semestrais e anuais, com sede na Avenida Mem de Sá n. 149
e 151, centro da cidade. O periódico publicou sua primeira edição em 25 de
agosto de 1917. Mais do que uma publicação informativa semanal, Vida Sportiva,
em consonância comas revistas ilustradas da época, é um “produto destinado à
comercialização e ao consumo” (VOKS, 2012, p. 179).
A publicação traz em suas primeiras edições o aporte de anúncios de
remédios, produtos para cabelo, lojas de roupas femininas e cursos de fotografia.
Texto e imagens projetadas no periódico deveriam atrair, agradar e galvanizar o
público pagante, aqueles em condições socioeconômicas privilegiadas, com
vistas à lucratividade da empresa de comunicação e dos seus anunciantes.
50
Figura 7: Página de anúncios da primeira edição da revista Vida
Sportiva (VS, 1917, p. 2)
53
arquibancadas passam também a ser retratadas com frequência na revista
ilustrada.
O propósito sub-reptício é a identificação e a caracterização também do
comportamento moderno feminino, com o realce das expectativas de moralidade
e fisionomia a seu respeito. A mulher de elite, de silhueta branca, começa a
circular nos espaços públicos da cidade. O futebol e os espaços de lazer passam
a ter centralidade na vida social das mulheres de classe alta. São esses locais
de sociabilidade em ascensão e visibilidade que permitem a sua presença e o
convívio com indivíduos do sexo oposto.
O editorial da primeira edição do referido periódico, no qual podemos
observar a intenção de seus redatores em retratar a dinâmica da vida social e
esportiva através do discurso da modernidade. O jornalismo passa a ser o
conformador da realidade, o retrato verossímil da verdade e da atualidade
(BARBOSA, 2013). É através de publicações, tal qual o semanário Vida Sportiva,
que a memória do futebol começa a ser construída a partir do viés da
popularização do esporte, transformando leitores em público de massa,
consumidor de periódicos impressos. E, pouco a pouco, caracterizam-se e
internalizam-se os comportamentos aceitáveis nos ambientes esportivos, bem
como a distinção das classes.
Na década de 1910, apesar de o futebol iniciar o seu processo de
inserção, para a prática e para o torcer, das camadas negras e mais populares,
o retrato do estrato social associado ao esporte corresponde à imagem da
fidalguia. As esferas públicas e privadas, o desfrute do convívio social, eram
privilégio de uma elite cerceadora de classes mais populares. O futebol, portanto,
também apresenta este ponto de tensão e atrai, cada vez mais, a atenção das
camadas populares, ao passo que sua representação permanece como uma
atmosfera elitista.
Vida Sportiva
Num meio como este, aonde o gosto e o enthusiasmo pelas cosas
de sport, crescem diariamente, o aparecimento d’um semanário
illustrado, sportivo e mundano, como a - Vida Sportiva – era
indispensável.
Dizemos sportivo e mundano, porque se acham tão
intimamente ligados. Que se completam, não podendo existir um
sem outro.
54
Theophile Gautier dizia: “a face humana é uma cera molle, fácil de
ser modificada à vontade” e Delphina de Girardin afirmava também, aliás
com um grande bom senso que, “o primeiro dever de uma mulher é ser
bonita”.
A plasticidade do musculo é realmente admirável e é curioso que
o homem de hoje não tenha sabido aproveital-a, deixando a planta
humana vegetar, em vez de florescer no seu vigor e graça.
Dickens immortalizou o retrato da institutrice que obrigava seus
discípulos a psalmodiar litanias com palavras em pr, com o fito de fazer
uma boca pequena!
Os gregos que sabiam tudo, ou que advinhavam tudo que não
sabiam, levaram a Educação physica muito mais longe que qualquer
nação moderna.
Jogavam o disco, a bola, a espada; lançavam a flecha e
conheciam muito bem a arte de preparar um punhado de homens para
fazer frente a milhões; os seus corredores anunciavam a victoria de
Marathona quasi tão depressa como o telegrapho; ganhavam a remo
batalhas navaes e conseguiam luctadores tão belos como os mármores
de Phidias.
A moda, por outro lado, não consiste, como muitos podem pensar,
somente, no vestuário, existe também no modo de viver, no emprego da
existência, nas ocupações, nas distrações.
O dia de uma mundana de hoje, não obstante ser muitas vezes
tão frivolamente empregado como o da de outr’ora, não se parece em
cousa alguma com o d’aquelle tempo.
Não são mais as reuniões intimas que absorvem horas; de
manhã as igrejas, de tarde a Avenida, compras, footing, etc., de
noite, cinema, concerto ou theatro.
Nossa época é o triumpho da vida ao ar livre: corridas, sports,
de toda a espécie, absorvem e attrahem as nossas gentis patrícias.
Todas as secções estão a cargo de pessoas competentes e como
para todo mundo há um lugar debaixo do sol a – Vida Sportiva – conta
com a benevolência de seus distinctos colegas da imprensa desta capital
e do respeitabilíssimo público, para conseguir esse desideratum (VIDA
SPORTIVA, edição 01, 25 de agosto de 1917, p.3. Grifo nosso).
55
2014), tanto através da sua exposição nos espaços públicos, quanto pelas
narrativas presentes nas publicações.
Outro aspecto destacado já na primeira edição é a presença de mulheres
na vida esportiva e mundana. A participação feminina nos espaços públicos da
sociedade brasileira, nesse período, está associada aos momentos de lazer e
fruição do ambiente urbano. A constatação de moças nas arquibancadas era
constantemente celebrada pela crônica jornalística por sua dimensão por assim
dizer ornamental, com o embelezamento do evento ou pela caracterização do
ambiente como familiar.
Segundo Aira Bonfim (2019, p.36), “...a presença de mulheres nos
ambientes esportivos da época corroborava com a designação de atributos como
‘riqueza’, ‘família’, assim como a sensação de ‘adequação’ social às
arquibancadas e espaços de sociabilidade do esporte”. A mulher desloca o seu
loco social do privado para o público, mas ainda carrega em suas características
o caráter familiar, dócil e subserviente exaltado nas cuidadoras da família e do
lar no período anterior.
Sem embargo, o retrato de uma vida citadina do entretenimento
proporcionado ao esporte também representa o movimento de ampliação da
incidência feminina na sociedade metropolitana carioca. O ato de ir a um local
para prática ou observação de uma competição esportiva pode parecer
insignificante para um observador contemporâneo desatento, mas representa o
início de um movimento de afirmação e de emancipação, principalmente para as
mulheres da elite. A vivência feminina, o tornar-se mulher, descritas décadas
depois por Simone de Beauvoir em O segundo sexo (2014), é tensionado por
um conjunto de poderes interseccionais, a exemplo de classe e raça.
As mulheres que frequentam as arquibancadas são representantes de um
extrato social seleto do Rio de Janeiro, caracterizado pelos termos
mademoiselle, senhora, gentilíssima e patrícia. Observa-se em destaque no
trecho acima e na fotografia da Mlle. Lydia Cardoso de Oliveira (figura 8), descrita
como “gentilíssima filha do ministro Cardoso de Oliveira, figura de alto relevo na
diplomacia brasileira” (VIDA SPORTIVA, edição 01, 25 de agosto de 1917, p. 3).
56
Figura 8: Fotografia de uma mulher ilustra o editorial da primeira edição de Vida Sportiva ( VS,
1917, p. 3)
58
da aprovação da autoridade masculina. Em outras palavras, as narrativas sobre
a presença de mulheres nos estádios também reforçam o comportamento social
de subserviência, secundário e auxiliar feminina ante os interesses patriarcais
e/ou paternais.
Entrementes, apesar de, por vezes, servir aos interesses e olhares dos
homens, o elemento feminino nas arquibancadas não deve ser observado como
secundário. Assim como no início do século as mulheres começam a reivindicar
maior participação nas atividades sociais, como os estudos e o voto, a presença
feminina nas arquibancadas não deve ser analisada como meramente passiva.
As torcedoras são retratadas como “bairristas”. Trata-se de pessoas
qualificadas como “distraídas”, pois focam sua atenção apenas na partida,
mostrando-se “nervosas”, “enrágee”3. Na edição de 05 de outubro de 1918, de
Vida Sportiva, na coluna Frivolidades, foi narrado o acontecimento de “violentas
discussões” entre torcedores do Botafogo e do Fluminense. Uma torcedora do
alvinegro, indignada com a derrota, gesticulava, gritava e vituperava ao torcedor
do tricolor que o seu time só ganhara por ter um juiz comprado. Já na edição de
13 de julho de 1918, o hebdomadário narra que uma torcedora carioca
gesticulava com a sua “sombrinha cor de rosa” quando “a torcida era muita”, sem
se preocupar se poderia incomodar ou ferir outro espectador na arquibancada.
Em adendo, a revista ilustrada endossa a caracterização e o
desenvolvimento da torcedora de futebol, ao publicar em suas páginas em 1919
um questionário voltado para os perfis femininos, na coluna Confidenciais.
59
Figura 9: Coluna Confidenciais com as características da torcedora do Flamengo (VS,
1919, p.3)
60
perspectiva de sociedade no Brasil. Através de suas narrativas fáceis e do uso
do recurso da fotografia e da caricatura, elas ampliaram a sua comunidade
imaginada e transformaram-se em imprensa de massa. Causa e efeito, esses
periódicos, tal qual a Vida Sportiva, destacaram as aceleradas transformações
do século, enquanto também contribuíram para construção de tais mudanças.
As revistas colaboraram, com as suas publicações, para a consolidação de
transformações sociais de sua época e, a partir de um olhar histórico, para
preservação de uma memória em constante desenvolvimento.
No desenvolvimento da narrativa do jornalismo, a revista ilustrada Vida
Sportiva expõe o início da setorização da subárea esportiva e a sua correlação
com a vida cotidiana da sociedade brasileira. Conquanto não seja a primeira
publicação voltada a narrar os esportes na capital, Vida Sportiva é um semanário
que merece atenção exatamente pela associação da vida social e da vida
esportiva. Como o próprio editorial da primeira edição revela, para a revista estes
dois campos da vida social brasileira, notadamente carioca, são indissociáveis.
Com efeito, o desenvolvimento da popularização do futebol também serve
ao propósito de disseminação das ideias e ideais de modernidade que a elite da
sociedade brasileira buscava para o novo regime político do país. As narrativas
em torno do esporte e de seus torcedores estão inseridas no contexto de
institucionalização de novos hábitos à luz das reformas civilizadoras e
modernizadoras da Belle Époque no Rio de Janeiro. O enquadramento do lugar
físico e simbólico das mulheres nas arquibancadas, sobretudo, expressa o
desenvolvimento da participação feminina na sociedade em momentos de
quebra das tradições coloniais e imperiais que as colocavam quase
exclusivamente cerceadas em espaços privados. Como afirma Victor Melo
(2007), a narrativa sobre as mulheres nos esportes e nas arquibancadas também
reflete “as lutas e reivindicações femininas por reconhecimento de sua
possibilidade ampla de participação” (p. 128).
61
2.2. Torcer nos píncaros da fama: presença feminina e linguagem esportiva
como instrumento de popularização do futebol
62
escala nas narrativas esportivas dos periódicos do Rio de Janeiro. O público,
quer seja em praças esportivas, quer seja em espetáculos culturais, já faziam
parte das narrativas da vida esportiva, cotidiana e mundana nos periódicos.
Assim, os termos assistência, supporters e sportman designavam o público
esportivo, enquanto audiência e espectador referiam-se a espetáculos teatrais
ou dos cinemas da cidade.
Durante a década de 1910, as narrativas sobre torcida, referentes a um
indivíduo ou a um conjunto de aficionados pelo futebol, se desenvolvem e
ganham paulatina e progressiva repercussão nas páginas esportivas dos
periódicos. Em O Paiz, por exemplo, nos primeiros cinco anos do decênio, é
possível encontrar menos de dez publicações referentes a espectadores de
futebol. Em contraponto, somente no ano de 1918, os “torcidas” superam a
marca de vinte inserções no periódico. Durante todo o período de 1910 a 1919,
o termo torcida, referente à plateia de eventos esportivos, nos periódicos
analisados, ultrapassa a marca contábil de 130 inserções. Foram analisados
Jornal do Brasil, O Paiz e Vida Sportiva: hebdomadário sportivo e mundano,
publicados entre 1910 e 1919, disponíveis na Hemeroteca da Biblioteca
Nacional, filtrados através do termo de pesquisa “torcida”.
Para uma expressão recém-cunhada na narrativa jornalística e em
crescente utilização no passar das décadas, nota-se a preocupação constante
de caracterização do termo torcida e do seu comportamento esperado, tanto
para homens quanto para mulheres. A ênfase da narrativa acercado futebol e
de seus espectadores, e a consequente popularização do esporte bretão no Rio
de Janeiro, também servem aos interesses de uma elite brasileira em
transformar a sociedade à luz da modernidade europeia. Leonardo Pereira
(1998) afirma que o orgulho identitário do futebol brasileiro não era envolto em
uma originalidade nacional, ao contrário, era permeado pela necessidade de
reproduzir fidedignamente os modelos de sua matriz no Velho Mundo.
63
Destarte, a adoção de uma expressão em língua nacional para designar
um comportamento fundamental no espetáculo do esporte é um marco para a
popularização e para o enraizamento do futebol na sociedade brasileira. Em seu
mito de origem, a torcida é sinônimo dos hábitos coletivos das assistências
femininas nos estádios. De modo célere o vocábulo transforma-se em homólogo
de fã, em indivíduo apaixonado pelo esporte, o que ultrapassa o campo
futebolístico.
Sendo assim, embora ainda haja a utilização do termo assistência para
designar o público presente nas competições esportivas, a partir de 1910 a
narrativa jornalista passa a empregar em larga escala e de maneira corrente o
termo torcida. É possível observar tentativas de categorização do novo
significado do termo brasileiro. Se torcida designa na atualidade uma
coletividade de pessoas adoradoras de um determinado esporte ou clube, no
início da sua utilização também podia designar um indivíduo em particular, tanto
homem quanto mulher.
Se o remo inaugurou a utilização do termo sportwoman para denominar
um novo panorama da participação feminina no campo esportivo, o termo torcida
e torcedora também aponta para uma mudança do status quo da mulher
frequentadora das arquibancadas futebolísticas e nos mais variados campos
sociais. O futebol, desde a ampliação de seus círculos sociais, é um campo no
qual os conflitos e as questões sociais podem ser observados de forma
potencializada. Em outras palavras, como bem afirma Franzini (2005), o futebol
e suas torcidas são um “espaço sociocultural” onde as nuances das práxis e dos
paradigmas sociais reverberam as discussões em vigência na sociedade como
um todo.
De acordo com Pereira (1998), ao menos desde 1917 há um movimento
de nacionalização do futebol, renegando os termos ingleses usados para
designar o esporte, seus jogadores, suas técnicas e posições nos “teams”. Em
1919, houve ainda uma tentativa de renomear o esporte de acordo com a língua
portuguesa falada no Brasil. O football seria peból, balidopo ou futiból. Esse
movimento nacionalista na linguagem do esporte, no entanto, não leva em conta
o desenvolvimento do termo torcida. Desde 1910 é possível encontrar evidências
64
do seu uso para designar um (a) assistente presente na arquibancada do jogo
na narrativa jornalística. Segundo João Malaia (2012):
[...] é na década de 1910 que o termo vai se tornar de uso corrente pelos
profissionais da imprensa, cronistas esportivos ou literatos, Foi a partir
deste período que os torcedores passariam a ser mais precisamente
caracterizados e transformam-se em objeto de reflexão (p.60).
Vou procurar, em rápidos traços, dar uma ideia pálida do torcida e por
uma especial deferência ás representantes do sexo chamado fraco, mas
forte realmente, pois é diante dele que todos nós nos curvamos
65
reverentes, variando apenas o modo de fazê-lo: impedindo que a bola
vase o goal que defendemos (por sabermos que a nossa namorada torce
por nós), estudando para aparecer brilhantemente no fórum, no
magistério, nos marciais desfiles da Avenida, a cabeceira dos doentes
ou... escrevendo crônicas com pretensões psicológicas, sobre o balidopo
(football).
É esta síntese da sua lógica (sua dela torcida). Da à torcida “corda” (não
para se enforcarem...) a todo os filiados do seu club predileto, e se
porventura, vencendo a resistência partidária, consegue alguém se impor
a consideração da torcida, pertencente que seja a club contrário as
predileções da eleita, recebe um “ultimatum”, e dentro de 24 horas tem
que virar casaca, mudar de partido, rasgar recibos do outro club com
grande satisfação de uns e tristeza profundíssima de outros.
66
discussões do aportuguesamento dos termos do football, denominado balípodo,
e a caracterização do ser torcida na década de 1910. É fundamental perceber
que ao longo do período analisado, a “Tentativa de Classificação dos Torcidas”
dicotomiza as características do torcer feminino e masculino. Neste caso, a
torcida feminina é comumente exaltada, apesar de sua caracterização por (a)
valência negativa dos termos como nervosa, histérica e indignada; (b)
valorização dos corpos com adjetivos como franzina, bonitinha, tipo física de
romantismo esportivo; (c) docilidade dos comportamentos de mademoiselles
gentis e graciosas.
Apesar da mulher da década de 1910 conquistar espaços na vida pública
da sociedade carioca, principalmente a partir das reformas estruturais na cidade,
o comportamento feminino ainda é moldado a partir dos conceitos de docilidade
e subserviência presentes no espaço privado. A presença feminina nos
ambientes esportivos confere docilidade, beleza e domesticidade ao espaço,
portanto, comportamentos mais exaltados são caracterizados negativamente na
construção do significado do torcer nas narrativas esportivas.
Tal como afirmam Marina Maluf e Maria Lúcia Mott (1998), a mulher deve
manter a honra e a ordem familiar, “tida como mais importante ‘suporte do
Estado’ e única instituição social capaz de represar as intimidadoras vagas da
modernidade’” (p. 372), mesmo que desfrutem a maior liberdade no convívio
social.
A presença feminina também é narrada por meio do olhar masculino das
redações de jornais e exaltada com base nas características pertinentes aos
homens. No Jornal do Brasil, edição de 19 de setembro de 1917, ao retratar a
partida entre Vila Isabel e Botafogo, a narrativa afirma que “as partidas que o
Botafogo toma parte tem sempre um cunho original pela torcida impenitente e
graciosa do belo sexo que com sua presença dá grande entusiasmo à peleja
esportiva” (p.9). Isto é, a construção da representação feminina nas
arquibancadas de futebol, por conseguinte do tipo ideal de torcida, é permeada
pelo embate ideológico de modernos (que exaltavam a presença feminina no
espaço público) e conservadores (limitando a sua experiência à docilidade
familiar do ambiente).
De acordo com a análise de Marina Maluf e Maria Lúcia Mott (1998):
67
O dever ser das mulheres brasileiras nas três primeiras décadas do
século foi, assim, traçado por um preciso e vigoroso discurso ideológico,
que reunia conservadores e diferentes matizes de reformistas e que
acabou por desumanizá-las como sujeitos históricos, ao mesmo tempo
que cristalizava determinados tipos de comportamento convertendo-os
em rígidos papéis sociais. “A mulher que é, em tudo, o contrário do
homem”, foi o bordão que sintetizou o pensamento de uma época
intranquila e por isso ágil na construção e difusão das representações do
comportamento feminino ideal, que limitaram seu horizonte ao “recôndito
do lar” e reduziram ao máximo suas atividades e aspirações, até encaixá-
las no papel de “rainha do lar”, sustentada pelo tripé mãe-esposa-dona
de casa (p. 373).
68
redação torna impreciso a denominação do autor da matéria. No entanto,
podemos entender como um posicionamento do periódico. Assim, a construção
de uma identidade nacional para o futebol perpassa por um entendimento das
práticas torcedoras e da categorização do termo nas narrativas jornalísticas.
Conforme afirma o cronista denominado Tesoura, no Jornal do Brasil, de 22 de
setembro de 1919, da década de 1910 em diante, “quem não torce, não é
civilizado”.
69
No entanto, com o aflorar das emoções das partidas de futebol, suas atitudes
são distraídas, violentas e imorais (ao sentar-se no colo de um homem
desconhecido, por exemplo). O próprio texto considera que no futebol as
conveniências sociais são desmanchadas. O conceito de torcer, segundo o
Jornal do Brasil, alcança o auge da sua fama e torna-se sinônimo das reações
emotivas dos indivíduos presentes nos estádios, durante e após o término das
partidas.
A crônica evidencia que a presença de público de ambos os sexos nas
arquibancadas é comum e bem aceita socialmente. A mulher torcedora confere
ao ambiente a distinção social que se pretende abarcar na construção de uma
sociedade moderna no Rio de Janeiro. Com isso, o comportamento das moças
da chamada “boa sociedade” nas partidas de futebol é retratado como um tipo
ideal a ser observado, almejado e replicado no convívio nos espaços públicos
dos eventos esportivos.
Outro traço importante do texto é o uso de expressões anglófonas,
enquanto define-se um “verbo adjetivo” em português. Torcer, consoante o
gestual feminino, principalmente, encontra o seu ápice na narrativa jornalística e
consolida-se como um termo referente a aficionados por futebol e seus
comportamentos. A categoria da mulher torcedora durante a década de 1910,
portanto, pode ser considerada a mãe do torcer em seu mito de origem. Tal qual
o futebol, enquanto prática, reverencia aos pais fundadores do jogo em diversas
localidades, como Oscar Cox, no Rio de Janeiro, e Charles Miller, em São Paulo.
Cabe inferir que a incidência do público feminino coincide com a
popularização do futebol no Rio de Janeiro e no território nacional. Desde as
suas primeiras narrativas, o público nos estádios é um ator do espetáculo tanto
quanto os praticantes. Afinal, torcer é “um verbo adjetivo que está nos píncaros
da fama” como podemos observar na narrativa assinada por Tesoura, publicada
pelo O Paiz, em 1919, que transcrevemos acima.
De acordo com a análise deste capítulo, o futebol é inserido no contexto
brasileiro a partir de um momento de grande efervescência de novos hábitos
esportivos e de costumes sociais. Consolida-se sob o aspecto de um esporte de
elite, oriundo de um país europeu e praticado por membros das elites
econômicas do país. Além disso, atrai também a atenção das moças para a
assistência e a prática do esporte. Com isso, torna-se um evento social notório
70
para moças e rapazes das classes sociais mais elevadas. Os salões dos clubes
e as arquibancadas, durante as partidas, proporcionaram o convívio entre os
indivíduos de sexos opostos, tal qual ocorreu na assistência das competições de
turfe e remo.
Desse modo, o desenvolvimento da participação feminina na sociedade
brasileira, aqui sob o enfoque do Rio de Janeiro, capital da República nesse
período, a partir da sua atuação no ambiente esportivo, principalmente o futebol.
Além do público e seus praticantes, esporte bretão passa a chamar a atenção
de jornalistas, poetas e intelectuais a partir da década de 1910. Por conseguinte,
tantos os modos de prática como as características do torcer começam a ser
narrados com mais frequência nos periódicos da época.
No período de inserção e enraizamento do futebol na sociedade carioca
e, por extensão, brasileira, a presença feminina é enaltecida. A categoria mulher -
torcedora torna-se fundadora do modelo ideal de torcida do período. A narrativa
sobre a participação das mulheres nas arquibancadas é através do olhar
masculino. A voz feminina, apesar de existente, ainda não tem credibilidade
socialmente.
No decurso dos anos seguintes, a presença feminina na sociedade e nos
espaços de lazer é cada vez mais naturalizada. No entanto, sua figura ainda é
edulcorada, considerada um belo adorno do protagonismo das ações
masculinas. Por exemplo, no periódico Vida Sportiva, o concurso de beleza para
saber qual a mais formosa “torcedora” do Fluminense. A beleza, as questões
familiares e matriarcais ainda são parâmetros importantes que balizam a vida
social das mulheres da época. Porém, nesse período observamos as primeiras
lutas das mulheres em busca de mais direitos sociais, tal como o direito ao voto.
Conforme veremos no próximo capítulo, tais mudanças no campo
esportivo e na luta por direitos das mulheres, também no âmbito dos esportes,
reverbera nas narrativas sobre a sua presença nas arquibancadas de futebol. A
despeito da sua naturalização enquanto figura da assistência do espetáculo
esportivo, a validação e a permissão desse ator dos eventos sociais ainda
procedem e são ajuizados sob um olhar censor masculino. Ou seja, a mulher
ainda é limitada na sua atuação à condição de torcida, distanciada dos membros
originários do grupo futebolístico, o que terá consequências nos decênios
seguintes.
71
Capítulo 3
A divisão dos capítulos desta tese não obedece apenas a uma separação
por períodos cronológicos. Ainda que se tente traçar uma linha do tempo com
relação à participação feminina nas arquibancadas de futebol, cada capítulo
representa um momento de disputa por representatividade das mulheres dentro
do esporte, sem que isso implique em um pressuposto evolucionista e, muito
menos, unilinear. Como percebemos no capítulo anterior, entre 1910 e 1920, os
indícios do jornalismo permitem aduzir que a mulher foi uma figura importante
para a introdução e popularização do futebol no Rio de Janeiro.
Mesmo que ainda sob o estigma da vida cotidiana privada, a mulher
começou a ser mais presente na vida externa ao ambiente doméstico, sem ser
confinada apenas às paredes do lar. Entendem-se paredes como estrutura,
física ou imaterial, barreira que limita o espaço privado e coletivo. Inseridas em
espaços públicos e/ou ao ar livre, o papel da mulher é relacionado ao privado,
na condição de esposa, filha, mãe e cuidadora.
72
raça, classes sociais, sexualidade etc. em disputa por representatividade e
legitimação do seu espaço nos estádios de futebol, por exemplo.
A partir de 1920, o movimento feminista ganha força no Brasil e no mundo
com as sufragistas. As mulheres passaram a mobilizar e a estruturar
coletivamente a sua luta por direitos iguais aos dos homens. São reivindicações
de melhorias e equidade na educação e no direito ao voto, tal qual a primeira
onda do feminismo internacional. Bertha Lutz e Gilka Machado são expoentes
na representação do movimento das mulheres nesse primeiro grande momento
de lutas.
Como afirma Céli Pinto (2003):
73
interseccionalidades atuantes na vida cotidiana. Glaucia Fraccaro (2018), ao
analisar o feminismo e o trabalho no Brasil, afirma que a luta das mulheres
operárias era baseada em melhores condições de trabalho, contra a violência
sofrida nas fábricas e igualdade salarial.
74
As condições físicas e o treinamento corporal passam a ganhar
importância frente a classe social e/ou raça dos jogadores. Segundo afirma João
Malaia (2008), o mais importante era ter mais vitórias em campo para manter o
público e a renda gerada. O futebol rapidamente tornou-se protagonista entre os
esportes praticados e, não raro, a sua receita era fonte para a manutenção das
demais modalidades em uma agremiação esportiva.
75
O trecho retirado do periódico O Paiz, publicado em 17 de janeiro de 1930,
mostra a primazia do futebol adquirida no âmbito desportivo. Ademais,
percebemos de que maneira os jogadores, apesar de não profissionais
oficialmente, eram cobrados para ter dedicação ao clube e acumular vitórias. A
rivalidade entre os times, seus jogadores e torcedores já estava presente na
narrativa. A saúde é menos importante que o futebol e esse aspecto é
especialmente validado pela torcida. Torcedores, homens e mulheres ganham o
aspecto de fiscalizadores e cobradores do desempenho esportivos do empenho
dos atletas em campo. Decerto, essa cobrança é estimulada pelos apelos
econômicos que o futebol começa a ter no período.
João Malaia (2008) postula que as mudanças econômicas do país
também são encontradas no futebol: “é uma janela para o entendimento de um
dos períodos mais ricos da história contemporânea do Brasil” (p.130). Donde se
conclui que as mudanças econômicas e sociais podem ser observadas pela lente
do futebol. Esse movimento pendular de modificações e continuidades nos
aspectos culturais do Brasil também encontra correspondência no meio
esportivo, impactando na proximidade e nos distanciamentos de grupos sociais
das arquibancadas de determinados times.
As mudanças nos times principais ocasionaram alterações nas torcidas,
uma vez que a identificação entre os pares é fundamental para a relação
torcedores-clube. Assim, a frequência das mulheres nas arquibancadas também
é impactada pelos aspectos econômicos que se infiltram no futebol nesse
período. Ao deixar de representar o ideal europeu de lazer da elite e ao passar
a constituir uma parte significativa da economia do clube, o futebol sofre
modificações na performance dentro de campo que reverberam nas narrativas
sobre a participação feminina nos modos de torcer.
É frequente encontrar, nas narrativas esportivas, episódios de
reclamações exacerbadas, rivalidades acaloradas, discussões e “sururus”
(brigas) envolvendo o público presente nas arquibancadas. Esse aspecto da
agressividade ocasiona a rivalidade e aumenta a competitividade interclubista,
que tem como pano de fundo o desenvolvimento econômico-financeiro do
futebol, com desdobramentos diretos no início de uma mudança narrativa sobre
a cultura do torcer futebolístico.
76
3.1. Há menos mademoiselles nas arquibancadas? A inserção de negros e
mestiços nos gramados de futebol e a presença feminina nos estádios
77
A população negra enfrentou a falta de empregos e sofreu dificuldades de
inserção na economia capitalista. A abolição, recém assinada, não representou
a humanização e a real conquista de direitos civis e sociais. Pereira e Azevedo
sublinham que “na verdade reforçou e remodelou as opressões e dominações
sociais sobre os negros” (2021, p.173). Ou seja, os negros eram excluídos de
forma sistêmica, fruto de um “racismo estrutural”, para falar com Sílvio Almeida
(2019), de uma vida social e economicamente ativa. A população negra, dentro
da estrutura de hierarquia social, é qualificada como estranha em comparação
ao ideal dominante.
Nessa pirâmide das hierarquias de poder, a mulher também é observada
como a estrangeira dentro do grupo dominante. Sua identidade é forjada por
meio de diversas estruturas de dominação que se sobrepõem ao indivíduo. O
homem negro também é um estrangeiro que carece de adaptação ao ambiente.
Em consequência, a mulher negra sofre uma dupla categorização dentro da
dinâmica do grupo social. Quanto maior as forças de opressão compelem o
indivíduo, mais distante, mais estranho se torna ao grupo socialmente intitulado
como natural ao ambiente. Torna-se cada vez mais distante do ideal dominante
daquele espaço social.
Em suas origens, o futebol era um dos esportes que representava esse
ideal civilizatório europeu praticado por membros da elite econômica, política e
social do Rio de Janeiro. O esporte deveria ser praticado apenas para o
aprimoramento da raça em seu momento de lazer ou prática de atividade física,
por exemplo (MALAIA, 2008). Não caberia, portanto, a inserção de indivíduos de
raças e classes sociais diferentes e o ganho de capital para a sua prática.
78
vezes, representava o mecanismo rentável para a manutenção dos espaços dos
clubes e dos demais esportes praticados (MALAIA, 2008).
Para anunciar a partida entre Botafogo x Cantuaria, pelo campeonato da
Liga Brasileira de Desportos, o Jornal do Brasil publicou em 1925 que:
79
da configuração torcedora é mais visível nas diferenciações dos espaços nas
arquibancadas de futebol. Pretendia-se atrair os espectadores ricos para as
partidas de futebol. Nesse período, as estruturas para os frequentadores
ganham maior similaridade com os espaços já consolidados no remo, por
exemplo. Há o local reservado para membros da elite (tribunas e cadeiras
sociais) e espaços mais populares (arquibancadas e gerais), diferenciados no
valor dos ingressos e, por vezes, no conforto dos ambientes.
A narrativa sobre esses espaços torcedores é afetada pelas modificações
da configuração e da escala dos times de futebol. Conforme observamos no
capítulo anterior, o ideal de torcer é construído a partir de uma variante feminina.
Mesmo estas sendo constantemente invalidadas como personagens ativas do
espetáculo esportivo e utilizadas como figura para embelezamento para os
olhares masculinos. Porquanto ainda vista como estrangeira, a mulher torcedora
tem maiores pontos de aproximação com o grupo tradicional do ambiente
esportivo.
Observa-se uma gradual transformação nos significados dos termos
torcida. Antes, designava uma pessoa que acompanha e tinha devoção a um
determinado clube. O torcida ou A torcida era um termo no singular e com
frequência referenciava as moças presentes nas arquibancadas de futebol. Entre
1920 e 1930, podemos verificar nas narrativas esportivas a associação do termo
torcida com o aglomerado de pessoas. Ou seja, torcida passa a representar um
termo que identifica um grupo de adoradores do esporte sem a sua identificação
de gênero. Todavia, não é raro perceber que a narrativa dá conta da presença
masculina nos estádios, pois, para distinguir a presença de mulheres, o termo
ganha a adição de adjetivos como “feminina”.
Ao descrever a partida entre Andarahy e São Cristóvão, o periódico O
Paiz publicou:
80
Atravessamos o pátio fronteiro até o canto direito onde se acha
localizado o recinto destinado à imprensa. Recinto acanhado e contendo
quatro cadeiras para dez ou doze representantes de jornais.
O jogo secundário transcorria mais ou menos equilibrado. Dois a
dois era o score que marcava o placar. Informamo-nos com os colegas
sobre os marcadores de tentos. O sanchristovense Ramiro havia feito os
do seu bando, ao passo que, do Andarahy, era autor o player Paschoal.
Mas o Andarahy estava no ataque. Perigava o gol
sanchristovense que Durval defendia como um leão...
A torcida feminina exultava. Os seus gritinhos nervosos, os
comentários rápidos, as suas frases de encorajamento foram-nos, a
pouco e pouco, tirando a atenção ao jogo, para observal-as. Aqui era
uma lourinha endiabrada, contrastando berrantemente com quatro
trefegas morenas que a acompanhavam, a mastigar nervosamente
pastilhas “chicklets”. Mais adiante duas morenas de cor jambo, de
narizes petulantes como a apontarem a direção oposta à da
felicidade... Acolá dois chapeuzinhos vermelhos quase que ocultos dos
malévolos olhadores dos lobos, ao lado de uma criaturinha esguia, de
olhares languidos e maças excessivamente besuntadas de vermelho...
A “torcida” era louca e ensurdecedora. Tinhamos a impressão
de estarmos em plena floresta ao amanhecer em que aves de todas as
qualidades davam arrahs à alegria da alvorada...
É que Jorge, Cid Borges e Gentil conquistavam, cada um, um
ponto para o Andarahy, sob os mais entusiásticos aplausos daquela
graciosa e garrula falange de torcedoras [...] (O Paiz, 1927, p. 8. Grifo
nosso.).
81
Pouco a pouco, dentro das narrativas esportivas, a caracterização do
padrão de assistir a uma partida vai-se desconectando das originárias
características femininas. Os gritos das torcedoras presentes são qualificados
como “gritinhos nervosos”. Apesar de graciosa, a torcida das mulheres é ruidosa
a ponto de roubar a atenção dos demais em relação ao jogo. Há uma valência
negativa nas expressões usadas para descrever a performance feminina nas
arquibancadas de futebol. Apesar de graciosas e da beleza física exaltada, o
comportamento causa estranheza e certo incômodo no público presente
relatado.
Portanto, a presença feminina nos estádios não diminuiu com a mudança
nos aspectos do jogo nem com a transição do amadorismo ao profissionalismo.
Há uma modificação na estruturação das torcidas com maior diversidade de
classe e raça entre as mulheres presentes. O Vasco da Gama, por exemplo,
passou a recrutar vários jogadores dos subúrbios do Rio de Janeiro, o que
culminou na proibição da participação no Campeonato e na resposta de seus
dirigentes, posição atualmente conhecida na sua torcida como Resposta
Histórica. Para João Malaia:
Mudou o aspecto do seu time principal e da sua própria torcida, uma vez
que os torcedores de mais baixa renda se identificavam com os jogadores
do Vasco, nada parecidos com os meninos da elite que compunham os
times grandes como Fluminense, Flamengo, América e Botafogo
(MALAIA, 2008, p. 129).
82
desordem em consequência dos ânimos exaltados nos momentos das partidas,
as invasões de campo, os “sururus" nas arquibancadas, etc. Em contraponto, a
participação feminina é observada como um fato extraordinária no ambiente.
83
3.2. Os sururus esportivos: a violência como marcador de masculinidade
84
Figura 11: Anúncio da partida entre América x
Fluminense rememorando a revolta dos torcedores
(JB, 1927, p. 18)
A torcida
A torcida é necessária para o entusiasmo e encorajamento dos nossos
players favoritos, porém deveis evitar que ela se transforme em insultos,
em discussões e rixas pessoais, pois isso concorre grandemente para
depor contra vós e contra o clube a que pertencerdes, o qual deverá ser
respeitado, honrado e enobrecido, e o não conseguireis senão
procedendo corretamente e com a devida compostura.
Obrigai os vossos companheiros de torcida a não exagerarem, assim
como aos vossos vizinhos de arquibancada. Todos deverão proceder
com correção. Odilon Penteado (Vida Sportiva, 1920, p.10. Grifo nosso.).
85
Como podemos analisar no apelo de Odilon Penteado para o periódico
Vida Sportiva, práticas de xingamentos, discussões e rixas são relacionadas aos
homens presentes na arquibancada de futebol. O texto demonstra a
preocupação com a reputação da torcida e dos clubes em questão. A sugestão
é para haver um controle dos companheiros e vizinhos de arquibancada. Por
mais que a língua portuguesa preconize a utilização do masculino quando se
refere a homens e mulheres, o texto não sugere a atuação de mulheres nos atos
de insulto.
O aumento da rivalidade e da violência no torcer, ao ser caracterizado
como um elemento masculino e masculinizante das arquibancadas, corrobora a
ideia indiciária feminina como um marcador de docilidade e familiaridade do
ambiente esportivo. Ou seja, esses “sururus” e insultos são opostos ao etos
feminino de torcer.
Malgrado os avanços na participação feminina na sociedade, ainda
encontramos fortemente a discussão sobre o seu papel social. Tanto as
reivindicações de melhores condições de trabalho, igualdade salarial, voto e
maior participação civil são limitadas pelo atributo de cuidadora e mantenedora
do lar e da família. Assim, a figura feminina é ligada à ternura e à delicadeza,
mesmo quando impulsionadas pelas emoções das partidas de futebol.
86
não resulta na volta à calma tampouco à resignação de seus torcedores. As
brigas retomam com gritos, quiproquós e socos. A ambiência descrita em nada
se assemelha ao ideal de mansidão e fraternidade que a presença feminina
supostamente conferiria aos espaços. As arquibancadas de futebol tornam-se
espaços de ebulição, onde a frequência é arriscada.
No entanto, a rivalidade entre torcedores não é um aspecto
exclusivamente masculino. Mesmo que a assiduidade das mulheres nas partidas
de futebol venha sofrendo um apagamento nas narrativas esportivas, o seu
envolvimento com o esporte pode ser observado em outras situações. Nestas
verifica-se uma rivalidade marcadamente agressiva. Conforme podemos
analisar nas respostas da Mlle. Eternamente rubro negra ao questionário do Vida
Sportiva.
87
Contudo, essa característica é apontada exclusiva e inerente à virilidade
masculina nas arquibancadas de futebol e um aspecto plausível para o
distanciamento das mulheres do ideal torcedor. Isso ocorre na proporção em que
o aumento da competitividade dos times reflete nas rivalidades e na
agressividade das demonstrações de discordância no torcer.
Podemos concluir que o marcador distintivo de masculinidade viril
hegemônica começa a ser acionado nas narrativas esportivas sobre os atos de
rixas protagonizados pelos torcedores daqueles decênios. Por mais que a
presença e a proximidade das mulheres no esporte continuem efetivas, o seu
papel e lugar social prescreve a condição de mãe, cuidadora, apaziguadora e
sustentação do lar. Ela se contrapõe, pois, ao ambiente esportivo narrado pelos
periódicos.
Essa caracterização feminina realça a centralidade e a salvaguarda da
família nuclear. Sua condição de cuidadora e progenitora do lar permanece como
um pilar social e, ato contínuo, um fenômeno importante ressaltado pela
cobertura da imprensa de esportes nas décadas seguintes. Vamos observar, no
período entre 1940 e 1950, em que medida esse foi um fato determinante para
a proibição da prática esportiva de algumas modalidades, inclusive no futebol.
Esse ato institucional de interdição afetará, como veremos a seguir, diretamente
a representação feminina em suas práticas torcedoras.
88
Capítulo 4
89
O processo de profissionalização foi facilitado pelo contexto da Era
Vargas de reconhecimento do trabalho como um valor positivo e do
enfraquecimento dos clubes de futebol, com a saída de seus principais
jogadores para os mercados que praticavam o profissionalismo. Em um
período que a legislação trabalhista ganhava força e o trabalhador
assumiu o papel de cidadão, a questão do profissionalismo no futebol,
tornou-se um debate natural. A profissionalização do jogador de futebol
adaptava-se perfeitamente à ordem varguista (FERNANDEZ, 2016, p.
361 – 362).
NUM ANTIPLANO
O gosto nacional pelo football vai num crescendo aterrorizante,
ameaçando empolgar as classes mais adversas a pratica deste esporte
que é irmão de sangue e de espírito do box e da luta romana, duas
das mais selvagens expressões da força bruta primitiva.
Não queremos em absoluto falar aqui do acentuado pendor dos
nossos rapazes por este jogo que os ingleses inventaram, mais para ser
90
disputado em regiões frias – como coadjuvante do desenvolvimento físico
da juventude – do que mesmo em países tórridos como o nosso onde
não são necessários estes movimentos violentos para que a mocidade
se desenvolva galharda, sadia, robusta.
Queremos fazer menção a esse triste torneio de football em que
duas equipes de mulheres se empenharam, há dias, nos subúrbios,
porfiando por levar ao triunfo as cores de seus clubes favoritos.
A hora marcada, lá estavam elas de shooteiras e camisa de meia,
sob um sol de 40 à sombra, à espera do primeira puto para avançar. A
juíza – uma matrona entendida do riscado – não tardou a pôr em linha as
amadoras, e o espetáculo começou. Não havia entre elas a menor
disciplina, a mais leve harmonia, no tocante aos passes. Corriam
para aqui e para ali a dar caneladas, trancos, calça-pés, afogueadas,
ansiosas, agressivas, bulhentas, desejosas todas de encontrar no campo
inimigo e marcar o primeiro goal.
A assistência divertia-se a mais não poder. A torcida era quase
toda do sexo forte. Uns mastigavam em seco. Outros davam murros na
arquibancada. Outros ainda berravam como doidos. As mulheres eram
mais calmas. Uma ou outra de vez em quando soltava um grito.
Despeito. Mulher quase nunca elogia mulher. Até o silêncio – elas que
tanto gostam de falar – é arma contra o inimigo. Caladas, se vingavam
dos aplausos que as outras recebiam dos brutos, isto é, dos
homens.
Quando a pugna terminou havia mais mortos do que vivos dentro
do campo de football.
As jogadoras estavam exaustas. As vencidas, irritadas. As
vencedoras, arriadas sob o peso da gloria e do cansaço prolongado.
Uma coisa verdadeiramente deprimente o tal encontro suburbano
que só veio depor contra os nossos foros de civilização mandando que
gentis patrícias nossas fossem até a insensatez de dar pontapé numa
bola.
À mulher, pela sua delicadeza e sua graça, assistem outros
meios e modos de competir com o homem sem descer a certas
situações que não são próprias do seu sexo.
O lar é um campo de horizontes ilimitados. Dentro dele,
afeitas aos seus labores domésticos, aos seus filhos, ao seu
esposo, ou dedicada aos pais, aos irmãos, aos estudos e às leituras
sãs, pode ela cumprir o seu destino, aformoseando a terra com a
sua presença e iluminando o mundo com as suas virtudes, num
altiplano que fique muito distante do football e de outras coisas que só
podem amesquinhar o nosso espírito de gente culta! Joaquim Tomaz (O
PAIZ, 1940, p. 6. Grifo nosso).
91
doméstico. O futebol é inapropriado ao sexo feminino até por representar uma
modalidade fundamentado na força bruta e com adeptos das mais variadas
classes sociais.
Além disso, a descrição do ser feminino é pautada por conceitos pré-
concebidos de uma disputa feminina pela atenção dos homens presentes. Para
o autor, as mulheres nas arquibancadas sentem inveja dos aplausos dos homens
torcedores. A rivalidade feminina não está ligada à partida de futebol e ao desejo
de vencer. Alinhado ao controle do Estado sobre os corpos e construção de uma
moral nacional, o texto publicado pelo O Paiz sintetiza a distinção sexual e a
hierarquização dos papeis sociais.
Podemos identificar com mais clareza marcadores nas narrativas que
posicionam a mulher como aquela que é estranha ao ambiente futebolístico. O
seu papel social não é o dominante e natural no grupo dos torcedores e
praticantes do esporte bretão. O espaço começa a ser retratado enfaticamente
como reservado à masculinidade, através da brutalidade e em oposição à
feminilidade exaltada pela docilidade.
Outro ponto de destaque do texto é a evidência do agigantamento do
futebol e seus adeptos, praticantes e torcedores, pelo país. “O gosto nacional”
(OP, 1940, p. 6) ligado ao futebol também faz parte do projeto de nação do
Estado na Era Vargas. A partir das manifestações mais populares, a identidade
do brasileiro é moldada, da mesma maneira que a sua moral civilizatória. A
presença e a performance das mulheres no ambiente futebolístico não
corroboram para a ideia de civilidade da sociedade brasileira.
O estigma de estrangeira nos ambientes, para além do doméstico, é cada
vez mais difundido nas narrativas esportivas. A sua presença no futebol não faz
parte do projeto de construção de identidade nacional. À mulher é reservado o
espaço do cuidar de seus familiares e embelezar os ambientes. Nesse momento,
o papel de matriarca gentil, dócil, amorosa, protetora e frágil é inerente ao sexo
feminino. Toda sua vivência deve ser pautada em proteger a sua natureza e
consequentemente a moral das famílias e da sociedade brasileira.
Com a campanha negativa e proibição da prática esportiva, o torcer
também é impactado nas narrativas dos periódicos. A violência e a diversidade
de classes sociais empolgadas com o esporte são características que
incompatibilizam o esporte com a figura da mulher. Como afirma Cecília Nunes
92
(2021, p. 140), “aqui é possível perceber como o gênero não é o único marcador
social a operar nas relações de poder”. Gênero, classe e raça estão
intrinsecamente presentes na configuração do ideal de torcedora e de presença
feminina na sociedade brasileira.
94
de falar em seu próprio nome. Além disso, é podemos inferir que a escrita do
texto, apesar de não assinado, é realizada por um homem ou o conjunto deles
na redação dos jornais.
95
torcedoras de futebol. Apesar do forte desenvolvimento da imprensa,
principalmente a esportiva, no período.
Figura 14: Torcida do Flamengo retratada no Jornal dos Sports (JS, 1941, p. 1)
96
Figura 15: Narrativa sobre uma partida de futebol de rua
(Jornal do Brasil, 1947, p. 33)
97
da vida comum, verificamos a existência da agressividade na prática esportiva e
na observação dos jogos.
Duas figuras femininas são descritas na cena. A primeira, observando o
jogo dos “moleques”, é caracterizada negativamente. A senhora assiste ao jogo
e ofende os jogadores da janela quando a bola a atinge. Na imagem criada pela
narrativa, percebemos a desqualificação da assistência da mulher. Apesar de o
jogo prometer ter muita torcida, apenas essa personagem é narrada. A senhora
dentro do seu ambiente doméstico é incomodada com a partida informal
realizada na rua. O ambiente feminino do lar entra em conflito com o espaço
masculinizante do futebol praticado pelos meninos na rua.
A outra personagem feminina diz respeito à bela “mulata” que estava no
bonde e chamou a atenção de um dos meninos jogadores. Esta não estava
assistindo ao jogo, estava de passagem no bonde que interrompe a partida.
Embora esteja fisicamente fora do ambiente doméstico, sua atitude não é
conflituosa com o ideal esperado para o sexo feminino. A mulher não faz parte
da torcida, não observa o jogo. Está apenas de passagem e exerce, na narrativa,
o papel de encantamento embelezamento. Mesmo alheia ao ambiente do lar, a
moça exerce o papel social esperado para mulher na sociedade brasileira. Ela é
gentil, dócil, embeleza e serve aos olhares sonhadores do menino jogador.
98
“legionários” estão formando uma grande caravana que sairá do Largo
da Carioca às 12:30. A vibração da torcida vascaína é um sintoma de
confiança no quadro de football. Essa confiança se irradiou por toda a
família vascaína que não acredita em derrotas futuras (JS, 1942, p. 6.
Grifo nosso).
100
conteúdo a ser reproduzido, a criação das torcidas organizadas ou uniformizadas
corresponde aos ideais do governo de Vargas (HOLLANDA e CHAIM, 2020).
101
É usual perceber o uso de espaços nos periódicos para propagandear
uma programação de rádio. No universo esportivo, os programas de rádio e sua
repercussão nos jornais antes e depois da exibição auxilia na consolidação do
espaço torcedor no espetáculo esportivo. Além disso, aumenta a popularidade
das figuras conhecidas e dos chefes de torcida. Assim, todo o aparato de
controle das massas passa pela figura do representante único da torcida de
determinado time.
Não coincidentemente todos os chefes de torcida, nesse primeiro
momento, são homens. O poder de fala e de controle da grande concentração
de pessoas, no espaço masculinizante do futebol, é associado à figura do
homem. A visibilidade da performance masculina e a ocupação do espaço nas
arquibancadas também confere poder ao homem com relação aos demais
grupos sociais que pretendem habitar o ambiente do universo futebolístico.
102
Figura 17: Convocação de torcedoras para
ingressar na torcida carioca (JS, 1943, p. 3)
103
proporcionaram que indivíduos se identificassem sem a necessidade de
comparecimento ao ambiente esportivo. Por vezes, observam-se torcedores,
homens e mulheres, que acompanham o esporte à distância e têm a nas
correspondências dos periódicos a oportunidade de ter um espaço para a fala
(figura 18).
104
exacerbadas de torcedores. O grupamento único, sob o comando de um único
chefe, facilita a execução do poder do Estado no espaço das arquibancadas de
futebol. Afinal, é a esse chefe e a esse grupamento que se referem dirigentes,
jogadores, forças policiais e jornalistas.
As primeiras agremiações a surgirem no Rio de Janeiro foram a Charanga
do Flamengo, por Jaime de Carvalho, em 1942, e a Torcida Organizada do
Vasco (TOV), fundada por um grupo de torcedores, dentre eles a notória Aida de
Almeida, em 1944. Depois, em 1946 surge a Torcida Organizada do Fluminense
(TOF), criada por Paulista; em 1952, a Torcida Organizada do Bangu, por Juarez;
e a Torcida Organizada do Botafogo, liderada por Tarzan, em 1957. Cabe
salientar que, da primeira geração de torcidas, apenas a TOV se mant ém
existente e representada nas arquibancadas de futebol até o momento atual
(HOLLANDA, 2008).
105
Figura 19: Olympio Pio, ilustre torcedor da Legião
da Vitória (JS, 1942, p. 6)
Olympio Pio dos Santos é uma das figuras históricas da torcida do Vasco.
Membro do quadro associativo do clube, também foi um dos fundadores da
Legião da Vitória. Era casado com a sra. Adélia Conceição e Souza e participava
ativamente das ações do Vasco. Foi membro da comissão executiva da
organização de uma disputa de sambas e marchinhas relacionadas ao Vasco,
visitava as redações do periódicos e atuou diretamente, a favor dos
representantes vascaínos, em concursos promovidos por empresas e jornais
junto com João de Lucca (figura 20).
106
Figura 20: Olympio Pio recebe escudo do Vasco ao contribuir com 2 mil carteiras para concurso
(JS, 1937, p. 3)
107
Figura 21: João de Lucca e Olympio Pio organizam
caravana da torcida do Vasco (JS, 1940, p.9)
108
dos dirigentes dos clubes, que apoiavam as lideranças torcedoras para
que elas pudessem organizar e promover a alardeada festa multicor
(HOLLANDA, 2012, P. 89).
110
nesse primeiro momento, indícios nas narrativas esportivas da presença de
indivíduos de outra classe social e raça no universo futebolístico.
Com o processo de profissionalização, ainda durante os anos de 1920, o
futebol começa apresentar novos corpos nos campos e nas arquibancadas de
futebol. A diversificação das classes sociais no futebol faz com que a torcida
também seja impactada. Há um processo de identificação e pessoas não
membro da elite e de outras extrações sociais começam a se interessar e a
demonstrar sua paixão pelos clubes.
Nesse momento, mulher de elite passa a ser distanciada do universo
futebolístico nas narrativas jornalísticas. Gradativamente, a sua presença causa
estranheza nos homens presentes. A identidade torcedora entra em disputa,
abandonando as suas características femininas, e absorvendo o caráter
masculinizante do futebol.
A rivalidade crescente entre os times de futebol também é um fator
emulador para a configuração do torcer dentro do período pesquisado. A
competitividade entre os times reverbera nas arquibancadas. Com isso, há um
progressivo incremento de descrições de xingamento, “sururus” e outros atos de
desordem. Essa hostilidade é estimulada pelo desejo de vencer dos torcedores
para ter motivos para brincadeiras e provocações aos rivais e também pelo
objetivo dos clubes em manter o seu lucro com a venda dos ingressos dos jogos.
Quanto mais vitorioso é o time, mais o público é atraído para os espetáculos
esportivos. Assim, o futebol começa a se tornar a principal receita dos clubes,
inclusive, financiando a manutenção de outras modalidades esportivas (MALAIA,
2008).
O aumento da representação da violência nos estádios nos permite
observar o distanciamento da figura feminina deste espaço. Ainda que, nesse
período, haja uma intensa disputa do significado de ser mulher na sociedade
brasileira, o estigma de reservada ao lar é preponderante. Mesmo com sua
presença mais efetiva em ambientes públicos, o papel social da mulher, dentro
da moral de civilidade, reflete o espaço doméstico. À mulher é reservado o papel
de cuidado, apaziguamento, docilidade e fragilidade. Esse ideal de feminilidade
é diretamente oposto à hostilidade do ambiente no qual a virilidade exacerbada
é retratada de maneira constante.
111
Nesse sentido, o imaginário coletivo do torcer reforça a identificação com
o caráter masculinizante. O indivíduo dominante é aquele que exerce o seu
poder através das características masculinas de violência, virilidade e
hostilidade. Toda e qualquer representação diferente do ideal projetado torna-se
como estranha ao ambiente. A representação de masculinidade nas narrativas
esportiva confere poder de fala e legitimidade aos homens presentes no universo
esportivo. Portanto, há uma dominação do meio inclusive através da mediação
das narrativas esportivas.
Essa dominação masculina no cenário desportivo corrobora com o
discurso conservador do Estado Novo. Nesse período ocorre uma constante
deslegitimação da mulher no meio do futebol, com campanha na imprensa de
caracterização negativa da presença feminina na prática e na torcida no espaço
esportivo. A opressão do regime estadonovista resulta na proibição da prática,
em 1941, e na censura dos veículos de comunicação. Assim, é possível perceber
um baixo número de representações das mulheres nas arquibancadas nas
narrativas publicadas.
Dentro desse período do Estado Novo (1937 – 1945), as personagens
femininas representadas no ambiente do torcer são caracterizadas
negativamente. E, por vezes, através da perpetuação de estigmas
preconceituosos no qual a mulher não é capaz de incentivar outras mulheres,
está em busca da atenção masculina e quando irrita-se com facilidade quando o
universo esportivo entra em choque com o seu ambiente doméstico.
Essas representações majoritariamente negativas começam a abrir
espaço para narrativas mais positivas, a partir da legitimação da presença
feminina pelo homem. O indivíduo masculino é o responsável por validar a
permanência e a performance das mulheres torcedoras nas arquibancadas de
futebol.
Na década de 1940 surgem as torcidas organizadas no Rio de Janeiro,
fator importante para a hierarquia dos papéis sociais no universo do torcer. Cria-
se a figura do chefe de torcida como aquele responsável pela disciplina e ordem
moral dentro das arquibancadas de futebol. O líder de torcida torna-se a
representação de toda a massa de torcedores de determinado clube. É a voz
que simboliza todas as outras vozes presentes no universo torcedor. Não
112
coincidentemente, a maioria dos chefes de torcida são homens, representação
do poder masculino na dominação do ambiente.
Essa nova configuração do torcer repercute na semântica da palavra
torcida. Anteriormente utilizada para designar o indivíduo presente nas
arquibancadas de futebol diferenciando o seu gênero pelo uso do artigo, passa
a significar um grupamento de pessoas que dedicam sentimento ao clube e
atuam efetivamente para o apoio nos eventos esportivos.
Com efeito, outros termos adquirem visibilidade nas narrativas esportivas.
A pessoa que torce para determinado clube é designada por torcedor ou
torcedora. Essa nova significação dos vocábulos relacionados à assistência do
esporte impacta nas narrativas de outras modalidades. Assim como o futebol se
apropria das características de organização e torcer de outros desportos, estes
absorvem o novo vocabulário para denominar os seus expectadores. Além disso,
a identificação clubística advinda de esportes de notoriedade anteriormente,
como o remo, começa a se originar a partir do futebol.
O ponto desviante dessa caracterização do torcer, através dos
grupamentos unos, é a Torcida Organizada do Vasco. Desde a sua fundação,
em 1944, o grupo tem identificação com a figura feminina. Aida de Almeida, entre
outras colegas torcedoras, participaram da criação da torcida que no decênio
seguinte seria comandada por Dulce Rosalina. No entanto, as mulheres da TOV
também precisaram da legitimação dos homens no seu espaço do torcer. João
de Luca, Olímpio Pio e Domingos Ramalho são alguns nomes de torcedores
ilustres que validaram a presença e atuação feminina nas arquibancadas
(ARAÚJO, 2019).
Importante ressaltar que a presença das mulheres nas arquibancadas de
futebol não é mais uma representação conflituosa com os interesses do Estado
e da sociedade esportiva. Inclusive, a sua presença confere a docilidade e
harmonia necessárias no processo de controle das massas e disciplinarização
dos corpos no seu momento de lazer.
Podemos concluir que, de acordo com a visão panorâmica da atuação das
mulheres nas arquibancadas de futebol durante o período pesquisado, a figura
feminina não era considerada uma estranha no ambiente esportivo. Enquanto o
futebol representou um esporte de elite e o ideal de modernidade europeia, a
presença do “belo sexo” foi exaltada e significou o padrão de torcer. A partir do
113
momento que há uma quebra nessa idealização cultural da elite, a figura
feminina passa a sofrer a opressão e o apagamento nas narrativas esportivas.
O ambiente futebolístico torna-se hostil a sua presença.
Ao longo do desenvolvimento do futebol e do torcer no Rio de Janeiro, a
mulher foi-se distanciando do padrão de indivíduo esperado nas tribunas e
arquibancadas nos espetáculos esportivos. A figura masculina ganha maior
visibilidade e poder dentro da hierarquia do torcer. O homem, de classes mais
elevadas e branco, é a representação do nativo ideal do futebol.
As forças de gênero, raça e classe são intervenientes na caracterização
do ideal de torcedoras nas arquibancadas. Com a diversificação dos perfis
presentes nas partidas de futebol, a representação das torcedoras deixa de ser
o modelo padrão de torcer. Esse espaço ganha aspectos de virilidade e
masculinidade, confrontando o comportamento moral esperado para as
mulheres de elite da sociedade brasileira.
Portanto, as mulheres tornam-se estrangeiras em seu próprio território,
diante da ampliação do universo do torcer para outras classes e raças. O
conservadorismo do ideal esperado para comportamento de moral elevada das
mulheres não comporta a sua presença nos ambientes que não fossem
representantes da civilização europeia desejada. O perfil feminino é
constantemente distanciado do universo esportivo também por uma atuação da
censura e por força da lei no Estado Novo. À mulher, mesmo em ambientes
públicos, está reservado o espaço doméstico de protetora e conciliadora.
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