O Teatro de Revista Carioca e Identidade Nacional
O Teatro de Revista Carioca e Identidade Nacional
O Teatro de Revista Carioca e Identidade Nacional
2013
O TEATRO DE REVISTA CARIOCA E A CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE NACIONAL:
O popular e o moderno na década de 1920
Rio de Janeiro
Maio de 2013
O TEATRO DE REVISTA CARIOCA E A CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE NACIONAL:
O popular e o moderno na década de 1920
Banca Examinadora:
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Profª. Drª. Ivana Stolze Lima (Fundação Casa de Rui Barbosa - Suplente)
Rio de Janeiro
Maio de 2013
A282 AGUIAR, Mariana de Araujo.
O teatro de revista carioca e a construção da identidade
nacional: O popular e o moderno na década de 1920 /
Mariana de Araujo Aguiar. – 2013.
205 f.; 30 cm.
Bibliografia: f. 186-198.
Aos meus pais, Roberto e Cléia, por todo carinho, apoio, dedicação e incentivo. Sem a
presença e o conforto deles nada disso seria possível. À minha irmã, Luciana, pela sua
atenção e dedicação a mim e à minha pesquisa, sempre disposta a me ouvir e a me ajudar a
amadurecer minhas ideias.
Ao meu namorado, Cristiano, pelo seu companheirismo, apoio e compreensão das
ausências e distâncias ao longo da redação deste trabalho. Agradeço a ele por me proporcionar
momentos de alegria e de conforto em meio aos desesperos da dissertação. Aos companheiros
de apartamento que me proporcionaram momentos de alívio em meio às aflições da escrita,
em especial à Patrícia, por sua presença e amizade ao longo dos anos.
À minha orientadora Andrea Marzano, com quem eu tive o prazer de dividir tantos
momentos de empolgações e angústias nesses dois anos de pesquisa. Agradeço pela
generosidade e sabedoria com que ela tem me acompanhado na orientação desse trabalho.
Às amigas da graduação, que sempre estiveram ao meu lado e me proporcionaram
momentos felizes ao longo da minha formação de historiadora, em especial à Angélica, pelas
trocas de experiência, incentivos e atenção dedicada a mim. Aos colegas da minha turma de
mestrado, com quem pude compartilhar o convívio acadêmico, em especial aos integrantes da
linha de pesquisa em cultura: Artur, Carol, Elisabete, Jefferson, Júlia, Lara, Thati, Tanize,
pelos momentos descontraídos e alegres ao longo desses dois anos.
Ao professor Leonardo Affonso de Miranda Pereira e à professora Márcia Chuva, pela
atenção com a minha pesquisa e pelas reflexões e indicações, que foram importantes para o
desenvolvimento do trabalho. Aos professores do Departamento de História da UNIRIO,
pelos ensinamentos valiosos ao longo dos anos em que estive nessa instituição. Aos
professores do Departamento de Artes Cênicas, pelos ensinamentos e pela oportunidade de
realizar disciplinas, ainda na graduação, importantes para o desenvolvimento dessa pesquisa.
À Milene, secretária do Programa de Pós Graduação em História, por toda a ajuda, e à
CAPES, pela concessão da bolsa que me permitiu a redação da dissertação com muito mais
tranquilidade.
Aos funcionários do Arquivo Nacional, onde realizei a maior parte da minha pesquisa,
pela disponibilidade e atenção durante a consulta ao Fundo da 2ª Delegacia Auxiliar de
Polícia. Aos funcionários da Biblioteca Nacional, que me permitiram o acesso ao Arquivo da
Empresa Paschoal Segreto, mesmo sem a catalogação deste.
Aos meus avós, tios e primos, pelos momentos de risos e alegrias, em especial aos
meus padrinhos Margarette e Caio, pelo apoio e carinho imenso desde a infância, e à minha
afilhada Aline, pela sua alegria e presença na minha vida.
Ao amigo, diretor e eterno professor de teatro Carlos Pimentel, pelos seus
ensinamentos e por me permitir adentrar, desde os meus 13 anos, nas delícias e meandros da
arte dramática. E aos amigos do Laboratório Cênico: Alex, Adriane Cláudio, Diana, Elaine,
Geisa, Maylla, Marco, Michelle e Tati pelo companheirismo, alegrias e etc., que me
impulsionaram a amar e aprofundar meus estudos sobre essa arte.
Aos amigos e colegas que, mesmo sem saber, me propiciaram momentos de alegria,
permitindo esquecer, por alguns momentos, as tensões e conflitos surgidos ao longo da
dissertação, em especial: Cristiano, Maylla, Rudster, Julianne, Filipe, Diana, Michelle, Luiz,
Bia, Diego, Evellen, Inessa, Lidiane, Maria Clara, Mariana, Zé, Dayana, Salim, Jaqueline e
Pedro.
E, sobretudo, a Deus, que me deu forças e paciência para persistir até o final.
"O teatro não pode desaparecer porque é a
única arte em que a humanidade enfrenta a si
mesma." (Arthur Miller).
O teatro de revista foi um gênero do teatro musicado que tinha por finalidade realizar uma re-
visão de processos e situações vivenciados pela sociedade, sob um ângulo cômico. Este
gênero alcançou grande sucesso no Rio de Janeiro entre o final do século XIX e as primeiras
décadas do século XX. As peças abordavam temas relativos à política e às mudanças urbanas
e sociais, levando aos palcos as mais variadas questões que estavam na ―ordem do dia‖.
Observando o compromisso que as revistas possuíam com a contemporaneidade, a dissertação
objetiva compreender como o teatro de revista se inseriu nos debates, ocorridos na década de
1920, relativos à identidade carioca, à identidade nacional e à modernidade.
Nesse período, a sociedade brasileira passava por um processo de grandes contradições, uma
vez que se buscava afirmar uma identidade nacional em meio a um mundo de grandes
transformações industriais e urbanas. Portanto, os debates em torno da construção de uma
identidade carioca e de uma identidade nacional condizente com a inserção do Brasil no rol
das nações modernas estavam presentes nas rodas literárias e artísticas deste período.
A pesquisa busca analisar, também, as múltiplas representações sobre o popular e sobre os
elementos modernos presentes na sociedade brasileira, apontando os argumentos para que
alguns elementos se definissem como centrais na identidade dos brasileiros, ultrapassando,
assim, fronteiras ―raciais‖ e de classe, e negociando demarcadores de fronteiras sociais.
The revue was a genre of musical theater whose purpose was to accomplish a re-view of
the processes and situations experienced by society from a comic angle. This genre
achieved great success in Rio de Janeiro between the end of nineteenth century and the
first decades of the twentieth century. The plays approached issues related to politics
and social and urban changes, bringing to the stage the most varied issues that were on
the agenda. Noting the compromise that the revues had with the contemporary, the
dissertation aims to understand how revue theater is inserted in the debates that took
place in the 1920s, related the carioca identity, national identity and modernity.
In this period, Brazilian society was going through a process of great contradictions,
once a national identity, amidst a world of large industrial and urban changes, was being
searched. Therefore, the debates about the construction of a carioca identity and of a
national identity consistent with the insertion of Brazil in the list of modern nations
were present in the literary and artistic circles at that time.
The research also aims to analyze the multiple representations of popular and modern
elements in Brazilian society, pointing the reasons why some elements were defined as
central in the Brazilian identity, surpassing, thus, 'racial' and class borders, and
negotiating paths of social boundaries.
PRÓLOGO ..................................................................................................................... 13
ATO I: AS RUBRICAS: O TEATRO DE REVISTA E A CIDADE DO RIO DE
JANEIRO........................................................................................................................ 24
Quadro I: O universo teatral carioca no início do século XX ........................................ 24
Cena 1: O teatro ligeiro e suas diferentes manifestações ........................................... 24
Cena 2: O teatro de revista carioca e suas fases: a metalinguagem como recurso ..... 28
Cena 3: Os autores e o público: uma análise dos espaços de sociabilidade ............... 39
Cena 4: A produção textual da revista e a comicidade ............................................... 50
Cena 5: Estado e teatro ............................................................................................... 56
Quadro II: A cidade do Rio de Janeiro: cenário em movimento .................................... 61
Cena 1: Transformações urbanas e sociais no Rio de Janeiro .................................... 61
Cena 2: Rio de Janeiro capital: ―cidadania teatral‖ e conjuntura política na década de
20 ................................................................................................................................ 67
ATO II: A TRAMA: CONSTRUINDO A IDENTIDADE NACIONAL PELO
TEATRO DE REVISTA ................................................................................................ 74
Quadro I: Representações do popular ............................................................................. 74
Cena 1: O malandro, a mulata e as questões raciais no teatro de revista ................... 74
Cena 2 – A imagem polissêmica do português: ....................................................... 104
Cena 3 – As representações das manifestações culturais brasileiras/ cariocas: a
construção da ideia de popular e suas diferenciações............................................... 117
Quadro II: Representações do moderno no teatro e revista: críticas e exaltação ......... 137
Cena 1: Em cena a moda e a sexualidade: as noções de feminilidade e masculinidade
a partir de melindrosas e almofadinhas .................................................................... 142
Cena 2: Os personagens modernos e os novos costumes: A modernidade e a
brasilidade................................................................................................................. 155
Cena 3: Formas de sentir as inovações e as mudanças: percepções sobre tempo e
espaço ....................................................................................................................... 173
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 184
FONTES: ...................................................................................................................... 187
1.1 – Arquivos: ............................................................................................................. 187
Arquivo da 2ª Delegacia Auxiliar de Polícia ............................................................ 187
Biblioteca Nacional, Divisão de Música .................................................................. 187
Biblioteca Funarte: ................................................................................................... 187
2.2 - Periódicos: ............................................................................................................ 188
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ........................................................................ 188
ANEXO ........................................................................................................................ 200
13
PRÓLOGO
O que nos torna pertencentes à nação brasileira? Esta pergunta foi feita em
diferentes épocas e por diferentes artistas e intelectuais. O debate sobre as questões
nacionais no Brasil surgiu no século XIX com a Independência, quando o estado-nação
brasileiro começou a ser engendrado. Porém, foi após a Proclamação da República que
esse debate ganhou novos contornos. Dentre as razões para isso se encontram as
reflexões sobre a cidadania no pós-abolição, ou seja, sobre a incorporação dos ex-
escravos à vida nacional, entre outros fatores. A busca por uma identidade coletiva foi
alçada fortemente pelos intelectuais da Primeira República, como observa Carvalho:
No Brasil do início da República, inexistia tal sentimento. Havia, sem dúvida,
alguns elementos que em geral fazem parte de uma identidade nacional,
como a unidade da língua, da religião e mesmo a unidade política. A guerra
contra o Paraguai na década de 1860 produzira, é certo, um início de
sentimento nacional. Mas fora muito limitado pelas complicações impostas
pela presença da escravidão 1.
Alguns intelectuais buscavam não apenas criar laços de identidade, mas também
bases para a redefinição da República, visto que o sonho de um sistema político que
trouxesse reformas sociais foi frustrado. Nesse sentido, surgem, no início do século XX,
diferentes formas de pensar a nação. Porém, foi após a I Guerra Mundial que as
contradições e as mazelas do Brasil passaram a ser vistas mais claramente. Com isso,
muitos intelectuais perceberam a necessidade de se pensar os problemas do Brasil e as
formas de solucioná-los. Muitos deles afirmavam que a civilização no Brasil só seria
alcançada quando houvesse uma consciência nacional2.
Na década de 1920, os debates sobre identidade nacional afloraram, não apenas
como consequência da Grande Guerra, mas também por uma diversidade de fatores que
colocavam em evidência os impasses brasileiros. Esta década foi marcada pelas
comemorações do centenário da Independência, que geraram forte reflexão acerca do
1
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p. 32.
2
DE LUCA, Tânia Regina. A revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Fundação Ed.
UNESP, 1999, p.46.
14
3
MOTTA, Marly Silva da. A nação faz cem anos: a questão nacional no centenário da independência.
Rio de Janeiro: Editora FGV: CPDOC, 1992, p. 26.
4
Os países aliados são apresentados como modelos de países modernos.
5
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 16.
6
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. In:
Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro,, v. 4,n. 7, p. 313-333, 2003, p. 314.
15
7
Ibidem, p. 315
8
Ibidem, p. 316.
9
Ibidem, p. 317
16
10
VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro: Ed.
Fundação Getúlio Vargas, 1996, p, 167.
11
Ibidem, p. 41.
12
Esse modo de conotar a revista está presente no artigo de Luiz Gustavo Marques Ribeiro e Vera
Collaço, intitulado como: ―Tecendo o teatro de revista: Analise estrutural das peças Cocota; Comidas,
meu santo; e Você já foi à Bahia”. Disponível em:
http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume3/numero1/cenicas/luizgustavo_vera.pdf. Acesso
em: 21 de setembro de 2011.
17
é a preocupação central desse trabalho. O estímulo para este estudo foi proporcionado
por diversos fatores. Dentre eles, podemos citar as temáticas das peças. A leitura das
revistas me fez observar que grande parte delas abordava as mudanças culturais e
sociais associadas à urbanização e à industrialização. Além disso, elas construíam
imagens e associações que pareciam buscar definir quem é o brasileiro e o carioca.
Outro motivo que me instigou a analisar como o teatro de revista participava da
construção da identidade nacional e elaborava representações da modernidade foi a
amplitude de público que este gênero teatral alcançou nos anos 1920. Tiago de Melo
Gomes compreende o teatro de revista dos anos 1920 a partir do conceito de cultura de
massas, uma vez que havia ―um grande arsenal cultural disponibilizado para amplos
segmentos da população da cidade, que funcionava como campo próprio de articulação
de identidades e diferenças‖ 13. Assim, ele afirma que, nesse período, o teatro de revista
tinha um público expressivo tanto entre as classes populares quanto entre os segmentos
sociais mais favorecidos economicamente. Portanto, a possibilidade de uma repercussão
ampla das peças me fez questionar sobre as razões para o ínfimo reconhecimento do
teatro de revista enquanto uma arte que se enquadra dentro do pensamento modernista
brasileiro.
O teatro de revista foi visto, por muito tempo, como um fator de decadência do
teatro brasileiro14. Dentre as razões para tal situa-se a despreocupação com a
originalidade literária, o gosto em agradar o público e a comicidade. Por isso, o teatro de
revista foi relegado, pela crítica e pela historiografia, a um patamar inferior por muitos
anos. Foi só a partir da década de 80 que historiadores se debruçaram sobre os gêneros
13
GOMES, Tiago de Melo.Um espelho no palco: identidades sociais e massificação da cultura no teatro
de revista dos anos 20. São Paulo: Ed.Unicamp, 2004, p. 34.
14
A decadência do teatro nacional foi abordada, e ainda se faz presente, na historiografia do teatro. José
Galante Sousa, um dos autores clássicos da história do teatro brasileiro, em sua obra O teatro no Brasil,
publicada em 1960, critica o advento do gênero ligeiro como o causador da ruptura do desenvolvimento
estético e, portanto, como o causador da decadência do teatro nacional. Sua crítica ao teatro de revista,
assim como a de diversos historiadores, está calcada na ênfase à dramaturgia, ou seja, ao texto dramático,
em detrimento de uma análise social do teatro ligeiro. A desmoralização do teatro está atrelada, além
disso, à falta de uma escola dramática, ao modo como se organizavam as empresas, à falta de distribuição
dos artistas em classes, às reprises, à falta de boas peças, de bons artistas, à falta de disciplina. Outro autor
que se dedica à história do teatro é Sábato Magaldi. Em seu livro Panorama do teatro Brasileiro, Magaldi
destaca que o gênero ligeiro ―quase matou o drama e a comédia‖. Ver: SOUSA, José Galante. O teatro
no Brasil. Tomo I. Rio de Janeiro: MEC / INL, 1960. MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro
brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/ DAC/ FUNARTE/ Serviço Nacional de
Teatro, s/d.
18
dramáticos como fontes para compreender a história social15. Nesse contexto, o teatro
de revista passa a ser alvo de diversos estudos.
No que diz respeito à afirmação de concepções de modernidade e identidade
nacional, alguns estudiosos se dedicaram a investigar como os autores do teatro de
revista dialogaram com esse processo e com os movimentos que estavam em voga
naquele período, como o modernista. Neyde Veneziano observa uma proximidade do
teatro de revista com os movimentos artísticos e intelectuais que estavam ocorrendo na
Europa e no Brasil no início do século XX16.
Tiago de Melo Gomes, por outro lado, defende a ideia de que houve a
abordagem de temas semelhantes, porém, ele observa que o modernismo paulista e
europeu não pode ser comparado ao ―mundo do entretenimento de massas na cidade do
Rio de Janeiro [pois este] tinha em casa outros modelos sobre os quais trabalhar em sua
tematização da vida cotidiana e das grandes questões do momento‖ 17. Portanto, apesar
do autor reconhecer que havia similaridades temáticas, ele prefere não enquadrar o
teatro de revista carioca como parte do movimento modernista.
Já Mônica Pimenta Velloso, ao realizar um estudo sobre o modernismo no Rio
de Janeiro, analisa as modalidades distintas que esse movimento possuiu no Brasil,
questionando o marco de 1922 e apontando que o Rio de Janeiro teve um movimento
modernista, sim, mas calcado no humor, como já destacamos acima. Nesse sentido, ela
caracteriza o teatro de revista como pertencente ao movimento humorístico do
modernismo carioca, como ela mesma afirma:
Concisão, condensação, veiculação de novas coordenadas de espaço e tempo,
alegoria e humor: é através dessas linguagens que o teatro de revista procura
recriar ficcionalmente o cidadão e a cidade, dando forma a uma realidade
ainda difusa na sensibilidade coletiva. Esse linguajar e essa temática são
familiares ao grupo dos intelectuais humoristas.
(...)
Vinculados ao universo jornalístico, Bastos Tigre, Pederneiras, José do
Patrocínio e Kalixto entram para a produção teatral. (...) A linguagem cênica
utilizada no teatro se assemelhava à dos caricaturistas na imprensa: divisão
em quadros, cenas curtas, personagens alegóricos e representação do
cotidiano carioca.
É interessante a relação de afinidade que se estabelece entre o universo dos
caricaturistas e o teatro. Vários caricaturistas se destacam como
‗revistógrafos‘, atores, cenógrafos e figurinistas. Também participam na
15
MARZANO, Andrea. Cidade em cena: o ator Vasques, o teatro e o Rio de Janeiro (1839-1892). Rio de
Janeiro: Folha Seca: FAPERJ, 2008, p.19.
16
VENEZIANO, Neyde. Teatro de revista no compasso da história: Conexões imediatas e atuais. In:
MALUF, Sheila Diab; AQUINO, Ricardo Bigi de. Dramaturgia em cena. Maceió: EDUFAL, 2006.
17
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 136.
19
18
VELLOSO, Mônica Pimenta, op. cit., p.76-77.
20
19
Ibidem, p.76-77.
20
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 175.
21
GOMES, Tiago de Melo. Lenço no pescoço: o malandro no teatro de revista e na música popular:
―nacional‖, ―popular‖ e cultura de massas nos anos 1920. Dissertação de Mestrado em História.
Campinas: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas, 1998.
21
escolhida a partir de seu título, sugestivo da abordagem do impacto dos novos costumes,
relacionados à idéia de modernidade abordada na dissertação.
No que diz respeito às peças de Bastos tigre, selecionei-as a partir dos títulos
encontrados no índice do arquivo da 2ª Delegacia Auxiliar de Polícia. Segundo este
índice, Bastos Tigre escreveu 9 revistas. Foi escolhida para a realização deste trabalho a
revista Zig e Zag (1925). Seu título chamou a minha atenção durante a leitura da obra de
Gomes, que cita a peça na abordagem das críticas ao futurismo, movimento do
modernismo italiano. Ao ler a revista, observei que ela aborda diversos fatores ligados
às representações do moderno.
No que tange à escolha das revistas de Marques Porto, um levantamento inicial
indicou 46 peças de sua autoria, sendo cerca de 24 revistas da década de 1920. Dessas,
diversas foram escritas em dupla com Luís Peixoto ou com outros autores. Porém,
interessei-me pelo título de algumas escritas apenas por Marques Porto, especialmente
por A mulata (1925), estreada pela Empresa Pinto e Neves no Teatro Recreio. Esta peça
me chamou atenção, primeiramente, pelo título, que parecia permitir a inclusão do
debate ―racial‖ nas reflexões sobre a identidade brasileira.
Quanto às peças da dupla Marques Porto e Luís Peixoto, busquei aquelas cujos
títulos pareciam se aproximar mais do meu objeto de pesquisa. Além disso, debrucei-
me sobre as revistas que foram apresentadas, pela bibliografia, como abordando temas
pertinentes a presente dissertação. Escolhi, portanto, Não quero saber mais dela (1927),
que estreou pela Companhia Bataclan. Esta revista foi selecionada devido à assertiva de
Gomes no que diz respeito à apresentação da imagem do português como integrada ao
caráter nacional22.
Outra peça selecionada foi Cangote Cheiroso (1927). A motivação para a
escolha da peça também foi a obra de Gomes, que afirma: ―Nesta revista, onde o bom
brasileiro é aquele que gosta do jogo do bicho e a mulata rejeita o português, o
personagem malandro se opõe ao português‖23. Tal enredo me pareceu sugerir
representações bem diferentes das presentes na peça anteriormente citada, despertando
minha curiosidade. Da mesma dupla de autores selecionei, ainda, Banco do Brasil
(1929). A escolha desta revista foi motivada pelo título, sugestivo de debate sobre a
nação e a identidade nacional. Selecionei ainda, a revista À la garçonne, de Marques
Porto e Affonso de Carvalho. Notando que o título fazia referência ao corte curto do
22
Ibidem, p.106.
23
Ibidem.
22
24
PENSAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. In: Nuevo Mundo
Mundos Nuevos , Debates, 2006.
Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/index1560.html Acesso em: 28 de junho de 2010.
25
PESAVENTO, Sandra. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2. ed., 2008, p.82
26
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 2004, p. 203.
23
27
Definidos por um cenário específico, os quadros possuíam temáticas e histórias definidas. Eram sub-
enredos integrados ao tema geral da peça. Por possuírem certa independência, os quadros podiam ser
movidos ou alterados conforme o desejo dos autores e da companhia teatral. Ver: CHIARADIA,
Filomena. A companhia de teatro São José: a menina-dos-olhos de Paschoal Segreto. São Paulo:
Huicitec, 2012, p.129-133.
28
CHIARADIA, Filomena. op. cit.., p 127.
24
29
Espetáculos declamados eram aqueles que não possuíam músicas. CHIARADIA, Filomena. op.cit.,
p.36.
30
Ibidem.
31
Teatro popular cômico surgido na Itália entre os séculos XV e XVI. Tinha por característica basear-se
numa ação cênica improvisada, realizada por trupes itinerantes que, ao montarem um palco em espaço
25
público, apresentavam peças de humor, satirizando escândalos locais, eventos atuais e etc. Nesses
espetáculos, o uso de máscaras era frequente. Além disso, as peças eram criadas coletivamente.
32
CHIARADIA, Filomena, op. cit., 2012, p. 35-39.
33
Segundo Maurício de Abreu, até o século XIX a cidade era limitada pelos morros do Castelo, do São
Bento, de Santo Antônio e da Conceição. Com a vinda da família Real, regiões, até então rurais, foram
beneficiadas pelos melhoramentos urbanos, possibilitando que as classes mais nobres se deslocassem da
área central. O início da fragmentação da cidade foi impulsionado também pelo desenvolvimento dos
transportes urbanos e o início da industrialização brasileira. Porém, foi após a Reforma de Pereira Passos
(1902-1906) que a cidade tornou-se mais fragmentada. As constantes demolições de habitação popular e
as elevadas taxas dificultavam o acesso á moradia de grande parte da população. Nesse contexto, a
população inicia-se um processo de deslocamento tanto para o subúrbio quanto para as favelas. A cidade
passa a ser geograficamente fragmentada em função de fatores econômicos e sociais. Ver: ABREU,
Maurício de. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ZAHAR EDITOR, 1987a. ABREU,
Maurício de. ―A periferia de ontem: o processo de construção do espaço suburbano no Rio de Janeiro
(1870-1930)‖. In: Revista Espaço e Debates, São Paulo, USP, n. 21, 1987b.
34
MENCARELLI, Fernando. A. Cena aberta: a absolvição de um bilontra e o teatro de revista de Arthur
Azevedo. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1999, p. 121.
35
Ibidem, p. 122.
36
Localizado na Rua da Vala, onde é hoje a Rua Uruguaiana.
37
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: teatro e cinema. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 15.
26
38
PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro. São Paulo, Editora da Universidade
de São Paulo, 2003, p. 88.
39
Ibidem, p. 148.
40
FERREIRA, Adriano de Assis. Teatro Ligeiro Cômico no Rio de janeiro: a década de 1930. Tese de
Doutorado em Letras (Literatura Brasileira). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010, p. 42.
41
CHIARADIA, Filomena, op. cit., 2012, p. 90.
42
Ibidem, p.31.
43
O teatro Trianon se localizava no número 181 da Avenida Central, atual Avenida Rio Branco, segundo
o site ―Teatros do Centro Histórico do Rio de Janeiro‖. Disponível em:
<http://www.ctac.gov.br/centrohistorico/teatroXperiodo.asp?cod=144&cdP=5&tipo=Identificacao>.
Acesso em: 20 de fevereiro de 2012
27
A crítica exposta acima traz algumas questões importantes para análise do teatro
brasileiro no princípio do século XX. Segundo o crítico, o teatro de revista era um
gênero desqualificado, tanto estruturalmente quanto textualmente. A crítica a este
gênero, como um teatro despreocupado com a qualidade literária foi uma constante na
historiografia tradicional do teatro48. A decadência, segundo Tiago Gomes, é vista pelos
44
FERREIRA, Adriano de Assis, op. cit., 2010, p. 53-54.
45
Ibidem, p. 61.
46
RABETTI, Beti. Teatro e comicidade 2: modos de produção do teatro ligeiro carioca. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2007, p.14.
47
Comédia, n. 96, 8 mar. 1919. Apud: GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 2004, p. 126.
48
Designo como historiografia tradicional as obras escritas nos três primeiros quartos do século XX,
principalmente. Estas reproduziam um discurso muito presente na crítica teatral do final do século XIX e
do início do século XX, que tinham por viés a qualidade literária. Essa historiografia reproduzia a ideia de
28
críticos como fruto do gosto popular, já que essas peças seriam baseadas no desejo de
agradar as platéias.
Afastando-se da perspectiva valorativa da crítica e da historiografia tradicional, a
historiografia mais recente, a partir da década de 1980, considera os gêneros dramáticos
como fontes para compreender a história social, ―avaliando o papel social dos
dramaturgos na sua época, as relações entre o teatro e as tensões sociais, a estrutura e a
estética das peças como representativas de certos padrões culturais‖ 49. Portanto, o olhar
dos historiadores se modificou, possibilitando-os valorizar, como fontes, não apenas
obras dramáticas dotadas de requinte intelectual, mas também peças de gêneros
populares que tiveram grande sucesso junto ao público. Na esteira desta historiografia,
buscaremos entender o teatro de revista, considerando sua estrutura dramatúrgica, como
gênero popular que possibilitou a disseminação e o debate de diferentes opiniões,
comportamentos e projetos no Rio de Janeiro do início do século XX.
decadência do teatro brasileiro decorrente da ascensão dos gêneros ligeiros. Claudia Braga, em sua obra
Em busca da brasilidade: teatro brasileiro na primeira república, critica essa ideia. Para ela, não há
como observar uma crise no teatro brasileiro, visto que o período considerado como decadente foi
extremamente fértil em relação à vida cultural. Além disso, ela ressalta que o período anterior aos gêneros
ligeiros, exaltados pela literatura tradicional ―era formada por esmagadora maioria de textos estrangeiros‖
BRAGA, Claudia. Em busca da brasilidade: teatro brasileiro na primeira república. São Paulo:
Perspectiva; Belo Horizonte: FAPEMIG; Brasília: CNPQ, 2003, p.5.
49
MARZANO, Andrea. op.cit., 2008, p. 19.
50
MARQUES, Daniel. Teatro de intervenção: um resgate necessário (O teatro de revista e a política).
Trans/Form/Ação, São Paulo, 24: 41-46, 2001. Disponível em:
< http://www.scielo.br/pdf/trans/v24n1/v24n1a02.pdf>. Acesso em: 28 de janeiro de 2012
29
explícita possibilitava um maior divertimento do público, uma vez que ele ria e
comentava sobre personagens e episódios que eram conhecidos por toda a população.
Na revista O Mandarim, o personagem Barão de Caiapó é uma caricatura do barão João
José Fagundes de Rezende e Silva. Sua caricatura fica explícita ao ser apresentada o
caráter do personagem. O barão João José Fagundes de Rezende e Silva era uma figura
popular e esnobe.
A primeira fase da revista brasileira se desenvolveu no período entre 1884, ano
da consagração da peça O Mandarim, e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Esse
período foi caracterizado pela produção das Revistas de Ano, que levavam ao palco uma
revisão crítica do ano anterior. Para tal, as revistas eram guiadas por um fio condutor, os
compadres (a commère e o compère)51, que atravessavam todos os quadros, integrando-
os numa mesma história. O enredo era desencadeado no prólogo, que frequentemente,
ocorria numa região fora da cidade, muitas vezes num local místico, de onde os
compadres52 vinham.
A segunda fase teve início com a Primeira Guerra Mundial. Este evento
provocou uma queda nas exportações brasileiras, levando a uma crise econômica que
também afetou o mercado cultural. Alguns teatros foram fechados neste período, como
o São Pedro, o Recreio, o Lírico, entre outros. Segundo Veneziano, a guerra provocou
uma diminuição na presença de companhias estrangeiras no Brasil, o que levou a uma
valorização dos artistas locais, nacionalizando cada vez mais a revista 53. Na década de
1920, a revista sofreu diversas mudanças, que possuem ligações com as mudanças
socioculturais do período. Uma transformação importante foi a encenação de peças cada
vez mais recentes, que abordavam temas cada vez mais atuais. Por isso, as revistas de
ano tornaram-se obsoletas, sendo substituídas por diferentes revistas ao longo do ano.
A partir de meados da década de 20, os compadres deixam de exercer sua função,
51
Os personagens condutores da peça eram designados de compère e commère, pois eram eles que
―apadrinhavam‖ a peça, ou seja, o desenvolvimento da revista só era possível porque havia um motivo
para estas personagens estarem na capital do Brasil.
52
Não nos alongaremos, neste trabalho, nas características das revistas desta primeira fase, uma vez que o
nosso objetivo se restringe à análise de peças da década de 1920. Porém, cabe observar que a transição
entre as duas fases não ocorreu de forma absoluta, ou seja, algumas convenções da revista de ano foram
conservadas nas peças analisadas. Verificaremos isso mais adiante. Para um aprofundamento sobre as
revistas de ano, ver, entre outros, SUSSEKIND, Flora. As revistas de ano e a invenção do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Fundação Rui Barbosa, 1986; VENEZIANO, Neyde. O teatro de revista
no Brasil: dramaturgia e convenções. Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade Estadual de
Campinas, 1991.
53
VENEZIANO, Neyde, op.cit.,1991, p.40.
30
54
Os ―chefes de quadros‖ são personagens que comentam a ação dos chamados ―quadros de rua‖, ou seja,
quadros que se desenvolvem em um espaço ―de passagem‖. Ver CHIARADIA, Filomena. op. cit., p.93.
55
CHIARADIA, Filomena. op. cit., 2012, p. 117.
31
COMPÈRE- Por ano? Fazem-nos por dia, por hora, por minuto.
COMMÈRE- Em que fontes vão beber tantas idéias?
COMPÈRE – Você não leu a entrevista do Pirandello com o burro?
COMMÈRE – Eu não entendo a linguagem dos burros.
COMPÈRE- Mas há muito ilustre que entende.
COMMÈRE – E daí?
COMPÈRE – Consultam as últimas novidades da Folies Bergère, Nuevo
Mundo, London Comedy, Almanaque de anedotas e mais a graça de toda
gente56.
O diálogo aponta para uma produção cada vez mais veloz de revistas. Na última
fala do compère observa-se que muitas das revistas são influenciadas por companhias e
espetáculos europeus. Muitas peças apresentam paródias de outras obras. Porém, apesar
de grande influência de outros países, é importante pensar o quanto as revistas cariocas
retratam aspectos de sua própria sociedade.
Na revista Verde e Amarelo, escrita em 1925, José do Patrocínio Filho e Ary
Pavão discutem, através dos personagens, o interesse pela elaboração de uma revista
―genuinamente brasileira‖, bem como a definição de suas características. Este é o tema
condutor da revista, que se evidencia a partir do terceiro quadro quando Pindoba 57, um
pai de família brasileiro, após fantasiar seus filhos com objetivo de mendigar, explica
para o guarda que só assim consegue dinheiro, uma vez que é escritor de revista.
Pindoba começa a falar sobre a elaboração da sua peça nas primeiras cenas deste
quadro. O nome da revista de Pindoba é o mesmo da revista de Patrocínio e Pavão,
como se pode observar abaixo:
GUARDA – Só falta saber o título da peça
PINDOBA – Verde e Amarelo, meu irmão. Eu sou brasileiro!...O verde, que
é a esperança.
GUARDA – E o amarelo?
PINDOBA – O amarelo, se fosse verde, também era esperança....( a
Quininha) Quininha, meu coração,: anuncia a peça do teu homem, minha
velha.
D. QUININHA – Rir. Rir. Rir. Duas horas de agradável passatempo.
D. QUININHA – (ao Guarda) – Seu guarda, me empresta seu sarrafo?
Guarda – Que sarrafo?
D. QUININHA – O cacetete, para dar as três pancadinhas do estilo,
anunciando a função.
GUARDA – Homem... Eu já emprestei ele para um casamento de um colega
e trouxeram ele todo amarrotado... Marfim tá aí... Mas bate devagarzinho... 58
56
PORTO, Marques. A mulata (1925). 2ª DAP, cx. 31, n. 633.
57
Pindoba é o nome popular de uma espécie de Palmeira, trata-se de uma planta nativa do Nordeste
Brasileiro. Portanto, podemos observar a busca por tratar sobre peças e características brasileiras.
58
PATROCÍNIO FILHO, José; PAVÃO, Ary. Verde e Amarelo (1925). 2ª DAP, cx. 31, n. 635.
32
Além disso, o trecho acima aponta que Pindoba deseja encenar uma revista
genuinamente nacional, abordando temas então considerados nacionais, como por
exemplo os índios e o descobrimento do Brasil. O décimo quadro apresenta como
cenário uma praia agreste frequentada por índios. Um dos índios observa a proximidade
de uma caravela e comunica aos outros: ―(salta do rochedo e percorre aos brados os
bastidores) Alerta pessoal! Alerta! (com um grande gesto trágico) O Brasil está
descoberto!‖. Após a anunciação do fato, o seguinte coro é cantado em ritmo de samba:
1 INDIO
Nosso ranchinho assim.
Tavabão...
CORO
Oi!...
1 INDIO
Gente de fora entrou,
Trapaiou...
CORO
Oi!...
Nosso ranchinho assim,
Tavabão...
1 INDIO
Oi!...
CORO
Gente de fora entrou,
Trapaiou...
1 INDIO
Oi!...
Se acabou o nosso samba,
Tudo agora vai mudar!...
Vai ser feio o turum bamba!
Vai ser um pão pra virar!...
CORO
Nosso ranchinho assim , etc. etc.
1 INDIO (falando imperativamente)
Que alguém um sino repique
E avise a população
Previnam já o cacique
Desta atroz situação59.
O coro entoado nos permite observar a projeção, nos índios, de uma certa
imagem do ―genuinamente nacional‖, inclusive porque um deles afirma que ―gente de
fora‖, os estrangeiros, atrapalhariam sua vida e suas manifestações culturais. O samba e
o rancho são mencionados como manifestações anteriores à chegada dos europeus60.
Através da metalinguagem, os autores apontam aspectos essenciais na elaboração de
revistas de sucesso nos anos 1920: a participação nos debates sobre a nacionalidade e a
colocação do samba em lugar de destaque da definição da identidade nacional. De fato,
59
Ibidem.
60
Naquele contexto de meados da década de 1920, samba e rancho eram manifestações culturais ligadas
ao carnaval carioca. Entretanto, a expressão ―rancho‖ podia ter, na passagem citada, outros significados:
grupo de pessoas, comida, casa ou cabana.
33
61
Apud MARZANO, Andrea, op.cit., p.30-31.
62
MACHADO, Antônio de Alcântara Indesejáveis. Apud VENEZIANO, Neyde. op. cit., 2006.
34
***
63
BRAGA, Claudia. op. cit., p.xxi.
64
Era chamada de nu artístico a exibição de mulheres com pernas de fora, sem as antigas meias grossas.
35
65
CHIARADIA, Filomena, op. cit. , 2012, p. 21-22.
66
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 2004, p. 91.
67
MARTINS, William de Sousa Nunes Martins. Paschoal Segreto: ―Ministro das diversões‖ no Rio de
Janeiro (1883-1920). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em História Social, UFRJ,
2004.,p. 139
68
CHIARADIA, Filomena, op. cit., 2012, p. 58.
69
. MARTINS, William de Sousa Nunes., op. cit.,2004
70
GOMES, op. cit.,2004, p.87.
71
MARTINS, William de Sousa Nunes, op. cit.,p.54.
36
do século XX, Paschoal Segreto possuía diversas casas de diversão, como Salão Paris,
Maison Moderne, Pavilhão Internacional, Concerto-Avenida, Parque Fluminense.
Cabe destacar que seus empreendimentos eram bastante diversificados, indo
desde cinemas, sendo atribuída a ele a primeira casa de projeções cinematográficas,
localizada na Rua do Ouvidor, passando por cervejarias, teatros e vários equipamentos
de diversão. William Martins destaca que, no ramo dos cafés e cervejarias, a Maison
Moderne teve maior destaque. Este espaço era destinado a uma gama de diversões, tais
como roda-gigante, tiro-ao-alvo, montanha russa, teatro, cervejaria e etc.72.
Gomes destaca que Segreto chegou a possuir 18 casas de diversões entre
Campos, Niterói, Petrópolis, São Paulo e Rio de Janeiro73. De acordo com reportagem
do Correio da Manhã, de 26 de fevereiro de 1920, quando faleceu, em 22 de fevereiro
do mesmo ano, Pascoal Segreto deixou como legado os teatros São José, Carlos Gomes,
Teatro Maison Moderne e o arrendamento do Teatro São Pedro, todos situados na Praça
Tiradentes74. Após a sua morte, a empresa Segreto ainda persistiu. Seu primo, João
Segreto, assumiu a direção da empresa e novos investimentos foram feitos.
Além de possuir teatros, a empresa Paschoal Segreto fundou algumas
companhias. A principal delas foi a do São José, que era uma das principais companhias
de teatro do Rio de Janeiro, como já destacado anteriormente. Outra foi a Companhia de
Operetas e Melodramas, que funcionava no São Pedro e teve uma duração menor, de
1919 até 1922.
A Companhia do Teatro São José se destaca no teatro musicado por diversas
razões, entre as quais podemos mencionar a introdução, com sucesso, do teatro por
sessões. ―As apresentações teatrais eram feitas três vezes em uma mesma noite, nos
horários das 19h; 20h45 e 22h30. Aos domingos tinha-se também uma sessão às 15h e,
por vezes, às quintas, vesperais às 16h.‖ 75. Além disso, podemos observar a estabilidade
da companhia, com pequenas variações no quadro dos atores; a rotatividade das peças; a
ligação entre os autores e a Companhia e etc. Assim, como afirma William Martins, foi
a estabilidade e a forma de organização empresarial que permitiu que a Companhia
oferecesse ao público ―uma produção de revista sem interrupções nos seus quinze anos
de existência, fazendo com que o gênero se afirmasse de vez no cenário carioca.‖76
72
Ibidem, p. 28.
73
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 88.
74
MARTINS, William de Sousa Nunes, op. cit., 2004, p. 30.
75
MARTINS, William de Sousa Nunes, op. cit., 2004, p. 140.
76
Idem, p. 141.
37
No que tange aos artistas que essa companhia consagrou, podemos citar os
atores Cinira Polônio, Pepa Ruiz, Henriqueta Brieba, Francisco Alves e Vicente
Celestino. Entre os ensaiadores destacam-se Luiz Peixoto (que também foi autor de
diversas revistas), Eduardo Vieira, Isidro Nunes. Dos autores das peças apresentadas
pela Companhia, citamos a dupla Carlos Bittencourt e Cardoso Menezes, José do
Patrocínio Filho, Luiz Peixoto, entre outros.
A Companhia do São José lançou diversos nomes do cenário artístico brasileiro,
além de consagrar o gênero ligeiro musicado e, principalmente, a revista. Porém, nos
anos 20, a companhia passou por modificações que iam desde a reforma no teatro até a
proibição de apresentar peças de Cardoso de Menezes e Carlos Bittencourt, autores
consagrados da Praça Tiradentes e identificados, pela crítica, como defensores do gosto
do público. Essas alterações, que tiveram seu auge em 1926, tinham por finalidade
concorrer com as Companhias Trololó e Rataplan. ―A nova fase da Companhia do São
José acabaria, porém, não trazendo o resultado esperado pela Empresa Paschoal
Segreto, pois suas atividades foram encerradas em setembro, poucos meses após a
reestruturação‖ 77.
Portanto, a Companhia de Revistas e Burletas do Teatro São José, ao tentar se
adaptar às mudanças ocorridas no cenário do teatro musicado após a passagem das
companhias europeias Velasco e Bataclan, acabou sentenciando seu fim. Dentre as
diferenças que podemos apontar entre esta companhia e as formadas a partir de meados
da década de 1920, principalmente a Tro-ló-ló78, situa-se a tentativa de atrair um
público mais refinado. A Tro-ló-ló não apenas apresentava as novidades das peças
europeias, como modificava o espaço social do teatro ligeiro. Ao invés de escolher a
Praça Tiradentes, espaço consagrado pelas revistas da Companhia do Teatro São José e
conhecido por abarcar um público popular, a peça Fora do Sério, da Companhia Tro-ló-
ló, foi apresentada no Teatro Glória, na Cinelândia, locus frequentado por pessoas de
classes mais altas.
A distinção social se torna clara ao analisar textos jornalísticos:
Fora do Sério é uma revista como raramente se vê nos nossos teatrinhos de
gênero ligeiro. É fina, limpa e espirituosa, própria para o público da Avenida.
(...) A graça de Fora do Sério, com um ou outro double sens, apenas venial, é
bem diferente da que a maior parte dos nossos revistógrafos emprega para
forçar a gargalhada. A pornografia foi totalmente banida 79.
77
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p181.
78
Estas duas companhias são abordadas neste capítulo devido à escolha das fontes. Ou seja, a maioria das
revistas escolhidas subiu ao palco por meio dessas companhias.
79
O País, 31 out, 1925. Apud: GOMES, Tiago de Melo, op.cit., 2004, p. 170
38
A passagem transcrita acima reflete uma clara distinção social entre as peças
realizadas nos ―teatrinhos de gênero ligeiro‖ e na Avenida. A peça escolhida por Jardel
Jércolis, fundador da Companhia e sobrinho da compositora Chiquinha Gonzaga, foi
bem aceita pela crítica, uma vez que os autores eram conhecidos como homens de
letras, a cena era vista com mais luxo, e não com o desleixo que supostamente
caracterizava o teatro musicado da Praça Tiradentes. Os autores da peça, Oscar Lopes e
Humberto de Campos, já eram conhecidos pelo público da Avenida. Com base nessas
informações, Gomes afirma que a proposta dessa companhia era atrair o público da
Avenida para o teatro musicado, se diferenciando do teatro da Tiradentes. Além da
localidade, o preço dos ingressos se diferenciava do teatro musicado promovido pela
Companhia do São José. Gomes destaca que, enquanto o preço da cadeira comum do
Glória custava 5 mil-réis, no São José este era o preço da cadeira mais cara.
Apesar da busca de delimitação de uma certa identidade social, uma revista com
características típicas das que ocupavam os teatros da Praça Tiradentes foi encenada
pela Companhia Tro-ló-ló, ainda no ano de 1925. Trata-se da peça Fla-Flu, de Carlos
Bittencourt e Cardoso de Menezes, autores consagrados do teatro de revista tido como
popular. Porém, esta revista não teve a mesma recepção da apresentada anteriormente,
como se pode observar:
A revista dos srs. Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, ontem levados à
cena no Glória, não fica de certo aquém das outras obras dos aplaudidos
teatrinhos. A parceria, tantas vezes vitoriosa no teatro popular, repetiu seus
processos habituais, sem qualquer preocupação de novidade. 80
80
Jornal do Comércio, 5 dez. 1925. Apud: GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p.173.
39
espaço físico de maior circulação das classes médias e altas, a inserção de autores
―intelectualizados‖ na produção do teatro musicado, a introdução do nu artístico, a
realização de uma produção mais luxuosa, entre outros fatores, tinham por objetivo
buscar espaços mais reservados a esses segmentos sociais.
Uma análise do teatro sob o ponto de vista da história social exige reflexão sobre
a composição do público e o ―lugar social‖ dos autores. Na revista O Malho, há uma
crítica relativa ao público que frequentava o São José:
Aquele pessoal que nos dias de aperto da Avenida se junta para fazer ondas e
atropelar o burguês; que se pendura nos trens da Central e vai agarrado aos
carros pelo lado de fora, de baderna, da Praça da República até Cascadura;
que faz a torcida, no futebol, de pé, o sol a lhe queimar o coco, estava firme,
sexta-feira da semana passada, no São José. É o público das primeiras do
popular teatro da praça dos caboclos, e que comparece não para apreciar a
revista levada à cena, mas para gozar a atrapalhação dos artistas, das coristas,
dos maquinistas, dos eletricistas, do contrarregra, da orquestra e do maestro,
porque, já se sabe, em dia de première, no São José, ninguém ali se entende 81.
81
O malho, Rio de Janeiro, ano 24, n. 1.177, 4 abr. 1925.
82
Arquivo da Empresa Paschoal Segreto (AEPS), caixa 05. Este arquivo localiza-se na Biblioteca
Nacional, sessão de música.
40
Se compararmos o preço dos ingressos pagos nesse dia com o preço das entradas
de futebol, verificaremos que a diferença não era tão alta. Leonardo Pereira ressalta que
os ingressos vendidos para o campeonato sul americano custavam ―5$000 para as
arquibancadas e 3$000 para as gerais – preço que equivalia a um quilo de bacalhau,
duas entradas para o cinematógrafo ou uma assinatura mensal de O Paiz‖ 83. Nesse
sentido, podemos supor que a revista Verde e Amarelo, apresentada no teatro São José,
não foi frequentada apenas por pessoas dos segmentos sociais menos favorecidos, mas
também por camadas médias, que frequentavam os teatros da Praça Tiradentes, mas
também as partidas de futebol.
Em setembro do mesmo ano, a revista Verde e Amarelo foi reprisada. Para 20 de
setembro, a empresa Paschoal Segreto registrou os seguintes rendimentos: matinée
(743$000), 1ª sessão (3:100$000) e 2ª sessão (1:248$000). No que diz respeito aos
rendimentos da primeira sessão, verificamos que:
Vendidos Preço/ingresso
Friza 1 25$000
Camarote 17 25$000
Distinto 418 5$000
Poltronas 33 4$000
Galeria Nobre 17 4$000
Entradas 240 1$500
Fonte: AEPS, caixa 05.
Assim, podemos inferir que o público que assistiu à peça, nesse dia, era em
grande parte formado por pessoas de camadas médias e não apenas de camadas
populares, como poderíamos supor a partir da leitura da crítica citada. Assim, se
levarmos em conta os dados apresentados acima, podemos concluir que o crítico da
revista O Malho apresentava um olhar ―míope‖ sobre a população que frequentava o
Teatro São José.
Gomes apresenta outros dados que corroboram nossa análise relativa ao público
que frequentava as revistas no teatro São José. O autor realiza uma comparação entre o
público do São José e o público de outros teatros no dia 12 de janeiro de 1921, estreia
da revista Réco-Réco, de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, no São José. Neste
mesmo dia, o Carlos Gomes levava ao palco um romance policial, e no São Pedro
estava em cartaz a comédia A capital Federal, de Artur Azevedo. Todos os três estavam
localizados na Praça Tiradentes. Ao comparar os dados, Gomes observa que o preço de
83
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de
Janeiro (1902-1938). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 136.
41
um ingresso no ―lugar distinto‖ no Carlos Gomes e no São José era igual (3$000).
Enquanto no Carlos Gomes foram vendidos 78 ingressos deste preço, no São José foram
vendidos 24684. O que podemos concluir é que não eram apenas as classes mais baixas
que gostavam de assistir as revistas, mas também um público de camadas médias e
altas. Além desses dados, Gomes ressalta que o São José vendeu quatro vezes mais
ingressos do que os outros dois teatros juntos, ou seja, enquanto o Carlos Gomes vendeu
112 ingressos e o São Pedro 299, o São José vendeu um total de 2.658 ingressos,
somando as três sessões85.
Se analisarmos os dois dados trazidos por Gomes, observaremos que, apesar do
São José ter vendido maior número de ingressos nas ―cadeiras distintas‖, estes
correspondiam a menos de 10% do total de ingressos vendidos. Isso nos permite afirmar
que a estreia de uma revista no São José abarcava diferentes públicos, desde um público
de menor renda, que pagava 500 réis, até um público de maior renda. Portanto, podemos
concluir, sob outro ângulo, novamente, que o crítico de O Malho não considerava a
existência de um público variado, mas resumia este público apenas às classes populares.
Vale lembrar que a existência de um público variado não se limitava à Companhia de
Teatro São José, mas caracterizava os espetáculos de revista como um todo,
especialmente os apresentados nos teatros da Praça Tiradentes.
No que diz respeito aos autores de revistas, Carlos Bittencourt e Cardoso de
Menezes estão entre os mais conhecidos86. Cardoso de Menezes, abreviação do nome
Frederico Cardoso de Menezes e Sousa, nasceu em 31 de março de 1878, no Rio de
Janeiro. Ele era filho de musicistas, e seu pai, além de músico, era também teatrólogo e
escritor. Seu avô era o barão de Paranapiacaba (1827-1915), ―homem de grande
erudição, autor de várias obras e traduções e (...) gozava de prestígio e influência junto a
D. Pedro II‖87. Portanto, Cardoso de Menezes foi criado em um mundo de intelectuais e
artistas.
Cardoso de Menezes optou por seguir a carreira de teatrólogo. Iniciou sua
carreira escrevendo as comédias: ―Dr. Arthur‖ e ―O víspora em família‖. Em seguida,
no ano de 1904, escreveu a revista ―São Cristóvão por um óculo‖. Posteriormente,
84
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 94.
85
Ibidem.
86
Na Companhia do Teatro São José, estes autores foram os que tiveram maior número de montagens.
CHIARADIA, Filomena, op. cit.,2012, p. 100.
87
Ibidem, p. 104.
42
88
GILL, Rubens. ―O Século Boêmio‖. In: Dom Casmurro, Rio de Janeiro, ano.7, n. 338, 29 jan. 1944.
89
Ibidem
90
Ibidem.
91
MENEZES, Cardoso de. ―Sessão de homenagem a Carlos Bittencourt‖. In: Boletim da SBAT. ano 22,
n. 207, set. 1941, p. 12.
92
Ibidem, p.13
93
Ibidem, p. 16.
94
CHIARADIA, Filomena, op. cit.,2012, p.107.
43
em menos de 10 anos95. Luís Carlos Peixoto de Castro nasceu em Niterói, em 1889. Foi
caricaturista de diversas revistas: Revista da Semana, O Malho, O papagaio, Fon-Fon.
Na Revista da Semana produziu caricaturas em parceria com Raul Pederneiras, entre
1907 a 1914. No que diz respeito ao teatro, Peixoto escreveu sua primeira peça com
Bittencourt em 1911, chamada Seiscentos e Seis, e em 1912 estreou com Forrobodó.
Outras revistas e burletas foram escritas por essa parceria: Dança de Velho (1916),
Morro da Favela (1916), Três pancadas (1917), Flor de Catumbi (1918)96.
Peixoto não se dedicou apenas às artes, mas foi também industrial e
comerciante. Em 1920, participou de uma comissão do Ministério da Marinha que tinha
por destino Paris. Segundo Vasconcellos, foi por meio desta viagem que Peixoto trouxe
para a Companhia do São José ideias e métodos novos da Companhia Ba-ta-Clan97,
impulsionando a renovação daquele teatro. Peixoto, em 1922, foi nomeado para a chefia
da Repartição das Águas, mas mesmo exercendo trabalhos burocráticos continuou
produzindo peças.
Na década de 1920, sua parceria com Marques Porto se torna mais profícua. A
primeira estreia da dupla foi em 1924, com Secos e Molhados, que teve mais de 100
apresentações98. Entre 1924 e 1931 eles formaram uma das duplas mais produtivas e
bem-sucedidas da história do Teatro de Revista 99. Marques Porto, ao contrário de
Peixoto, não teve uma vida intelectual para além do teatro. Dedicou a maior parte de sua
vida ao teatro. Além de revistógrafo, Porto escreveu diversas canções, foi diretor e
ensaiador100. Foi também funcionário da Secretaria de Guerra, no cargo de Sub-Inspetor
da Polícia Marítima.
Agostinho José Marques Porto nasceu em 06 de janeiro de 1898, no estado de
Rio Grande do Sul, onde seu pai encontrava-se em serviço militar. Ele morreu, com 37
anos, em 12 de fevereiro de 1934. Sua carreira de revistógrafo iniciou-se em 1922, com
a revista Canalha das Ruas, em parceria com Ary Pavão101. Marques Porto dedicou 12
95
Essa parceria iniciou-se em 1924 e perdurou até 1931, um pouco antes de Marques Porto morrer
(1934). NASSIF, Luís. ―Marques Porto: o "ás" da revista‖. Disponível em:
<http://blogln.ning.com/profiles/blogs/marques-porto-o-as-da-revista>. Acesso em: 7 de março de 2013.
96
VASCONCELOS, Ary. A nova música da República Velha. S.l.: edição do autor, 1985, p. 245.
97
Ibidem, p. 246.
98
NASSIF, Luís. op. cit.
99
Ibidem.
100
Ibidem.
101
CASCAES, Laura Silvana Ribeiro. Queria bordar teu nome: a dança no teatro de revista. Dissertação
de Mestrado em Teatro. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, 2009, p.72.
44
anos, dos 37 que viveu, ao teatro. Escreveu cerca de 53 peças, grande parte delas em
dupla com algum parceiro.
Apesar de ter escrito um expressivo número de revistas, sua vida ficou por muito
tempo esquecida. Uma das razões para isto pode ter sido o irrisório reconhecimento da
revista pela intelectualidade. O grande número de peças do teatro musicado escritas,
tanto por Marques Porto, quanto por Bittencourt e Menezes, pode ter influenciado a sua
caracterização como escritores ―menores‖. Cabe observar, porém, que eles pertenciam
ao mesmo grupo do que aqueles que produziam e consumiam produtos literários:
Luís Peixoto, Carlos Bittencourt e outros artistas da indústria de
entretenimento (...) faziam parte da mesma elite burguesa consumidora de
produtos literários, mas de uma fração dessa elite que reagia contra a postura
anticultura popular dos grupos hegemônicos. Tentavam lidar com a questão
(crucial para a intelligentsia) da nacionalidade, lançando um olhar mais
benigno para o que mais aterrorizava as classes dominantes: o, digamos
assim, "pé na África" daquela sociedade. Para tanto, estavam usando um
meio de enorme popularidade – o teatro musical ligeiro –, com todos os seus
ingredientes principais: humor, sensualidade, música, dança e diversão 102.
102
LOPES, Antonio Herculano. ―Um forrobodó da raça e da cultura‖. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, v. 21, n. 62, out. 2006, p. 75.
103
Ibidem.
104
Ibidem, p.76.
45
como de ―renome no mundo das letras‖105, quanto autores que só escreviam revistas,
estiveram presentes enquanto diretores e conselheiros.
A SBAT foi fundada em 27 de setembro de 1917, tendo a maestrina Francisca
Gonzaga à frente deste movimento. Dentre os fundadores, podemos citar Bastos Tigre,
Luiz Peixoto, Odulvaldo Viana, Raul Pederneiras106, entre outros. A SBAT surgiu com
a finalidade de administrar e arrecadar direitos autorais de seus associados 107. O
primeiro diretor foi Paulo Barreto, o João do Rio. Posteriormente, outros autores
presidiram a SBAT: Bastos Tigre (1927-1928). Carlos Bittencourt (1936-1937),
Cardoso de Menezes (1940-1941).
A Sociedade era composta por uma diretoria e pelos conselheiros deliberativos
Segundo as informações contidas em Boletim da SBAT de 1940, Raul Pederneiras,
Bastos Tigre, Luiz Peixoto, Bittencourt, Menezes, Marques Porto pertenciam ao
conselho deliberativo108, que tinha mandato vitalício. Até 1940, o Conselho era
composto por 20 nomes. Já em 1946, o Boletim aponta 31 membros do conselho. Além
de alguns já citados, estão presentes os nomes de Affonso de Carvalho, Olegário
Mariano, Heitor Villa-Lobos, Procópio Ferreira, entre outros109.
Os nomes mencionados acima fizeram parte da história do teatro, mas muitos
deles não se dedicaram apenas à dramaturgia. Bastos Tigre (1882-1957), por exemplo,
autor de uma revista analisada nesse trabalho, teve a maior parte da sua obra
representada pela Companhia Tró-ló-ló. Engenheiro formado pela escola Politécnica,
colaborou, como humorista e como jornalista, em várias revistas e jornais, como por
exemplo O Rio Nu, Tagarela, Correio da Manhã. Escreveu peças de teatro, mas
também poemas110, o que o aproximava dos ―homens das letras‖.
A sua aproximação com os literatos não era meramente ideológica, mas também
física. Por intermédio de Emílio Menezes, Tigre passou a frequentar a confeitaria
Colombo, onde se reuniam literatos como Olavo Bilac, Emílio Menezes, Guimarães
Passos, Pedro Rabelo, Belisário de Souza, José do Patrocínio, Martins Fontes, Oscar
105
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., p.175
106
Disponível em: <http://www.casadoautorbrasileiro.com.br/sbat/historico> Acesso em: 18 de março de
2013.
107
Ibidem.
108
Boletim da SBAT, ano 22, n. 194, ago-set. 1940.
109
Boletim da SBAT, ano 27, n. 229, abr-ago. 1946.
110
―Bastos Tigre: um dos fundadores da SBAT‖. In: Revista da SBAT, ano 36, n. 299, set-out 1957, p.4.
46
Lopes, entre outros111. É o próprio Bastos Tigre que nos explica como ele conheceu os
literatos desta roda:
Quando em 1898, cheguei ao Rio, com meus dezesseis anos, vindo de Recife
estudar engenharia (...) esplendia, em pleno fulgor, a constelação de que era
‗alfa‘ Olavo Bilac. Foi, entretanto, Emílio de Menezes a primeira figura
literária que conheci pessoalmente.
(...)
[Tigre mostrou a Menezes as provas do livro de versos que compusera] e em
vez de gabos de praxe, das frias amabilidades que se costumam fazer em tais
circunstâncias, desandou-me uma série de censuras e reprimendas num tom
irritado e violento.(...). Dias depois ele me apresentava paternalmente à
insigne e alegre roda literária da Colombo:
- Conheçam aqui esse animal de pêlo! Retumbou Emílio, apontando-me à
roda: Bilac, Pedro Rabelo, Plácido Júnior 112.
Tigre, em seu livro, afirma que pertencia tanto à roda da Colombo113 quanto à do
café Papagaio114, como ressalta na seguinte passagem: ―Raul Pederneiras com Kalixto
Cordeiro e outros artistas do lápis, Luiz Edmundo e os simbolistas formavam na roda do
Papagaio, onde tomavam café e também outras coisas mais. Eu pertencia a todas as
turmas‖115.
Bastos Tigre, portanto, se configurava como um homem pertencente às rodas
literárias. Ele participou da chamada Sociedade Brasileira de Homens de Letras,
fundada em 1915 por Bilac e Oscar Lopes. Essa Sociedade foi constituída com o intuito
de defender os direitos autorais dos escritores, e contava com a participação de Luís
Edmundo, Olegário Mariano, Emílio de Menezes, Sebastião Sampaio, Aníbal Teófilo,
Humberto de Campos, além de outros e dos fundadores já citados. A associação, porém,
durou pouco. Em setembro do mesmo ano, ela se desfez em função de dificuldades
econômicas.
Tigre era, assim, um legítimo ―homem das letras‖. Publicou vários livros e teve
uma intensa vida jornalística. Porém, não se imortalizou na principal associação
literária, a Academia Brasileira de Letras. Barbosa Lima Sobrinho, que escreveu o
prefácio do livro Reminiscências, de Bastos Tigre, afirma que a razão por não ter
conquistado uma cadeira na Academia foi ter se candidato muito tarde, quando quase
111
TIGRE, Bastos. Reminiscências: a alegre roda da Colombo e algumas figuras do tempo de
antigamente. Brasília: Thesaurus, 1992, p. 16.
112
Ibidem, p. 37-38.
113
Confeitaria localizada na Rua Gonçalves Dias.
114
Vizinho da Confeitaria Colombo, ficava entre a rua do Ouvidor e a Sete de Setembro. Sobre esse café,
ler GOMES, Danilo. Antigos cafés do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Kosmos, 1989, p. 91-98.
115
TIGRE, Bastos, op. cit., 1992, p. 16.
47
todos os seus companheiros que pertenciam à Academia já estavam mortos, como por
exemplo, Olavo Bilac, Emílio de Menezes,Valentim Magalhães116.
Raimundo de Menezes escreveu, na biografia de Tigre, que ele pensou em se
candidatar quando Emílio de Menezes, seu amigo, morreu, em 1918. Porém, desistiu
por não querer concorrer com seu amigo Humberto de Campos. Em 1925, resolveu se
candidatar para cobrir a vaga de Alberto Faria. Porém, competiu com o poeta Luís
Carlos, o senador Antônio Azeredo e outros dois candidatos. Quem acabou saindo
vitorioso foi Luís Carlos117. Em 1937, novamente Tigre se candidatou para ocupar uma
cadeira que se encontrava vazia. Concorreu com Viriato Correia, Jorge de Lima,
Cassiano Ricardo e Basílio de Magalhães, e novamente foi derrotado. Cassiano Ricardo
recebeu 18 votos, enquanto Tigre recebeu 11. Apesar de não ter sido eleito, Tigre não se
sentiu derrotado, como afirmou:
Não tive propriamente derrotas nas eleições que disputei. Explico. Com o
sistema eleitoral dos quatro escrutínios, adotado pela Academia, o candidato
pode não ser eleito, sem contudo, dever considerar-se derrotado. De uma das
vezes, por exemplo, tive votos de sobra para triunfar; e de quase todos os
acadêmicos, conforme vim depois saber; mas os votos foram espalhados
pelas várias fases do pleito 118.
116
LIMA SOBRINHO, Barbosa. Prefácio. In: TIGRE, Bastos, op. cit., 1992, p.12.
117
MENEZES, Raimundo. Bastos Tigre e „la belle époque‟. São Paulo: Edart, 1966, p. 364-365.
118
Ibidem, p. 373.
119
PIRES, Paulo Roberto. ―No mínimo‖, jan. 2003.
Disponível em:< http://www.editoraantiqua.com.br/imprensa/selvagem.htm> Acesso em: 25 março 2013.
48
O que esse fragmento nos demonstra é que Luiz Peixoto conheceu e possuía
amizade com escritores e caricaturistas que pertenciam, também, ao círculo de amizade
de Bastos Tigre. Não sabemos o quanto Luiz Peixoto e Bastos Tigre eram amigos, mas
sabemos que eles pertenciam a grupos sociais semelhantes. Luiz Peixoto colaborou
como caricaturista em quase todos os jornais e revistas do Rio124, o que nos leva a
acreditar que os espaços de sociabilidade eram próximos. Além disso, Luiz Peixoto e
Tigre trabalharam juntos em algumas das produções de teatro. Enio e Vieira citam a
120
Como estuda Velloso em sua obra Modernismo no Rio de Janeiro.
121
VELLOSO, Mônica Pimenta, op. cit.,1996, p. 41.
122
Ibidem, p. 164.
123
ENIO, Lysias; VIEIRA, Luis Fernando. Luiz Peixoto: pelo buraco da fechadura. Rio de Janeiro:
Vieira &Lent, 2002, p. 51 e p.55.
124
Ibidem, p. 63.
49
revista Dito e Feito, de Bastos Tigre e Eduardo Vitorino, na qual Luís Peixoto foi
figurinista125.
No livro Reminiscências, Tigre escreve um pouco sobre Carlos Bittencourt, o
considerando como uma figura importante da vida carioca. Na obra, Tigre não fala da
relação que eles possuíam, mas relata sobre o pseudônimo ―O Assombro‖ que
Bittencourt utilizou-se na coluna policial de O Paiz. Tigre observa que, mesmo doente,
dedicou-se ao teatro e ao jornalismo, com tamanha intensidade, sendo, portanto,
caracterizado como um assombro em diversos âmbitos de sua vida.
O que eu aqui vou relatar foi familiar à roda de jornalistas e aos escritores de
teatro frequentadores da SBAT. É um caso de humorismo macabro, que não
conheço igual, contado ou lido. Foi o seu herói, o Carlinhos Bittencourt,
repórter que depois se tornou famoso como autor de revistas de teatro, de
grande sucesso em nossos palcos populares.
A ‗scie‘ com que comentava todos os casos:
- ―É um assombro!‖ Deu-lhe o apelido com que foi sempre conhecido entre
os colegas: era os da roda da imprensa e teatro ‗o Assombro‘. E assombroso
foi ele, realmente. Esse homem que tanto fez ele rir o público com as suas
cenas de revista, riu ele próprio, durante anos a fio, da doença, do sofrimento
e até da morte. Assombrosa foi a sua atitude de intrépida serenidade, mais do
que isto, de permanente bom-humor, perante o martírio que era sua vida, nos
últimos tempos.
Passava meses de cama, em rigoroso regime. À mais ligeira melhora deixava
o leito e a casa e, contrariamente às ordens do médico, aparecia nos jornais,
nos cafés, na SBAT, a palestrar, a contar episódios de teatro, de imprensa 126.
Este trecho do livro de Tigre nos mostra certa familiaridade com Bittencourt e
ressalta a presença deste último em espaços que ele também frequentava, como a
SBAT, os cafés, as redações dos jornais. Portanto, podemos afirmar que Bittencourt
também partilhava de ambientes sociais semelhantes ao de Tigre. Cabe ressaltar, ainda,
que Bittencourt e Tigre escreveram uma peça juntos, chamada Stá salva a pátria:
revista (1916), com colaboração também de Rego Barros.
Não pretendo esmiuçar as diversas relações sociais entre os autores aqui
analisados, ou seja, tratar sobre o quanto Cardoso Menezes ou Marques Porto estavam
ligados a Bastos Tigre, a Patrocínio Filho, a Olegário Mariano, a Bilac e etc. O que
busquei, ao apontar algumas das relações sociais e os locais de sociabilidade, foi
elucidar sobre a possibilidade de integração dos revistógrafos em um ambiente
intelectual amplo, no qual pertenciam os ―homens das letras‖, os humoristas, jornalistas
e etc..
125
Ibidem, p.169.
126
TIGRE, Bastos, op. cit., 1992, p. 121.
50
CORO
Seu Tanajura
Vamos embora
Faça a mistura
Sem mais demora!
Essas comidas
Bote pra fora,
Pois são pedidas
A toda hora!
Nos teatrinhos
Nacionais
(...)
TANAJURA
Tem muito tempo,
Devagar!
O Zé-Povinho
Vai gostar!
O meu tempero,
Especial, é mesmo o suco,
É sem rival!127
127
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega (1925), 2ª DAP, n.683 - cx. 33.
51
No trecho acima, os autores fazem alusão a uma palestra proferida por Graça
Aranha, intitulada ―Espírito Moderno‖, que ocorreu na Academia Brasileira de Letras
em 1924. Esta palestra marca o rompimento do modernismo com o academicismo e,
consequentemente, a ―incomunicabilidade entre (...) a geração parnasiano-simbolista e a
iconoclasta geração modernista‖133. A referência a este acontecimento na revista sugere
que ele teve uma repercussão ampla134 na cidade do Rio de Janeiro no período.
Exatamente por saber do que se tratava, o público ria dos personagens e das alusões, o
que era, possivelmente, o esperado pelo autor.
No que diz respeito ao elemento alusivo das revistas, Chiaradia contradiz a
afirmação de Veneziano de que a compreensão de uma revista só ocorreria se
128
Cabe observar que, nas peças, as transgressões que ocasionam o riso estão ligadas às mudanças de
costumes. Portanto, a dicotomia entre ―tradição‖ e ―modernidade‖ ocasionava riso.
129
CHIARADIA, Filomena, op. cit., 2012, p. 93.
130
Oficial do exército, Benjamin Constant foi um dos principais organizadores do movimento que depôs
a Monarquia. Participou do Governo provisório Republicano, como Ministro da guerra e da Instrução
Pública.
131
Foi o proclamador da República e primeiro presidente do país.
132
TIGRE, Bastos. Zig-Zag (1926). 2ª DAP, cx 37, n. 785.
133
MURARI, Luciana. ―Literatura e transformação da sociedade no debate intelectual brasileiro: dos
―modernistas‖ de 1870 aos modernistas de 1922‖. In: Antares, Caxias do Sul: v.1, n.2, jul-dez 2009,
p.180.
134
Não sabemos para qual público-alvo os autores escreveram a citada peça, porém, se observarmos o
local que a peça foi encenada pela primeira vez (Teatro Glória), a companhia (Trolóló) e o autor (Bastos
Tigre), pode-se concluir que a repercussão do fato pode ter sido ampla para um público mais elitizado,
público que costumava frequentar a Avenida Central.
52
135
CHIARADIA, Filomena, op. cit., 2012, p. 94.
136
Esse quadro será analisado na segunda parte dessa dissertação.
137
CHIARADIA, Filomena, op. cit., 2012, p. 94.
138
PROPP, Apud: GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 36.
139
Abordaremos, na segunda parte da dissertação, como os autores compreenderam aspectos relativos à
modernização dos trajes.
53
início do século XX. Mônica Pimenta Velloso, em sua obra Modernismo no Rio de
Janeiro, estuda a presença do humor no modernismo carioca. Segundo Velloso, o uso
da linguagem humorística para caracterizar a nação, principalmente por meio da
carnavalização, foi uma constante para os intelectuais boêmios modernistas do Rio de
Janeiro. Segundo ela, o humor foi uma linguagem expressiva da modernidade devido à
sua agilidade na comunicação, sua ilustração do cotidiano e etc.140
Para Elias Thomé Saliba, a imaginação nacional produz não apenas um discurso
nacionalista, mas também uma representação humorística. De acordo com o autor, esta
representação é mais do que mera percepção sobre os acontecimentos, se define também
como uma construção discursiva da nacionalidade alternativa 141. Nesse sentido,
brasileiros ririam de si mesmos enquanto construiriam representações alternativas da
nação. Esse discurso alternativo não é evidente, pois dificilmente ele se enquadraria
numa narrativa amplamente aceita.
Velloso identifica os intelectuais boêmios modernistas como aqueles que veem
nas ruas uma forma de sociabilidade alternativa numa cidade que se modernizava a
qualquer custo. Esses autores se recusam construir uma imagem da cidade
europeizada142. Assim, suas obras estavam em consonância com a busca da brasilidade e
a valorização do nacional. A caracterização de intelectuais como boêmios, portanto, está
atrelada ao local de encontro e às suas publicações, muitas delas voltadas para a crítica
social.
A autora ainda ressalta a afinidade entre os caricaturistas e o teatro de revista. De
acordo com Velloso, a linguagem cênica do teatro de revista se assemelhava à dos
caricaturistas. Assim, a divisão em quadros, cenas curtas, alegorias e etc. estava em
conformidade com o humor jornalístico143. Além disso, vários intelectuais boêmios
eram revistógrafo cenógrafos e etc.
Portanto, o recurso humorístico foi um elemento essencial no período destacado,
como forma de construção de discursos alternativos em relação a diversos fatores, como
por exemplo, a nacionalidade, a modernização e a inserção do Brasil no mundo
moderno. Dito isto, podemos analisar os motivos que incitaram ao uso da comicidade
pelo teatro de revista. Se observarmos a presença de intelectuais boêmios na produção
140
VELLOSO, Mônica Pimenta. op. cit., 1996, p. 41
141
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira. São Paulo:
Companhia das letras, 2002, p. 31.
142
VELLOSO, Mônica Pimenta, op.cit., 1996, p.27.
143
Ibidem, p. 77.
54
144
Ibidem.
145
SALIBA, Elias Thomé, op. cit., p. 89.
146
CHIARADIA, Filomena, op. cit., p. 111.
147
Apud CHIARADIA, op.cit., p..112.
55
148
RABETTI, Maria de Lourdes. op. cit.,, 2007, p. 16.
149
Ibidem, p. 38.
150
MENEZES, Cardoso de. op. cit., 1941, p. 14.
56
151
FERREIRA, Adriano de Assis, op.cit., 2010, p. 55.
152
SOUSA, Maria Célia Félix. Teatro e cinema: espaço público e cultura na identidade do Rio de Janeiro
(1900-1940). Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano. Rio de Janeiro: Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 2007, p.110.
153
Ibidem, p. 112
154
BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 1997, p. 79.
57
criminalidade.. Havia uma preocupação com o público noturno, uma vez que eles eram
associados às categorias criminais, ―que podiam estar tramando infinitos crimes, ou
155
então pela possibilidade de estar se realizando o jogo ilegal‖ . Apesar da forte
perseguição aos jogos, Bretas observa que somente o jogo de rua, mais popular, era
objeto de repressão156, apesar das elites também praticarem diversas formas de jogos.
Nesse contexto se insere a fiscalização aos teatros. Bretas afirma que o
policiamento dos teatros ―era uma das tarefas essenciais realizadas pelos delegados
auxiliares, que presidiam os espetáculos sempre alertas para a possibilidade de ocorrer
157
conflitos pela reunião de multidões‖ . Os conflitos poderiam ser provenientes das
reclamações e vaias que eram frequentes nas torrinhas, lugar mais alto e mais distante
do palco, onde se concentrava um público de jovens estudantes158 e de segmentos
sociais menos favorecidos159, que se manifestavam sobre tudo com bastante barulho.
Além da fiscalização dos estabelecimentos e da concessão de licenças, a polícia
civil também era responsável por analisar textos teatrais. O Decreto nº 14.529, de 9 de
dezembro de 1920, estabelece que a apresentação de qualquer peça teatral requer
censura prévia feita pelo 2º delegado auxiliar da polícia. De acordo com o Art. 39. § 5º:
Na censura das peças teatrais a policia não entrará na apreciação do valor
artístico da obra; terá por fim, exclusivamente, impedir ofensas à moral e aos
bons costumes, às instituições nacionais ou de países estrangeiros, seus
representantes ou agentes, alusões deprimentes ou agressivas a determinadas
pessoas e a corporação que exerça autoridade pública ou a qualquer de seus
agentes ou depositários; ultraje, vilipêndio ou desacato a qualquer confissão
religiosa, a ato ou objeto de seu culto e aos seus símbolos; a representação de
peças que, por sugestão ou ensinamento, possam induzir alguém [a] prática
de crimes ou contenham apologia destes, procurem criar antagonismos
violentos entre raças ou diversas classes da sociedade, ou propaguem ideias
subversivas da sociedade atual160.
155
Ibidem, p. 84.
156
Ibidem, p. 85.
157
Ibidem, p. 83.
158
MENCARELLI, Fernando, op. cit., 1999, p. 142.
159
Porque ali os ingressos eram mais baratos.
160
BRASIL. Decreto n. 14.529, de 9 de Dezembro de 1920 – Republicação. Disponível em:
<http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-14529-9-dezembro-1920-503076-
republicacao-93791-pe.html> Acesso em: 07de outubro de 2011
161
Reportagem realizada por Vinicius Zepeda e publicada no site da FAPERJ. Disponível em:
<http://www.faperj.br/boletim_interna.phtml?obj_id=2289> Acesso em: 29 de maio de 2010.
58
Porém, sua atuação foi restringida pela censura policial, que continuou existindo.
Assim, depois da peça ser aprovada no Conservatório, tinha que passar, também, pelo
crivo policial. Galante de Sousa caracteriza esse conflito de jurisdição da seguinte
forma:
(...) [O Conservatório] nunca passou de uma simples auxiliar da censura
policial dos teatros, ou antes, das obras dramáticas... O Conservatório
Dramático Brasileiro ressentiu-se e morreu desse desacerto dos poderes
públicos; quiseram que ele vivesse exclusivamente para a censura; para a
censura bastava a polícia168.
162
SOUSA, Maria Célia Félix, op.cit.,p. 143-144.
163
Ibidem, p. 143.
164
SOUSA, José Galante de. op. cit.,, 1960, p. 309.
165
Ibidem.
166
ROSA, Seleste Michels da. ―Censura teatral no Brasil: uma visão histórica‖. In: Revista Eletrônica
Literatura e Autoritarismo: Literatura: Compreensão crítica, Universidade Federal de Santa Maria, v.1,
n. 14, jul/dez. 2009. Disponível em: <http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/num14/art_08.php>. Acessado
em: 08 de setembro de 2011.
167
SOUSA, José Galante de, op.cit., 1960, p. 332.
168
Ibidem, p. 319.
59
169
GARCIA, Miliandre. A censura de costumes no Brasil: da institucionalização da censura teatral no
século XIX à extinção da censura da constituição de 1988. Trabalho apresentado à Coordenação-Geral de
Pesquisa e Editoração-CGPE como parte dos requisitos necessários à conclusão da bolsa de pesquisador
do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa da Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 2009.
Disponível em: <http://www.bn.br/portal/arquivos/pdf/miliandreGarcia.pdf>. Acessado em: 10 de
setembro de 2011, p. 7 - 8
170
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís. Cangote Cheiroso (1927). 2ª DAP, cx. 51, n. 1201.
60
Bastos Tigre, apresentada em 1926, no Teatro Glória, a censura é abordada pelo mesmo
viés, mas o autor a associa a aspectos relativos à moda:
Deodoro – Em todo caso, pretendemos fazer uma reclamação em regra à
Escola de Belas Artes e ao Instituto Histórico. O sr. quer acompanhar-nos?
Espírito – Com todo o gosto, mas creio que não adianta nada. Isso hoje é com
a Censura Policial, ela que legisla sobre as pernas de fora.
Benjamin – Não era essa a república dos meus sonhos.
Espírito – Entretanto, posso fazer melhor. Mostro-lhes os últimos figurinos
para homens, os senhores vestem-se de acordo com eles e voltam para seus
lugares lá no cocuruto da Soberania Nacional171.
O trecho acima faz parte do quadro já apresentado neste capítulo. Porém, cabe
observar que as falas dos personagens são justamente relativas aos trajes. Deodoro da
Fonseca e Benjamin Constant vestem em cena uma roupa em estilo romano e querem
reclamar sobre isso. O Espírito Moderno afirma que quem cuida do figurino dos
personagens é a polícia, através da censura das ―pernas de fora‖. Esse termo transmite,
claramente, a idéia de que a censura se voltava, principalmente, para a presença de
conotação sexual e apelos sensuais.
Portanto, podemos observar que, em ambos os textos, a censura é retratada com
relação aos aspectos morais, ou seja, censurava-se aquilo que pudesse ferir os bons
costumes da família tradicional brasileira. Assim, temas relativos a sexo, desejos
carnais, gravidez e etc. eram frequentemente censurados. Por isso as revistas, nesse
período, abusavam do duplo sentido, disfarçando as referências, conquistando o cômico
e, ao mesmo tempo, a aprovação dos censores.
171
TIGRE, Bastos. Zig-Zag (1926). 2ª DAP, cx. 37, n. 785.
61
172
É a capital, em suma, a grande protagonista da revista .
172
SUSSEKIND, Flora. As revistas de ano e a intervenção do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira: Fundação Rui Barbosa, 1986, p. 39.
173
ABREU, Maurício de. op.cit., 1987a, p. 41-42.
62
sofreu forte expansão, uma vez que este tipo de transporte permitiu maior mobilidade
tanto da classe trabalhadora quanto da elite. A necessidade de transportes mais
eficientes estava relacionada às crescentes dificuldades de moradia na região central,
explicadas, em parte, pelo inchaço populacional decorrente da abolição e de correntes
migratórias oriundas de outras partes do Brasil e de países estrangeiros. Todo este
processo, como se sabe, incitou o deslocamento da população pobre para arrabaldes
mais distantes, possibilitando a formação do subúrbio. Já as elites se beneficiaram dos
meios de transporte para se locomoverem para regiões mais afastadas, dando início ao
processo de urbanização da Zona Sul.
Embora o tráfego ferroviário tivesse permitido uma desconcentração urbana, o
centro da cidade ainda era o principal local de moradia das classes mais baixas.
Segundo Abreu, o centro garantia formas de sobrevivência, seja através do comércio
ambulante, seja em função da facilidade de acesso às fábricas174. Portanto, grande parte
dos imigrantes, ex escravos e demais trabalhadores continuaram na região central,
agravando assim o problema habitacional, pois a oferta de imóveis era baixa e o preço
dos aluguéis era alto. Assim, modos precários de habitação, como cortiços, casas de
cômodo e outros, eram comuns na região central do Rio de Janeiro na virada do século
XIX para o XX.
Desse modo, o processo de desenvolvimento industrial na cidade ocorria de
forma contraditória. Ao mesmo tempo em que se iniciava a modernização das estruturas
urbanas mais adequadas ao capitalismo, a questão habitacional ainda constituía um
grande problema. Além disso, as relações de trabalho assalariado eram dificultadas
pelas diversas epidemias que assolavam a cidade, dizimando parte da mão-de-obra175.
Com o objetivo de modificar tal situação e resolver as contradições, o início do
século XX é marcado por uma participação mais ativa do Estado no processo de
urbanização. A primeira grande remodelação urbana foi a empreendida por Pereira
Passos, engenheiro que se tornou prefeito da cidade do Rio de Janeiro em 1902. Esta
tinha por proposta modernizar a capital brasileira e tornar o Rio símbolo da civilização
do Brasil. Assim, ela foi baseada num tripé, que consistia em higienizar, embelezar e
civilizar.
A civilização da cidade estava atrelada à pavimentação de ruas, à construção de
calçadas, ao alargamento de ruas, à abertura de túneis, à construção de avenidas e etc.
174
ABREU, Maurício. op. cit., 1987b, p. 13.
175
Ibidem, p. 14.
63
176
NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do
século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.61.
177
Ibidem, p. 70.
178
VELLOSO, Mônica Pimenta. As tradições populares na Belle Époque Carioca. Rio de Janeiro:
FUNARTE/Instituto Nacional do Folclore, 1998.
179
ABREU, Maurício, op. cit.,1987a, p. 68.
64
180
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O cotidiano da República: elites e povo na virada do século. 1. ed.
Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1990, p. 32.
181
ABREU, Maurício, op. cit.,1987a, p. 90.
65
sociedade civil em geral182. Uma das razões das críticas era que o plano estava
descolado das questões históricas e culturais do Brasil e não incorporava as
necessidades locais. O teatro de revista também se inseriu no debate crítico do plano,
como se pode observar abaixo:
Coro:
Toda a cidade
Se remodela
Vai, na verdade,
Tornar-se bela!
Por toda parte!
Dia a dia
Impera a Arte
Da Engenharia!
A prefeitura
Já por seu lado
Goza a Ventura
do Doutor Prado
E Deus permita
Que ele não relaxe
Não faça fita
Do Senhor Agache!
Artista:
Olhe,
Repare,
Arranha céus aqui, ali!
Em Cascadura, no tal Catumbi183.
A música que abre o segundo ato da revista expõe uma crítica ao plano Agache e
à remodelação proposta por ele. A referência aos arranha-céus aponta para um dos
pontos do plano. Agache defendia que a construção de arranha-céus deveria ocorrer
apenas no centro, como forma de haver uma gradação de tipos e alturas184. A peça,
portanto, critica a ideia de Agache, destacando que no Catumbi e em Cascadura também
poderia haver arranha-céus.
As numerosas críticas e a reviravolta política da ―revolução de 1930‖
influenciaram para que o plano não fosse implantado. Apesar de arquivado, o plano
gerou discussões sobre a urbanização carioca e suscitou uma profissionalização no que
182
O trabalho realizado pelo professor Fernando Diniz Moreira faz uma referência a diversos jornais que
trataram desse assunto. Segundo ele, essa acusação se encontra nos artigos ―O plágio no urbanismo do
Sr. Agache‖ (Revista da Semana, 24 nov. 1928); ―Como se defende o Sr. Agache da acusação de
plagiario. A traição dos arquiivos‖ (O País, 2 dez. 1928). MOREIRA, Fernando Diniz. ―Urbanismo,
modernidade e projeto nacional: reflexões em torno do Plano Agache‖. In: Revista Brasileira de Estudos
Urbanos e Regionais, v.9, n.2, 2007.
183
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso de. É da fuzarca! (1928) 2ª DAP, cx. 59, n. 1.053.
184
MOREIRA, Fernando Diniz, op. cit. p. 12.
66
diz respeito ao planejamento urbano. Para alguns estudiosos, este plano é considerado o
primeiro plano diretor do país185.
Cabe observar que as questões urbanísticas e a sua influência nas questões
sociais estavam na ordem do dia e eram retratadas, frequentemente, pelas revistas,
mesmo não sendo diretamente identificadas. Por exemplo, nas peças observadas há
referências às favelas, seus moradores e suas diferenças em relação à população que
vivia ou passeava nos bairros da zona sul. O ambiente em que os personagens
circulavam era um local em transformação, onde a urbanização e o embelezamento
contrastavam com a desorganização das favelas e o ―caráter rural‖ do subúrbio.
Podemos verificar isso na peça A Mulata, de Marques Porto, de 1924. Nesta, a
abertura do primeiro ato se refere ao bairro de Botafogo, enquanto a abertura do
segundo quadro ocorre no Engenho Velho (freguesia que abarcava os bairros do
Andaraí Pequeno, Andaraí Grande, Tijuca e Aldeia Campista). As diferenças entre estes
dois quadros são diversas. No que diz respeito aos personagens, podemos averiguar que,
em Botafogo, os personagens que estão em cena são: Cocote, Coronel e seu chauffeur,
estes se encontram em um automóvel. Já no Engenho Velho encontramos um
verdureiro, um baleiro e um motorneiro dentro de um bonde. Embora a freguesia do
Engenho Velho não fosse propriamente exclusiva desses segmentos sociais, esta região
abrigava um grande contingente populacional de operários e vendedores. Na Aldeia
Campista, por exemplo, havia uma vila operária da Fábrica de Tecidos Confiança. Essa
fábrica foi mencionada em música de Noel Rosa, no início dos anos 1930:
Assim, nas cenas, a associação entre diferenciação social e espaço físico não
fica explícita, mas podemos subentendê-la, ao observarmos as características dos
personagens e dos meios de transporte utilizados por eles. .
185
Como entendido por Daniel Valter de Almeida. ―Plano Agache: a cidade do Rio de Janeiro como palco
do 1º plano diretor do país e a consolidação do urbanismo no Brasil‖. In: Anais do X Encontro de
Geógrafos da América Latina. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005, p.461-482. Disponível em:
observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal10/Geografiasocioeconomica/Geografiaurbana/02.pdf
Acesso em: 1dez. 2012.
186
ROSA, Noel. Três apitos. Disponível em: <http://letras.mus.br/noel-rosa-musicas/299248/>. Acesso
em: 02 de janeiro de 2013.
67
Nesse sentido, podemos supor que o teatro de revista tenha ocupado diversos
papéis. Além de divertir as plateias e expressar opiniões e projetos de seus autores, as
revistas apresentavam diferentes ideias sobre os assuntos em voga, ―atualizavam‖ o
público, davam voz aos seus componentes – que podiam pertencer a camadas sociais
diversas – e convidavam, enfim, ao debate político. E tudo isso de forma cômica,
informal e, por isso mesmo, atraente para os segmentos pouco acostumados à sisudez da
política institucional.
As formas alternativas de exercício de cidadania não eram restritas,
evidentemente, ao espaço das casas de espetáculos. Em relação aos espaços físicos onde
amplos segmentos poderiam exercer formas alternativas de cidadania, desde o início do
187
ABREU, Martha; MARZANO, Andrea. ―Entre palcos e músicas: caminhos de cidadania no início da
República‖. In: CARVALHO. José Murilo e NEVES, Lúcia (orgs.). Repensando o Brasil do Oitocentos.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
68
século XX, podemos citar o bairro da Cidade Nova, que alocou uma vasta população
negra deslocada do bairro da Saúde. Foi neste local e, mais precisamente, na Praça
Onze, que a cultura popular urbana de sambistas, chorões e batuques, se enraizou188.
Mônica Pimenta Velloso189 destaca a Casa da Tia Ciata (1854-1924), localizada
na Praça Onze, como um dos locais de resistência das tradições populares. Nascida na
Bahia, mãe de santo, a Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida) realizava em sua casa
festas, encontros religiosos e musicais. Ela e sua casa eram um referencial para a
comunidade negra e para a cultura popular, ―(...) em sua casa começava a se reunir um
grupo que seria importante para a formação daquilo que conhecemos hoje como samba
urbano e para a difusão do choro‖ 190.
Segundo Velloso, a casa da Tia Ciata tornou-se um lugar de resistência também
pelo fato de que o controle policial pouco alcançava aquele local. Casada com um
funcionário do gabinete do chefe de polícia, Tia Ciata conseguia contornar as investidas
policiais. Assim, apesar do controle policial, alguns espaços e festas, gradativamente,
foram sendo apropriados por diversos segmentos da sociedade. José Geraldo Vinci de
Moraes afirma que, com o tempo, as festas na casa da Tia Ciata foram abarcando uma
parte da classe média do Rio de Janeiro191.
Outro espaço que aos poucos passou a ser apropriado por diferentes segmentos
sociais foi a festa da Penha. José Murilo de Carvalho destaca que a festa portuguesa da
Penha ―aos poucos [foi] sendo tomada por negros e por toda a população do subúrbio,
192
fazendo-os ouvir o samba ao lado dos fados e das modinhas‖ . Portanto, no início do
século XX, a festa da Penha se transformou em uma das principais festas populares.
Houve uma grande apropriação desse ambiente pela ―cultura negra‖, com músicas,
danças, comidas e etc.
Portanto, foi nesses espaços que grande parte da população (negros, mestiços e
pobres) se inseria numa sociedade cada vez mais fragmentada e diferenciada, e era
nesses lugares que eles afirmavam a sua cultura. Como resultado desse esforço de
afirmação cultural, muitos revistógrafos definiram a cultura brasileira valorizando essa
cultura negra e popular. Assim, o processo de construção da identidade dos grupos
188
MORAES, José Geraldo Vinci. Cidade e cultura urbana na Primeira República. São Paulo: Editora
Atual, 2001, p. 75.
189
VELLOSO, Monica Pimenta, op. cit., 1988, p. 14.
190
MORAES, José Geraldo Vinci, op. cit., 2001, p. 77.
191
Ibidem, p. 77.
192
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.41.
69
marginalizados era retratado, nas peças analisadas, como parte essencial do ―caráter
brasileiro‖. Analisaremos mais adiante como as festas populares e suas formas de
integração social foram abordadas pelas revistas e como esses contextos foram inseridos
nos discursos sobre a construção de identidade nacional.
No que diz respeito à abordagem de temas políticos, nas revistas, estes poderiam
estar relacionados à grande efervescência política do período. Na década de 1920, o
sistema político adotado na Primeira República começa a apresentar sinais de
desequilíbrio. Além disso, a economia cafeeira se encontrava em declínio devido ao
aumento da concorrência, à queda dos preços e à insistência da superprodução e
valorização do café.
O processo eleitoral da Primeira República era marcado pelo revezamento entre
os candidatos do Partido Republicano Paulista e do Partido Republicano Mineiro. Nos
anos de 1921-1922, as contradições do sistema político são sentidas com mais clareza
no processo de sucessão presidencial. Os grupos dominantes de Minas e São Paulo
lançaram o nome do governador mineiro, Arthur Bernardes, como candidato da
situação. Porém, a candidatura oficial foi contestada pelas oligarquias dos estados Rio
de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul que organizaram um movimento
que ficaria conhecido como Reação Republicana, lançando a candidatura de Nilo
Peçanha.
A Reação Republicana pode ser explicada pela insatisfação com a política de
desvalorização cambial e o endividamento externo a fim de manter a valorização do
café, refletindo os interesses opostos no campo econômico entre as oligarquias dos
estados, como destaca Boris Fausto 193. Marieta de Moraes Ferreira ressalta a busca por
maior participação no sistema federalista, o que não representa que as oligarquias dos
estados dissidentes fossem contra o modelo oligárquico, mas que eles buscavam uma
distribuição mais igualitária dos poderes atribuídos a alguns estados 194.
A campanha da Reação Republicana teve um amplo apoio das camadas médias
urbanas de algumas capitais, principalmente do Rio de Janeiro. Além disso, os militares
que se encontravam descontentes com a política vigente na Primeira República se
tornaram fortes aliados. Ferreira e Pinto afirmam que o que contribuiu para a
aproximação dos dissidentes com os militares foram as chamadas ―cartas falsas‖
193
FAUSTO, Boris. A revolução de 1930: historiografia e história. 3. ed. São Paulo:Brasiliense, 1975.
194
FERREIRA, Marieta de Moraes. ―A reação republicana e a crise dos anos 20‖. In: Estudos Históricos,.
Rio de Janeiro, v.6, n.11, 1993, p.9-23.
70
195
FERREIRA, Marieta de Moraes; PINTO, Surama Conde Sá. A Crise dos anos 20 e a Revolução de
Trinta. Rio de Janeiro: CPDOC, 2003, p. 397.
196
Idem, p.400.
197
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís; BITTENCOURT, Carlos. Não quero saber mais dela (1927). 2ª
DAP, cx. 48, n. 1132.
71
Após esta fala, alguns populares o aplaudem, porém a enfermeira diz que ele é
louco. Posteriormente, entra a commère dizendo que o início da revista estava
entusiasmando-a, mas compère afirma que só um louco poderia dizer tais coisas.
Portanto, as palavras de Maluco podiam ser lidas como uma denúncia de que, na vida
real, o Brasil não era uma pátria livre, com direito de crítica e opinião. Nessa revista, há
198
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís. Cangote Cheiroso (1927). 2ª DAP, cx. 51, n. 1201.
72
candidaturas de Getúlio Vargas e João Pessoa contra Júlio Prestes. Os conflitos políticos
gerados após a vitória de Júlio Prestes desembocaram na Revolução de 30.
A década de 1920, portanto, foi um período em que o Brasil enfrentou crise em
diversos setores. A sociedade não mais comportava um sistema político baseado na
economia agro-exportadora. O crescimento urbano e industrial era cada vez mais latente
e as questões sociais estavam à flor da pele. Esta conjuntura reflete o desejo de inserir o
Brasil no hall das nações modernas, seja economicamente ou politicamente. E, naquele
contexto, ser uma nação moderna implicava em reconhecer características da
―brasilidade‖. Cabe ressaltar que as mudanças conjunturais tiveram fortes influências
nas formas sociabilização e de entretenimento realizadas no Rio de Janeiro, palco das
mudanças e inquietudes que o Brasil viveu nesse período.
.
74
199
VENEZIANO, Neyde, op.cit., 1991, p. 115-116.
200
Para Veneziano, enquanto podemos saber sobre a infância dos indivíduos, como foram criados, os
poetas que leram e etc., sobre os tipos tem-se imagens projetadas. Por isso a autora afirma que as atitudes
são externas, porque são projeções de seus vícios e ações. VENEZIANO, Neyde, op. cit., p.120.
201
TAVARES. Leonardo de Mesquita. ―A Mulata e sua música no Teatro de Revista brasileiro, entre o
ano de 1890 e a década de 1930: análise de exemplos‖. In: Anais do Congresso da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação (ANPOM), p.108-114. Disponível em:
<http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2008/comunicas/COM349%20-
%20Taveira.pdf> Acesso em: 11 de agosto de 2012.
75
202
CHIARADIA, Filomena, op.cit., 2012, p.156.
203
MENCARELLI, Fernando Antonio, op.cit., 1999, p. 211.
204
AZEVEDO, Arthur. O Bilontra. Apud: MENCARELLI, Fernando op. cit., p. 245-246.
76
és bela!‖. A beleza sucede das atratividades que o jogo acarreta, como o dinheiro
rápido, fácil e etc.
Cabe destacar que, nessa peça, a bilontragem não se restringia apenas ao
personagem principal, mas diversos personagens realizavam ações identificadas com a
bilontragem. Assim, segundo Mencarelli, Azevedo teria destacado que estas práticas
estavam ―disseminadas em diferentes instâncias da sociedade‖ 205.
Em O Tribofe, também de Artur Azevedo, as características apresentadas são
semelhantes às da bilontragem. Segundo a própria peça, o termo tribofe refere-se às
práticas de enganar ou trapacear, sendo usado para caracterizar as ações de diversas
classes sociais. Não apenas o povo realiza tribofes, mas os políticos e as classes mais
altas. Segundo Mencarelli, Azevedo buscou construir a imagem do Rio de Janeiro como
um local onde ―proliferam incontáveis formas de malandragem, como uma imensa
pândega onde bilontras não se cansam de fazer tribofes‖ 206.
Cabe destacar, porém, que em outros textos de Azevedo a bilontragem estava
associada a segmentos sociais mais restritos. Por exemplo, na peça Uma véspera de
Reis, de 1875, o personagem José, quando escravo, tinha se afeiçoado a pequenos
golpes para conseguir dinheiro. ―Ao chegar ao Rio de Janeiro, o encontro com a
capoeiragem teria sido uma forma de desenvolvimento desse traço do personagem‖ 207.
Portanto, para Azevedo, a escravidão e a capoeiragem208 estavam fortemente associados
à bilontragem.
A associação entre malandros e capoeiras foi estudada por diferentes autores.
Umas das autoras que realiza tal relação é Maria Ângela Borges Salvadori . Para
Salvadori, o malandro é uma figura republicana que se torna presente nas diversas
fontes históricas, principalmente a partir de meados da década de 10. De acordo com a
205
MENCARELLI, Fernando op. cit., p. p. 212.
206
Ibidem, p. 213.
207
Ibidem, p. 222.
208
O termo capoeiragem designa a prática da capoeira, ou seja, da luta-dança. Este termo foi utilizado,
também, para caracterizar práticas ligadas à desordem. Ver OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. Pelas ruas da
Bahia: criminalidade e poder no universo dos capoeiras na Salvador republicana (1912-1937).
Dissertação de Mestrado em História Salvador: Universidade Federal da Bahia., 2004, p. 10. Carlos
Eugênio Líbano Soares estuda o universo da capoeira no final do século XIX, no Rio de Janeiro, enquanto
fenômeno social e cultural da cidade. Segundo ele, ―grupos de negros ou homens pobres de todas as
origens, portando facas e navalhas, atravessando as ruas em correrias, ou indivíduos isolados, igualmente
temidos, conhecedores de hábeis golpes de corpo que passaram a tradição como ―capoeira‖, os
―capoeiras‖, como eram chamados, faziam parte integrante da cultura popular de rua de então‖ SOARES,
Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro 1850-1890. Dissertação
de Mestrado em História. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1993, p. 8. Disponível em:
<http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000071836&opt=1> Acesso em: 26 de
setembro de 2012.
77
209
SALVADORI, Maria Ângela Borges. Capoeiras e malandros: pedaços de uma sonora tradição
popular. Dissertação de Mestrado em História. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1990, p.
170.
210
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro.
6.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 290.
211
Apesar da existência de diferentes visões sobre o malandro ao longo do século XIX e XX – algumas
das quais retrataremos mais à frente – o personagem manteve características ligadas ao seu princípio
básico. Dentre os elementos mantidos estão a tendência natural ao ócio e à trapaça. Esses aspectos estão
presentes em todas as construções sobre o malandro no Brasil, sejam elas de antropólogos e sociólogos,
sejam de autores de teatro, revista e até mesmo de Chico Buarque. Gomes ressalta a permanência desses
elementos em sua dissertação: GOMES, Tiago Melo. Lenço no pescoço: o malandro no teatro de revista
e na música popular: “nacional”, “popular” e cultura de massas nos anos 1920. Dissertação de
Mestrado em História. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1998, p. 91.
78
212
O movimento intelectual da geração de 1870 foi lançado na faculdade de Direito de Recife, tendo
Tobias Barreto e Silvio Romero como seus principais mentores. Eles contestaram a teoria do direito
natural, provinda de um pensamento religioso, e passaram a adotar uma perspectiva histórica e evolutiva.
Esta geração era composta por grupos heterogêneos que abarcavam, entre outros, mulatos abolicionistas
como André Rebouças, membros das classes médias, da burguesia em formação e da própria elite
aristocrática, a qual não possuía maiores vínculos com o poder imperial. Porém, o que possibilita integrá-
los numa mesma geração literária é ―a perspectiva crítica ante o status quo da sociedade imperial, sua
situação de relativa marginalização em face do núcleo de poder constituído.‖ KUGELMAS, Eduardo.
―Revisitando a geração de 1870‖. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.18, n.52, jun.
2003.
213
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira
república. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 97.
214
AZEVEDO, Arthur. Viagem ao Parnaso. Apud: MENCARELLI, Fernando, op. cit., 1999, p.228-229.
79
ideias do autor, apesar de sua aproximação com a geração de 1870215, ela transmite um
pensamento que existiu e que se traduziu na perseguição policial aos ―vadios‖, cada vez
mais frequentes na cidade do Rio de Janeiro na virada do século 216. Isso pode ser
analisado quando se observa o código criminal de 1890. No livro III, das contravenções
em espécie, há referências ao jogo, à mendicância, à capoeiragem e à vadiagem, entre
outras práticas passíveis de punição. Por exemplo, o capítulo XIII, dos vadios e
capoeiras, determina a prisão por 15 a 30 dias para aqueles que:
215
Apresento na minha monografia de conclusão do curso de história da UNIRIO esta aproximação entre
Artur Azevedo e a Geração de 1870. AGUIAR, Mariana de Araujo. A peça Fritzmac como
representação da sociedade carioca: construção de imaginários sobre a questão habitacional e
abolicionista. Monografia de graduação em história. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
2010.
216
Bretas se dedicou a analisar as perseguições policiais e as razões para tal. Ver: BRETAS, Marcos Luiz.
A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
217
BRASIL, Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, que promulga o Código Penal. Disponível em:
<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049>. Acesso em: 5 de dezembro
de 2012.
218
Ibidem.
80
219
GOMES, Tiago de Melo, op.cit., 1998, p. 50.
220
GOMES, Tiago de Melo. ―Formas e sentidos da identidade nacional: o malandro na cultura de massas
(1884-1929)‖. Revista de História, São Paulo, v. 141, 1999, p.71.
81
221
GOMES, Tiago de Melo, op. cit.,1998, p. 58-59. Abordarei este tema mais adiante, quando tratarei das
representações da mulata.
222
GOMES, Tiago de Melo op. cit.,1998, p.56.
223
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Réco-Réco (1921). 2ª DAP, n.195, cx: 11 p. 12-13.
82
A imagem do malandro como bem humorado, amante das festas populares, não
estava presente apenas nas revistas carnavalescas. Dentre as peças que corporificam
essa imagem do malandro se encontra a revista É da fuzarca, de Bittencourt e Menezes,
datada de 1928. Segundo aponta Gomes, os autores demonstram com clareza como o
povo brasileiro encara as festas populares. O personagem Zé Povo, ao apontar as
vantagens da malandragem, exclama que a cidade do Rio de Janeiro é ótima de
morar224. Essa afirmação incita a personagem Lei a questioná-lo. O conteúdo da
pergunta não se refere a oportunidades de ascensão social, mas sim à presença da Festa
da Penha – , como se observa abaixo:
Zé (alegre) – Viva a felicidade! Viva quem me atirou no mundo, a
excelentíssima senhora minha mãe! (pausa e sorri) Como eu sou feliz!
(noutro tom) Almocei, esplendidamente, no jardim do palacete do Conde
Pereira Carneiro, onde tenho uma pensão gratuita... é só bater no portão e lá
vem a comidinha do pobre! (pausa) Pobre? Rico é o que eu sou! Os ricos
compram automóveis; eu, de graça eu vejo passar, e, quando quero dar um
passeio, já sabe: armo um tempo quente, vem a viúva alegre, e lá vou eu,
sereno e tranquilamente, descansar dessa agitação da cidade na pensão Meira
Lima! (...) Ah, como eu sou feliz!
LEI – Olá Zé Povo, alegre e satisfeito? Já sei: é a festa da Penha! 225
224
GOMES, Tiago de Melo, op.cit., 1998, p.103.
225
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. É da fuzarca (1928), 2ª DAP, cx. 59, n.1393, ato I, p.
14-15.
83
226
GOMES, Tiago de Melo, op. cit.,1998, p.34
227
Ibidem, p.12.
228
Ibidem, p. 14.
229
Ibidem, p. 37.
84
230
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 1999. p. 66
231
Ibidem., p.70.
232
Dentre as intenções do Plano Agache (1927-1930) constava a de erradicar as favelas, como se observa
em MATTOS, Rômulo Costa. ―Aldeias do mal‖. Disponível em:
<http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/aldeias-do-mal> Acesso: 17 de dezembro de 2012.
85
A peça, como destaca Gomes, demonstra que a malandragem não era apenas
uma personificação da população negra ou pobre, mas era representada como a ―própria
especificidade da Nação‖234. Essa mesma interpretação é encontrada no artigo de
Antonio Herculano Lopes intitulado ―Algumas notas sobre o mulato, a mulata e a
invenção de um país sem culpa‖. Lopes ressalta a importância do teatro de revista para
que tipos populares e a cultura da população negra e pobre se tornassem conhecidos. O
autor ressalta, ainda, que o malandro, associado à cultura negra até então, perde seu
referencial de cor na revista Duzentos e Ciquenta Contos, de Carlos Bittencourt e
Cardoso de Menezes, datada de 1921235. Nesta revista o personagem principal – Ressaca
– é um típico malandro, como se pode observar na música em que ele se apresenta:
233
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 1999, p. 71
234
Ibidem, p.71
235
LOPES, Antonio Herculano. Algumas notas sobre o mulato, a mulata e a invenção de um país sem
culpa. Disponível em: < http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/k-
n/FCRB_AntonioHerculano_Lopes_Algumas_notas_sobre_o_mulato_a_mulata_ea_invencao_de_um_pai
s_sem_culpa.pdf>. Acesso em: 4 de julho de 2012.
236
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Duzentos e Cinqüenta Contos (1921). 2ª DAP, , n.
279, cx. 15.
237
Na peça, a definição do personagem como homem branco fica evidente em uma das falas do próprio
personagem: ―E a senhora pensa que eu vou me rebaixar de sentar na sua mesa? Nunca mais. Eu é que
não quero. Tanto mais que vai se sentar na mesa um preto. Eu estou devendo mas sou branco‖
(BITTENCOURT; Carlos; MENEZES, Cardoso. op. cit., 1921).
86
238
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Duzentos e Cinqüenta Contos (1921). 2ª DAP, n.
279, cx. 15
239
Trataremos mais adiante sobre a relação entre português e brasileiro construída nesta peça.
240
A peça abordava um projeto de lei que visava proibir a entrada de imigrantes negros no país.
Voltaremos a ela mais adiante.
241
DaMatta, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco: 1986.
87
a amizade e a relação pessoal, que dizem que cada homem é um caso e cada
caso deve ser tratado de modo especial242.
***
242
Ibidem, p. 87-88
88
estudo voltado para esta personagem-tipo. Ele afirma que a mulata, enquanto
personagem, teve sua primeira aparição no teatro de revista no ano de 1889, em duas
peças: A República, de Artur Azevedo, e Bendengó, de Oscar Pederneiras. Em ambas, a
mulata estava associada à imagem da baiana. Essa associação também é descrita por
Lopes no seguinte fragmento:
Entre os papéis femininos, talvez o primeiro a surgir como ―tipo nacional‖
tenha sido o da baiana. Em certos grupos negros cariocas, a Bahia, já no fim
do século XIX, era considerada como a fonte da cultura afro-brasileira. Nas
peças de Artur Azevedo, a baiana aparecia em seu exotismo, com roupas
típicas, vendendo comidas típicas, mas também atraindo o olhar
masculino 243.
A mulata baiana era caracterizada, inicialmente, não pela cor das atrizes, já que
elas eram, em sua grande parte, brancas244, mas pelo requebrado, pela música e pelo
linguajar. Neyde Veneziano destaca essa última característica. Segundo ela, o linguajar
era oriundo das senzalas e incorporou modismos do meio urbano. Eram comuns erros
gramaticais e invenção de palavras, como as seguintes expressões: ―alicérceos,
fundamentá, inconomia, entrínseca, merecendente, tô afrônica, vô arrecitá‖ 245.
A representação da mulata foi se transformando ao longo do período. Segundo
Taveira, essa associação entre mulata e baiana perdurou até a década de 1920, quando a
mulata ganhou conotações cariocas. Além disso, a mulata passou a ser representada por
atrizes mestiças, passou a falar de forma mais adequada ao padrão culto da língua
portuguesa e se transformou em símbolo do samba e símbolo nacional, o que
observamos nas peças do período.
Na revista A Mulata (1925), de Marques Porto, a figura da mulata é destacada no
telão, apresentado no início da peça. Neste telão encontra-se escrito o seguinte:
Mulata, jambo mimoso
Sarará fresca, faceira
És a fruta brasileira
És o pitéu mais gostoso.
243
LOPES, Antonio Herculano. ―Vem cá, mulata!‖. Tempo, Departamento de História da Universidade
Federal Fluminense, Niterói, v.13, n..26, 2009, p. 88.
244
No que diz respeito à presença de mestiços no teatro, Lopes afirma que desde meados do século XVIII
até a chegada da corte no Brasil, atores mestiços eram frequentes na cena carioca. Porém, com a vinda da
família real e com a independência do Brasil, buscou-se apagar ―qualquer traço da cultura negra na
formação de uma arte nacional‖. Ibidem, p.86. Assim, atores mulatos passaram a ser maquiados para
disfarçar sua condição racial, tornando-se muito raro que um ator negro ou mestiço ocupasse a posição de
primeiro ator. Além disso, a presença de atores mulatos ou negros em espetáculos teatrais era reduzida em
comparação aos atores brancos. Para Lopes, não há uma precisão sobre quando os atores mestiços
passaram a fazer parte do quadro profissional de atores na cena carioca. Porém, ele afirma que, no início
do século XX, ―um espaço possível para o ator reconhecidamente mestiço começa a se formar‖ (Ibidem,
p. 86).
245
VENEZIANO, Neyde, op.cit., 1991, p. 129.
89
246
PORTO, Marques. A mulata (1925). 2ª DAP, cx.31, n. 633.
247
RIBEIRO, Manoel Pinto. ―A formação do discurso sobre a mulata na MPB (1930-1945)‖. Revista da
academia brasileira de filologia. Rio de Janeiro, ano VI, n. VI, Nova Fase, p.100-119, 2009.
248
ABREU, Martha. "Sobre Mulatas Orgulhosas e Crioulos Atrevidos: conflitos raciais, gênero e nação
nas canções populares (Sudeste do Brasil, 1890-1920)‖. Tempo, Niterói, Departamento de História da
Universidade Federal Fluminense, v. 8, n.. 16, 2004, p. 12-13.
90
suas seduções. Nesse sentido, portanto, a mulata ganha uma outra conotação, de uma
mulher poderosa e autônoma que seduz quem deseja por interesses próprios.
Destacando os significados ambíguos atribuídos à mulata na música popular,
Martha Abreu conclui que houve, sem dúvida, ―projeções dos intelectuais sobre a
identidade nacional e sobre seus desejos sexuais‖249. Também no terreno das
representações, houve exploração e submissão do corpo das mulheres afro-descendentes
ao homem branco, reproduzindo hierarquias sociais. Porém, a autora aponta a música
como o espaço em que as identidades não brancas passaram a ser divulgadas, retratadas
e construídas. Podemos dizer que o teatro de revista, como espaço privilegiado de
divulgação da música popular, assumiu um papel central nesse processo.
A ambiguidade ressaltada por Martha Abreu é também retratada pelo teatro de
revista. Os autores, em algumas revistas, aduziram representações hierárquicas,
denotando a submissão das mulheres mestiças ao homem branco. Porém, em diversas
revistas, essa imagem é contrastada com a figura da mulata associada à autonomia da
mulher mestiça.
Na peça Se a moda pega (1925) de Bittencourt e Menezes, encontramos, no 4º
quadro, a imagem da mulata vinculada tanto aos prazeres masculinos quanto à esperteza
em enganar o português. Catharina é uma mulata que tem por companheiro um
português chamado Manoel Brasil. A relação entre eles é manifestada logo na primeira
cena do quadro, quando se expõe a briga do casal por um ter retirado a coberta do outro
no meio da noite.
CATHARINA(contrariando) – é assim, não é? Pois fique sabendo que, de
hoje em diante, eu não me sujeito mais a ficar lá em cima, arrumando a casa,
cozinhando, lavando e engomando, ouviu? Vou para a janela dar corda a todo
o homem que olhar para mim, e , quando houver freguesia na loja, planto-me,
ali, na escada, e namoro, namoro!
MANOEL – (furioso) Senhora Catharina! Senhora Catharina! Vá para o
aconchego do lar; e se não tiver o que fazer... faça crochê!
CATHARINA (com desprezo) Você é uma porcaria, um banana, um
atrevidão! (indignada) Não vá lá em cima durante o dia, compreendeu? Proíbo-
lhe!250
249
Ibidem, p. 25.
250
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega (1925), 2ª DAP, n.683 - cx. 33, p.27
91
A imagem presente na revista pode ter sido concebida com o intuito de afirmar a
identidade dos afro-descendentes no pós-abolição. Os autores apontam que a mulher de
cor não é mais submetida ao branco lusitano (símbolo do passado escravista) e,
portanto, age como bem quiser. De todo modo, o fragmento apresentado acima
contribuiu para uma visão da mulata como uma pessoa de personalidade e não como um
objeto sexual.
Essa imagem, porém, é modificada quando Catharina é surpreendida pelo
funcionário, que a vê apenas como objeto de desejo. A personagem, porém, demonstra
perceber as intenções do funcionário, como se observa:
251
Ibidem.
252
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís. Cangote Cheiroso (1927). 2ª DAP, caixa 51, n. 1201.
92
BARBALHO – Tu serás a vaca que darás de mamar o leite dos teus afetos ao
jovem bezerro que é este teu lusitano todo inteirinho sem faltar um pedaço.
MULATA - Tu tem certeza que não farta nada?
BARBALHO – Pelo contrário! Até cresceu, aguentou, ficou melhor.
MULATA – O que?
BARBALHO – O meu amor por ti, estuporada! Vem, vem meu cangote
cheiroso.
MULATA – É este cheiro de cangote que te perdeu, hein português?
BARBALHO – E esse cheirinho o maior traço de união entre o Brasil e
Portugal. O que o Brasil precisa é de gente! Sejas patriótica! Enquanto
houver mulatas de cangote cheiroso o português há de povoar este solo
abençoado cumprindo a missão que Deus lhe deu na terra...
MULATA – Que missão é essa, meu santo?
BARBALHO – Dar a luz da publicidade aos mulatinhos.
MULATA – Qué dizê que nós não é filho de Deus!
BARBALHO- Não, tu és filha de um patrício e serás mãe de uma porção de
filhos da ...
MULATA – De quem?
BARBALHO – Da lusa gente. (com profunda melancolia) 253.
253
Ibidem.
254
Como vimos, a existência de brigas entre a mulata e o português também é retratada na revista Se a
moda pega (1925), de Bittencourt e Menezes.
93
Em sua obra Casa Grande e Senzala, datada de 1933, Freyre oferece uma
abordagem sobre o cruzamento das três raças na formação do povo e da cultura
brasileira. Para ele, todo brasileiro é uma junção de culturas negra, branca e indígena.
Freyre aponta, já no seu primeiro capítulo, que a colonização portuguesa caracterizou-se
por uma singular predisposição do português ao hibridismo.
De acordo com ele, o caráter híbrido do português é verificado desde a invasão
dos árabes na Península Ibérica no século VIII, o que possibilitou que as duas culturas –
europeia e africana – ora se flexibilizassem, ora se antagonizassem. Segundo as ideias
do autor, a miscigenação possibilitou que a colonização brasileira fosse mais amena,
como afirma no seguinte fragmento:
255
LOPES, Antonio Herculano, op.cit., 2009, p.1.
256
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. 22 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983, p.9.
94
257
Ibidem, p. 52-53.
258
SCHWARCZ, Lilia. ―Complexo de Zé Carioca: Notas sobre uma Identidade Mestiça e Malandra‖. In:
Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n.29, out./1995. Disponível em:
<http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_29/rbcs29_03>. Acesso em: 20 de setembro de
2012.
259
CRISTINO, Leandro Nascimento. ―A malandragem como emblema nacional‖. Soletra, São Gonçalo,
UERJ, Ano IX, n.17, 2009, p. 45.
260
CORRÊA, Mariza. ―Sobre a invenção da mulata‖. In: Cadernos Pagu, Campinas, Núcleo de Estudos
do Gênero- Pagu/Unicamp, n. 6 / 7, 1996, p. 49.
95
***
261
Ibidem, p.49.
96
262
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, CARDOSO. Duzentos e Cinquenta Contos (1921). Arquivo da
2ª DAP, n. 279 - cx. 15.
263
Ibidem.
97
264
DOMINGUES, Petrônio José. ―Negros de almas brancas? A ideologia do branqueamento no interior
da comunidade negra em São Paulo, 1915-1930‖. In: Estudos afro-asiáticos, Rio de Janeiro, v.24, n.3,
2002, p. 563-599. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/eaa/v24n3/a06v24n3.pdf> Acesso em: 12 de
outubro de 2012.
265
LESSER, Jeff. ―Legislação imigratória e dissimulação racista no Brasil (1920-1934)‖. Archè, n. 81,
1994, p.85. Apud: DOMINGUES, Petrônio José, op. cit., 2002, p. 596.
266
GOMES, Tiago de Melo. ―Problemas no paraíso: a democracia racial brasileira frente à imigração
afro-americana (1921)‖. In: Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v.25, n.2, 2003, p. 307-331.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/eaa/v25n2/a05v25n2.pdf. Acesso em: 12 de outubro de 2012.
98
Ainda mais quando somente esses é que serão indesejáveis, não porque são
pretos, mas porque trazem no espírito, contra o branco, um sentimento de
hostilidade que será, na nossa ordem social, um perigo e um mal, valendo por
uma verdadeira imigração dessa questão de raças que, mercê de Deus, não
conhecemos ainda no nosso país267·.
267
―Imigração de Negros‖. Jornal do Brasil, 30 jul. 1921.Apud: GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2003,
p. 318.
268
"Liberdade Preta, Liberdade Branca", Gazeta de Notícias, 31 jul. 1921. Apud GOMES, Tiago de
Melo., op. cit., 2003, p. 322.
99
com a de alguns autores que defendiam que os negros seriam importante mão-de-obra
para a agricultura brasileira.
A revista, no prólogo, defende uma visão bastante favorável à entrada de
imigrantes negros, destacando a inexistência de diferenças raciais no Brasil, como é
apresentado abaixo:
CARURU – Tá tudo muito bom. Mesmo porque cada vez nasce mais gente
(...) e o nosso reduto já tão atopetado.
HONLULU- Yes, em estados Unidos serr preta maltratada. Nessa Terra da
América do Sul, no contece isso non.
(...)
TODOS:
Pois que no Brasil uma vez lá tentará
Introduzir nossa gente, olé
Pois certamente é questão d‘um só dia
Honlulu terá diplomacia269
269
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, CARDOSO. Duzentos e Ciquenta Contos (1921). 2ª DAP, n.
279 - cx. 15.
270
Ibidem.
100
271
Dentre os estudiosos que se dedicam a este tema se encontram GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 2004;
NEPOMUCENO, Nirlene. Testemunhos de poéticas negras: De Chocolat e a companhia negra de
revistas no Rio de Janeiro (1936-1927). Dissertação de Mestrado em História. São Paulo: Programa de
Pós-Graduação em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006; BARROS,
Orlando. Corações de Chocolat. A história da Companhia Negra de Revistas (1926-27). Rio de Janeiro:
Livre Expressão, 2005.
272
Artista negro do mundo do entretenimento, João Cândido Ferreira ganhou tal apelido devido ao
sucesso que obteve nos palcos da capital francesa.
273
NEPOMUCENO, Nirlene, op.cit., p. 8.
274
BARROS, Orlando, op.cit., p. 15.
275
O Globo, 31 jun. 1926. Apud: GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 297.
101
que o sucesso da Companhia, porém, não encontrou tanto respaldo da elite carioca. Sua
conclusão é baseada na análise de revistas ilustradas como Careta, Fon Fon e O Malho,
onde os comentários negativos à peça Tudo Preto eram mais comuns, enquanto nas
seções teatrais dos jornais havia mais elogios ao trabalho da Companhia Negra. A
diferença é explicada, pelo autor, a partir do público leitor destes veículos de
informação. Os preços das revistas giravam em torno de 1.200 réis, já os jornais
custavam em média 200 réis276. Para Gomes, esses dados indicam que o leitor das
revistas ilustradas era mais elitista do que o dos jornais. Isso pode ter influenciado na
publicação de opiniões contrárias às ideias presentes no espetáculo da Companhia
Negra.
Tudo Preto focaliza dois personagens: Patrício, um paulista contaminado pelos
ideais europeus, e Benedito, um baiano negro. Nepomuceno afirma que estes dois
personagens representavam brasis diferentes, um Brasil real e um Brasil desejado 277.
Patrício é um personagem tonto que concorda com tudo o que lhe é apresentado. Já
Benedito é apresentado como vivaz, decidido e falante. Essas caracterizações nos
permitem supor que autor, artistas e público ―participavam‖, através da revista, do
debate que se travava em torno do lugar dos negros, e do que era entendido como ―sua
cultura‖, na identidade nacional em construção.
Patrício simbolizava um Brasil europeizado e elitizado, representado por uma
imagem de São Paulo, que se tornava, naquele momento, uma grande capital,
ostentando os maiores ícones da modernidade e da industrialização. O baiano Benedito
talvez possa ser interpretado como uma referência ao passado e às tradições, não só
porque Salvador foi capital da colônia até 1763, como também porque a Bahia ocupou
importante papel na história econômica e social da colônia, tendo sido grande produtora
de açúcar em propriedades cultivadas por escravos africanos e seus descendentes.
Podemos sugerir, portanto, que a revista abordava questões cruciais de sua época: que
imagem do Brasil seria mais apropriada? A europeizada, elitizada, imitativa e pouco
convincente, representada pelo personagem paulista, ou a africanizada, popular e
―autêntica‖, representada por Benedito? Como observa Nepomuceno, ―o texto de Tudo
Preto está repleto de ideias em torno de produtos culturalmente negros como
representativos da alma nacional‖278 .
276
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 301.
277
NEPOMUCENO, Nirlene, op. cit., 2006, p. 99-100.
278
Ibidem, p. 103.
102
279
DE CHOCOLAT, Tudo Preto. Apud: GOMES, Tiago de Melo., op. cit., 2004, p. 302.
280
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p.307.
103
segmentos populares (...) bem antes que Gilberto Freyre trouxesse a público Casa
Grande e Senzala (1934)‖281.
As ideias de ―Brasil Mestiço‖ e ―democracia racial‖ encontram-se presentes na
mesma medida em que se busca ressaltar as peculiaridades dos negros e a sua
contribuição na construção da nação. A valorização da ―cultura negra‖ foi exposta pela
Companhia, destacando a música popular e os corpos femininos, juntamente com as
danças. Gomes afirma que o sucesso da Companhia Negra de Revista se deve a estes
fatores, que contribuíram para a ―cultura negra‖ ser vista pela sociedade de forma geral
como elemento de nacionalidade.
Nepomuceno amplia a análise de Gomes, na medida em que ela busca traçar os
primórdios da participação de artistas negros na indústria do entretenimento,
destacando, também, diferentes formas de atuação das populações afrodescendentes em
defesa do que era entendido como ―sua cultura‖. Segundo Nepomuceno, a resistência
cultural das populações afrodescendentes frente ao intuito de civilização da capital em
moldes europeus282 já era promovida desde fins do século XIX, quando populações
negras, concentradas no bairro da Cidade Nova, realizavam festas nas casas das tias
baianas, sendo a Tia Ciata a mais conhecida delas283.
Estas festas não eram só frequentadas por grupos subalternos, mas também por
intelectuais e algumas autoridades. Isso, porém, não significou uma aceitação das
manifestações afrodescendentes de forma abrangente. Houve, como destaca
Nepomuceno, formas diferentes de incorporar as manifestações culturais das populações
afrodescendentes, que eram vistas pelas camadas mais altas de forma ambígua, ou seja,
ora de maneira atemorizada ora com um certo fascínio. Essa visão dúbia podia fazer
com que autoridades, como o presidente Hermes da Fonseca, frequentasse a Casa da Tia
Ciata e, ao mesmo tempo, considerasse inadmissível que estas manifestações se
tornassem públicas284.
Portanto, a valorização do negro e da sua identidade, expressa nas peças do
teatro negro, enunciam perspectivas que estavam em pauta na sociedade carioca, como
o debate sobre a entrada de imigrantes afrodescendentes. Este debate, assim como a
281
NEPOMUCENO, Nirlene, op. cit., 2006, p. 104.
282
O intuito de civilizar o Brasil conforme os moldes europeus se evidencia em fins do século XIX e
princípio do século XX, período conhecido como Belle Époque. Fascinados com a Europa, alguns setores
das elites buscavam esconder o Brasil pobre e negro Por esse motivo, era desqualificada qualquer
referência às nossas raízes culturais. Logo, as manifestações culturais negras foram fortemente
perseguidas.
283
NEPOMUCENO, Nirlene, op.cit., 2006, p. 75.
284
Ibidem, p.76.
104
afirmação das identidades afro-brasileiras, era crucial para a definição de qual imagem
da nação se afirmaria como dominante. Observa-se, nas resenhas jornalísticas e nas
peças do teatro de revista, uma ampla negociação. Dentre as diferentes formas de
afirmar a nacionalidade, me parece que as peças, tanto no que diz respeito ao negro
quanto à mulata, apontavam uma a ênfase à mestiçagem como elemento central da
formação do povo e do caráter brasileiro. Portanto, é importante ressaltar que as
questões relativas à miscigenação não mobilizaram apenas intelectuais, e sequer foram
inaugurados na década de 1930, por Gilberto Freyre. Como vimos, esses debates e
representações ocupavam espaço privilegiado no teatro de revista e na música popular
da década de 1920.
285
PATROCÍNIO FILHO, José; PAVÃO, Ary. Verde e Amarelo (1925). 2ª DAP, cx. 31, n.635.
105
286
VENEZIANO, Neyde, op. cit., 1991, p. 135.
287
LOPES, Antonio Herculano, op. cit., p. 2.
288
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 1998, p. 107.
289
Ou seja, a revista conta a história de um personagem que escreve uma revista.
106
290
O violão foi caracterizado por muito tempo como instrumento musical associado à malandragem.
291
PATROCÍNIO FILHO, José; PAVÃO, Ary. Verde e Amarelo (1925). Arquivo 2 ª DAP, caixa 31,
n.635.
107
292
Ibidem.
293
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
belle époque. 2 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001, p. 26.
294
SILVA, Susana Neves Tavares Bastos de Pinho O emigrante português em três romances de Aluísio
Azevedo. Dissertação de Mestrado em Literaturas Românicas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, 2007, p.12.
295
Ibidem, p.13.
296
CHALHOUB, Sidney, op.cit, p. 81.
108
297
PASCKES, Maria Luisa Nabinger de Almeida. ―Notas sobre os imigrantes portugueses no Brasil
(séculos XIX e XX)‖. Revista História, São Paulo, n. 123-124, p. 35-70, ago/jul., 1990/1991, p. 83.
298
Ibidem, p. 86.
299
Ibidem, p. 86.
109
em que este conflito se evidencia. Designado O guaraná, o quadro faz referência à obra
de José de Alencar – O Guarani. Porém, o personagem Peri é um português. Ao
contrário do índio Peri de Alencar, o português Peri não é valente e muito menos herói.
Ou seja, a alusão é feita de forma a contrariar as características do Peri de Alencar.
O quadro se passa em uma parte do morro do Pinto300. Quando se abrem as
cortinas se encontram em cena Antonio Marisco, alusão abrasileirada ao personagem D.
Antônio de Mariz (fidalgo português que se instala no Brasil com o objetivo de
colonizar)301, e malandros, que cantam a seguinte música:
MARISCO– Eu mandei chamar vocês
Pra tungá um português
Tugues! Tugues! Tungá um português
Que mulata gréla há um mês.
(...)
MALANDRO – Deixa vir esse marau
Que ele hoje entra no pau
No pau, no pau302.
300
Localizado no Bairro Santo Cristo. O início da ocupação deste morro ocorreu em 1875, quando
Antonio Pinto realizou um grande loteamento abrindo seis ruas e quatro travessas. Disponível em:
<http://portalgeo.rio.rj.gov.br/armazenzinho/web/BairrosCariocas/main_bairro.asp?area=003>. Acesso:
10 de outubro de 2012.
301
Ao contrário de D. Antonio de Mariz, Antonio Marisco é brasileiro. Mais do que isso, Marisco se junta
aos malandros em seus conflitos contra o português Barbalho. Observa-se, na peça, um jogo de inversões
em relação ao romance de Alencar: um fidalgo português transformado em brasileiro, alinhado aos
malandros, e um português – Barbalho – designado por malandros como índio
302
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís. Cangote Cheiroso (1927). 2ª DAP, cx. 51, n. 1.201.
110
303
Ibidem.
304
Diversos autores se dedicaram a compreender a miscigenação em Alencar. Dentre os estudos podemos
citar: KAWAMURA, Regina Cláudia. ―Identidade e ideologia em O Guarani: a negação do ideal mestiço
através da afirmação‖. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dlcv/lport/pdf/slt28/10.pdf>;
CALDEIRA, Cláudia Passos. Revisitando o ethos indígena e a Nação no caminho da construção das
Identidades. Dissertação de Mestrado em Letras. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais,
2006.
305
Também eles associados, como vimos, à ideia de mestiçagem.
111
306
Uma característica da linguagem falada no norte de Portugal é o betacismo, fenômeno linguístico que
consiste na troca da pronúncia dos sons b por v.
307
O vocábulo jacobino foi utilizado, no Brasil, pelo menos desde os últimos anos do período
monárquico, para referenciar os republicanos radicais. Porém, foi apenas no governo de Floriano Peixoto
que o movimento ganhou forte impulso, principalmente a partir da Revolta da Armada (1893). Os
rumores de que os revoltosos tinham apoio de portugueses fizeram com que diversos indivíduos,
imbuídos de sentimento nacionalista, apoiassem o governo de Floriano Peixoto, a fim de garantir o
regime republicano,e se lançassem contra os portugueses, temendo a restauração monárquica. GOMES,
A. M. ―Jacobinos: abordagem conceitual e performática‖. In: Revista Cantareira (online), Niterói,
Universidade Federal Fluminense, v. 12, 2008, p. 5. Moisés Diniz de Almeida caracteriza o movimento
jacobino brasileiro. Segundo ele, os jacobinos cultuavam o estado republicano e defendiam uma política
nacionalista, difundindo,assim, um clima lusofóbico. ALMEIDA, M. D. ―Canudos e a derrota dos
jacobinos‖. In: Perspectivas latino- americanas, n..3, 2006, p. 145-160.
112
308
SILVA, Susana Neves Tavares Bastos de Pinho. Emigrante Português em Três Romances de Aluísio
Azevedo. Dissertação de Mestrado em Literaturas Românicas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, 2007, p.33.
309
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo
de Vargas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 28.
310
SOUZA, Ricardo Luiz de. ―O antilusitanismo e a afirmação da nacionalidade‖. Politeia: história e
sociedade, v.5, n.1, p.133- 151, 2005.
311
Ibidem, p.143.
113
312
TIGRE, Bastos. Zig- Zag (1926) 2ª DAP, Caixa 37, n. 785.
114
313
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 1998, p. 81.
314
SILVA, Susana Neves Tavares Bastos de Pinho, op. cit., p. 24.
315
LEVIN, Orna Messer. ―Imagens da imigração: o português na literatura naturalista brasileira‖. In:
Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, 6., 1999, Rio de Janeiro / Niterói. Disponível
em: < http://www.oocities.org/ail_br/imagensdaimigracao.html >. Acesso em: 20 de agosto de 2012.
316
Ibidem.
115
317
Ibidem
318
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso de. Se a moda pega. 2ª DAP, cx. 33, n. 683, 1º ato,
p.28.
319
O personagem Chanchada é o compadre da revista e também deseja a mulata.Catharina.
116
O trecho acima traduz algumas noções importantes no que tange à relação entre
o português e a mulata. Uma primeira concepção é a imagem do português como um
apaixonado bobo e cego. Apesar de ter uma leve desconfiança, o português acredita na
lealdade da mulata.
Na última fala de Manoel se encontra expressa a ideia de que o português
acredita ter poder sobre a mulata, remetendo a uma representação recorrente do período
escravista, na qual o senhor branco era dono, e dispunha sexualmente, de sua escrava.
Porém, os autores destacam que, apesar de Manoel possuir um sentimento de posse em
relação à mulata, esta, por suas características de mulher autônoma e sedutora, acaba
invertendo o jogo, fazendo com que o português se tornasse seu escravo 321. Isso se
evidencia no fragmento abaixo:
MULATA (canta)
A mulata brasileira
Sempre foi um bom bocado
Seu coração é fogueira
Donde o homem sai queimado
Não há esse que não queira
Ser por ela escravizado
Da mulata feiticeira
Não gostar é um pecado322.
Nesse sentido, a mulata aparece como aquela que escraviza o homem pelo poder
sexual. E o português é o exemplo de homem que se deixa levar pelas tentações da
mulata, o que o leva a ser caracterizado como ―trouxa‖ ou ―bobo‖. Portanto, a imagem
do português é representada nas revistas de diversas formas, ora ridicularizada ora
apreciada, ora associada à formação do brasileiro ora representando uma negação das
raízes lusas, ora causadora de conflitos ora harmônica. Apesar de contraditórias, essas
múltiplas imagens se inserem nas discussões sobre quem é o brasileiro e quais são as
suas diferenças em relação a outros povos. Além disso, havia também a presença do
discurso modernista, de ultrapassar o passado escravista e a exploração do branco
português. Logo, as contradições das revistas são frutos das reflexões e dos debates do
tempo histórico vivenciado.
320
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso de. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33,1º ato,
p.35-36.
321
A inversão de papéis é reforçada pelo fato de Catharina se referir aos homens como frutas. Na maioria
das revistas, as mulatas é que são qualificadas desta maneira.
322
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso de. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33,, 1º ato,
p.7.
117
323
COLLAÇO, Vera Regina Martins; LUZ, Ana Luiza da. ―É carnaval! Nos palcos da revista...‖. In:
Anais do Seminário de Iniciação Científica da UDESC, Florianópolis, SC, 2009. Disponível em:
<www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume4/numero1/cenicas/ecarnavalnospalcos.pdf> Acesso em:
07 de agosto de 2012.
324
Ibidem, p. 2.
325
GOMES, Tiago de Melo, op. cit.,1998, p.56.
118
Nas peças da década de 1920, as temáticas citadas acima são também retratadas,
porém, de forma diferente, como afirma Gomes:
Ao contrário do período anterior, este já nasce marcado intensamente por
uma visão relativamente positiva do ―popular‖, e a imagem da nação parece
iniciar aqui um deslocamento progressivo que levaria o malandro, ao lado do
samba, da mulata, da cachaça, da feijoada e do futebol, entre outros símbolos
a se tornar uma imagem característica do país 326.
326
Ibidem, p.57.
327
VELLOSO, Monica Pimenta, op.cit, 1996, p.29.
328
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: teatro e cinema. Petrópolis: Vozes, 1972.
119
(...)
Tal qual
Se faz
No carnaval
Vai ser a pagodeira
De primeira
Tal qual
Se Faz
No carnaval
O bloco do prazer
Há de vencer!329
329
BITTENCOURT Carlos; MENESES, Cardoso de. Fla-Flu (1925). Arquivo Nacional, 2ª DAP, cx. 36,
n. 755.
330
Ópera, de Pietro Mascagni, com libreto de Giovanni Targioni-Tozzetti e de Guido Menasci, estreou
em Roma em 1890. O nome da ópera pode ser traduzido por Cavalheirismo rústico. As paródias, como já
abordamos anteriormente, era um elemento importante no teatro de revista. Ao recriar um enredo já
consagrado, os autores traziam elementos do cotidiano e da cultura local.
331
Atual morro da Providência
120
332
VELLOSO, Monica Pimenta. As tradições populares na belle époque carioca. Rio de. Janeiro:
Funarte, 1988.
333
BITTENCOURT Carlos; MENESES, Cardoso de. Fla-Flu (1925). Arquivo Nacional, 2ª DAP, cx. 36,
n. 755, ato II, p. 14.
334
Ibidem. ato II, p.15.
335
Ibidem, ato II, p. 20.
121
336
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo
de Vargas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 22.
337
―Romaria á Penha‖. O País, 8 out. 1906. Apud: SOUZA, Luana Mayer de. ―A tradição na
modernidade: A Festa da Penha pelas letras de Olavo Bilac‖. In: Anais do Encontro Regional da Anpuh-
Rio. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em:
<www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276741796_ARQUIVO_PenhaparaANPUH.pdf> .
Acesso em: 04 de setembro de 2012.
338
BILAC, Olavo. ―A festa da Penha‖. In: Kosmos, Rio de Janeiro, out. 1906, ano III. Apud: SOIHET,
Rachel, op. cit., 1998, p. 21-22.
339
Jornal do Comércio, 25 de out. 1920. Apud SOIHET, Rachel, op. cit., p.34.
122
340
SOIHET, Rachel. op. cit, p.45.
341
Ibidem, p. 38.
123
consagrada pelas revistas tidas como populares, a peça Fla-Flu foi apresentada no
Teatro Glória, na Cinelândia, locus frequentado por pessoas de classes mais altas342.
Portanto, a possibilidade de presença de um público mais refinado nos
espetáculos da Companhia Tro-ló-ló pode ter incitado os autores da peça Fla-Flu a
escreverem mais para um público elitista do que para um público de menor poder
aquisitivo, como o dos teatros da Praça Tiradentes. Logo, independente das razões
individuais dos autores, a abordagem negativa da população que se destinava à Festa da
Penha pode estar intimamente ligada ao público-alvo da peça analisada.
***
No que diz respeito ao carnaval, é importante destacar a existência de peças
carnavalescas. As revistas carnavalescas foram caracterizadas por diversos autores 343
como genuinamente brasileiras. Isso se explica pelo fato de o Brasil inaugurar um tipo
de revista no qual o carnaval se torna o tema por excelência. Segundo o estudo de
Collaço e Luz344, dentre os aspectos que podem ser citados para o surgimento desse tipo
de revista estão: a influência do cinema no campo do entretenimento, a massificação da
cultura345, a busca pela definição do ―nacional‖, principalmente após a eclosão da 1ª
Guerra Mundial, o gosto pelo luxo, colorido e sensual aflorado pela passagem das
companhias Velasco e Bataclan.
Nas revistas carnavalescas, não apenas o tema central modificou-se, mas houve
mudanças no aspecto temporal, ou seja, as peças ocorriam no período pré ou pós-
carnavalesco. As revistas pré-carnavalescas eram voltadas para os preparativos da festa,
lançando músicas que seriam sucesso no carnaval. Já as pós-carnavalescas relatavam os
acontecimentos do carnaval, inclusive as músicas. Há mudança, ainda, na dinâmica da
encenação. O prólogo deixou de apresentar acontecimentos chave que seriam
desdobrados na peça, e passou a ser um momento em que o Rei Momo se apresentava e
anunciava a festa.
Nesta dissertação, escolhi trabalhar com duas revistas carnavalescas. Na peça
Reco-Reco, de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, datada de 1921, se denota a
342
GOMES, Tiago de Melo, op.cit., 2004, p. 168-172.
343
Dentre os autores que destacam essa posição, podemos citar COLLAÇO, Vera Regina Martins; LUZ,
Ana Luiza da. op. cit., 2009, VENEZIANO, Neyde. Não Adianta Chorar: teatro de revista
brasileiro...oba! Campinas: UNICAMP, 1996 e VENEZIANO, Neyde. op. cit., 1991.
344
COLLAÇO, Vera Regina Martins; LUZ, Ana Luiza da, op. cit., p.2.
345
Gomes, em seu livro Um espelho no palco, realiza um estudo sobre o processo de massificação da
cultura e a inserção do teatro de revista nesse contexto.
124
O fragmento acima retrata o Rio de Janeiro como a cidade capaz de manter vivo
o carnaval. Nice e Veneza têm reconhecida sua importância na origem dos festejos, mas
são apresentadas como ultrapassadas e incapazes de manter a saúde de Momo e da folia
que ele representa. Em uma outra passagem, o Rio de Janeiro cura o Rei Momo com seu
sangue, como se observa na seguinte fala: ―O meu sangue é novo, é forte, é puro! O
único micróbio que pode possuir é o da pandega! Esse reanima, não faz mal a
ninguém‖. Após a transfusão de sangue, Momo é curado e se apresenta mais forte do
que nunca.
A revista Baiana olha pra mim, dos mesmos autores e datada de 1926, apresenta
também o Rio de Janeiro e sua relação com o carnaval, como podemos observar no
fragmento abaixo:
CARIOCA (à tradição carnavalesca) – Minha querida! Eis-me aqui, firme
disposto a cooperar para que mais te consolides!
TRADIÇÃO - Abraça-me Carioca! És parte integrante do meu coração!347
346
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Réco-Réco (1921). 2ª DAP, n.195, cx: 11.
347
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Baiana olha pra mim (1926). 2ª DAP, n.778 -
cx.37.
125
Em contexto diferente, a revista Baiana olha pra mim também expõe uma busca
por dinheiro para adquirir fantasias para o baile de carnaval. Os autores colocam em
cena uma família modesta que precisa de dinheiro para conseguir vestidos novos ou
fantasias para as três filhas. Apesar de fortes críticas ao pai que gasta seu dinheiro no
348
BRANDÃO, Tânia. ―A cidade do teatro e o teatro da cidade: imagens do Rio de Janeiro no teatro de
revista dos anos 1920‖. In: Anais do Encontro Regional de História ANPUH- RJ, Rio de Janeiro, 2006.
Disponível em: <http://www.rj.anpuh.org/resources/rj/Anais/2006/conferencias/Tania%20Brandao.pdf>
Acesso em: 20 de maio de 2010.
349
LOPES, Antônio Herculano. ―O teatro de revista e a identidade carioca‖. In: ________(org.) Entre a
Europa e a África: A invenção do carioca. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2000, p. 22.
350
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Réco-Réco (1921). 2ª DAP, n.195, cx: 11
126
jogo do bicho, é através do jogo que o pai leva, ao final do quadro, o dinheiro tão
esperado para as filhas.
Assim, as revistas citadas tematizavam o forte apreço dos segmentos sociais
menos favorecidos economicamente pelo carnaval, que na década de 1920 era,
juntamente com os festejos da Penha, a principal festa popular da cidade.
As revistas carnavalescas traduzem uma diversidade de manifestações presentes
no carnaval do início do século XX no Rio de Janeiro. Dentre os aspectos abordados nas
peças, podemos estudar as formas como as manifestações carnavalescas de cunho
popular aconteciam.
No terceiro quadro da revista Réco-Réco, Bittencourt e Menezes colocam em
cena uma praça pública de ―um bairro conhecido, sendo possível Catumbi‖. Na praça há
faixas referentes aos divertimentos que ali ocorrerão, como se demonstra na seguinte
rubrica: ―Ao alto, atravessando a cena, um largo pano branco com os seguintes dizeres:
‗Hoje! Grande batalha de confete promovida pelo rancho da Rosa Encarnada‘‖. Os
autores ainda deixam claro, na rubrica referente ao cenário, que as faixas também se
referem à existência de prêmios tanto para os ranchos quanto para os cordões, os blocos
e as máscaras. Isso nos possibilita compreender o universo carnavalesco a que os
autores da revista se referem.
A batalha de confete, mencionada acima, foi uma prática adotada em fins do
século XIX, que tinha como proposta substituir o entrudo, ou seja, tornar o divertimento
mais civilizado. Maria Clementina Pereira Cunha, em sua obra Ecos da folia, cita essa
prática como sendo uma das tentativas de eliminar o entrudo. Segundo ela, o uso dos
confetes começa a ganhar impulso com a abertura das grandes avenidas e com o
aumento de importação de confetes351. A autora afirma que, apesar da batalha de
confetes ser vista como uma brincadeira refinada, ela não se diferenciava tanto das
formas antigas de brincadeiras carnavalescas. Sua afirmação se baseia em textos
jornalísticos, como demonstrado abaixo:
A bela troça, o espírito e o humor carnavalesco, estavam definitivamente
suplantados pelo novo entrudo não raro tão brutal como o antigo. [...] Foi
nos subúrbios e arrabaldes que o jogo dos confetes tomou as proporções do
ano passado. Uma coisa colossal! Os rapazes chegavam a assaltar os bondes
para atirar aos punhados as rodelinhas multicores nas moças e senhoras do
seu conhecimento352
351
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma história social do Carnaval carioca entre
1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 81.
352
O Malho, 4 março 1911. Apud: CUNHA, Maria Clementina Pereira, op. cit., p. 81-82.
127
353
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Réco-Réco (1921). 2ª DAP, n.195, cx: 11.
354
CUNHA, Maria Clementina Pereira. op. cit., 2001, p. 82.
355
Referência ao caricaturista K.Lixto (1877-1957), atuante nas revistas O Malho e Fon Fon e em outras
publicações periódicas. Na passagem citada, os autores sugerem que a saudação das bandeiras dos
128
A representação dos ranchos pela revista nos possibilita pensar sobre sua
representatividade no carnaval carioca. Soihet destaca que os ranchos, na década de 20,
figuravam como uma das mais importantes manifestações carnavalescas. É importante
pensar, também, sobre o seu caráter popular e suas apropriações por diversas camadas
da sociedade.
ranchos seria um belo tema para caricatura. Dessa forma, a revista comentava a grande presença de temas
carnavalescos na imprensa periódica e, sobretudo, nas revistas ilustradas.
356
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso de. Réco-Réco (1921), 2ª DAP, n.195, cx: 11.
357
SOIHET, Rachel, op. cit., 1998, p. 91.
358
ARAÚJO, Samuel et al. ―Entre palcos, ruas e salões: processo de circularidade cultural na música dos
ranchos carnavalescos do Rio de Janeiro (1890-1930)‖. In: Em pauta, Porto Alegre, v. 16, n. 26, p. 73-94,
jan – jun 2005.
359
SOIHET, Rachel, op. cit., p.88-89.
360
ARAÚJO, Samuel et al., op. cit., p. 79.
129
Samuel Araújo aponta que, em fins da primeira década do século XX, o rancho
congregava trabalhadores de indústrias, fábricas, funcionários públicos, do arsenal da
marinha e etc. A adesão de novos grupos sociais provocou mudanças em alguns
elementos. Araújo cita o conjunto de sopros como uma dessas novas incorporações.
Além disso, os ranchos eram vistos pelas camadas mais letradas como um tipo de
manifestação carnavalesca mais civilizada do que os cordões e o entrudo. Talvez por
isso, alguns personagens da revista citada pudessem ser interpretados como pertencentes
a segmentos sociais elevados e intermediários, apesar dos ―passos de capoeiragem‖ e
das ameaças de violência de Joca.
Tanto Araújo et al quanto Soihet apontam a existência de trocas culturais nos
ranchos. Um dos exemplos citados por Soihet é a participação de pintores como
Henrique Bernardelli e Rodolfo Amoedo na construção de alegorias para os ranchos. A
autora conclui, portanto, que ―fica evidenciada (...) a existência de trocas entre os
segmentos populares e os demais – médios e dominantes – ainda num contexto em que
as manifestações daqueles eram objeto de rejeição‖ 361.
Na peça, a existência de diferentes camadas sociais nos ranchos é retratada a
partir dos personagens em cena. No quadro três estão Paulo, funcionário da Saúde
Pública e descendente de um romancista, Alípio, servente do Ministério da Aviação e
Gervásio, mulato e escritor, servente da Sociedade dos Autores Nacionais. Assim, a
descrição dos personagens, sobretudo se incluirmos Joca, Alípio, Felícia, Janjão,
NhãNhã e Nenê, presentes na outra citação, parece representar o rancho como uma por
manifestação carnavalesca que alcançava um público relativamente variado, formado
sobretudo por indivíduos de baixa renda e pelos segmentos sociais intermediários.
A revista Réco-Réco apresenta, ainda, outra manifestação carnavalesca. No sexto
quadro da revista, Bittencourt e Menezes trazem à cena um salão de fantasia 362,
representando os domínios da senhora ―Terça-feira Carnavalesca‖ No pano de fundo do
cenário, há uma imagem do Zé Povo e, acima dele, as figuras representativas dos
Tenentes, Fenianos e Democráticos, dando a entender que as sociedades são as únicas
preocupações do Zé Povo.. Assim, ao ler a rubrica do cenário já se pode deduzir sobre
um dos temas que o quadro tratará – as sociedades carnavalescas.
361
SOIHET, Rachel, op.cit., p.95.
362
Na peça, a representação de um salão de fantasia nos parece indicar a existência de bailes à fantasia,
não apenas bailes elegantes, mas também, bailes onde frequentavam o ―Zé Povo‖.
130
363
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O carnaval das letras. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal
de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1994, p.
73.
364
Ibidem, p.74.
365
Ibidem., p.79.
131
366
Ibidem, p. 98.
367
Ibidem, p. 99.
368
CUNHA, Maria Clementina Pereira, op. cit., p. 125.
369
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso de. Reco-Reco (1921). 2ª DAP, n.195, cx: 11.
132
urbanos pobres quanto intelectuais e senhores dos segmentos sociais mais favorecidos
economicamente.
Além da batalha de confete, dos ranchos e das grandes sociedades, outras
manifestações carnavalescas são referenciadas nas peças do teatro de revista. A revista
Baiana, olha pra mim, de Bittencourt e Menezes, datada de 1926, faz referência ao Zé
Pereira, outra manifestação popular comum no inicio do século XX, que é caracterizada
como um conjunto de tambores tocados por homens. Na peça, o Zé Pereira é
apresentado tanto como manifestação popular quanto como personagem masculino e
português370.
O personagem Zé Pereira é um português, retratado como proprietário de uma
casa comercial. Seu caráter ―burguês‖ é apresentado no segundo quadro, quando Zé vai
à casa de Bibiana (mãe de três meninas que estão desapontadas por não possuírem
dinheiro para fantasia) para cobrar-lhe 320$000, gastos, no carnaval passado, em
compras no seu armarinho:
Zé – Bolas, minha senhora, bolas! Eu não vim cá para tomar soda nem
dançar! Eu vim receber aquela continha atrasada, do Carnaval passado! São
320$000. (todas rodeiam Zé e começam a fazer-lhe festas)
MARIQUINHAS – Seu Zé! Nós tínhamos resolvido o seguinte: a conta do
ano passado, o senhor juntava com a deste ano e nós pagaríamos tudo, depois
do Carnaval!
Zé – As senhoras estão malucas? Pensam talvez que eu nasci bobo? Eu hoje,
daqui não saio sem receber a conta!371
370
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Baiana olha pra mim (1926). 2ª DAP, n.778,
cx.37.
371
Ibidem.
372
Ibidem
133
373
Segundo Maria Clementina Pereira Cunha, a peça de Vasques foi tratada pela historiografia como
marco inicial da representação da folia nas peças teatrais cariocas. Ver: CUNHA, Maria Clementina
Pereira. ―Vários Zés, um sobrenome: as muitas faces do senhor Pereira no carnaval carioca da virada do
século‖. In: _______(org.). Carnavais e outras f(r)estas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2002, p. 373.
374
Ibidem, p. 378.
375
MARZANO, Andrea, op.cit., 2008, p. 193.
376
Ibidem, p. 192.
134
Segundo a crônica, o nome do folguedo não condizia com as práticas dos seus
integrantes. Como Cunha, o cronista vê no Zé Pereira ―real‖ a presença dos segmentos
sociais menos favorecidos economicamente – e não ―capitalistas‖, ―burgueses‖ ou
―diretores de secretaria‖ –, em uma brincadeira que, por ser ―barulhenta e estouvada‖,
377
CUNHA, Maria Clementina Pereira. op.cit., 2002, p. 402.
378
Maria Clementina Pereira Cunha problematiza a atribuição de uma origem lusitana ao Zé Pereira. Em
tempos de tensão racial decorrente do processo de abolição, as origens rurais portuguesas, apontadas por
memorialistas e folcloristas como Vieira Fazenda, pareceriam menos ameaçadoras que as africanas. Ver
CUNHA, Maria Clementina Pereira. ―Vários Zés, um sobrenome‖, op.cit., p. 389. Soihet aponta a origem
portuguesa do Zé Pereira. Ver: SOIHET, Rachel. op. cit., p. 70.
379
Cabe lembrar que grande parte dos comerciantes da cidade eram portugueses ou de origem portuguesa.
380
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1904. Apud CUNHA, Maria Clementina Pereira., op.cit., 2002, p.
389.
135
381
Segundo o ―Vocabulário do carnaval brasileiro‖ elaborado por Cláudia Lima, clarim é ―Trombeta de
som agudo e estridente, usada na abertura dos desfiles de alguns clubes e troças carnavalescas‖.
http://www.claudialima.com.br/pdf/VOCABULARIO_DO_CARNAVAL_BRASILEIRO.pdf
382
Filiada ao Clube dos Democráticos, seus bailes eram voltados para as camadas sociais mais
favorecidas economicamente.
383
Era uma sociedade carnavalesca muito conhecida.
384
Segundo Wlamyra R. de Albuquerque e Walter Fraga Filho, o Rompe e Rasga tinha como sede a
vizinhança do cortiço Cabeça de Porco e do candomblé de João Alabá. ALBUQUERQUE, W.R.;
FRAGA FILHO, W. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais;
Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006, p.228.
136
385
BERMAN, Marshal., op.cit., 2007, p. 16.
386
ORTIZ, Renato. Cultura e modernidade. São Paulo: Brasiliense, 1998, p. 267.
387
ORTIZ, Renato. Modernidade e cultura. In: SOUSA, Mauro Wilton de.(org). Sujeito, o lado oculto do
receptor. São Paulo: Brasiliense/USP, 1995.
138
388
Ibidem, p. 267.
389
BERMAN, Marshall, op. cit., p. 18.
390
ANDERSON, Perry.―Modernidade e revolução‖. In: Novos Estudos, CEBRAP, São Paulo, n. 14, fev.
1986.
391
LEFEBVRE, Henri. Introduction à la modernité. Paris: Minuit, 1962, p. 9. Apud: BERNARDI, Rosse
Marye. ―Programação Modernista: 1922-1928. Modernismo ou modernidade?‖ Revista Letras, Curitiba,
V.25, p. 301 - 334 , jul. 1976.
Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/letras/article/view/19555/12779>. Acesso em: 15
de outubro de 2012.
139
392
GOMES, Ângela de Castro ―Os intelectuais cariocas, o modernismo e o nacionalismo: o caso da
festa‖. Luso-Brazilian Review. v. 41, n. 1, 2004.
393
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p.32.
394
Ibidem.
395
Ibidem, p. 35.
396
BRITO, Ronaldo. ―A semana de 22: o trauma do moderno‖. Apud: FABRIS, Annateresa.
―Modernidade e Vanguarda: o caso brasileiro‖. In: ________ (org.) Modernidade e modernismo no
Brasil. Campinas: Mercado de letras, 1994, p. 15.
140
397
FABRIS, Annateresa, op. cit., p.25.
398
BERMAN, Marshall, op. cit., 2007, p.16.
399
HARDMAN, Francisco Foot. ―Antigos modernistas‖. In: NOVAES, Adauto. (org.) Tempo e história.
São Paulo: Companhia das letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
400
VELLOSO, Monica Pimenta. op. cit., 1996, P.32-34.
401
Ibidem, p. 34
402
PORTO, Marques. A mulata (1925). 2ª DAP, caixa 31, n.633.
141
403
VELLOSO, Mônica Pimenta, op. cit., 1996, p.21.
404
Ibidem, p.31.
142
405
ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro
republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 284.
406
Ibidem, p. 73.
143
as ruas, a vida noturna e etc., e por isso possuíam concepções diferentes de honra e de
moral, como afirma Martha Abreu:
Resumindo, acredito ser possível pensar que determinados comportamentos
de mulheres pobres (relações sexuais pré-matrimoniais sem namoro antigo,
uma certa quebra da passividade feminina, a aceitação de relações de
amasiamento, etc.) revelam valores morais, concepções de honra, virgindade
e casamento com significados diferentes do que os ilustres juristas
407
pretendiam afirmar .
407
ABREU, Martha. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p.120.
408
ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. op. cit., 1993,, p. 285.
409
MENCARELLI, Fernando, op. cit., 2004, p. 31.
144
Sevcenko, este termo passa a classificar tudo o que se torna a ―última moda vigente‖ 410.
Ele ganha significados atrelados à emancipação, à autonomia, à liberdade, à ousadia, o
que, segundo Sevcenko, favoreceu a existência de conotações negativas associadas a
esse termo411. Nas revistas, verificamos certa ambiguidade associada aos novos
costumes.
****
410
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes
anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 228.
411
Ibidem, p. 231.
412
Surpreendentemente, a peça de Alencar não apresenta nenhum personagem chamado Benedito.
Possivelmente os autores fazem alusão ao personagem Pedro, negro escravo, e também a São Benedito,
santo negro. Portanto, podemos encarar o nome do personagem como um elemento para causar riso, uma
vez que aproxima duas concepções opostas: demônio e santo. O personagem Pedro, da peça Demônio
Familiar, é um escravo jovem que, com o objetivo de tornar-se cocheiro, realiza vários trambiques e
mentiras para tentar casar seu senhor e a irmã dele com pessoas ricas.
413
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33, p. 15.
414
Ibidem, p.16.
145
Este desfecho evidencia alguns assuntos que serão tratados no resto da revista.
Observa-se que a revista expõe, nos fragmentos citados, uma exaltação da modernidade
por Benedito. O personagem parece entusiasmado com as inovações tecnológicas e com
os novos costumes: o futebol e as formas de se comportar das mulheres. Porém, esta
interpretação não está presente em toda a revista. No terceiro quadro, há uma crítica não
explícita aos trajes das mulheres que frequentavam a Avenida. A crítica se direciona à
moda, inaugurada por Coco Chanel416, inspirada nas roupas masculinas. Chanchada diz
que as mulheres estão avançando em tudo o que é dos homens. Ele diz que:
CHANCHADA – (...) até nas fazendas das camisas! (...) Espia só... Elas aí
vem (entram 1ª elegante e coro. As toaletes são feitas em formato de grandes
camisas de homem em tricoline, muito elegantes, presas à cintura com cintos
modernos e chapéus de feira com enfeites de lã, dos chamados gigolôts)
1ª ELEGANTE (canta)
Os nossos maridinhos
Tão bonitinhos
São,
Que mesmo as camisinhas,
Bonitinhas
Dão!
Com elas pelas ruas nós andamos,
Sim,
E, assim,
A moda usamos!
(...)
E assim,
Muito elegante!
De sorte que por ser
A toilette chic,
Nós temos com prazer
Que dar a nota, e tic.
E sempre feiticeiras
Nós sabemos nos vestir
Quando queremos
Qualquer seduzir
(...)
BORRACHUDO – Se a moda pega, acabam avançando nos colarinhos dos
homens... 417.
415
Ibidem.
416
Estilista francesa, do início do século XX, que revolucionou a moda feminina ao desenhar e vender
roupas simples e confortáveis para as mulheres. Coco Chanel apresentou roupas mais masculinas para as
mulheres, alegando que tentava torná-las mais livres e independentes.
417
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33, p. 25-26.
146
alterou a divisão sexista dos papéis sociais418, que eram confirmados principalmente
pelas representações midiáticas. Grande parte das imagens negativas da mulher
moderna – no teatro de revista e na mídia – estavam intimamente ligadas ao temor
masculino de perder seu papel social e sua posição de domínio diante das mulheres. 419.
No fragmento acima, podemos interpretar a fala do personagem ―Borrachudo‖
como expressão desse temor. ―Avançar no colarinho‖ dos homens não seria apenas
adotar elementos do seu vestuário. Seria, também, ―avançar no seu pescoço‖,
enfrentando-o e ameaçando sua posição de domínio. Ou seja, nos parece que sua crítica
ao vestuário feminino é uma alegoria do temor masculino da perda de seu lugar social.
Se pensarmos no nome da peça, podemos inferir que os próprios autores refletem o
temor masculino frente ao avanço do feminismo.
Segundo Gomes, no pós-guerra o termo feminismo estava atrelado a qualquer
atividade feminina que não estivesse de acordo com suas funções tradicionais420.
Assim, nas páginas de jornais, revistas e no teatro de revista, o termo estava ligado a
diversos costumes modernos femininos, principalmente no que diz respeito a ―qualquer
atividade que fosse vista como tipicamente masculina sendo tomada por algum
indivíduo do sexo feminino‖421.
Era comum que o termo feminismo viesse acompanhado de conotações
negativas. Segundo Macena, os discursos construídos na Revista Fon-Fon422
evidenciavam o temor de uma verdadeira revolução, na qual os papéis seriam
invertidos, ameaçando a ordem patriarcal e burguesa. A imprensa era, portanto,
responsável pela banalização do termo feminismo, a fim de combatê-lo e restringi-lo à
moda, apenas.
Na peça citada, a moda sintetiza a questão da inversão de papéis. A mulher passa
a utilizar roupas masculinas e passa a assumir comportamentos e funções até então
ausentes do universo feminino. Nesse sentido, a revista Se a moda pega aborda,
também, as mudanças de atitudes. No quarto quadro, podemos analisar a inversão de
papéis masculinos e femininos através das condutas apresentadas:
RAPAZ – Eu queria mandar fazer um terno.
418
MACENA, Fabiana Francisca. Madames, mademoiselles, melindrosas: feminino e modernidade na
revista Fon-Fon (1907-1914). Dissertação de Mestrado em História. Brasília: Universidade de Brasília,
2010, p.60.
419
Ibidem, p. 93.
420
GOMES, Tiago de Melo Gomes, op. cit., 2004, p. 222.
421
Ibidem, p.222.
422
Revista carioca lançada em 1907, a Fon-Fon tinha como proposta estar sintonizada com os novos
tempos da modernidade. Seu nome refere-se ao barulho produzido pelo automóvel.
147
VELHA – Uma fazenda bonita, leve, mas que arme bem... (a Rapaz) não é
filhinho?
MANOEL – (...) Seu filhinho será bem servido...
VELHA – Meu filho? O senhor está enganado! (ri)
RAPAZ – (a velha) Você minha mãe! Tem graça! (ri). O senhor comeu
mosca. A coisa é outra...
(...)
MANOEL – O nome, faça favor...
VELHA – Madame Ursulina!
FUNCIONÁRIO - (RINDO) Que negócio é esse? Ele é ela? (ao Rapaz) Ó
seu moço? O senhor é mesmo Ursulina?
RAPAZ – Ursulina é ela
(...)
VELHA – Vai no meu nome , porque quem paga sou eu!
MANOEL - (rindo) Já sei! A excelentíssima banca a coronela.
(...)
VELHA – Vamos, senhores! Eu tenho pressa! Preciso ir ao chá e depois ao
cinema com o meu pequerruche!
RAPAZ – Depois vamos ao Leblon, sim, Lilina?
VELHA – Sim, meu camundongo!423
423
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33, p. 31-32.
148
Salve a orgia
Pois a vida deve ser
(...)
Ser um sonho de prazer.
Ao saber do vinho
Já ninguém resiste
Ninguém fica triste
A vida assim fugaz
É uma ilusão... se desfaz
Não volta nunca mais!
Na música entoada pelas mulheres mundanas chics, podemos observar que são
as mulheres que induzem o homem ao prazer da bebedeira, como se demonstra na frase
―vamos deixá-lo feliz‖. Além disso, podemos analisar que estas mulheres passam a não
sonhar apenas com o casamento, mas a desfrutar da vida mundana. O casamento,
apontado acima, é com a bebida ―Veuve Clicquot‖, um champanhe francês. A
madrinha, também mencionada acima, é Madame Pommery, em alusão a outro
champagne francês425. Portanto, o que se pode analisar do fragmento é a inversão de
papéis quanto à vida boêmia e à inserção das mulheres de classes sociais elevadas num
ambiente noturno até então dominado por homens.
Retornando à análise das roupas, a revista Se a moda pega, de Bittencourt e
Menezes, traz, ainda, outra crítica à moda feminina. No quinto quadro, Benedito diz a
Chanchada:
BENEDITO – Você precisa criticar as moças da Avenida...
CHANCHADA – Por quê?
BENEDITO – O que o homem sofre por carsa delas. Oiça (canta)
Qualquer homem, hoje em dia,
Nessas ruas da cidade,
Não é fantasia,
424
PORTO, Marques; CARVALHO, Affonso. À la garçone (1924). 2ª DAP, caixa 27, n.544.
425
Veuve Clicquot significa, literalmente, Viúva Clicquot, em alusão à francesa Nicole Clicquot (1777-
1866), que herdou do marido uma companhia que produza champagne, realizava serviços bancários e
comercializava lã. Após a morte do marido, madame Clicquot assumiu a companhia e concentrou sua
atividade na produção de champagne, tornando a marca conhecida e apreciada em várias partes do
mundo. A francesa Madame Pommery, por sua vez, assumiu os negócios do marido ao enviuvar, em
1858. Corajosa, introduziu inovações na produção de champagne e divulgou sua marca mundo afora.Mais
do que nomear marcas de champagne, o trecho citado faz referência a mulheres que se destacaram no
universo empresarial ―masculino‖.
149
É realidade,
Roí um osso de pagode!
A mulher, devido à moda
Quer da alta ou baixa roda,
Deixa tudo ver,
Como que a dizer: Isto é bom... é pra quem pode!
Anda, assim... toda curvada, (imita)
Esperando uma palmada!
Estribilho
O negócio está feio,
Vai de mal a pior
Influência do meio,
Pra desgraça maior.
Isto, assim, não dá certo,
É preciso acabar.
Um rapaz sendo esperto
Nem mais pensa em casar426.
Neste fragmento, podemos analisar que a jornalista aponta o uso da saia curta
como forma de libertação da mulher429, seja no comportamento seja na sua inserção no
426
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33, p. 42.
427
É a primeira revista feminina nacional de grande tiragem. É, também, a primeira a apresentar uma
seção de moda. Cabe ressaltar que embora essa revista divulgasse costumes e roupas modernas, a
publicação era baseada numa concepção moral conservadora. A Revista Feminina, portanto, possuía uma
função educativa da mulher. Segundo a revista, a mulher poderia se modernizar esteticamente e em seu
exterior, mas suas funções enquanto mantedora do casamento e responsável pela casa permaneciam. Ver:
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau (org.)
História da vida privada no Brasil 3. São Paulo: Companhia das letras, 1998, p. 394-395. BONADIO,
Maria Claudia. História debaixo dos panos: descobrindo a linguagem da moda – estudo sobre as mulheres
das elites e classes médias paulistanas (1913-1929). In: Projeto História, São Paulo, 24, jun.2002.
428
Revista Feminina, 58, mar. 1919, ano 6. Apud: BONADIO, Maria Claudia. op. cit., p.244.
429
Muitos autores defendem que a moda é uma pseudo-emancipação, uma vez que não havia de fato uma
rebelião feminina em prol dos seus direitos. Ver: BONADIO, Maria Claudia, op.cit., p. 250. Para Fabiana
Macena, a imagem construída pela imprensa é justamente essa: o feminismo ―e sua luta pelo direito de
150
mercado de trabalho. Portanto, a justificativa para o uso de saia curta está inscrita na
busca de autonomia da mulher, diferentemente da ideia expressa por Bittencourt e
Menezes, em que transparece uma concepção mais machista, centrada não nos anseios
femininos de libertação, mas no propósito de provocar os homens..
Cabe analisar ainda, na música transcrita acima, a afirmação de que moda tinha
que acabar, pois estaria colocando em xeque algumas instituições da sociedade, como o
casamento. O que se denota no estribilho é um receio de que todas as mulheres sejam
influenciadas pela moda, ameaçando as bases da sociedade patriarcal. Assim, podemos
concluir que os autores assumem uma postura conservadora em relação aos novos
hábitos.
A música cantada por Benedito não termina na última frase citada. Como ela é
extensa, resolvi analisá-la em partes. Na segunda e na terceira parte da música, os
autores descrevem algumas características da moda feminina moderna:
II
Tendo os cabelos cortados,
À inglesa, à la garçone,
Diz aos namorados
Não se impressione!
Morde os lábios petulante!
Chega mesmo a ser um crime,
Pois nas ruas dança o Shymme,
Olhos revirando,
Elas assim pisando... (imita)
Mais se torna provocante
Como um cock-till fazendo,
Tudo aquilo vai tremendo...!
III
Como, agora, está na moda
O tal jogo foot-ball,
Nesta linda terra,
Faça chuva ou sol,
As mulheres na Avenida:
Usam todas nos vestidos,
Com licença dos maridos,
Largos cinturões,
Com dois fivelões
Que as cadeiras dão mais vida!430
educação e participação política é reduzido [na imprensa] (...) à moda‖ MACENA, Fabiana Francisca. op.
cit., p. 93.
430
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega. Arquivo 2ª DAP, Arquivo Nacional,
n.683 - cx. 33, p. 42.
151
431
RESENDE, Beatriz. Melindrosa e almofadinha, cock-tail e arranha-céu: a literatura e os vertiginosos
anos 20. In: LOPES, Antonio Herculano (Org.). Entre a Europa e a África: a invasão do carioca. Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa: Topbooks, 2000, p. 224.
432
CUNHA, Getúlio Nascentes da. Melindrosas e almofadinhas: feminilidades e masculinidades no Rio
de Janeiro da década de 1920. In: Simpósio Nacional de História ANPUH, 25, 2009, Fortaleza.
Anais...Disponível em: http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.0728.pdf Acesso
em: 13 de janeiro de 2013.
433
Podemos observar que muitas das caracterizações atreladas à melindrosa já foram abordadas neste
capítulo.
434
Romancista francês do início do século XX . Suas obras se caracterizam por abordar questões sociais e
a emancipação da mulher. O romance ―La garçonne‖ foi publicado em 1922 e conta a história de uma
mulher que, ao descobrir que seu noivo estava lhe traindo, resolve libertar-se e viver a seu modo. Foi um
livro considerado obsceno e teve uma grande repercussão.
152
435
PORTO, Marques; CARVALHO, Affonso. À la garçonne (1924). Arquivo 2ª DAP, Arquivo Nacional,
cx. 29 – n. 576.
436
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Réco-Réco (1921). 2ª DAP, n.195, cx: 11, p. 6.
153
uma moça quase menina, expressando ingenuidade 437. No entanto, essa mesma moça
ingênua e ―casadoira‖ assume atitudes ―revolucionárias‖, como andar só, ir ao cinema e
etc. A imagem construída pela revista corrobora, assim, uma afirmação de Dourado,
para quem uma das principais características da melindrosa é a ambiguidade 438. Nesse
mesmo sentido, Melo afirma que as melindrosas ―pareciam meninas, agiam como
mulheres e se portavam tal como os homens‖ 439.
Nas revistas e na literatura, era comum a associação entre as melindrosas e os
almofadinhas. Estes eram homens que se barbeavam, usavam calças curtas, se
perfumavam e se lançavam às novas danças e costumes, como por exemplo, o flirt, jogo
de sedução realizado entre eles e as melindrosas. Estes homens foram caracterizados
tanto pela imprensa como pelo teatro como afeminados. O próprio termo ―almofadinha‖
expressa essa característica. Segundo Medeiros, a expressão refere-se ao uso, por alguns
homens, de almofadas, trazidas de casa, para serem utilizadas nos bancos dos bondes,
que eram duros e, portanto, deixavam as nádegas doloridas440.
A peça Zig-Zag, de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, aborda alguns
traços da moda masculina moderna. Embora a revista não faça referência direta ao
almofadinha, podermos identificá-lo devido algumas de suas características. No
segundo quadro, o personagem Espírito Moderno apresenta para Deodoro da Fonseca e
Benjamin Constant os novos trajes masculinos, como podemos observar abaixo:
437
DOURADO, Rosiane de Jesus. As formas modernas da mulher brasileira (1920-1939). Dissertação de
Mestrado em Design. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2005, p. 104.
438
Ibidem.
439
MELO, Alexandre Vieira da Silva. Representações de gênero: melindrosas e almofadinhas na Revistas
do Recife dos anos 1920. In: Anais do Encontro Regional de História ANPUH-RIO, São Gonçalo, 2012.
Disponível em:
<www.encontro2012.rj.anpuh.org/resources/anais/15/1338420541_ARQUIVO_RepresentacoesdeGenero
-AlexandreMelo-AnpuhRio.pdf> Acesso em: 11 de janeiro de 2013.
440
MEDEIROS, Hugo Augusto Vasconcelos. Melindrosas e almofadinhas: relações de gênero no Recife
nos anos 1920. Tempo e Argumento: Revista do Programa de Pós-Graduação em História UDESC,
Florianopólis, v.2, n.2, jul. – dez. 2010, p. 103.
154
Podemos observar que, de acordo com o trecho citado, o uso de calças curtas,
paletó cintado e pespontado tornava os homens elegantes. Porém, a vaidade e a
elegância eram vistas como características femininas e por isso a associação entre
homens elegantes e meninas, presente na última frase: ―Um moço elegante parece
menina‖. Esta caracterização, portanto, não exprime homossexualidade, mas evidencia
um pensamento da época referente à vaidade, vista como futilidade feminina.
Tal concepção pode ser analisada na revista À la garçonne, de Marques Porto e
Afonso Carvalho. Nesta revista o Compére aponta a moda como uma futilidade
feminina. Para ele, a mulher ―encontra sempre utilidade nas coisas mais fúteis. A vida
do vizinho, o vestido da vizinha e um figurino da moda, eis toda a preocupação da
mulher‖442. Portanto, o homem que se interessava por moda e se preocupava com a sua
aparência era fútil, assim como as mulheres.
Os almofadinhas, assim como as melindrosas, eram vistos como símbolos de
modernidade e interpretados negativamente devido à confusão dos gêneros,
principalmente no que diz respeito à aparência. Porém, esta não era a única
interpretação associada à vida moderna e aos almofadinhas. Na revista Fla-Flu, de
Bittencourt e Menezes, a estes personagens são associados outras imagens:
441
TIGRE, Bastos. Zig-Zag (1926) 2ª DAP, caixa 37, n. 785.
442
PORTO, Marques; CARVALHO, Affonso. À la garçone (1924). Arquivo 2ª DAP, Arquivo Nacional,
caixa 27, n.544.
155
443
BITTENCOURT Carlos; MENESES, Cardoso de. Fla-Flu (1925). Arquivo Nacional, 2ª DAP, cx. 36,
n. 755, p. 31.
444
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 230.
156
445
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Baiana olha pra mim (1926). 2ª DAP, n.778 -
cx.37.
446
MEDEIROS, Hugo Augusto Vasconcelos, op. cit., 2010, p. 107.
447
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33, p. 42.
157
O gosto pelo shimmy é retratado como uma das características de quem segue a
moda moderna, como o corte de cabelos à la garçonne da melindrosa. Assim, podemos
realizar uma associação entre a dança e as melindrosas. Em outras revistas é
mencionado o caráter moderno das danças, como podemos observar na peça À la
garçonne:
COMPERE – Quer dizer que a baiana hoje em dia só dança...
BAIANA – Fox-totri, achiminho, tangaus.
SECRETARIO – ... e outras danças modernas que a modéstia aconselha a
silenciá
COMPERE – Qual baiana! Você é muito brasileira para resistir ao samba
nacional448.
448
PORTO, Marques; CARVALHO, Afonso. À la garçonne (1924). Arquivo 2ª DAP, Arquivo Nacional,
caixa 27, n.544.
449
Ver, nesse sentido, VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
450
HOBSBAWM, Eric. História social do jazz. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011., p.. 84
158
451
Ibidem, p.84
452
Ibidem, p.83.
453
Ibidem, p.87.
454
LABRES FILHO, Jair Paulo; SANTOS, Rael Fiszon Eugenio dos. Jazz-bands no Brasil: modernidade,
raça, nacionalidade e política na década de 1920. In: Encontro Nacional de História ANPUH, 26, 2011,
São Paulo, p. 3. Anais... Disponível em:
www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308176626_ARQUIVO_JAZZBANDSNOBRASIL%28ver
saofinalanpuh%29.pdf. Acesso em: 16 de janeiro de 2013.
455
Ibidem, p.3.
456
PEREIRA, Leonardo. O ―Prazer das Morenas‖: bailes, ritmos e identidades nos clubes dançantes da
primeira República. In: MARZANO, Andrea; MELO, Victor Andrade de. (org.) Vida divertida: histórias
do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Apicuri, 2010, p. 280.
457
Ibidem, p. 291.
159
458
Ibidem, p. 297.
459
Ibidem, p. 298.
460
GRIFFITHS, Paul. A música moderna, p 109. Apud: FENERICK, José Adriano. Nem do morro, nem
da cidade: as transformações do samba e a indústria cultural. Tese de Doutorado em História. São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2002.
160
Apresentar-se, portanto, enquanto moderno, podia ser mais que adotar modas
provindas de outros países, como forma de libertação da moral ―tradicional‖. Podia
envolver o reconhecimento e a valorização de manifestações culturais que pudessem ser
apontadas como caracteristicamente brasileiras sem deixarem de ser reconhecidas como
modernas. Tal processo permitiria que o país fosse identificado enquanto nação
moderna.
Ser ―brasileiro‖ e ―moderno‖ não era, necessariamente, ser alheio às influências
estrangeiras. Mário de Andrade, por exemplo, autor-símbolo do modernismo brasileiro,
destaca a continuidade entre o maxixe e o jazz. Para ele, a afirmação de música
brasileira vai além dos regionalismos ou produtos étnicos, mas abrange toda a adaptação
de elementos estrangeiros e toda a forma de fazer música no Brasil. O autor critica a
busca pelo exotismo, ligada ao interesse pela música africana, ameríndia e etc. Para ele,
o caráter brasileiro da música é mais do que isso, como afirma na seguinte passagem:
Por isso tudo, Musica Brasileira deve de significar toda música nacional
como criação quer tenha quer não tenha caráter étnico. O padre Mauricio 462, I
Salduni463, Schumaniana464 são músicas brasileiras. Toda opinião em
contrário é perfeitamente covarde, antinacional, anticrítica 465.
O texto acima nos possibilita interpretar que, ao buscar uma vida moderna, a
baiana não apenas adota modos vindos do estrangeiro, como rejeita as ―tradições‖
baianas – o pano na cabeça, o ―samba na chinelinha‖ – e a própria língua portuguesa,
um dos elementos que identificavam o povo brasileiro. Os autores, ao abordarem a
assimilação da modernidade pela baiana, parecem reproduzir a concepção de que
modernidade e brasilidade são antagônicas. Porém, se analisarmos a adoção da língua
francesa pela baiana, averiguamos que o linguajar está carregado de sotaque, o que nos
permite analisar a revista sob outro ângulo, a partir de uma concepção mais próxima de
Mário de Andrade. O que pode ser mais explícito na música cantada após o diálogo:
BAIANA
Galante assim, meu bem.
Ai, meu amor
Baiana chic eu sou
466
PORTO, Marques; CARVALHO, Affonso.Á la garçone (1924). Arquivo 2ª DAP, caixa 27, n.544.
162
467
Ibidem.
468
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís. Banco do Brasil (1929). Arquivo 2 DAP, Caixa 67, n. 1634,
p.39.
469
Dança ―fox‖ está associada a uma abreviação de fox-trot.
163
aborígenes pois que só mesmo estes é que são legitimamente brasileiros. Isso
é uma puerilidade que inclui ignorância dos problemas sociológicos, étnicos
psicológicos e estéticos. Uma arte nacional não se faz com escolha
discricionária e diletante de elementos: uma arte nacional já esta feita na
inconsciência do povo.
(...)
Se a gente aceita como brasileiro só o excessivo característico cai num
exotismo que é exótico até para nós. O que faz a riqueza das principais
escolas européias é justamente um caráter nacional incontestável mas na
maioria dos casos indefinível porém. Todo o caráter excessivo e que por ser
excessivo é objetivo e exterior em vez de psicológico, é perigoso 470.
470
ANDRADE, Mário. op.cit., 1972.
471
Já que as mulatas seriam personagens associadas, a princípio, ao universo popular, e as melindrosas
pertenceriam aos segmentos sociais mais favorecidos.
472
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Réco-Réco. 2ª DAP, n.195, cx: 11..
473
CUNHA, Getúlio Nascentes, op. cit., 2009, p.7.
164
Rei tomando banho de mar, para reclamar do fato de que Dança Moderna tenha sido
excluída das festas oficiais 474.
Na cena, é transmitida a idéia de que, apesar da elite adorar as danças modernas,
elas não estiveram presentes nas festas para homenagear o rei da Bélgica, como
podemos observar no seguinte diálogo:
DANÇA – (...) Sendo a dança moderna, embora andando de braço dado com
o Mundo Elegante, não pude dar um ar da minha graça nas festas oficiais...
QUEIROZ – Mas se é dança moderna e se tem ao seu lado o Mundo
Elegante, não era aqui, numa praia de banhos, que deveriam estar, mas sim,
num salão...
MUNDO ELEGANTE – Tem razão. Ouça-nos e depois há de concordar que
não é à toa porém que aqui nos encontramos.
BARBADINHO – É que o Mundo Elegante habita esse bairro?
ZÉ – Com certeza a dança moderna vai ser introduzida nas praias, à hora do
banho?
DANÇA – Não senhor. Fui posta de lado, não é assim? Pois venho protestar
junto do El-Rei, quando ele aqui chegar...
MUNDO ELEGANTE – Hei de provar que esta adorada menina não é
imoral...
QUEIROZ – Ah! Foi por isso que a dança foi barrada?
DANÇA – É verdade!
QUEIROZ – Que injustiça! Toda a elite adora-a, menina deixe que falem...
ZÉ – Eu só queria ver como é essa história...
BARBADINHO – Não te mete nisso, não... A dança moderna que o mundo
elegante adora, não é aquilo que se dança lá no Clube da tua zona...475
O diálogo nos transmite a ideia de que as danças modernas podiam ser ou não
elegantes, dependendo do ―clube‖ e da ―zona‖ em que se faziam presentes. Isto fica
claro quando analisamos as últimas falas de Zé e Barbadinho. Estes dois personagens
representam os morros – Zé retrata a comunidade de Ponta d´Areia em Niterói, e
Barbadinho faz menção aos capuchinhos do morro do Castelo. Haveria ―a dança
moderna que o mundo elegante adora‖ e, também, a dança moderna dos clubes e zonas
populares. Nesse sentido a revista estaria sugerindo que ―o moderno‖, ao ser apropriado
474
A revista aborda a vinda do rei da Bélgica ao Brasil. Este evento ganha proporções grandes porque,
além de ser o rei que ficou consagrado nas batalhas da I Guerra Mundial, foi o primeiro monarca europeu
a visitar um país da América do Sul. Por essas razões, festas, passeios e viagens foram organizadas em
homenagem aos reis da Bélgica. FAGUNDES, Luciana F. De São Cristóvão para Botafogo: as festas
cariocas em homenagem aos reis da Bélgica (1920) In: Cadernos de História, v. IV, n. 2, ano 2, p. 25-40.
Disponível em:< www.ichs.ufop.br/cadernosdehistoria> Acesso em: 28 de janeiro de 2012. Cabe
observar, ainda, que a revista aponta que diversos personagens, inclusive os morros do Rio, vão à praia
esperar o rei da Bélgica, não para conhecerem o monarca estrangeiro, mas porque assim teriam
oportunidade de encontrar, e de serem ouvidos, pelos dirigentes brasileiros. Há, portanto, uma crítica à
importância dada à vinda do rei e à ausência de diálogo entre o governo e a população. O desdém do
governo em relação aos anseios populares fica explícito no primeiro ato, segundo quadro, onde um dos
personagens é Desleixo. BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Quem é bom já nasce feito.
Biblioteca da FUNARTE, PT03856.
475
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Quem é bom já nasce feito. Biblioteca da FUNARTE,
PT03856.
165
***
476
MENEZES, Cardoso de; BITTENCOURT, Carlos. Fla-Flu, 2ª DAP, caixa 36, n. 755.
477
No ano de 1925, a Seleção Carioca foi convocada às pressas para o Campeonato Brasileiro. Pela
dificuldade em reunir os jogadores de diversos clubes, optou-se por convocar apenas o Flamengo e o
Fluminense. Apesar de reações a essa seleção, ela se tornou campeã, o que pode ser um dos motivos para
a denominação da revista e para a afirmação de que os homens de elite ou são Flamengo ou Fluminense.
166
478
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. op. cit., 2000, p.26.
479
Ibidem, p.24.
480
Ibidem, p. 36.
481
Ibidem, p.41.
482
Ibidem, p.36.
167
(...)
Entre o interesse manifesto pela curiosidade de quem se espreme para assistir
aos jogos e a tentativa de começar a praticá-lo em seus próprios espaços, não
parecia haver um caminho muito longo. Jovens de famílias que não poderiam
pagar mensalidades como aquelas cobradas pelos clubes esportivos da capital
logo achariam, em outros espaços, incentivo e apoio para a prática do novo
esporte483.
Dada essa amplitude que o futebol alcançou, novas formas de distinção foram
sendo criadas. Um exemplo citado por Leonardo Pereira é a formação da Liga
Metropolitana do Foot-ball, em 1905, que tinha por objetivo definir regras para manter
o caráter fidalgo do jogo 484. Até o início da década de 10, essa liga era restrita aos
grandes clubes, porém, por intermédio de acordos esportivos ou por interferência
política das diretorias, alguns clubes menores, como por exemplo o Bangu, o S.C.
Americano, entre outros, tornaram-se sócios da, até então refinada, Liga Metropolitana.
O autor ressalta que, embora esses novos sócios fossem destinados à segunda divisão, a
incorporação deles à Liga permitiu uma ampliação da base social do futebol 485.
Segundo Pereira, na década de 10, diversas mudanças são observadas no
contexto futebolístico. Um dos fatores provocadores da mudança foi o desenvolvimento
dos campeonatos. Dentre as regras definidas, uma delas era que o melhor time da
segunda divisão passaria para a primeira, e vice-versa. Segundo o autor, isso
possibilitou a participação de equipes menos elitistas nos campeonatos da primeira
divisão, uma vez que um dos times a ―subir‖ foi o Andaraí, formado, principalmente,
por operários e negros. Este acontecimento gerou resistências. Apesar da criação de
uma regra que impedia que operários, assim como trabalhadores de qualquer profissão
braçal, fizessem parte dos campeonatos, o futebol, na segunda metade da década de
1910, começava a se transformar em um fenômeno de massas, como afirma Pereira:
De elemento de diferenciação, o futebol transformava-se assim em uma
prática que, admirada por todos, ganharia uma força social somente
experimentada até então por eventos como o carnaval (...). Longe de poder
ser definido nesse momento como um símbolo de identidade de classe, fosse
ela qual fosse, ele transformara-se então, a partir das apropriações e
resignificações feitas por membros dos mais diversos segmentos sociais, em
um grande fenômeno de massas486.
483
Ibidem, p. 57-59.
484
Ibidem, p.63.
485
Ibidem, p.110.
486
Ibidem, p. 127.
168
487
Ibidem, p.29.
488
Ibidem, 29.
489
CASTRO, Ruy. Flamengo: o vermelho e o negro. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 47-49.
490
Ibidem, p.49, 51.
491
MELO, Victor Andrade. Remo, modernidade e Pereira Passos: Primórdios das políticas públicas de
esporte no Brasil. In: Esporte e Sociedade, número3, Jul2006/Out2006. Disponível em:
<http://www.lazer.eefd.ufrj.br/espsoc/> Acesso em: 07 de fevereiro de 2013.
169
Portanto, podemos concluir que uma das razões para a peça associar os times –
Flamengo e Fluminense – aos grupos elegantes da cidade é o fato de que, embora o
futebol já sofresse claramente um processo de popularização, aqueles dois clubes
haviam sido fundados, e se mantinham, como espaços simbólicos e locais de
sociabilidade das elites. Segundo Leonardo Pereira, a popularidade alcançada pelo
futebol na década de 10 não impediu que formas de distinção social fossem criadas.
Dentre essas formas, Pereira cita a mensalidade cobrada para se associar aos clubes e o
amadorismo. No que diz respeito ao primeiro critério, Pereira afirma:
494
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís. Cangote Cheiroso (1927). Arquivo Nacional, 2 DAP, cx. 51, n.
1201.
171
495
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda, op. cit., 2000, p.143.
496
Ibidem, p. 136.
497
SOARES, Antonio Jorge; LOVISOLO, Hugo Rodolfo. Futebol: a construção histórica do estilo
nacional. Revista. Brasileira Ciências e Esporte, Campinas, v. 25, n. 1, p. 129-143, set. 2003, p. 135.
498
NETTO, Américo. Football: inovação brasileira. Sports, ano 1, n. 1, São Paulo, 1919. Apud:
SOARES, Antonio Jorge; LOVISOLO, Hugo Rodolfo, op. cit., p. 133.
172
brasileiro a este esporte. Cabe observar que isso também ocorria com outras expressões
culturais analisadas nesse trabalho, visto que a construção da identidade nacional
perpassava amplas tensões e negociações.
Apesar das diferentes visões sobre o sentimento nacional e o futebol, ao longo
da década de 1920 o esporte passa a ser visto, por alguns jornalistas e intelectuais, como
um dos espaços de sintetização cultural, à medida que propiciava o encontro entre
classes antagônicas e diferentes raças499. Na década de 1930, essa visão do futebol se
torna hegemônica, encontrando em Freyre seu principal difusor e tendo o Estado, na
figura de Getúlio Vargas, como legitimador. Assim, o futebol acaba se tornando
símbolo da nação500. Freyre ponta a miscigenação como um fator nacional que está
presente no futebol:
Acaba de se definir de maneira inconfundível um estilo brasileiro de foot-
ball; e esse estilo é mais uma expressão do nosso mulatismo ágil em
assimilar, dominar, amolecer em dança, em curvas ou em músicas técnicas
européias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto: sejam alas
de jogo ou de arquitetura. Porque é um mulatismo, o nosso –
psicologicamente, ser brasileiro é ser mulato – inimigo do formalismo
apolíneo – para usarmos com alguma pedanteria a classificação de Spengler –
e dionisíaco a seu jeito – o grande jeitão mulato. Inimigo do formalismo
apolíneo e amigo das variações; deliciando-se em manhas moleironas,
mineiras a que se sucedem surpresas de agilidade 501.
499
Essa imagem do futebol tendia a ocultar uma história de conflitos, em que negros e pobres foram
considerados indignos do esporte bretão.
500
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Pelos campos da nação: um Goal-Keeper nos primeiros
anos do Futebol Brasileiro. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.10, n.19, p.23-40, 1997.
501
FREYRE, Gilberto. Football mulato. In: Diário de Pernambuco, 17 de junho de 1938. Disponível em:
http://nacaomestica.org/blog4/?p=1782 Acesso em: 10 de fevereiro de 2013
173
Madame Zig-Zag: Querem ver como tudo hoje é diferente? (Passa um rapaz
com a mão na cintura de uma rapariga)
Melindroso: Juro-te que não te enganarei; serei um perfeito cavalheiro.
Melindrosa – Mas...
Melindroso – A minha garçoniere é o que há de mais discreto nesse mundo;
fica na Avenida em cima de um cinema.
Melindrosa – Não me fica bem, a mim, uma menina solteira, tomar chá numa
garçoniere.
Melindroso – Mas essa garconiere é própria mesmo para meninas, tenho
outra para senhoras, mas é no Leblon.
Melindrosa – Ah, bem; nesse caso, desde que você garante que não há
inconveniente.
Madame – Aí está um que não se dá bem com a linha reta. Em zig-zag chega
mais depressa e com menos trabalho 502.
502
TIGRE, Bastos. Zig-Zag (1926), 2ª DAP, Caixa 37, n. 785. .
503
É curioso que essa expressão seja usada para caracterizar um personagem masculino. Como vimos, o
―par‖ da melindrosa era, mais frequentemente, nomeado como almofadinha.
174
O espírito moderno
Vitorioso está
Na Terra e até no inferno.
Ele dominará.
Partamos nós
Neste momento
Aos cafundós
Do esquecimento.
Hoje é da ciência
A Hegemonia
Abriu falência
A bruxaria. 506
504
Segundo Neyde Veneziano, o prólogo é essencial em toda a revista, desde o formato inicial de revista
de ano até as revistas mais modernas. De acordo com a autora, era frequente, principalmente nas revistas
de ano, que elas se iniciassem com um prólogo fantástico ou mágico.
505
TIGRE, Bastos. Zig-Zag (1926), 2ª DAP, Caixa 37, n. 785.
506
Ibidem
175
É do futurismo em prol.
- Ao sol!
A ciência nos conduz
- À luz!
A vida um termo tem.
- O além!
Avante, Espírito Moderno, etc.507
507
Ibidem.
508
CANO, Wlson. Da Década de 1920 à de 1930: Transição rumo à Crise e à Industrialização no Brasil.
In: Revista Economia, Brasília (DF), v.13, n.3b, p.897–916, set/dez 2012.
509
Ibidem, p. 904.
176
que foram para a guerra quanto dos que ficaram. Através dessas técnicas, buscou-se
combater a nostalgia e a saudade. Além disso, buscou-se afirmar a crença de que a
guerra seria a solução para os conflitos e desequilíbrios. A guerra, por mais
contraditório que possa parecer, foi ―deflagrada mobilizando esperanças‖ 510. O autor
ainda aponta que a Grande Guerra impulsionou as técnicas de racionalização industrial,
assim como formas de planejamento econômico, entre outras metodologias
administrativas importantes para o desenvolvimento dos mercados de massa 511. Para
Sevcenko, o caso do automóvel é exemplar. Enquanto no início do século XX era um
produto de luxo, após a Guerra iniciou-se a produção de seus primeiros modelos
populares512.
Retornando à análise da revista Zig-Zag, podemos sugerir que o fragmento
acima reflete, não apenas um entusiasmo, mas uma realidade impulsionada pelo ―boom‖
industrial que ocorreu na década de 1920. Apesar de Sevcenko traçar um contexto
externo ao Brasil, a eclosão da Guerra impulsionou a indústria brasileira também. Uma
das razões apontadas para isso foi a crise nas exportações brasileiras que impulsionou os
avanços industriais
Portanto, a sensação, apresentada na revista, de que cada momento que se vive é
um passo adiante, não é um simples entusiasmo ou um simples desejo pela
modernização, mas é uma experiência sentida por diferentes camadas da sociedade. As
distintas experiências da modernização compunham as temáticas das revistas analisadas.
Estas apresentam percepções sobre diferentes inovações tecnológicas, como por
exemplo o automóvel, o rádio, entre outras.
Na revista Verde e Amarelo, de Patrocínio Filho e Ary Pavão, de 1925, há um
quadro que comenta os efeitos do automóvel no cotidiano da cidade, como se observa
na rubrica do cenário:
Cenário: Ainda com a cortina fechada, ouve-se a descarga forte de um
automóvel que passa pelo interior, acompanhado de vários toques de buzina,
dando a impressão de que leva grande velocidade. Ao abrir a cortina, o
cenário representa um trecho da rua. À esquerda um poste de iluminação de
três lâmpadas, completamente torto, dando a ideia de que tal estrago foi feito
pelo automóvel que passou. Ao fundo, em cenário, várias pessoas caídas na
rua, algumas com os membros separados do tronco, outras voando;
carrocinhas em pedaços, burros de carro espetados nos pára-raios dos
telhados513.
510
SEVCENKO, Nicolau, op.cit., 1992, p. 164.
511
Ibidem, p.165.
512
Ibidem, p. 163.
513
PATROCÍNIO FILHO, José; PAVÃO, Ary. Verde e Amarelo (1925). 2ª DAP, Caixa 31, n. 635.
177
514
O primeiro automóvel a chegar no Brasil pertencia ao irmão do aviador Santos Dumont, em 1893.
515
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: _______ (Org.) História
da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1998, p. 558.
516
Ibidem.
517
PATROCÍNIO FILHO, José; PAVÃO, Ary, Verde e Amarelo (1925). 2ª DAP, Caixa 31, n. 635..
178
518
LEITE, Rodrigo Peixoto. Painel de automóveis populares: o design do cluster de direção sob o aspecto
da ergonomia informacional. Dissertação de Mestrado em Design. Rio de Janeiro: PUC-Rio,
Departamento de Artes e Design, 2006, p. 56.
519
Informação disponível em: <http://www.saopaulo.sp.gov.br/conhecasp/historia_republica-industria-
automobilistica> Acesso em: 13 de fevereiro de 2013.
520
SEVCENKO, Nicolau, op. cit., 1998, p. 559.
521
SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo das letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São
Paulo: Companhia das letras, 1987.
522
VELLOSO, Mônica Pimenta, op.cit.,1996, p.22.
179
523
O Observatório Astronômico do Rio de Janeiro que, estava instalado no Morro do Castelo até a sua
demolição em 1921, tinha como uma das suas atividades o serviço de hora. Todas as manhãs, às 8h, esta
instituição soltava um balão vermelho que tinha como proposta regular os cronômetros do navio. Isto
ocorreu durante toda segunda metade do século XIX e princípio do XX. SOCIEDADE BRASILEIRA DE
CARTOGRAFIA. Boletim Mensal da SBC. N. 51, fev. 2004. Disponível em:
http://www.cartografia.org.br/boletim/Boletim51.pdf. Acesso em: 15 de fevereiro de 2013.
524
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se moda pega (1925), 2ª DAP, n.683 - cx. 33,,.
525
SEVCENKO, Nicolau., op. cit., 1992, p. 180.
180
ELA – Será possível que não saibas o que vem a ser um aparelho
radiográfico?
ELE – Confesso-te a minha ignorância.
ELA – Nesse caso fica sabendo que, graças à radiografia, vou conseguir toda
a felicidade que ambiciono.
ELE – Como assim?
ELA – É muito simples. Com o auxílio das ondas hertezianas, este aparelho
não só recebe e reproduz, como também, transmite para todas as estações e
similares da cidade esta nossa conversação, por exemplo.
ELE – Admirável!
ELA – Ora, sendo assim, em família, pode-se, igualmente, ouvir uma ópera
que é cantada no Municipal, um concerto a bordo do transatlântico em
viagem, etc. etc.
(...)
ELA – é ou não é um excelente meio de evitar que certos cavalheiros saiam
de casa, à noite, e caiam na farra?
ELE - Perfeitamente! (pausa) Então o que conversamos aqui pode ser ouvido
por outros?
ELA – Como não? Queres ter a prova? (prepara o aparelho) vou cantar: de
todos os pontos da cidade, onde houver um aparelho igual a este, serei ouvida
e, igualmente, ouviremos o que de lá transmitirem.
ELE – E as tais ondas hertezianas?
ELA – Entrarão em função a seu tempo 527.
526
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se moda pega, op. cit, 1925.
527
BITTENCOURT Carlos; MENESES, Cardoso de. Fla-Flu (1925). Arquivo Nacional, 2ª DAP, cx. 36,
n. 755.
181
528
CALABRE, Lia. A era do rádio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
529
Ibidem, p. 11.
530
SEVCENKO, Nicolau, op. cit., 1998, p. 583.
182
Apesar de ainda ser pouco popular na década de 1920, o rádio possibilitava que
algumas famílias se reunissem para alguns programas. Além disso, permitia a
construção de identidades, por meio de uma afeição pela voz que penetrava os espaços
privados dos ouvintes. O reconhecimento desta característica permitiu seu uso tanto
pelo setor político, quanto pela publicidade. No Brasil, porém, na década de 1920, seu
uso era ainda restrito, devido aos problemas técnicos de transmissão e à (má) qualidade
do sinal. Porém, mesmo com restrições, o uso do rádio, seja enquanto receptor seja
enquanto transceptor, proporcionou efeitos importantes nas mudanças dos
comportamentos e das mentalidades.
O rádio, assim como outros meios de comunicação e transporte, modificou a
forma do indivíduo perceber o tempo e o espaço. Além disso, alterou as relações entre
público e privado – casa e rua –, possibilitando que estes espaços ora se confundissem,
ora se distanciassem. As novas invenções possibilitaram, também, um novo olhar sobre
a sociedade e sobre as formas de participação dentro dela531.
A análise das revistas nos possibilitou compreender que as avaliações sobre a
introdução dessas novas técnicas eram, por vezes, pessimistas, indicando um vazio
moral e social provocado pela industrialização. Em outros termos, porém, eram
creditados a estes produtos uma esperança de unidade e participação social. Portanto, as
representações da modernização, apontadas nesse trabalho, são marcadas por
dicotomias fortes, como desespero e esperança, caos e organização, dispersão e coesão,
diversidade e identidade e etc.
O cômico, como um instrumento de representação e crítica da realidade, foi
importantíssimo na configuração da participação social em meio a essas contradições.
Ele foi um meio encontrado, por intelectuais e artistas, de externalizar as realidades
contraditórias e permitir que identidades se constituíssem. Saliba ressalta estas
características do cômico:
A representação da sociedade brasileira pela dimensão cômica mostrava que
o privado não apenas se confundia com o público, diluindo-o, mas também
criava um espaço para o indivíduo afirmar-se perante aquela espécie de vazio
moral, que se criava cada vez que a aceleração da história reforçava, por
estruturas mais gerais e vastas temporalidades, os redutos da racionalidade 532.
531
SALIBA, Elias Thomé.A dimensão cômica da vida privada na República. In: SEVCENKO, Nicolau,
op. cit., 1998, p. 348.
532
Ibidem, p.364.
183
CONSIDERAÇÕES FINAIS
FONTES:
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Boletim da SBAT, ano 22, n. 194, ago-set. 1940.
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Revista da SBAT, ano 36, n. 299, set-out 1957.
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Quem é bom já nasce feito. Biblioteca
da FUNARTE, PT03856.
188
2.2 - Periódicos:
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O malho, Rio de Janeiro, ano 24, n. 1.177, 4 abr. 1925
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ANEXO
1920
- Quem é bom já nasce feito – Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes - Data de
registro na polícia 18 de outubro de 1920 – Data da estreia: 19 de outubro de 1920.
Theatro S. José (localizava-se na atual Pç Tiradentes) – Empresa Pachoal Segreto
Motivo da escolha: A escolha se originou a partir da leitura da dissertação do Tiago de
Mello Gomes intitulada Lenço no pescoço: o malandro no teatro de revista e na música
popular: “nacional”, “popular” e cultura de massas nos anos 1920. Gomes, ao citar a
revista Quem é bom já nasce feito afirma: ―Bittencourt e Menezes buscaram valorizar o
nacional-popular de forma mais direta, sem maiores elaborações. A peça parece ser uma
crítica a um país que está completamente voltado para o estrangeiro, deixando seus
valores morrerem à míngua‖533 .
1921
- Réco-Réco – Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes – Data de registro na
polícia 12 de janeiro de 1921 – estreou em 12 de janeiro de 1921- Theatro São José -
Empresa Paschoal Segreto.
Motivo de escolha: A motivação se originou a partir da pesquisa realizada na biblioteca
da FUNARTE. Interessei-me pelo título da peça, uma vez que ele retratar um
instrumento musical presente no samba. Assim, me questionei sobre sua temática e
sobre as raízes culturais do Brasil.
533
GOMES, Tiago de Melo. Lenço no pescoço: o malandro no teatro de revista e na música popular:
―nacional‖, ―popular‖ e cultura de massas nos anos 1920. Dissertação (Mestrado em História) - Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998, P.75.
201
Gomes, publicado na Revista de História da USP em 1999. Neste artigo o autor retrata
que a peça tem por tema principal o caráter nacional e a questão racial. Além disso, ela
trata muito bem as perspectivas de democracia racial e, possui uma gama variada de
pensamentos sobre quem seria o brasileiro.
1924
1925
- Se a moda pega – Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes - Data de estreia: 1
de julho de 1925 - Theatro São José - Empresa Paschoal Segreto..
Motivo da Escolha: A peça foi escolhida a partir de seu título. Ao me deparar com ele,
me questionei sobre as ideias que poderiam estar presentes na peça em relação aos
novos costumes, temática que abordarei na dissertação.
1926
- Zig -Zag– Bastos Tigre– Data de registro na polícia 25 de fevereiro de 1926 –
Teatro Glória – Companhia Tro-ló-ló
Motivo da escolha: O que me impulsionou a escolher a peça foram razões similares a
peça anterior (Fla-Flu). Me questionei sobre as diferenças entre as temáticas e formas de
tratá-las das duas. Apesar de ambas serem escritas para a companhia Tró-ló-ló, os
autores são diferentes.
1927
203
- Não quero saber mais dela - Marques Porto e Luís Peixoto – Data de registro
policial: 14 de agosto de 1927 – Data de estreia: 19 de agosto de 1927. Companhia
Bataplan.
Motivo da escolha: A revista foi escolhida para análise devido à assertiva de Gomes no
que diz respeito à imagem do português como integrado ao caráter nacional534.
1928
- É da fuzarca – Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes – Data de registro
policial: 22 de outubro de 1928 - Teatro Recreio.
Motivo da escolha: A dissertação de mestrado de Gomes revelou questões iumportantes
de diversas revistas da década de 1920. Uma que me chamou atenção foi a revista É da
fuzarca, não apenas pelo título que insinua festa, pândega, mas pelas considerações
feitas pelo autor: ―(...) É da fuzarca, grande sucesso de 1928 de Bittencourt e Menezes
(...).A leitura do Brasil, da capital e de seu povo é óbvia, e sugere a singularidade de um
povo que encara o trabalho de uma outra maneira, e se preocupa acima de tudo com a
diversão‖ 537.
1929
534
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 1998, P. 106.
535
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 1998, p. 106.
536
ENIO, Lysias; VIEIRA, Luis Fernando. Luiz Peixoto: pelo buraco da fechadura. Rio de Janeiro:
Vieira &Lent, 2002, p. 155.
537
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 1998, p. 103.
204