O Teatro de Revista Carioca e Identidade Nacional

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MARIANA DE ARAUJO AGUIAR

O TEATRO DE REVISTA CARIOCA E


A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
NACIONAL:

O popular e o moderno na década de


1920

2013
O TEATRO DE REVISTA CARIOCA E A CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE NACIONAL:
O popular e o moderno na década de 1920

MARIANA DE ARAUJO AGUIAR

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em
História.

Orientadora: Profª. Drª. Andrea Barbosa Marzano

Rio de Janeiro
Maio de 2013
O TEATRO DE REVISTA CARIOCA E A CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE NACIONAL:
O popular e o moderno na década de 1920

Mariana de Araujo Aguiar

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em História

Banca Examinadora:

____________________________________________________________

Presidente: Profª. Drª. Andrea Barbosa Marzano (Orientadora)

____________________________________________________________

Prof. Dr.Leonardo Affonso de Miranda Pereira (PUC/RJ)

____________________________________________________________

Profª. Drª. Márcia Chuva (UNIRIO)

____________________________________________________________

Profª. Drª. Ivana Stolze Lima (Fundação Casa de Rui Barbosa - Suplente)

Rio de Janeiro
Maio de 2013
A282 AGUIAR, Mariana de Araujo.
O teatro de revista carioca e a construção da identidade
nacional: O popular e o moderno na década de 1920 /
Mariana de Araujo Aguiar. – 2013.
205 f.; 30 cm.

Orientadora: Dr.ª Andrea Barbosa Marzano


Dissertação (Mestrado) – UNIRIO/Programa de Pós
Graduação em História – PPGH — Universidade do Rio de
Janeiro, RJ, 2013.

Bibliografia: f. 186-198.

1. Teatro de revista. 2. Rio de Janeiro - História. 3.


Identidade nacional. 4. Modernidade. I. Marzano, Andrea
Barbosa. II. Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História. III. Título.
Aos meus pais, Roberto e Cléia,
na tentativa de retribuir o imenso amor
que tenho recebido durante toda minha vida.
AGRADECIMENTOS
E é tão bonito quando a gente entende
Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá
E é tão bonito quando a gente sente
Que nunca está sozinho por mais que pense estar
(Caminhos do Coração – Gonzaguinha)

Aos meus pais, Roberto e Cléia, por todo carinho, apoio, dedicação e incentivo. Sem a
presença e o conforto deles nada disso seria possível. À minha irmã, Luciana, pela sua
atenção e dedicação a mim e à minha pesquisa, sempre disposta a me ouvir e a me ajudar a
amadurecer minhas ideias.
Ao meu namorado, Cristiano, pelo seu companheirismo, apoio e compreensão das
ausências e distâncias ao longo da redação deste trabalho. Agradeço a ele por me proporcionar
momentos de alegria e de conforto em meio aos desesperos da dissertação. Aos companheiros
de apartamento que me proporcionaram momentos de alívio em meio às aflições da escrita,
em especial à Patrícia, por sua presença e amizade ao longo dos anos.
À minha orientadora Andrea Marzano, com quem eu tive o prazer de dividir tantos
momentos de empolgações e angústias nesses dois anos de pesquisa. Agradeço pela
generosidade e sabedoria com que ela tem me acompanhado na orientação desse trabalho.
Às amigas da graduação, que sempre estiveram ao meu lado e me proporcionaram
momentos felizes ao longo da minha formação de historiadora, em especial à Angélica, pelas
trocas de experiência, incentivos e atenção dedicada a mim. Aos colegas da minha turma de
mestrado, com quem pude compartilhar o convívio acadêmico, em especial aos integrantes da
linha de pesquisa em cultura: Artur, Carol, Elisabete, Jefferson, Júlia, Lara, Thati, Tanize,
pelos momentos descontraídos e alegres ao longo desses dois anos.
Ao professor Leonardo Affonso de Miranda Pereira e à professora Márcia Chuva, pela
atenção com a minha pesquisa e pelas reflexões e indicações, que foram importantes para o
desenvolvimento do trabalho. Aos professores do Departamento de História da UNIRIO,
pelos ensinamentos valiosos ao longo dos anos em que estive nessa instituição. Aos
professores do Departamento de Artes Cênicas, pelos ensinamentos e pela oportunidade de
realizar disciplinas, ainda na graduação, importantes para o desenvolvimento dessa pesquisa.
À Milene, secretária do Programa de Pós Graduação em História, por toda a ajuda, e à
CAPES, pela concessão da bolsa que me permitiu a redação da dissertação com muito mais
tranquilidade.
Aos funcionários do Arquivo Nacional, onde realizei a maior parte da minha pesquisa,
pela disponibilidade e atenção durante a consulta ao Fundo da 2ª Delegacia Auxiliar de
Polícia. Aos funcionários da Biblioteca Nacional, que me permitiram o acesso ao Arquivo da
Empresa Paschoal Segreto, mesmo sem a catalogação deste.
Aos meus avós, tios e primos, pelos momentos de risos e alegrias, em especial aos
meus padrinhos Margarette e Caio, pelo apoio e carinho imenso desde a infância, e à minha
afilhada Aline, pela sua alegria e presença na minha vida.
Ao amigo, diretor e eterno professor de teatro Carlos Pimentel, pelos seus
ensinamentos e por me permitir adentrar, desde os meus 13 anos, nas delícias e meandros da
arte dramática. E aos amigos do Laboratório Cênico: Alex, Adriane Cláudio, Diana, Elaine,
Geisa, Maylla, Marco, Michelle e Tati pelo companheirismo, alegrias e etc., que me
impulsionaram a amar e aprofundar meus estudos sobre essa arte.
Aos amigos e colegas que, mesmo sem saber, me propiciaram momentos de alegria,
permitindo esquecer, por alguns momentos, as tensões e conflitos surgidos ao longo da
dissertação, em especial: Cristiano, Maylla, Rudster, Julianne, Filipe, Diana, Michelle, Luiz,
Bia, Diego, Evellen, Inessa, Lidiane, Maria Clara, Mariana, Zé, Dayana, Salim, Jaqueline e
Pedro.
E, sobretudo, a Deus, que me deu forças e paciência para persistir até o final.
"O teatro não pode desaparecer porque é a
única arte em que a humanidade enfrenta a si
mesma." (Arthur Miller).

"O teatro é o último reduto onde o ser humano


pode se reconhecer humano." (Fátima Ortiz).
RESUMO

O TEATRO DE REVISTA CARIOCA E A CONSTRUÇÃO


DA IDENTIDADE NACIONAL:
O popular e o moderno na década de 1920

Mariana de Araujo Aguiar

Orientadora: Profª. Drª. Andrea Barbosa Marzano

RESUMO da dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em História.

O teatro de revista foi um gênero do teatro musicado que tinha por finalidade realizar uma re-
visão de processos e situações vivenciados pela sociedade, sob um ângulo cômico. Este
gênero alcançou grande sucesso no Rio de Janeiro entre o final do século XIX e as primeiras
décadas do século XX. As peças abordavam temas relativos à política e às mudanças urbanas
e sociais, levando aos palcos as mais variadas questões que estavam na ―ordem do dia‖.
Observando o compromisso que as revistas possuíam com a contemporaneidade, a dissertação
objetiva compreender como o teatro de revista se inseriu nos debates, ocorridos na década de
1920, relativos à identidade carioca, à identidade nacional e à modernidade.
Nesse período, a sociedade brasileira passava por um processo de grandes contradições, uma
vez que se buscava afirmar uma identidade nacional em meio a um mundo de grandes
transformações industriais e urbanas. Portanto, os debates em torno da construção de uma
identidade carioca e de uma identidade nacional condizente com a inserção do Brasil no rol
das nações modernas estavam presentes nas rodas literárias e artísticas deste período.
A pesquisa busca analisar, também, as múltiplas representações sobre o popular e sobre os
elementos modernos presentes na sociedade brasileira, apontando os argumentos para que
alguns elementos se definissem como centrais na identidade dos brasileiros, ultrapassando,
assim, fronteiras ―raciais‖ e de classe, e negociando demarcadores de fronteiras sociais.

Palavras-chave: Teatro de Revista; identidade carioca; identidade nacional; modernidade;


elementos populares, fronteiras sociais.
ABSTRACT

THE CARIOCA REVUE THEATRE AND THE CONSTRUCTION OF A


NATIONAL IDENTITY:
The popular and modern in the 1920s

Mariana de Araujo Aguiar

Orientadora: Profª. Drª. Andrea Barbosa Marzano

ABSTRACT da dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História.

The revue was a genre of musical theater whose purpose was to accomplish a re-view of
the processes and situations experienced by society from a comic angle. This genre
achieved great success in Rio de Janeiro between the end of nineteenth century and the
first decades of the twentieth century. The plays approached issues related to politics
and social and urban changes, bringing to the stage the most varied issues that were on
the agenda. Noting the compromise that the revues had with the contemporary, the
dissertation aims to understand how revue theater is inserted in the debates that took
place in the 1920s, related the carioca identity, national identity and modernity.
In this period, Brazilian society was going through a process of great contradictions,
once a national identity, amidst a world of large industrial and urban changes, was being
searched. Therefore, the debates about the construction of a carioca identity and of a
national identity consistent with the insertion of Brazil in the list of modern nations
were present in the literary and artistic circles at that time.
The research also aims to analyze the multiple representations of popular and modern
elements in Brazilian society, pointing the reasons why some elements were defined as
central in the Brazilian identity, surpassing, thus, 'racial' and class borders, and
negotiating paths of social boundaries.

Mot-clés: Revue Theatre; carioca identity; national identity; modernity; popular


elements, social boundaries.
Sumário

PRÓLOGO ..................................................................................................................... 13
ATO I: AS RUBRICAS: O TEATRO DE REVISTA E A CIDADE DO RIO DE
JANEIRO........................................................................................................................ 24
Quadro I: O universo teatral carioca no início do século XX ........................................ 24
Cena 1: O teatro ligeiro e suas diferentes manifestações ........................................... 24
Cena 2: O teatro de revista carioca e suas fases: a metalinguagem como recurso ..... 28
Cena 3: Os autores e o público: uma análise dos espaços de sociabilidade ............... 39
Cena 4: A produção textual da revista e a comicidade ............................................... 50
Cena 5: Estado e teatro ............................................................................................... 56
Quadro II: A cidade do Rio de Janeiro: cenário em movimento .................................... 61
Cena 1: Transformações urbanas e sociais no Rio de Janeiro .................................... 61
Cena 2: Rio de Janeiro capital: ―cidadania teatral‖ e conjuntura política na década de
20 ................................................................................................................................ 67
ATO II: A TRAMA: CONSTRUINDO A IDENTIDADE NACIONAL PELO
TEATRO DE REVISTA ................................................................................................ 74
Quadro I: Representações do popular ............................................................................. 74
Cena 1: O malandro, a mulata e as questões raciais no teatro de revista ................... 74
Cena 2 – A imagem polissêmica do português: ....................................................... 104
Cena 3 – As representações das manifestações culturais brasileiras/ cariocas: a
construção da ideia de popular e suas diferenciações............................................... 117
Quadro II: Representações do moderno no teatro e revista: críticas e exaltação ......... 137
Cena 1: Em cena a moda e a sexualidade: as noções de feminilidade e masculinidade
a partir de melindrosas e almofadinhas .................................................................... 142
Cena 2: Os personagens modernos e os novos costumes: A modernidade e a
brasilidade................................................................................................................. 155
Cena 3: Formas de sentir as inovações e as mudanças: percepções sobre tempo e
espaço ....................................................................................................................... 173
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 184
FONTES: ...................................................................................................................... 187
1.1 – Arquivos: ............................................................................................................. 187
Arquivo da 2ª Delegacia Auxiliar de Polícia ............................................................ 187
Biblioteca Nacional, Divisão de Música .................................................................. 187
Biblioteca Funarte: ................................................................................................... 187
2.2 - Periódicos: ............................................................................................................ 188
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ........................................................................ 188
ANEXO ........................................................................................................................ 200
13

PRÓLOGO

A ideia de nação faz parte do universo simbólico. Sua


valorização visa proporcionar sentimentos de identidade
e de alteridade a uma população que vive ou que se
originou em um mesmo território. (Lúcia Lippi
Oliveira, 1990.

O que nos torna pertencentes à nação brasileira? Esta pergunta foi feita em
diferentes épocas e por diferentes artistas e intelectuais. O debate sobre as questões
nacionais no Brasil surgiu no século XIX com a Independência, quando o estado-nação
brasileiro começou a ser engendrado. Porém, foi após a Proclamação da República que
esse debate ganhou novos contornos. Dentre as razões para isso se encontram as
reflexões sobre a cidadania no pós-abolição, ou seja, sobre a incorporação dos ex-
escravos à vida nacional, entre outros fatores. A busca por uma identidade coletiva foi
alçada fortemente pelos intelectuais da Primeira República, como observa Carvalho:
No Brasil do início da República, inexistia tal sentimento. Havia, sem dúvida,
alguns elementos que em geral fazem parte de uma identidade nacional,
como a unidade da língua, da religião e mesmo a unidade política. A guerra
contra o Paraguai na década de 1860 produzira, é certo, um início de
sentimento nacional. Mas fora muito limitado pelas complicações impostas
pela presença da escravidão 1.

Alguns intelectuais buscavam não apenas criar laços de identidade, mas também
bases para a redefinição da República, visto que o sonho de um sistema político que
trouxesse reformas sociais foi frustrado. Nesse sentido, surgem, no início do século XX,
diferentes formas de pensar a nação. Porém, foi após a I Guerra Mundial que as
contradições e as mazelas do Brasil passaram a ser vistas mais claramente. Com isso,
muitos intelectuais perceberam a necessidade de se pensar os problemas do Brasil e as
formas de solucioná-los. Muitos deles afirmavam que a civilização no Brasil só seria
alcançada quando houvesse uma consciência nacional2.
Na década de 1920, os debates sobre identidade nacional afloraram, não apenas
como consequência da Grande Guerra, mas também por uma diversidade de fatores que
colocavam em evidência os impasses brasileiros. Esta década foi marcada pelas
comemorações do centenário da Independência, que geraram forte reflexão acerca do

1
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p. 32.
2
DE LUCA, Tânia Regina. A revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Fundação Ed.
UNESP, 1999, p.46.
14

país, de suas características e de suas ―raízes‖ ou ―tradições culturais‖. Segundo Motta,


a perspectiva da comemoração dos cem anos da nação implicou na formulação de
estudos, de teorias e representações do país3.
Além desse fator, a década de 1920 foi um período em que a reflexão sobre o
―moderno‖ se tornou premente, tanto pelos impactos da modernidade, mais presentes na
sociedade brasileira nesse período devido à influência da industrialização, da
urbanização, dentre outros, quanto pela busca, por parte de certos segmentos da
sociedade, em inserir o país no rol das ―nações modernas‖ 4. Portanto, repensar a
identidade nacional, em um contexto de modernidade e modernização, requer não
apenas diagnosticar os problemas da nação frente ao mundo moderno, mas também
reconhecer as múltiplas temporalidades e contradições existentes no território nacional.
Berman observa que é da ―sensação de viver em dois mundos simultaneamente, que
emerge e se desdobra a ideia de modernismo e modernização‖ 5. Assim, a modernidade
apresenta como características marcantes a contradição, a condição de permanente
mudança e etc..
Portanto, a sociedade brasileira, nos anos 20, vivenciou um processo de grandes
contradições, uma vez que se buscava afirmar traços nacionais em meio a um mundo de
grandes transformações industriais e urbanas. Com a eclosão da Primeira Guerra,
surgem diferentes visões acerca da nacionalidade e dos princípios e valores da nova
sociedade moderna. Márcia Chuva ressalta que as diferentes vias explicativas sobre a
―identidade nacional‖ têm como um dos fundamentos ―a valorização, ou não, das
diferenças regionais como constituidoras da identidade nacional‖ 6. A autora se refere ao
grupo de intelectuais que se inserem no aparelho do Estado a partir da década de 1930,
com a criação do SPHAN (Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Segunda a autora, as ideias incorporadas no SPHAN foram provindas dos debates
iniciados na década de 1920.
Dentre os movimentos modernistas, podemos citar o que teve à frente Graça
Aranha, Ronald de Carvalho e Renato Almeida, que defendiam o espírito futurista, a
valorização poética da técnica no mundo moderno, o culto da velocidade e do

3
MOTTA, Marly Silva da. A nação faz cem anos: a questão nacional no centenário da independência.
Rio de Janeiro: Editora FGV: CPDOC, 1992, p. 26.
4
Os países aliados são apresentados como modelos de países modernos.
5
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 16.
6
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. In:
Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro,, v. 4,n. 7, p. 313-333, 2003, p. 314.
15

movimento; o Pau-Brasil, que posteriormente se transformou no antropofagismo e teve


como representantes: Oswald de Andrade, Raul Bopp, Antônio de Alcântara Machado;
o verde-amarelismo, que se organizou ao redor de Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e
Menotti Del Picchia.
Segundo Chuva, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Carlos Drummond de
Andrade, Lúcio Costa, Afonso Arinos de Melo Franco, entre outros que compunham a
chamada ―quarta corrente‖, tinham como crença a universalidade, ou seja, defendiam a
ideia de uma origem comum da cultura e da arte. A autora cita o confronto aberto entre
Rodrigo Melo Franco de Andrade e Plínio Salgado, o qual se expressou em um artigo
da Revista do Brasil, em 1927. Nesse artigo, Rodrigo Andrade posicionou-se
―contrariamente ao indianismo que fundamentou, em boa medida, as teses
geograficizantes das origens da ‗cultura nacional‘ da corrente modernista ‗verde e
amarelo‘‖7. Estes embates marcaram a década de 1920.
Na década de 1930, porém, o Estado, ao criar instituições como o SHPAN,
possibilitou a consagração de uma linha de pensamento. A partir desse momento, então,
as ideias universalistas foram responsáveis pela constituição de uma fisionomia
nacional, como a própria autora afirma:
A posição que Rodrigo Melo Franco tomou nesse debate delinearia, ou
melhor, daria propriamente uma forma ao pensamento que se consolidou no
SPHAN, ao buscar, sem regionalismo, constituir a fisionomia do Brasil que
seria apresentada, no âmbito das relações internacionais que estabelecia, para
garantir um pertencimento ao mundo das nações modernas8.

A ideia de identidade nacional que se consagrou no SPHAN foi a de que a


inserção no mundo civilizado ocorreria a partir de uma identificação da brasilidade de
forma universal, de modo que a arte brasileira pudesse ser emoldurada ―na classificação
tradicional da história da arte no mundo ocidental‖9.
No entanto, antes da década de 1930, podemos observar que, apesar de díspares,
os grupos se integravam em um mesmo movimento, o modernismo, que surgiu no
Brasil ainda na década de 1910 e que tinha por preocupação compreender a contradição
entre ―a tradição que ameaça desaparecer e os esboços de uma modernidade que apenas

7
Ibidem, p. 315
8
Ibidem, p. 316.
9
Ibidem, p. 317
16

se anuncia‖10. Esses grupos, portanto, buscavam definir traços da ―tradição brasileira‖


em um mundo de mudanças sociais e industriais cada vez mais velozes.
Em meio a esse contexto, alguns grupos de intelectuais e artistas passaram a
enxergar no humor uma forma de expressão da nacionalidade. Segundo destaca
Velloso, o humor é:
(...) um dos sinais mais expressivos da modernidade carioca, funcionando
como pólo unificador e de identidade intelectual. Por seu caráter de impacto,
condensação de formas, ilustração do cotidiano e agilidade na comunicação,
apresenta-se como uma linguagem amplamente identificada com as
demandas da modernidade11.

O humor configura-se como uma expressão da realidade a partir de uma visão


crítica sobre ela, além se tornar uma forma de expressão importante no período
estudado. Assim, apesar de pouco abordados na literatura relativa ao modernismo, os
intelectuais e artistas que se dedicaram a construir representações humorísticas da
realidade apresentavam um olhar crítico sobre o avanço científico-tecnológico,
banalizando o moderno e imprimindo imagens cômicas sobre o caráter nacional.
Dentre os que privilegiavam o humor em suas reflexões sobre a modernidade e o
caráter nacional se encontravam os revistógrafos. Estes eram assim denominados por se
dedicarem à literatura dramática do teatro de revista. As revistas tiveram uma posição
de destaque na produção teatral brasileira por cerca de três quartos de século (entre 1884
e 1963). Questões relativas à modernidade, à tradição e à busca pela identidade carioca e
nacional se encontravam presentes em diversas peças do teatro de revista. Este gênero
12
teatral, por definição, tinha por objetivo realizar uma re-visão (re-vista) dos fatos
reais, sob um olhar crítico e cômico. Nesse sentido, as peças eram representações de
processos e situações que a sociedade brasileira e carioca vivenciava naquele período.
Porém, cabe afirmar que a forma como esses processos eram representados diferia
consideravelmente, variando de acordo com os dramaturgos, com a época em que as
revistas eram escritas, entre outros aspectos.
A construção da identidade nacional, na década de 1920, perpassou, assim,
amplos debates e negociações. Entender como o teatro de revista se inseriu nesse debate

10
VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro: Ed.
Fundação Getúlio Vargas, 1996, p, 167.
11
Ibidem, p. 41.
12
Esse modo de conotar a revista está presente no artigo de Luiz Gustavo Marques Ribeiro e Vera
Collaço, intitulado como: ―Tecendo o teatro de revista: Analise estrutural das peças Cocota; Comidas,
meu santo; e Você já foi à Bahia”. Disponível em:
http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume3/numero1/cenicas/luizgustavo_vera.pdf. Acesso
em: 21 de setembro de 2011.
17

é a preocupação central desse trabalho. O estímulo para este estudo foi proporcionado
por diversos fatores. Dentre eles, podemos citar as temáticas das peças. A leitura das
revistas me fez observar que grande parte delas abordava as mudanças culturais e
sociais associadas à urbanização e à industrialização. Além disso, elas construíam
imagens e associações que pareciam buscar definir quem é o brasileiro e o carioca.
Outro motivo que me instigou a analisar como o teatro de revista participava da
construção da identidade nacional e elaborava representações da modernidade foi a
amplitude de público que este gênero teatral alcançou nos anos 1920. Tiago de Melo
Gomes compreende o teatro de revista dos anos 1920 a partir do conceito de cultura de
massas, uma vez que havia ―um grande arsenal cultural disponibilizado para amplos
segmentos da população da cidade, que funcionava como campo próprio de articulação
de identidades e diferenças‖ 13. Assim, ele afirma que, nesse período, o teatro de revista
tinha um público expressivo tanto entre as classes populares quanto entre os segmentos
sociais mais favorecidos economicamente. Portanto, a possibilidade de uma repercussão
ampla das peças me fez questionar sobre as razões para o ínfimo reconhecimento do
teatro de revista enquanto uma arte que se enquadra dentro do pensamento modernista
brasileiro.
O teatro de revista foi visto, por muito tempo, como um fator de decadência do
teatro brasileiro14. Dentre as razões para tal situa-se a despreocupação com a
originalidade literária, o gosto em agradar o público e a comicidade. Por isso, o teatro de
revista foi relegado, pela crítica e pela historiografia, a um patamar inferior por muitos
anos. Foi só a partir da década de 80 que historiadores se debruçaram sobre os gêneros

13
GOMES, Tiago de Melo.Um espelho no palco: identidades sociais e massificação da cultura no teatro
de revista dos anos 20. São Paulo: Ed.Unicamp, 2004, p. 34.
14
A decadência do teatro nacional foi abordada, e ainda se faz presente, na historiografia do teatro. José
Galante Sousa, um dos autores clássicos da história do teatro brasileiro, em sua obra O teatro no Brasil,
publicada em 1960, critica o advento do gênero ligeiro como o causador da ruptura do desenvolvimento
estético e, portanto, como o causador da decadência do teatro nacional. Sua crítica ao teatro de revista,
assim como a de diversos historiadores, está calcada na ênfase à dramaturgia, ou seja, ao texto dramático,
em detrimento de uma análise social do teatro ligeiro. A desmoralização do teatro está atrelada, além
disso, à falta de uma escola dramática, ao modo como se organizavam as empresas, à falta de distribuição
dos artistas em classes, às reprises, à falta de boas peças, de bons artistas, à falta de disciplina. Outro autor
que se dedica à história do teatro é Sábato Magaldi. Em seu livro Panorama do teatro Brasileiro, Magaldi
destaca que o gênero ligeiro ―quase matou o drama e a comédia‖. Ver: SOUSA, José Galante. O teatro
no Brasil. Tomo I. Rio de Janeiro: MEC / INL, 1960. MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro
brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/ DAC/ FUNARTE/ Serviço Nacional de
Teatro, s/d.
18

dramáticos como fontes para compreender a história social15. Nesse contexto, o teatro
de revista passa a ser alvo de diversos estudos.
No que diz respeito à afirmação de concepções de modernidade e identidade
nacional, alguns estudiosos se dedicaram a investigar como os autores do teatro de
revista dialogaram com esse processo e com os movimentos que estavam em voga
naquele período, como o modernista. Neyde Veneziano observa uma proximidade do
teatro de revista com os movimentos artísticos e intelectuais que estavam ocorrendo na
Europa e no Brasil no início do século XX16.
Tiago de Melo Gomes, por outro lado, defende a ideia de que houve a
abordagem de temas semelhantes, porém, ele observa que o modernismo paulista e
europeu não pode ser comparado ao ―mundo do entretenimento de massas na cidade do
Rio de Janeiro [pois este] tinha em casa outros modelos sobre os quais trabalhar em sua
tematização da vida cotidiana e das grandes questões do momento‖ 17. Portanto, apesar
do autor reconhecer que havia similaridades temáticas, ele prefere não enquadrar o
teatro de revista carioca como parte do movimento modernista.
Já Mônica Pimenta Velloso, ao realizar um estudo sobre o modernismo no Rio
de Janeiro, analisa as modalidades distintas que esse movimento possuiu no Brasil,
questionando o marco de 1922 e apontando que o Rio de Janeiro teve um movimento
modernista, sim, mas calcado no humor, como já destacamos acima. Nesse sentido, ela
caracteriza o teatro de revista como pertencente ao movimento humorístico do
modernismo carioca, como ela mesma afirma:
Concisão, condensação, veiculação de novas coordenadas de espaço e tempo,
alegoria e humor: é através dessas linguagens que o teatro de revista procura
recriar ficcionalmente o cidadão e a cidade, dando forma a uma realidade
ainda difusa na sensibilidade coletiva. Esse linguajar e essa temática são
familiares ao grupo dos intelectuais humoristas.
(...)
Vinculados ao universo jornalístico, Bastos Tigre, Pederneiras, José do
Patrocínio e Kalixto entram para a produção teatral. (...) A linguagem cênica
utilizada no teatro se assemelhava à dos caricaturistas na imprensa: divisão
em quadros, cenas curtas, personagens alegóricos e representação do
cotidiano carioca.
É interessante a relação de afinidade que se estabelece entre o universo dos
caricaturistas e o teatro. Vários caricaturistas se destacam como
‗revistógrafos‘, atores, cenógrafos e figurinistas. Também participam na

15
MARZANO, Andrea. Cidade em cena: o ator Vasques, o teatro e o Rio de Janeiro (1839-1892). Rio de
Janeiro: Folha Seca: FAPERJ, 2008, p.19.
16
VENEZIANO, Neyde. Teatro de revista no compasso da história: Conexões imediatas e atuais. In:
MALUF, Sheila Diab; AQUINO, Ricardo Bigi de. Dramaturgia em cena. Maceió: EDUFAL, 2006.
17
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 136.
19

confecção dos cartazes, programas, em caricaturas de publicidade, na pintura


dos ‗panos de boca‘ e na decoração da sala de espetáculos 18.

A autora não apenas aponta que os intelectuais humoristas tinham familiaridade


com o teatro de revista, como reconhece que muitos deles participavam diretamente ou
indiretamente das produções das revistas. A vinculação da revista com os caricaturistas
me estimulou a pensar o teatro de revista enquanto pertencente ao modernismo carioca.
A partir disso, vieram as perguntas que embasaram esse trabalho: como o teatro de
revista trabalhava as noções de identidade nacional e modernidade? Como os autores
das revistas relacionam esses dois temas? Com a leitura das peças, observei que esses
dois temas se encontravam emaranhados. Abordar a questão da identidade nacional, na
década de 1920, não era apenas elencar e colocar em evidência supostas ―tradições
populares‖, mas também observar as apropriações do moderno – comportamentos,
moda, manifestações culturais – pela população brasileira.
Com vista nisso, este trabalho tem por objetivos: analisar as representações
contidas nos textos teatrais sobre o popular e suas manifestações; examinar a imagem –
positiva e/ou negativa – construída, nas revistas, sobre a presença de elementos
modernos na sociedade brasileira; estudar como os elementos culturais (gêneros
musicais, dançantes ou esportivos, modas, comportamentos, etc.) são referenciados, nas
revistas, enquanto próprios da sociedade como um todo, ultrapassando as fronteiras
―raciais‖ e de classe, e / ou como traços demarcadores de fronteiras sociais. Perseguindo
tais objetivos, pretendo analisar a participação do teatro na revista nos debates em torno
da construção de uma identidade carioca e de uma identidade nacional condizente com a
inserção do Brasil no rol das nações modernas.
Para realizar tais análises, me debrucei sobre peças do Arquivo da 2ª Delegacia
Auxiliar de Polícia (2ª DAP), alocado no Arquivo Nacional. O fundo possui 398 peças
classificadas apenas como revistas, além de 68 peças classificadas como revistas com
outra especificação, como por exemplo, revista burleta (2), revista carnavalesca (12),
revista chanchada (1), revista portuguesa (1), e etc.. Neste universo de revistas, busquei
peças do período compreendido entre 1920-1929, corte temporal definido para o meu
trabalho.
Com o intuito de compreender a forma como os autores do teatro de revista se
inseriram nos debates relativos à modernidade, à identidade carioca e à identidade

18
VELLOSO, Mônica Pimenta, op. cit., p.76-77.
20

nacional na década de 1920, selecionei peças que tivessem títulos ou abordassem


temáticas que pudessem ser identificadas como parte desses debates. Além dos temas,
as peças foram escolhidas, também, pelos autores. Escolhi, primeiramente, autores que
tinham maior presença tanto na bibliografia analisada quanto no arquivo.
Posteriormente, escolhi autores qualificados na bibliografia, especialmente no trabalho
de Mônica Velloso, como ―intelectuais humoristas‖ envolvidos diretamente no teatro de
revista19.
No que diz respeito aos autores que dominaram o cenário teatral, Tiago de Melo
Gomes menciona, entre os que possuíam ―menor prestígio no mundo das letras‖ 20,
Carlos Bittencourt, Cardoso de Meneses e Marques Porto. Ao realizar pesquisa no
Arquivo da 2ª Delegacia Auxiliar de Polícia, verifiquei, através de um levantamento das
peças, que entre 1920 -1929 os autores mais presentes foram Carlos Bittencourt,
Cardoso de Meneses, Marques Porto e Luís Peixoto.
Já em relação aos autores citados por Velloso, escolhi Bastos Tigre e Patrocínio
Filho. A escolha do primeiro se definiu pela sua representatividade, em relação ao
número de peças de sua autoria, no Arquivo da 2ª Delegacia Auxiliar de Polícia. Já José
do Patrocínio Filho, apesar de ter escrito apenas duas revistas, foi escolhido por ter
escrito, com Ari Pavão, a revista Verde Amarelo. O título chamou minha atenção pela
possível abordagem da temática da identidade nacional.
Do conjunto de peças da dupla Carlos Bittencourt e Cardoso de Meneses, do
qual fazem parte cerca de 25 revistas da década de 1920, foram priorizadas as revistas
carnavalescas que, segundo Gomes, apresentam uma série de considerações sobre o
caráter nacional21. Segundo o índice das peças do arquivo da 2ª Delegacia Auxiliar de
Polícia, há 13 revistas denominadas carnavalescas escritas pela dupla. Ao recorrer à
bibliografia, optei por analisar as seguintes peças: Quem é bom já nasce feito, Reco-
Reco e Bahiana, olha pra mim!
Posteriormente, procurei outras revistas da dupla cujos comentários, presentes na
bibliografia especializada, sugerissem a abordagem de temas pertinentes à minha
pesquisa. Dentre elas, localizei a peça Duzentos e cinqüenta contos (1921), É da fuzarca
(1928) e Fla-Flu (1925). Selecionei, ainda, a revista Se a moda pega (1925), que foi

19
Ibidem, p.76-77.
20
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 175.
21
GOMES, Tiago de Melo. Lenço no pescoço: o malandro no teatro de revista e na música popular:
―nacional‖, ―popular‖ e cultura de massas nos anos 1920. Dissertação de Mestrado em História.
Campinas: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas, 1998.
21

escolhida a partir de seu título, sugestivo da abordagem do impacto dos novos costumes,
relacionados à idéia de modernidade abordada na dissertação.
No que diz respeito às peças de Bastos tigre, selecionei-as a partir dos títulos
encontrados no índice do arquivo da 2ª Delegacia Auxiliar de Polícia. Segundo este
índice, Bastos Tigre escreveu 9 revistas. Foi escolhida para a realização deste trabalho a
revista Zig e Zag (1925). Seu título chamou a minha atenção durante a leitura da obra de
Gomes, que cita a peça na abordagem das críticas ao futurismo, movimento do
modernismo italiano. Ao ler a revista, observei que ela aborda diversos fatores ligados
às representações do moderno.
No que tange à escolha das revistas de Marques Porto, um levantamento inicial
indicou 46 peças de sua autoria, sendo cerca de 24 revistas da década de 1920. Dessas,
diversas foram escritas em dupla com Luís Peixoto ou com outros autores. Porém,
interessei-me pelo título de algumas escritas apenas por Marques Porto, especialmente
por A mulata (1925), estreada pela Empresa Pinto e Neves no Teatro Recreio. Esta peça
me chamou atenção, primeiramente, pelo título, que parecia permitir a inclusão do
debate ―racial‖ nas reflexões sobre a identidade brasileira.
Quanto às peças da dupla Marques Porto e Luís Peixoto, busquei aquelas cujos
títulos pareciam se aproximar mais do meu objeto de pesquisa. Além disso, debrucei-
me sobre as revistas que foram apresentadas, pela bibliografia, como abordando temas
pertinentes a presente dissertação. Escolhi, portanto, Não quero saber mais dela (1927),
que estreou pela Companhia Bataclan. Esta revista foi selecionada devido à assertiva de
Gomes no que diz respeito à apresentação da imagem do português como integrada ao
caráter nacional22.
Outra peça selecionada foi Cangote Cheiroso (1927). A motivação para a
escolha da peça também foi a obra de Gomes, que afirma: ―Nesta revista, onde o bom
brasileiro é aquele que gosta do jogo do bicho e a mulata rejeita o português, o
personagem malandro se opõe ao português‖23. Tal enredo me pareceu sugerir
representações bem diferentes das presentes na peça anteriormente citada, despertando
minha curiosidade. Da mesma dupla de autores selecionei, ainda, Banco do Brasil
(1929). A escolha desta revista foi motivada pelo título, sugestivo de debate sobre a
nação e a identidade nacional. Selecionei ainda, a revista À la garçonne, de Marques
Porto e Affonso de Carvalho. Notando que o título fazia referência ao corte curto do

22
Ibidem, p.106.
23
Ibidem.
22

cabelo feminino, me interessei pela análise da peça em busca de representações do


moderno.
Através dessas peças, portanto, investigarei representações sobre a identidade
carioca, sobre a identidade nacional, sobre o moderno e as relações entre elas. Meu
intuito não é esgotar o assunto, comprovar a modernidade da sociedade brasileira ou
apresentar uma interpretação ―correta‖ da identidade nacional nos anos 1920. O uso da
literatura enquanto fonte histórica não tem por objetivo revelar a autenticidade de um
fato, mas analisar ―as verdades da representação ou do simbólico através de fatos
criados pela ficção‖ 24. Assim, a literatura nos oferece uma realidade inscrita no âmbito
do imaginário, do pensar e do agir. Ela possibilita uma interpretação mais bem acabada
sobre o imaginário, como afirma Pesavento. Segundo ela, a fonte literária permite que o
historiador tenha acesso ao clima de uma época, tratando de como as pessoas pensavam,
e quais os questionamentos delas sobre o mundo em que viviam25.
A literatura dramática do teatro de revista possui similaridades com a crônica.
Gomes observa alguns pontos em comum entre esses dois gêneros: a opção pela
abordagem do cotidiano, a relação com a cidade e o fato de ajudarem a construir
memória26. Nesse sentido o teatro de revista, como a crônica, é um instrumento
importantíssimo para entendermos um dado contexto social e cultural e analisarmos
como esse contexto é vivenciado e interpretado, seja pelos autores, seja pelo seu
público.
O trabalho foi dividido em partes. A primeira parte tem por objetivo refletir
sobre as múltiplas ligações entre as artes cênicas e o contexto sociopolítico da cidade do
Rio de Janeiro. Transições políticas, culturais e sociais vivenciadas pela sociedade
brasileira em fins do século XIX e no início do século XX tiveram reflexo na produção
artística brasileira, incluindo a produção teatral. Busco compreender, nessa parte, não
apenas o contexto do Rio de Janeiro dos anos 1920, como as possíveis razões do teatro
de revista ter tido papel de destaque na produção cultural do período e a forma como o
teatro dialoga com a sua realidade histórica.
Já a segunda parte, que pretende analisar como o teatro de revista constrói a
identidade nacional, foi subdividida em: 1) as representações do popular, no qual

24
PENSAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. In: Nuevo Mundo
Mundos Nuevos , Debates, 2006.
Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/index1560.html Acesso em: 28 de junho de 2010.
25
PESAVENTO, Sandra. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2. ed., 2008, p.82
26
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 2004, p. 203.
23

abordo uma diversidade de ideias sobre a composição do povo brasileiro, abarcando


desde o debate sobre as relações raciais até as manifestações populares que se tornaram
símbolos do povo e da identidade nacional; 2) as representações do moderno, em que
além de realizar um debate teórico sobre modernidade e modernização, busco
compreender como a moda, os novos costumes, o futebol e a industrialização foram
representados em meio ao processo de formação de identidades, principalmente a
nacional. Essa divisão artificial foi uma forma didática encontrada para tentarmos
entender como diferentes representações do popular e do moderno foram acionadas, e
por vezes amalgamadas, no debate em torno da construção de uma identidade nacional.
Para tentar aproximar os leitores da estrutura das revistas, as subdivisões desse
trabalho foram denominadas conforme o ―esqueleto‖ das mesmas. Portanto, a primeira
parte ficou definida como Ato I, e a segunda como Ato II. Posteriormente, denominei o
que seriam os capítulos de quadros27. Os quadros eram subdivisões dos atos e
marcavam as trocas de cenário. Os quadros, por sua vez, eram compostos por cenas. A
divisão em cenas tinha por proposta sinalizar as entradas de personagens, ou seja,
passava-se ―de uma cena para outra quando [havia] alteração no grupo atuante de
personagens‖28. Assim, os capítulos, designados por mim como quadros, foram
subdivididos em cenas, a fim de abarcar as subdivisões de um capítulo.

27
Definidos por um cenário específico, os quadros possuíam temáticas e histórias definidas. Eram sub-
enredos integrados ao tema geral da peça. Por possuírem certa independência, os quadros podiam ser
movidos ou alterados conforme o desejo dos autores e da companhia teatral. Ver: CHIARADIA,
Filomena. A companhia de teatro São José: a menina-dos-olhos de Paschoal Segreto. São Paulo:
Huicitec, 2012, p.129-133.
28
CHIARADIA, Filomena. op. cit.., p 127.
24

ATO I: AS RUBRICAS: O TEATRO DE REVISTA E A CIDADE DO


RIO DE JANEIRO

Quadro I: O universo teatral carioca no início do século XX

Cena 1: O teatro ligeiro e suas diferentes manifestações

Antes de analisarmos as produções ligeiras é importante compreendermos como


o cenário teatral estava organizado. Segundo Chiaradia, a cena teatral brasileira era
composta por dois grandes blocos: os espetáculos musicados e os declamados29. Estes
últimos abarcavam, principalmente, as comédias e os dramas, frequentemente
apresentados por companhias estrangeiras. Já os espetáculos musicados compreendiam
gêneros como operetas, burletas, revistas e etc.
As peças musicadas e as declamadas foram classificadas pela crítica jornalística,
de forma valorativa, como ―sérias‖ ou ―ligeiras‖. Eram consideradas sérias as peças que
privilegiavam a qualidade textual, que tinham como proposta a erudição intelectual ou
cultural e que eram, em sua grande maioria, importadas30. Já o termo ―ligeiro‖ foi
empregado para caracterizar os espetáculos que possuíam um ritmo bastante ágil na
escrita e na representação, com entradas e saídas de personagens, falas curtas, sem
propósito artístico mais elevado, entre outros recursos.
A maior parte dos espetáculos ligeiros eram musicados, como por exemplo: o
vaudeville, o café-cantante, a opereta, a comédia musical, o musical, a burleta, a revista
e etc. De acordo com Fernando Mencarelli, a origem desses gêneros remete ao teatro
realizado nas feiras de Saint-Germain e de Saint-Laurent, em Paris, durante os séculos
XVII (principalmente a partir da segunda metade) e XVIII. Os espetáculos que ocorriam
nas barracas das feiras eram voltados para um público amplo e diverso. Os primeiros
atores eram oriundos da italiana commedia dell‟arte31, imprimindo a estes espetáculos
um enredo tênue e uma alta capacidade de improvisação.

29
Espetáculos declamados eram aqueles que não possuíam músicas. CHIARADIA, Filomena. op.cit.,
p.36.
30
Ibidem.
31
Teatro popular cômico surgido na Itália entre os séculos XV e XVI. Tinha por característica basear-se
numa ação cênica improvisada, realizada por trupes itinerantes que, ao montarem um palco em espaço
25

No Brasil, e mais precisamente na capital nacional, os gêneros ligeiros ganharam


espaço a partir da segunda metade do século XIX. Chiaradia aponta que o florescimento
desses gêneros guarda estreita relação com as modificações urbanas e sociais ocorridas
nesse período no Rio de Janeiro32. Segundo a autora, as mudanças urbanas e a
―fragmentação da cidade‖33 também se refletiram na construção dramatúrgica
fragmentada. O ritmo da vida no Rio de Janeiro da virada do século passou a ser mais
acelerado, impactando o ritmo da construção dramática. Além disso, a população da
cidade se ampliou consideravelmente após a abolição da escravidão, provocando um
aumento do mercado consumidor. Esta mudança teve estreitas relações com o teatro
ligeiro, que se moldou a partir da ampliação deste mercado consumidor.
As manifestações do teatro ligeiro musicado se diferenciavam em relação às
características do espetáculo e em relação ao local onde este era apresentado. O
vaudeville, por exemplo, se caracteriza por ser uma comédia intercalada por músicas.
Ele possuía enredo simples, inspirado na vida cotidiana, como destaca Mencarelli34. Já o
café-cantante era um espaço onde se servia bebidas enquanto cantores e atores se
apresentavam. Mencarelli destaca que as músicas lançadas nestes locais retratavam
acontecimentos do dia-a-dia.35 No Rio de Janeiro, os cafés-dançantes tiveram grande
êxito. O Alcazar Lyrique36, por exemplo, foi um tipo de café-cantante, que tinha como
principal atração o vaudeville. Este teve uma grande influência na formação de novos
costumes. Segundo Tinhorão, seria nas mesas do Alcazar que surgiria a primeira
geração de boêmios da cidade do Rio de Janeiro37.

público, apresentavam peças de humor, satirizando escândalos locais, eventos atuais e etc. Nesses
espetáculos, o uso de máscaras era frequente. Além disso, as peças eram criadas coletivamente.
32
CHIARADIA, Filomena, op. cit., 2012, p. 35-39.
33
Segundo Maurício de Abreu, até o século XIX a cidade era limitada pelos morros do Castelo, do São
Bento, de Santo Antônio e da Conceição. Com a vinda da família Real, regiões, até então rurais, foram
beneficiadas pelos melhoramentos urbanos, possibilitando que as classes mais nobres se deslocassem da
área central. O início da fragmentação da cidade foi impulsionado também pelo desenvolvimento dos
transportes urbanos e o início da industrialização brasileira. Porém, foi após a Reforma de Pereira Passos
(1902-1906) que a cidade tornou-se mais fragmentada. As constantes demolições de habitação popular e
as elevadas taxas dificultavam o acesso á moradia de grande parte da população. Nesse contexto, a
população inicia-se um processo de deslocamento tanto para o subúrbio quanto para as favelas. A cidade
passa a ser geograficamente fragmentada em função de fatores econômicos e sociais. Ver: ABREU,
Maurício de. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ZAHAR EDITOR, 1987a. ABREU,
Maurício de. ―A periferia de ontem: o processo de construção do espaço suburbano no Rio de Janeiro
(1870-1930)‖. In: Revista Espaço e Debates, São Paulo, USP, n. 21, 1987b.
34
MENCARELLI, Fernando. A. Cena aberta: a absolvição de um bilontra e o teatro de revista de Arthur
Azevedo. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1999, p. 121.
35
Ibidem, p. 122.
36
Localizado na Rua da Vala, onde é hoje a Rua Uruguaiana.
37
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: teatro e cinema. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 15.
26

A opereta surgiu como um espetáculo de sátira. Porém, na década de 1870,


adquiriu outras feições, e a sátira foi perdendo lugar para narrativas mais alegres e
fantasiosas, substituindo a realidade pela teatralidade38. O musical se assemelha à
opereta. Porém, a diferença entre os dois é que o musical enfatiza a dança e renova
constantemente seu repertório musical..
Outro gênero do teatro musicado ligeiro era a burleta, que podia ser
caracterizada como uma comédia de costumes musicada que trazia uma mistura de
elementos dos outros gêneros. Décio de Almeida Prado caracteriza as burletas da
seguinte forma: ―(...) sem preocupações estéticas, retiram a sua substância e a sua forma
a um só tempo da comédia de costumes, da opereta, da revista.‖ 39. No Brasil, durante as
duas primeiras décadas do século XX, as burletas dividiam a preferência do público
com as revistas. Segundo Adriano Assis Ferreira, a burleta ―comumente é apontada
como responsável pela adoção de uma linguagem mais brasileira e de personagens-tipo
da sociedade carioca‖ 40.
A revista, por sua vez, se distinguia dos demais gêneros musicados pelo seu
―compromisso com a crônica do cotidiano‖ 41. Chiaradia observa a proximidade entre as
revistas e a crônica jornalística. Entre as semelhanças apontadas pela autora, podemos
destacar: diálogos claros e objetivos, o uso do linguajar popular, a presença de
metáforas e alegorias, a menção às questões políticas e sociais, entre outras 42. Porém, ao
contrário da crônica, a revista abordava os temas não de forma realista, mas de forma
cômica, ou seja, as críticas e as afirmações não eram claras, mas ficavam subentendidas.
Devido a estas características, este gênero possibilita que nos aproximemos de
diferentes impressões sobre a realidade, o que buscaremos realizar neste trabalho.
Cabe, porém, observar que o teatro ligeiro não era só musicado. Assis Ferreira
diferencia dois tipos de produção do teatro ligeiro no Rio de Janeiro: o musicado e o
declamado (teatro ligeiro cômico). Este último surgiu em 1914, por iniciativa do
português Cristiano de Souza, e se consolidou após a inauguração do Teatro Trianon 43,

38
PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro. São Paulo, Editora da Universidade
de São Paulo, 2003, p. 88.
39
Ibidem, p. 148.
40
FERREIRA, Adriano de Assis. Teatro Ligeiro Cômico no Rio de janeiro: a década de 1930. Tese de
Doutorado em Letras (Literatura Brasileira). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010, p. 42.
41
CHIARADIA, Filomena, op. cit., 2012, p. 90.
42
Ibidem, p.31.
43
O teatro Trianon se localizava no número 181 da Avenida Central, atual Avenida Rio Branco, segundo
o site ―Teatros do Centro Histórico do Rio de Janeiro‖. Disponível em:
<http://www.ctac.gov.br/centrohistorico/teatroXperiodo.asp?cod=144&cdP=5&tipo=Identificacao>.
Acesso em: 20 de fevereiro de 2012
27

em 1915. Segundo o autor, as comédias ligeiras eram apresentadas para um público


mais elitizado do que aquele que frequentava o teatro ligeiro musicado. O teatro ligeiro
cômico, ou declamado, se caracterizava por encenações que privilegiavam o
desempenho dos atores, pelo enredo ligado a situações do dia-a-dia, pela adoção do
método das sessões e pela permanência das peças em cartaz durante sete dias44.
O teatro ligeiro cômico, até fins da década de 1920, era restrito ao espaço do
Trianon. Em fins dessa década, a comédia ligeira começa a ganhar espaço, como
destaca Ferreira. Segundo o autor, em 1929 e 1930 a comédia ligeira ―abocanha um
espaço antes exclusivo do teatro ligeiro musicado [o São José]‖. 45
O teatro ligeiro, portanto, abarcava diferentes formas de produção teatral. De
acordo com Beti Rabetti, o teatro ligeiro se orientava por ―uma intensa conversação
entre autores, entre obras, entre atores, cena e público, no momento mesmo em que uma
46
cena se constituía.‖ Nesse sentido, a dramaturgia do teatro ligeiro possui uma forma
própria, uma vez que ela está em contínua conversação com os demais componentes da
cena, ou seja, ela se apresenta de forma aberta a apropriações e há uma constante
ligação entre o autor e a realidade do palco. Assim, a atenção às manifestações da
plateia possibilitava que os diretores e autores modificassem as peças, tornando-as
agradáveis ao público. Em parte, por esse motivo, muitos dos críticos do teatro de
revista caracterizavam este gênero apenas como uma forma de divertimento do público,
como se pode observar abaixo:
Gênero que, para nós, não dá margem alguma para a exibição de qualidades
teatrais. (...) A conexão das cenas não existe; há apenas na revista
preocupação de explorar cenas e tipos, atirando-os à cena sem a menor
lógica47.

A crítica exposta acima traz algumas questões importantes para análise do teatro
brasileiro no princípio do século XX. Segundo o crítico, o teatro de revista era um
gênero desqualificado, tanto estruturalmente quanto textualmente. A crítica a este
gênero, como um teatro despreocupado com a qualidade literária foi uma constante na
historiografia tradicional do teatro48. A decadência, segundo Tiago Gomes, é vista pelos

44
FERREIRA, Adriano de Assis, op. cit., 2010, p. 53-54.
45
Ibidem, p. 61.
46
RABETTI, Beti. Teatro e comicidade 2: modos de produção do teatro ligeiro carioca. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2007, p.14.
47
Comédia, n. 96, 8 mar. 1919. Apud: GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 2004, p. 126.
48
Designo como historiografia tradicional as obras escritas nos três primeiros quartos do século XX,
principalmente. Estas reproduziam um discurso muito presente na crítica teatral do final do século XIX e
do início do século XX, que tinham por viés a qualidade literária. Essa historiografia reproduzia a ideia de
28

críticos como fruto do gosto popular, já que essas peças seriam baseadas no desejo de
agradar as platéias.
Afastando-se da perspectiva valorativa da crítica e da historiografia tradicional, a
historiografia mais recente, a partir da década de 1980, considera os gêneros dramáticos
como fontes para compreender a história social, ―avaliando o papel social dos
dramaturgos na sua época, as relações entre o teatro e as tensões sociais, a estrutura e a
estética das peças como representativas de certos padrões culturais‖ 49. Portanto, o olhar
dos historiadores se modificou, possibilitando-os valorizar, como fontes, não apenas
obras dramáticas dotadas de requinte intelectual, mas também peças de gêneros
populares que tiveram grande sucesso junto ao público. Na esteira desta historiografia,
buscaremos entender o teatro de revista, considerando sua estrutura dramatúrgica, como
gênero popular que possibilitou a disseminação e o debate de diferentes opiniões,
comportamentos e projetos no Rio de Janeiro do início do século XX.

Cena 2: O teatro de revista carioca e suas fases: a metalinguagem como recurso

A revista surgiu na França, ainda no século XVIII, já com as características de


revisar acontecimentos e retratar figuras conhecidas da sociedade. Contudo, foi somente
na segunda metade daquele século que a revista se tornou um gênero de sucesso
mundial, com as especificidades de cada país.
No Brasil, este gênero se tornou consagrado em 1884, com a apresentação da
revista O Mandarim, de Arthur Azevedo e Moreira Sampaio. A novidade trazida por
esta revista, que possibilitou seu sucesso, foi a caricatura pessoal. Assim, de acordo com
Daniel Marques50, a utilização deste recurso aproximou a revista brasileira das
portuguesas, que tinham a caricatura como seu ponto forte. A utilização da caricatura

decadência do teatro brasileiro decorrente da ascensão dos gêneros ligeiros. Claudia Braga, em sua obra
Em busca da brasilidade: teatro brasileiro na primeira república, critica essa ideia. Para ela, não há
como observar uma crise no teatro brasileiro, visto que o período considerado como decadente foi
extremamente fértil em relação à vida cultural. Além disso, ela ressalta que o período anterior aos gêneros
ligeiros, exaltados pela literatura tradicional ―era formada por esmagadora maioria de textos estrangeiros‖
BRAGA, Claudia. Em busca da brasilidade: teatro brasileiro na primeira república. São Paulo:
Perspectiva; Belo Horizonte: FAPEMIG; Brasília: CNPQ, 2003, p.5.
49
MARZANO, Andrea. op.cit., 2008, p. 19.
50
MARQUES, Daniel. Teatro de intervenção: um resgate necessário (O teatro de revista e a política).
Trans/Form/Ação, São Paulo, 24: 41-46, 2001. Disponível em:
< http://www.scielo.br/pdf/trans/v24n1/v24n1a02.pdf>. Acesso em: 28 de janeiro de 2012
29

explícita possibilitava um maior divertimento do público, uma vez que ele ria e
comentava sobre personagens e episódios que eram conhecidos por toda a população.
Na revista O Mandarim, o personagem Barão de Caiapó é uma caricatura do barão João
José Fagundes de Rezende e Silva. Sua caricatura fica explícita ao ser apresentada o
caráter do personagem. O barão João José Fagundes de Rezende e Silva era uma figura
popular e esnobe.
A primeira fase da revista brasileira se desenvolveu no período entre 1884, ano
da consagração da peça O Mandarim, e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Esse
período foi caracterizado pela produção das Revistas de Ano, que levavam ao palco uma
revisão crítica do ano anterior. Para tal, as revistas eram guiadas por um fio condutor, os
compadres (a commère e o compère)51, que atravessavam todos os quadros, integrando-
os numa mesma história. O enredo era desencadeado no prólogo, que frequentemente,
ocorria numa região fora da cidade, muitas vezes num local místico, de onde os
compadres52 vinham.
A segunda fase teve início com a Primeira Guerra Mundial. Este evento
provocou uma queda nas exportações brasileiras, levando a uma crise econômica que
também afetou o mercado cultural. Alguns teatros foram fechados neste período, como
o São Pedro, o Recreio, o Lírico, entre outros. Segundo Veneziano, a guerra provocou
uma diminuição na presença de companhias estrangeiras no Brasil, o que levou a uma
valorização dos artistas locais, nacionalizando cada vez mais a revista 53. Na década de
1920, a revista sofreu diversas mudanças, que possuem ligações com as mudanças
socioculturais do período. Uma transformação importante foi a encenação de peças cada
vez mais recentes, que abordavam temas cada vez mais atuais. Por isso, as revistas de
ano tornaram-se obsoletas, sendo substituídas por diferentes revistas ao longo do ano.
A partir de meados da década de 20, os compadres deixam de exercer sua função,

51
Os personagens condutores da peça eram designados de compère e commère, pois eram eles que
―apadrinhavam‖ a peça, ou seja, o desenvolvimento da revista só era possível porque havia um motivo
para estas personagens estarem na capital do Brasil.
52
Não nos alongaremos, neste trabalho, nas características das revistas desta primeira fase, uma vez que o
nosso objetivo se restringe à análise de peças da década de 1920. Porém, cabe observar que a transição
entre as duas fases não ocorreu de forma absoluta, ou seja, algumas convenções da revista de ano foram
conservadas nas peças analisadas. Verificaremos isso mais adiante. Para um aprofundamento sobre as
revistas de ano, ver, entre outros, SUSSEKIND, Flora. As revistas de ano e a invenção do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Fundação Rui Barbosa, 1986; VENEZIANO, Neyde. O teatro de revista
no Brasil: dramaturgia e convenções. Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade Estadual de
Campinas, 1991.
53
VENEZIANO, Neyde, op.cit.,1991, p.40.
30

desaparecendo ou passando a exercer o papel de ―chefes de quadros‖54. As revistas, a


partir desse período, tornam-se fragmentadas, ou seja, o texto deixa de possuir um
começo, meio e fim, passando a ser um somatório de quadros sem muita ligação entre
eles.
Algumas dessas alterações podem ser verificadas em peças analisadas neste
trabalho. Podemos citar a revista A Mulata, de Marques Porto, escrita em 1925. Nesta
peça, os quadros não retratam uma única história, mas temas variados. O segundo
quadro, chamado ―Do céu por descuido‖, apresenta o compère e a commère, que
abordam a origem dos bebês, incluindo a ideia de que eles chegam às famílias trazidos
por cegonhas. Já o terceiro quadro tem como cenário uma barbearia, onde os
personagens conversam sobre diferentes assuntos, como cortes de cabelo, barbas,
higiene, mulatas e etc. Observamos, ainda, a presença dos compadres como ―chefes de
quadros‖, como se pode observar no 8º quadro, intitulado ―Rua da Amargura‖. Neste
quadro aparece um personagem, chamado Popular, que grita ―viva a liberdade das
urnas‖ e se entusiasma com a eleição do personagem ―Nosso homem‖. Este, ao vencer
nas urnas, declama palavras de agradecimento. Posteriormente, entram a commère e o
compére, além de outros personagens, comentando o resultado das eleições. Portanto, a
peça citada exemplifica algumas mudanças ocorridas na década de 1920, que tornaram
o teatro de revista cada vez mais atualizado e mais fragmentado, com referência a temas
diversificados que estavam sendo debatidos em diferentes espaços.
As alterações apontadas na estrutura do teatro de revista são abordadas pelas
próprias revistas, que utilizam o recurso da metalinguagem para descrever as diferentes
mudanças ocorridas a partir de 1920. Segundo aponta Chiaradia, o metateatro é uma
característica do teatro popular que visa à integração entre palco e plateia através da
―explicação‖ de certas construções do jogo cênico55. A autora ainda destaca que esse
recurso foi bastante utilizado nas Revistas de Ano, como forma de impor o próprio
gênero. Nas revistas da década de 20 observamos, também, o uso desse recurso como
forma de esclarecer as mudanças sofridas nesse período. Por exemplo, na revista A
mulata, os compadres dialogam sobre a produção das revistas na década de 20,
retratando as diferenças entre estas e as revistas de ano.
COMMÈRE – Admira-me como os nossos autores conseguem fazer tantas
revistas por ano...

54
Os ―chefes de quadros‖ são personagens que comentam a ação dos chamados ―quadros de rua‖, ou seja,
quadros que se desenvolvem em um espaço ―de passagem‖. Ver CHIARADIA, Filomena. op. cit., p.93.
55
CHIARADIA, Filomena. op. cit., 2012, p. 117.
31

COMPÈRE- Por ano? Fazem-nos por dia, por hora, por minuto.
COMMÈRE- Em que fontes vão beber tantas idéias?
COMPÈRE – Você não leu a entrevista do Pirandello com o burro?
COMMÈRE – Eu não entendo a linguagem dos burros.
COMPÈRE- Mas há muito ilustre que entende.
COMMÈRE – E daí?
COMPÈRE – Consultam as últimas novidades da Folies Bergère, Nuevo
Mundo, London Comedy, Almanaque de anedotas e mais a graça de toda
gente56.

O diálogo aponta para uma produção cada vez mais veloz de revistas. Na última
fala do compère observa-se que muitas das revistas são influenciadas por companhias e
espetáculos europeus. Muitas peças apresentam paródias de outras obras. Porém, apesar
de grande influência de outros países, é importante pensar o quanto as revistas cariocas
retratam aspectos de sua própria sociedade.
Na revista Verde e Amarelo, escrita em 1925, José do Patrocínio Filho e Ary
Pavão discutem, através dos personagens, o interesse pela elaboração de uma revista
―genuinamente brasileira‖, bem como a definição de suas características. Este é o tema
condutor da revista, que se evidencia a partir do terceiro quadro quando Pindoba 57, um
pai de família brasileiro, após fantasiar seus filhos com objetivo de mendigar, explica
para o guarda que só assim consegue dinheiro, uma vez que é escritor de revista.
Pindoba começa a falar sobre a elaboração da sua peça nas primeiras cenas deste
quadro. O nome da revista de Pindoba é o mesmo da revista de Patrocínio e Pavão,
como se pode observar abaixo:
GUARDA – Só falta saber o título da peça
PINDOBA – Verde e Amarelo, meu irmão. Eu sou brasileiro!...O verde, que
é a esperança.
GUARDA – E o amarelo?
PINDOBA – O amarelo, se fosse verde, também era esperança....( a
Quininha) Quininha, meu coração,: anuncia a peça do teu homem, minha
velha.
D. QUININHA – Rir. Rir. Rir. Duas horas de agradável passatempo.
D. QUININHA – (ao Guarda) – Seu guarda, me empresta seu sarrafo?
Guarda – Que sarrafo?
D. QUININHA – O cacetete, para dar as três pancadinhas do estilo,
anunciando a função.
GUARDA – Homem... Eu já emprestei ele para um casamento de um colega
e trouxeram ele todo amarrotado... Marfim tá aí... Mas bate devagarzinho... 58

Em seu anúncio da peça, D. Quininha expressa a ideia, presente entre críticos e


historiadores do teatro, de que a razão de ser das revistas era a diversão do público.

56
PORTO, Marques. A mulata (1925). 2ª DAP, cx. 31, n. 633.
57
Pindoba é o nome popular de uma espécie de Palmeira, trata-se de uma planta nativa do Nordeste
Brasileiro. Portanto, podemos observar a busca por tratar sobre peças e características brasileiras.
58
PATROCÍNIO FILHO, José; PAVÃO, Ary. Verde e Amarelo (1925). 2ª DAP, cx. 31, n. 635.
32

Além disso, o trecho acima aponta que Pindoba deseja encenar uma revista
genuinamente nacional, abordando temas então considerados nacionais, como por
exemplo os índios e o descobrimento do Brasil. O décimo quadro apresenta como
cenário uma praia agreste frequentada por índios. Um dos índios observa a proximidade
de uma caravela e comunica aos outros: ―(salta do rochedo e percorre aos brados os
bastidores) Alerta pessoal! Alerta! (com um grande gesto trágico) O Brasil está
descoberto!‖. Após a anunciação do fato, o seguinte coro é cantado em ritmo de samba:
1 INDIO
Nosso ranchinho assim.
Tavabão...
CORO
Oi!...
1 INDIO
Gente de fora entrou,
Trapaiou...
CORO
Oi!...
Nosso ranchinho assim,
Tavabão...
1 INDIO
Oi!...
CORO
Gente de fora entrou,
Trapaiou...
1 INDIO
Oi!...
Se acabou o nosso samba,
Tudo agora vai mudar!...
Vai ser feio o turum bamba!
Vai ser um pão pra virar!...
CORO
Nosso ranchinho assim , etc. etc.
1 INDIO (falando imperativamente)
Que alguém um sino repique
E avise a população
Previnam já o cacique
Desta atroz situação59.

O coro entoado nos permite observar a projeção, nos índios, de uma certa
imagem do ―genuinamente nacional‖, inclusive porque um deles afirma que ―gente de
fora‖, os estrangeiros, atrapalhariam sua vida e suas manifestações culturais. O samba e
o rancho são mencionados como manifestações anteriores à chegada dos europeus60.
Através da metalinguagem, os autores apontam aspectos essenciais na elaboração de
revistas de sucesso nos anos 1920: a participação nos debates sobre a nacionalidade e a
colocação do samba em lugar de destaque da definição da identidade nacional. De fato,
59
Ibidem.
60
Naquele contexto de meados da década de 1920, samba e rancho eram manifestações culturais ligadas
ao carnaval carioca. Entretanto, a expressão ―rancho‖ podia ter, na passagem citada, outros significados:
grupo de pessoas, comida, casa ou cabana.
33

o teatro de revista teria papel decisivo na transformação do samba em elemento central


da identidade do Brasil e dos brasileiros.
Assim, além de destacar o debate sobre a identidade nacional, a peça Verde e
Amarelo aponta, como característica importante das revistas, a inserção de elementos
considerados pertencentes ao universo popular (como o samba, o rancho, etc). O
popular e o nacional, nesse período, guardavam estreitas relações. Abordaremos,
adiante, essa questão. Neste momento, cabe observar que manifestações culturais
populares eram retratadas em múltiplas revistas. Na revista de Patrocínio Filho e Ari
Pavão, esses elementos são apresentados, também, no seguinte fragmento:
A MAXIXEIRA (entrando) – Se você quer novidades, cá estamos nós.
(...)
O MAXIXEIRO – (a Pindoba) – Eu só queria vê, se você não botava a gente
numa revista nacioná.
GUARDA – Então vocês são figuras obrigatórias?
A MAXIXEIRA – Eu não sei não meu santo; mas quando a gente se espaia,
não há ninguém que não dance.
O MAXIXEIRO – Nós somos os legítimos representantes do remelexo
nacional!

Embora os maxixeiros sejam apresentados por uma personagem como


―novidades‖, o maxixe esteve presente no teatro de revista, e em outros gêneros do
teatro ligeiro, desde o seu surgimento, na década de 1880. Segundo Tinhorão, a primeira
referência encontrada sobre o maxixe estaria na cena cômica Aí cara dura, de Francisco
Corrêa Vasques, encenada em 188361. A presença, em cena, do maxixe, não era uma
novidade nas revistas da década de 20, ao contrário do que sugere a personagem
maxixeira. De todo modo discute-se, na passagem citada, se os maxixeiros eram ou não
figuras obrigatórias numa ―revista nacioná‖, confirmando que, através da
metalinguagem, os autores apontavam as manifestações musicais tidas como populares
como ingredientes fundamentais não apenas das revistas, mas também da identidade
nacional que elas ajudavam a construir.
Participando do processo de definição da identidade nacional, as revistas seriam
apontadas, por alguns autores, inclusive modernistas, como as manifestações mais
acabadas da ―alma‖ brasileira. Nas palavras de Alcântara Machado:
Brasileirismo só existe na revista e na burleta. Essas refletem qualquer coisa
nossa. Nelas é que a gente vai encontrar, deformado e acanalhado embora,
um pouco do que somos. O espírito do nosso povo tem nelas o seu
espelhinho de turco, ordinário e barato 62.

61
Apud MARZANO, Andrea, op.cit., p.30-31.
62
MACHADO, Antônio de Alcântara Indesejáveis. Apud VENEZIANO, Neyde. op. cit., 2006.
34

A valorização do popular como forma de exaltar a brasilidade estava presente


em outras representações artísticas. Claudia Braga, em seu estudo Em busca da
brasilidade: o teatro brasileiro na primeira república, ressalta que o nacionalismo
exacerbava-se em todos os níveis das artes. Ela observa que este nacionalismo se
expressava ora de forma regionalista, ora abordando costumes urbanos e suburbanos.
Segundo esta autora, a dramaturgia acompanha a sociedade que a cerca, assim:
A questão do nacionalismo que começava a se fortalecer, as mudanças
comportamentais, as notícias dos fatos mundiais que aqui chegavam, os
equívocos sociais que tantas e tão boas comédias renderam para seus
contemporâneos (...) lá estão, nas obras do período, formando o painel
representativo de todos os aspectos de nossa sociedade63.

Outra característica apontada pelos autores, através do recurso do metateatro, foi


a influência da passagem da Companhia Espanhola Velasco e da Companhia Francesa
Bataclan pelo Rio de Janeiro na ―modernização‖ da revista. Segundo Pindoba, a sua
revista ―tem que ser na forma de costumes: um pouco de Velasco, três doses de
Bataclan, e quatro fragmentos de asneira, pulverizados de trocadilhos e pronto‖.
Tiago de Melo Gomes destaca que a passagem dessas companhias europeias
pelo Brasil provocou algumas mudanças, como a introdução do nu artístico 64, que
induziu a um padrão de beleza feminina, ligado à economia das formas, e a uma relativa
modificação dos gostos do público, alterando o cenário do teatro musicado no Brasil.
Além disso, seus textos eram mais sofisticados e os espetáculos eram luxuosos.
A influência exercida sobre o teatro de revista carioca, a partir de 1922, quando
estas duas companhias fizeram turnê pelo Rio de Janeiro, foi observada não apenas na
estrutura das revistas, mas também na formação de novas companhias teatrais, como por
exemplo a Companhia Tro-ló-ló. Esta estreou em 1925, com a peça Fora do Sério,
marcando uma mudança no teatro musicado. Tinha por característica apresentar peças
que evidenciassem a parte show do espetáculo, com luxo tanto nos figurinos quanto no
cenário. Sua fórmula seguia a das companhias europeias que chegaram ao Brasil na
década de 20.

***

63
BRAGA, Claudia. op. cit., p.xxi.
64
Era chamada de nu artístico a exibição de mulheres com pernas de fora, sem as antigas meias grossas.
35

Para melhor entendermos as mudanças provocadas pela passagem das


companhias Bataclan e Velasco, é importante analisarmos como as companhias, até
então, produziam seus espetáculos. Entre 1911 e meados da década de 20, o cenário do
teatro musicado popular carioca era praticamente conduzido pela Companhia de
Revistas e Burletas do Teatro São José. Esta companhia, segundo Chiaradia, produziu
uma quantidade extensa de peças, sendo um importante espaço de fertilização do teatro
ligeiro65. De acordo com Tiago de Melo Gomes, esta companhia era ―praticamente
imbatível em termos de quantidade de ingressos vendidos‖ 66.
A Companhia do São José, que teve uma diversidade de nomes (Companhia de
Burletas e Revistas do São José, Companhia Nacional do Teatro São José, Companhia
Nacional de Revistas, Burletas e Mágicas e Companhia Nacional de Burletas e Revistas
do São José)67, foi criada a pedido do ator Franklin de Almeida a Paschoal Segreto, um
empresário italiano. Segundo as investigações de Chiaradia, um grupo de atores que
atuava em Niterói precisava de um local para montar uma companhia 68. Segreto
resolveu arriscar, financiando-a.
Antes de analisarmos a importância que a companhia do São José teve no
cenário teatral, cabe destacar o papel de Segreto no teatro brasileiro nas primeiras
décadas da República. De origem italiana, Paschoal Segreto chegou ao Brasil, junto
com seu irmão Gaetano, em 1883, quando tinha 15 anos. Ao que tudo indica, segundo
William de Sousa Nunes Martins, os irmãos chegaram ao Brasil sem dinheiro, uma vez
que viajaram na terceira classe do navio 69 e se envolveram com jogos ilegais, o que
levou Paschoal a ter ―pelo menos 13 entradas registradas na polícia carioca até 1888‖ 70.
A tese defendida por Martins é a de que o financiamento dos investimentos dos
Segreto no teatro e em casas de diversões veio dos jogos ilegais. O autor baseia sua
exposição sobre a trajetória de Segreto na análise de documentos cartoriais referentes ao
arrendamento de terrenos. Martins destaca que, em 1895, 12 anos após a sua chegada,
há registro de que Paschoal conseguiu arrendar um prédio que custou 100 mil reis por
mês até 190371. A partir daí, diversas transações foram efetuadas. Já na primeira década

65
CHIARADIA, Filomena, op. cit. , 2012, p. 21-22.
66
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 2004, p. 91.
67
MARTINS, William de Sousa Nunes Martins. Paschoal Segreto: ―Ministro das diversões‖ no Rio de
Janeiro (1883-1920). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em História Social, UFRJ,
2004.,p. 139
68
CHIARADIA, Filomena, op. cit., 2012, p. 58.
69
. MARTINS, William de Sousa Nunes., op. cit.,2004
70
GOMES, op. cit.,2004, p.87.
71
MARTINS, William de Sousa Nunes, op. cit.,p.54.
36

do século XX, Paschoal Segreto possuía diversas casas de diversão, como Salão Paris,
Maison Moderne, Pavilhão Internacional, Concerto-Avenida, Parque Fluminense.
Cabe destacar que seus empreendimentos eram bastante diversificados, indo
desde cinemas, sendo atribuída a ele a primeira casa de projeções cinematográficas,
localizada na Rua do Ouvidor, passando por cervejarias, teatros e vários equipamentos
de diversão. William Martins destaca que, no ramo dos cafés e cervejarias, a Maison
Moderne teve maior destaque. Este espaço era destinado a uma gama de diversões, tais
como roda-gigante, tiro-ao-alvo, montanha russa, teatro, cervejaria e etc.72.
Gomes destaca que Segreto chegou a possuir 18 casas de diversões entre
Campos, Niterói, Petrópolis, São Paulo e Rio de Janeiro73. De acordo com reportagem
do Correio da Manhã, de 26 de fevereiro de 1920, quando faleceu, em 22 de fevereiro
do mesmo ano, Pascoal Segreto deixou como legado os teatros São José, Carlos Gomes,
Teatro Maison Moderne e o arrendamento do Teatro São Pedro, todos situados na Praça
Tiradentes74. Após a sua morte, a empresa Segreto ainda persistiu. Seu primo, João
Segreto, assumiu a direção da empresa e novos investimentos foram feitos.
Além de possuir teatros, a empresa Paschoal Segreto fundou algumas
companhias. A principal delas foi a do São José, que era uma das principais companhias
de teatro do Rio de Janeiro, como já destacado anteriormente. Outra foi a Companhia de
Operetas e Melodramas, que funcionava no São Pedro e teve uma duração menor, de
1919 até 1922.
A Companhia do Teatro São José se destaca no teatro musicado por diversas
razões, entre as quais podemos mencionar a introdução, com sucesso, do teatro por
sessões. ―As apresentações teatrais eram feitas três vezes em uma mesma noite, nos
horários das 19h; 20h45 e 22h30. Aos domingos tinha-se também uma sessão às 15h e,
por vezes, às quintas, vesperais às 16h.‖ 75. Além disso, podemos observar a estabilidade
da companhia, com pequenas variações no quadro dos atores; a rotatividade das peças; a
ligação entre os autores e a Companhia e etc. Assim, como afirma William Martins, foi
a estabilidade e a forma de organização empresarial que permitiu que a Companhia
oferecesse ao público ―uma produção de revista sem interrupções nos seus quinze anos
de existência, fazendo com que o gênero se afirmasse de vez no cenário carioca.‖76

72
Ibidem, p. 28.
73
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 88.
74
MARTINS, William de Sousa Nunes, op. cit., 2004, p. 30.
75
MARTINS, William de Sousa Nunes, op. cit., 2004, p. 140.
76
Idem, p. 141.
37

No que tange aos artistas que essa companhia consagrou, podemos citar os
atores Cinira Polônio, Pepa Ruiz, Henriqueta Brieba, Francisco Alves e Vicente
Celestino. Entre os ensaiadores destacam-se Luiz Peixoto (que também foi autor de
diversas revistas), Eduardo Vieira, Isidro Nunes. Dos autores das peças apresentadas
pela Companhia, citamos a dupla Carlos Bittencourt e Cardoso Menezes, José do
Patrocínio Filho, Luiz Peixoto, entre outros.
A Companhia do São José lançou diversos nomes do cenário artístico brasileiro,
além de consagrar o gênero ligeiro musicado e, principalmente, a revista. Porém, nos
anos 20, a companhia passou por modificações que iam desde a reforma no teatro até a
proibição de apresentar peças de Cardoso de Menezes e Carlos Bittencourt, autores
consagrados da Praça Tiradentes e identificados, pela crítica, como defensores do gosto
do público. Essas alterações, que tiveram seu auge em 1926, tinham por finalidade
concorrer com as Companhias Trololó e Rataplan. ―A nova fase da Companhia do São
José acabaria, porém, não trazendo o resultado esperado pela Empresa Paschoal
Segreto, pois suas atividades foram encerradas em setembro, poucos meses após a
reestruturação‖ 77.
Portanto, a Companhia de Revistas e Burletas do Teatro São José, ao tentar se
adaptar às mudanças ocorridas no cenário do teatro musicado após a passagem das
companhias europeias Velasco e Bataclan, acabou sentenciando seu fim. Dentre as
diferenças que podemos apontar entre esta companhia e as formadas a partir de meados
da década de 1920, principalmente a Tro-ló-ló78, situa-se a tentativa de atrair um
público mais refinado. A Tro-ló-ló não apenas apresentava as novidades das peças
europeias, como modificava o espaço social do teatro ligeiro. Ao invés de escolher a
Praça Tiradentes, espaço consagrado pelas revistas da Companhia do Teatro São José e
conhecido por abarcar um público popular, a peça Fora do Sério, da Companhia Tro-ló-
ló, foi apresentada no Teatro Glória, na Cinelândia, locus frequentado por pessoas de
classes mais altas.
A distinção social se torna clara ao analisar textos jornalísticos:
Fora do Sério é uma revista como raramente se vê nos nossos teatrinhos de
gênero ligeiro. É fina, limpa e espirituosa, própria para o público da Avenida.
(...) A graça de Fora do Sério, com um ou outro double sens, apenas venial, é
bem diferente da que a maior parte dos nossos revistógrafos emprega para
forçar a gargalhada. A pornografia foi totalmente banida 79.

77
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p181.
78
Estas duas companhias são abordadas neste capítulo devido à escolha das fontes. Ou seja, a maioria das
revistas escolhidas subiu ao palco por meio dessas companhias.
79
O País, 31 out, 1925. Apud: GOMES, Tiago de Melo, op.cit., 2004, p. 170
38

A passagem transcrita acima reflete uma clara distinção social entre as peças
realizadas nos ―teatrinhos de gênero ligeiro‖ e na Avenida. A peça escolhida por Jardel
Jércolis, fundador da Companhia e sobrinho da compositora Chiquinha Gonzaga, foi
bem aceita pela crítica, uma vez que os autores eram conhecidos como homens de
letras, a cena era vista com mais luxo, e não com o desleixo que supostamente
caracterizava o teatro musicado da Praça Tiradentes. Os autores da peça, Oscar Lopes e
Humberto de Campos, já eram conhecidos pelo público da Avenida. Com base nessas
informações, Gomes afirma que a proposta dessa companhia era atrair o público da
Avenida para o teatro musicado, se diferenciando do teatro da Tiradentes. Além da
localidade, o preço dos ingressos se diferenciava do teatro musicado promovido pela
Companhia do São José. Gomes destaca que, enquanto o preço da cadeira comum do
Glória custava 5 mil-réis, no São José este era o preço da cadeira mais cara.
Apesar da busca de delimitação de uma certa identidade social, uma revista com
características típicas das que ocupavam os teatros da Praça Tiradentes foi encenada
pela Companhia Tro-ló-ló, ainda no ano de 1925. Trata-se da peça Fla-Flu, de Carlos
Bittencourt e Cardoso de Menezes, autores consagrados do teatro de revista tido como
popular. Porém, esta revista não teve a mesma recepção da apresentada anteriormente,
como se pode observar:
A revista dos srs. Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, ontem levados à
cena no Glória, não fica de certo aquém das outras obras dos aplaudidos
teatrinhos. A parceria, tantas vezes vitoriosa no teatro popular, repetiu seus
processos habituais, sem qualquer preocupação de novidade. 80

No texto do Jornal do Comércio, a peça Fla-Flu é sutilmente desqualificada pelo


fato de não se diferenciar das peças do Largo do Rocio, tidas como populares. Essa
diferenciação na crítica jornalística, envolvendo peças encenadas pela mesma
companhia teatral, pode ser explicada, em parte, pela qualificação dos autores (literatos
reconhecidos ou simples ―revisteiros‖) considerando-se, ainda, o público-alvo das
peças. A crítica citada expõe claramente a ideia de que revistas de Bittencourt e
Menezes eram mais apropriadas para os ―aplaudidos teatrinhos‖ da praça Tiradentes, e
que das peças encenadas na Avenida se esperava, no mínimo, ―preocupação de
novidade‖.
A distinção entre a Companhia do São José e a Companhia Tro-ló-ló se refere,
portanto, à busca da segunda por um público mais refinado. Assim, a mudança para um

80
Jornal do Comércio, 5 dez. 1925. Apud: GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p.173.
39

espaço físico de maior circulação das classes médias e altas, a inserção de autores
―intelectualizados‖ na produção do teatro musicado, a introdução do nu artístico, a
realização de uma produção mais luxuosa, entre outros fatores, tinham por objetivo
buscar espaços mais reservados a esses segmentos sociais.

Cena 3: Os autores e o público: uma análise dos espaços de sociabilidade

Uma análise do teatro sob o ponto de vista da história social exige reflexão sobre
a composição do público e o ―lugar social‖ dos autores. Na revista O Malho, há uma
crítica relativa ao público que frequentava o São José:
Aquele pessoal que nos dias de aperto da Avenida se junta para fazer ondas e
atropelar o burguês; que se pendura nos trens da Central e vai agarrado aos
carros pelo lado de fora, de baderna, da Praça da República até Cascadura;
que faz a torcida, no futebol, de pé, o sol a lhe queimar o coco, estava firme,
sexta-feira da semana passada, no São José. É o público das primeiras do
popular teatro da praça dos caboclos, e que comparece não para apreciar a
revista levada à cena, mas para gozar a atrapalhação dos artistas, das coristas,
dos maquinistas, dos eletricistas, do contrarregra, da orquestra e do maestro,
porque, já se sabe, em dia de première, no São José, ninguém ali se entende 81.

A crítica expõe uma caracterização do público do São José na estreia da revista


Verde e Amarelo (1925), de José do Patrocínio Filho e Ary Pavão. Segundo a imagem
apresentada, o teatro São José era frequentado por pessoas das camadas populares, o
que fica evidente na expressão ―popular teatro da praça dos caboclos‖. De acordo com a
crítica da revista O Malho, os populares eram aqueles que andavam em trens lotados,
que ficavam sob o sol nos jogos de futebol, e aqueles não sabiam apreciar a cena.
Porém, se observarmos os dados relativos ao preço dos ingressos, averiguaremos
que esta caracterização não pode ser interpretada como unívoca. Por exemplo, para o
dia 28 de abril de 1925, a primeira sessão, que rendeu 753$500 de receita, teve a maior
parte de seus pagantes, 144 de um total de 201 espectadores, ocupando cadeiras
―distintas‖, que custavam 4$000. As ―entradas‖ eram os lugares mais baratos (1$500), e
tiveram, nesse dia, 40 pagantes. Foram vendidos, ainda, 4 ingressos para camarotes, que
eram os lugares mais caros (20$000)82.

81
O malho, Rio de Janeiro, ano 24, n. 1.177, 4 abr. 1925.
82
Arquivo da Empresa Paschoal Segreto (AEPS), caixa 05. Este arquivo localiza-se na Biblioteca
Nacional, sessão de música.
40

Se compararmos o preço dos ingressos pagos nesse dia com o preço das entradas
de futebol, verificaremos que a diferença não era tão alta. Leonardo Pereira ressalta que
os ingressos vendidos para o campeonato sul americano custavam ―5$000 para as
arquibancadas e 3$000 para as gerais – preço que equivalia a um quilo de bacalhau,
duas entradas para o cinematógrafo ou uma assinatura mensal de O Paiz‖ 83. Nesse
sentido, podemos supor que a revista Verde e Amarelo, apresentada no teatro São José,
não foi frequentada apenas por pessoas dos segmentos sociais menos favorecidos, mas
também por camadas médias, que frequentavam os teatros da Praça Tiradentes, mas
também as partidas de futebol.
Em setembro do mesmo ano, a revista Verde e Amarelo foi reprisada. Para 20 de
setembro, a empresa Paschoal Segreto registrou os seguintes rendimentos: matinée
(743$000), 1ª sessão (3:100$000) e 2ª sessão (1:248$000). No que diz respeito aos
rendimentos da primeira sessão, verificamos que:
Vendidos Preço/ingresso
Friza 1 25$000
Camarote 17 25$000
Distinto 418 5$000
Poltronas 33 4$000
Galeria Nobre 17 4$000
Entradas 240 1$500
Fonte: AEPS, caixa 05.
Assim, podemos inferir que o público que assistiu à peça, nesse dia, era em
grande parte formado por pessoas de camadas médias e não apenas de camadas
populares, como poderíamos supor a partir da leitura da crítica citada. Assim, se
levarmos em conta os dados apresentados acima, podemos concluir que o crítico da
revista O Malho apresentava um olhar ―míope‖ sobre a população que frequentava o
Teatro São José.
Gomes apresenta outros dados que corroboram nossa análise relativa ao público
que frequentava as revistas no teatro São José. O autor realiza uma comparação entre o
público do São José e o público de outros teatros no dia 12 de janeiro de 1921, estreia
da revista Réco-Réco, de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, no São José. Neste
mesmo dia, o Carlos Gomes levava ao palco um romance policial, e no São Pedro
estava em cartaz a comédia A capital Federal, de Artur Azevedo. Todos os três estavam
localizados na Praça Tiradentes. Ao comparar os dados, Gomes observa que o preço de

83
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de
Janeiro (1902-1938). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 136.
41

um ingresso no ―lugar distinto‖ no Carlos Gomes e no São José era igual (3$000).
Enquanto no Carlos Gomes foram vendidos 78 ingressos deste preço, no São José foram
vendidos 24684. O que podemos concluir é que não eram apenas as classes mais baixas
que gostavam de assistir as revistas, mas também um público de camadas médias e
altas. Além desses dados, Gomes ressalta que o São José vendeu quatro vezes mais
ingressos do que os outros dois teatros juntos, ou seja, enquanto o Carlos Gomes vendeu
112 ingressos e o São Pedro 299, o São José vendeu um total de 2.658 ingressos,
somando as três sessões85.
Se analisarmos os dois dados trazidos por Gomes, observaremos que, apesar do
São José ter vendido maior número de ingressos nas ―cadeiras distintas‖, estes
correspondiam a menos de 10% do total de ingressos vendidos. Isso nos permite afirmar
que a estreia de uma revista no São José abarcava diferentes públicos, desde um público
de menor renda, que pagava 500 réis, até um público de maior renda. Portanto, podemos
concluir, sob outro ângulo, novamente, que o crítico de O Malho não considerava a
existência de um público variado, mas resumia este público apenas às classes populares.
Vale lembrar que a existência de um público variado não se limitava à Companhia de
Teatro São José, mas caracterizava os espetáculos de revista como um todo,
especialmente os apresentados nos teatros da Praça Tiradentes.
No que diz respeito aos autores de revistas, Carlos Bittencourt e Cardoso de
Menezes estão entre os mais conhecidos86. Cardoso de Menezes, abreviação do nome
Frederico Cardoso de Menezes e Sousa, nasceu em 31 de março de 1878, no Rio de
Janeiro. Ele era filho de musicistas, e seu pai, além de músico, era também teatrólogo e
escritor. Seu avô era o barão de Paranapiacaba (1827-1915), ―homem de grande
erudição, autor de várias obras e traduções e (...) gozava de prestígio e influência junto a
D. Pedro II‖87. Portanto, Cardoso de Menezes foi criado em um mundo de intelectuais e
artistas.
Cardoso de Menezes optou por seguir a carreira de teatrólogo. Iniciou sua
carreira escrevendo as comédias: ―Dr. Arthur‖ e ―O víspora em família‖. Em seguida,
no ano de 1904, escreveu a revista ―São Cristóvão por um óculo‖. Posteriormente,

84
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 94.
85
Ibidem.
86
Na Companhia do Teatro São José, estes autores foram os que tiveram maior número de montagens.
CHIARADIA, Filomena, op. cit.,2012, p. 100.
87
Ibidem, p. 104.
42

escreveu as operetas ―O reinado do sol‖ e ―Comes e Bebes‖88. A sua primeira peça


estreada em teatro público, no Teatro S. Pedro, segundo o jornal Dom Casmurro, foi
―Casei com a titia‖, com música de Chiquinha Gonzaga 89, em 1910. Ele escreveu
diversas peças com parceiros como Octavio Tavares, Victor Pujol, Alfredo Breda e etc.
Mas foi com Carlos Bittencourt que sua parceria foi mais bem sucedida. Esta foi
iniciada em ―1915 com a apresentação da revista O bota-fora‖90.
Bittencourt nasceu em 12 de dezembro de 1888 no Rio de Janeiro. Filho de pai
médico, acabou sendo obrigado a cursar medicina, mas não terminou a faculdade.
Trabalhou como funcionário público e, em torno de 1909, ingressou na imprensa,
escrevendo na coluna policial de O Paiz, ficando conhecido pelo pseudônimo O
Assombro. Segundo Cardoso de Menezes, Bittencourt era apreciado pelo próprio chefe
de polícia, que admirava a forma como ele escrevia, em prosa rimada 91.
Sua primeira revista de grande sucesso é datada de 1912, escrita junto com Luís
Peixoto, chamada Forrobodó. Escreveu outras revistas com Luís Peixoto, mas foi com
Menezes sua maior parceria. Cardoso de Menezes apontou como foi a aproximação
entre eles:
O Carlos, modesta parte, tinha por mim, além de muita amizade, grande
consideração e mesmo respeito. Naturalmente, por ser eu muito mais velho
que ele, e já credenciado como autor, quando ele conseguiu encenar, com
enorme sucesso a burleta ―Forrobodó‖ (...). Talvez, por esse motivo, certa
ocasião em que ensaiavam o quadro (...) o nosso Bittencourt, meio
ressabiado, aproxima-se de mim e diz-me ‗com muita açúcar na voz‘:
‗Prefessô, esse quadro é o nó da peça. O pessoal do galinheiro engasga com
os algarismos e bota os nove fora da boca, e a vaia é certa, meu irmão‘. Achei
imensa graça no rodeio do meu parceiro (...). [Ele] procurou alguém que me
pudesse convencer de que o tal quadro da matemática era um desastre. (...)
Chega, porém, o dia da ‗première‘, e o tal, o fantasma, o quadro do ―quadro
negro‖ faz um desses sucessos retumbantes, memoráveis, chegando a ser o
maior atrativo do espetáculo 92.

Bittencourt e Menezes redigiram juntos cerca de 29 peças, dentre revistas,


burletas e operetas93. Esta parceria foi uma das mais significativas do teatro musicado
carioca, entre as décadas de 1920 e 193094.
Outra dupla que se destacou na produção de teatro musicado foi Luís Peixoto e
Marques Porto. Eles escreveram cerca de 24 revistas e traduziram duas peças de teatro,

88
GILL, Rubens. ―O Século Boêmio‖. In: Dom Casmurro, Rio de Janeiro, ano.7, n. 338, 29 jan. 1944.
89
Ibidem
90
Ibidem.
91
MENEZES, Cardoso de. ―Sessão de homenagem a Carlos Bittencourt‖. In: Boletim da SBAT. ano 22,
n. 207, set. 1941, p. 12.
92
Ibidem, p.13
93
Ibidem, p. 16.
94
CHIARADIA, Filomena, op. cit.,2012, p.107.
43

em menos de 10 anos95. Luís Carlos Peixoto de Castro nasceu em Niterói, em 1889. Foi
caricaturista de diversas revistas: Revista da Semana, O Malho, O papagaio, Fon-Fon.
Na Revista da Semana produziu caricaturas em parceria com Raul Pederneiras, entre
1907 a 1914. No que diz respeito ao teatro, Peixoto escreveu sua primeira peça com
Bittencourt em 1911, chamada Seiscentos e Seis, e em 1912 estreou com Forrobodó.
Outras revistas e burletas foram escritas por essa parceria: Dança de Velho (1916),
Morro da Favela (1916), Três pancadas (1917), Flor de Catumbi (1918)96.
Peixoto não se dedicou apenas às artes, mas foi também industrial e
comerciante. Em 1920, participou de uma comissão do Ministério da Marinha que tinha
por destino Paris. Segundo Vasconcellos, foi por meio desta viagem que Peixoto trouxe
para a Companhia do São José ideias e métodos novos da Companhia Ba-ta-Clan97,
impulsionando a renovação daquele teatro. Peixoto, em 1922, foi nomeado para a chefia
da Repartição das Águas, mas mesmo exercendo trabalhos burocráticos continuou
produzindo peças.
Na década de 1920, sua parceria com Marques Porto se torna mais profícua. A
primeira estreia da dupla foi em 1924, com Secos e Molhados, que teve mais de 100
apresentações98. Entre 1924 e 1931 eles formaram uma das duplas mais produtivas e
bem-sucedidas da história do Teatro de Revista 99. Marques Porto, ao contrário de
Peixoto, não teve uma vida intelectual para além do teatro. Dedicou a maior parte de sua
vida ao teatro. Além de revistógrafo, Porto escreveu diversas canções, foi diretor e
ensaiador100. Foi também funcionário da Secretaria de Guerra, no cargo de Sub-Inspetor
da Polícia Marítima.
Agostinho José Marques Porto nasceu em 06 de janeiro de 1898, no estado de
Rio Grande do Sul, onde seu pai encontrava-se em serviço militar. Ele morreu, com 37
anos, em 12 de fevereiro de 1934. Sua carreira de revistógrafo iniciou-se em 1922, com
a revista Canalha das Ruas, em parceria com Ary Pavão101. Marques Porto dedicou 12

95
Essa parceria iniciou-se em 1924 e perdurou até 1931, um pouco antes de Marques Porto morrer
(1934). NASSIF, Luís. ―Marques Porto: o "ás" da revista‖. Disponível em:
<http://blogln.ning.com/profiles/blogs/marques-porto-o-as-da-revista>. Acesso em: 7 de março de 2013.
96
VASCONCELOS, Ary. A nova música da República Velha. S.l.: edição do autor, 1985, p. 245.
97
Ibidem, p. 246.
98
NASSIF, Luís. op. cit.
99
Ibidem.
100
Ibidem.
101
CASCAES, Laura Silvana Ribeiro. Queria bordar teu nome: a dança no teatro de revista. Dissertação
de Mestrado em Teatro. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, 2009, p.72.
44

anos, dos 37 que viveu, ao teatro. Escreveu cerca de 53 peças, grande parte delas em
dupla com algum parceiro.
Apesar de ter escrito um expressivo número de revistas, sua vida ficou por muito
tempo esquecida. Uma das razões para isto pode ter sido o irrisório reconhecimento da
revista pela intelectualidade. O grande número de peças do teatro musicado escritas,
tanto por Marques Porto, quanto por Bittencourt e Menezes, pode ter influenciado a sua
caracterização como escritores ―menores‖. Cabe observar, porém, que eles pertenciam
ao mesmo grupo do que aqueles que produziam e consumiam produtos literários:
Luís Peixoto, Carlos Bittencourt e outros artistas da indústria de
entretenimento (...) faziam parte da mesma elite burguesa consumidora de
produtos literários, mas de uma fração dessa elite que reagia contra a postura
anticultura popular dos grupos hegemônicos. Tentavam lidar com a questão
(crucial para a intelligentsia) da nacionalidade, lançando um olhar mais
benigno para o que mais aterrorizava as classes dominantes: o, digamos
assim, "pé na África" daquela sociedade. Para tanto, estavam usando um
meio de enorme popularidade – o teatro musical ligeiro –, com todos os seus
ingredientes principais: humor, sensualidade, música, dança e diversão 102.

Nesse sentido, Lopes observa uma semelhança entre os autores consagrados do


teatro de revista e os intelectuais humoristas ―do mundo das letras‖. Segundo ele, tanto
os revistógrafos quanto os caricaturistas e alguns escritores pertenciam ao grupo que
buscava um diálogo interétnico no processo de construção da identidade nacional.
Assim, mesmo sem serem oriundos das classes populares, muitas vezes eles buscavam
representá-las, compreendê-las e valorizá-las, apesar dos preconceitos enraizados103.
Nesse sentido,
Raul Pederneiras, João do Rio, Luís Peixoto e Carlos Bittencourt – todo um
grupo de jornalistas, escritores e artistas intrigados com e atraídos por este
Outro dentro de sua própria cultura – eram como antropólogos descobrindo
selvagens do outro lado da rua em que moravam e procurando entendê-los.
Faziam-no, porém, não com a frieza e a distância da ciência, mas com
corações apaixonados, e tal envolvimento aparecia em seus textos104.

Esses intelectuais e artistas não apenas encaravam o universo popular de forma


semelhante, mas também pertenciam ao mesmo segmento social. Podemos observar
isso através da presença de autores pertencentes ao ―mundo das letras‖ e de autores
vistos apenas como revistógrafos nos mesmos espaços sociais A Sociedade Brasileira de
Autores Teatrais (SBAT) foi um espaço em que tanto intelectuais, apontados por Gomes

102
LOPES, Antonio Herculano. ―Um forrobodó da raça e da cultura‖. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, v. 21, n. 62, out. 2006, p. 75.
103
Ibidem.
104
Ibidem, p.76.
45

como de ―renome no mundo das letras‖105, quanto autores que só escreviam revistas,
estiveram presentes enquanto diretores e conselheiros.
A SBAT foi fundada em 27 de setembro de 1917, tendo a maestrina Francisca
Gonzaga à frente deste movimento. Dentre os fundadores, podemos citar Bastos Tigre,
Luiz Peixoto, Odulvaldo Viana, Raul Pederneiras106, entre outros. A SBAT surgiu com
a finalidade de administrar e arrecadar direitos autorais de seus associados 107. O
primeiro diretor foi Paulo Barreto, o João do Rio. Posteriormente, outros autores
presidiram a SBAT: Bastos Tigre (1927-1928). Carlos Bittencourt (1936-1937),
Cardoso de Menezes (1940-1941).
A Sociedade era composta por uma diretoria e pelos conselheiros deliberativos
Segundo as informações contidas em Boletim da SBAT de 1940, Raul Pederneiras,
Bastos Tigre, Luiz Peixoto, Bittencourt, Menezes, Marques Porto pertenciam ao
conselho deliberativo108, que tinha mandato vitalício. Até 1940, o Conselho era
composto por 20 nomes. Já em 1946, o Boletim aponta 31 membros do conselho. Além
de alguns já citados, estão presentes os nomes de Affonso de Carvalho, Olegário
Mariano, Heitor Villa-Lobos, Procópio Ferreira, entre outros109.
Os nomes mencionados acima fizeram parte da história do teatro, mas muitos
deles não se dedicaram apenas à dramaturgia. Bastos Tigre (1882-1957), por exemplo,
autor de uma revista analisada nesse trabalho, teve a maior parte da sua obra
representada pela Companhia Tró-ló-ló. Engenheiro formado pela escola Politécnica,
colaborou, como humorista e como jornalista, em várias revistas e jornais, como por
exemplo O Rio Nu, Tagarela, Correio da Manhã. Escreveu peças de teatro, mas
também poemas110, o que o aproximava dos ―homens das letras‖.
A sua aproximação com os literatos não era meramente ideológica, mas também
física. Por intermédio de Emílio Menezes, Tigre passou a frequentar a confeitaria
Colombo, onde se reuniam literatos como Olavo Bilac, Emílio Menezes, Guimarães
Passos, Pedro Rabelo, Belisário de Souza, José do Patrocínio, Martins Fontes, Oscar

105
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., p.175
106
Disponível em: <http://www.casadoautorbrasileiro.com.br/sbat/historico> Acesso em: 18 de março de
2013.
107
Ibidem.
108
Boletim da SBAT, ano 22, n. 194, ago-set. 1940.
109
Boletim da SBAT, ano 27, n. 229, abr-ago. 1946.
110
―Bastos Tigre: um dos fundadores da SBAT‖. In: Revista da SBAT, ano 36, n. 299, set-out 1957, p.4.
46

Lopes, entre outros111. É o próprio Bastos Tigre que nos explica como ele conheceu os
literatos desta roda:
Quando em 1898, cheguei ao Rio, com meus dezesseis anos, vindo de Recife
estudar engenharia (...) esplendia, em pleno fulgor, a constelação de que era
‗alfa‘ Olavo Bilac. Foi, entretanto, Emílio de Menezes a primeira figura
literária que conheci pessoalmente.
(...)
[Tigre mostrou a Menezes as provas do livro de versos que compusera] e em
vez de gabos de praxe, das frias amabilidades que se costumam fazer em tais
circunstâncias, desandou-me uma série de censuras e reprimendas num tom
irritado e violento.(...). Dias depois ele me apresentava paternalmente à
insigne e alegre roda literária da Colombo:
- Conheçam aqui esse animal de pêlo! Retumbou Emílio, apontando-me à
roda: Bilac, Pedro Rabelo, Plácido Júnior 112.

Tigre, em seu livro, afirma que pertencia tanto à roda da Colombo113 quanto à do
café Papagaio114, como ressalta na seguinte passagem: ―Raul Pederneiras com Kalixto
Cordeiro e outros artistas do lápis, Luiz Edmundo e os simbolistas formavam na roda do
Papagaio, onde tomavam café e também outras coisas mais. Eu pertencia a todas as
turmas‖115.
Bastos Tigre, portanto, se configurava como um homem pertencente às rodas
literárias. Ele participou da chamada Sociedade Brasileira de Homens de Letras,
fundada em 1915 por Bilac e Oscar Lopes. Essa Sociedade foi constituída com o intuito
de defender os direitos autorais dos escritores, e contava com a participação de Luís
Edmundo, Olegário Mariano, Emílio de Menezes, Sebastião Sampaio, Aníbal Teófilo,
Humberto de Campos, além de outros e dos fundadores já citados. A associação, porém,
durou pouco. Em setembro do mesmo ano, ela se desfez em função de dificuldades
econômicas.
Tigre era, assim, um legítimo ―homem das letras‖. Publicou vários livros e teve
uma intensa vida jornalística. Porém, não se imortalizou na principal associação
literária, a Academia Brasileira de Letras. Barbosa Lima Sobrinho, que escreveu o
prefácio do livro Reminiscências, de Bastos Tigre, afirma que a razão por não ter
conquistado uma cadeira na Academia foi ter se candidato muito tarde, quando quase

111
TIGRE, Bastos. Reminiscências: a alegre roda da Colombo e algumas figuras do tempo de
antigamente. Brasília: Thesaurus, 1992, p. 16.
112
Ibidem, p. 37-38.
113
Confeitaria localizada na Rua Gonçalves Dias.
114
Vizinho da Confeitaria Colombo, ficava entre a rua do Ouvidor e a Sete de Setembro. Sobre esse café,
ler GOMES, Danilo. Antigos cafés do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Kosmos, 1989, p. 91-98.
115
TIGRE, Bastos, op. cit., 1992, p. 16.
47

todos os seus companheiros que pertenciam à Academia já estavam mortos, como por
exemplo, Olavo Bilac, Emílio de Menezes,Valentim Magalhães116.
Raimundo de Menezes escreveu, na biografia de Tigre, que ele pensou em se
candidatar quando Emílio de Menezes, seu amigo, morreu, em 1918. Porém, desistiu
por não querer concorrer com seu amigo Humberto de Campos. Em 1925, resolveu se
candidatar para cobrir a vaga de Alberto Faria. Porém, competiu com o poeta Luís
Carlos, o senador Antônio Azeredo e outros dois candidatos. Quem acabou saindo
vitorioso foi Luís Carlos117. Em 1937, novamente Tigre se candidatou para ocupar uma
cadeira que se encontrava vazia. Concorreu com Viriato Correia, Jorge de Lima,
Cassiano Ricardo e Basílio de Magalhães, e novamente foi derrotado. Cassiano Ricardo
recebeu 18 votos, enquanto Tigre recebeu 11. Apesar de não ter sido eleito, Tigre não se
sentiu derrotado, como afirmou:
Não tive propriamente derrotas nas eleições que disputei. Explico. Com o
sistema eleitoral dos quatro escrutínios, adotado pela Academia, o candidato
pode não ser eleito, sem contudo, dever considerar-se derrotado. De uma das
vezes, por exemplo, tive votos de sobra para triunfar; e de quase todos os
acadêmicos, conforme vim depois saber; mas os votos foram espalhados
pelas várias fases do pleito 118.

Um companheiro humorista-boêmio de Bastos Tigre foi José do Patrocínio Filho


(1885-1929), que escreveu duas revistas, uma delas analisada nesta dissertação.
Juntamente com Tigre, Emílio de Menezes, Pederneiras, Kalixto e Lima Barreto,
Patrocínio Filho pertencia ao grupo dos que se expressavam de forma sátirica-cômica.
Filho do abolicionista José do Patrocínio, Zeca, como era conhecido, escreveu crônicas
e livros abordando temas do cotidiano. Por exemplo, o livro “Diabo, mundo e carne”,
que foi reeditado em 2002 pela editora Antiqua, reuniu 18 crônicas, que já haviam sido
publicadas em jornais da época. Essas crônicas retratavam a sociedade carioca,
focalizando temas como a agiotagem, o uso de cocaína e etc. Nestas, havia uma

condenação marota da dissipação do jogo, da prostituição e das drogas. O


lado selvagem carioca também está nos mendigos que dormem pelas ruas (...)
e nos indefectíveis imigrantes chineses, os ―chins‖, preconceituosamente
associados ao tráfico de ópio ou cocaína 119.

116
LIMA SOBRINHO, Barbosa. Prefácio. In: TIGRE, Bastos, op. cit., 1992, p.12.
117
MENEZES, Raimundo. Bastos Tigre e „la belle époque‟. São Paulo: Edart, 1966, p. 364-365.
118
Ibidem, p. 373.
119
PIRES, Paulo Roberto. ―No mínimo‖, jan. 2003.
Disponível em:< http://www.editoraantiqua.com.br/imprensa/selvagem.htm> Acesso em: 25 março 2013.
48

Pires caracteriza a escrita de José do Patrocínio Filho como semelhante à de João


do Rio ou à de Benjamin Constallat, devido à sua descrição da cidade e seu lado
―selvagem‖. Zeca compartilhava o humorismo dos modernistas cariocas 120, tendo
colaborado na produção humorística tanto da imprensa quanto do teatro. Além disso,
Patrocínio Filho participava das rodas literárias com Bilac, Pederneiras e Coelho
Neto121.
No que diz respeito à imprensa, Patrocínio Filho atuou na revista D. Quixote,
fundada em 1917 e dirigida por Bastos Tigre, que tinha como colaboradores Kalixto,
Raul Pederneiras, Julião Machado, J. Carlos, entre outros. Essa revista se configurou,
como aponta Velloso, como um locus de expressão do humor e da nacionalidade 122.
Além da SBAT, podemos analisar que os espaços de sociabilidade que Bastos
Tigre frequentava eram bem próximos também dos espaços sociais que Carlos
Bittencourt, Luís Peixoto, Cardoso de Menezes e Marques Porto conviviam. Luiz
Peixoto, por exemplo, era amigo de Olegário Mariano e Emílio Menezes desde a
adolescência e foi através deles que Peixoto se apresentou a outros caricaturistas:
Dali, um dedo de prosa na Livraria Alves ou na Confeitaria Alvear onde, era
quase certo, Emílio Menezes já estaria a esperá-los. Trocavam versos,
experiências, confidências. Olegário, que por essa época já publicara seus
primeiros versos nos jornais, procurava animar Luiz.
- Luiz, seus trabalhos são ótimos, suas caricaturas, sua prosa... – dizia – Se eu
fosse você, não perdia mais tempo, ia falar com o Pederneiras.
Influenciado pelo amigo, Luiz começou a remeter aos periódicos, como
colaboração, alguns de seus trabalhos literários.
(...)
Por volta de 1905, com 16 anos, incentivado pelos amigos, Luiz apresentou
algumas de suas caricaturas a Raul Pederneiras e Calixto, dois dos maiores
nomes e especialistas do gênero123.

O que esse fragmento nos demonstra é que Luiz Peixoto conheceu e possuía
amizade com escritores e caricaturistas que pertenciam, também, ao círculo de amizade
de Bastos Tigre. Não sabemos o quanto Luiz Peixoto e Bastos Tigre eram amigos, mas
sabemos que eles pertenciam a grupos sociais semelhantes. Luiz Peixoto colaborou
como caricaturista em quase todos os jornais e revistas do Rio124, o que nos leva a
acreditar que os espaços de sociabilidade eram próximos. Além disso, Luiz Peixoto e
Tigre trabalharam juntos em algumas das produções de teatro. Enio e Vieira citam a

120
Como estuda Velloso em sua obra Modernismo no Rio de Janeiro.
121
VELLOSO, Mônica Pimenta, op. cit.,1996, p. 41.
122
Ibidem, p. 164.
123
ENIO, Lysias; VIEIRA, Luis Fernando. Luiz Peixoto: pelo buraco da fechadura. Rio de Janeiro:
Vieira &Lent, 2002, p. 51 e p.55.
124
Ibidem, p. 63.
49

revista Dito e Feito, de Bastos Tigre e Eduardo Vitorino, na qual Luís Peixoto foi
figurinista125.
No livro Reminiscências, Tigre escreve um pouco sobre Carlos Bittencourt, o
considerando como uma figura importante da vida carioca. Na obra, Tigre não fala da
relação que eles possuíam, mas relata sobre o pseudônimo ―O Assombro‖ que
Bittencourt utilizou-se na coluna policial de O Paiz. Tigre observa que, mesmo doente,
dedicou-se ao teatro e ao jornalismo, com tamanha intensidade, sendo, portanto,
caracterizado como um assombro em diversos âmbitos de sua vida.
O que eu aqui vou relatar foi familiar à roda de jornalistas e aos escritores de
teatro frequentadores da SBAT. É um caso de humorismo macabro, que não
conheço igual, contado ou lido. Foi o seu herói, o Carlinhos Bittencourt,
repórter que depois se tornou famoso como autor de revistas de teatro, de
grande sucesso em nossos palcos populares.
A ‗scie‘ com que comentava todos os casos:
- ―É um assombro!‖ Deu-lhe o apelido com que foi sempre conhecido entre
os colegas: era os da roda da imprensa e teatro ‗o Assombro‘. E assombroso
foi ele, realmente. Esse homem que tanto fez ele rir o público com as suas
cenas de revista, riu ele próprio, durante anos a fio, da doença, do sofrimento
e até da morte. Assombrosa foi a sua atitude de intrépida serenidade, mais do
que isto, de permanente bom-humor, perante o martírio que era sua vida, nos
últimos tempos.
Passava meses de cama, em rigoroso regime. À mais ligeira melhora deixava
o leito e a casa e, contrariamente às ordens do médico, aparecia nos jornais,
nos cafés, na SBAT, a palestrar, a contar episódios de teatro, de imprensa 126.

Este trecho do livro de Tigre nos mostra certa familiaridade com Bittencourt e
ressalta a presença deste último em espaços que ele também frequentava, como a
SBAT, os cafés, as redações dos jornais. Portanto, podemos afirmar que Bittencourt
também partilhava de ambientes sociais semelhantes ao de Tigre. Cabe ressaltar, ainda,
que Bittencourt e Tigre escreveram uma peça juntos, chamada Stá salva a pátria:
revista (1916), com colaboração também de Rego Barros.
Não pretendo esmiuçar as diversas relações sociais entre os autores aqui
analisados, ou seja, tratar sobre o quanto Cardoso Menezes ou Marques Porto estavam
ligados a Bastos Tigre, a Patrocínio Filho, a Olegário Mariano, a Bilac e etc. O que
busquei, ao apontar algumas das relações sociais e os locais de sociabilidade, foi
elucidar sobre a possibilidade de integração dos revistógrafos em um ambiente
intelectual amplo, no qual pertenciam os ―homens das letras‖, os humoristas, jornalistas
e etc..

125
Ibidem, p.169.
126
TIGRE, Bastos, op. cit., 1992, p. 121.
50

Cena 4: A produção textual da revista e a comicidade

O texto do teatro de revista, em todo seu percurso histórico, era produzido de


forma despojada, sem muita preocupação com a linguagem e com a qualidade literária.
Além disso, o gosto do público exercia forte influência em sua escrita, como se verifica
na revista Se a moda pega, de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, escrita em
1925. O primeiro quadro da peça retrata uma ―cozinha teatral‖, cujos alimentos são as
revistas. A cena 1 inicia-se com um coro:

CORO
Seu Tanajura
Vamos embora
Faça a mistura
Sem mais demora!
Essas comidas
Bote pra fora,
Pois são pedidas
A toda hora!
Nos teatrinhos
Nacionais
(...)
TANAJURA
Tem muito tempo,
Devagar!
O Zé-Povinho
Vai gostar!
O meu tempero,
Especial, é mesmo o suco,
É sem rival!127

Nesta música, cantada logo no início da peça, já se pode observar duas


características dos textos da revista. Tanajura, ao dizer que o Zé-Povinho vai gostar de
seu tempero, sugere que as revistas são escritas e montadas com o intuito de agradar o
povo, a fim de garantir sucesso de público. Uma segunda característica, que está
intimamente ligada à primeira, se refere à produção de textos cada vez mais rápida. Ou
seja, ao agradar o povo, aumenta-se a demanda por revistas, o que sugere uma maior
produção. Como explica Tanajura, numa fala mais a frente, ―é uma revista por
semana!‖.
Como metodologia de análise, podemos separar essas duas características. A
produção de revistas, com a finalidade de agradar o público, influenciou em uma escrita
humorística, que apresentava elementos de duplo sentido, alusões, paródias, alegorias,

127
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega (1925), 2ª DAP, n.683 - cx. 33.
51

elementos pornográficos, abusando da malícia e sensualidade, além de referenciar


aspectos ligados às transgressões do que seria um padrão ―normal‖128.
Segundo Chiaradia, o elemento alusivo consistia em uma das características
principais da revista129. Ou seja, os autores faziam alusões, em seus textos, a fatos ou
pessoas conhecidas. Podemos exemplificar esse elemento através da peça Zig-Zag, de
Bastos Tigre, escrita em 1926. No segundo quadro, o autor colocou em cena dois
personagens da política brasileira: Benjamin Constant130 e Marechal Deodoro131. Eles
dialogam com um personagem alegórico, o ―Espírito Moderno‖. Os personagens
Deodoro e Benjamin são caracterizados com roupas de estilo romano, referenciando
uma época que já passou. O caráter alusivo se faz presente em diversos momentos,
inclusive no seguinte diálogo:
DEODORO – Com quem temos nós a honra de estar falando?
ESPÍRITO – Com o Espírito Moderno
BENJAMIN – Ah, já sei, o sr. é o Graça Aranha, o futurismo que no passado
fez mal as artes...
DEODORO – Ó, Coronel, até o senhor?132

No trecho acima, os autores fazem alusão a uma palestra proferida por Graça
Aranha, intitulada ―Espírito Moderno‖, que ocorreu na Academia Brasileira de Letras
em 1924. Esta palestra marca o rompimento do modernismo com o academicismo e,
consequentemente, a ―incomunicabilidade entre (...) a geração parnasiano-simbolista e a
iconoclasta geração modernista‖133. A referência a este acontecimento na revista sugere
que ele teve uma repercussão ampla134 na cidade do Rio de Janeiro no período.
Exatamente por saber do que se tratava, o público ria dos personagens e das alusões, o
que era, possivelmente, o esperado pelo autor.
No que diz respeito ao elemento alusivo das revistas, Chiaradia contradiz a
afirmação de Veneziano de que a compreensão de uma revista só ocorreria se

128
Cabe observar que, nas peças, as transgressões que ocasionam o riso estão ligadas às mudanças de
costumes. Portanto, a dicotomia entre ―tradição‖ e ―modernidade‖ ocasionava riso.
129
CHIARADIA, Filomena, op. cit., 2012, p. 93.
130
Oficial do exército, Benjamin Constant foi um dos principais organizadores do movimento que depôs
a Monarquia. Participou do Governo provisório Republicano, como Ministro da guerra e da Instrução
Pública.
131
Foi o proclamador da República e primeiro presidente do país.
132
TIGRE, Bastos. Zig-Zag (1926). 2ª DAP, cx 37, n. 785.
133
MURARI, Luciana. ―Literatura e transformação da sociedade no debate intelectual brasileiro: dos
―modernistas‖ de 1870 aos modernistas de 1922‖. In: Antares, Caxias do Sul: v.1, n.2, jul-dez 2009,
p.180.
134
Não sabemos para qual público-alvo os autores escreveram a citada peça, porém, se observarmos o
local que a peça foi encenada pela primeira vez (Teatro Glória), a companhia (Trolóló) e o autor (Bastos
Tigre), pode-se concluir que a repercussão do fato pode ter sido ampla para um público mais elitizado,
público que costumava frequentar a Avenida Central.
52

conseguíssemos perceber todas as suas alusões. Para Chiaradia, o fato de não


identificarmos todas as suas referências não significa que não conseguiremos
compreender a revista ou sua comicidade135. Concordo com Chiaradia; as análises das
revistas empreendidas neste trabalho são tentativas de apreensão dos elementos alusivos
e dos outros diferentes elementos, a fim de que a interpretação seja bem sucedida.
Porém, o não entendimento de todos os elementos não invalida a minha análise.
Outro elemento provocador de riso no teatro de revista é a paródia, que é uma
recriação de uma obra já consagrada de forma cômica, seja criticando ou ridicularizando
personagens, fatos e etc. Na peça Cangote Cheiroso, de Marques Porto e Luís Peixoto,
encenada em 1927, encontramos um quadro que parodia o romance O Guarani, de José
de Alencar, que também havia inspirado uma ópera, de autoria de Carlos Gomes,
encenada pela primeira vez em 1870, no Teatro Scala de Milão. Na revista, o índio Peri
é descaracterizado, ganhando feições de um português136.
Outro exemplo ocorre na revista Se a moda pega, que já foi citada e será
analisada com mais vagar neste trabalho. Segundo Chiaradia, o primeiro quadro, que
apresenta uma ―cozinha teatral‖, foi influenciado por um dos quadros da revista
portuguesa Timtim por Timtim, que era intitulado ―Cozinha dramática‖. A autora
destaca que a manipulação de elementos já vigentes em outras peças era uma das
habilidades desenvolvidas pelos autores das revistas 137. As reinvenções deveriam se
adequar ao tempo presente e, ao mesmo tempo, causar riso.
Outro fator cômico inserido nos espetáculos revisteiros era o que Propp
denomina ―a comicidade das diferenças‖, ou seja, as diferenças de costumes e
identidades provocavam riso138. Segundo Gomes, o teatro de revista se utilizou muito
deste recurso, abordando semelhanças e diferenças entre grupos, épocas, costumes e etc.
Em diversas revistas analisadas, o riso é provocado ao ridicularizar algumas novidades
da época ou alguns fatores ligados ao passado. Um exemplo que é evidente na peça Se a
moda pega, de Bittencourt e Menezes, é a crítica à modernização das vestimentas
femininas e masculinas139.
A presença da comicidade e do humor foi encontrada não apenas no teatro de
revista, mas foi uma linha de entendimento traçada por diversos intelectuais cariocas no

135
CHIARADIA, Filomena, op. cit., 2012, p. 94.
136
Esse quadro será analisado na segunda parte dessa dissertação.
137
CHIARADIA, Filomena, op. cit., 2012, p. 94.
138
PROPP, Apud: GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 36.
139
Abordaremos, na segunda parte da dissertação, como os autores compreenderam aspectos relativos à
modernização dos trajes.
53

início do século XX. Mônica Pimenta Velloso, em sua obra Modernismo no Rio de
Janeiro, estuda a presença do humor no modernismo carioca. Segundo Velloso, o uso
da linguagem humorística para caracterizar a nação, principalmente por meio da
carnavalização, foi uma constante para os intelectuais boêmios modernistas do Rio de
Janeiro. Segundo ela, o humor foi uma linguagem expressiva da modernidade devido à
sua agilidade na comunicação, sua ilustração do cotidiano e etc.140
Para Elias Thomé Saliba, a imaginação nacional produz não apenas um discurso
nacionalista, mas também uma representação humorística. De acordo com o autor, esta
representação é mais do que mera percepção sobre os acontecimentos, se define também
como uma construção discursiva da nacionalidade alternativa 141. Nesse sentido,
brasileiros ririam de si mesmos enquanto construiriam representações alternativas da
nação. Esse discurso alternativo não é evidente, pois dificilmente ele se enquadraria
numa narrativa amplamente aceita.
Velloso identifica os intelectuais boêmios modernistas como aqueles que veem
nas ruas uma forma de sociabilidade alternativa numa cidade que se modernizava a
qualquer custo. Esses autores se recusam construir uma imagem da cidade
europeizada142. Assim, suas obras estavam em consonância com a busca da brasilidade e
a valorização do nacional. A caracterização de intelectuais como boêmios, portanto, está
atrelada ao local de encontro e às suas publicações, muitas delas voltadas para a crítica
social.
A autora ainda ressalta a afinidade entre os caricaturistas e o teatro de revista. De
acordo com Velloso, a linguagem cênica do teatro de revista se assemelhava à dos
caricaturistas. Assim, a divisão em quadros, cenas curtas, alegorias e etc. estava em
conformidade com o humor jornalístico143. Além disso, vários intelectuais boêmios
eram revistógrafo cenógrafos e etc.
Portanto, o recurso humorístico foi um elemento essencial no período destacado,
como forma de construção de discursos alternativos em relação a diversos fatores, como
por exemplo, a nacionalidade, a modernização e a inserção do Brasil no mundo
moderno. Dito isto, podemos analisar os motivos que incitaram ao uso da comicidade
pelo teatro de revista. Se observarmos a presença de intelectuais boêmios na produção

140
VELLOSO, Mônica Pimenta. op. cit., 1996, p. 41
141
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira. São Paulo:
Companhia das letras, 2002, p. 31.
142
VELLOSO, Mônica Pimenta, op.cit., 1996, p.27.
143
Ibidem, p. 77.
54

de textos teatrais, como Bastos Tigre, Patrocínio Filho, Pederneiras e Kalixto, e as


semelhanças temáticas entre o teatro e as caricaturas jornalísticas, podemos inserir o
teatro de revista dentro de uma perspectiva modernista, como observa Velloso:

Concisão, condensação, veiculação de novas coordenadas de espaço e tempo,


alegoria e humor: é através dessa linguagem que o teatro de revista procura
recriar ficcionalmente o cidadão e a cidade, dando forma a uma realidade
ainda difusa na sensibilidade coletiva. Esse linguajar e essa temática são
familiares ao grupo dos intelectuais humoristas144.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o teatro de revista utilizou-se do recurso


cômico para transmitir ideias relativas a um discurso alternativo de brasilidade e
modernidade. Porém, apesar de haver certa intenção em tratar destes temas de forma
crítica e cômica, havia também uma preocupação em agradar o público. Como afirma
Saliba:
(...) o teatro de revista, assim como outros gêneros a ele associados e tidos
como ‗menores‘, como a opereta, a burleta ou a mágica, tinha um
compromisso intrínseco, e quase único, com a diversão, tornando-se, nesse
sentido, mais suscetível às demandas de uma população secularmente afeita à
presença de música, dança, picardia e comentários satíricos nos espetáculos
públicos145.

Assim, como já destacamos acima, a revista dependia, sim, do gosto do público


e se alimentava dele. Portanto, a comicidade nas peças também está intimamente ligada
a esse fator. Cabe apontar que a intenção de agradar o público também influenciava na
forma como as revistas eram escritas. Chiaradia nos permite compreender melhor como
era este processo. Segundo ela, antes da peça estrear era comum que os autores lessem
trechos para diversas pessoas, tanto para intelectuais quanto para ―pessoas comuns‖,
como forma de obter uma avaliação prévia e ideias novas146.
Porém, não só elementos do público potencial participavam da escrita das peças,
mas os atores e ensaiadores também. Isso se torna claro quando se observa o comentário
de Carlos Bittencourt, em 1921, sobre a produção do texto teatral: ―E assim vamos
completando a revista até o final do primeiro ato e não vamos além sem que seja posta
em ensaios. A verdade é que não sentimos bem sem a prova dos ensaios‖ 147. Portanto,
os constantes diálogos com a cena e com os atores influenciavam na escrita da peça e na
sua forma final. Para Rabetti, o modo de produção do teatro ligeiro tinha na cena sua
primazia. A escrita se baseava na materialidade do palco. Portanto, estavam imbricados

144
Ibidem.
145
SALIBA, Elias Thomé, op. cit., p. 89.
146
CHIARADIA, Filomena, op. cit., p. 111.
147
Apud CHIARADIA, op.cit., p..112.
55

dramaturgo e encenador148. ―A cena da comédia ligeira é o local por excelência da obra


teatral. É ela a referência primeira e última para a escrita dramática‖ 149.
Havia, assim, uma integração entre os diferentes elementos da produção teatral.
Não apenas atores e encenadores participavam e contribuíam para a escrita da peça, mas
também os autores participavam das decisões sobre a montagem, a distribuição de
papéis e etc. Como o artigo do próprio Cardoso de Menezes relata:
Na nossa parceria o Carlinhos incumbia-se igualmente de tratar com os
empresários, dos direitos autorais (...), das festas dos autores, reclames nos
jornais, tudo enfim, que dissesse respeito a finanças, enquanto eu me
encarregava da distribuição dos papeis, ensaios de poema e música, cenários
e guarda-roupa, acomodação de brigas e ciumadas entre artistas, em
consequência de papéis maiores e melhores.
(...)
Quando escrevíamos as nossas revistas, como sempre destinávamos os
diversos papéis para determinados artistas; como pela constância de serem
eles interpretes dos personagens que idealizávamos, quando líamos os
diferentes ―quadros‖, sem que soubéssemos a razão, o porquê,
insensivelmente imitávamos o falar dos referidos artistas. 150

Portanto, havia um envolvimento intenso entre os autores e a companhia, o que


nos permite afirmar que as peças eram escritas para uma companhia em especifico e,
consequentemente, para um espaço físico teatral específico, já que as companhias
profissionais não alternavam tanto os teatros em que suas peças iriam estrear.
O envolvimento dos autores com a companhia e com o público ainda teve por
consequência a produção de textos fragmentados, que refletiam a forma de produção
das revistas, ou seja, a produção em parceria com forte influência da cena e do público.
Os quadros eram escritos com certa independência entre eles, com permanência do tema
central da peça. Para Chiaradia, a produção de textos em quadros, além da
maleabilidade entre os quadros, permitia que alterações, como inclusões e exclusões,
fossem feitas facilmente, sem prejuízo para a estrutura geral das peças.
A forma como as peças eram escritas e sua estrutura dividida em quadros e
cenas podem ter sido influenciadas pela demanda por uma produção cada vez mais
veloz de revistas, como já destacamos acima. Portanto, a estrutura do texto do teatro de
revista e sua construção têm uma íntima ligação com o período, caracterizado pela
maior e mais rápida demanda de produtos culturais. Período em que a velocidade
entrava na ordem do dia, a fragmentação da cidade influenciava a fragmentação dos
textos, e em que se buscava agradar o público.

148
RABETTI, Maria de Lourdes. op. cit.,, 2007, p. 16.
149
Ibidem, p. 38.
150
MENEZES, Cardoso de. op. cit., 1941, p. 14.
56

Cena 5: Estado e teatro

No período histórico estudado, a atuação do Estado no financiamento da


produção cultural era pequena. De acordo com Assis Ferreira, após a construção do
Teatro Municipal, no início do século XX, há uma diminuição do incentivo estatal na
produção cultural 151. Maria Célia Félix de Sousa destaca que era o investidor privado o
responsável pela dinâmica da produção cultural do teatro e do cinema. O Estado, nesse
momento, se limitou a ―alguns incentivos em termos de reformas e construções, mas
também, intervenções e pedidos de demolição‖152. A autora ainda destaca: ―Os
investidores privados são as figuras principais, às quais realmente devemos a
oportunidade de haver lazer e diversão na cidade, pois é fato que o investimento
em edificações destinadas a casas de espetáculos e diversão partiu deles”153.
Isso nos possibilita concluir que a relação do Estado com o teatro, nesse aspecto,
era bastante deficitária, motivando várias campanhas de intelectuais a favor de uma
maior atuação do Estado em favor da atividade teatral. Porém, no que diz respeito às
tentativas de controle, a performance do Estado foi bastante ativa, agindo por meio da
polícia civil, que promovia a censura aos textos teatrais e concedia licenças para o
funcionamento de estabelecimentos.
Marcos Luiz Bretas, em seu estudo sobre a atuação da polícia no Rio de Janeiro,
subdivide o trabalho cotidiano da polícia em dois: um referente às ameaças à ordem
pública, promovidas pela coletividade, e outro referente aos dramas individuais como
assassinatos, dívidas não pagas e etc.154 Sobre a atuação policial nas ações coletivas, os
objetivos eram: controlar os conflitos que poderiam surgir com a quantidade de público;
conter os jogos, as apostas e a concessão de prêmios ilegais; realizar um controle moral,
proibindo estabelecimentos de diversão de funcionarem até tarde, gírias e termos chulos
nos textos teatrais e etc.
Assim, a polícia civil agia em diversos ambientes coletivos como agremiações
carnavalescas, bares, clubes, festas religiosas, teatros e outras casas de diversão. As
principais razões para a negação ou cassação de licenças estavam atreladas ao jogo e à

151
FERREIRA, Adriano de Assis, op.cit., 2010, p. 55.
152
SOUSA, Maria Célia Félix. Teatro e cinema: espaço público e cultura na identidade do Rio de Janeiro
(1900-1940). Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano. Rio de Janeiro: Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 2007, p.110.
153
Ibidem, p. 112
154
BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 1997, p. 79.
57

criminalidade.. Havia uma preocupação com o público noturno, uma vez que eles eram
associados às categorias criminais, ―que podiam estar tramando infinitos crimes, ou
155
então pela possibilidade de estar se realizando o jogo ilegal‖ . Apesar da forte
perseguição aos jogos, Bretas observa que somente o jogo de rua, mais popular, era
objeto de repressão156, apesar das elites também praticarem diversas formas de jogos.
Nesse contexto se insere a fiscalização aos teatros. Bretas afirma que o
policiamento dos teatros ―era uma das tarefas essenciais realizadas pelos delegados
auxiliares, que presidiam os espetáculos sempre alertas para a possibilidade de ocorrer
157
conflitos pela reunião de multidões‖ . Os conflitos poderiam ser provenientes das
reclamações e vaias que eram frequentes nas torrinhas, lugar mais alto e mais distante
do palco, onde se concentrava um público de jovens estudantes158 e de segmentos
sociais menos favorecidos159, que se manifestavam sobre tudo com bastante barulho.
Além da fiscalização dos estabelecimentos e da concessão de licenças, a polícia
civil também era responsável por analisar textos teatrais. O Decreto nº 14.529, de 9 de
dezembro de 1920, estabelece que a apresentação de qualquer peça teatral requer
censura prévia feita pelo 2º delegado auxiliar da polícia. De acordo com o Art. 39. § 5º:
Na censura das peças teatrais a policia não entrará na apreciação do valor
artístico da obra; terá por fim, exclusivamente, impedir ofensas à moral e aos
bons costumes, às instituições nacionais ou de países estrangeiros, seus
representantes ou agentes, alusões deprimentes ou agressivas a determinadas
pessoas e a corporação que exerça autoridade pública ou a qualquer de seus
agentes ou depositários; ultraje, vilipêndio ou desacato a qualquer confissão
religiosa, a ato ou objeto de seu culto e aos seus símbolos; a representação de
peças que, por sugestão ou ensinamento, possam induzir alguém [a] prática
de crimes ou contenham apologia destes, procurem criar antagonismos
violentos entre raças ou diversas classes da sociedade, ou propaguem ideias
subversivas da sociedade atual160.

Portanto, a censura era promovida com o desígnio de beneficiar a ordem,


segurança e moralidade públicas. De acordo com Bretas, buscava-se definir ―qual teatro
deveria ser incentivado para a formação da boa arte brasileira e qual prejudicaria a
161
formação da nacionalidade‖ . Segundo Maria Célia Félix de Souza, a censura teatral
tinha por objetivo manutenção da ordem pública, controlando a moral e os bons

155
Ibidem, p. 84.
156
Ibidem, p. 85.
157
Ibidem, p. 83.
158
MENCARELLI, Fernando, op. cit., 1999, p. 142.
159
Porque ali os ingressos eram mais baratos.
160
BRASIL. Decreto n. 14.529, de 9 de Dezembro de 1920 – Republicação. Disponível em:
<http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-14529-9-dezembro-1920-503076-
republicacao-93791-pe.html> Acesso em: 07de outubro de 2011
161
Reportagem realizada por Vinicius Zepeda e publicada no site da FAPERJ. Disponível em:
<http://www.faperj.br/boletim_interna.phtml?obj_id=2289> Acesso em: 29 de maio de 2010.
58

costumes162. As representações culturais, segundo ela, eram alvos da repressão policial


pelo valor simbólico que elas possuíam163.
A censura teatral no Brasil iniciou-se com o edital de 29 de novembro de 1824,
expedido pelo Intendente Geral de Polícia da Corte, como destaca José Galante de
Sousa164. Suas primeiras manifestações estavam ligadas a questões morais, como
ofensas às corporações e autoridades e etc.. A partir deste edital, diversos outros
documentos foram elaborados com a finalidade de recomendar aos presidentes das
províncias que assistissem ou lessem as peças antes de ser encenadas. Em 3 de
dezembro de 1841, foi elaborada a lei n. 261 que definia que: ―Nenhuma representação
terá lugar sem que haja obtido a aprovação e o visto do Chefe de Polícia ou delegado,
que o não concederão quando ofenda a moral, a religião e a decência pública‖165.
Em 1843, instalou-se uma instituição, designada Conservatório Dramático
Brasileiro. A iniciativa dos intelectuais era incentivar o desenvolvimento do teatro no
país, conforme consta em seus artigos orgânicos: ―O Conservatório Dramático terá por
seu principal instituto e fim primário – animar e excitar o talento nacional para os
assuntos dramáticos e para as artes acessórias – corrigir os vícios da cena brasileira‖ 166.
Porém, o compromisso com o controle moral e os bons costumes ainda prevaleceu,
como se observa no artigo oitavo:
As regras pra a censura e o julgamento serão estatuídas em um Regulamento
ad hoc, tendo por fundamento – a veneração à nossa santa religião – o
respeito devido aos poderes políticos da nação e às autoridades constituídas –
a guarda da moral e decência pública, a castidade da língua 167.

Porém, sua atuação foi restringida pela censura policial, que continuou existindo.
Assim, depois da peça ser aprovada no Conservatório, tinha que passar, também, pelo
crivo policial. Galante de Sousa caracteriza esse conflito de jurisdição da seguinte
forma:
(...) [O Conservatório] nunca passou de uma simples auxiliar da censura
policial dos teatros, ou antes, das obras dramáticas... O Conservatório
Dramático Brasileiro ressentiu-se e morreu desse desacerto dos poderes
públicos; quiseram que ele vivesse exclusivamente para a censura; para a
censura bastava a polícia168.

162
SOUSA, Maria Célia Félix, op.cit.,p. 143-144.
163
Ibidem, p. 143.
164
SOUSA, José Galante de. op. cit.,, 1960, p. 309.
165
Ibidem.
166
ROSA, Seleste Michels da. ―Censura teatral no Brasil: uma visão histórica‖. In: Revista Eletrônica
Literatura e Autoritarismo: Literatura: Compreensão crítica, Universidade Federal de Santa Maria, v.1,
n. 14, jul/dez. 2009. Disponível em: <http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/num14/art_08.php>. Acessado
em: 08 de setembro de 2011.
167
SOUSA, José Galante de, op.cit., 1960, p. 332.
168
Ibidem, p. 319.
59

Essa instituição teve dois momentos. O primeiro durou 21 anos, sobrevivendo


até 1864. O segundo foi instituído em 1871 com o mesmo intuito, porém com membros
nomeados pelo governo. Galante Sousa afirma que esta segunda formação do
Conservatório, que durou até o advento da República, também não possuiu autonomia,
sendo suas atribuições invadidas pela polícia.
Com a Proclamação da República, a censura foi toda transferida para os
organismos policiais, através do Decreto nº. 2558, de 27 de julho de 1897, que define a
inspeção dos teatros e casas de diversão da Capital Federal, e do decreto nº. 2557, de
mesmo ano, que extingue o Conservatório Dramático. Segundo Miliandre Garcia, a
institucionalização da censura por um órgão público, a polícia, tornava mais difícil
separar as questões morais do controle político e da manutenção da ordem pública. A
atuação da polícia era regulada por decretos, o que ―vinculou a existência da censura ao
universo político‖169. No período republicano, portanto, a censura teatral se desenvolveu
a partir de interesses estatais.
As peças analisadas nesse trabalho nos possibilitam observar comentários sobre
a censura teatral na década de 20. Algumas peças trazem como um dos temas de sua
critica a censura teatral, como se pode observar no prólogo da revista Cangote
Cheiroso, de Marques Porto e Luís Peixoto, de 1927, apresentada no Teatro Recreio.
Neste, encontramos Madame Censura cantando:
MME CENSURA E CORO
Eu vi o Presidente
Muito alegre e sorridente
O Viana do Castelo
Calçando um pé de chinelo
(...)
O jovem Coriolano
A olhar a todo pano
E o resto da malícia
Deixa de ser relatada
Porque foi pela polícia
Censurada170.

O fragmento, através da menção à ―malícia‖, sugere que a censura se referia à


presença de conotações sexuais e apelos sensuais, principalmente. Na peça Zig-Zag, de

169
GARCIA, Miliandre. A censura de costumes no Brasil: da institucionalização da censura teatral no
século XIX à extinção da censura da constituição de 1988. Trabalho apresentado à Coordenação-Geral de
Pesquisa e Editoração-CGPE como parte dos requisitos necessários à conclusão da bolsa de pesquisador
do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa da Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 2009.
Disponível em: <http://www.bn.br/portal/arquivos/pdf/miliandreGarcia.pdf>. Acessado em: 10 de
setembro de 2011, p. 7 - 8
170
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís. Cangote Cheiroso (1927). 2ª DAP, cx. 51, n. 1201.
60

Bastos Tigre, apresentada em 1926, no Teatro Glória, a censura é abordada pelo mesmo
viés, mas o autor a associa a aspectos relativos à moda:
Deodoro – Em todo caso, pretendemos fazer uma reclamação em regra à
Escola de Belas Artes e ao Instituto Histórico. O sr. quer acompanhar-nos?
Espírito – Com todo o gosto, mas creio que não adianta nada. Isso hoje é com
a Censura Policial, ela que legisla sobre as pernas de fora.
Benjamin – Não era essa a república dos meus sonhos.
Espírito – Entretanto, posso fazer melhor. Mostro-lhes os últimos figurinos
para homens, os senhores vestem-se de acordo com eles e voltam para seus
lugares lá no cocuruto da Soberania Nacional171.

O trecho acima faz parte do quadro já apresentado neste capítulo. Porém, cabe
observar que as falas dos personagens são justamente relativas aos trajes. Deodoro da
Fonseca e Benjamin Constant vestem em cena uma roupa em estilo romano e querem
reclamar sobre isso. O Espírito Moderno afirma que quem cuida do figurino dos
personagens é a polícia, através da censura das ―pernas de fora‖. Esse termo transmite,
claramente, a idéia de que a censura se voltava, principalmente, para a presença de
conotação sexual e apelos sensuais.
Portanto, podemos observar que, em ambos os textos, a censura é retratada com
relação aos aspectos morais, ou seja, censurava-se aquilo que pudesse ferir os bons
costumes da família tradicional brasileira. Assim, temas relativos a sexo, desejos
carnais, gravidez e etc. eram frequentemente censurados. Por isso as revistas, nesse
período, abusavam do duplo sentido, disfarçando as referências, conquistando o cômico
e, ao mesmo tempo, a aprovação dos censores.

171
TIGRE, Bastos. Zig-Zag (1926). 2ª DAP, cx. 37, n. 785.
61

Quadro II: A cidade do Rio de Janeiro: cenário em movimento

172
É a capital, em suma, a grande protagonista da revista .

A cidade do Rio de Janeiro era a arena principal em que os temas do teatro de


revista eram tratados. Ela se constituía como um protagonista-cenário que, ao se
modificar, incitava alterações nas temáticas e na forma como o teatro era realizado,
como observamos anteriormente. A compreensão da produção do teatro de revista no
início do século XX demanda certo entendimento sobre as mudanças urbanas, políticas
e socioeconômicas ocorridas na capital brasileira. Portanto, tentaremos traçar, por meio
dos indicativos das revistas, o cenário que estava em constante modificação.
Cabe ressaltar que esse cenário se alterava não apenas por razões externas ao
teatro, mas o próprio teatro provocava mudanças sociais, principalmente no que diz
respeito aos costumes, à moda e ao pensamento. Buscaremos entender, tanto neste
capítulo como no restante da dissertação, a importância do teatro para a alteração nas
formas de pensamento na sociedade carioca.

Cena 1: Transformações urbanas e sociais no Rio de Janeiro

Em fins do século XIX e no início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro


passou por uma série de mudanças urbanísticas. Maurício de Abreu as atrela à entrada
de capitais tanto nacionais quanto estrangeiros. Segundo ele, a provisão de serviços
públicos como calçamento, iluminação a gás e rede de esgoto ocorreu a partir da
concessão do Governo Imperial a iniciativas privadas, como a de Mauá, e a empresas
inglesas173. A partir da provisão desses serviços, a cidade do Rio de Janeiro passou a
abrigar maior número de fábricas, incorporando-se num processo de industrialização,
ainda precário, mas com capacidade de provocar continuidade nas mudanças urbanas.
O capital privado também investiu no serviço de transporte, como bondes e
trens. Com a implantação das primeiras linhas de bondes, em 1868, a malha urbana

172
SUSSEKIND, Flora. As revistas de ano e a intervenção do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira: Fundação Rui Barbosa, 1986, p. 39.
173
ABREU, Maurício de. op.cit., 1987a, p. 41-42.
62

sofreu forte expansão, uma vez que este tipo de transporte permitiu maior mobilidade
tanto da classe trabalhadora quanto da elite. A necessidade de transportes mais
eficientes estava relacionada às crescentes dificuldades de moradia na região central,
explicadas, em parte, pelo inchaço populacional decorrente da abolição e de correntes
migratórias oriundas de outras partes do Brasil e de países estrangeiros. Todo este
processo, como se sabe, incitou o deslocamento da população pobre para arrabaldes
mais distantes, possibilitando a formação do subúrbio. Já as elites se beneficiaram dos
meios de transporte para se locomoverem para regiões mais afastadas, dando início ao
processo de urbanização da Zona Sul.
Embora o tráfego ferroviário tivesse permitido uma desconcentração urbana, o
centro da cidade ainda era o principal local de moradia das classes mais baixas.
Segundo Abreu, o centro garantia formas de sobrevivência, seja através do comércio
ambulante, seja em função da facilidade de acesso às fábricas174. Portanto, grande parte
dos imigrantes, ex escravos e demais trabalhadores continuaram na região central,
agravando assim o problema habitacional, pois a oferta de imóveis era baixa e o preço
dos aluguéis era alto. Assim, modos precários de habitação, como cortiços, casas de
cômodo e outros, eram comuns na região central do Rio de Janeiro na virada do século
XIX para o XX.
Desse modo, o processo de desenvolvimento industrial na cidade ocorria de
forma contraditória. Ao mesmo tempo em que se iniciava a modernização das estruturas
urbanas mais adequadas ao capitalismo, a questão habitacional ainda constituía um
grande problema. Além disso, as relações de trabalho assalariado eram dificultadas
pelas diversas epidemias que assolavam a cidade, dizimando parte da mão-de-obra175.
Com o objetivo de modificar tal situação e resolver as contradições, o início do
século XX é marcado por uma participação mais ativa do Estado no processo de
urbanização. A primeira grande remodelação urbana foi a empreendida por Pereira
Passos, engenheiro que se tornou prefeito da cidade do Rio de Janeiro em 1902. Esta
tinha por proposta modernizar a capital brasileira e tornar o Rio símbolo da civilização
do Brasil. Assim, ela foi baseada num tripé, que consistia em higienizar, embelezar e
civilizar.
A civilização da cidade estava atrelada à pavimentação de ruas, à construção de
calçadas, ao alargamento de ruas, à abertura de túneis, à construção de avenidas e etc.

174
ABREU, Maurício. op. cit., 1987b, p. 13.
175
Ibidem, p. 14.
63

Entre as obras empreendidas, podemos citar: a construção da atual Avenida Rodrigues


Alves, que comunicava os bairros da Zona Norte até a praça Mauá; a atual Avenida
Francisco Bicalho, que se conectava com o Mangue renovado; a construção da Avenida
Beira-Mar, que facilitava o acesso do centro à Zona Sul; a construção da Avenida
Central, que permitia o tráfego entre o porto e o centro da cidade, além de se ligar à
Avenida Beira-Mar.
Dentre as avenidas abertas, a de maior importância foi a Avenida Central. Ela
tornou-se símbolo da civilização, pois além de ser um imenso bulevar, foi cenário para a
construção de diversos prédios públicos, cujas fachadas possuíam forte inspiração nos
modelos que estavam em voga na École des Beaux-Arts de Paris. A escolha da
arquitetura das fachadas foi uma forma de impactar o imaginário popular, tornando a
avenida uma vitrine da civilização176. Dentre os prédios que foram construídos nessa
avenida se destaca o Teatro Municipal, cuja construção foi iniciada na administração de
Pereira Passos. No que diz respeito às obras de embelezamento, se destacam a
arborização de ruas, o melhoramento de jardins públicos e a construção de pavilhões.
De acordo com Needell, as reformas tinham por objetivo não apenas construir,
mas também destruir alguns aspectos ligados ao passado colonial. ―Abraçar a
Civilização significava deixar para trás aquilo que muitos na elite carioca viam como
177
um passado colonial atrasado‖ . Logo, as manifestações culturais foram fortemente
perseguidas. Pereira Passos proibiu a realização do entrudo e dos cordões que não
tivessem autorização, proibiu a venda de alimentos por ambulantes, condenou as
fachadas coloniais que remetiam ao meio rural, proibiu o ato de cuspir no chão dos
bondes, a exposição da carne na porta dos açougues e etc.178.
Além disso, civilizar significava controlar as doenças e tornar a cidade um
exemplo de higienização. A favor disso foram canalizados rios, derrubados quiosques,
proibida a mendicância e demolidas a maioria das casas que se alocavam nas ruas
centrais, expulsando grande parte da população do centro da cidade, ocasionando o seu
deslocamento para os morros próximos (Providência, São Carlos, Santo Antônio e
outros) ou para os subúrbios179.

176
NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do
século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.61.
177
Ibidem, p. 70.
178
VELLOSO, Mônica Pimenta. As tradições populares na Belle Époque Carioca. Rio de Janeiro:
FUNARTE/Instituto Nacional do Folclore, 1998.
179
ABREU, Maurício, op. cit.,1987a, p. 68.
64

Sandra Pesavento destaca que as mudanças urbanas implicaram o


aprofundamento da divisão social, a concentração de recursos e etc. Segundo ela, a
ocupação do espaço urbano reproduzia a assimetria nas relações sociais, impondo
mecanismos de exclusão e discriminação 180. Assim, de acordo com Pesavento, a
cidadania, que era um dos pressupostos básicos da República, era quase inexistente para
grande parte da população, que era pobre e negra.
Nesse contexto, surgem novas contradições. Enquanto o centro e a zona sul se
urbanizavam, o processo de favelização avançava e o subúrbio crescia
desordenadamente. Esse processo se ampliou ao longo dos primeiros anos do século
XX, uma vez que as administrações municipais, após Pereira Passos, continuaram
privilegiando as áreas centrais e a zona sul, o que reforçava cada vez mais a
estratificação espacial.
Essas contradições foram observadas, pelo poder público, na administração de
Prado Júnior. Este, com o objetivo de controlar o processo urbanístico, contratou um
grupo de engenheiros franceses para a elaboração de um plano, que tinha como
responsável Alfred Agache. Os objetivos do chamado Plano Agache eram contornar as
contradições a partir de uma divisão funcional dos espaços públicos, e atribuir à cidade
uma feição de capital moderna com melhoramento tanto na circulação quanto no
zoneamento.
Dentre as propostas presentes no plano, Maurício de Abreu cita a oficialização
da estratificação social no espaço, que ocorreria com a subdivisão de áreas pelas
funções que elas exerciam. Por exemplo, a área central seria dividida em centros –
bancário, de negócios, monumental e etc. – e as áreas residenciais seriam divididas de
acordo com as classes sociais. Porém, o plano apontava que a estratificação por classes
sociais deveria vir acompanhada de políticas urbanas que visassem o melhoramento do
subúrbio e a construção de habitações populares com a infra-estrutura necessária. Além
disso, o plano tinha por meta a erradicação das favelas, após a construção de
―habitações simples e econômicas, porém higiênicas e práticas‖ 181.
As ideias de Agache não foram bem recebidas, tanto pelos profissionais da área,
que o acusaram de plagiar um projeto de arquitetos brasileiros, quanto por pessoas da

180
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O cotidiano da República: elites e povo na virada do século. 1. ed.
Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1990, p. 32.
181
ABREU, Maurício, op. cit.,1987a, p. 90.
65

sociedade civil em geral182. Uma das razões das críticas era que o plano estava
descolado das questões históricas e culturais do Brasil e não incorporava as
necessidades locais. O teatro de revista também se inseriu no debate crítico do plano,
como se pode observar abaixo:

Coro:
Toda a cidade
Se remodela
Vai, na verdade,
Tornar-se bela!
Por toda parte!
Dia a dia
Impera a Arte
Da Engenharia!
A prefeitura
Já por seu lado
Goza a Ventura
do Doutor Prado
E Deus permita
Que ele não relaxe
Não faça fita
Do Senhor Agache!

Artista:
Olhe,
Repare,
Arranha céus aqui, ali!
Em Cascadura, no tal Catumbi183.

A música que abre o segundo ato da revista expõe uma crítica ao plano Agache e
à remodelação proposta por ele. A referência aos arranha-céus aponta para um dos
pontos do plano. Agache defendia que a construção de arranha-céus deveria ocorrer
apenas no centro, como forma de haver uma gradação de tipos e alturas184. A peça,
portanto, critica a ideia de Agache, destacando que no Catumbi e em Cascadura também
poderia haver arranha-céus.
As numerosas críticas e a reviravolta política da ―revolução de 1930‖
influenciaram para que o plano não fosse implantado. Apesar de arquivado, o plano
gerou discussões sobre a urbanização carioca e suscitou uma profissionalização no que

182
O trabalho realizado pelo professor Fernando Diniz Moreira faz uma referência a diversos jornais que
trataram desse assunto. Segundo ele, essa acusação se encontra nos artigos ―O plágio no urbanismo do
Sr. Agache‖ (Revista da Semana, 24 nov. 1928); ―Como se defende o Sr. Agache da acusação de
plagiario. A traição dos arquiivos‖ (O País, 2 dez. 1928). MOREIRA, Fernando Diniz. ―Urbanismo,
modernidade e projeto nacional: reflexões em torno do Plano Agache‖. In: Revista Brasileira de Estudos
Urbanos e Regionais, v.9, n.2, 2007.
183
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso de. É da fuzarca! (1928) 2ª DAP, cx. 59, n. 1.053.
184
MOREIRA, Fernando Diniz, op. cit. p. 12.
66

diz respeito ao planejamento urbano. Para alguns estudiosos, este plano é considerado o
primeiro plano diretor do país185.
Cabe observar que as questões urbanísticas e a sua influência nas questões
sociais estavam na ordem do dia e eram retratadas, frequentemente, pelas revistas,
mesmo não sendo diretamente identificadas. Por exemplo, nas peças observadas há
referências às favelas, seus moradores e suas diferenças em relação à população que
vivia ou passeava nos bairros da zona sul. O ambiente em que os personagens
circulavam era um local em transformação, onde a urbanização e o embelezamento
contrastavam com a desorganização das favelas e o ―caráter rural‖ do subúrbio.
Podemos verificar isso na peça A Mulata, de Marques Porto, de 1924. Nesta, a
abertura do primeiro ato se refere ao bairro de Botafogo, enquanto a abertura do
segundo quadro ocorre no Engenho Velho (freguesia que abarcava os bairros do
Andaraí Pequeno, Andaraí Grande, Tijuca e Aldeia Campista). As diferenças entre estes
dois quadros são diversas. No que diz respeito aos personagens, podemos averiguar que,
em Botafogo, os personagens que estão em cena são: Cocote, Coronel e seu chauffeur,
estes se encontram em um automóvel. Já no Engenho Velho encontramos um
verdureiro, um baleiro e um motorneiro dentro de um bonde. Embora a freguesia do
Engenho Velho não fosse propriamente exclusiva desses segmentos sociais, esta região
abrigava um grande contingente populacional de operários e vendedores. Na Aldeia
Campista, por exemplo, havia uma vila operária da Fábrica de Tecidos Confiança. Essa
fábrica foi mencionada em música de Noel Rosa, no início dos anos 1930:

Quando o apito da fábrica de tecidos


Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
(...)
Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto ao piano
Estes versos pra você186

Assim, nas cenas, a associação entre diferenciação social e espaço físico não
fica explícita, mas podemos subentendê-la, ao observarmos as características dos
personagens e dos meios de transporte utilizados por eles. .
185
Como entendido por Daniel Valter de Almeida. ―Plano Agache: a cidade do Rio de Janeiro como palco
do 1º plano diretor do país e a consolidação do urbanismo no Brasil‖. In: Anais do X Encontro de
Geógrafos da América Latina. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005, p.461-482. Disponível em:
observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal10/Geografiasocioeconomica/Geografiaurbana/02.pdf
Acesso em: 1dez. 2012.
186
ROSA, Noel. Três apitos. Disponível em: <http://letras.mus.br/noel-rosa-musicas/299248/>. Acesso
em: 02 de janeiro de 2013.
67

Cena 2: Rio de Janeiro capital: “cidadania teatral” e conjuntura política na


década de 20

O teatro de revista abordou assuntos referentes à política, convidando amplos


setores da população a acompanharem, nos palcos, debates políticos nacionais.
Revistógrafos, artistas e público tinham a oportunidade de exercer, através do teatro,
formas alternativas de exercício da cidadania, em uma sociedade marcada pela exclusão
de grande parte da população dos mecanismos e espaços institucionais de participação
política.
Isso não era, aliás, uma novidade. Andrea Marzano e Martha Abreu nos
permitem refletir a respeito através da análise da trajetória de dois artistas: Francisco
Corrêa Vasques (1839-1892) e Eduardo das Neves (1874-1919). As autoras
demonstram como alguns brasileiros expressaram reivindicações mesmo em uma
sociedade onde grande parte da população era marginalizada. Marzano e Abreu
destacam que peças teatrais, assim como músicas, referiam-se direta ou indiretamente a
assuntos políticos e eram canais de participação política de uma expressiva parte da
população:
Eduardo das Neves, através de seus versos ora muito sérios, ora irreverentes,
revelava e representava uma forma, aliás muito pouco estudada, de
―experimentar a política‖ e de discutir a presença e os direitos dos
afrodescendentes. A música popular, especialmente os lundus, como uma
cultura política, foi um canal de expressão e de comunicação para muitos
segmentos da população. O mundo da política transbordava nas canções
populares187.

Nesse sentido, podemos supor que o teatro de revista tenha ocupado diversos
papéis. Além de divertir as plateias e expressar opiniões e projetos de seus autores, as
revistas apresentavam diferentes ideias sobre os assuntos em voga, ―atualizavam‖ o
público, davam voz aos seus componentes – que podiam pertencer a camadas sociais
diversas – e convidavam, enfim, ao debate político. E tudo isso de forma cômica,
informal e, por isso mesmo, atraente para os segmentos pouco acostumados à sisudez da
política institucional.
As formas alternativas de exercício de cidadania não eram restritas,
evidentemente, ao espaço das casas de espetáculos. Em relação aos espaços físicos onde
amplos segmentos poderiam exercer formas alternativas de cidadania, desde o início do

187
ABREU, Martha; MARZANO, Andrea. ―Entre palcos e músicas: caminhos de cidadania no início da
República‖. In: CARVALHO. José Murilo e NEVES, Lúcia (orgs.). Repensando o Brasil do Oitocentos.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
68

século XX, podemos citar o bairro da Cidade Nova, que alocou uma vasta população
negra deslocada do bairro da Saúde. Foi neste local e, mais precisamente, na Praça
Onze, que a cultura popular urbana de sambistas, chorões e batuques, se enraizou188.
Mônica Pimenta Velloso189 destaca a Casa da Tia Ciata (1854-1924), localizada
na Praça Onze, como um dos locais de resistência das tradições populares. Nascida na
Bahia, mãe de santo, a Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida) realizava em sua casa
festas, encontros religiosos e musicais. Ela e sua casa eram um referencial para a
comunidade negra e para a cultura popular, ―(...) em sua casa começava a se reunir um
grupo que seria importante para a formação daquilo que conhecemos hoje como samba
urbano e para a difusão do choro‖ 190.
Segundo Velloso, a casa da Tia Ciata tornou-se um lugar de resistência também
pelo fato de que o controle policial pouco alcançava aquele local. Casada com um
funcionário do gabinete do chefe de polícia, Tia Ciata conseguia contornar as investidas
policiais. Assim, apesar do controle policial, alguns espaços e festas, gradativamente,
foram sendo apropriados por diversos segmentos da sociedade. José Geraldo Vinci de
Moraes afirma que, com o tempo, as festas na casa da Tia Ciata foram abarcando uma
parte da classe média do Rio de Janeiro191.
Outro espaço que aos poucos passou a ser apropriado por diferentes segmentos
sociais foi a festa da Penha. José Murilo de Carvalho destaca que a festa portuguesa da
Penha ―aos poucos [foi] sendo tomada por negros e por toda a população do subúrbio,
192
fazendo-os ouvir o samba ao lado dos fados e das modinhas‖ . Portanto, no início do
século XX, a festa da Penha se transformou em uma das principais festas populares.
Houve uma grande apropriação desse ambiente pela ―cultura negra‖, com músicas,
danças, comidas e etc.
Portanto, foi nesses espaços que grande parte da população (negros, mestiços e
pobres) se inseria numa sociedade cada vez mais fragmentada e diferenciada, e era
nesses lugares que eles afirmavam a sua cultura. Como resultado desse esforço de
afirmação cultural, muitos revistógrafos definiram a cultura brasileira valorizando essa
cultura negra e popular. Assim, o processo de construção da identidade dos grupos

188
MORAES, José Geraldo Vinci. Cidade e cultura urbana na Primeira República. São Paulo: Editora
Atual, 2001, p. 75.
189
VELLOSO, Monica Pimenta, op. cit., 1988, p. 14.
190
MORAES, José Geraldo Vinci, op. cit., 2001, p. 77.
191
Ibidem, p. 77.
192
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.41.
69

marginalizados era retratado, nas peças analisadas, como parte essencial do ―caráter
brasileiro‖. Analisaremos mais adiante como as festas populares e suas formas de
integração social foram abordadas pelas revistas e como esses contextos foram inseridos
nos discursos sobre a construção de identidade nacional.
No que diz respeito à abordagem de temas políticos, nas revistas, estes poderiam
estar relacionados à grande efervescência política do período. Na década de 1920, o
sistema político adotado na Primeira República começa a apresentar sinais de
desequilíbrio. Além disso, a economia cafeeira se encontrava em declínio devido ao
aumento da concorrência, à queda dos preços e à insistência da superprodução e
valorização do café.
O processo eleitoral da Primeira República era marcado pelo revezamento entre
os candidatos do Partido Republicano Paulista e do Partido Republicano Mineiro. Nos
anos de 1921-1922, as contradições do sistema político são sentidas com mais clareza
no processo de sucessão presidencial. Os grupos dominantes de Minas e São Paulo
lançaram o nome do governador mineiro, Arthur Bernardes, como candidato da
situação. Porém, a candidatura oficial foi contestada pelas oligarquias dos estados Rio
de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul que organizaram um movimento
que ficaria conhecido como Reação Republicana, lançando a candidatura de Nilo
Peçanha.
A Reação Republicana pode ser explicada pela insatisfação com a política de
desvalorização cambial e o endividamento externo a fim de manter a valorização do
café, refletindo os interesses opostos no campo econômico entre as oligarquias dos
estados, como destaca Boris Fausto 193. Marieta de Moraes Ferreira ressalta a busca por
maior participação no sistema federalista, o que não representa que as oligarquias dos
estados dissidentes fossem contra o modelo oligárquico, mas que eles buscavam uma
distribuição mais igualitária dos poderes atribuídos a alguns estados 194.
A campanha da Reação Republicana teve um amplo apoio das camadas médias
urbanas de algumas capitais, principalmente do Rio de Janeiro. Além disso, os militares
que se encontravam descontentes com a política vigente na Primeira República se
tornaram fortes aliados. Ferreira e Pinto afirmam que o que contribuiu para a
aproximação dos dissidentes com os militares foram as chamadas ―cartas falsas‖

193
FAUSTO, Boris. A revolução de 1930: historiografia e história. 3. ed. São Paulo:Brasiliense, 1975.
194
FERREIRA, Marieta de Moraes. ―A reação republicana e a crise dos anos 20‖. In: Estudos Históricos,.
Rio de Janeiro, v.6, n.11, 1993, p.9-23.
70

publicadas na imprensa, supostamente enviadas por Arthur Bernardes com afirmações


desrespeitosas aos militares195.
Apesar do apoio dos militares e das camadas médias urbanas a Nilo Peçanha,
Arthur Bernardes vence as eleições em março de 1922, causando fortes reações. Uma
das principais foi a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana. Os militares de níveis
médios – tenentes e capitães – organizaram um motim que tinha por objetivo tomar o
controle das principais guarnições do exército no Rio de Janeiro, com o fim de
pressionar a anulação das eleições de 1922. A tentativa da revolta, porém, fracassou.
Não houve apoio de segmentos militares expressivos e nem das oligarquias dissidentes.
Apenas 17 militares e 1 civil enfrentaram as tropas reunidas pelo Ministério da Guerra.
Dos 18 combatentes, apenas 2 sobreviveram. Apesar da revolta não ter sido bem
sucedida, ela impulsionou o movimento tenentista, que ganhou apoio de diversas
camadas. O tenentismo tinha por objetivo derrubar as oligarquias, limitar a autonomia
local, unificar a justiça e o sistema de ensino e etc196.
Nas revistas analisadas, encontramos referências tanto à insatisfação em relação
a Arthur Bernardes quanto à revolta dos 18 do Forte de Copacabana. Na revista Não
quero saber mais dela, de Marques Porto, Bittencourt e Luís Peixoto, de 1927, os
autores fazem referência ao governo de Bernardes, que perdurou até 1926. Na cena, o
personagem Bernardo quer entrar para uma companhia teatral e pede ajuda a Estrella.
Porém, Estrella (estrela da companhia) afirma que é impossível empregá-lo, alegando
que ele está muito batido e que não traria nenhum prestígio para o grupo. Ela diz, ainda:
ESTRELLA – Sabe de uma coisa? Abandona essa ideia de teatro e volta à
vida política, seu Bernardo.
BERNARDO – Na vida política eu passo...
ESTRELLA – Por quê?
BERNARDO – Não quero saber mais dela
ESTRELLA – Santa Cruz, Fontoura e outros
Como vai essa panela?
BERNARDO – Não quero saber mais dela (bis)
ESTRELLA – E a tua capangada,
Que mora na Favela
BERNARDO – Não quero saber mais dela (bis)
(...)
ESTRELLA – E a lavagem que levaste
Da tal imprensa amarela?
BERNARDO – Não quero saber mais dela. (Bis)197

195
FERREIRA, Marieta de Moraes; PINTO, Surama Conde Sá. A Crise dos anos 20 e a Revolução de
Trinta. Rio de Janeiro: CPDOC, 2003, p. 397.
196
Idem, p.400.
197
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís; BITTENCOURT, Carlos. Não quero saber mais dela (1927). 2ª
DAP, cx. 48, n. 1132.
71

Percebemos, pelo fragmento acima, que Bernardo é um personagem-caricatura


de Arthur Bernardes. Essa referência pode ser compreendida por alguns ensejos, como
por exemplo, a menção a Fontoura. Marechal Fontoura foi o chefe de polícia do
governo de Bernardes. Este era o cargo máximo da segurança pública da capital federal
e, dentre as suas atribuições, estava a censura à imprensa, em um período em que o país
se encontrava sob estado de sítio. Talvez por isso a peça fizesse referência à imprensa.
Cabe observar, ainda, que a menção a este setor podia estar associada aos comentários
sobre as supostas cartas escritas por Bernardes, que foram divulgadas pela imprensa em
1921 e que continham acusações ao Exército. Um dos fatores para a Revolta do Forte de
Copacabana foi exatamente o episódio das ―cartas falsas‖.
Observa-se também, na revista, o fato de Bernardo / Bernardes pretender se
manter afastado da política, o que poderia exprimir o desejo de parte da população
carioca, especialmente dos que apoiavam o movimento tenentista. O próprio nome da
revista pode ser interpretado como uma alusão ao suposto desejo de Bernardes de se
afastar da política. Ou, alternativamente, pode ser entendido como uma referência à
rejeição, por parte da população, à política de Arthur Bernardes.
Outra revista que faz menção à política e exalta o tenentismo e, especialmente, o
movimento do Forte de Copacabana é Cangote Cheiroso, de Marques Porto e Luís
Peixoto. A peça inicia-se com Maluco falando com grande convicção:
MALUCO – Respeitável público! Eu sou o cartão de visitas da parceria
Marques Porto Luiz Peixoto! Antes de começar a revista eu quero me
congratular com as autoridades constituídas do País que já permitem o direito
absoluto de critica e de opinião! É o que vamos ver no decorrer dos dois atos
de Cangote Cheiroso:
1 quadro! Os heróis de Copacabana! A epopéia dos dezoito bravos, símbolos
de amor à Pátria, apóstolos da liberdade e da verdadeira doutrina de 15 de
novembro de 1889!
2 quadro! Prestes, o general de 30 anos, ídolo da mocidade que sonha uma
republica sem perseguições e uma pátria livre! Viva o general Luiz Carlos
Prestes!198.

Após esta fala, alguns populares o aplaudem, porém a enfermeira diz que ele é
louco. Posteriormente, entra a commère dizendo que o início da revista estava
entusiasmando-a, mas compère afirma que só um louco poderia dizer tais coisas.
Portanto, as palavras de Maluco podiam ser lidas como uma denúncia de que, na vida
real, o Brasil não era uma pátria livre, com direito de crítica e opinião. Nessa revista, há

198
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís. Cangote Cheiroso (1927). 2ª DAP, cx. 51, n. 1201.
72

claramente uma crítica ao governo de Bernardes, à censura e uma exaltação ao


tenentismo e a Prestes.
O movimento tenentista organizou-se e em 1924, com o objetivo de derrubar o
governo de Arthur Bernardes, instalando-se na capital paulista e enfrentando forte
repressão. Como afirmam Ferreira e Pinto, o momento culminante das revoltas
tenentistas foi a Coluna Miguel Costa-Luís Carlos Prestes que, formada em 1925,
percorreu 13 estados e 1.500 quilômetros, buscando a adesão da sociedade para a
realização de uma revolução. Depois de dois anos e meio enfrentado tropas do governo,
a coluna se dissolveu sem conseguir realizar uma revolução no Brasil.
Além do movimento tenentista, os anos 1920 foram marcados também pelos
movimentos operários. Nesse período eclodiram greves em diversas cidades. No Rio de
Janeiro, a greve da Leopoldina Railway, em 1920, se destaca como a maior paralisação
que o Distrito Federal tinha vivido até então. A greve, iniciada em 15 de março daquele
ano pelos ferroviários, teve apoio de diversas associações, causando um cenário de
estado de greve geral. Como forma de conter os movimentos contrários ao sistema
político vigente, ocorreu um aprofundamento no controle policial. Foi criada, em 1922,
a 4ª Delegacia Auxiliar de Polícia, que tinha por objetivo restringir comportamentos
políticos que pudessem comprometer a ordem e a segurança pública.
O governo posterior ao de Arthur Bernardes foi relativamente mais tranquilo.
Washington Luís assumiu em 15 de novembro de 1926 pelo Partido Republicano
Paulista (PRP). Seu governo foi marcado por políticas que favoreciam tanto o sistema
agro-exportador quanto a indústria nacional, o que contribuiu para propiciar certa
estabilidade política. Para conter as possíveis revoltas, Washington Luís criou o
Conselho de Defesa Nacional, em 1927, com o objetivo de ser um órgão de inteligência
e segurança nacional. Além disso, promulgou a lei Celerada, que atribuía ao executivo o
direito de intervir nos sindicatos e permitia que o governo fechasse quaisquer
instituições que fizessem oposição.
Em 1929, nova crise sucessória é deflagrada. Washigton Luís, ao contrário do
que era esperado, não indicou como seu sucessor um mineiro e sim um paulista – Júlio
Prestes. Isto provocou uma cisão no sistema político que até então vigorava. Nessa nova
conjuntura, os movimentos que até então estavam reprimidos se alastraram. Diferentes
setores da oposição, inclusive líderes políticos dos estados de Minas Gerais e Rio
Grande do Sul, se uniram na chamada Aliança Liberal, que tinha por propósito apoiar as
73

candidaturas de Getúlio Vargas e João Pessoa contra Júlio Prestes. Os conflitos políticos
gerados após a vitória de Júlio Prestes desembocaram na Revolução de 30.
A década de 1920, portanto, foi um período em que o Brasil enfrentou crise em
diversos setores. A sociedade não mais comportava um sistema político baseado na
economia agro-exportadora. O crescimento urbano e industrial era cada vez mais latente
e as questões sociais estavam à flor da pele. Esta conjuntura reflete o desejo de inserir o
Brasil no hall das nações modernas, seja economicamente ou politicamente. E, naquele
contexto, ser uma nação moderna implicava em reconhecer características da
―brasilidade‖. Cabe ressaltar que as mudanças conjunturais tiveram fortes influências
nas formas sociabilização e de entretenimento realizadas no Rio de Janeiro, palco das
mudanças e inquietudes que o Brasil viveu nesse período.
.
74

ATO II: A TRAMA: CONSTRUINDO A IDENTIDADE NACIONAL


PELO TEATRO DE REVISTA

Quadro I: Representações do popular

Cena 1: O malandro, a mulata e as questões raciais no teatro de revista

Neyde Veneziano, ao tratar sobre as características do teatro de revista, aponta


que, por mais que o gênero teatral tenha sofrido diversas mudanças ao longo do tempo,
a estrutura básica deste gênero resistiu. Os componentes básicos desta estrutura foram
designados por ela como convenções199. Uma convenção constante no teatro de revista
era a tipificação dos personagens. Estes representavam uma imagem de caráter geral de
um grupo. Segundo Veneziano, os tipos se diferenciam de indivíduos na medida em que
não possuem um passado, conflitos e, além disso, são ―construídos sobre atitudes
externas‖200, ou seja, enquanto a história e a criação influenciam na forma de ser dos
indivíduos, sobre os tipos há imagens projetadas, vícios e etc.
Leonardo de Mesquita Tavares, em seu artigo A Mulata e sua música no Teatro
de Revista brasileiro, fez uma diferenciação da personagem-tipo para o estereótipo.
Segundo ele, este último apresenta características estampadas e traços comportamentais
evidentes, o que limita as ações das personagens. Já a personagem-tipo opera numa
síntese de características que implica a identificação a um grupo pessoas, mas
possibilita as personagens agirem de diversas formas, não apenas aquelas esperadas pelo
público201.
Segundo Filomena Chiaradia, as peças do início do século XX possuíam uma
forte incidência de três personagens-tipo: o português, a mulata e o malandro. Estes

199
VENEZIANO, Neyde, op.cit., 1991, p. 115-116.
200
Para Veneziano, enquanto podemos saber sobre a infância dos indivíduos, como foram criados, os
poetas que leram e etc., sobre os tipos tem-se imagens projetadas. Por isso a autora afirma que as atitudes
são externas, porque são projeções de seus vícios e ações. VENEZIANO, Neyde, op. cit., p.120.
201
TAVARES. Leonardo de Mesquita. ―A Mulata e sua música no Teatro de Revista brasileiro, entre o
ano de 1890 e a década de 1930: análise de exemplos‖. In: Anais do Congresso da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação (ANPOM), p.108-114. Disponível em:
<http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2008/comunicas/COM349%20-
%20Taveira.pdf> Acesso em: 11 de agosto de 2012.
75

propiciavam aos autores enredos recheados de conflitos e comicidade 202. A atuação


destes tipos reflete a concepção do que era o brasileiro e como ele se configurava para
os autores do teatro de revista. Portanto, estes três personagens-tipo são
importantíssimos na análise da brasilidade constituída no Teatro de Revista.
Dois destes tipos já foram fortemente estudados pela historiografia: o malandro e
a mulata. Portanto, abordarei mais como os estudiosos analisaram esses personagens e
como eles se ―perpetuaram‖ na produção intelectual brasileira. Já a figura do português
é muitas vezes citada pela bibliografia, porém, pouco analisada, o que me instigou a
trabalhar com as suas representações nesta dissertação.
No que diz respeito ao malandro, Fernando Mencarelli aponta que, já nas
revistas de ano, no século XIX, a malandragem se fazia presente em múltiplas revistas.
Segundo o autor, a discussão entre trabalho e ócio estava na ordem do dia no período
anterior à abolição da escravatura203. Por isso, diversas revistas de Arthur Azevedo
abordaram essa temática.
Uma das revistas de Azevedo que traz esse debate é O bilontra, de 1886. A
própria definição de bilontragem refere-se às práticas de ganhar dinheiro fora do
trabalho. A peça apresenta as ações de um jovem – Faustino – que aplica golpes como
forma de ganhar dinheiro fácil e rápido. O personagem é conduzido pela Jogatina, filha
do Ócio, uma personagem encantadora, bonita e jovial. Ela se apresenta da seguinte
forma:
A jogatina eu sou!
Por‘i além contente vou!
A vida eu levo assim,
Que o mundo alegre é para mim.
(...)
Leviana sou, talvez, porém,
Filósofa também!
Quem se prostrar
No meu altar
Será rico e feliz
Fortuna dou,
Benigna sou
Até cos imbecis204.

Após demonstrar seus encantos a Faustino, Jogatina o estimula a escolhê-la ao


invés do Trabalho. Assim, o personagem principal afirma que: ―Decido-me por ti, que

202
CHIARADIA, Filomena, op.cit., 2012, p.156.
203
MENCARELLI, Fernando Antonio, op.cit., 1999, p. 211.
204
AZEVEDO, Arthur. O Bilontra. Apud: MENCARELLI, Fernando op. cit., p. 245-246.
76

és bela!‖. A beleza sucede das atratividades que o jogo acarreta, como o dinheiro
rápido, fácil e etc.
Cabe destacar que, nessa peça, a bilontragem não se restringia apenas ao
personagem principal, mas diversos personagens realizavam ações identificadas com a
bilontragem. Assim, segundo Mencarelli, Azevedo teria destacado que estas práticas
estavam ―disseminadas em diferentes instâncias da sociedade‖ 205.
Em O Tribofe, também de Artur Azevedo, as características apresentadas são
semelhantes às da bilontragem. Segundo a própria peça, o termo tribofe refere-se às
práticas de enganar ou trapacear, sendo usado para caracterizar as ações de diversas
classes sociais. Não apenas o povo realiza tribofes, mas os políticos e as classes mais
altas. Segundo Mencarelli, Azevedo buscou construir a imagem do Rio de Janeiro como
um local onde ―proliferam incontáveis formas de malandragem, como uma imensa
pândega onde bilontras não se cansam de fazer tribofes‖ 206.
Cabe destacar, porém, que em outros textos de Azevedo a bilontragem estava
associada a segmentos sociais mais restritos. Por exemplo, na peça Uma véspera de
Reis, de 1875, o personagem José, quando escravo, tinha se afeiçoado a pequenos
golpes para conseguir dinheiro. ―Ao chegar ao Rio de Janeiro, o encontro com a
capoeiragem teria sido uma forma de desenvolvimento desse traço do personagem‖ 207.
Portanto, para Azevedo, a escravidão e a capoeiragem208 estavam fortemente associados
à bilontragem.
A associação entre malandros e capoeiras foi estudada por diferentes autores.
Umas das autoras que realiza tal relação é Maria Ângela Borges Salvadori . Para
Salvadori, o malandro é uma figura republicana que se torna presente nas diversas
fontes históricas, principalmente a partir de meados da década de 10. De acordo com a

205
MENCARELLI, Fernando op. cit., p. p. 212.
206
Ibidem, p. 213.
207
Ibidem, p. 222.
208
O termo capoeiragem designa a prática da capoeira, ou seja, da luta-dança. Este termo foi utilizado,
também, para caracterizar práticas ligadas à desordem. Ver OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. Pelas ruas da
Bahia: criminalidade e poder no universo dos capoeiras na Salvador republicana (1912-1937).
Dissertação de Mestrado em História Salvador: Universidade Federal da Bahia., 2004, p. 10. Carlos
Eugênio Líbano Soares estuda o universo da capoeira no final do século XIX, no Rio de Janeiro, enquanto
fenômeno social e cultural da cidade. Segundo ele, ―grupos de negros ou homens pobres de todas as
origens, portando facas e navalhas, atravessando as ruas em correrias, ou indivíduos isolados, igualmente
temidos, conhecedores de hábeis golpes de corpo que passaram a tradição como ―capoeira‖, os
―capoeiras‖, como eram chamados, faziam parte integrante da cultura popular de rua de então‖ SOARES,
Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro 1850-1890. Dissertação
de Mestrado em História. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1993, p. 8. Disponível em:
<http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000071836&opt=1> Acesso em: 26 de
setembro de 2012.
77

autora, o malandro tem forte relação com a capoeiragem. O capoeira e o malandro


seriam, assim, dois tipos que se assemelham e se originam do mesmo fato: a busca pela
autonomia do indivíduo, como afirma abaixo:
(...) a capoeira fazia parte de um conjunto de práticas populares que garantia
o viver sobre si e mantinha afastada a ideia do trabalho disciplinado e regular,
associado à escravidão. (...) Assim como os capoeiras, os malandros são
definidos por uma recusa em relação ao trabalho regular e pela prática de
expedientes temporários que garantem a sobrevivência. (...) Da mesma forma
que os capoeiras, que os antecederam, os malandros se defrontam com uma
sociedade ordenada pelo trabalho e os valores que defendem, seus padrões
morais, sua práticas cotidianas, são construídas em grande parte pela
percepção do lugar oferecido aos pobres nesta cidade. 209

A autora faz, portanto, uma associação direta entre os capoeiras e os malandros,


na medida em que ambos se recusariam à submissão ao trabalho regular e buscariam
formas alternativas de sobrevivência. A ideia defendida por Salvadori se assemelha à
concepção de malandro presente no trabalho de DaMatta . Para este autor, o malandro se
forma a partir da recusa de ―transacionar comercialmente com a própria força de
trabalho‖210. Ou seja, ele prefere reter sua força de trabalho para si próprio e flutuar na
estrutura social do que vendê-la. Nesse sentido, tanto capoeiras quanto malandros
constituíam uma espécie de ―cidadania‖ à margem do poder legal, ou seja, à margem
dos valores morais e da sociedade ordenada pelo trabalho.
As imagens construídas por Salvadori e DaMatta sobre o malandro, como aquele
que se opõe ao sistema socialmente construído, tem pontos em comum com as
representações desse personagem nas revistas de ano do final do século XIX e do início
do século XX211. Porém, essas imagens ganham conotações diferentes ao longo do
tempo. Por exemplo, nas peças de Azevedo a malandragem, na maioria das vezes, era
vista com maus olhos, uma vez que ela estava intimamente ligada à negação ao
trabalho. Cabe destacar que a perspectiva de Azevedo se aproximava das ideias da

209
SALVADORI, Maria Ângela Borges. Capoeiras e malandros: pedaços de uma sonora tradição
popular. Dissertação de Mestrado em História. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1990, p.
170.
210
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro.
6.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 290.
211
Apesar da existência de diferentes visões sobre o malandro ao longo do século XIX e XX – algumas
das quais retrataremos mais à frente – o personagem manteve características ligadas ao seu princípio
básico. Dentre os elementos mantidos estão a tendência natural ao ócio e à trapaça. Esses aspectos estão
presentes em todas as construções sobre o malandro no Brasil, sejam elas de antropólogos e sociólogos,
sejam de autores de teatro, revista e até mesmo de Chico Buarque. Gomes ressalta a permanência desses
elementos em sua dissertação: GOMES, Tiago Melo. Lenço no pescoço: o malandro no teatro de revista
e na música popular: “nacional”, “popular” e cultura de massas nos anos 1920. Dissertação de
Mestrado em História. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1998, p. 91.
78

chamada geração de 1870212, favoráveis à aceleração da atividade econômica, à


liberação comercial e à democratização 213. Assim, os literatos daquela geração
incorporaram muitos dos ideais europeus para pregar reformas abolicionistas e
republicanas defendendo, acima de tudo, o trabalho livre e assalariado.
Azevedo, convivendo com estes ideais, transportou-os para muitas de suas
peças. Por exemplo, na revista Viagem ao Parnaso, de 1891, verifica-se o louvor ao
trabalho. A peça transmite a exaltação ao trabalho em diversos personagens, desde
mendigos que reconhecem no trabalho uma forma de regeneração, até o intendente da
polícia. Segundo o canto entoado por esse último personagem, qualquer pessoa que não
tivesse uma profissão era considerada perigosa.

Não é bom que a sociedade


Veja impune um vagabundo!
Não posso limpar o mundo,
Porém limpo essa cidade!

Sem profissão decorosa


Ninguém devo tolerar,
E mando catrafilar
Toda gente perigosa!
Muita gente está zangada,
Pelas costas me quer ver;
Mas, confessa a gente honrada,
Sei cumprir o meu dever!

Sujeito que não trabalha,


Parasita ou ratoneiro,
Manejador de navalha,
Beberrão ou desordeiro...
Devem ser todos punidos,
E deles não tenho dó!214

Se levarmos em conta o teatro de revista como uma manifestação artística em


que diferentes ideias confluíam no espetáculo, a representação acima não
necessariamente era uma opinião do autor. Porém, mesmo que não seja a expressão das

212
O movimento intelectual da geração de 1870 foi lançado na faculdade de Direito de Recife, tendo
Tobias Barreto e Silvio Romero como seus principais mentores. Eles contestaram a teoria do direito
natural, provinda de um pensamento religioso, e passaram a adotar uma perspectiva histórica e evolutiva.
Esta geração era composta por grupos heterogêneos que abarcavam, entre outros, mulatos abolicionistas
como André Rebouças, membros das classes médias, da burguesia em formação e da própria elite
aristocrática, a qual não possuía maiores vínculos com o poder imperial. Porém, o que possibilita integrá-
los numa mesma geração literária é ―a perspectiva crítica ante o status quo da sociedade imperial, sua
situação de relativa marginalização em face do núcleo de poder constituído.‖ KUGELMAS, Eduardo.
―Revisitando a geração de 1870‖. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.18, n.52, jun.
2003.
213
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira
república. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 97.
214
AZEVEDO, Arthur. Viagem ao Parnaso. Apud: MENCARELLI, Fernando, op. cit., 1999, p.228-229.
79

ideias do autor, apesar de sua aproximação com a geração de 1870215, ela transmite um
pensamento que existiu e que se traduziu na perseguição policial aos ―vadios‖, cada vez
mais frequentes na cidade do Rio de Janeiro na virada do século 216. Isso pode ser
analisado quando se observa o código criminal de 1890. No livro III, das contravenções
em espécie, há referências ao jogo, à mendicância, à capoeiragem e à vadiagem, entre
outras práticas passíveis de punição. Por exemplo, o capítulo XIII, dos vadios e
capoeiras, determina a prisão por 15 a 30 dias para aqueles que:

Art. 399. Deixar de exercitar profissão, oficio, ou qualquer mister em que


ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicilio certo em que
habite; prover a subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou
manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes 217.

Este mesmo capítulo define as penas para a capoeiragem, demonstrando uma


aproximação no entendimento em relação aos vadios e capoeiras. O código determinava
que:
Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza
corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com
armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando
tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo
temor de algum mal:
Pena – de prisão cellular por dois a seis meses.
Parágrafo único. É considerado circunstância agravante pertencer o capoeira
a alguma banda ou malta.
Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro218.

Podemos verificar que o capoeira estava associado à vadiagem, porém, a


capoeiragem era um agravante, uma vez que a pena para os capoeiras era mais pesada
do que para os vadios, como definido no código. As referidas penas no código criminal
implicavam numa perseguição policial ampla aos indivíduos que realizavam
mendicância, capoeiragem e vadiagem.
Cabe observar que, apesar da revista apontar para uma visão favorável ao código
criminal, podemos supor que as plateias, dado o caráter polissêmico das revistas, e
considerando-se o público extremamente diversificado, podiam se dividir entre os que

215
Apresento na minha monografia de conclusão do curso de história da UNIRIO esta aproximação entre
Artur Azevedo e a Geração de 1870. AGUIAR, Mariana de Araujo. A peça Fritzmac como
representação da sociedade carioca: construção de imaginários sobre a questão habitacional e
abolicionista. Monografia de graduação em história. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
2010.
216
Bretas se dedicou a analisar as perseguições policiais e as razões para tal. Ver: BRETAS, Marcos Luiz.
A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
217
BRASIL, Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, que promulga o Código Penal. Disponível em:
<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049>. Acesso em: 5 de dezembro
de 2012.
218
Ibidem.
80

se identificavam com o personagem intendente de polícia e os que simpatizavam com os


que eram perseguidos por ele.
Segundo Gomes, a formatação que o malandro assume nas peças de Azevedo é
bastante diferente das revistas cariocas das décadas de 1920, 30 e 40. Enquanto nas
revistas de ano o malandro expressava ―o que havia de pior no país‖ 219, nas revistas da
década de 20 esse personagem começa a se configurar como um dos símbolos do caráter
do brasileiro.
A mudança na representação do malandro está associada às alterações na própria
noção de nação e no contexto sociocultural do período, com a deflagração da I Guerra
Mundial e a crise do modelo da Belle Époque, a construção da nação como forma de se
afirmar frente aos outros estados nacionais e etc. Abordaremos posteriormente, com
maior ênfase, esse contexto.
Na década de 30, a figura do malandro se afirmou mais claramente enquanto
representante do caráter brasileiro, por isso grande parte dos trabalhos acadêmicos
publicados sobre esta imagem têm a década de 30 ou períodos posteriores como recorte
cronológico. Cabe destacar que, apesar desse personagem ser visto em diversos
períodos, o malandro corporifica significados diferentes em cada momento histórico,
tornando-se ―uma interessante maneira de perceber, em meio a uma série de
continuidades formais, os diferentes sentidos presentes nas autorrepresentações da
nação ao longo do tempo‖ 220.
Nas revistas da década de 1920, uma das ideias atreladas ao malandro é a de um
sujeito bem humorado que gosta de batucada, samba, jogo do bicho, além, é claro, das
trapaças. A despreocupação com ―coisas sérias‖, dentre elas o trabalho, é também uma
constante no teatro de revista da década de 1920. Segundo o estudo de Tiago de Mello
Gomes, a associação entre o malandro e o gosto pela diversão se torna fortemente
presente a partir da revista carnavalesca Gato, Baeta e Carapicú (1920), de Cardoso de
Menezes. Esta revista, juntamente com a burleta Forrobodó (1912), de Carlos
Bittencourt e Luís Peixoto, inaugura toda uma maneira de se fazer teatro de revista
predominante na década de 20. Dentre as características enunciadas nessas peças,
podemos citar: a vigência de tipos como o malandro e a mulata, que de certa forma

219
GOMES, Tiago de Melo, op.cit., 1998, p. 50.
220
GOMES, Tiago de Melo. ―Formas e sentidos da identidade nacional: o malandro na cultura de massas
(1884-1929)‖. Revista de História, São Paulo, v. 141, 1999, p.71.
81

simbolizavam a falência de um modo de pensar o Brasil pela via do branqueamento221; a


imagem da capital federal como uma cidade carnavalesca; a alegria e o bom humor, que
possibilitavam ao carioca sair dos problemas vigentes, surgindo, assim, a ideia do
―jeitinho carioca‖; a positivação do popular, trazendo para a cena sua cultura, seus
gostos e seus hábitos.
A revista Gato, Baeta e Carapicú (1920) tem como personagem principal o
Carioca. Este é tratado como aquele que se preocupa unicamente com o Carnaval.
Gomes aponta que, apesar de as revistas de Azevedo, como O tribofe, considerarem o
povo carioca como amante do divertimento, nelas há uma ideia de atraso relacionado a
esse aspecto. Já na peça de Menezes, há uma ideia de que ―o Brasil é um país invejável,
onde os problemas são superados com alegria e bom humor‖222.
Revistas carnavalescas seguiram a mesma linha da Gato, Baeta e Carapicú. Na
revista Réco-Réco, de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, estreada em 12 de
janeiro de 1921, o tipo malandro apresenta como característica não apenas o gosto pelo
carnaval, mas o gosto em trapacear. Jóca (típico malandro) e Flor (mulata) tentam
conseguir 300$000 réis para comprar o resto das fantasias para o rancho Rosa Branca.
Por ser amante do carnaval, Jóca engana a portuguesa Rosália com o objetivo de salvar
seu rancho.
ROSÁLIA – Se eu soubesse dançar entrava para sócia da Rosa Encarnada
JÓCA (aparte) – ô ideia luminosa! Quem sabe se a portuguesa não tem o
dinheiro? (alto a ela) Vou lhe propor para sócia. A questão é que a jóia de
entrada é muito cara...
ROSÁLIA – Quanto é?
JÓCA (aparte) – Agora que ela vai ter um ataque (alto a ela) Trezentos mil
réis...
ROSÁLIA – Trezentos mil réis?!Livra!
JÓCA – Ah! Mas dá direito a muita coisa. Por exemplo, o sócio ou a sócia,
que morrer no Carnaval, tem direito a enterro de terceira classe, com
bandeira a meio pau na sede do rancho...
ROSALIA – Ainda se fosse uns cem mil réis...
JÓCA (aparte) – Vou pegar os cem....(alto a ela) Minha filha: você entra
com os cem, que eu compareço com o resto223.

Jóca arquiteta um plano, rapidamente, para conseguir o dinheiro, enganando a


portuguesa. Fica claro, na parte transcrita acima, o ―jeitinho‖ como forma de solucionar
o problema do rancho. Portanto, a peça congrega a ideia de ―jeitinho‖ e trapaça àquele
que é visto como a grande preocupação do carioca: o carnaval.

221
GOMES, Tiago de Melo, op. cit.,1998, p. 58-59. Abordarei este tema mais adiante, quando tratarei das
representações da mulata.
222
GOMES, Tiago de Melo op. cit.,1998, p.56.
223
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Réco-Réco (1921). 2ª DAP, n.195, cx: 11 p. 12-13.
82

A imagem do malandro como bem humorado, amante das festas populares, não
estava presente apenas nas revistas carnavalescas. Dentre as peças que corporificam
essa imagem do malandro se encontra a revista É da fuzarca, de Bittencourt e Menezes,
datada de 1928. Segundo aponta Gomes, os autores demonstram com clareza como o
povo brasileiro encara as festas populares. O personagem Zé Povo, ao apontar as
vantagens da malandragem, exclama que a cidade do Rio de Janeiro é ótima de
morar224. Essa afirmação incita a personagem Lei a questioná-lo. O conteúdo da
pergunta não se refere a oportunidades de ascensão social, mas sim à presença da Festa
da Penha – , como se observa abaixo:
Zé (alegre) – Viva a felicidade! Viva quem me atirou no mundo, a
excelentíssima senhora minha mãe! (pausa e sorri) Como eu sou feliz!
(noutro tom) Almocei, esplendidamente, no jardim do palacete do Conde
Pereira Carneiro, onde tenho uma pensão gratuita... é só bater no portão e lá
vem a comidinha do pobre! (pausa) Pobre? Rico é o que eu sou! Os ricos
compram automóveis; eu, de graça eu vejo passar, e, quando quero dar um
passeio, já sabe: armo um tempo quente, vem a viúva alegre, e lá vou eu,
sereno e tranquilamente, descansar dessa agitação da cidade na pensão Meira
Lima! (...) Ah, como eu sou feliz!
LEI – Olá Zé Povo, alegre e satisfeito? Já sei: é a festa da Penha! 225

Observa-se acima que a personagem Lei fortalece a imagem do Zé como


aquele que só se preocupa com festa e diversão. Se a Lei é apresentada como antítese do
malandro, este último, que vive à margem das regras, é apresentado não apenas como
Zé, mas Zé Povo, representando, assim, o brasileiro. Bittencourt e Menezes transmitem
uma imagem que, entre várias outras, fazia parte dos debates da sociedade carioca em
torno da questão da identidade nacional.
A imagem do malandro bem-humorado associada aos festejos populares e,
principalmente, ao samba, foi abordada por diversos estudiosos, principalmente aqueles
que se dedicam à música brasileira. Gomes, em seu estudo sobre o malandro, ressalta
como a imagem deste personagem foi construída pela música popular brasileira.
Gomes destaca que a maioria das produções historiográficas, da década de
1970, sobre o malandro na música popular resultavam de duas premissas: a primeira
apontava que a representação da malandragem nos sambas da década de 30 surgia como
forma de contrariar o sistema capitalista que estava sendo implantado. A segunda

224
GOMES, Tiago de Melo, op.cit., 1998, p.103.
225
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. É da fuzarca (1928), 2ª DAP, cx. 59, n.1393, ato I, p.
14-15.
83

premissa referia-se à resistência do negro ao trabalho como forma de contestar sua


condição na época escravista 226.
Dentre os estudos destacados por Gomes, que defendem a primeira premissa,
se encontra o trabalho de Cláudia Matos chamado Acertei no bilhar: samba e
malandragem no tempo de Getúlio. Segundo Gomes, o estudo de Matos analisa o samba
malandro como um discurso das camadas oprimidas227 frente ao projeto capitalista, que
tem o trabalho assalariado como um de seus ethos. No que diz respeito à última
vertente, Gomes cita o trabalho de Gilberto Vasconcellos e Matinas Suzuki Jr. intitulado
A Malandragem na formação da música popular brasileira. Neste artigo, os autores
trazem uma explicação para o surgimento do samba malandro, afirmando que há uma
relação entre a abolição e a constituição da imagem do malandro na música popular228.
Estas duas vertentes parecem confluir ao apontarem que o samba malandro foi uma
forma de resistência em integrar a lógica da sociedade moderna e capitalista.
Nas décadas de 1980 e 1990, novos trabalhos buscaram analisar a imagem do
malandro, atrelada a outros fatores. Gomes destaca o estudo de Alcir Lenharo. Este
autor buscou compreender a formação da imagem do malandro nos meios populares,
―onde pesava a luta diária pela sobrevivência de compositores negros e pobres, onde se
229
buscava driblar a fome, as doenças, o preconceito e a falta de dinheiro diariamente‖ .
Nesse sentido, Lenharo aponta que o malandro, tal como representado na música
popular, não era aquele que possuía aversão ao trabalho propriamente dito, mas era
fruto da dificuldade em conseguir ascender socialmente. Ou seja, compositores negros e
pobres, submetidos a inúmeras dificuldades cotidianas, teriam criado e divulgado, em
suas músicas, a imagem do malandro que, à sua imagem e semelhança, e quase sempre
com boas razões, não enxergavam no trabalho a possibilidade de melhorarem de vida.
O trabalho de Gomes, ao contrário dos citados acima, privilegia as relações entre
o personagem malandro e a questão da identidade nacional. Segundo Tiago de Melo
Gomes, as representações do malandro, no teatro de revista da década de 20, se
encontram ligadas à defesa das raízes culturais brasileiras, principalmente populares.
Nesse sentido, o malandro é aquele que gosta de carnaval, samba e festas populares, que
defende a favela e os segmentos sociais menos favorecidos economicamente da
sociedade carioca.

226
GOMES, Tiago de Melo, op. cit.,1998, p.34
227
Ibidem, p.12.
228
Ibidem, p. 14.
229
Ibidem, p. 37.
84

Portanto, para Gomes, o surgimento da imagem do malandro não está vinculado


à resistência ao mundo capitalista e nem reflete as dificuldades do negro em se inserir
no mercado de trabalho. Segundo o autor, o malandro passa a ser representado na
década de 20 como aquele que simboliza o brasileiro, com suas raízes mestiças, seus
gostos e sua forma de agir.
A concepção defendida por Gomes é resumida em seu artigo Formas e sentidos
da identidade nacional: o malandro na cultura de massas. Nesse texto, Gomes
argumenta que a representação do malandro enquanto sintetizador do brasileiro surge,
na década de 1920, como fruto de diversos aspectos. Entre eles se destacam: a ideia de
―Brasil Mestiço‖, que ganhou força devido à percepção de que o discurso da
inferioridade racial do negro não trazia esperanças ―para o futuro fortalecimento de uma
230
nação estabelecida sobre bases não-européias‖ ; a busca por raízes populares, sob
influência da valorização do popular na arte e na intelectualidade europeia; e a
incorporação de um público de menor poder aquisitivo nos teatros cariocas. Sobre este
último aspecto, Gomes aponta que, embora exagerada, a representação de personagens
valentões, pequenos ladrões e etc. poderia ser identificada por este grupo social como
―personagens caricaturas de tipos de carne e osso que povoavam seu cotidiano‖ 231.
Dentre as peças citadas por Gomes que apontam o malandro como parte
integrante da cultura brasileira, podemos apresentar a revista de Freire Júnior Seu
Julinho Vem! (1929). A peça conta a história do programa de urbanização do prefeito
Prado Júnior, simbolizado na figura do personagem Seu Antônio. A proposta de colocar
abaixo a Favela232, localizada na zona portuária, é rebatida por Vagabundo, personagem
malandro. É este personagem que irá impedir a urbanização do morro da Favela. O
malandro, porém, não é somente aquele que convive na favela, mas há malandros de
diversas classes sociais, como aponta Gomes na seguinte passagem:

Favela [o personagem] leva Vagabundo ao ―Centro dos Malandros‖, e lá


chegando, Vagabundo se surpreende ao perceber que há malandros de todas
as classes. Com o tempo, Vagabundo acaba se dando conta de que muitos
membros das classes mais altas também são malandros. Um Major que é
diretor do ―Centro‖ canta ―A Malandragem‖, de Bide e Francisco Alves, e
Vagabundo responde cantando ―A Vadiagem‖, do mesmo Francisco Alves,

230
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 1999. p. 66
231
Ibidem., p.70.
232
Dentre as intenções do Plano Agache (1927-1930) constava a de erradicar as favelas, como se observa
em MATTOS, Rômulo Costa. ―Aldeias do mal‖. Disponível em:
<http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/aldeias-do-mal> Acesso: 17 de dezembro de 2012.
85

dois sambas então em evidência em que os autores se descreviam como


malandros233.

A peça, como destaca Gomes, demonstra que a malandragem não era apenas
uma personificação da população negra ou pobre, mas era representada como a ―própria
especificidade da Nação‖234. Essa mesma interpretação é encontrada no artigo de
Antonio Herculano Lopes intitulado ―Algumas notas sobre o mulato, a mulata e a
invenção de um país sem culpa‖. Lopes ressalta a importância do teatro de revista para
que tipos populares e a cultura da população negra e pobre se tornassem conhecidos. O
autor ressalta, ainda, que o malandro, associado à cultura negra até então, perde seu
referencial de cor na revista Duzentos e Ciquenta Contos, de Carlos Bittencourt e
Cardoso de Menezes, datada de 1921235. Nesta revista o personagem principal – Ressaca
– é um típico malandro, como se pode observar na música em que ele se apresenta:

RESSACA – Eis o Ressaca


O destemido
No corta jaca
Sou sacudido
Cabra sarado
(...)
Entro de cara
Não nego fogo
Não sou arara
N‘este meu jogo
Sou renitente
Nunca fugi
Quem for valente
Chegue p‘raqui
Eu não sou tolo
Na malandragem
Se faço um rolo
Levo vantagem 236

Características relacionadas ao malandro, como aquele que é bom de briga,


esperto e valente, são figuradas, pelos autores, na pele de um homem branco 237. Ele,
porém, não é apenas branco, mas também preconceituoso. Ressaca é um dos hóspedes

233
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 1999, p. 71
234
Ibidem, p.71
235
LOPES, Antonio Herculano. Algumas notas sobre o mulato, a mulata e a invenção de um país sem
culpa. Disponível em: < http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/k-
n/FCRB_AntonioHerculano_Lopes_Algumas_notas_sobre_o_mulato_a_mulata_ea_invencao_de_um_pai
s_sem_culpa.pdf>. Acesso em: 4 de julho de 2012.
236
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Duzentos e Cinqüenta Contos (1921). 2ª DAP, , n.
279, cx. 15.
237
Na peça, a definição do personagem como homem branco fica evidente em uma das falas do próprio
personagem: ―E a senhora pensa que eu vou me rebaixar de sentar na sua mesa? Nunca mais. Eu é que
não quero. Tanto mais que vai se sentar na mesa um preto. Eu estou devendo mas sou branco‖
(BITTENCOURT; Carlos; MENEZES, Cardoso. op. cit., 1921).
86

da pensão de Braziliana. O seu preconceito é demonstrado, na peça, quando é anunciada


a entrada de um novo hóspede negro, como se denota na fala de Ressaca: ―Eu cá por
mim está decidido. Mudo-me. Lá com pretos é que não moro‖238. Esta frase apresenta
uma construção típica portuguesa, porém, o personagem Ressaca é apresentado como
um brasileiro, mas que gosta de suas raízes portuguesas 239.
O preconceito, porém, começa a dar lugar a uma convivência mais pacífica
quando Ressaca descobre que pode ganhar dinheiro sendo secretário de Honlulu, o
negro. A peça, portanto, aborda a questão racial, mencionando o conflito aberto e,
depois, a aparência de convivência harmônica, que mal ocultava os benefícios
financeiros que o personagem branco e malandro obtinha, através de suas relações
oportunistas com o personagem negro. De todo modo, autores e público participavam,
através da revista, dos debates sobre a questão racial240.
A construção da figura do malandro associada à ideia de nação se perpetuou no
imaginário brasileiro. Sua representação foi traduzida como explicação antropológica
para o caráter do povo brasileiro, como se destaca na obra de DaMatta. Segundo este
autor, em O que faz do Brasil, Brasil?, o malandro seria ―um profissional do
jeitinho‖241, ou seja, ele se utilizaria de artifícios pessoais, como histórias, e de
concepções impessoais, como leis, para fazer com que as pessoas acreditassem em seu
discurso. Ele buscaria, assim, o benefício próprio através do jeitinho, convertendo as
leis e convenções de acordo com seu interesse. É nesse sentido que se configura a
esperteza do malandro, aquele que sabe relacionar o impessoal com o pessoal de forma
a garantir maior bem-estar para si mesmo. Assim, segundo Roberto DaMatta:

(...) não há no Brasil quem não conheça a malandragem, que não é só um


tipo de ação concreta situada entre a lei e a plena desonestidade, mas
também, e sobretudo, é uma possibilidade de proceder socialmente, um
modo tipicamente brasileiro de cumprir ordens absurdas, uma forma ou
estilo de conciliar ordens impossíveis de serem cumpridas com situações
específicas, e — também — um modo ambíguo de burlar as leis e as normas
sociais mais gerais.
(...)
Quer dizer, tal como acontece com o seu modo de andar, o malandro é
aquele que — como todos nós — sempre escolhe ficar no meio do caminho,
juntando, de modo quase sempre humano, a lei, impessoal e impossível, com

238
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Duzentos e Cinqüenta Contos (1921). 2ª DAP, n.
279, cx. 15
239
Trataremos mais adiante sobre a relação entre português e brasileiro construída nesta peça.
240
A peça abordava um projeto de lei que visava proibir a entrada de imigrantes negros no país.
Voltaremos a ela mais adiante.
241
DaMatta, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco: 1986.
87

a amizade e a relação pessoal, que dizem que cada homem é um caso e cada
caso deve ser tratado de modo especial242.

Na abordagem de DaMatta, o malandro é um papel social que pode ser


desempenhado por qualquer brasileiro e, segundo ele, não é um mero acidente a
existência desse papel, mas uma forma de sobreviver num sistema em que nem sempre
as leis andam de acordo com as regras da moralidade das ruas.
Podemos concluir que a imagem do malandro foi delineada em diferentes
espaços e tempos: no teatro de revista, representou inicialmente a recusa ao trabalho e,
na associação com a imagem do capoeira, a periculosidade. Naquele mesmo contexto,
posterior à abolição da escravatura, o Código Penal institucionalizava a repressão à
vadiagem e à capoeiragem, características marcantes dos malandros das revistas.
Posteriormente, também no teatro de revista, foi elaborada a imagem
positivada do malandro, como aquele que vive nos ambientes populares, se dedica,
sobretudo, à diversão e difunde e valoriza a cultura popular. Tal representação,
marcante nas revistas da década de 1920, é construída e divulgada em meio aos debates
sobre a identidade nacional brasileira, influenciados, particularmente nos meios
intelectuais e artísticos, pela valorização do popular em voga na Europa.
As representações do malandro seriam marcantes, também, na música popular
dos anos 1920 e 1930, incitando estudos que tinham por objetivo entender as razões
para tais representações. A partir da década de 1970, principalmente, a malandragem
torna-se um assunto importante na produção acadêmica. A produção historiográfica dos
anos 70 enxergaria na malandragem a resistência à lógica capitalista. Na mesma década,
a antropologia cultural, através sobretudo de Roberto da Matta, colocaria o malandro no
centro dos debates sobre a identidade brasileira.
Os trabalhos de Tiago de Melo Gomes e Antonio Herculano Lopes, entre outros,
abordam as diferentes representações do malandro atreladas às raízes culturais
brasileiras, evidenciando, assim, a construção da identidade do Brasil e dos brasileiros
por meio das imagens presentes no teatro de revista.

***

A mulata, assim como o malandro, foi uma tipificação fortemente encontrada


nas peças teatrais do início do século XX. Leonardo de Mesquita Taveira realizou um

242
Ibidem, p. 87-88
88

estudo voltado para esta personagem-tipo. Ele afirma que a mulata, enquanto
personagem, teve sua primeira aparição no teatro de revista no ano de 1889, em duas
peças: A República, de Artur Azevedo, e Bendengó, de Oscar Pederneiras. Em ambas, a
mulata estava associada à imagem da baiana. Essa associação também é descrita por
Lopes no seguinte fragmento:
Entre os papéis femininos, talvez o primeiro a surgir como ―tipo nacional‖
tenha sido o da baiana. Em certos grupos negros cariocas, a Bahia, já no fim
do século XIX, era considerada como a fonte da cultura afro-brasileira. Nas
peças de Artur Azevedo, a baiana aparecia em seu exotismo, com roupas
típicas, vendendo comidas típicas, mas também atraindo o olhar
masculino 243.

A mulata baiana era caracterizada, inicialmente, não pela cor das atrizes, já que
elas eram, em sua grande parte, brancas244, mas pelo requebrado, pela música e pelo
linguajar. Neyde Veneziano destaca essa última característica. Segundo ela, o linguajar
era oriundo das senzalas e incorporou modismos do meio urbano. Eram comuns erros
gramaticais e invenção de palavras, como as seguintes expressões: ―alicérceos,
fundamentá, inconomia, entrínseca, merecendente, tô afrônica, vô arrecitá‖ 245.
A representação da mulata foi se transformando ao longo do período. Segundo
Taveira, essa associação entre mulata e baiana perdurou até a década de 1920, quando a
mulata ganhou conotações cariocas. Além disso, a mulata passou a ser representada por
atrizes mestiças, passou a falar de forma mais adequada ao padrão culto da língua
portuguesa e se transformou em símbolo do samba e símbolo nacional, o que
observamos nas peças do período.
Na revista A Mulata (1925), de Marques Porto, a figura da mulata é destacada no
telão, apresentado no início da peça. Neste telão encontra-se escrito o seguinte:
Mulata, jambo mimoso
Sarará fresca, faceira
És a fruta brasileira
És o pitéu mais gostoso.

243
LOPES, Antonio Herculano. ―Vem cá, mulata!‖. Tempo, Departamento de História da Universidade
Federal Fluminense, Niterói, v.13, n..26, 2009, p. 88.
244
No que diz respeito à presença de mestiços no teatro, Lopes afirma que desde meados do século XVIII
até a chegada da corte no Brasil, atores mestiços eram frequentes na cena carioca. Porém, com a vinda da
família real e com a independência do Brasil, buscou-se apagar ―qualquer traço da cultura negra na
formação de uma arte nacional‖. Ibidem, p.86. Assim, atores mulatos passaram a ser maquiados para
disfarçar sua condição racial, tornando-se muito raro que um ator negro ou mestiço ocupasse a posição de
primeiro ator. Além disso, a presença de atores mulatos ou negros em espetáculos teatrais era reduzida em
comparação aos atores brancos. Para Lopes, não há uma precisão sobre quando os atores mestiços
passaram a fazer parte do quadro profissional de atores na cena carioca. Porém, ele afirma que, no início
do século XX, ―um espaço possível para o ator reconhecidamente mestiço começa a se formar‖ (Ibidem,
p. 86).
245
VENEZIANO, Neyde, op.cit., 1991, p. 129.
89

Quem prova a graça brejeira


Do teu vinho capitoso
Se queda todo dengoso
Mergulha na bebedeira 246.

Observam-se na peça algumas interpretações sobre este personagem. Um


primeiro destaque pode ser dado ao caráter brasileiro da mulata. O autor, ao afirmar que
ela é ―a fruta brasileira‖, sugere que a mulata, com as características que possui, só
existe no Brasil, ou pelo menos é o que existe de mais brasileiro. A mulata é
representada também enquanto símbolo sexual, através da metáfora da comida
(―jambo‖, ―fruta‖, ―pitéu mais gostoso‖) e da bebida (―vinho‖, ―bebedeira‖). No
fragmento acima, a mulata está vinculada a características como: ―faceira‖, ―dengosa‖,
―mimosa‖. Todas essas imagens simbolizam o atrativo sexual da mulata.
Buscando explicar a imagem da mulher mestiça na música brasileira dos anos
1930 e 1940, Manoel Pinto Ribeiro destaca que gozava da preferência dos homens,
visto que era considerada mais bonita do que a negra. Nesse sentido, a mulata era
representada, na música, como objeto sexual. ―[Ela] é concebida como uma mulher
cheia de manhas, ambiciosa, dengosa, preguiçosa e que não servia para o casamento‖ 247.
Martha Abreu, em seu estudo sobre as questões raciais e de gênero nas canções
populares, afirma que um dos argumentos que podem ser inferidos das letras das
músicas populares é a coisificação da mulata. Como destaca abaixo:
Com boa dose de razão, pode-se argumentar que a representação da mulata
como um cobiçado objeto do desejo seria o contraponto musical para as
teorias que, no passado, coisificavam a mulher escrava e, no presente,
apontavam para a inferiorização e a animalização da mulher negra e mestiça,
vista, pelo pensamento racista, como naturalmente mais propensa a uma
sexualidade desenfreada e degenerada. Elogiada sim, mas para ser
passivamente consumida, como uma comida apetitosa, e logo depois
descartada. 248

Abreu, apesar de reconhecer o papel de objeto sexual atribuído à mulata, observa


a existência de certa ambiguidade em relação à mesma. A autora afirma que a figura da
mulata, presente nas músicas, ia além de uma imagem de ―coisa‖, uma vez que era,
frequentemente, atribuído a ela o papel de sedutora, que tornava o homem prisioneiro de

246
PORTO, Marques. A mulata (1925). 2ª DAP, cx.31, n. 633.
247
RIBEIRO, Manoel Pinto. ―A formação do discurso sobre a mulata na MPB (1930-1945)‖. Revista da
academia brasileira de filologia. Rio de Janeiro, ano VI, n. VI, Nova Fase, p.100-119, 2009.
248
ABREU, Martha. "Sobre Mulatas Orgulhosas e Crioulos Atrevidos: conflitos raciais, gênero e nação
nas canções populares (Sudeste do Brasil, 1890-1920)‖. Tempo, Niterói, Departamento de História da
Universidade Federal Fluminense, v. 8, n.. 16, 2004, p. 12-13.
90

suas seduções. Nesse sentido, portanto, a mulata ganha uma outra conotação, de uma
mulher poderosa e autônoma que seduz quem deseja por interesses próprios.
Destacando os significados ambíguos atribuídos à mulata na música popular,
Martha Abreu conclui que houve, sem dúvida, ―projeções dos intelectuais sobre a
identidade nacional e sobre seus desejos sexuais‖249. Também no terreno das
representações, houve exploração e submissão do corpo das mulheres afro-descendentes
ao homem branco, reproduzindo hierarquias sociais. Porém, a autora aponta a música
como o espaço em que as identidades não brancas passaram a ser divulgadas, retratadas
e construídas. Podemos dizer que o teatro de revista, como espaço privilegiado de
divulgação da música popular, assumiu um papel central nesse processo.
A ambiguidade ressaltada por Martha Abreu é também retratada pelo teatro de
revista. Os autores, em algumas revistas, aduziram representações hierárquicas,
denotando a submissão das mulheres mestiças ao homem branco. Porém, em diversas
revistas, essa imagem é contrastada com a figura da mulata associada à autonomia da
mulher mestiça.
Na peça Se a moda pega (1925) de Bittencourt e Menezes, encontramos, no 4º
quadro, a imagem da mulata vinculada tanto aos prazeres masculinos quanto à esperteza
em enganar o português. Catharina é uma mulata que tem por companheiro um
português chamado Manoel Brasil. A relação entre eles é manifestada logo na primeira
cena do quadro, quando se expõe a briga do casal por um ter retirado a coberta do outro
no meio da noite.
CATHARINA(contrariando) – é assim, não é? Pois fique sabendo que, de
hoje em diante, eu não me sujeito mais a ficar lá em cima, arrumando a casa,
cozinhando, lavando e engomando, ouviu? Vou para a janela dar corda a todo
o homem que olhar para mim, e , quando houver freguesia na loja, planto-me,
ali, na escada, e namoro, namoro!
MANOEL – (furioso) Senhora Catharina! Senhora Catharina! Vá para o
aconchego do lar; e se não tiver o que fazer... faça crochê!
CATHARINA (com desprezo) Você é uma porcaria, um banana, um
atrevidão! (indignada) Não vá lá em cima durante o dia, compreendeu? Proíbo-
lhe!250

Ao adentrar nas brigas do casal, os autores exibem algumas ideias agregadas à


mulata e à relação desta com o português. A primeira fala da Catharina descreve traços
de uma mulher recatada e que se sujeita apenas aos afazeres domésticos. Porém, ao
recusar este papel, ela demonstra ser uma mulher poderosa e autônoma.

249
Ibidem, p. 25.
250
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega (1925), 2ª DAP, n.683 - cx. 33, p.27
91

A imagem presente na revista pode ter sido concebida com o intuito de afirmar a
identidade dos afro-descendentes no pós-abolição. Os autores apontam que a mulher de
cor não é mais submetida ao branco lusitano (símbolo do passado escravista) e,
portanto, age como bem quiser. De todo modo, o fragmento apresentado acima
contribuiu para uma visão da mulata como uma pessoa de personalidade e não como um
objeto sexual.
Essa imagem, porém, é modificada quando Catharina é surpreendida pelo
funcionário, que a vê apenas como objeto de desejo. A personagem, porém, demonstra
perceber as intenções do funcionário, como se observa:

CATHARINA (cantarolando) Homens não me faltam! E eu nem sei por que,


vim me grudar com o Manoel (aparece func.)
FUNC. – Catharina!
CATHARINA – Outra vez, seu Funcionário?!
FUNC. – Agora, amanhã e sempre, naquela doce esperança de que falou
Camilo Castelo Branco...
CATHARINA (rindo) Compreendo! O seu amor é de perdição... (pausa)
Mas tome cuidado que o Manoel está hoje muito desconfiado...
FUNC. – O meu amor é sincero e eu me perco, Catharina. Dá-me um beijo,
tentação...!
CATHARINA – (fugindo) Não! Não! Pode alguém ver! Pode alguém
entrar... Depois, o Manoel não tarda...
FUNC. (agarrando-a) Um só! Um só! (abraça-a e beija. Nesse momento
ouve-se a voz de Manoel)
(...)
(Func. Atrapalhado procura esconder-se, ficando, afinal, colocado entre os
manequins em atitude grotesca, como se fosse um deles. Entra Manoel) 251

Apesar de os autores evidenciarem a mulata enquanto objeto sexual, o fragmento


acima parece demonstrar uma ambiguidade, visto que Catharina não parece ser
submissa ao desejo do Funcionário. Ela transmite uma ideia de que gosta de ser
desejada por diversos homens.
Na revista Cangote Cheiroso (1927), de Marques Porto e Luís Peixoto, a
representação da mulata também é dúbia. O tema condutor da revista é a mulata e sua
relação com o português, chamado Barbalho. O próprio nome da peça faz referência ao
―cangote‖, ou pescoço, da mulata. No primeiro quadro da revista, Mulata e Barbalho
brigam por causa de ciúme. A Mulata diz que ele é um peso e ela quer é ser livre:
MULATA – Que peso tu tiras de cima de mim. Eu quero sê livre, livre como
um passarinho.
BARBALHO – Até caíres noutro alçapão...
MULATA – Ih!... Camba fora... tu só tem me dado peso 252.

251
Ibidem.
252
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís. Cangote Cheiroso (1927). 2ª DAP, caixa 51, n. 1201.
92

Novamente observamos uma representação de mulher autônoma e que busca sua


liberdade perante o homem branco. Porém, os autores problematizam essa autonomia
afirmando que a mulata está sujeita às artimanhas dos homens, como é evidenciado na
fala de Barbalho. Essas duas ideias podem, de fato, representar as concepções dos
homens / lusitanos, que pensam que controlam as mulatas, e destas, que pensam que são
autônomas. Ou podem ser apenas uma forma de trazer o riso à cena. Independente da
intenção dos autores, é importante pensar que as razões para essas duas imagens
aparecerem em um mesmo diálogo podem estar atreladas à construção de identidades:
mestiça e brasileira.
A identidade mestiça foi apresentada pelos autores em outro quadro desta
mesma revista. Como se observa abaixo:

BARBALHO – Tu serás a vaca que darás de mamar o leite dos teus afetos ao
jovem bezerro que é este teu lusitano todo inteirinho sem faltar um pedaço.
MULATA - Tu tem certeza que não farta nada?
BARBALHO – Pelo contrário! Até cresceu, aguentou, ficou melhor.
MULATA – O que?
BARBALHO – O meu amor por ti, estuporada! Vem, vem meu cangote
cheiroso.
MULATA – É este cheiro de cangote que te perdeu, hein português?
BARBALHO – E esse cheirinho o maior traço de união entre o Brasil e
Portugal. O que o Brasil precisa é de gente! Sejas patriótica! Enquanto
houver mulatas de cangote cheiroso o português há de povoar este solo
abençoado cumprindo a missão que Deus lhe deu na terra...
MULATA – Que missão é essa, meu santo?
BARBALHO – Dar a luz da publicidade aos mulatinhos.
MULATA – Qué dizê que nós não é filho de Deus!
BARBALHO- Não, tu és filha de um patrício e serás mãe de uma porção de
filhos da ...
MULATA – De quem?
BARBALHO – Da lusa gente. (com profunda melancolia) 253.

No diálogo acima, verificamos uma interpretação bem clara de que a mulata é


fruto da mistura entre o lusitano e a negra / mulata. Segundo a ideia de Barbalho, a
mulata só existe porque há portugueses no Brasil, e vice-versa. O diálogo destaca que a
mulata é aquela que representa a união entre Portugal e o Brasil, possibilitando a
interpretação de uma relação sem conflitos, sejam eles raciais ou nacionais. No entanto,
contrariando esta interpretação, a mesma revista refere-se às constantes brigas entre
Mulata e Barbalho254.

253
Ibidem.
254
Como vimos, a existência de brigas entre a mulata e o português também é retratada na revista Se a
moda pega (1925), de Bittencourt e Menezes.
93

No que tange às questões raciais, Antonio Herculano Lopes afirma que a


construção simbólica da mulata também perpassa a ideia de relações raciais harmônicas.
Como destaca em seu texto,
Expressão maior da miscigenação do nosso povo, as figuras desses mistos de
brancos e negros são habitualmente consideradas como reveladoras de
relações menos conflitivas, menos racistas, ao menos ao nível da sexualidade.
O sexo é aliás poderoso componente na definição de uma especificidade
brasileira e a figura da mulata, em particular, o símbolo da sensualidade e da
malícia de uma população que vive num território onde inexiste o pecado 255.

Discordando, em parte, de Lopes, entendemos que as revistas, assim como as


suas personagens mulatas, são dotadas de forte ambiguidade, particularmente no que diz
respeito à caracterização das relações raciais e sexuais. Se a própria existência da
mestiçagem podia ser apresentada, nas revistas, como resultado de relações raciais mais
harmônicas, a representação das brigas cotidianas entre portugueses e mulatas podia
simbolizar os conflitos raciais presentes na sociedade brasileira. Mais do que isso, essas
duas concepções, e muitas outras, podiam ser postas lado a lado, numa mesma revista.
A abordagem sobre a relação entre mestiçagem e sexualidade presente nas
revistas dos anos 1920 desembocaria, na década seguinte, nas afirmações de Gilberto
Freyre sobre o Brasil Mestiço e a democracia racial. Freyre teria destacado as relações
de parentesco como formadoras do caráter nacional. Assim, o concubinato entre as
mulheres de cor e os homens brancos teria possibilitado o caráter mestiço do Brasil.
Quanto à miscibilidade, nenhum povo colonizador, dos modernos, excedeu
ou sequer igualou nesse ponto os portugueses. Foi misturando-se
gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro contato e
multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de machos
atrevidos conseguiram firmar-se na posse de terras vastíssimas 256.

Em sua obra Casa Grande e Senzala, datada de 1933, Freyre oferece uma
abordagem sobre o cruzamento das três raças na formação do povo e da cultura
brasileira. Para ele, todo brasileiro é uma junção de culturas negra, branca e indígena.
Freyre aponta, já no seu primeiro capítulo, que a colonização portuguesa caracterizou-se
por uma singular predisposição do português ao hibridismo.
De acordo com ele, o caráter híbrido do português é verificado desde a invasão
dos árabes na Península Ibérica no século VIII, o que possibilitou que as duas culturas –
europeia e africana – ora se flexibilizassem, ora se antagonizassem. Segundo as ideias
do autor, a miscigenação possibilitou que a colonização brasileira fosse mais amena,
como afirma no seguinte fragmento:
255
LOPES, Antonio Herculano, op.cit., 2009, p.1.
256
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. 22 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983, p.9.
94

Uma circunstância significativa resta-nos destacar na formação brasileira: a


de não se ter processado no puro sentido da europeização. Em vez de dura e
seca, rangendo do esforço de adaptar-se a condições inteiramente estranhas, a
cultura europeia se pôs em contato com a indígena, amaciada pelo óleo da
mediação africana. (...) A possível origem africana – Chamberlain considera-
a definitivamente provada – do sistema jesuítico nos parece importantíssima
na explicação da formação cultural da sociedade brasileira: mesmo onde essa
formação dá a ideia de ter sido mais rigidamente europeia – a catequese
jesuítica – teria recebido a influência amolecedora da África 257.

As ideias de Freyre foram concebidas por influência do trabalho de Boas, com a


valorização da perspectiva cultural em detrimento da racial. Em fins da década de 20, o
conceito de cultura começa a entrar em vigor nos meios intelectuais, como afirma
Schwarcz:
Sobretudo a partir do final dos anos 20, os modelos raciais de análise
começam a passar por uma severa critica, à semelhança do que já acontecera
em outros contextos intelectuais. As diferenças entre os grupos deveriam ser
explicadas a partir de argumentos de ordem social, econômica e cultural, não
se levando mais em conta as supostas diferenças biológicas e somáticas.
Raça, nesse contexto, aparece quase como um "slogan de época", uma noção
em desuso que deveria ser rapidamente extirpada do vocabulário local258.

Nesse sentido, a explicação de Freyre buscava mostrar ―a tentativa de superação


da questão racial, diante da necessidade de afirmar a mestiçagem, começando na
feijoada, passando pelo samba e pela capoeira até chegar ao malandro‖ 259. Sua
perspectiva culturalista afirmava que o ―cadinho de raças‖ levou a uma convivência
pacífica e sem segregação.
Contrariando a ideia de Freyre de democracia racial, outros autores observam a
construção da mulata enquanto símbolo nacional por uma perspectiva de denúncia do
racismo e das desigualdades de poder nas relações de gênero. Segundo Mariza Corrêa, a
raça é ―um dos marcadores mais importantes em nossa sociedade, ela necessariamente
estará presente no campo semântico das definições de gênero‖ 260. A autora aponta que,
apesar da ausência de institucionalização da segregação racial, conflitos raciais
aparecem em situações aplicadas ao gênero. Ela ressalta isso afirmando que ―a mulata
construída em nosso imaginário social contribui, no âmbito das classificações raciais,

257
Ibidem, p. 52-53.
258
SCHWARCZ, Lilia. ―Complexo de Zé Carioca: Notas sobre uma Identidade Mestiça e Malandra‖. In:
Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n.29, out./1995. Disponível em:
<http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_29/rbcs29_03>. Acesso em: 20 de setembro de
2012.
259
CRISTINO, Leandro Nascimento. ―A malandragem como emblema nacional‖. Soletra, São Gonçalo,
UERJ, Ano IX, n.17, 2009, p. 45.
260
CORRÊA, Mariza. ―Sobre a invenção da mulata‖. In: Cadernos Pagu, Campinas, Núcleo de Estudos
do Gênero- Pagu/Unicamp, n. 6 / 7, 1996, p. 49.
95

para expor a contradição entre a afirmação de nossa democracia racial e a flagrante


desigualdade social entre brancos e não brancos em nosso país‖261.
Martha Abreu é outra autora que critica a ideia da ausência de conflitos raciais,
como já apresentamos acima. Para Abreu, o fato de a mulata ser representada como
símbolo sexual está intimamente ligado ao que a intelectualidade branca imaginava
como função para sua raça. Ou seja, a mulata serviria apenas para aliviar os desejos
sexuais.
Portanto, a construção da imagem da mulata, tanto nas peças teatrais quanto na
bibliografia, se efetivou de forma ambígua. No que diz respeito ao teatro de revista
propriamente dito, observamos que sua imagem ora era apresentada como submissa,
reproduzindo hierarquias sociais, ora como autônoma, poderosa e sedutora. Por vezes
sua imagem era valorizada, apontando a importância da mestiçagem para a construção
da nação; por outras, era destituída de seu caráter humano, ao ser enquadrada como
comida. Tais representações podiam ser apresentadas lado a lado, como se não houvesse
nenhuma contradição entre elas. Essas ambiguidades podem ter sido reflexo da
amplitude de público do teatro de revista, mas também podem apontar as amplas
discussões sobre as questões raciais e a identidade nacional.

***

Ao tratar sobre a representação da mulata, é importante pensar a questão da


imagem do negro no teatro de revista. Em algumas revistas analisadas, o negro aparece
como um personagem que ora é desqualificado, ora é apresentado como integrante da
cultura nacional. Na peça Duzentos e Cinquenta Contos, de Carlos Bittencourt e
Cardoso de Menezes, datada de 1921 e apresentada no Teatro Carlos Gomes,
encontramos inicialmente uma ideia negativa do negro, porém essa ideia começa a ser
modificada ao longo do enredo.
A revista conta a história de um diplomata negro americano, chamado Honlulu,
que se dirige ao Brasil com a proposta de evitar a proibição de entrada de negros neste
país. Ao chegar ao Rio de Janeiro, o negro se instala na Casa de Pensão de Brazília, o

261
Ibidem, p.49.
96

mesmo local onde estão instalados Ressaca, um típico malandro, e um português


chamado Centenário, provavelmente em referência à proximidade do aniversário de 100
anos da Independência. Estes dois personagens, ao saberem que o negro iria ficar na
mesma casa de pensão que eles, começam a discutir com Brazília, considerando um
absurdo tal situação, como se verifica no seguinte diálogo:
RESSACA – E a senhora pensa que eu vou me rebaixar de sentar na sua
mesa? Nunca mais. Eu é que não quero. Tanto mais que vai se sentar na mesa
um preto. Eu estou devendo mas sou branco.
CENTENÁRIO – Muito bem! Diz muito bem seu Ressaca. Eu também me
bou mudare.
(...)
BRAZILIANA – Ora essa! Até o seu Centenário! Eu esperava tudo de todos,
menos do seu Centenário, que é o hóspede que eu mais considero 262

A visão preconceituosa expressa acima começa a mudar quando Honlulu oferece


um conto para quem quiser ser seu secretário. Ressaca aceita e começa a observar que o
―preto tem seu valor‖ e isso é evidenciado principalmente na questão econômica.
BERNARDINA (ao fundo) – Patroa. Patroa. Os pensionistas não deixam seu
Lulu se sentá na mesa. Estão quebrando todos os serviços.
RESSACA – Mas que serviço é esse?
BRAZILIANA – Mas que pessoal arreliente. Seu Ressaca, por favor, nos
ajuda a sossegar eles.
RESSACA – Não precisa mais gente, não. Vou mostrar-lhes Vou mostrar-
lhes que sou o suco dos secretários! Comigo não há d‘isto. Preto também ser
gente e este então que tem o burro do dinheiro. 263

A peça nos permite compreender aspectos que estavam em pauta na sociedade


brasileira naquele período, como a imigração, o preconceito racial e o caráter nacional.
Dentre esses aspectos, um fenômeno que se evidencia na peça é a entrada de negros
estrangeiros no Brasil. Analisando a bibliografia relativa ao período, verificamos que as
intenções de Honlulu, de impedir a aprovação de um projeto que buscava evitar a
entrada de negros no Brasil, se insere em um debate que de fato ocorreu, em torno de
um projeto de lei.
Segundo Petrônio Domingues, o Projeto de Lei nº 209/1921, que visava impedir
a entrada de imigrantes negros, teve como origem um acontecimento do mesmo ano,
quando, após concessões de terras para empresários americanos pelo estado do Mato

262
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, CARDOSO. Duzentos e Cinquenta Contos (1921). Arquivo da
2ª DAP, n. 279 - cx. 15.
263
Ibidem.
97

Grosso, uma companhia de colonização de Chicago – Brazilian-American Colonization


Syndicate (BACS) – manifestou interesse em criar uma colônia de afro-americanos264.
O Itamarati, como forma de impedir tal empreendimento, ―instruiu a Embaixada
do Brasil em Washington e os consulados a recusar vistos para todos os imigrantes
negros destinados ao Brasil‖265. Buscando sustentar em lei tal medida, dois deputados
federais – Andrade Bezerra (PE) e Cincinato Braga (SP) — apresentaram o Projeto de
Lei ao Congresso. Este foi amplamente discutido no legislativo, como aponta Gomes.
Segundo o autor, o dilema que imbuía os deputados estava ligado ao desejo de
branquear a nação e, ao mesmo tempo, de preservar a imagem do país como um paraíso
racial, visto que os debates sobre questões migratórias eram travados num contexto
internacional266.
Gomes analisa este dilema a partir de trechos do debate parlamentar publicado
no Jornal do Comércio. O argumento daqueles que defendiam o projeto, como Bezerra,
era que o governo norte-americano queria enviar seus ―indesejáveis‖ para o Brasil. Já
aqueles que foram contra o projeto argumentavam que, pela Constituição Republicana,
não havia distinção de cor no Brasil.
O autor investiga ainda a recepção deste debate pela imprensa. Além das ideias
retratadas acima, Gomes aponta que alguns jornalistas defendiam o projeto em parte,
não pela questão do branqueamento em si, mas pelas rivalidades que os negros
americanos possuiriam com os brancos, como se pode observar no seguinte fragmento:
Mas o modo por que o projeto procura alcançar os seus fins é excessivo. Em
face de nossas leis políticas, não podemos fazer diferença nessa questão de
cor. Desde a campanha da abolição fraternizamos pretos e brancos, unidos
numa aproximação exemplar. Ainda há pouco, na Conferência da Paz,
batemo-nos pelo princípio da igualdade das raças.
Diante desses precedentes, não se explica que, de um momento para outro,
rompamos com essa igualdade, criando contra os pretos uma medida de
exceção. Nem o próprio pacto de 24 de fevereiro permitirá essa injusta
diferença entre brancos e pretos.
Cumpre corrigir o projeto que se apresenta desses excessos ilegais,
restringindo-o a seu verdadeiro fim, que é não interdizer a imigração de
qualquer indivíduo da raça preta, mas somente a dos que vierem dos Estados
Unidos.

264
DOMINGUES, Petrônio José. ―Negros de almas brancas? A ideologia do branqueamento no interior
da comunidade negra em São Paulo, 1915-1930‖. In: Estudos afro-asiáticos, Rio de Janeiro, v.24, n.3,
2002, p. 563-599. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/eaa/v24n3/a06v24n3.pdf> Acesso em: 12 de
outubro de 2012.
265
LESSER, Jeff. ―Legislação imigratória e dissimulação racista no Brasil (1920-1934)‖. Archè, n. 81,
1994, p.85. Apud: DOMINGUES, Petrônio José, op. cit., 2002, p. 596.
266
GOMES, Tiago de Melo. ―Problemas no paraíso: a democracia racial brasileira frente à imigração
afro-americana (1921)‖. In: Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v.25, n.2, 2003, p. 307-331.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/eaa/v25n2/a05v25n2.pdf. Acesso em: 12 de outubro de 2012.
98

Ainda mais quando somente esses é que serão indesejáveis, não porque são
pretos, mas porque trazem no espírito, contra o branco, um sentimento de
hostilidade que será, na nossa ordem social, um perigo e um mal, valendo por
uma verdadeira imigração dessa questão de raças que, mercê de Deus, não
conhecemos ainda no nosso país267·.

Observamos, portanto, que o cronista do Jornal do Brasil defende a ideia de que


no Brasil não há preconceitos e que negros e brancos vivem harmoniosamente, ao
contrário do que ocorreria nos Estados Unidos, onde o padrão das relações raciais seria
o de conflito aberto. A diferença entre Brasil e Estados Unidos, no que tange às relações
raciais, explicaria a recusa da aceitação de imigrantes afro-americanos, já que estes
últimos trariam consigo a cultura do conflito racial que, para o jornalista, inexistiria em
nosso país. Nesse sentido, o autor é favorável ao projeto porque acredita que os negros
americanos poderão fazer surgir o preconceito e perturbar o ambiente harmônico vivido
no Brasil.
Apesar de esta visão ser compartilhada por outros jornalistas, ela não era
unânime. O cronista Benjamin Costallat, da Gazeta de Notícias, defendia uma
concepção contrária, partindo, justamente, do que o autor do Jornal do Brasil se utilizou
para afirmar sua ideia – o medo:
Acho que é medo demais. Não falando da violação de todos os
princípios liberais e do direito que essa medida acarretaria, acho
simplesmente que é medo demais [...] E depois, que diabo fez o negro
para dar esse medo ao branco? Só se o branco tem o medo que os
remorsos dão. Quem ao preto privou de suas melhores qualidades foi
o branco. O branco, que lhe tirou a vergonha com a chibata, a energia
com a cachaça e lhe deu todos os vícios que na pureza do seu deserto
e em plena liberdade o africano desconhecia 268.

Portanto, na imprensa, assim como nas sessões parlamentares, também se faziam


presentes os debates entre ideais aparentemente contraditórios – branqueamento da
nação e a defesa de um país sem preconceitos. O teatro de revista, por sua intenção de
tratar questões atuais, também abordou os diferentes pontos de vista relativos ao
episódio. Por exemplo, a visão de Ressaca que, apesar de inicialmente rejeitar a
convivência com o negro Honlulu, muda de ideia a partir do momento em que vê a
possibilidade de ter ganhos econômicos. Visão que, até certo ponto, estava de acordo

267
―Imigração de Negros‖. Jornal do Brasil, 30 jul. 1921.Apud: GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2003,
p. 318.
268
"Liberdade Preta, Liberdade Branca", Gazeta de Notícias, 31 jul. 1921. Apud GOMES, Tiago de
Melo., op. cit., 2003, p. 322.
99

com a de alguns autores que defendiam que os negros seriam importante mão-de-obra
para a agricultura brasileira.
A revista, no prólogo, defende uma visão bastante favorável à entrada de
imigrantes negros, destacando a inexistência de diferenças raciais no Brasil, como é
apresentado abaixo:
CARURU – Tá tudo muito bom. Mesmo porque cada vez nasce mais gente
(...) e o nosso reduto já tão atopetado.
HONLULU- Yes, em estados Unidos serr preta maltratada. Nessa Terra da
América do Sul, no contece isso non.
(...)
TODOS:
Pois que no Brasil uma vez lá tentará
Introduzir nossa gente, olé
Pois certamente é questão d‘um só dia
Honlulu terá diplomacia269

Tanto no diálogo quanto no coro, os autores apresentam a ideia de que Honlulu


irá conseguir impedir o projeto, visto que os negros são bem tratados no Brasil, não
havendo motivo para impedir que eles sejam introduzidos nesta terra. Apesar de tratar
de outros pontos de vista, a posição que transparece na revista como um todo é a de que
os imigrantes negros devem ser inseridos na população brasileira, principalmente por
fatores econômicos, como é esclarecido pelo personagem Centenário na seguinte fala:
―Amigo de pretas; varro essa – Eu sou liberal; depois esse país é tão grande tem tanta
necessidade de imigração, que, julgo eu, quer sejam pretos, amarelos ou brancos devem
ser admitidos ao seu progresso‖270.
De todo modo, a aceitação da imigração de afro-americanos por fatores
econômicos, metaforizada pela mudança de atitude de Ressaca em relação a Honlulu,
pode ser lida, na contramão da negação da existência de conflitos raciais do Brasil,
como uma denúncia sutil da exploração dos negros pelos brancos.
A imagem dos negros foi construída em inúmeras revistas, encenadas por
companhias diversas. Apesar disso, a questão racial se torna mais evidente no teatro nas
peças encenadas pela Companhia Negra de Revista e pela Companhia Bataclan Negra,
esta surgida de uma dissidência na primeira. Isso porque as referidas companhias,
compostas de artistas negros, buscavam exatamente contribuir para o debate sobre a

269
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, CARDOSO. Duzentos e Ciquenta Contos (1921). 2ª DAP, n.
279 - cx. 15.
270
Ibidem.
100

imagem e o lugar dos negros na sociedade brasileira, em uma perspectiva de ―militância


artística‖271.
A Companhia Negra de Revista formou-se a partir das intenções de De
Chocolat272 e do empresário Jaime Silva. A companhia estreou em 31 de julho de 1926
com a peça Tudo Preto, de autoria de De Chocolat. Segundo Nepomuceno, esta revista
ficou em cartaz durante um mês, alcançando forte sucesso. Em 12 dias de
apresentações, por exemplo, 13 mil pessoas assistiram a peça 273, o que equivale uma
média de 1.083 espectadores por apresentação.
A criação desta companhia inaugurou o ―teatro negro‖ no Brasil. A presença de
artistas negros e mulatos apresentando peças com forte referência à ―raça‖ não era uma
novidade no cenário mundial. Barros ressalta que, provavelmente, a criação da
Companhia foi influenciada pelo sucesso que a Revue Négre obteve nos palcos
franceses em 1925 274.
Gomes, em seu livro Um espelho no palco, buscou analisar o papel que a
Companhia Negra teve na construção de uma identidade nacional mestiça. Para isso, o
autor analisou tanto a revista Tudo Preto quanto a sua recepção pela imprensa. No que
diz respeito à recepção, Gomes afirma que houve uma forte expectativa antes da estreia
de Tudo Preto, como se pode observar na reportagem do jornal O Globo do dia da
estreia:
È hoje, finalmente, no Rialto, a apresentação da companhia negra de revistas,
organizada por Jaime Silva e De Chocolat, com a première da revista ―Tudo
Preto‖, peça cuja música é um mimo, e cujo poema é magnífico de
humorismo. Essa revista que, seja dito de passagem, não sofreu da censura o
menor corte, subirá a cena com o máximo capricho e esplendor (...) O Rialto,
hoje, será pequeno para conter todos quantos, ansiosos, almejam assistir tão
sensacional ―première‖275.

A expectativa talvez se devesse principalmente ao luxo do cenário e do figurino


e à beleza da música, mas cabe apontar que a novidade de um ―teatro negro‖ também
chamava atenção dos espectadores. Ao analisar as diferentes crônicas, o autor afirma

271
Dentre os estudiosos que se dedicam a este tema se encontram GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 2004;
NEPOMUCENO, Nirlene. Testemunhos de poéticas negras: De Chocolat e a companhia negra de
revistas no Rio de Janeiro (1936-1927). Dissertação de Mestrado em História. São Paulo: Programa de
Pós-Graduação em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006; BARROS,
Orlando. Corações de Chocolat. A história da Companhia Negra de Revistas (1926-27). Rio de Janeiro:
Livre Expressão, 2005.
272
Artista negro do mundo do entretenimento, João Cândido Ferreira ganhou tal apelido devido ao
sucesso que obteve nos palcos da capital francesa.
273
NEPOMUCENO, Nirlene, op.cit., p. 8.
274
BARROS, Orlando, op.cit., p. 15.
275
O Globo, 31 jun. 1926. Apud: GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 297.
101

que o sucesso da Companhia, porém, não encontrou tanto respaldo da elite carioca. Sua
conclusão é baseada na análise de revistas ilustradas como Careta, Fon Fon e O Malho,
onde os comentários negativos à peça Tudo Preto eram mais comuns, enquanto nas
seções teatrais dos jornais havia mais elogios ao trabalho da Companhia Negra. A
diferença é explicada, pelo autor, a partir do público leitor destes veículos de
informação. Os preços das revistas giravam em torno de 1.200 réis, já os jornais
custavam em média 200 réis276. Para Gomes, esses dados indicam que o leitor das
revistas ilustradas era mais elitista do que o dos jornais. Isso pode ter influenciado na
publicação de opiniões contrárias às ideias presentes no espetáculo da Companhia
Negra.
Tudo Preto focaliza dois personagens: Patrício, um paulista contaminado pelos
ideais europeus, e Benedito, um baiano negro. Nepomuceno afirma que estes dois
personagens representavam brasis diferentes, um Brasil real e um Brasil desejado 277.
Patrício é um personagem tonto que concorda com tudo o que lhe é apresentado. Já
Benedito é apresentado como vivaz, decidido e falante. Essas caracterizações nos
permitem supor que autor, artistas e público ―participavam‖, através da revista, do
debate que se travava em torno do lugar dos negros, e do que era entendido como ―sua
cultura‖, na identidade nacional em construção.
Patrício simbolizava um Brasil europeizado e elitizado, representado por uma
imagem de São Paulo, que se tornava, naquele momento, uma grande capital,
ostentando os maiores ícones da modernidade e da industrialização. O baiano Benedito
talvez possa ser interpretado como uma referência ao passado e às tradições, não só
porque Salvador foi capital da colônia até 1763, como também porque a Bahia ocupou
importante papel na história econômica e social da colônia, tendo sido grande produtora
de açúcar em propriedades cultivadas por escravos africanos e seus descendentes.
Podemos sugerir, portanto, que a revista abordava questões cruciais de sua época: que
imagem do Brasil seria mais apropriada? A europeizada, elitizada, imitativa e pouco
convincente, representada pelo personagem paulista, ou a africanizada, popular e
―autêntica‖, representada por Benedito? Como observa Nepomuceno, ―o texto de Tudo
Preto está repleto de ideias em torno de produtos culturalmente negros como
representativos da alma nacional‖278 .

276
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 301.
277
NEPOMUCENO, Nirlene, op. cit., 2006, p. 99-100.
278
Ibidem, p. 103.
102

Dentre os debates presentes na revista, se destaca o relativo à ascensão social das


pessoas de cor. Isso se evidencia logo no primeiro quadro, quando De Chocolat coloca
em cena negros vestidos como serviçais domésticos. No coro entoado há alusão de
mudança de status social:
Deixamos as patroas
Artistas boas
Vamos ser
Cheias de alacridade
E com vontade
De vencer
Seremos as estrelas
Chiques e belas
A dominar
Mostrando que a raça
Possui a graça
De encantar279

Observa-se acima que as personagens aparecem inicialmente como serviçais,


evidenciando o lugar social subalterno da população negra na sociedade brasileira.
Essas serviçais, no entanto, ―deixam as patroas‖ em busca de realização profissional no
palco, o que talvez tematize não apenas a possibilidade de ascensão social, mas também
os seus limites (se mulheres negras são, a princípio, serviçais, as que deixam de sê-lo
constituem exceções). Porém, apesar das trabalhadoras buscarem ascensão social, não
há evidência de conflito entre patroas e ex-empregadas, ou entre brancos e negros. Pelo
contrário, segundo Gomes, o que se observa na peça Tudo Preto é a ideia de uma
convivência racial pacífica, como aponta a seguir: ―O que o texto mostra, contudo,
ainda que entremeado de piadas, é a ênfase na ideia da possibilidade de uma
convivência racial pacífica, mas nessa visão tratava-se claramente de uma convivência
pacífica entre iguais, e não uma dádiva dos brancos‖ 280.
Gomes, portanto, afirma que as ideias de ―democracia racial‖ e ―Brasil mestiço‖,
antes de serem uma criação de intelectuais aburguesados, já eram afirmadas pela
população negra como uma forma de convivência social. Nepomuceno ressalta que a
ideia de Brasil Mestiço, na revista Tudo Preto, é evidenciada na caracterização da
mulata como genuinamente brasileira, no maxixe como dança nacional e etc. Assim
Nepomuceno afirma que: ―Tais abordagens levam a inferir que ideias de um Brasil
culturalmente mestiço (...) circulavam, aparentemente sem provocar estranheza, entre

279
DE CHOCOLAT, Tudo Preto. Apud: GOMES, Tiago de Melo., op. cit., 2004, p. 302.
280
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p.307.
103

segmentos populares (...) bem antes que Gilberto Freyre trouxesse a público Casa
Grande e Senzala (1934)‖281.
As ideias de ―Brasil Mestiço‖ e ―democracia racial‖ encontram-se presentes na
mesma medida em que se busca ressaltar as peculiaridades dos negros e a sua
contribuição na construção da nação. A valorização da ―cultura negra‖ foi exposta pela
Companhia, destacando a música popular e os corpos femininos, juntamente com as
danças. Gomes afirma que o sucesso da Companhia Negra de Revista se deve a estes
fatores, que contribuíram para a ―cultura negra‖ ser vista pela sociedade de forma geral
como elemento de nacionalidade.
Nepomuceno amplia a análise de Gomes, na medida em que ela busca traçar os
primórdios da participação de artistas negros na indústria do entretenimento,
destacando, também, diferentes formas de atuação das populações afrodescendentes em
defesa do que era entendido como ―sua cultura‖. Segundo Nepomuceno, a resistência
cultural das populações afrodescendentes frente ao intuito de civilização da capital em
moldes europeus282 já era promovida desde fins do século XIX, quando populações
negras, concentradas no bairro da Cidade Nova, realizavam festas nas casas das tias
baianas, sendo a Tia Ciata a mais conhecida delas283.
Estas festas não eram só frequentadas por grupos subalternos, mas também por
intelectuais e algumas autoridades. Isso, porém, não significou uma aceitação das
manifestações afrodescendentes de forma abrangente. Houve, como destaca
Nepomuceno, formas diferentes de incorporar as manifestações culturais das populações
afrodescendentes, que eram vistas pelas camadas mais altas de forma ambígua, ou seja,
ora de maneira atemorizada ora com um certo fascínio. Essa visão dúbia podia fazer
com que autoridades, como o presidente Hermes da Fonseca, frequentasse a Casa da Tia
Ciata e, ao mesmo tempo, considerasse inadmissível que estas manifestações se
tornassem públicas284.
Portanto, a valorização do negro e da sua identidade, expressa nas peças do
teatro negro, enunciam perspectivas que estavam em pauta na sociedade carioca, como
o debate sobre a entrada de imigrantes afrodescendentes. Este debate, assim como a
281
NEPOMUCENO, Nirlene, op. cit., 2006, p. 104.
282
O intuito de civilizar o Brasil conforme os moldes europeus se evidencia em fins do século XIX e
princípio do século XX, período conhecido como Belle Époque. Fascinados com a Europa, alguns setores
das elites buscavam esconder o Brasil pobre e negro Por esse motivo, era desqualificada qualquer
referência às nossas raízes culturais. Logo, as manifestações culturais negras foram fortemente
perseguidas.
283
NEPOMUCENO, Nirlene, op.cit., 2006, p. 75.
284
Ibidem, p.76.
104

afirmação das identidades afro-brasileiras, era crucial para a definição de qual imagem
da nação se afirmaria como dominante. Observa-se, nas resenhas jornalísticas e nas
peças do teatro de revista, uma ampla negociação. Dentre as diferentes formas de
afirmar a nacionalidade, me parece que as peças, tanto no que diz respeito ao negro
quanto à mulata, apontavam uma a ênfase à mestiçagem como elemento central da
formação do povo e do caráter brasileiro. Portanto, é importante ressaltar que as
questões relativas à miscigenação não mobilizaram apenas intelectuais, e sequer foram
inaugurados na década de 1930, por Gilberto Freyre. Como vimos, esses debates e
representações ocupavam espaço privilegiado no teatro de revista e na música popular
da década de 1920.

Cena 2 – A imagem polissêmica do português:

Outra importante tipificação encontrada nas revistas do início do século XX é a do


português. Na revista Verde e Amarelo, de José do Patrocínio Filho e Ari Pavão, com
estreia em 1925 no Teatro S. José, pela Empresa Paschoal Segreto, o português é
caracterizado como um dos elementos mais importantes para a revista, como podemos
observar na seguinte música:
A FADA
Nas revistas nacionais
O compadre português
Mais falta ao enredo faz
Que uma mulata, talvez...
TODOS
Mas esta peça terá
Quem lhe faça esse papel
Vamos lá!...Vamos já,
À procura de Manel
PINDOBA
Por um decreto do fado
Que a vida torna inconstante
Um português importado
Entre nós fica importante!
TODOS
Mas esta peça terá, etc.
FRITZ
No meio desta contenda
Só um voto estou fazendo:
Que o Manel tenha uma venda,
Pra gente ficar devendo... 285

285
PATROCÍNIO FILHO, José; PAVÃO, Ary. Verde e Amarelo (1925). 2ª DAP, cx. 31, n.635.
105

O fragmento acima aponta a presença constante do tipo português no teatro de


revista. Alguns autores citam essa presença como recorrente. Veneziano afirma que o
tipo português surgiu, na revista, com Artur Azevedo, na peça denominada O bilontra
(1886)286. A peça trata de um comendador português, chamado Joaquim José de
Oliveira, que aspirava a um título de nobreza. Este é enganado por Miguel José de Lima
e Silva, que extorque seu dinheiro dando a ele um título falso. Baseada em um fato real,
a imagem do português é apresentada na peça de forma cômica, colocando em evidência
o fato de ele ter sido enganado.
Outro autor que faz alusão ao personagem-tipo português é Antonio Herculano
Lopes. Segundo ele, a formação dos tipos do malandro, da mulata e do português
estava, inicialmente, inserida na afirmação da cultura carioca; posteriormente, suas
imagens são alocadas para as representações da identidade nacional 287. Portanto,
Herculano aponta uma caracterização do português associada à representação da
nacionalidade brasileira.
Gomes, em sua dissertação de mestrado, demonstra que a figura do português,
nas revistas da década de 1920, estava associada a duas imagens diferentes. Uma
atrelada à colonização portuguesa e ao atraso do país, enfatizando a existência de
conflitos entre brasileiros e portugueses. Outra ideia presente nas peças deste período é
a contribuição do português para a caracterização do brasileiro, retratando, portanto, o
português como integrante do caráter nacional288.
Apesar de tomar como base os trabalhos acima, ampliaremos a análise para além
destas imagens, buscando compreender as diferentes formas de caracterizar este
personagem-tipo. O fragmento da revista Verde e Amarelo, apresentado acima, traz uma
diversidade de elementos que podem ser analisados.
O enredo da revista Verde e Amarelo utiliza-se do recurso da metalinguagem
para tratar da revista brasileira289. Além disso, os autores apresentam aspectos
importantes para a caracterização do Brasil e do povo brasileiro. A revista que Pindoba,
um personagem típico malandro, escreve, tem por início a chegada dos portugueses a
partir da visão dos índios. Além disso, os autores apresentam a mestiçagem como
elemento importante para a constituição do Brasil.

286
VENEZIANO, Neyde, op. cit., 1991, p. 135.
287
LOPES, Antonio Herculano, op. cit., p. 2.
288
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 1998, p. 107.
289
Ou seja, a revista conta a história de um personagem que escreve uma revista.
106

No que diz respeito ao português, a peça também ressalta alguns pontos


interessantes. Um aspecto relevante para entendermos uma das imagens dos portugueses
presentes na sociedade carioca naquele período é a representação deste personagem
como proprietário/ administrador, seja de comércio, ressaltado no coro cantado pelo
alemão Fritz – ―que o Manel tenha uma venda pra gente fica devendo‖ – , seja de
habitação coletiva, como é apresentado no vigésimo quadro da revista. O quadro ocorre
em um pátio onde, ao fundo, se observa uma habitação coletiva. Neste quadro observa-
se Manel cobrando o aluguel aos diversos moradores. Além disso, os autores colocam
em cena a questão da higiene, ou da sua falta nas habitações coletivas, sendo
representada pela Boa Morte. Ainda são retratadas as brigas e confusões ocorridas
nesses locais, que abrigavam uma boa parcela da população de baixa renda.
No que diz respeito à imagem do português, observa-se que este personagem-
tipo era tratado como aquele em que os brasileiros ―passam a perna‖, pois eles estão
sempre em dívida com o português. Isso se verifica na cena 2 deste quadro, quando
aparece Emygio, um dos moradores da estalagem, que aparenta ser um vagabundo,
beberrão e tocador de violão290.
MANEL – Eu não estou agora pra cantiga! ... O que eu quero saber é quando
é que bocê resolve entrar com os aluguéis do quarto?
EMYGIO – Pro mês ... não te incomoda ... (dedilhando o violão) Repara
nesta mudança! ... (canta) Louca!
MANEL – Pro mês pílula!...Ha dois anos e quatro meses que bocê anda-me a
dizer isso, mas eu nunca bi a cor do seu dinheiro! ...
EMYGIO (solenemente) – Circunstâncias esporádicas e valetudinárias, tem-
me talvez forçado a protelar a liquidação indébita da minha conta corrente
domiciliana, mas agora....
MANEL – (...) Fala-me português, oubiu! O que eu quero é meu dinheiro,
nem que tu bire candeeiro!
EMYGIO – Não, considerações eu não admito! (...)
MANEL - Mas sô Imygio...
EMYGIO – Imygio Não! Meu nome é Emygio, com E... (destacando as
silabas) E- my – gio
MANEL – Eu não queria ofender... Mas, bocê sabe, o senhorio pede-me o
dinheiro, ninguém me paga... Como é que bou ficar?291

Pode-se inferir da transcrição acima que o português é referenciado como um


tolo, por não compreender a desculpa de Emygio para não lhe pagar, e por se deixar
enrolar. Na última frase de Manel – em que se percebe que ele não é proprietário, mas
administrador da estalagem – observa-se que o devedor não é apenas Emygio, mas
todos os moradores, inclusive não brasileiros. Como é o caso do Fritz, um alemão que

290
O violão foi caracterizado por muito tempo como instrumento musical associado à malandragem.
291
PATROCÍNIO FILHO, José; PAVÃO, Ary. Verde e Amarelo (1925). Arquivo 2 ª DAP, caixa 31,
n.635.
107

também habita a pensão. Em uma fala de Manel se evidencia a inadimplência deste


personagem: ―Hein? Que é que bocê está dizendo?... Antão bocê tem dinheiro e não dá
nada por conta do aluguel de seu quarto?‖292. Porém, embora o personagem-tipo
português seja apresentado como tolo e idiota, a peça demonstra que os trabalhos
administrativos eram, em grande parte, exercidos por lusitanos, apesar de, muitas vezes,
não conseguirem administrar bem e serem enganados pela clientela.
Sobre a presença dos portugueses na vida econômica brasileira, a obra de Sidney
Chalhoub nos permite interpretar a relevância, em termos numéricos e do peso relativo
no mercado de trabalho, da população portuguesa no Brasil naquele período. Segundo
os dados apresentados por Chalhoub, em 1906 havia 811.443 habitantes na cidade do
Rio de Janeiro, sendo 26%, ou seja, 210.515, estrangeiros. Dentre os estrangeiros,
113.393 eram portugueses, o que significa que mais da metade dos estrangeiros que se
alocavam na cidade eram portugueses. Além disso, o número de portugueses
representava 16% da população que morava na capital293.
Silva apresenta dados numéricos relativos à entrada de portugueses no Brasil nos
anos posteriores. Segundo a autora, em 1915 emigraram 15.118 portugueses para o
Brasil294. Esse número foi crescente nos anos seguintes. Em 1920, o número de
emigrantes portugueses para o Brasil foi de 33.883295.
Sobre a relevância da população imigrante no mercado de trabalho, Chalhoub
afirma que, em 1890, mais de 50% dos imigrantes estrangeiros trabalhavam no
comércio, indústria manufatureira e atividades artísticas, enquanto a maioria da
população não-branca (ex escravos) empregava-se nos serviços domésticos: ―48% dos
não-brancos economicamente ativos empregavam-se nos serviços domésticos, 17% na
indústria, 16% não tinham profissão declarada e o restante encontrava-se em atividades
extrativistas, de criação e agrícola‖296.
Maria Luisa Nabinger de Almeida Pasckes buscou compreender as razões que
levaram à emigração de portugueses para o Brasil e à sua concentração no comércio.
Segundo Pasckes, a emigração se deve a fatores econômicos e políticos, principalmente.

292
Ibidem.
293
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
belle époque. 2 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001, p. 26.
294
SILVA, Susana Neves Tavares Bastos de Pinho O emigrante português em três romances de Aluísio
Azevedo. Dissertação de Mestrado em Literaturas Românicas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, 2007, p.12.
295
Ibidem, p.13.
296
CHALHOUB, Sidney, op.cit, p. 81.
108

Um dos fatores apontados pela autora é a transição econômica e política ocorrida em


Portugal em fins do século XIX e no início do século XX. O desenvolvimento do
capitalismo em Portugal no século XIX provocou uma crise nas instituições políticas.
Dentre elas se encontram a crise da Monarquia e as lutas pela implantação da
República, que ocorreu em 1910. A autora ainda acrescenta que, ―após a 1ª Guerra
Mundial, a emigração portuguesa aumentara consideravelmente devido à carestia de
vida em Portugal e às conturbações políticas em que já estava envolvida a nova
República‖297. Segundo apontam os dados apresentados por Pascker, o período de maior
emigração foi entre 1884 e 1933.
Outro fator assinalado pela autora é a importância da emigração para a economia
portuguesa. De acordo com os dados pesquisados por Pascker, as remessas enviadas a
Portugal pelos imigrantes portugueses no Brasil eram superiores à própria exportação
em fins do século XIX, como podemos observar no seguinte fragmento: ―Enquanto
através das remessas Portugal recebia 18.000 contos de réis anuais, pelo comércio
exportador, a soma não atingia 4.000 contos de réis anuais‖298.
Através da citação acima, Pascker conclui sobre a importância das economias
dos emigrantes para o equilíbrio da balança comercial portuguesa. Segundo a autora, o
governo português incentivava a emigração para cidades como Rio de Janeiro, pois os
centros urbanos, principalmente as atividades comerciais, possibilitavam maior
poupança. Além disso, as atividades comerciais eram incentivadas, pois representavam
um maior consumo dos produtos portugueses299.
A discrepância entre a colocação de trabalhadores brasileiros não brancos e de
trabalhadores imigrantes no mercado de trabalho – com os últimos ocupando,
geralmente, posições mais valorizadas – refletiu-se em conflitos raciais e nacionais.
Chalhoub, através da documentação criminal, observa que houve uma quantidade
expressiva de homicídios resultantes de conflitos entre trabalhadores estrangeiros,
principalmente portugueses, e trabalhadores de cor.
Os conflitos existentes entre brasileiros e portugueses não são vistos apenas nos
documentos criminais. Em algumas revistas o conflito se torna presente, porém as suas
razões são circunscritas, principalmente, ao campo amoroso. Por exemplo, na peça
Cangote Cheiroso, de Marques Porto e Luís Peixoto, de 1927, encontramos um quadro

297
PASCKES, Maria Luisa Nabinger de Almeida. ―Notas sobre os imigrantes portugueses no Brasil
(séculos XIX e XX)‖. Revista História, São Paulo, n. 123-124, p. 35-70, ago/jul., 1990/1991, p. 83.
298
Ibidem, p. 86.
299
Ibidem, p. 86.
109

em que este conflito se evidencia. Designado O guaraná, o quadro faz referência à obra
de José de Alencar – O Guarani. Porém, o personagem Peri é um português. Ao
contrário do índio Peri de Alencar, o português Peri não é valente e muito menos herói.
Ou seja, a alusão é feita de forma a contrariar as características do Peri de Alencar.
O quadro se passa em uma parte do morro do Pinto300. Quando se abrem as
cortinas se encontram em cena Antonio Marisco, alusão abrasileirada ao personagem D.
Antônio de Mariz (fidalgo português que se instala no Brasil com o objetivo de
colonizar)301, e malandros, que cantam a seguinte música:
MARISCO– Eu mandei chamar vocês
Pra tungá um português
Tugues! Tugues! Tungá um português
Que mulata gréla há um mês.
(...)
MALANDRO – Deixa vir esse marau
Que ele hoje entra no pau
No pau, no pau302.

Após a música, os malandros conversam. Configura-se nas suas falas uma


expressão de raiva do português, como se observa nas palavras do 2º Malandro:
―Naturalmente! Esses português tão é degenerando a raça. Nós estamos na nossa terra e
esses português leva a avança nas nossa comida.‖
De acordo com a citação, o português é aquele que adultera o caráter e furta as
riquezas dos brasileiros, principalmente as mulheres, qualificadas como objeto da
cobiça dos lusitanos. Verifica-se, também, uma inversão da ideia de branqueamento,
presente na sociedade brasileira desde as últimas décadas do século XIX. Ao invés de
―apurar‖, a presença europeia / portuguesa, na ótica dos malandros, ―degenera‖ a ―raça‖
brasileira. E é com o objetivo de impedir que o português, chamado Barbalho, na figura
de Peri, se envolva com a mulata, na figura de Ceci, que os malandros e Antonio
Marisco agem.
MARISCO – Bonito papel!
OS TRÊS [malandros] – Vamos ver quem tem agora/ Garrafas vazias pra
vender / Ou tu pensa oh índio espora / Que tu és capaz de nos comê?

300
Localizado no Bairro Santo Cristo. O início da ocupação deste morro ocorreu em 1875, quando
Antonio Pinto realizou um grande loteamento abrindo seis ruas e quatro travessas. Disponível em:
<http://portalgeo.rio.rj.gov.br/armazenzinho/web/BairrosCariocas/main_bairro.asp?area=003>. Acesso:
10 de outubro de 2012.
301
Ao contrário de D. Antonio de Mariz, Antonio Marisco é brasileiro. Mais do que isso, Marisco se junta
aos malandros em seus conflitos contra o português Barbalho. Observa-se, na peça, um jogo de inversões
em relação ao romance de Alencar: um fidalgo português transformado em brasileiro, alinhado aos
malandros, e um português – Barbalho – designado por malandros como índio
302
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís. Cangote Cheiroso (1927). 2ª DAP, cx. 51, n. 1.201.
110

MARISCO – Lambão!Tu pensou que era só / Pegá a mulata e entrá nas


comida / Tu não qué outra vida / Mas, daqui, seu bocó / Tu não tens mais
saída / Seu casca de ferida / No fim desta partida / Tu há de ver o nó!...303

Os malandros amarram o português num pau e o castigam, obrigando-o a


permanecer amarrado, sem poder fazer nada, enquanto as mulatas dançam. A imagem
do português é, portanto, daquele que só quer tirar proveito do Brasil, principalmente da
mulata, mas que acaba punido por suas intenções.
Além do conflito apontado acima, a representação da história invertida do
Guarani nos permite fazer outra leitura. Ao considerarem a figura do português atrelada
à imagem de Peri, os autores discutiam a raiz da miscigenação brasileira. No livro de
Alencar, o índio colonizado – Peri – é aquele que salva uma moça branca portuguesa e
se apaixona por ela –Cecília. Ele luta contra os aimorés, índios que até então não tinham
sido colonizados, e torna-se o herói de Cecília e do romance. O desfecho da história
ocorre quando Peri e Ceci passam a viver juntos na selva. Nesse sentido, a obra discute
a questão da miscigenação304, representada pela união entre o índio e a portuguesa,
tendo Peri como o impulsionador desta relação amorosa.
Podemos sugerir que os autores de Cangote Cheiroso buscaram ressaltar, em sua
versão parodiada de O Guarani, a questão da mestiçagem. Assim, ao transformarem o
índio Peri em um português, e a portuguesa Cecília na disputada mulata, Marques Porto
e Luís Peixoto invertem os papéis, mas não deixam de discutir a mistura racial, não
mais entre índios e brancos, mas entre brancos e negros.
No entanto, a relação entre Barbalho e a mulata, que pode ser lida como símbolo
da harmonia racial, é também motivo para desavenças entre o lusitano e os malandros
brasileiros305. Nesse sentido, a peça aponta a possibilidade de convivência entre dois
padrões de relações raciais: o conflituoso e o harmonioso, particularmente no que diz
respeito ao contato sexual. Esta poderia ser, aliás, uma concepção extremamente crítica
e elaborada acerca das relações raciais no Brasil: a ideia de que os contatos sexuais não
impedem, enfim, a existência de exploração e conflitos.

303
Ibidem.
304
Diversos autores se dedicaram a compreender a miscigenação em Alencar. Dentre os estudos podemos
citar: KAWAMURA, Regina Cláudia. ―Identidade e ideologia em O Guarani: a negação do ideal mestiço
através da afirmação‖. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dlcv/lport/pdf/slt28/10.pdf>;
CALDEIRA, Cláudia Passos. Revisitando o ethos indígena e a Nação no caminho da construção das
Identidades. Dissertação de Mestrado em Letras. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais,
2006.
305
Também eles associados, como vimos, à ideia de mestiçagem.
111

O português é o personagem principal da revista Cangote Cheiroso, estando


presente também em outras situações. No quadro Cachorro de Prata, Barbalho é dono
de uma banca de jogo do bicho. Ele se aproveita do jogo, apresentado como um dos
maiores prazeres do brasileiro, como forma de ganhar dinheiro. O quadro se inicia com
Barbalho escrevendo o nome do animal ―vencedor‖. Seu funcionário, porém, só
consegue ver a primeira letra. Em troca de dinheiro, o funcionário fala para todos os
fregueses jogarem ou na borboleta ou no burro, visto que o animal começa com a letra
―b‖. A cena se desenvolve em função disso, até que Barbalho consegue se livrar, sem
prejuízos, da situação causada pela ganância e falta de caráter de seu funcionário. Ele se
utiliza de uma característica de sua própria pronúncia306 para enganá-los. Assim, a
palavra ―betruz‖ seria corruptela de ―avestruz‖, animal presente no jogo do bicho.
No quadro citado acima, identificamos algumas formas de representar o
português. Um primeiro traço seria o de um homem constantemente ameaçado pela
esperteza e pela ganância de seus funcionários. O segundo seria sua capacidade de
escapar criativamente dos prejuízos causados por trapaceiros, fazendo, ele próprio, suas
trapaças. O terceiro, relacionado à interpretação em torno da pronúncia específica do
norte de Portugal, levaria à ideia de que os lusitanos seriam ignorantes, em uma imagem
corriqueira, até hoje, nas ―piadas de português‖. A diferença linguística pode ter sido
apresentada na peça como forma de causar riso, o que demonstra a imagem de um
português ridicularizado.
A imagem negativa do português foi evidenciada por diversos autores. Susana
Silva destaca que essa imagem se enraizou tanto na literatura jornalística quanto na
romanceada a partir do jacobinismo307, movimento ocorrido, sobretudo, entre 1890 e
1920, que, ao defender a pátria, contribuiu para difundir o ódio aos portugueses. Esse
movimento, que teve o jornal Jacobino como principal difusor de suas ideias, atribuía
ao português ―o espírito monopolista, o aumento dos preços e das rendas, especulações,

306
Uma característica da linguagem falada no norte de Portugal é o betacismo, fenômeno linguístico que
consiste na troca da pronúncia dos sons b por v.
307
O vocábulo jacobino foi utilizado, no Brasil, pelo menos desde os últimos anos do período
monárquico, para referenciar os republicanos radicais. Porém, foi apenas no governo de Floriano Peixoto
que o movimento ganhou forte impulso, principalmente a partir da Revolta da Armada (1893). Os
rumores de que os revoltosos tinham apoio de portugueses fizeram com que diversos indivíduos,
imbuídos de sentimento nacionalista, apoiassem o governo de Floriano Peixoto, a fim de garantir o
regime republicano,e se lançassem contra os portugueses, temendo a restauração monárquica. GOMES,
A. M. ―Jacobinos: abordagem conceitual e performática‖. In: Revista Cantareira (online), Niterói,
Universidade Federal Fluminense, v. 12, 2008, p. 5. Moisés Diniz de Almeida caracteriza o movimento
jacobino brasileiro. Segundo ele, os jacobinos cultuavam o estado republicano e defendiam uma política
nacionalista, difundindo,assim, um clima lusofóbico. ALMEIDA, M. D. ―Canudos e a derrota dos
jacobinos‖. In: Perspectivas latino- americanas, n..3, 2006, p. 145-160.
112

roubos nos pesos e medidas, (...) falsificação de gêneros, exploração da prostituição, a


escravização do negro‖308. Rachel Soihet aponta que os jacobinos estavam impregnados
com a ideologia do progresso. Ou seja, desqualificavam manifestações atreladas aos
costumes e tradições provindas de Portugal porque, segundo eles, elas remetiam ao
atraso, incivilidade, desordem pública e etc.309 A interpretação relativa à pronúncia de
Barbalho, sobretudo quanto à possibilidade do personagem acreditar que a palavra
avestruz é iniciada com a letra ―b‖, pode ser relacionada à imagem de atraso e
incivilidade frequentemente atribuída aos portugueses e à sua participação na formação
social e cultural do Brasil.
Cabe destacar, porém, que o antilusitanismo é observado desde a independência,
como analisa Ricardo Luiz de Souza 310. Porém, no final do século XIX esse sentimento
ganha novas perspectivas, tanto pelo movimento republicano, que passa a negar todas as
associações relativas ao período monárquico, quanto pelo projeto de modernização da
nação, como assinala o autor na seguinte passagem: ―O antilusitanismo representou, na
virada para o século XX, um projeto de modernização voltado para a adoção de
modelos culturais e comportamentais franceses, ingleses e alemães em substituição ao
que se considera a obsoleta influência portuguesa‖ 311. Além disso, o número de
imigrantes portugueses e sua concentração no mercado de trabalho possibilitaram o
fortalecimento do movimento antilusitano no período pós-proclamação da República.
Na peça Zig-Zag, de Bastos Tigre, apresentada pela companhia Tro-ló-ló em
1926, se evidencia a imagem do português como adulterador de pesos e medidas:
LEITÃO – Quem foi que pediu o filé?
FRANCELINO – Fui eu (Pegando a carne) isso lá é filé?
LEITÃO – É um filesito do joelho. Está um pouquinho duro porque o boi era
um tanto nervoso. Leve, ó rapaz, que carne como esta você não encontra nem
na praia do peixe.
ROSA – Mas, ó seu Leitão, o sr. garante que isso é vitelo?
LEITÃO – Se garanto! Conheci-a em vida; quando morreu a pobrezinha
deixou três filhinhos órfãos... Vamos lá, patrícia, leve a carne e não
resmungue.
MALVINA (examinando a balança) – Uê gentes! Essa balança é mais pesada
de um lado que do outro. Que é isso, seu Leitão?
LEITÃO – Isso é por causa da temperatura do clima. Pois tu não vês que este
lado é do nascente? Apanha mais sol.

308
SILVA, Susana Neves Tavares Bastos de Pinho. Emigrante Português em Três Romances de Aluísio
Azevedo. Dissertação de Mestrado em Literaturas Românicas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, 2007, p.33.
309
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo
de Vargas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 28.
310
SOUZA, Ricardo Luiz de. ―O antilusitanismo e a afirmação da nacionalidade‖. Politeia: história e
sociedade, v.5, n.1, p.133- 151, 2005.
311
Ibidem, p.143.
113

MALVINA – Ah, sim... E vai dilatando.


LEITÃO – Aqui está o seu peso, quer dizer o peso da carne. Estive a escolher
uma especialidade; valeu a pena esperar.
MALVINA (examinando) – Valeu nada; esta peça só tem osso.
LEITÃO – Nem todos podem ser um ossinho como você que só tem carne...
MALVINA – Mas não é pra seus dentes, ouviu?
FRANCELINO (aproximando-se) – O que foi que ele disse?
MALVINA – Besteira.
FRANCELINO – Eu ainda estrago esse português! Eu quando me espalho
ninguém reúne e quando estou perdido o diabo é meu padrinho.
MALVINA – Mas que tem o senhor pra falá assim?
FRANCELINO – Não tenho nada; mas se você quisesse eu bem que tinha...
MALVINA – Ora vá tapear outra! O senhor é um homem casado. Eu tenho
noivo, sabe?
FRANCELINO – Eu hoje tou de azar. O melhor é eu fazer as pazes com
Portugal. Ó seu Leitão!
LEITÃO – O que é lá, rapaz?
FRANCELINO – O senhor me empresta aí uns dois mil réis até amanhã...
LEITÃO – Como os outros que tens levado, não é? Para que queres tu dois
mil réis?
FRANCELINO – É pra fazê uma fezinha no bicho; se ganha pago todos os
atrasados.
LEITÃO – E se perderes?
FRANCELINO – Se perdê... o senhor vai descontando no peso lá do meu
patrão.
LEITÃO – Não é preciso que me digas... Toma lá, ó rapaz. (dá-lhe o
dinheiro) 312.

Leitão é um português, dono de açougue, que tenta ―passar a perna‖ em seus


clientes. O fragmento transmite a imagem de um português esperto e trapaceiro. Porém,
seu objetivo de trapacear fica explícito para o personagem Francelino que, ao dizer ―o
senhor vai descontando do peso do meu patrão‖, transmite a ideia de que conhece as
intenções do personagem Leitão. Podemos supor que este, em contrapartida, empresta o
dinheiro como forma de evitar uma possível denúncia. Esta poderia ocorrer porque o
mulato Francelino possui certa indignação com o português, retratada na frase: ―Eu
ainda estrago esse português! Eu quando me espalho ninguém reúne e quando estou
perdido o diabo é meu padrinho‖. Ao que parece, a indignação de Francelino não se
deve apenas às trapaças de Leitão, mas também ao interesse por Malvina, que ambos
compartilham.
As imagens negativas do português não são uma constante no teatro de revista
da década de 1920. Em algumas revistas, há a representação de uma relação amistosa
entre portugueses e brasileiros. Podemos analisar essa relação na peça Duzentos e
Ciquenta Contos, de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes,de 1921:

RESSACA – (...) A única imigração que nos convém é a da tua terra.

312
TIGRE, Bastos. Zig- Zag (1926) 2ª DAP, Caixa 37, n. 785.
114

CENTENÁRIO – De Portugal. Jardim da Órópa à beira mar plantado como


disse Camões.
RESSACA – E dizia muito bem. Jardim onde nascem as flores que
simbolizam a afeição que une as nossas pátrias... Amores perfeitos sempre
representaram os consórcios dos portugueses e brasileiros sendo a flor que
representa a velha e tradicional amizade entre nós a... Sempre Viva.

O fragmento analisado acima traduz a representação dos portugueses por uma


parte da população. Segundo o personagem Ressaca, a única imigração importante para
o Brasil foi a dos portugueses. Constrói-se, assim, a imagem de uma relação amistosa
entre portugueses e brasileiros. Os autores retratam o português de forma positiva,
enquanto integrador de raças e promovedor da miscigenação e enquanto imigrante que
deu certo.
Tiago de Melo Gomes, ao analisar a peça Duzentos e Cinquenta Contos, observa
na ideia de miscigenação, presente na fala do Centenário, uma defesa mútua entre
Ressaca e Centenário, como se pode observar abaixo:
Uma leitura atenta parece indicar que Ressaca e Centenário defendem-se
mutuamente, por terem grande afinidade. O malandro, tipicamente brasileiro,
vê afinidade com os portugueses; por seu lado Centenário relaciona
intimamente progresso e mistura racial, defendendo a ―nação mestiça‖, da
qual Ressaca seria um típico representante313.

Segundo Silva, circulavam no Brasil duas concepções opostas relativas ao


português. De um lado, uma visão antilusitana, já apresentada neste capítulo. De outro,
uma postura a favor do luso-brasilianismo314. De acordo com Levin, o luso-
brasilianismo foi um movimento que visava uma aproximação político-cultural entre as
duas nações315. A primeira manifestação do luso-brasilianismo é datada de 1825, com o
Tratado de Paz e Aliança assinado por D. Pedro I. Este tratado reconhecia, entre outros
aspectos, a irmandade entre as duas nações, estabelecendo acordos econômicos e alguns
privilégios à coroa portuguesa frente às outras nações.
Levin destaca que, no início da República, buscou-se fortalecer esse
movimento316. As razões para tal acontecimento podem estar relacionadas à forte
entrada de imigrantes portugueses no período, à busca pelas ―raízes nacionais‖, ao
revigoramento dos sentimentos patrióticos, entre outros. O luso-brasilianismo

313
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 1998, p. 81.
314
SILVA, Susana Neves Tavares Bastos de Pinho, op. cit., p. 24.
315
LEVIN, Orna Messer. ―Imagens da imigração: o português na literatura naturalista brasileira‖. In:
Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, 6., 1999, Rio de Janeiro / Niterói. Disponível
em: < http://www.oocities.org/ail_br/imagensdaimigracao.html >. Acesso em: 20 de agosto de 2012.
316
Ibidem.
115

possibilitou que se produzissem novas imagens literárias do trabalhador português.


Levin cita João do Rio como um dos defensores desta representação:
Surge então a noção de uma comunidade lusofônica, que teve em João do
Rio um de seus ativos defensores com as crônicas na Gazeta de Notícias,
reunidas, em 1911, no volume Portugal d‘Agora. Ao lado do jornalista e
poeta João de Barros, ele funda a revista bi nacional Atlântida onde chamará
a atenção para a necessidade de atualizar as glórias do Império Português. A
vocação heróica das raças íberas e as potencialidades dos descobridores é
evocada para justificar as ações conjuntas. O espírito patriótico dos
portugueses serve de exemplo às nações jovens como o Brasil, que desejam
se projetar no cenário internacional317.

Uma relação representada em diversas revistas do inicio do século XX é a do


português com a mulata, já mencionada anteriormente. Porém, vale esmiuçar melhor
essa relação. Na revista Se a moda pega, de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes,
de 1925, já citada, observa-se, no desenvolvimento das cenas, que o português é
extremamente apaixonado pela mulata, enquanto esta o maltrata e o trai. Essa relação
fica evidente no seguinte fragmento:

MANOEL – Ai! Para que és tão mázinha assim?


Oh! Minha mulatinha,
Sim,
Tem dó de mim
(quer abraçá-la e ela vai subindo a escada, empurrando-o, como que
livrando-se dele. Funcionário entra nesse momento) 318.

O funcionário público se dirige à alfaiataria para encomendar dois ternos, porém


seu objetivo maior é encontrar a mulata. Enquanto Manoel sai para resolver um
problema, o funcionário vai ao encontro da mulata. Ela hesita, mas acaba beijando-o.
Manoel, porém, desconfia de algo, mas não se desilude, como se observa abaixo:

MANOEL – (a Catharina) parece que ouvi vozes a conversar contigo?


CATHARINA – Era eu que estava falando sozinha
MANOEL – (passando o espanador em cima dos dois) Já me andas falando
sozinha?! Tu acabas mal, rapariga!! Tu andas com a cabeça virada!
(...)
CATHARINA – (a parte) Antes que o Manoel descubra tudo, vou dando o
fora. (a ele) Até já, meu cara de berinjela... Meu caqui...
MANOEL – Meu cá quê?
CATHARINA – Caqui do Japão! (sobe a escada e começa a atirar beijos
para Chanchada319 e Funcionário, sendo que Manoel supõe que são para ele)
Toma! Toma!
MANOEL – (sorridente) Quem é que há de dizer que eu todo inteiro sou
senhor daquele pedaço! (retribui os beijos) 320.

317
Ibidem
318
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso de. Se a moda pega. 2ª DAP, cx. 33, n. 683, 1º ato,
p.28.
319
O personagem Chanchada é o compadre da revista e também deseja a mulata.Catharina.
116

O trecho acima traduz algumas noções importantes no que tange à relação entre
o português e a mulata. Uma primeira concepção é a imagem do português como um
apaixonado bobo e cego. Apesar de ter uma leve desconfiança, o português acredita na
lealdade da mulata.
Na última fala de Manoel se encontra expressa a ideia de que o português
acredita ter poder sobre a mulata, remetendo a uma representação recorrente do período
escravista, na qual o senhor branco era dono, e dispunha sexualmente, de sua escrava.
Porém, os autores destacam que, apesar de Manoel possuir um sentimento de posse em
relação à mulata, esta, por suas características de mulher autônoma e sedutora, acaba
invertendo o jogo, fazendo com que o português se tornasse seu escravo 321. Isso se
evidencia no fragmento abaixo:
MULATA (canta)
A mulata brasileira
Sempre foi um bom bocado
Seu coração é fogueira
Donde o homem sai queimado
Não há esse que não queira
Ser por ela escravizado
Da mulata feiticeira
Não gostar é um pecado322.

Nesse sentido, a mulata aparece como aquela que escraviza o homem pelo poder
sexual. E o português é o exemplo de homem que se deixa levar pelas tentações da
mulata, o que o leva a ser caracterizado como ―trouxa‖ ou ―bobo‖. Portanto, a imagem
do português é representada nas revistas de diversas formas, ora ridicularizada ora
apreciada, ora associada à formação do brasileiro ora representando uma negação das
raízes lusas, ora causadora de conflitos ora harmônica. Apesar de contraditórias, essas
múltiplas imagens se inserem nas discussões sobre quem é o brasileiro e quais são as
suas diferenças em relação a outros povos. Além disso, havia também a presença do
discurso modernista, de ultrapassar o passado escravista e a exploração do branco
português. Logo, as contradições das revistas são frutos das reflexões e dos debates do
tempo histórico vivenciado.

320
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso de. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33,1º ato,
p.35-36.
321
A inversão de papéis é reforçada pelo fato de Catharina se referir aos homens como frutas. Na maioria
das revistas, as mulatas é que são qualificadas desta maneira.
322
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso de. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33,, 1º ato,
p.7.
117

Cena 3 – As representações das manifestações culturais brasileiras/ cariocas: a


construção da ideia de popular e suas diferenciações

Segundo apontam Collaço e Luz, a revista, por suas características, já é uma


manifestação popular. Interessam à revista a ―própria sociedade (...) e suas mazelas,
sempre colocadas em tom de brincadeira e graça‖323. Nesse sentido, as autoras
encontram fortes semelhanças entre o teatro de revista e o carnaval. Como elementos
definidores de seu caráter popular, elas destacam: a reinvenção da realidade, utilizando-
se do pensamento fantástico como forma de denotar a realidade; a não passividade em
relação ao mundo; o uso de caricaturas, deboches; a inversão da ordem e etc. Portanto,
as autoras afirmam que a revista se fundamenta em aspectos da cultura popular, e elas
ressaltam esta concepção apresentando as ideias de Bakthin, como se observa abaixo:
Para Bakhtin as formas cômicas ―adquirem uma caráter não-oficial, seu
sentido modifica-se, elas complicam-se e aprofundam-se, para
transformarem-se finalmente nas formas fundamentais de expressão da
sensação popular do mundo, da cultura popular‖. Assim, por meio do
ridículo, a Revista expressa o ponto de vista das camadas populares frente
aos escândalos sociais, mostra na linguagem do povo que não há alienação,
muito menos passividade, mas uma forma diferenciada de se colocar frente à
realidade324.

O reconhecimento do caráter popular da revista, realizado por Collaço e Luz, é


um aspecto relevante que deve ser considerado pelos estudiosos. Porém, a influência do
caráter popular nas convenções e estruturas do teatro de revista não será analisada neste
trabalho. Por hora, analisarei apenas as representações da cultura popular nos textos
teatrais.
No que diz respeito às representações das manifestações populares, é importante
destacar o processo pelo qual elas ganharam espaço e valorização nos palcos cariocas.
Tiago de Melo Gomes ressalta que temáticas como a alegria, a cultura popular, as
danças, festas e etc. eram retratados já nas revistas de ano. Porém, era atribuído,
principalmente, um caráter negativo a essas características, sendo sinônimo de atraso e
incivilidade325.

323
COLLAÇO, Vera Regina Martins; LUZ, Ana Luiza da. ―É carnaval! Nos palcos da revista...‖. In:
Anais do Seminário de Iniciação Científica da UDESC, Florianópolis, SC, 2009. Disponível em:
<www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume4/numero1/cenicas/ecarnavalnospalcos.pdf> Acesso em:
07 de agosto de 2012.
324
Ibidem, p. 2.
325
GOMES, Tiago de Melo, op. cit.,1998, p.56.
118

Nas peças da década de 1920, as temáticas citadas acima são também retratadas,
porém, de forma diferente, como afirma Gomes:
Ao contrário do período anterior, este já nasce marcado intensamente por
uma visão relativamente positiva do ―popular‖, e a imagem da nação parece
iniciar aqui um deslocamento progressivo que levaria o malandro, ao lado do
samba, da mulata, da cachaça, da feijoada e do futebol, entre outros símbolos
a se tornar uma imagem característica do país 326.

A interpretação de Gomes refere-se à existência de uma positivação do popular


nos textos teatrais da década de 1920. Porém, é importante pensarmos se cabe uma
generalização sobre o caráter positivo presente nas revistas, visto que a revista
aprofundava diversos temas sob os mais diferentes pontos de vista. De certo, o popular
ganha novas interpretações ao ser admitido como imagem do brasileiro, porém, como
observamos no início do capítulo, nem sempre essa imagem é positiva.
No que tange a uma positivação do popular, Velloso observa o processo de
valorização das manifestações populares nesse período. A autora destaca o surgimento
de um grupo de intelectuais que viam nas ruas ―o espaço pleno de significado, (...)
revelando a existência de uma população que se mantinha desconhecida aos olhos da
República modernizadora‖ 327.
Tinhorão aponta a presença da música popular no palco, destacando que as
revistas foram importantíssimas para o lançamento de ritmos até então vigentes nas ruas
e desconhecidos pela classe média e alta, tais como o choro e o maxixe. Além disso, a
revista consagrou compositores como Pixinguinha, Lamartine Babo, Donga, Ari
Barroso, entre outros328.
Nas revistas da década de 1920 encontramos diversas referências às festas e
tradições populares, e a associação destas com a representação do carioca. Um exemplo
pode ser observado no seguinte fragmento:
Viva Penha
E viva o pessoal
Que, na Favela
Sim,
Não tem rival
Enfim.
Haja alegria!
Toca a dançar!
Cantar!
Chegou o dia
De pandegar
Nosso bloco vai dar um sortão!

326
Ibidem, p.57.
327
VELLOSO, Monica Pimenta, op.cit, 1996, p.29.
328
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: teatro e cinema. Petrópolis: Vozes, 1972.
119

(...)
Tal qual
Se faz
No carnaval
Vai ser a pagodeira
De primeira
Tal qual
Se Faz
No carnaval
O bloco do prazer
Há de vencer!329

A música entoada na peça Fla-Flu, de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes,


faz parte do quadro intitulado ―Rusticaria Cavallaria‖, paródia da ópera italiana
Cavalleria rusticana330.Um aspecto importante a ser ressaltado é a presença das festas
populares como o carnaval e a festa da Penha, denotado na música, transcrita acima, que
abre o quadro.
O quadro apresenta um enredo similar ao da ópera. Um jovem militar, chamado
Turiddu, deixa sua noiva Lola em função de uma missão em serviço. Ao voltar sua
noiva já se encontra casada com outro e, por conta disso, ele casa-se com Santuzza.
Porém, em um domingo de Páscoa, Santuzza, percebendo que o seu marido estava lhe
traindo com Lola, busca a ajuda de sua sogra. Enquanto todos estão na procissão de
Páscoa, Mamma Lucia e Santuzza conversam sobre o sofrimento desta última.
Santuzza, ao encontrar com Turiddo, suplica-lhe que não a deixe. Sem receber qualquer
resposta, Santuzza conta tudo para o marido de Lola, o qual jura vingança. O desfecho é
um duelo e a morte de Turiddu.
A revista Fla-Flu se utiliza deste enredo para contar a história da traição de
Turíbio com Lola, sendo Santinha a traída. Porém, apesar de enredos similares, os
autores colocam em cena os moradores do Morro da Favela 331. A figura de Turíbio faz
menção aos soldados que retornaram da Guerra de Canudos e que fundaram, segundo
uma versão histórica muito difundida, o morro da Favela. Além disso, ao invés de
retratar a preparação para a Páscoa, como ocorre na ópera, o quadro apresenta a
preparação para a festa da Penha. Nesse sentido, refere-se a manifestações populares

329
BITTENCOURT Carlos; MENESES, Cardoso de. Fla-Flu (1925). Arquivo Nacional, 2ª DAP, cx. 36,
n. 755.
330
Ópera, de Pietro Mascagni, com libreto de Giovanni Targioni-Tozzetti e de Guido Menasci, estreou
em Roma em 1890. O nome da ópera pode ser traduzido por Cavalheirismo rústico. As paródias, como já
abordamos anteriormente, era um elemento importante no teatro de revista. Ao recriar um enredo já
consagrado, os autores traziam elementos do cotidiano e da cultura local.
331
Atual morro da Providência
120

presentes no Rio de Janeiro, mesmo tendo um enredo pertinente a outros contextos


histórico-culturais.
No que diz respeito à Festa da Penha, os autores demonstram a preparação dos
moradores do Morro da Favela para participarem dos festejos. Esta era uma festa
católica de origem portuguesa, que já no início do século XX torna-se um espaço de
forte predominância popular, com barraquinhas onde eram vendidos quitutes da cozinha
baiana, com concursos de música popular, entre outras manifestações332.
A presença dos populares e sua animação para a Festa da Penha podem ser
verificadas em uma fala de Lucia, mãe de Turíbio, que afirma: ―A farra vai ser grande!
O pessoal da Favela está ensarilhado com a festa da Penha‖333. Nesta frase se observa
que o Morro da Favela está uma confusão com os preparativos para a festa, denotando a
participação de uma população ampla, habitante deste reduto.
O texto nos permite analisar os preparativos dos moradores da Favela. Em uma
fala de Álvaro, há uma referência ao meio de locomoção utilizado: ―(...) O caminhão,
todo enfeitado, ficou, lá, em baixo, esperando por vocês... (indo à porta da venda) Ó seu
Manoel, sirva bebida a esse pessoal! Quem paga sou eu!‖ 334. Observam-se duas
características relativas ao grupo social retratado. A primeira é o fato de beberem antes
da partida, o que demonstra que os aspectos profanos se faziam presentes, e
possivelmente eram predominantes, em sua participação no festejo religioso. A segunda
é a existência de elementos ―carnavalescos‖ associados ao seu deslocamento e presença
na Festa da Penha, como por exemplo, o caminhão enfeitado. Essas mesmas
características são evidenciadas em uma fala de Turíbio, o qual afirma: ―Amigos! Antes
de seguirmos no caminhão, que nos levará à Penha, quero que bebam um trago à minha
felicidade‖335.
Portanto, além de reunirem diferentes grupos sociais, entre eles o dos moradores
da Favela, os festejos da Penha abarcavam dimensões festivas não ligadas à
religiosidade, como por exemplo o consumo de bebidas alcoólicas, o uso de enfeites ―à
moda carnavalesca‖ etc. Esta festa foi um importante local onde os populares
manifestavam tanto sua devoção religiosa quanto suas manifestações artísticas e
culturais. Não havia uma demarcação rígida entre o sagrado e o profano, possibilitando-

332
VELLOSO, Monica Pimenta. As tradições populares na belle époque carioca. Rio de. Janeiro:
Funarte, 1988.
333
BITTENCOURT Carlos; MENESES, Cardoso de. Fla-Flu (1925). Arquivo Nacional, 2ª DAP, cx. 36,
n. 755, ato II, p. 14.
334
Ibidem. ato II, p.15.
335
Ibidem, ato II, p. 20.
121

os a encontrar na festa um espaço de lazer. Aos poucos, indivíduos de diferentes


localidades, nacionalidades e segmentos sociais passaram a ter presença obrigatória nas
festas. Dentre os diferentes grupos se destacam os negros baianos, que levaram para a
festa, além dos quitutes baianos, suas músicas e danças.
Rachel Soihet, ao realizar pesquisas em jornais, aponta que a Festa da Penha não
era apenas frequentada pelos ―populares‖, mas também por senhoras ―da nossa melhor
sociedade‖336. O jornal O País, por exemplo, descreve a presença de múltiplos
segmentos sociais na festa: ―Era um espetáculo maravilhoso pela completa fusão de
todas as classes sociais, numa só leva de peregrinos, impelida pelos sentimentos
religiosos‖337. Os autores da revista, porém, nos transmitem apenas a presença dos
segmentos sociais menos favorecidos economicamente. Buscando as razões para tal
imagem, é importante ressaltar o fato de que os revistógrafos buscavam expressar
opiniões diversas, vigentes na sociedade, sobre os temas abordados. Assim, não
podemos afirmar qual era a opinião dos autores, de fato, sobre a Festa da Penha e seus
frequentadores. Mas podemos pensar que visões os autores retrataram no fragmento
destacado acima.
A presença dos populares e suas manifestações na festa foram fortemente
criticadas por intelectuais e reprimidas pela polícia. Por exemplo, Olavo Bilac, em 1906,
caracteriza a população que frequentava a Festa da Penha como desordeira e popular:
―Os carros e carroções enfeitados com colchas de chita, puxados por muares ajaezados
de festões (...) todo esse espetáculo de desvairada e bruta desordem ainda se pode
compreender no velho Rio de Janeiro‖338. Em alguns jornais esta mesma impressão é
manifestada: ―Em um canto se formavam os cordões terríveis, ameaçadores, selvagens.
Em outro canto reuniam-se os sambas, não menos terríveis e muito mais selvagens‖ 339.
Soihet nos apresenta uma série de reportagens em que se denota a presença de
policiais na Festa da Penha como forma de reprimir a atuação dos populares. Dentre as
formas de repressão, se encontra a proibição de determinadas manifestações, como por

336
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo
de Vargas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 22.
337
―Romaria á Penha‖. O País, 8 out. 1906. Apud: SOUZA, Luana Mayer de. ―A tradição na
modernidade: A Festa da Penha pelas letras de Olavo Bilac‖. In: Anais do Encontro Regional da Anpuh-
Rio. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em:
<www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276741796_ARQUIVO_PenhaparaANPUH.pdf> .
Acesso em: 04 de setembro de 2012.
338
BILAC, Olavo. ―A festa da Penha‖. In: Kosmos, Rio de Janeiro, out. 1906, ano III. Apud: SOIHET,
Rachel, op. cit., 1998, p. 21-22.
339
Jornal do Comércio, 25 de out. 1920. Apud SOIHET, Rachel, op. cit., p.34.
122

exemplo, o samba. Apesar da forte repressão, a participação dos populares na festa


continuou existindo. A autora destaca, assim, o papel que a festa teve como forma de
resistência e luta contra a discriminação e a opressão 340.
Levando em consideração os apontamentos de Soihet, podemos retomar a
análise do fragmento da peça Fla-Flu (1925), de Bittencourt e Menezes. A ideia trazida
pelos autores estava na ordem do dia. A ―tomada‖ da festa pelos populares era tratada
tanto de forma negativa, como observamos nos textos de Bilac e do Jornal do Comércio,
quanto de forma positiva pelos jornais. O Jornal do Brasil adotou uma linha simpática
às manifestações populares, defendendo os foliões e afirmando que ―o samba e o
batuque (...) eram apreciados por pessoas de todas as classes‖ 341.
A revista Fla-Flu, apesar de buscar assumir uma posição neutra ao expor
considerações sobre a festa, nos demonstra certo preconceito ao tratar da população que
a ela se destinava. Verifica-se a presença de pensamentos preconceituosos já no nome
do quadro – ―Rusticaria Cavalaria‖. Como se pode observar, os habitantes da Favela,
freqüentadores da Festa da Penha, são caracterizados como rústicos, rudes e grosseiros,
em uma descrição semelhante à de Bilac, relatada acima.
Ao apresentarem os populares que se dirigiam para a festa da Penha como rudes
e grosseiros , os autores transmitem o pensamento de grande parte da elite brasileira. As
razões para tal representação podem ser variadas: o caráter da revista, que expressava
opiniões diversas sobre o mesmo assunto, o reflexo do pensamento dos próprios
autores, a presença de públicos diversificados e o desejo de que todos vissem suas ideias
representadas nos palcos e etc. Mas, dado o contexto em que foi montada a peça Fla-
Flu, podemos interpretar a existência de um olhar negativo sobre o universo popular,
relacionado à busca de diferenciação por parte de certos segmentos sociais.
A peça Fla-Flu foi escrita para ser encenada pela Companhia Tró-ló-ló. Fundada
por Jardel Jércolis, essa companhia tinha por característica apresentar peças que
evidenciassem a parte show do espetáculo, com luxo tanto nos figurinos quanto no
cenário, seguindo, portanto, a fórmula das companhias europeias. Tiago de Melo Gomes
ressalta o papel que essa companhia teve no processo de diferenciação social do público
teatral, uma vez que ela não apenas trazia as novidades das peças europeias como
buscava atrair um público mais refinado. Ao invés de escolher a Praça Tiradentes,

340
SOIHET, Rachel. op. cit, p.45.
341
Ibidem, p. 38.
123

consagrada pelas revistas tidas como populares, a peça Fla-Flu foi apresentada no
Teatro Glória, na Cinelândia, locus frequentado por pessoas de classes mais altas342.
Portanto, a possibilidade de presença de um público mais refinado nos
espetáculos da Companhia Tro-ló-ló pode ter incitado os autores da peça Fla-Flu a
escreverem mais para um público elitista do que para um público de menor poder
aquisitivo, como o dos teatros da Praça Tiradentes. Logo, independente das razões
individuais dos autores, a abordagem negativa da população que se destinava à Festa da
Penha pode estar intimamente ligada ao público-alvo da peça analisada.

***
No que diz respeito ao carnaval, é importante destacar a existência de peças
carnavalescas. As revistas carnavalescas foram caracterizadas por diversos autores 343
como genuinamente brasileiras. Isso se explica pelo fato de o Brasil inaugurar um tipo
de revista no qual o carnaval se torna o tema por excelência. Segundo o estudo de
Collaço e Luz344, dentre os aspectos que podem ser citados para o surgimento desse tipo
de revista estão: a influência do cinema no campo do entretenimento, a massificação da
cultura345, a busca pela definição do ―nacional‖, principalmente após a eclosão da 1ª
Guerra Mundial, o gosto pelo luxo, colorido e sensual aflorado pela passagem das
companhias Velasco e Bataclan.
Nas revistas carnavalescas, não apenas o tema central modificou-se, mas houve
mudanças no aspecto temporal, ou seja, as peças ocorriam no período pré ou pós-
carnavalesco. As revistas pré-carnavalescas eram voltadas para os preparativos da festa,
lançando músicas que seriam sucesso no carnaval. Já as pós-carnavalescas relatavam os
acontecimentos do carnaval, inclusive as músicas. Há mudança, ainda, na dinâmica da
encenação. O prólogo deixou de apresentar acontecimentos chave que seriam
desdobrados na peça, e passou a ser um momento em que o Rei Momo se apresentava e
anunciava a festa.
Nesta dissertação, escolhi trabalhar com duas revistas carnavalescas. Na peça
Reco-Reco, de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, datada de 1921, se denota a

342
GOMES, Tiago de Melo, op.cit., 2004, p. 168-172.
343
Dentre os autores que destacam essa posição, podemos citar COLLAÇO, Vera Regina Martins; LUZ,
Ana Luiza da. op. cit., 2009, VENEZIANO, Neyde. Não Adianta Chorar: teatro de revista
brasileiro...oba! Campinas: UNICAMP, 1996 e VENEZIANO, Neyde. op. cit., 1991.
344
COLLAÇO, Vera Regina Martins; LUZ, Ana Luiza da, op. cit., p.2.
345
Gomes, em seu livro Um espelho no palco, realiza um estudo sobre o processo de massificação da
cultura e a inserção do teatro de revista nesse contexto.
124

cidade do Rio de Janeiro como a cidade do carnaval, da alegria, da pândega. Isso se


torna evidente logo no 1º quadro, quando os autores retratam o palácio do Rei Momo e
a enfermidade que o abate. A fim de ajudar o rei, as três cidades em que ―Momo sempre
teve embaixador e súditos‖ foram convocadas:
NICE – Pobre Momo! Como lamento nada poder fazer em seu proveito!
VENEZA – Eu também (suspira) Em todo caso, creio que me cabe a
primazia de ser o Rei Momo enterrado nos meus domínios...
FOLIA – O Carnaval de Veneza foi sempre célebre.
RIO DE JANEIRO (a rir-se) – História! (a Veneza e Nice) Recolham-se aos
bastidores! Que valem vocês diante de minha imponência? (aos demais)
Meus amigos, o Carnaval não morre! Eu o afirmo! 346

O fragmento acima retrata o Rio de Janeiro como a cidade capaz de manter vivo
o carnaval. Nice e Veneza têm reconhecida sua importância na origem dos festejos, mas
são apresentadas como ultrapassadas e incapazes de manter a saúde de Momo e da folia
que ele representa. Em uma outra passagem, o Rio de Janeiro cura o Rei Momo com seu
sangue, como se observa na seguinte fala: ―O meu sangue é novo, é forte, é puro! O
único micróbio que pode possuir é o da pandega! Esse reanima, não faz mal a
ninguém‖. Após a transfusão de sangue, Momo é curado e se apresenta mais forte do
que nunca.
A revista Baiana olha pra mim, dos mesmos autores e datada de 1926, apresenta
também o Rio de Janeiro e sua relação com o carnaval, como podemos observar no
fragmento abaixo:
CARIOCA (à tradição carnavalesca) – Minha querida! Eis-me aqui, firme
disposto a cooperar para que mais te consolides!
TRADIÇÃO - Abraça-me Carioca! És parte integrante do meu coração!347

Através da personificação da tradição carnavalesca e do carioca, observamos


que o Rio de Janeiro é caracterizado como uma cidade carnavalesca, onde a tradição do
carnaval se faz presente. Através dos fragmentos acima, podemos compreender a
associação da identidade carioca com o carnaval e com tudo o que é apontado como
característico dessa manifestação popular, como a alegria, a pândega, o riso e etc. Cabe
destacar que as revistas tiveram um papel importante na construção dessa identidade
carioca. Tânia Brandão acredita que o teatro carioca tenha exercido forte influência para
a constituição do mito do Rio de Janeiro como cidade maravilhosa, como ressalta
abaixo:

346
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Réco-Réco (1921). 2ª DAP, n.195, cx: 11.
347
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Baiana olha pra mim (1926). 2ª DAP, n.778 -
cx.37.
125

O Rio de Janeiro tornou-se a cidade do teatro, e é bastante aceitável


afirmar que muito da imagem da corte, construída como artifício de
poder diante do país, foi gerado pelo burburinho dos palcos. E esta
imagem foi desde sempre uma imagem híbrida, mescla de poder e
pecado, alegria, irreverência e cosmopolitismo. Parece justo defender
a idéia de que este perfil, historicamente associado à cidade, teve
origem nas condições históricas da vida teatral carioca. E talvez se
possa ir um pouco mais longe - uma das hipóteses que se pretende
examinar nesta pesquisa é a possibilidade de que o teatro carioca dos
anos 1920 tenha prestado uma contribuição decisiva para o
aparecimento do mito da cidade maravilhosa que se espraiou pelo
País a partir da década seguinte 348.

Herculano ressalta, ainda, que ―a invenção do Rio de Janeiro transmutava-se em


invenção do carioca, e neste processo se inventa o próprio brasileiro, como ele seria
349
vendido para o mundo: malandro, sensual, musical‖ . O autor afirma que a ideia de
compreender o nacional por meio de sua síntese – a cidade do Rio de Janeiro – já pode
ser observada desde as revistas de ano de Artur Azevedo. Porém, nas revistas
carnavalescas, como observamos acima, essa associação se torna mais clara.
A importância que o carnaval assume para os brasileiros foi tematizada no
segundo quadro da revista Reco-Reco. Neste, apresenta-se a saga de alguns personagens
para conseguir trezentos mil réis para comprar o resto das fantasias do Rancho Rosa
Encarnada. O carnaval assume tal importância para a mulata (Florzinha) e para o mulato
(Joca) que diversas mentiras são inventadas, até mesmo a morte de um deles.
FLOR – Eu precisava de duzentos mil réis...
JOCA (espiando)- Pede trezentos!... (esconde-se)
GRANDELA – Ai, o papagaio! (a ela) Duzentos mil réis? Ó
rapariga...duzentos mil réis!...
FLOR – É para um enterro, seu Grandela
GRANDELA (olhando o papagaio) – Dá azar?! (a Flor) Não chores!...Mas,
quem te morreu, ó rapariga?
FLOR – Foi um irmão de criação: o Joca! O professor de dança...350

Em contexto diferente, a revista Baiana olha pra mim também expõe uma busca
por dinheiro para adquirir fantasias para o baile de carnaval. Os autores colocam em
cena uma família modesta que precisa de dinheiro para conseguir vestidos novos ou
fantasias para as três filhas. Apesar de fortes críticas ao pai que gasta seu dinheiro no

348
BRANDÃO, Tânia. ―A cidade do teatro e o teatro da cidade: imagens do Rio de Janeiro no teatro de
revista dos anos 1920‖. In: Anais do Encontro Regional de História ANPUH- RJ, Rio de Janeiro, 2006.
Disponível em: <http://www.rj.anpuh.org/resources/rj/Anais/2006/conferencias/Tania%20Brandao.pdf>
Acesso em: 20 de maio de 2010.
349
LOPES, Antônio Herculano. ―O teatro de revista e a identidade carioca‖. In: ________(org.) Entre a
Europa e a África: A invenção do carioca. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2000, p. 22.
350
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Réco-Réco (1921). 2ª DAP, n.195, cx: 11
126

jogo do bicho, é através do jogo que o pai leva, ao final do quadro, o dinheiro tão
esperado para as filhas.
Assim, as revistas citadas tematizavam o forte apreço dos segmentos sociais
menos favorecidos economicamente pelo carnaval, que na década de 1920 era,
juntamente com os festejos da Penha, a principal festa popular da cidade.
As revistas carnavalescas traduzem uma diversidade de manifestações presentes
no carnaval do início do século XX no Rio de Janeiro. Dentre os aspectos abordados nas
peças, podemos estudar as formas como as manifestações carnavalescas de cunho
popular aconteciam.
No terceiro quadro da revista Réco-Réco, Bittencourt e Menezes colocam em
cena uma praça pública de ―um bairro conhecido, sendo possível Catumbi‖. Na praça há
faixas referentes aos divertimentos que ali ocorrerão, como se demonstra na seguinte
rubrica: ―Ao alto, atravessando a cena, um largo pano branco com os seguintes dizeres:
‗Hoje! Grande batalha de confete promovida pelo rancho da Rosa Encarnada‘‖. Os
autores ainda deixam claro, na rubrica referente ao cenário, que as faixas também se
referem à existência de prêmios tanto para os ranchos quanto para os cordões, os blocos
e as máscaras. Isso nos possibilita compreender o universo carnavalesco a que os
autores da revista se referem.
A batalha de confete, mencionada acima, foi uma prática adotada em fins do
século XIX, que tinha como proposta substituir o entrudo, ou seja, tornar o divertimento
mais civilizado. Maria Clementina Pereira Cunha, em sua obra Ecos da folia, cita essa
prática como sendo uma das tentativas de eliminar o entrudo. Segundo ela, o uso dos
confetes começa a ganhar impulso com a abertura das grandes avenidas e com o
aumento de importação de confetes351. A autora afirma que, apesar da batalha de
confetes ser vista como uma brincadeira refinada, ela não se diferenciava tanto das
formas antigas de brincadeiras carnavalescas. Sua afirmação se baseia em textos
jornalísticos, como demonstrado abaixo:
A bela troça, o espírito e o humor carnavalesco, estavam definitivamente
suplantados pelo novo entrudo não raro tão brutal como o antigo. [...] Foi
nos subúrbios e arrabaldes que o jogo dos confetes tomou as proporções do
ano passado. Uma coisa colossal! Os rapazes chegavam a assaltar os bondes
para atirar aos punhados as rodelinhas multicores nas moças e senhoras do
seu conhecimento352

351
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma história social do Carnaval carioca entre
1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 81.
352
O Malho, 4 março 1911. Apud: CUNHA, Maria Clementina Pereira, op. cit., p. 81-82.
127

Na peça, a realização da batalha de confete é apresentada no seguinte fragmento:


GERVASIO – A batalha parece que vai estar o suco!
ALIPIO – Só não vêm os automóveis, porque a polícia não deixa, para evitar
desastres... (Entram Felicia, Nhãnhã, Nenê e Janjão, havendo entre eles um
renhido combate de lança perfume. As moças também trazem sacos de
confete).
FELICIA (tapando a vista esquerda) – Assim, não! Assim não vale! ...O
senhor deu-me um esguichão no olho...
JANJÃO – Queira perdoar, minha senhora; não foi por querer...(as duas
raparigas aproveitam-se do momento e seguram Janjão, isso de maneira que o
encubram do publico. Enchem-lhe a boca e o colarinho de confete,
obrigando-o a agachar-se) Ai! Ai! Bonito! Hénde! Hénde!
NHÃNHÃ (a saltar) – Vitória! Vitória!
NÊNÊ (a velha) – Já deu parte de fraco, mamãe!
JANJÃO – Pudera!... Três contra um!...353.

Acima, podemos analisar alguns aspectos da batalha de confete como


divertimento carnavalesco. Os autores ressaltam a presença do lança-perfume como um
coadjuvante na batalha. Cabe ainda inferir sobre os grupos sociais que os personagens
acima retratam. A referência aos automóveis, ao lança-perfume, aos confetes, ao
colarinho e, de certa forma, ao linguajar de Janjão, sugerem a possibilidade do grupo, ou
parte dele, pertencer a uma camada social mais favorecida economicamente ou, no
mínimo, intermediária. Maria Clementina Cunha ressalta que os confetes e todos esses
novos utensílios provindos de meios industriais, embora não tenham conseguido apagar
o jogo do entrudo, foram instrumentos de distinção social, ―pois naturalmente os mais
pobres continuavam a valer-se do limão de cera, das soluções domésticas como farinhas
e águas-servidas‖354.
O terceiro quadro da revista Réco-Réco se desenvolve a partir dos preparativos
para o encontro entre os dois ranchos – Rosa Encarnada e Rosa Branca. O primeiro é o
preferido pela maioria dos personagens, tanto por aqueles envolvidos diretamente no
rancho, quanto pelo público masculino, principalmente devido à presença de Florzinha,
a porta-estandarte do Rosa Encarnada, que é retratada como objeto de desejo masculino.
O desfile dos ranchos é apresentado na peça nos seguintes fragmentos:
JOCA (pulando) – Olá! Conheço esta pancadaria!...(escutando) É a Rosa
Branca (fazendo passos de capoeiragem) É agora, Gervasio! Se o trapo da
Rosa Branca não embicar com o estandarte da rosa Encarnada e se não
houver o beijo cerimonioso do ―tou te respeitando‖, morre gente de pagode!
(...)
GERVASIO – Belo quadro de Calixto Cordeiro!355 (entra o rancho da Rosa
Branca, vindo à frente como porta estandarte, Olegaria, vindo ao lado desta

353
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Réco-Réco (1921). 2ª DAP, n.195, cx: 11.
354
CUNHA, Maria Clementina Pereira. op. cit., 2001, p. 82.
355
Referência ao caricaturista K.Lixto (1877-1957), atuante nas revistas O Malho e Fon Fon e em outras
publicações periódicas. Na passagem citada, os autores sugerem que a saudação das bandeiras dos
128

um homem vestido de girassol e a fazer letras ou passos de danças


carnavalescas dos cordões. O rancho evolui e há a cerimônia já observada
anteriormente do arriar da bandeira. Alípio e Gervasio batem palmas e
cumprimentam a Olegaria todos risonhos, tirando-lhe o chapéu)356.

Encontramos presentes, no fragmento acima, alguns aspectos importantes, como


o encontro entre os ranchos competidores. Soihet aponta que este encontro era parte de
357
um cerimonial ―em que os estandartes se saudavam‖ e onde a dança se fazia
presente. Os ranchos, segundo a autora, eram compostos por uma porta-bandeira e três
mestres: um para a orquestra, outro para o coro, e um terceiro para a coreografia,
chamado de mestre-sala. A marcha entoada pelos ranchos fazia alusão ao seu próprio
nome.
O rancho era um tipo de grupo carnavalesco que possuía um enredo dramático
específico, alegorias e alas, influenciando, assim, o modelo de organização dos desfiles
das escolas de samba como conhecemos358. Eles se originaram de um ritual religioso
ligado à cultura negra, principalmente baiana. Ou seja, os primeiros registros sobre essa
manifestação se referem aos desfiles diante do presépio presididos pelas ―tias baianas‖,
que ocorriam entre o natal e o dia de reis359.
A transferência do rancho para o carnaval ocorreu em fins do século XIX.
Hilário Jovino Ferreira afirmou ter sido um dos responsáveis por isso ter ocorrido, como
se observa abaixo:
Em 1872, quando cheguei da Bahia, a 17 de junho, já encontrei um rancho
formado. Era o Dois de Ouros. [...] fiz-me sócio e depressa aborreci-me com
alguns rapazes e resolvi então fundar um rancho [o Rosa de Ouro]. [...] [A
saída às ruas] deixou de ser no dia apropriado, isto é, a 6 de janeiro, porque o
povo não estava acostumado com isso. Resolvi então transferir para o
Carnaval. Foi um sucesso! Deixamos longe o Dois de Ouros360.

A representação dos ranchos pela revista nos possibilita pensar sobre sua
representatividade no carnaval carioca. Soihet destaca que os ranchos, na década de 20,
figuravam como uma das mais importantes manifestações carnavalescas. É importante
pensar, também, sobre o seu caráter popular e suas apropriações por diversas camadas
da sociedade.

ranchos seria um belo tema para caricatura. Dessa forma, a revista comentava a grande presença de temas
carnavalescos na imprensa periódica e, sobretudo, nas revistas ilustradas.
356
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso de. Réco-Réco (1921), 2ª DAP, n.195, cx: 11.
357
SOIHET, Rachel, op. cit., 1998, p. 91.
358
ARAÚJO, Samuel et al. ―Entre palcos, ruas e salões: processo de circularidade cultural na música dos
ranchos carnavalescos do Rio de Janeiro (1890-1930)‖. In: Em pauta, Porto Alegre, v. 16, n. 26, p. 73-94,
jan – jun 2005.
359
SOIHET, Rachel, op. cit., p.88-89.
360
ARAÚJO, Samuel et al., op. cit., p. 79.
129

Samuel Araújo aponta que, em fins da primeira década do século XX, o rancho
congregava trabalhadores de indústrias, fábricas, funcionários públicos, do arsenal da
marinha e etc. A adesão de novos grupos sociais provocou mudanças em alguns
elementos. Araújo cita o conjunto de sopros como uma dessas novas incorporações.
Além disso, os ranchos eram vistos pelas camadas mais letradas como um tipo de
manifestação carnavalesca mais civilizada do que os cordões e o entrudo. Talvez por
isso, alguns personagens da revista citada pudessem ser interpretados como pertencentes
a segmentos sociais elevados e intermediários, apesar dos ―passos de capoeiragem‖ e
das ameaças de violência de Joca.
Tanto Araújo et al quanto Soihet apontam a existência de trocas culturais nos
ranchos. Um dos exemplos citados por Soihet é a participação de pintores como
Henrique Bernardelli e Rodolfo Amoedo na construção de alegorias para os ranchos. A
autora conclui, portanto, que ―fica evidenciada (...) a existência de trocas entre os
segmentos populares e os demais – médios e dominantes – ainda num contexto em que
as manifestações daqueles eram objeto de rejeição‖ 361.
Na peça, a existência de diferentes camadas sociais nos ranchos é retratada a
partir dos personagens em cena. No quadro três estão Paulo, funcionário da Saúde
Pública e descendente de um romancista, Alípio, servente do Ministério da Aviação e
Gervásio, mulato e escritor, servente da Sociedade dos Autores Nacionais. Assim, a
descrição dos personagens, sobretudo se incluirmos Joca, Alípio, Felícia, Janjão,
NhãNhã e Nenê, presentes na outra citação, parece representar o rancho como uma por
manifestação carnavalesca que alcançava um público relativamente variado, formado
sobretudo por indivíduos de baixa renda e pelos segmentos sociais intermediários.
A revista Réco-Réco apresenta, ainda, outra manifestação carnavalesca. No sexto
quadro da revista, Bittencourt e Menezes trazem à cena um salão de fantasia 362,
representando os domínios da senhora ―Terça-feira Carnavalesca‖ No pano de fundo do
cenário, há uma imagem do Zé Povo e, acima dele, as figuras representativas dos
Tenentes, Fenianos e Democráticos, dando a entender que as sociedades são as únicas
preocupações do Zé Povo.. Assim, ao ler a rubrica do cenário já se pode deduzir sobre
um dos temas que o quadro tratará – as sociedades carnavalescas.

361
SOIHET, Rachel, op.cit., p.95.
362
Na peça, a representação de um salão de fantasia nos parece indicar a existência de bailes à fantasia,
não apenas bailes elegantes, mas também, bailes onde frequentavam o ―Zé Povo‖.
130

Os Tenentes do Diabo, Fenianos e os Democráticos representam as três


principais sociedades carnavalescas do Rio de Janeiro. Leonardo Pereira, em sua obra O
Carnaval das letras, apresenta a origem destas três grandes sociedades. Segundo ele, as
sociedades tornaram-se presentes no carnaval carioca desde meados da década de 50 do
século XIX. As primeiras sociedades buscavam implantar um novo modelo de carnaval,
baseado nas tradições europeias e não nos entrudos e outros folguedos comuns no
carnaval brasileiro. Nesse sentido, as sociedades carnavalescas, ao exaltarem o luxo e o
esplendor, afirmavam uma diferenciação social em relação às manifestações mais
populares.
Pereira afirma que, ao longo da segunda metade do século XIX, as sociedades
sofreram diversas mudanças ―no sentido de alargar sua popularidade‖. Dentre as
mudanças ocorridas ao longo do tempo, o autor destaca, ressaltando a crônica de
Valentim Magalhães, duas principais transformações: a apresentação de mulheres
seminuas e a realização de alusões e críticas políticas, no lugar da ênfase ao luxo e à
elegância363.
O autor ressalta que desse processo de renovação surgem as três grandes
sociedades citadas anteriormente. As três associações surgiram em fins da década de
1860, sendo os Tenentes descendentes diretos dos Zuavos Carnavalescos e os Fenianos
uma dissidência dos primeiros. Já os Democráticos surgem pela ―iniciativa de um grupo
de empregados do comércio‖364. As três agremiações estavam, ao longo da década de
1880, entre as principais atrações do carnaval.
Leonardo Pereira aponta que era este tipo de manifestação carnavalesca que os
literatos mais defendiam. Dentre as razões para tal, o autor afirma que tanto os literatos
quanto as sociedades realizavam grande campanha contra o entrudo. Além disso, os
literatos viam nas sociedades um novo modelo de carnaval, que permitiria maior
democratização do divertimento, como destaca no seguinte fragmento:
Mais do que combater o velho entrudo, eles projetavam um novo modelo de
carnaval, que em muito se aproximava do tipo de sociedade sonhado por
vários destes literatos – um carnaval aberto, nas ruas, que democraticamente
permitiria que todos brincassem a mesma festa, sem as distinções que
caracterizavam os jogos das molhadelas 365.

363
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O carnaval das letras. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal
de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1994, p.
73.
364
Ibidem, p.74.
365
Ibidem., p.79.
131

Porém, apesar de poderem ser defendidas como propiciadoras de uma folia


democrática, as sociedades carnavalescas restringiam seus sócios, uma vez que haviam
várias exigências366. Pereira, ao analisar os estatutos dos Democráticos e dos Tenentes,
observa que, para ser associado, era preciso ter ―ocupação honesta‖ e boa conduta,
sendo esta última averiguada367. Além disso, eram cobradas dos sócios uma taxa de
matrícula e uma mensalidade. O autor cita os seguintes valores: eram cobrados 10$000
no ato de admissão, tanto pelos Democráticos quanto pelos Tenentes, e 3$000 por mês.
Leonardo Pereira conclui que a participação, como sócio, nas sociedades
carnavalescas, não era acessível a todos os segmentos sociais. Segundo ele, até mesmo
os bailes promovidos pelas sociedades carnavalescas eram frequentados apenas pelos
segmentos sociais mais favorecidos economicamente. Para os demais havia a
possibilidade, apenas, de admirar os desfiles que ocorriam na terça-feira de carnaval.
Porém, não-sócios acompanhavam ativamente os préstitos carnavalescos. A
multidão que acompanhava os préstitos não era formada apenas por curiosos, pois
existiam inflamadas torcidas ―que tomavam o partido de uma ou outra sociedade e se
mostravam dispostas a acompanhá-las ao longo do trajeto‖368. Na revista Reco-Reco, de
Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, pode-se analisar a rivalidade entre os
torcedores das sociedades. A revista traz uma discussão entre um velho, uma criança e
uma moça sobre suas preferências carnavalescas, como podemos observar abaixo:
MENINO (ao velho) – Você é besta! É canja! É sopa! Os Fenianos nem dão
confiança!...
MOÇA (ao menino e ao velho) – Não digam asneiras, estúpidos! Os
Democráticos quando saem é certa a vitória!
VELHO – Que Fenianos? Que Democráticos? Os Tenentes! Os Tenentes é
que têm a palma!
MENINO – Isso era no tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça...
Fenianos na ponta!...369

Além das rivalidades presentes no público, o fragmento acima nos permite


examinar o alcance que as três grandes agremiações possuíam. Ao apresentar gerações
diferentes discutindo sobre suas preferências carnavalescas, os autores sugerem que
diferentes grupos de pessoas acompanhavam os préstitos. O estudo de Cunha expõe que
o público das sociedades carnavalescas era amplo, incluindo tanto trabalhadores

366
Ibidem, p. 98.
367
Ibidem, p. 99.
368
CUNHA, Maria Clementina Pereira, op. cit., p. 125.
369
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso de. Reco-Reco (1921). 2ª DAP, n.195, cx: 11.
132

urbanos pobres quanto intelectuais e senhores dos segmentos sociais mais favorecidos
economicamente.
Além da batalha de confete, dos ranchos e das grandes sociedades, outras
manifestações carnavalescas são referenciadas nas peças do teatro de revista. A revista
Baiana, olha pra mim, de Bittencourt e Menezes, datada de 1926, faz referência ao Zé
Pereira, outra manifestação popular comum no inicio do século XX, que é caracterizada
como um conjunto de tambores tocados por homens. Na peça, o Zé Pereira é
apresentado tanto como manifestação popular quanto como personagem masculino e
português370.
O personagem Zé Pereira é um português, retratado como proprietário de uma
casa comercial. Seu caráter ―burguês‖ é apresentado no segundo quadro, quando Zé vai
à casa de Bibiana (mãe de três meninas que estão desapontadas por não possuírem
dinheiro para fantasia) para cobrar-lhe 320$000, gastos, no carnaval passado, em
compras no seu armarinho:
Zé – Bolas, minha senhora, bolas! Eu não vim cá para tomar soda nem
dançar! Eu vim receber aquela continha atrasada, do Carnaval passado! São
320$000. (todas rodeiam Zé e começam a fazer-lhe festas)
MARIQUINHAS – Seu Zé! Nós tínhamos resolvido o seguinte: a conta do
ano passado, o senhor juntava com a deste ano e nós pagaríamos tudo, depois
do Carnaval!
Zé – As senhoras estão malucas? Pensam talvez que eu nasci bobo? Eu hoje,
daqui não saio sem receber a conta!371

A família de Bibiana não apenas continua devendo a Zé Pereira, como o rouba.


No segundo ato, a família arma um estratagema. As moças vão até a loja de Pereira
experimentar meias. No meio da cena, aparece Rego, o pai das meninas, ameaçando Zé
Pereira e acusando-o de estar se aproveitando da situação para colocar a mão na perna
de sua filha. Rego mira uma arma em Zé Pereira enquanto as moças retiram de sua loja
inúmeros produtos:
REGO (puxando o revólver) – Vou te matar! Vais morrer! Vou disparar as
seis balas deste revólver! (baixo às três) Como é? Vocês já avançaram nas
meias?
LALA – Já! O serviço foi bem feito!
ZÉ - Se a bala furar a trincheira estou morto!
(...)
BAIANA (furtando coisas) – Não mates seu Zé, coitadinho!
MARIQUINHAS (furtando meias) – Perdoa ele papai!372

370
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Baiana olha pra mim (1926). 2ª DAP, n.778,
cx.37.
371
Ibidem.
372
Ibidem
133

A representação de um personagem-tipo português não é novidade nas peças de


Bittencourt e Menezes, como já verificamos anteriormente. Também não é novidade, no
cenário do teatro ligeiro, a associação entre o português e este folguedo. Maria
Clementina Pereira Cunha aponta a existência de personagens portugueses associados
ao Zé Pereira, no palco carioca, desde a burleta de Francisco Correa Vasques, intitulada
O Zé Pereira Carnavalesco, que estreou em 1869373.
Nessa burleta, o personagem português aparece como integrante do grupo de Zé
Pereira. Segundo o estudo de Cunha, Vasques demonstra em sua peça que os integrantes
desse folguedo pertenciam a grupos sociais de baixo poder aquisitivo. A análise da
autora perpassa as profissões dos integrantes, como funileiro, charuteiro, vendedor de
galinhas e prostituta. Embora fossem indivíduos de baixa renda, os participantes do Zé
Pereira de Vasques pretendiam se equiparar ao modelo das grandes sociedades, ou seja,
tinham como referência um padrão de grupo carnavalesco intelectualizado e branco374.
Andrea Marzano sintetiza bem as ideias de Maria Clementina Cunha ao afirmar
que o que esta autora observou no carnaval, e mais especificamente no Zé Pereira,
foram vestígios de conflito social, ao invés da suspensão de hierarquias que muitos
estudiosos, a exemplo de Roberto Da Matta, apontaram375. Isso porque observamos que
o potencial cômico da burleta está justamente no nivelamento entre o Zé Pereira e as
Sociedades Carnavalescas, como destaca Marzano:
(...) se o Zé Pereira de Vasques era composto por indivíduos desfavorecidos
economicamente, aspirava igualar-se aos préstitos elegantes, o que fica
evidenciado em um diálogo dos personagens Véstia e Ferreiro.
Véstia – Alto frente, porfilar! Agora, enquanto não vamos para o baile onde
vai fazer furor a nossa sociedade, cantemos alguma coisa!
Ferreiro – O que há de ser?
Véstia – Asneiras de carnaval, tudo serve!
Nessa passagem, Vasques sugere a possibilidade de amálgama de diversas
formas de folia em um único carnaval de asneiras, para o qual tudo serviria.
Entretanto, essa imagem irmanadora do carnaval pode ser relativizada se
levarmos em conta o potencial cômico dos personagens que,
economicamente pobres e fazendo parte de um simples zé-pereira, desejavam
adentrar os bailes como as grandes sociedades carnavalescas. Onde estaria a
graça dessa situação se o carnaval fosse um só para todos, suspendendo todas
as diferenças culturais e econômicas? 376

373
Segundo Maria Clementina Pereira Cunha, a peça de Vasques foi tratada pela historiografia como
marco inicial da representação da folia nas peças teatrais cariocas. Ver: CUNHA, Maria Clementina
Pereira. ―Vários Zés, um sobrenome: as muitas faces do senhor Pereira no carnaval carioca da virada do
século‖. In: _______(org.). Carnavais e outras f(r)estas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2002, p. 373.
374
Ibidem, p. 378.
375
MARZANO, Andrea, op.cit., 2008, p. 193.
376
Ibidem, p. 192.
134

No que diz respeito ao personagem português, a peça de Vasques o traz como


vendedor de galinhas e, portanto, como pertencente a um segmento social menos
favorecido economicamente. Cunha apresenta similaridades entre a peça de Vasques e a
revista de Artur Azevedo de 1908, intitulada O cordão. De acordo com a autora, um dos
pontos de contato entre as duas obras é a existência de ―bumbos capitaneados pelo
personagem português (...) que integrava uma ‗orquestra‘ composta por outros tambores
377
tocados por ‗tipos portugueses de cortiço‘‖ . Além disso, as duas obras utilizam de
recurso gráfico para apresentar o sotaque lusitano.
Nesse sentido, podemos destacar que a associação do personagem português
com o Zé Pereira era evidente nas peças. Isso pode ser explicado pela origem que foi
atribuída ao folguedo. Segundo boa parte da bibliografia sobre o Zé Pereira, as raízes
desta manifestação estariam nas aldeias rurais portuguesas, que podiam ser facilmente
identificadas a um estilo de vida pacato e ordeiro378. De todo modo, independentemente
de suas origens, o folguedo teve forte difusão, sendo praticado, em sua maioria, por
camadas pobres e frequentemente negras. Por conta disso, esta manifestação foi vista,
por muitos intelectuais do período, como símbolo de desordem.
Embora parecendo discordar da opinião recorrente sobre as origens rurais do Zé
Pereira, o jornal Gazeta de Notícias, em artigo de 1904, também expressa a ideia de
contradição entre o nome do folguedo – que, de ―origem burguesa‖379, remeteria à
ordem – e a prática dos foliões que dele participavam:
Quem terá inventado o Zé Pereira e quem lhe terá posto este nome tão
pacato? (...) Zé Pereira é um nome essencialmente e fundamentalmente
burguês. Evocador de imagens tranquilas e patriciais. Zé Pereira é o nome de
capitalista, de pai de família, de diretor de secretaria, de tudo – menos de
folião carnavalesco, e é tão extravagante dar este nome a uma tão barulhenta
e estouvada entidade380.

Segundo a crônica, o nome do folguedo não condizia com as práticas dos seus
integrantes. Como Cunha, o cronista vê no Zé Pereira ―real‖ a presença dos segmentos
sociais menos favorecidos economicamente – e não ―capitalistas‖, ―burgueses‖ ou
―diretores de secretaria‖ –, em uma brincadeira que, por ser ―barulhenta e estouvada‖,

377
CUNHA, Maria Clementina Pereira. op.cit., 2002, p. 402.
378
Maria Clementina Pereira Cunha problematiza a atribuição de uma origem lusitana ao Zé Pereira. Em
tempos de tensão racial decorrente do processo de abolição, as origens rurais portuguesas, apontadas por
memorialistas e folcloristas como Vieira Fazenda, pareceriam menos ameaçadoras que as africanas. Ver
CUNHA, Maria Clementina Pereira. ―Vários Zés, um sobrenome‖, op.cit., p. 389. Soihet aponta a origem
portuguesa do Zé Pereira. Ver: SOIHET, Rachel. op. cit., p. 70.
379
Cabe lembrar que grande parte dos comerciantes da cidade eram portugueses ou de origem portuguesa.
380
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1904. Apud CUNHA, Maria Clementina Pereira., op.cit., 2002, p.
389.
135

contrastava vivamente com as representações da civilidade burguesa sugeridas, na sua


opinião, pelo nome ―Zé Pereira‖.
A revista Baiana olha pra mim, de Bittencourt e Menezes, difere da burleta O Zé
Pereira Carnavalesco, de Vasques, e da burleta O cordão, de Azevedo, dentre outros
fatores, pelo fato de retratar uma manifestação mais elitizada, talvez mais condizente
com a interpretação que o cronista da Gazeta de Notícias atribuía ao nome Zé Pereira.
No quadro 3 do segundo ato, os autores apresentam um baile à fantasia, onde o Zé
Pereira é acompanhado pelo clarim381. No salão, há também a presença de diversas
manifestações ligadas às formas carnavalescas mais elitizadas, como os confetes,
representantes das grandes sociedades, da Ala dos namorados 382, e dos Pierrots da
Caverna383. Além disso, a representação de um lugar fechado – o salão – onde o
carnaval acontece, sugere uma forma seleta de diversão.
Porém, apesar dessas diversas manifestações ―elitizadas‖, presentes no salão, os
autores tiveram a preocupação de colocar em cena uma manifestação carnavalesca mais
popular, personificada no cordão ―Rompe e Rasga‖, fundado por moradores de cortiços
e integrantes do candomblé384. Nesse sentido, os autores apontam que o carnaval
abarcava, no início do século XX, em suas diferentes manifestações, uma diversidade de
grupos sociais. Mais do que isso, podemos dizer que Bittencourt e Menezes, ao
colocarem, na revista de 1926, um popular cordão no interior de um elegante baile
carnavalesco, se aproximavam da estratégia de Vasques que, em 1869, fez um simples
Zé Pereira adentrar, como faziam as grandes sociedades, um elegante baile. Seria a
comicidade da revista, a exemplo da burleta de Vasques, resultante do ―deboche‖ sobre
as pretensões do cordão? Seria, ao contrário, uma forma de sugerir um carnaval
democrático e irmanador, onde conviveriam os diversos segmentos sociais e as diversas
manifestações? Sem escolher uma das respostas, podemos sugerir que, dado o caráter da
revista, que apresentava diversas opiniões sobre um mesmo tema, as duas, e muitas
outras, podem estar corretas.

381
Segundo o ―Vocabulário do carnaval brasileiro‖ elaborado por Cláudia Lima, clarim é ―Trombeta de
som agudo e estridente, usada na abertura dos desfiles de alguns clubes e troças carnavalescas‖.
http://www.claudialima.com.br/pdf/VOCABULARIO_DO_CARNAVAL_BRASILEIRO.pdf
382
Filiada ao Clube dos Democráticos, seus bailes eram voltados para as camadas sociais mais
favorecidas economicamente.
383
Era uma sociedade carnavalesca muito conhecida.
384
Segundo Wlamyra R. de Albuquerque e Walter Fraga Filho, o Rompe e Rasga tinha como sede a
vizinhança do cortiço Cabeça de Porco e do candomblé de João Alabá. ALBUQUERQUE, W.R.;
FRAGA FILHO, W. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais;
Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006, p.228.
136

A apresentação, na revista, das referidas manifestações culturais se explica pela


participação do teatro na definição do ―popular‖, que acabaria atrelada, em grande
medida, às representações do carnaval. Tal debate teve grande importância no início do
século XX. Naquela mesma época, discutiu-se intensamente o sentido e as
representações do ―moderno‖ e da ―modernidade‖. Mais uma vez, o teatro de revista
participou ativamente dos debates, como veremos a seguir.
137

Quadro II: Representações do moderno no teatro e revista: críticas e


exaltação

A modernidade é apresentada de diversas maneiras nas peças do teatro de


revista, desde as percepções sobre as mudanças dos costumes até as representações
sobre a evolução da ciência e da industrialização. Ao retratarem estes aspectos, os
autores exprimem pensamentos, sejam positivos ou não, sobre as transformações
vivenciadas pela sociedade carioca naquele período.
Antes de analisar as impressões trazidas nos textos teatrais é importante pensar
sobre os conceitos modernidade, modernismo e modernização, que por vezes se
confundem. Em relação ao último termo, Berman o definiu como um conjunto de
processos sociais dirigidos pelo mercado mundial capitalista. Dentre esses processos, o
autor cita as descobertas científicas, a industrialização da produção, o sistema de
comunicação de massas e etc.385. A modernização, portanto, de acordo com Berman, é
reflexo de mudanças no modo de produção.
Ortiz também define modernização como um conjunto de transformações
socioeconômicas de base material, ou seja, ele aponta as mudanças técnicas e industriais
como aspectos relativos à modernização386. No que diz respeito à modernidade, Renato
Ortiz aponta que este termo se refere a um modo de ser inaugurado a partir do fim do
Antigo Regime. Este é, inicialmente, exclusivo dos países ocidentais, posteriormente,
ela se expande para diversos territórios. De acordo com ele, ―a modernidade, que se
constrói no interior [dos] países, não se confunde com eles, na verdade ela é uma
modernidade-mundo‖387.
A modernidade, segundo ele, é um novo modo de ser que se caracteriza pela
transformação dos conceitos de espaço e tempo, pelo surgimento de ideia de nação, pela
cultura de mercado, pelo individualismo, etc.. O autor afirma que a modernidade, ou o
espírito moderno, é correlato à modernização, ou seja, tem uma base material bastante
definida. Porém, ao internacionalizar-se, o espírito moderno dissociou-se da
modernização, que era, até então, sua base material. Nas suas próprias palavras, ―[Nas
sociedades periféricas] o descompasso entre esses termos é agudo, o equilíbrio se

385
BERMAN, Marshal., op.cit., 2007, p. 16.
386
ORTIZ, Renato. Cultura e modernidade. São Paulo: Brasiliense, 1998, p. 267.
387
ORTIZ, Renato. Modernidade e cultura. In: SOUSA, Mauro Wilton de.(org). Sujeito, o lado oculto do
receptor. São Paulo: Brasiliense/USP, 1995.
138

divide. Porque a transformação da infra-estrutura material nunca se concretiza na sua


plenitude, ela é incapaz de gerar uma ‗mentalidade‘ consistente‖388.
Berman também discorreu sobre a modernidade. Ele a descreve como um
conjunto de experiências compartilhadas. Essas experiências são relativas ao que o autor
concebe como ―turbilhão da vida moderna‖, ou seja, a existência de uma atmosfera de
―agitação e turbulência, aturdimento psíquico e embriaguez, expansão das
possibilidades de experiência e destruição das barreiras morais e dos compromissos
pessoais‖389.
Perry Anderson, ao examinar a estrutura do argumento de Berman, afirma que a
modernidade é a experiência histórica que permite que o processo econômico – a
modernização – seja analisado sob diferentes ângulos e pontos de vista pelos seres
humanos. O modernismo, por sua vez, seria um certo entendimento – poderíamos dizer
representação – da modernização. Ou seja, a modernidade é um termo médio que
permite que os indivíduos alcancem um pensamento crítico sobre o seu próprio
período390. O modernismo, como se pôde observar, é uma construção intelectual relativa
à experiência das transformações socioeconômicas.
Henri Lefebvre define o modernismo como a tomada de consciência sobre si
mesmo. Neste sentido, os diferentes modernismos são ―imagens e projeções de si, em
exaltações feitas de muitas ilusões e de um pouco de perspicácia. O modernismo é um
fato sociológico e ideológico‖391. Portanto, para Lefebvre, as diferentes sociedades, ao
exprimirem uma consciência sobre sua experiência histórica, atribuem a ela aspectos
ideológicos e ilusórios. Por isso, a maioria das manifestações modernistas está inscrita
no campo estético-artístico. Porém, seu caráter ilusório e ideológico não implica em
uma desvinculação da arte com questões políticas, sociais e econômicas. Pelo contrário,
como ressalta Ângela de Castro Gomes, o modernismo se refere a um amplo
movimento de ideias, em que arte e política se encontram arraigados 392.

388
Ibidem, p. 267.
389
BERMAN, Marshall, op. cit., p. 18.
390
ANDERSON, Perry.―Modernidade e revolução‖. In: Novos Estudos, CEBRAP, São Paulo, n. 14, fev.
1986.
391
LEFEBVRE, Henri. Introduction à la modernité. Paris: Minuit, 1962, p. 9. Apud: BERNARDI, Rosse
Marye. ―Programação Modernista: 1922-1928. Modernismo ou modernidade?‖ Revista Letras, Curitiba,
V.25, p. 301 - 334 , jul. 1976.
Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/letras/article/view/19555/12779>. Acesso em: 15
de outubro de 2012.
139

Modernidade, modernismo e modernização, portanto, apesar de se referirem ao


mesmo objeto – o moderno –, não possuem significados unívocos e nem sempre
coexistiram, como apontou Renato Ortiz, citado acima. Este autor faz uma análise da
modernidade brasileira, considerando o processo cultural pelo qual modernidade e
tradição se interpenetram. Ortiz aponta que o modernismo brasileiro antecedeu à ordem
social moderna393, ou seja, segundo o autor inexistiam, nas décadas de 10 e 20,
condições materiais que legitimassem a preocupação com aspectos modernos. Portanto,
segundo Ortiz, a disjunção entre estes termos se encontra na raiz dos questionamentos
sobre a identidade394. Para o autor, a vontade de ser moderno está intimamente ligada à
construção da identidade nacional, uma vez que artistas e intelectuais acreditavam que a
inserção do Brasil no contexto das nações modernas só ocorreria se o país, e seus
habitantes, encontrassem e exprimissem sua identidade própria e peculiar. ―Estabelece-
se, dessa maneira, uma ponte entre uma vontade de modernidade e a construção da
identidade nacional. O modernismo é uma ideia fora do lugar que se expressa como
projeto‖395. O desejo de ser moderno e o processo de construção de uma identidade
nacional resultaram, de acordo com Ortiz, num modernismo acrítico, ou seja, em
representações acríticas do mundo moderno. Nesse sentido, o que diferencia, para Ortiz,
o modernismo brasileiro do europeu é a não realização de uma crítica sobre a
modernidade.
Brito concebeu o modernismo brasileiro de forma semelhante a Ortiz. Segundo
ele, o incipiente desenvolvimento científico e industrial brasileiro não permitiu a
constituição de ideias relativas à experiência, como destacou Anderson, mas induziu o
artista a projetar o moderno, atribuindo concepções utópicas sobre a modernidade. Para
ele, o que diferenciava o modernismo brasileiro do europeu era a busca pela construção
da nacionalidade, como podemos observar abaixo:
Paradoxal modernidade a de projetar para o futuro o que tentava resgatar do
passado. Enquanto as vanguardas européias se empenhavam em dissolver
identidades e derrubar os ícones da tradição, a vanguarda brasileira se
esforçava para assumir as condições locais, caracteriza-las, positiva-las,
enfim. Este era o nosso ser moderno 396.

392
GOMES, Ângela de Castro ―Os intelectuais cariocas, o modernismo e o nacionalismo: o caso da
festa‖. Luso-Brazilian Review. v. 41, n. 1, 2004.
393
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p.32.
394
Ibidem.
395
Ibidem, p. 35.
396
BRITO, Ronaldo. ―A semana de 22: o trauma do moderno‖. Apud: FABRIS, Annateresa.
―Modernidade e Vanguarda: o caso brasileiro‖. In: ________ (org.) Modernidade e modernismo no
Brasil. Campinas: Mercado de letras, 1994, p. 15.
140

Fabris aponta que a singularidade do modernismo brasileiro, porém, não o


tornava alheio ―às sugestões de uma situação cultural penetrada pela presença de novos
instrumentos de comunicação e divulgação, denotando sua sintonia com alguns dos
núcleos centrais da modernidade europeia‖397. Assim, apesar do Brasil ainda não ser
uma nação moderna, no ângulo econômico, comparado às nações européias, o país
vivenciava um processo de modernização, como ressaltou Fabris. Portanto, não
podemos ignorar a presença de diversos inventos tecnológicos que se tornavam cada vez
mais presentes na vida dos brasileiros.
O processo de modernização compreende o que Berman afirma como a
398
―sensação de viver em dois mundos simultaneamente‖ . A modernidade, segundo
Berman, apresenta como características a contradição, a condição de permanente
mudança e etc. Essa caracterização pode ser relacionada ao que Foot Hardman designou
como choque de temporalidades, ou seja, a percepções de espaço e tempo que se
antagonizam399.
Velloso destaca que a coexistência de temporalidades era fortemente presente no
Rio de Janeiro. Segundo ela, enquanto os intelectuais boêmios refutavam a literatura
moderna e exaltavam o que definiam como tradições, eles construíam o moderno na
dinâmica do cotidiano400. Ou seja, ao observar a rua e seu dia-a-dia, os intelectuais
boêmios se expressavam de forma variada que abrangia ―desde os ‗pequenos gestos‘ de
sociabilidade intelectual, até as expressões escritas e visuais. O humor se configura
como uma dessas expressões comunicativas‖ 401 .
O choque de temporalidades também se fazia presente nas revistas da década de
1920. Um exemplo pode ser visto na revista A mulata, de Marques Porto. No 12º quadro
há diversos personagens que se encontram no bonde indo para o Engenho Velho. Um
desses personagens é o verdureiro, que imagina quais serão os seus prejuízos com a
futura passagem do bonde pela sua chácara, como se observa na seguinte fala: ―O que
vai ser da minha chácara? Se o bonde sair, matam-me os xuxuses, as couves, as
nabiças‖402. O que se verifica, na referida passagem, é a convivência entre um estilo de
vida semi-rural, em que se residia em chácaras e se plantava alimentos para consumo

397
FABRIS, Annateresa, op. cit., p.25.
398
BERMAN, Marshall, op. cit., 2007, p.16.
399
HARDMAN, Francisco Foot. ―Antigos modernistas‖. In: NOVAES, Adauto. (org.) Tempo e história.
São Paulo: Companhia das letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
400
VELLOSO, Monica Pimenta. op. cit., 1996, P.32-34.
401
Ibidem, p. 34
402
PORTO, Marques. A mulata (1925). 2ª DAP, caixa 31, n.633.
141

próprio, e o modo de vida moderno, representado pelos bondes. Poderíamos considerar,


enfim, que a revista tematiza o choque de temporalidades, que diversos autores apontam
como parte integrante do processo de modernização e que, segundo Mônica Velloso, se
fazia presente no Rio de Janeiro.
A busca de definição e valorização das ―tradições‖, apesar de entendida por
alguns autores como singularidade brasileira – já que no Brasil o modernismo esteve
articulado à construção e à afirmação de uma identidade nacional – , é fruto do processo
de modernização, que permite que temporalidades se encontrem e se choquem. Porém,
contrariando Ortiz e Brito, que defendem que a modernidade era, no Brasil, uma
aspiração, e não uma realidade, creio poder afirmar que o processo de modernização
provocou, sim, uma modernidade, que foi sentida e experimentada por diversas camadas
da sociedade brasileira, permitindo que intelectuais imprimissem em suas obras certas
visões sobre ela. Portanto, o modernismo brasileiro, apesar de se desenvolver num
período em que a modernização não estava completa e nem estabilizada, transmitiu
impressões sobre a modernidade vivenciada e não apenas a aspirada.
Velloso, ao estudar caricaturas e textos de intelectuais cariocas, repletos de
ironia e comicidade, afirma que a ―banalização do moderno faz rir, aliviando as tensões
sociais ante um universo em constante processo de mutação. É uma forma de
familiarizar os leitores com as novas coordenadas de espaço e tempo‖ 403. Assim, o
cômico transmitido por esses intelectuais pode ser encarado não só como uma forma de
criticar a modernidade, mas de tranquilizar os habitantes da cidade, que começavam a
sentir os seus efeitos.
Segundo a autora, o modernismo dos intelectuais cariocas não estava organizado
enquanto movimento, o que não implica na ausência de uma análise sobre a instauração
da modernidade. Suas impressões eram elaboradas ao passearem pelas ruas da cidade,
conectando-se às camadas populares, como ela observa no seguinte fragmento:
―Vivenciar a comunhão com a cidade e o povo – essa é a visão baudelairiana do papel
do artista moderno. Refletir sobre a cidade andando por suas ruas, experimentar o
contato com sensações as mais bizarras, transfigurar, enfim, o imaginário em arte‖ 404.
Discordando parcialmente de Renato Ortiz, proponho analisar, nesta seção,
como o teatro de revista expôs, em muitos dos seus textos, impressões críticas sobre a
modernidade, e como estas impressões estavam imbricadas com ao debate em torno da

403
VELLOSO, Mônica Pimenta, op. cit., 1996, p.21.
404
Ibidem, p.31.
142

caracterização da nação. Neste sentido, podemos apontar as revistas como expressões


do modernismo carioca, numa fase em que a modernização não se mostrava completa,
mas em que o processo de modernização já permitia que a experiência do moderno se
traduzisse numa modernidade.

Cena 1: Em cena a moda e a sexualidade: as noções de feminilidade e


masculinidade a partir de melindrosas e almofadinhas

O processo de urbanização do Rio de Janeiro, já referenciado no início da


dissertação, o advento da República e a modernização industrial provocaram mudanças
na vida privada e nos valores morais da sociedade carioca, impulsionando
transformações nas formas de divertimento, nos costumes, nos hábitos e etc.
Rosa Maria Barboza de Araújo realizou um estudo sobre a família e a cidade do
Rio de Janeiro. Segundo ela, a definição da identidade cultural do Rio como uma cidade
alegre e marcada pelo prazer surgiu em decorrência de transformações realizadas no
espaço urbano e no seio familiar, que impulsionaram o consumo de lazer. A autora
destaca que, até o final do século XIX, a rua era vista como uma ameaça à família,
―capaz de corromper seus valores morais e desintegrar sua solidez como instituição‖ 405.
Porém, com as transformações urbanas e industriais, os costumes se alteram e a família
busca conquistar seu espaço em uma cidade cada vez mais cosmopolita.
Dentre algumas mudanças nos costumes, Araújo cita uma maior autonomia da
mulher das classes mais ricas, apesar de juridicamente não ter havido grandes mudanças
nas relações patriarcais da família. A relativa autonomia alcançada é decorrente de
diversos fatores, como o avanço da educação formal feminina, já que entre 1890 e 1920
406
o percentual de mulheres alfabetizadas cresce de 43,53% para 55,77% ; a entrada da
mulher no mercado de trabalho não doméstico, entre outros fatores.
Cabe, porém, observar que Rosa Maria Barboza de Araújo, em diversos
momentos, generaliza a condição familiar neste período. Na verdade, a autora trata de
segmentos sociais específicos, desconsiderando, assim, as famílias pertencentes às
classes mais populares. As famílias das camadas populares já estavam acostumadas com

405
ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro
republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 284.
406
Ibidem, p. 73.
143

as ruas, a vida noturna e etc., e por isso possuíam concepções diferentes de honra e de
moral, como afirma Martha Abreu:
Resumindo, acredito ser possível pensar que determinados comportamentos
de mulheres pobres (relações sexuais pré-matrimoniais sem namoro antigo,
uma certa quebra da passividade feminina, a aceitação de relações de
amasiamento, etc.) revelam valores morais, concepções de honra, virgindade
e casamento com significados diferentes do que os ilustres juristas
407
pretendiam afirmar .

Porém, apesar de desconsiderar os regimes morais e as ideias de honra das


classes populares, o estudo de Araújo nos permite adentrar nas mudanças
comportamentais das classes médias e altas. A autora afirma que muitas das mudanças
comportamentais foram influenciadas por transformações urbanas e industriais. Os
meios de transporte, por exemplo, além de ampliarem a malha urbana, possibilitaram
um maior acesso a espaços públicos, estimulando, assim, o gosto pelo passeio nas
avenidas recém-abertas. Os meios de comunicação, o cinema e a industrialização
também influenciaram mudanças comportamentais. Essas transformações possibilitaram
a quebra do isolamento doméstico, o que, segundo Araújo, produziu interação social
permitindo uma permeabilidade nas fronteiras sociais408.
As formas de sociabilidade se faziam presentes em diversos espaços públicos,
desde parques, praças, paradas militares até os espaços fechados destinados à diversão,
como teatros, cinemas, circos, clubes e etc. O teatro, por exemplo, tornou-se, na virada
do século XIX para o XX, uma das principais formas de diversão, agrupando pessoas de
diversas classes sociais409. Nesse período, havia uma variedade de espetáculos teatrais,
desde os gêneros ligeiros até os teatros de alta comédia e dramas. Porém, foram os
gêneros ligeiros e, principalmente, as revistas, que tiveram maior destaque na produção
brasileira.
As revistas permitiram não apenas a sociabilidade, mas também conhecimento e
interpretação de temas variados da contemporaneidade. Dentre os temas retratados,
encontramos em várias peças as representações sobre as mudanças do comportamento
das classes médias e altas, apresentadas também por Araújo. Por exemplo, eram
frequentes as peças abordarem as mudanças nas formas de se vestir de homens e
mulheres, o gosto pelo passeio, pelo futebol, por salões e danças estrangeiras e etc..
Todos estes novos costumes estavam associados ao termo ―moderno‖. Segundo

407
ABREU, Martha. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p.120.
408
ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. op. cit., 1993,, p. 285.
409
MENCARELLI, Fernando, op. cit., 2004, p. 31.
144

Sevcenko, este termo passa a classificar tudo o que se torna a ―última moda vigente‖ 410.
Ele ganha significados atrelados à emancipação, à autonomia, à liberdade, à ousadia, o
que, segundo Sevcenko, favoreceu a existência de conotações negativas associadas a
esse termo411. Nas revistas, verificamos certa ambiguidade associada aos novos
costumes.

****

A revista Se a moda pega, de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, aborda


o tema da modernidade sob um viés ambíguo. A revista inicia-se com uma ―cozinha
teatral‖, onde se expõe, de forma figurativa, a criação de uma revista. Chanchada quer
realizar uma revista e pede ajuda a Tanajura, o chefe da cozinha. Este apresenta a
Chanchada as formas de fazer revista: a francesa, a espanhola, a portuguesa e a
brasileira. Além disso, Tanajura tenta encontrar um compadre para a revista de
Chanchada. Após algumas tentativas, Chanchada diz que não quer repetir os ―mesmos
pratinhos‖. No fim, ele resolve que será um dos compadres e que escolherá o outro
recorrendo ao ―teatro antigo‖. Chanchada escolhe Benedito, que seria personagem da
Comédia Demônio Familiar de José de Alencar412.
O quadro termina na cena 10, na qual Chanchada diz: ―Tens licença para
conhecer o Rio de Janeiro em 1925‖413. Benedito responde alegremente: ―Meu Deus!
Vou conhecer o telefone, o automóvel, o cinema! Desta vez eu tiro o ventre da miséria...
Até vou jogar foot ball‖414. O desfecho da cena é feito por Benedito, que canta o que
pretende fazer na cidade:
BENEDITO
Juro por Deus!
Com as tais melindrosinhas,
Eu na Avenida
Vou tirar minhas casquinhas!

410
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes
anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 228.
411
Ibidem, p. 231.
412
Surpreendentemente, a peça de Alencar não apresenta nenhum personagem chamado Benedito.
Possivelmente os autores fazem alusão ao personagem Pedro, negro escravo, e também a São Benedito,
santo negro. Portanto, podemos encarar o nome do personagem como um elemento para causar riso, uma
vez que aproxima duas concepções opostas: demônio e santo. O personagem Pedro, da peça Demônio
Familiar, é um escravo jovem que, com o objetivo de tornar-se cocheiro, realiza vários trambiques e
mentiras para tentar casar seu senhor e a irmã dele com pessoas ricas.
413
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33, p. 15.
414
Ibidem, p.16.
145

Vou dar a nota,


Neste chic, assim bonito,
Toda gente vai gostar
Deste moleque Benedito!415

Este desfecho evidencia alguns assuntos que serão tratados no resto da revista.
Observa-se que a revista expõe, nos fragmentos citados, uma exaltação da modernidade
por Benedito. O personagem parece entusiasmado com as inovações tecnológicas e com
os novos costumes: o futebol e as formas de se comportar das mulheres. Porém, esta
interpretação não está presente em toda a revista. No terceiro quadro, há uma crítica não
explícita aos trajes das mulheres que frequentavam a Avenida. A crítica se direciona à
moda, inaugurada por Coco Chanel416, inspirada nas roupas masculinas. Chanchada diz
que as mulheres estão avançando em tudo o que é dos homens. Ele diz que:
CHANCHADA – (...) até nas fazendas das camisas! (...) Espia só... Elas aí
vem (entram 1ª elegante e coro. As toaletes são feitas em formato de grandes
camisas de homem em tricoline, muito elegantes, presas à cintura com cintos
modernos e chapéus de feira com enfeites de lã, dos chamados gigolôts)
1ª ELEGANTE (canta)
Os nossos maridinhos
Tão bonitinhos
São,
Que mesmo as camisinhas,
Bonitinhas
Dão!
Com elas pelas ruas nós andamos,
Sim,
E, assim,
A moda usamos!
(...)
E assim,
Muito elegante!
De sorte que por ser
A toilette chic,
Nós temos com prazer
Que dar a nota, e tic.
E sempre feiticeiras
Nós sabemos nos vestir
Quando queremos
Qualquer seduzir
(...)
BORRACHUDO – Se a moda pega, acabam avançando nos colarinhos dos
homens... 417.

Na caracterização dos modernos trajes femininos, os autores satirizam os novos


hábitos femininos. Observa-se uma interpretação machista sobre as atitudes femininas.
Segundo Fabiana Francisca Macena, a modernização nos costumes femininos não

415
Ibidem.
416
Estilista francesa, do início do século XX, que revolucionou a moda feminina ao desenhar e vender
roupas simples e confortáveis para as mulheres. Coco Chanel apresentou roupas mais masculinas para as
mulheres, alegando que tentava torná-las mais livres e independentes.
417
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33, p. 25-26.
146

alterou a divisão sexista dos papéis sociais418, que eram confirmados principalmente
pelas representações midiáticas. Grande parte das imagens negativas da mulher
moderna – no teatro de revista e na mídia – estavam intimamente ligadas ao temor
masculino de perder seu papel social e sua posição de domínio diante das mulheres. 419.
No fragmento acima, podemos interpretar a fala do personagem ―Borrachudo‖
como expressão desse temor. ―Avançar no colarinho‖ dos homens não seria apenas
adotar elementos do seu vestuário. Seria, também, ―avançar no seu pescoço‖,
enfrentando-o e ameaçando sua posição de domínio. Ou seja, nos parece que sua crítica
ao vestuário feminino é uma alegoria do temor masculino da perda de seu lugar social.
Se pensarmos no nome da peça, podemos inferir que os próprios autores refletem o
temor masculino frente ao avanço do feminismo.
Segundo Gomes, no pós-guerra o termo feminismo estava atrelado a qualquer
atividade feminina que não estivesse de acordo com suas funções tradicionais420.
Assim, nas páginas de jornais, revistas e no teatro de revista, o termo estava ligado a
diversos costumes modernos femininos, principalmente no que diz respeito a ―qualquer
atividade que fosse vista como tipicamente masculina sendo tomada por algum
indivíduo do sexo feminino‖421.
Era comum que o termo feminismo viesse acompanhado de conotações
negativas. Segundo Macena, os discursos construídos na Revista Fon-Fon422
evidenciavam o temor de uma verdadeira revolução, na qual os papéis seriam
invertidos, ameaçando a ordem patriarcal e burguesa. A imprensa era, portanto,
responsável pela banalização do termo feminismo, a fim de combatê-lo e restringi-lo à
moda, apenas.
Na peça citada, a moda sintetiza a questão da inversão de papéis. A mulher passa
a utilizar roupas masculinas e passa a assumir comportamentos e funções até então
ausentes do universo feminino. Nesse sentido, a revista Se a moda pega aborda,
também, as mudanças de atitudes. No quarto quadro, podemos analisar a inversão de
papéis masculinos e femininos através das condutas apresentadas:
RAPAZ – Eu queria mandar fazer um terno.

418
MACENA, Fabiana Francisca. Madames, mademoiselles, melindrosas: feminino e modernidade na
revista Fon-Fon (1907-1914). Dissertação de Mestrado em História. Brasília: Universidade de Brasília,
2010, p.60.
419
Ibidem, p. 93.
420
GOMES, Tiago de Melo Gomes, op. cit., 2004, p. 222.
421
Ibidem, p.222.
422
Revista carioca lançada em 1907, a Fon-Fon tinha como proposta estar sintonizada com os novos
tempos da modernidade. Seu nome refere-se ao barulho produzido pelo automóvel.
147

VELHA – Uma fazenda bonita, leve, mas que arme bem... (a Rapaz) não é
filhinho?
MANOEL – (...) Seu filhinho será bem servido...
VELHA – Meu filho? O senhor está enganado! (ri)
RAPAZ – (a velha) Você minha mãe! Tem graça! (ri). O senhor comeu
mosca. A coisa é outra...
(...)
MANOEL – O nome, faça favor...
VELHA – Madame Ursulina!
FUNCIONÁRIO - (RINDO) Que negócio é esse? Ele é ela? (ao Rapaz) Ó
seu moço? O senhor é mesmo Ursulina?
RAPAZ – Ursulina é ela
(...)
VELHA – Vai no meu nome , porque quem paga sou eu!
MANOEL - (rindo) Já sei! A excelentíssima banca a coronela.
(...)
VELHA – Vamos, senhores! Eu tenho pressa! Preciso ir ao chá e depois ao
cinema com o meu pequerruche!
RAPAZ – Depois vamos ao Leblon, sim, Lilina?
VELHA – Sim, meu camundongo!423

Na cena observa-se que, ao contrário de uma imagem recatada, a mulher aparece


como aquela que pode bancar os gastos do homem e se deliciar em ter namorados mais
novos. A conduta feminina expressa acima transmite a imagem de mulher autônoma e,
mais do que isso, que tem autoridade sobre o homem.
O trecho pode ser interpretado como uma crítica às mulheres idosas que, por
terem dinheiro, sustentam jovens amantes, e aos rapazes que se aproveitam da
lubricidade de senhoras como Ursulina. A inversão de papéis – mulher ―coronela‖ e
homem sustentado – seria alvo de deboche. Tal interpretação permite perceber que a
caracterização de Ursulina como poderosa, autônoma e senhora de seus desejos convive
perfeitamente com a ideia de que a personagem, ingênua, é enganada pelo seu jovem
amante. Estaria Ursulina ―se aproveitando‖ das ambições financeiras de seu amante? Ou
estaria o amante ―se aproveitando‖ das carências de Ursulina? Trata-se, evidentemente,
de duas leituras possíveis dos personagens e de sua relação. A ―escolha‖ de uma dessas
interpretações, ou a construção de outra, caberia, evidentemente, a cada espectador.
A revista À la garçonne, de Marques Porto e Affonso de Carvalho, escrita em
1924, também aponta para uma inversão de papéis ao apresentar mulheres chics
boêmias, como se analisa no sétimo quadro. Neste aparece um homem boêmio cercado
de mulheres mundanas chics.
MUNDANAS
Viva a nossa boêmia
Viva
Também a alegria

423
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33, p. 31-32.
148

Salve a orgia
Pois a vida deve ser
(...)
Ser um sonho de prazer.

Ao saber do vinho
Já ninguém resiste
Ninguém fica triste
A vida assim fugaz
É uma ilusão... se desfaz
Não volta nunca mais!

Beber champagne! Beber gozar


Vamos deixá-lo feliz sonhar
Boêmio,
A vida assim, é um prazer
O que eu desejo é só beber...
Vou me casar, papai deixou
É com a célebre
Viúva Clicot
Minha madrinha já escolhi
É a madame Pommery424

Na música entoada pelas mulheres mundanas chics, podemos observar que são
as mulheres que induzem o homem ao prazer da bebedeira, como se demonstra na frase
―vamos deixá-lo feliz‖. Além disso, podemos analisar que estas mulheres passam a não
sonhar apenas com o casamento, mas a desfrutar da vida mundana. O casamento,
apontado acima, é com a bebida ―Veuve Clicquot‖, um champanhe francês. A
madrinha, também mencionada acima, é Madame Pommery, em alusão a outro
champagne francês425. Portanto, o que se pode analisar do fragmento é a inversão de
papéis quanto à vida boêmia e à inserção das mulheres de classes sociais elevadas num
ambiente noturno até então dominado por homens.
Retornando à análise das roupas, a revista Se a moda pega, de Bittencourt e
Menezes, traz, ainda, outra crítica à moda feminina. No quinto quadro, Benedito diz a
Chanchada:
BENEDITO – Você precisa criticar as moças da Avenida...
CHANCHADA – Por quê?
BENEDITO – O que o homem sofre por carsa delas. Oiça (canta)
Qualquer homem, hoje em dia,
Nessas ruas da cidade,
Não é fantasia,

424
PORTO, Marques; CARVALHO, Affonso. À la garçone (1924). 2ª DAP, caixa 27, n.544.
425
Veuve Clicquot significa, literalmente, Viúva Clicquot, em alusão à francesa Nicole Clicquot (1777-
1866), que herdou do marido uma companhia que produza champagne, realizava serviços bancários e
comercializava lã. Após a morte do marido, madame Clicquot assumiu a companhia e concentrou sua
atividade na produção de champagne, tornando a marca conhecida e apreciada em várias partes do
mundo. A francesa Madame Pommery, por sua vez, assumiu os negócios do marido ao enviuvar, em
1858. Corajosa, introduziu inovações na produção de champagne e divulgou sua marca mundo afora.Mais
do que nomear marcas de champagne, o trecho citado faz referência a mulheres que se destacaram no
universo empresarial ―masculino‖.
149

É realidade,
Roí um osso de pagode!
A mulher, devido à moda
Quer da alta ou baixa roda,
Deixa tudo ver,
Como que a dizer: Isto é bom... é pra quem pode!
Anda, assim... toda curvada, (imita)
Esperando uma palmada!
Estribilho
O negócio está feio,
Vai de mal a pior
Influência do meio,
Pra desgraça maior.
Isto, assim, não dá certo,
É preciso acabar.
Um rapaz sendo esperto
Nem mais pensa em casar426.

A crítica apresentada acima se diferencia da anterior pelo fato de apresentar a


roupa feminina moderna como vulgar e com o propósito de seduzir os homens. Esta
interpretação também traduz um machismo, uma vez que transparece que a moda de
roupas mais curtas tinha por objetivo deixar ―tudo ver‖. Na Revista Feminina 427,
publicada em São Paulo, o uso das saias curtas, por exemplo, tinha por explicação o
conforto, a praticidade, e o fato de ser adequada à mulher que exercia diversas funções,
como se observa abaixo:

Já dissemos uma vez que a moda, graças à influência americana, se tem


tornado mais natural, mais higiênica, mais lógica. A saia curta, por exemplo,
é uma imposição norte-americana. A mulher de Nova York (...) tem uma vida
ativa e de movimentos (...). Ela é a caixeira viajante, a agente de negócios, a
propagandista de produtos industriais, exerce uma série de atividades que
fariam inveja aos mais audaciosos dos nossos corretores de praça. (...)
Necessitando ter livres as mãos para levar a sua bolsa ou a sua valise de
amostras, não podia ocupá-las de erguer as saias, como era, então, de
estilo 428.

Neste fragmento, podemos analisar que a jornalista aponta o uso da saia curta
como forma de libertação da mulher429, seja no comportamento seja na sua inserção no

426
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33, p. 42.
427
É a primeira revista feminina nacional de grande tiragem. É, também, a primeira a apresentar uma
seção de moda. Cabe ressaltar que embora essa revista divulgasse costumes e roupas modernas, a
publicação era baseada numa concepção moral conservadora. A Revista Feminina, portanto, possuía uma
função educativa da mulher. Segundo a revista, a mulher poderia se modernizar esteticamente e em seu
exterior, mas suas funções enquanto mantedora do casamento e responsável pela casa permaneciam. Ver:
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau (org.)
História da vida privada no Brasil 3. São Paulo: Companhia das letras, 1998, p. 394-395. BONADIO,
Maria Claudia. História debaixo dos panos: descobrindo a linguagem da moda – estudo sobre as mulheres
das elites e classes médias paulistanas (1913-1929). In: Projeto História, São Paulo, 24, jun.2002.
428
Revista Feminina, 58, mar. 1919, ano 6. Apud: BONADIO, Maria Claudia. op. cit., p.244.
429
Muitos autores defendem que a moda é uma pseudo-emancipação, uma vez que não havia de fato uma
rebelião feminina em prol dos seus direitos. Ver: BONADIO, Maria Claudia, op.cit., p. 250. Para Fabiana
Macena, a imagem construída pela imprensa é justamente essa: o feminismo ―e sua luta pelo direito de
150

mercado de trabalho. Portanto, a justificativa para o uso de saia curta está inscrita na
busca de autonomia da mulher, diferentemente da ideia expressa por Bittencourt e
Menezes, em que transparece uma concepção mais machista, centrada não nos anseios
femininos de libertação, mas no propósito de provocar os homens..
Cabe analisar ainda, na música transcrita acima, a afirmação de que moda tinha
que acabar, pois estaria colocando em xeque algumas instituições da sociedade, como o
casamento. O que se denota no estribilho é um receio de que todas as mulheres sejam
influenciadas pela moda, ameaçando as bases da sociedade patriarcal. Assim, podemos
concluir que os autores assumem uma postura conservadora em relação aos novos
hábitos.
A música cantada por Benedito não termina na última frase citada. Como ela é
extensa, resolvi analisá-la em partes. Na segunda e na terceira parte da música, os
autores descrevem algumas características da moda feminina moderna:

II
Tendo os cabelos cortados,
À inglesa, à la garçone,
Diz aos namorados
Não se impressione!
Morde os lábios petulante!
Chega mesmo a ser um crime,
Pois nas ruas dança o Shymme,
Olhos revirando,
Elas assim pisando... (imita)
Mais se torna provocante
Como um cock-till fazendo,
Tudo aquilo vai tremendo...!
III
Como, agora, está na moda
O tal jogo foot-ball,
Nesta linda terra,
Faça chuva ou sol,
As mulheres na Avenida:
Usam todas nos vestidos,
Com licença dos maridos,
Largos cinturões,
Com dois fivelões
Que as cadeiras dão mais vida!430

Nesta caracterização, podemos ressaltar duas novidades na moda feminina: os


cabelos curtos (à la garçonne) e os cintos marcando a cintura. Porém, são apresentados
não apenas a moda feminina, mas também alguns hábitos modernos, como a ―dança

educação e participação política é reduzido [na imprensa] (...) à moda‖ MACENA, Fabiana Francisca. op.
cit., p. 93.
430
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega. Arquivo 2ª DAP, Arquivo Nacional,
n.683 - cx. 33, p. 42.
151

Shymme‖ e o futebol. Esses novos gostos e a caracterização da moda feminina nos


remetem a dois personagens-símbolo da modernidade: a melindrosa e o almofadinha.
Segundo Beatriz Resende, as imagens da melindrosa e do almofadinha foram
criadas por J. Carlos, um ilustrador e caricaturista, em 1920431. O status de inventor
destes personagens foi conferido a ele por ter trabalhado com estas imagens em revistas
ilustradas de grande circulação. Apesar de estes personagens terem sido criados
graficamente, eles já eram vistos nas ruas do Rio de Janeiro antes mesmo de 1920.
Segundo Getúlio Nascentes da Cunha, a moda, os costumes e a própria caracterização
desses personagens guardavam estrita relação com o cinema432, uma vez que era este
um dos grandes difusores de hábitos e modas internacionais, como as saias curtas
vindas dos EUA, os cabelos curtos, a moda andrógina e etc.
Portanto, apesar desses personagens-símbolos terem sido definidos na década de
1920, algumas de suas características já eram vistas em meados da década de 10 e,
principalmente, após a primeira Guerra Mundial. As melindrosas, por exemplo, eram
caracterizadas pelo uso de roupas curtas e leves, cabelos curtos à la garçonne,
androginia (pelo fato de possuirem hábitos ligados até então aos homens, como fumar,
usar calças, dirigir automóveis e etc.)433.
Sobre o cabelo cortado à la garçonne, encontramos na peça homônima, de
Marques Porto e Afonso Carvalho, uma caracterização do estilo para além do corte de
cabelo. O diálogo entre Commére e Compére, apresentado na abertura do segundo ato,
refere-se à publicação do livro de Victor Margueritte 434, chamado ―La garçonne‖. Ao
tratar sobre o assunto, os autores transmitem uma ideia sobre o termo, como podemos
verificar abaixo:
COMMERE – La garçonne, o livro da moda
COMPERE – Hoje é tudo à la garçonne. Come-se À la garçonne, bebe-se à la
garçone, dorme-se à la garçone...
COMMERE – Ama-se à la garçonne.
COMPERE – e etc. à la garçonne.

431
RESENDE, Beatriz. Melindrosa e almofadinha, cock-tail e arranha-céu: a literatura e os vertiginosos
anos 20. In: LOPES, Antonio Herculano (Org.). Entre a Europa e a África: a invasão do carioca. Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa: Topbooks, 2000, p. 224.
432
CUNHA, Getúlio Nascentes da. Melindrosas e almofadinhas: feminilidades e masculinidades no Rio
de Janeiro da década de 1920. In: Simpósio Nacional de História ANPUH, 25, 2009, Fortaleza.
Anais...Disponível em: http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.0728.pdf Acesso
em: 13 de janeiro de 2013.
433
Podemos observar que muitas das caracterizações atreladas à melindrosa já foram abordadas neste
capítulo.
434
Romancista francês do início do século XX . Suas obras se caracterizam por abordar questões sociais e
a emancipação da mulher. O romance ―La garçonne‖ foi publicado em 1922 e conta a história de uma
mulher que, ao descobrir que seu noivo estava lhe traindo, resolve libertar-se e viver a seu modo. Foi um
livro considerado obsceno e teve uma grande repercussão.
152

COMMERE – É a frase do momento.


COMPERE – É a substituta de ―você vai‖, ―meu Deus quando‖, ―vamos
refrescar os corações‖ e outras.
COMMERE – Você conhece ―La Garçonne‖?
COMPERE – Conheço, mas para muita gente o título do livro de Victor
Margueritte significa somente a pretensão da mulher em imitar a cabeça do
homem.
COMMERE – Ora meu amigo, a mulher corta o cabelo porque não tem o
direito de ocultar uma das coisas mais lindas.
COMPERE – E qual é uma das coisas mais lindas da mulher?
COMMERE – O cangote435.

A imagem apresentada acima nos induz a pensar que o termo à la garçonne


passou a ser adotado não apenas para caracterizar o corte de cabelo, mas também as
atitudes que demonstram certa emancipação da mulher. Quando o autor aponta que tudo
é à la garçonne, ele expõe que a mulher passa a ter novas atitudes em todas as suas
ações. Assim, ao caracterizar este termo em um âmbito mais amplo, podemos observar
que as melindrosas são, muitas vezes, associadas às atitudes emancipadoras.
Porém, não eram apenas essas características que definiam algumas mulheres
como melindrosas. Elas eram caracterizadas, também, por outros aspectos, como
ressalta a peça Réco-Réco, de Bittencourt e Menezes, na música que descreve a
melindrosa:
Melindrosinha
Moça chic, vaporosa,
Elegante, bonitinha,
Perfumada como rosa
Namoradeira
Com vontade de casar
Os botões da laranjeira
Nos dão muito o que pensar.
(...)
Misteriosa
E mocinha sem vinte
Que também é melindrosa
Sem dizer como a ninguém
Veste a capricho
Anda só, vai ao cinema
Acerta sempre no bicho
Pra resolver o problema. 436.

No fragmento citado, podemos observar que é atribuída à melindrosa uma


imagem de moça elegante, que gosta de namorar e que, bem de acordo com o papel
social atribuído às mulheres, deseja casar. Note-se a valorização do aspecto juvenil, de

435
PORTO, Marques; CARVALHO, Affonso. À la garçonne (1924). Arquivo 2ª DAP, Arquivo Nacional,
cx. 29 – n. 576.
436
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Réco-Réco (1921). 2ª DAP, n.195, cx: 11, p. 6.
153

uma moça quase menina, expressando ingenuidade 437. No entanto, essa mesma moça
ingênua e ―casadoira‖ assume atitudes ―revolucionárias‖, como andar só, ir ao cinema e
etc. A imagem construída pela revista corrobora, assim, uma afirmação de Dourado,
para quem uma das principais características da melindrosa é a ambiguidade 438. Nesse
mesmo sentido, Melo afirma que as melindrosas ―pareciam meninas, agiam como
mulheres e se portavam tal como os homens‖ 439.
Nas revistas e na literatura, era comum a associação entre as melindrosas e os
almofadinhas. Estes eram homens que se barbeavam, usavam calças curtas, se
perfumavam e se lançavam às novas danças e costumes, como por exemplo, o flirt, jogo
de sedução realizado entre eles e as melindrosas. Estes homens foram caracterizados
tanto pela imprensa como pelo teatro como afeminados. O próprio termo ―almofadinha‖
expressa essa característica. Segundo Medeiros, a expressão refere-se ao uso, por alguns
homens, de almofadas, trazidas de casa, para serem utilizadas nos bancos dos bondes,
que eram duros e, portanto, deixavam as nádegas doloridas440.
A peça Zig-Zag, de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, aborda alguns
traços da moda masculina moderna. Embora a revista não faça referência direta ao
almofadinha, podermos identificá-lo devido algumas de suas características. No
segundo quadro, o personagem Espírito Moderno apresenta para Deodoro da Fonseca e
Benjamin Constant os novos trajes masculinos, como podemos observar abaixo:

ESPÍRITO MODERNO – Entretanto, posso fazer melhor: mostro-lhes os


últimos figurinos para homens, os senhores vestem-se de acordo com eles e
voltam para os seus lugares lá no cocuruto da Soberania Nacional.
DEODORO – É... é uma ideia. Vamos ver os figurinos.
ESPÍRITO – É pra já
FIGURINOS – Eis aqui os figurinos
Masculinos
Figurinos elegantes
E chibantes
Eis o que na grande roda
Está na moda
Calças largas e curtinhas
Bonitinhas

437
DOURADO, Rosiane de Jesus. As formas modernas da mulher brasileira (1920-1939). Dissertação de
Mestrado em Design. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2005, p. 104.
438
Ibidem.
439
MELO, Alexandre Vieira da Silva. Representações de gênero: melindrosas e almofadinhas na Revistas
do Recife dos anos 1920. In: Anais do Encontro Regional de História ANPUH-RIO, São Gonçalo, 2012.
Disponível em:
<www.encontro2012.rj.anpuh.org/resources/anais/15/1338420541_ARQUIVO_RepresentacoesdeGenero
-AlexandreMelo-AnpuhRio.pdf> Acesso em: 11 de janeiro de 2013.
440
MEDEIROS, Hugo Augusto Vasconcelos. Melindrosas e almofadinhas: relações de gênero no Recife
nos anos 1920. Tempo e Argumento: Revista do Programa de Pós-Graduação em História UDESC,
Florianopólis, v.2, n.2, jul. – dez. 2010, p. 103.
154

Paletot justo e cintado


Pespontado
Tudo o mais conforme vêm
Fica bem
Neste tempo em que a mulher
Tudo quer
E até faz a confusão
De Eva e Adão
Que moda elegante
Gentil, superfina.
Um moço elegante
Parece menina441.

Podemos observar que, de acordo com o trecho citado, o uso de calças curtas,
paletó cintado e pespontado tornava os homens elegantes. Porém, a vaidade e a
elegância eram vistas como características femininas e por isso a associação entre
homens elegantes e meninas, presente na última frase: ―Um moço elegante parece
menina‖. Esta caracterização, portanto, não exprime homossexualidade, mas evidencia
um pensamento da época referente à vaidade, vista como futilidade feminina.
Tal concepção pode ser analisada na revista À la garçonne, de Marques Porto e
Afonso Carvalho. Nesta revista o Compére aponta a moda como uma futilidade
feminina. Para ele, a mulher ―encontra sempre utilidade nas coisas mais fúteis. A vida
do vizinho, o vestido da vizinha e um figurino da moda, eis toda a preocupação da
mulher‖442. Portanto, o homem que se interessava por moda e se preocupava com a sua
aparência era fútil, assim como as mulheres.
Os almofadinhas, assim como as melindrosas, eram vistos como símbolos de
modernidade e interpretados negativamente devido à confusão dos gêneros,
principalmente no que diz respeito à aparência. Porém, esta não era a única
interpretação associada à vida moderna e aos almofadinhas. Na revista Fla-Flu, de
Bittencourt e Menezes, a estes personagens são associados outras imagens:

MANOELA (a Pacheco) – Cavalheiro: proteja-me! Diga que é meu pai, meu


marido, diga o que quiser, enfim, mas livra-me desses almofadinhas que aí
vem...
PACHECO – Não conte comigo! Ninguém me leva a sério (...)
CUPIDO – Mas, afinal, que lhe sucede?
MANOELA - Eu não sei o que fazer
Meu Deus que perseguição!
É bem triste o meu viver
Ai, ai que situação!
Não posso andar sozinha
Porquanto atualmente.
Qualquer almofadinha

441
TIGRE, Bastos. Zig-Zag (1926) 2ª DAP, caixa 37, n. 785.
442
PORTO, Marques; CARVALHO, Affonso. À la garçone (1924). Arquivo 2ª DAP, Arquivo Nacional,
caixa 27, n.544.
155

Não dá mais folga a gente443.

No trecho acima verificamos uma imagem do almofadinha relacionada a um


comportamento de assédio. Nesse sentido, o significado atribuído ao almofadinha é bem
diferente do afeminado, ressaltado tanto no teatro quanto na imprensa. As diferentes
imagens atreladas a esse personagem podem estar associadas à crescente importância
que a sexualidade e a moda assumem na vida moderna. Observa-se que as duas
interpretações, apesar de contraditórias, revelam as mudanças na definição da
masculinidade. O homem moderno, além de ser vaidoso e de se preocupar com as novas
modas, possuía atitudes excessivas em relação ao flirt e a sexualidade.
As revistas analisadas apontam, muitas vezes de forma exagerada, para as
mudanças nas concepções de feminilidade e masculinidade. Essas alterações estão
relacionadas a uma diversidade de mudanças, como a existência da multidão urbana 444,
que intensificou os contatos entre homens e mulheres, transformando suas condutas
sociais.

Cena 2: Os personagens modernos e os novos costumes: A modernidade e a


brasilidade.

Além da moda e da sexualidade aflorada, as personagens melindrosas e


almofadinhas se relacionam a outros novos costumes, como as já citadas ―danças
modernas‖. Na revista Baiana olha pra mim, de Bittencourt e Menezes, esses
personagens são sorteados para serem jurados na escolha do Rei Momo. Eles entram em
cena cantando e dançando, como se observa abaixo:
ELE
Melindrosa, minha paixão
Vamos dançar,
Vamos gozar!
ELA
Almofada do coração
Ai, que prazer,
Nós vamos ter!
JUNTOS
Ai, filhinho que bom que é...
Contigo é certo, que eu faço fé! (coro repete)
ELE

443
BITTENCOURT Carlos; MENESES, Cardoso de. Fla-Flu (1925). Arquivo Nacional, 2ª DAP, cx. 36,
n. 755, p. 31.
444
GOMES, Tiago de Melo, op. cit., 2004, p. 230.
156

Mexe...! Mexe...! Mexe...!


Remexe, meu bem, remexe!
ELA
Ai... como é gostoso!
Eu morro, meu Deus de gozo!
(dançam)

MORAL – A melindrosa e o Almofadinha são suspeitos!


JACA – Protesto! Protesto em nome do progresso e da civilização!
TODOS – Muito bem!
TENENTE – A melindrosa é o doce de coco da Sociedade Moderna!
FENIANO – E o almofadinha é o pão de ló dos chás elegantes! 445

No fragmento acima observamos a associação explícita entre os personagens –


Almofadinha e Melindrosa – e a sociedade moderna. No que diz respeito à dança, a
música cantada por ―Ele‖ e ―Ela‖ não demonstra a que tipo de dança eles estão se
referindo, apenas nos indica o gosto desses personagens pela dança. Esse mesmo gosto
é apontado por Hugo Augusto Vasconcellos Medeiros, que enumera os tipos de dança
apreciados pelos almofadinhas e melindrosas:
Finalmente, mas não menos importante, os almofadinhas contavam com uma
habilidade que lhes permitia largar na frente nas conquistas das suas
consortes prediletas, as melindrosas: eles dançavam o foxtrot, o onestep, o
ragtime, o shimmy, o maxixe, e qualquer outra dança (desde que ―da moda‖,
é claro). Como atesta João da Rua Nova, na sua coluna vintista ―Do flirt, do
footing, da Rua Nova...‖: quando sua admiradora, depois de longa conversa,
convida-o à dança, ele secamente responde ―Eu não danço, não sou
almofadinha‖. A dança era, portanto, coisa de almofadinha, que não se
importava em perder um pouco da dureza e aspereza masculina em nome de
um bom flirt com uma melindrosa. Ao ―homem‖ era preferível – segundo
nosso célebre cronista – perder a dama a perder a compostura no remelexo de
uma dança446.

Portanto, os almofadinhas, num ambiente elitista, eram os homens que se


rendiam às danças, principalmente as caracterizadas como modernas, como o foxtrot, o
onestep, o shimmy. Estas danças são referenciadas em diversas peças analisadas, como
por exemplo, em um trecho já citado da revista Se a moda pega:
Tendo os cabelos cortados,
À inglesa, à la garçonne
(...)
Chega mesmo a ser um crime,
Pois nas ruas dança o Shymme,
Olhos revirando,
Ela assim pisando...
Mais se torna provocante!447

445
BITTENCOURT, Carlos e MENEZES, Cardoso de. Baiana olha pra mim (1926). 2ª DAP, n.778 -
cx.37.
446
MEDEIROS, Hugo Augusto Vasconcelos, op. cit., 2010, p. 107.
447
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se a moda pega. 2ª DAP, n.683 - cx. 33, p. 42.
157

O gosto pelo shimmy é retratado como uma das características de quem segue a
moda moderna, como o corte de cabelos à la garçonne da melindrosa. Assim, podemos
realizar uma associação entre a dança e as melindrosas. Em outras revistas é
mencionado o caráter moderno das danças, como podemos observar na peça À la
garçonne:
COMPERE – Quer dizer que a baiana hoje em dia só dança...
BAIANA – Fox-totri, achiminho, tangaus.
SECRETARIO – ... e outras danças modernas que a modéstia aconselha a
silenciá
COMPERE – Qual baiana! Você é muito brasileira para resistir ao samba
nacional448.

O trecho citado confirma a ideia de que o fox-trot, o shimmy e o tango eram


compreendidos como danças modernas. No entanto, essas danças são contrapostas ao
samba, apresentado como nacional. Para Baiana, o fato de ser brasileira não a impede de
ser moderna. Para o Compére, a brasilidade da baiana a levaria necessariamente a
retornar ao samba e, quem sabe, a abandonar o fox-trot, o shimmy e o tango. Como se
vê, a propósito de ritmos dançantes a revista discutia o caráter nacional. A valorização
do samba, por Compére, como ―nacional‖, demonstra o papel exercido pelas revistas da
década de 1920 no processo de transformação da imagem do ritmo, que deixou de ser
marginalizado e perseguido e se tornou, sobretudo nos anos 1930, elemento definidor da
identidade brasileira449.
O fox-trot e o shimmy eram dançados com as músicas executadas pelas jazz-
bands. Eram de origem norte-americana e se caracterizavam por serem danças de salão
que possuíam movimentos livres e sensuais. Já o tango surgiu na América do Sul e,
apesar de sensual, caracteriza-se por movimentos mais rígidos.
Apesar de origens diferentes, estas danças eram sintetizadas enquanto danças
modernas, pois elas significavam formas de libertação da moralidade tradicional e como
oportunidades para o flirt. Hobsbawm, ao analisar o modismo da dança a partir de
fins da década de 1910, ressalta que estava intimamente relacionado com “a
libertação de convenções vitorianas de comportamento social e, especialmente,
com a emancipação feminina” 450.

448
PORTO, Marques; CARVALHO, Afonso. À la garçonne (1924). Arquivo 2ª DAP, Arquivo Nacional,
caixa 27, n.544.
449
Ver, nesse sentido, VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
450
HOBSBAWM, Eric. História social do jazz. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011., p.. 84
158

Portanto, o surgimento de danças como o fox-trot, fórmula mais duradoura das


danças rítmicas surgidas entre 1910-1915451; o shimmy e outras inovações temporárias
como o black bottom, charleston e outras, estavam ligados às transformações morais. O
sucesso e o desenvolvimento dessas danças popularizaram o jazz, que pouco tinha a ver
com o jazz de Nova Orleans452. Hobsbawm designa este jazz como jazz híbrido, ou jazz
diluído, pois misturava ritmos e linguagens afro americanos com a música pop. Nesse
contexto, as danças e o jazz (diluído) – ―a música da era da máquina, a música do
futuro‖453 – passaram a ser vistos como símbolos da modernidade. O jazz, em especial,
era tido como ―a grande novidade da cultura urbana ocidental‖454.
No Brasil, e no Rio de Janeiro em específico, o jazz híbrido e as danças
modernas alcançaram forte popularidade, tanto pela influência norte-americana, quanto
pela influência europeia. Nos salões e nos clubes, as jazz-bands foram ganhando espaço
e se misturando com os ritmos vistos como tipicamente brasileiros, como o maxixe, o
samba, o lundu, a marcha455. As trocas culturais nos incitam a questionar sobre o papel
que a jazz-band e as danças modernas tiveram tanto na construção da nacionalidade
quanto nas diferentes formas de se apropriar desta expressão da modernidade.
Leonardo Pereira, ao estudar o Clube Dançante ―Prazer das Morenas‖,
localizado em Bangu, bairro de concentração operária, observa que, ao contrário do que
muitos letrados afirmavam, os clubes dançantes da população de menor poder aquisitivo
não evocavam apenas uma musicalidade tida como de origem africana, com pandeiros e
tambores, mas também uma ―curiosa variação entre jazz, foxtrote e samba‖ 456. Segundo
ele, a mistura entre ―ritmos de origem africana com as formas harmônicas da tradição
musical europeia‖457 produziu uma musicalidade híbrida, transparecendo uma
identidade mestiça. Segundo o autor, foi por meio dessa mistura que os salões dançantes
se afirmaram como espaços importantes para a construção de formas culturais capazes

451
Ibidem, p.84
452
Ibidem, p.83.
453
Ibidem, p.87.
454
LABRES FILHO, Jair Paulo; SANTOS, Rael Fiszon Eugenio dos. Jazz-bands no Brasil: modernidade,
raça, nacionalidade e política na década de 1920. In: Encontro Nacional de História ANPUH, 26, 2011,
São Paulo, p. 3. Anais... Disponível em:
www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308176626_ARQUIVO_JAZZBANDSNOBRASIL%28ver
saofinalanpuh%29.pdf. Acesso em: 16 de janeiro de 2013.
455
Ibidem, p.3.
456
PEREIRA, Leonardo. O ―Prazer das Morenas‖: bailes, ritmos e identidades nos clubes dançantes da
primeira República. In: MARZANO, Andrea; MELO, Victor Andrade de. (org.) Vida divertida: histórias
do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Apicuri, 2010, p. 280.
457
Ibidem, p. 291.
159

de representar a identidade carioca e nacional458. Pereira, portanto, apresenta a


importância das trocas cultuais na música e na dança para a construção da identidade
mestiça do brasileiro, como podemos observar em sua conclusão:

De fato, através de suas danças e cantos, dos sambas e foxtrotes que se


misturavam nos muitos salões e bailes nos quais se manifestava a febre
dançante que marcava a cidade, os sócios de clubes como Prazer das
Morenas de Bangu tiveram certamente papel privilegiado no movimento que,
nos anos seguintes, resultaria na consolidação de uma imagem mestiça e
original para a cultura brasileira 459.

A partir da obra de Leonardo Pereira, podemos realizar duas conclusões sobre a


inserção das jazz-bands e das ―danças modernas‖ no Brasil. Uma primeira conclusão é a
importância da mistura de ritmos na constituição da ideia de Brasil mestiço. No quadro
anterior, abordamos o debate sobre a ideia de Brasil mestiço no teatro de revista, a partir
das imagens da mulata e do malandro. Cabe, porém, observar que essa mesma ideia
pode ser debatida a partir da introdução de novos ritmos dançados pela Baiana, por
exemplo. Ou seja, a mistura de traços culturais possibilitou a construção de um etos
brasileiro associado à mestiçagem de culturas.
Outra conclusão que podemos realizar a partir do texto de Leonardo Pereira é a
amplitude que as danças modernas alcançaram. Logo, não eram apenas as classes
médias e altas que dançavam estes ritmos, mas também pessoas dos segmentos sociais
menos favorecidos. O trecho, apresentado acima, da revista À la garçonne, nos permite
interpretar como a personagem Baiana se apropriou dessas manifestações, e investigar
e a relação entre modernidade e brasilidade. A construção dessa personagem – que
como ―moderna‖ dança fox-trot, shimmy e tango, e como ―brasileira‖ não resistirá, nas
palavras de Compére, ao samba – permite discutir as possibilidades e os limites da
conciliação entre as idéias de modernidade e brasilidade. Vivia-se um momento em que
a dança e os ritmos de origem negra eram a arte do momento em praticamente todos os
níveis sociais460 e em praticamente todos os países ocidentais. Eram consideradas
modernas, pelas vanguardas culturais, manifestações até então marginalizadas, que
ganhavam novas conotações a partir de sua mercantilização, como ressalta José Adriano
Fenerick sobre o samba:

458
Ibidem, p. 297.
459
Ibidem, p. 298.
460
GRIFFITHS, Paul. A música moderna, p 109. Apud: FENERICK, José Adriano. Nem do morro, nem
da cidade: as transformações do samba e a indústria cultural. Tese de Doutorado em História. São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2002.
160

Assim, o samba (...) é um gênero musical criado pela modernidade brasileira,


que ao decorrer do processo se profanou, se individualizou, se transformou
em coisa para poder ser veiculado e vendido pela moderna indústria de
diversões – capitaneada pelo surgimento do disco e do rádio -, ao mesmo
tempo em que se transformava cada vez mais num elemento cultural
identificado com a moderna ‗civilização brasileira‘ 461

Apresentar-se, portanto, enquanto moderno, podia ser mais que adotar modas
provindas de outros países, como forma de libertação da moral ―tradicional‖. Podia
envolver o reconhecimento e a valorização de manifestações culturais que pudessem ser
apontadas como caracteristicamente brasileiras sem deixarem de ser reconhecidas como
modernas. Tal processo permitiria que o país fosse identificado enquanto nação
moderna.
Ser ―brasileiro‖ e ―moderno‖ não era, necessariamente, ser alheio às influências
estrangeiras. Mário de Andrade, por exemplo, autor-símbolo do modernismo brasileiro,
destaca a continuidade entre o maxixe e o jazz. Para ele, a afirmação de música
brasileira vai além dos regionalismos ou produtos étnicos, mas abrange toda a adaptação
de elementos estrangeiros e toda a forma de fazer música no Brasil. O autor critica a
busca pelo exotismo, ligada ao interesse pela música africana, ameríndia e etc. Para ele,
o caráter brasileiro da música é mais do que isso, como afirma na seguinte passagem:
Por isso tudo, Musica Brasileira deve de significar toda música nacional
como criação quer tenha quer não tenha caráter étnico. O padre Mauricio 462, I
Salduni463, Schumaniana464 são músicas brasileiras. Toda opinião em
contrário é perfeitamente covarde, antinacional, anticrítica 465.

No que diz respeito ao jazz, o autor observa a existência de maxixes com


processos polifônicos e rítmicos do jazz. E ele afirma que o jazz não se tornou popular
no Brasil por conta de seu ritmo, mas foi a fase rítmica que o Brasil vivenciava que
possibilitou seu sucesso. Assim, podemos concluir que, de acordo com Mário de
Andrade, o jazz no Brasil ganhou significados nacionais a partir do momento em que
começou ser assimilado e produzido por músicos nacionais.
É importante enfatizar que, para autores como Mário de Andrade, o moderno
está intimamente relacionado com a construção da nação. O moderno não é apenas
cópia do estrangeiro, mas é uma apropriação de elementos estrangeiros que contribui
461
FENERICK, José Adriano, op. cit., 2002, p.11.
462
Compositor brasileiro de música sacra que viveu entre o Brasil Colônia e o Brasil Império.
463
Ópera do compositor e músico Leopoldo Américo Miguez.
464
Referência ao compositor alemão Robert Schumann. Talvez se refira à música influenciada por sua
obra.
465
ANDRADE, Mário. Ensaio sobre a música brasileira. 3. ed. São Paulo: Vila Rica; Brasília: INL,
1972. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/cdrom/mandrade/mandrade.pdf> Acesso: 15 de janeiro de
2012.
161

para a construção de uma identidade nacional. Assim, tanto na caracterização das


danças, quanto na caracterização da moda e de seus elementos, o moderno alcança certa
identificação com o nacional.
Nas revistas, a associação entre moderno e nacional é ambígua. A revista À la
garçonne, quando aborda o gosto de Baiana pelas danças modernas, aponta a existência
de uma posição aparentemente contrária à de Mário de Andrade. Segundo a imagem
presente na revista, a adoção de danças modernas coloca em xeque a tradição baiana:

COMPERE – Vê você? Até a baiana atirou para o lado a tradição e substituiu


o pano da cabeça pela cabeleleira à la garçonne.
BAIANA – Mademorsela, lê monde mache e je acompanhe lê portuguese de
la actualité.
(...)
COMPERE – Hoje em dia não teremos mais a baiana sambando na
chinelinha.
BAIANA – O samba é incompatível com a nossa presencia.
COMMERE – Com a vossa quê?
BAIANA (a secretário) – Attachê, explique à mademoiselle.
SECRETARIO – Presencia, presance, notre posicion dans la societé que nus
chserve.
(...)
COMMERE – Eu tinha tanta vontade de vê-la sambar.
COMPERE – Samba, yáyá.
SECRETARIO – Non, non! Se trê ordiner il samba.
COMPERE – Quer dizer que a baiana hoje em dia só dança...
BAIANA - Fox-torri, achiminho, tangaus.
SECRETARIO – ... e outras danças modernas que a modéstia aconselha a
silenciá.
COMPERE – Qual baiana! Você é muito brasileira para resistir ao samba
nacional466.

O texto acima nos possibilita interpretar que, ao buscar uma vida moderna, a
baiana não apenas adota modos vindos do estrangeiro, como rejeita as ―tradições‖
baianas – o pano na cabeça, o ―samba na chinelinha‖ – e a própria língua portuguesa,
um dos elementos que identificavam o povo brasileiro. Os autores, ao abordarem a
assimilação da modernidade pela baiana, parecem reproduzir a concepção de que
modernidade e brasilidade são antagônicas. Porém, se analisarmos a adoção da língua
francesa pela baiana, averiguamos que o linguajar está carregado de sotaque, o que nos
permite analisar a revista sob outro ângulo, a partir de uma concepção mais próxima de
Mário de Andrade. O que pode ser mais explícito na música cantada após o diálogo:

BAIANA
Galante assim, meu bem.
Ai, meu amor
Baiana chic eu sou

466
PORTO, Marques; CARVALHO, Affonso.Á la garçone (1924). Arquivo 2ª DAP, caixa 27, n.544.
162

Mulata em flor em flor


Sou da Bahia, sou
De lá eu vim
Meu Senhor do Bonfim
Pra aqui me mandou.
Eu tenho um quê
Qualquer coisa de dendê
Eu sei que há
No meu corpo vatapá
Baiana que o cheiro tem dos benjoins
E tem um quê
Qualquer coisa de dendê
Sabe que há
No meu corpo um vatapá
Baiana que o cheiro tem dos benjoins
Agora não... não vende quindins. 467

A partir de algumas características apontadas na música, verificamos que a


baiana ressalta aspectos ligados à sua origem, como a fé no Senhor do Bonfim, o dendê
e o vatapá. Portanto, após ler o diálogo e a música, podemos fazer uma outra leitura
sobre a associação entre o moderno e o nacional (ou o regional) presente nessa revista.
Confirmando a posição defendida por Mário de Andrade, a personagem, apesar de
adotar novos costumes, termina a cena afirmando características típicas baianas. A
assimilação de fatores externos não a impede de se afirmar enquanto brasileira, e não é
só o regionalismo que a torna brasileira. O que a torna brasileira é a sua própria maneira
de assimilar diferentes influências internas e externas.
Na revista Banco do Brasil, de Marques Porto e Luís Peixoto, encontramos uma
cena que tem como cenário um acampamento indígena. Este tem, ao fundo, fios
telegráficos. A cena, apesar de curta, nos permite analisar a relação entre modernidade e
nacionalidade. Encontram-se em cena Cacique e Miss, que cantam uma música sobre o
amor que um tem pelo outro. A cena termina com um grupo de indígenas dançando
fox.468 A representação da dança fox469 e de fios telegráficos associados à cultura
indígena propicia uma interpretação pelo viés defendido por Mário de Andrade na
definição do que é brasileiro. Portanto, ser brasileiro não é seguir critérios étnicos e
recusar o estrangeiro, mas é observar a realidade social e a forma como os diferentes
elementos culturais, estrangeiros ou não, são adaptados. Como ressalta Mário de
Andrade:
Um dos conselhos europeus que tenho escutado bem é que a gente
se quiser fazer música nacional tem que campear elementos entre os

467
Ibidem.
468
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís. Banco do Brasil (1929). Arquivo 2 DAP, Caixa 67, n. 1634,
p.39.
469
Dança ―fox‖ está associada a uma abreviação de fox-trot.
163

aborígenes pois que só mesmo estes é que são legitimamente brasileiros. Isso
é uma puerilidade que inclui ignorância dos problemas sociológicos, étnicos
psicológicos e estéticos. Uma arte nacional não se faz com escolha
discricionária e diletante de elementos: uma arte nacional já esta feita na
inconsciência do povo.
(...)
Se a gente aceita como brasileiro só o excessivo característico cai num
exotismo que é exótico até para nós. O que faz a riqueza das principais
escolas européias é justamente um caráter nacional incontestável mas na
maioria dos casos indefinível porém. Todo o caráter excessivo e que por ser
excessivo é objetivo e exterior em vez de psicológico, é perigoso 470.

Portanto, Mário de Andrade defende uma ideia contrária ao excessivo e ao


exotismo da cultura brasileira. Para ele, a cultura brasileira não deve ser vista olhando
elementos ameríndios, nem africanos e nem portugueses, mas o inconsciente do povo,
aquilo que está interno ou se internalizou nas ações e no pensamento de um povo.
Marques Porto, Afonso de Carvalho e Luís Peixoto constroem ideias próximas de Mário
de Andrade.
A revista Réco-Réco, de Bittencourt e Menezes, se aproxima de À la garçonne
por amalgamar dois personagens-tipo pertencentes, a princípio, a diferentes segmentos
sociais.471 Em A la garçonne, Baiana dança, como uma melindrosa, o fox-trot, o
shimmy e o tango. Em Réco-Réco, a mulata Florzinha, porta estandarte de rancho,
aparece ligada ao carnaval. Porém, ao final da revista, torna-se melindrosa e se apaixona
por um almofadinha472. Apesar de uma avaliação negativa dessa atitude pelos
personagens da revista, a existência de uma ―mulata melindrosa‖ permite supor que os
costumes modernos podiam ser adotados por diferentes segmentos sociais. Getúlio
Nascentes da Cunha também faz referência ao fato de que a moda urbana, e seus
personagens representativos, ultrapassavam as fronteiras sociais. Segundo ele, os
almofadinhas eram representados ora como filhos de famílias ricas, ora como pobretões
que gastam todo o dinheiro com roupas473.
Em Quem é bom já nasce feito (1920), de Bittencourt e Menezes, Dança
Moderna é uma personagem que aparece na cena junto com Mundo Elegante. Eles dois
se dirigem à praia de Copacabana, onde diversos personagens se encontram para ver El-

470
ANDRADE, Mário. op.cit., 1972.
471
Já que as mulatas seriam personagens associadas, a princípio, ao universo popular, e as melindrosas
pertenceriam aos segmentos sociais mais favorecidos.
472
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Réco-Réco. 2ª DAP, n.195, cx: 11..
473
CUNHA, Getúlio Nascentes, op. cit., 2009, p.7.
164

Rei tomando banho de mar, para reclamar do fato de que Dança Moderna tenha sido
excluída das festas oficiais 474.
Na cena, é transmitida a idéia de que, apesar da elite adorar as danças modernas,
elas não estiveram presentes nas festas para homenagear o rei da Bélgica, como
podemos observar no seguinte diálogo:

DANÇA – (...) Sendo a dança moderna, embora andando de braço dado com
o Mundo Elegante, não pude dar um ar da minha graça nas festas oficiais...
QUEIROZ – Mas se é dança moderna e se tem ao seu lado o Mundo
Elegante, não era aqui, numa praia de banhos, que deveriam estar, mas sim,
num salão...
MUNDO ELEGANTE – Tem razão. Ouça-nos e depois há de concordar que
não é à toa porém que aqui nos encontramos.
BARBADINHO – É que o Mundo Elegante habita esse bairro?
ZÉ – Com certeza a dança moderna vai ser introduzida nas praias, à hora do
banho?
DANÇA – Não senhor. Fui posta de lado, não é assim? Pois venho protestar
junto do El-Rei, quando ele aqui chegar...
MUNDO ELEGANTE – Hei de provar que esta adorada menina não é
imoral...
QUEIROZ – Ah! Foi por isso que a dança foi barrada?
DANÇA – É verdade!
QUEIROZ – Que injustiça! Toda a elite adora-a, menina deixe que falem...
ZÉ – Eu só queria ver como é essa história...
BARBADINHO – Não te mete nisso, não... A dança moderna que o mundo
elegante adora, não é aquilo que se dança lá no Clube da tua zona...475

O diálogo nos transmite a ideia de que as danças modernas podiam ser ou não
elegantes, dependendo do ―clube‖ e da ―zona‖ em que se faziam presentes. Isto fica
claro quando analisamos as últimas falas de Zé e Barbadinho. Estes dois personagens
representam os morros – Zé retrata a comunidade de Ponta d´Areia em Niterói, e
Barbadinho faz menção aos capuchinhos do morro do Castelo. Haveria ―a dança
moderna que o mundo elegante adora‖ e, também, a dança moderna dos clubes e zonas
populares. Nesse sentido a revista estaria sugerindo que ―o moderno‖, ao ser apropriado

474
A revista aborda a vinda do rei da Bélgica ao Brasil. Este evento ganha proporções grandes porque,
além de ser o rei que ficou consagrado nas batalhas da I Guerra Mundial, foi o primeiro monarca europeu
a visitar um país da América do Sul. Por essas razões, festas, passeios e viagens foram organizadas em
homenagem aos reis da Bélgica. FAGUNDES, Luciana F. De São Cristóvão para Botafogo: as festas
cariocas em homenagem aos reis da Bélgica (1920) In: Cadernos de História, v. IV, n. 2, ano 2, p. 25-40.
Disponível em:< www.ichs.ufop.br/cadernosdehistoria> Acesso em: 28 de janeiro de 2012. Cabe
observar, ainda, que a revista aponta que diversos personagens, inclusive os morros do Rio, vão à praia
esperar o rei da Bélgica, não para conhecerem o monarca estrangeiro, mas porque assim teriam
oportunidade de encontrar, e de serem ouvidos, pelos dirigentes brasileiros. Há, portanto, uma crítica à
importância dada à vinda do rei e à ausência de diálogo entre o governo e a população. O desdém do
governo em relação aos anseios populares fica explícito no primeiro ato, segundo quadro, onde um dos
personagens é Desleixo. BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Quem é bom já nasce feito.
Biblioteca da FUNARTE, PT03856.
475
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Quem é bom já nasce feito. Biblioteca da FUNARTE,
PT03856.
165

por diferentes segmentos sociais, teria ganhado conotações e especificidades. Portanto,


podemos defender que as diferentes formas de representação do moderno, nas revistas,
refletem também as diferentes formulações de identidade de classe.
A passagem, no entanto, pode ser interpretada de maneira muito diferente.
Haveria ―a dança moderna que o mundo elegante adora‖ e outras danças, não modernas,
presentes nos clubes e zonas populares. Nesse caso, a passagem sugeriria a existência de
danças distintas para segmentos sociais distintos. A exploração sistemática da
possibilidade de diferentes interpretações era uma característica importante do teatro de
revista.

***

Pensar sobre apropriações culturais e formas de distinção social nos leva a


refletir sobre outros novos costumes, associados, primeiramente, aos grupos elitizados,
que acabam alcançando grande amplitude social. O futebol é um exemplo disto. Nas
revistas da década de 1920, o futebol é referenciado como um elemento ligado à vida
moderna, como podemos analisar em Fla-Flu, de Bittencourt e Menezes, datada de
1925:
1 Elegante – Querem todos, por certo, saber
Porque chama-se a peça Fla-Flu!
Eu explico,a razão vou dizer;
Antes mesmo que haja um frou-frou!
O rapaz elegante e bonito
Que faz footing e dança num chá
Já de há muito que está isso escrito
Ou é Fla...ou é Flu...ou Flu... ou Fla! ! 476

Através do fragmento citado acima, podemos observar que a peça, ao retratar o


clássico Flamengo x Fluminense477, busca destacar aspectos da cultura moderna elitista,
uma vez que os dois times são associados a rapazes ―elegantes e bonitos‖ que
freqüentam chás-dançantes e fazem o footing. . Analisando obras de historiadores
relativas ao futebol, encontramos referências à prática do esporte por outros segmentos
sociais, o que nos incita a questionar as razões para a imagem apresentada acima.

476
MENEZES, Cardoso de; BITTENCOURT, Carlos. Fla-Flu, 2ª DAP, caixa 36, n. 755.
477
No ano de 1925, a Seleção Carioca foi convocada às pressas para o Campeonato Brasileiro. Pela
dificuldade em reunir os jogadores de diversos clubes, optou-se por convocar apenas o Flamengo e o
Fluminense. Apesar de reações a essa seleção, ela se tornou campeã, o que pode ser um dos motivos para
a denominação da revista e para a afirmação de que os homens de elite ou são Flamengo ou Fluminense.
166

Antes de analisarmos com mais veemência o fragmento acima, é importante


estudar um pouco sobre a história social do futebol. Leonardo Pereira realiza, em seu
livro Footballmania, uma análise sobre como este jogo foi, por meio de embates e
tensões, se caracterizando enquanto símbolo nacional. O futebol é um jogo de origem
inglesa que surge no Brasil, em fins do século XIX, a partir da vinda de capital e
trabalhadores ingleses ou por meio dos estudantes de famílias abastadas que se dirigiam
à Europa para realizar seus estudos478. Até 1901 o futebol era restrito, principalmente, às
colônias inglesas. Somente, como afirma o autor, em 1901, o jogo ultrapassou os limites
dos clubes ingleses e das colônias, a partir de uma disputa entre brasileiros e os colonos
ingleses479. Em 1902, surgiu o primeiro clube de futebol formado na cidade, misturando
ingleses e brasileiros.
Ao contrário do que ocorreu na Inglaterra, onde o jogo era praticado por
operários de diferentes procedências, no Brasil ele se firmou inicialmente enquanto
símbolo de elegância. Leonardo Pereira afirma que a raiz dessa questão se encontrava
na origem inglesa, o que garantiria aos seus participantes um status
cosmopolita480.Assim, a raiz inglesa possibilitava que as partidas de futebol se
tornassem grandes eventos sociais, nos quais eram celebradas as novidades vindas do
Velho Mundo481.
O perfil elitista dos jogadores e do público foi se definindo, criando códigos de
conduta e refinando a aparência com roupas importadas. Os homens que se dedicavam a
conhecer e aplicar as regras e táticas vindas da Inglaterra eram chamados sportsmen482.
Assim, só eram considerados sportsmen aqueles que possuíam tempo e recursos para se
dedicarem ao aprendizado dessa arte.
O gosto pelo futebol, porém, não se restringiu aos grupos sociais de maior poder
aquisitivo. Apesar da associação nos clubes tanto da zona sul quanto dos subúrbios só
ser possível para um grupo social restrito, a população de baixa renda, aos poucos, foi
se entusiasmando com os jogos. Pereira ressalta esse interesse a partir da análise de
fotos da revista O Malho, de 1905. Segundo ele:
Nos mesmos jogos nos quais o Fluminense juntava em suas arquibancadas
uma juventude elegante e seleta, uma pequena multidão de curiosos divertia-
se do lado de fora por sobre os telhados e muros apreciando o jogo dos
jovens rapazes.

478
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. op. cit., 2000, p.26.
479
Ibidem, p.24.
480
Ibidem, p. 36.
481
Ibidem, p.41.
482
Ibidem, p.36.
167

(...)
Entre o interesse manifesto pela curiosidade de quem se espreme para assistir
aos jogos e a tentativa de começar a praticá-lo em seus próprios espaços, não
parecia haver um caminho muito longo. Jovens de famílias que não poderiam
pagar mensalidades como aquelas cobradas pelos clubes esportivos da capital
logo achariam, em outros espaços, incentivo e apoio para a prática do novo
esporte483.

Dada essa amplitude que o futebol alcançou, novas formas de distinção foram
sendo criadas. Um exemplo citado por Leonardo Pereira é a formação da Liga
Metropolitana do Foot-ball, em 1905, que tinha por objetivo definir regras para manter
o caráter fidalgo do jogo 484. Até o início da década de 10, essa liga era restrita aos
grandes clubes, porém, por intermédio de acordos esportivos ou por interferência
política das diretorias, alguns clubes menores, como por exemplo o Bangu, o S.C.
Americano, entre outros, tornaram-se sócios da, até então refinada, Liga Metropolitana.
O autor ressalta que, embora esses novos sócios fossem destinados à segunda divisão, a
incorporação deles à Liga permitiu uma ampliação da base social do futebol 485.
Segundo Pereira, na década de 10, diversas mudanças são observadas no
contexto futebolístico. Um dos fatores provocadores da mudança foi o desenvolvimento
dos campeonatos. Dentre as regras definidas, uma delas era que o melhor time da
segunda divisão passaria para a primeira, e vice-versa. Segundo o autor, isso
possibilitou a participação de equipes menos elitistas nos campeonatos da primeira
divisão, uma vez que um dos times a ―subir‖ foi o Andaraí, formado, principalmente,
por operários e negros. Este acontecimento gerou resistências. Apesar da criação de
uma regra que impedia que operários, assim como trabalhadores de qualquer profissão
braçal, fizessem parte dos campeonatos, o futebol, na segunda metade da década de
1910, começava a se transformar em um fenômeno de massas, como afirma Pereira:
De elemento de diferenciação, o futebol transformava-se assim em uma
prática que, admirada por todos, ganharia uma força social somente
experimentada até então por eventos como o carnaval (...). Longe de poder
ser definido nesse momento como um símbolo de identidade de classe, fosse
ela qual fosse, ele transformara-se então, a partir das apropriações e
resignificações feitas por membros dos mais diversos segmentos sociais, em
um grande fenômeno de massas486.

Considerando, de acordo com Pereira, que o futebol ganha conotações de evento


de massa na década de 1920, podemos questionar por que a peça Fla-Flu, de 1925,
associa o esporte aos rapazes ―elegantes e bonitos‖. Para responder essa questão é

483
Ibidem, p. 57-59.
484
Ibidem, p.63.
485
Ibidem, p.110.
486
Ibidem, p. 127.
168

importante situarmos, primeiramente, a quais clubes o fragmento se refere. Os clubes


Flamengo e Fluminense foram fundados por jovens da alta sociedade no início do
século XX.
O Fluminense, por exemplo, foi o primeiro time carioca composto basicamente
por brasileiros. Ele foi fundado em 1902 e tinha seu quadro formado por jovens da mais
fina sociedade, que tinham sido educados em escolas na Inglaterra 487. Este time foi o
impulsionador da moda futebolesca entre as pessoas da elite, ―levando aos seus jogos
moças da mais fina sociedade‖488. O Flamengo surgiu enquanto Clube de Regatas, ou
seja, destinado ao remo, no final do século XIX. A partir de 1903, alguns integrantes do
clube já se aventuravam no jogo bretão, mas foi somente em 1911 que o time de futebol
foi criado, em razão de uma dissidência do Fluminense 489.
Apesar de alguns autores, como Ruy Castro, afirmarem que o Flamengo se
constituiu como um time popular desde quando foi fundado, podemos criticar esta
posição pela própria formação do clube490. O remo esteve imbricado com o projeto de
modernização das elites, apesar de ter alcançado certa popularidade, como observa
Victor Andrade de Melo: ―Nesse contexto apresentado, a Federação Brasileira de
Sociedades de Remo aumentava ainda mais o controle sobre os clubes, esperando
garantir que o remo se desenvolvesse de forma adequada às necessidades colocadas pelo
projeto das elites‖491.
Portanto, por mais que o esporte já tivesse certa popularidade, ele era praticado e
regulamentado de acordo com os interesses ―exclusivistas‖ dos segmentos sociais mais
favorecidos, assim como ocorreu com o futebol. Outra questão que explica o caráter
elitista do Flamengo, em seus primeiros anos, foi a vinda de jogadores do Fluminense
para compor a sua equipe de futebol. Logo, podemos afirmar que ambos os times
possuíam um caráter elitista. Gilmar Mascarenhas aponta o Flamengo, juntamente com
Botafogo e o Fluminense, como clubes da elite:

Junto ao C.R. Flamengo (fundado em 1896 para a prática do remo, aderindo


ao futebol em 1912), Fluminense e Botafogo formam a maioria dos cinco
principais clubes cariocas ao longo do século XX. Sua localização geográfica
(o Flamengo transferiu-se para a Gávea somente em 1938) expressa, para

487
Ibidem, p.29.
488
Ibidem, 29.
489
CASTRO, Ruy. Flamengo: o vermelho e o negro. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 47-49.
490
Ibidem, p.49, 51.
491
MELO, Victor Andrade. Remo, modernidade e Pereira Passos: Primórdios das políticas públicas de
esporte no Brasil. In: Esporte e Sociedade, número3, Jul2006/Out2006. Disponível em:
<http://www.lazer.eefd.ufrj.br/espsoc/> Acesso em: 07 de fevereiro de 2013.
169

além da origem social elitista, a precisa organização interna da cidade do Rio


de Janeiro no início do século XX, que concentrava nestes três bairros
vizinhos (Botafogo, Flamengo e Laranjeiras) a zona residencial mais
prestigiada492.

Portanto, podemos concluir que uma das razões para a peça associar os times –
Flamengo e Fluminense – aos grupos elegantes da cidade é o fato de que, embora o
futebol já sofresse claramente um processo de popularização, aqueles dois clubes
haviam sido fundados, e se mantinham, como espaços simbólicos e locais de
sociabilidade das elites. Segundo Leonardo Pereira, a popularidade alcançada pelo
futebol na década de 10 não impediu que formas de distinção social fossem criadas.
Dentre essas formas, Pereira cita a mensalidade cobrada para se associar aos clubes e o
amadorismo. No que diz respeito ao primeiro critério, Pereira afirma:

Em clubes como o Flamengo, a mensalidade era em 1915 de 10$000, a


mesma cobrada pelo Fluminense. A jóia do ingresso era de 25$000, contra
10$000 do Flamengo – que em 1919 aumentaria seu valor, igualando-o ao
clube rival. Nos novos clubes que iam surgindo pela cidade no período,
porém, o valor cobrado dos sócios raramente ultrapassava os 3$000493.

Nesse sentido, podemos observar que, para se associar ao Flamengo ou ao


Fluminense, era necessário ter uma boa condição financeira, o que não era possível para
a maioria da população. Já os novos clubes cobravam mensalidades mais baixas, como
forma de incentivar a participação das pessoas com menor poder aquisitivo.
Além de transmitir um ar elitista, a passagem da peça de Carlos Bittencourt e
Cardoso de Menezes transparece uma imagem associada aos modos modernos, ou seja,
ser Flamengo ou Fluminense vai além de possuir dinheiro para tal, mas está ligado a
realização de footing e danças modernas. A associação entre os times de futebol e a vida
moderna nos induz a pensar outra forma de diferenciação social, baseada não em
aspectos pecuniários, mas nas modas e costumes modernos.
O processo que transformaria o futebol em um esporte de massas não produziu
apenas imagens homogêneas do esporte, de seus praticantes e admiradores, mas também
imagens de tensões entre os diferentes grupos sociais, que buscavam definir sua
essência contrastando com outros grupos.
Na revista Cangote Cheiroso, de Marques Porto e Luís Peixoto, de 1927,
observa-se o futebol associado ao gosto moderno e uma desqualificação do esporte
praticado entre os populares:
492
MASCARENHAS, Gilmar. Primórdios do futebol na Cidade do Rio de Janeiro In: Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, ano 169, n. 439, abr./jun. 2008, p. 109.
493
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. op. cit., 2000, 167.
170

MLLE XX – No primeiro alfeteime o meu noivo chutou mas a esfera não


entrou bem na rede. O beque rebateu, driblou e houve um indice. O rifiri
apitou na área de pênalti para o meu noivo que é Center-alfe dizendo que ele
estava ofi-saide.
BARBALHO – Que estarão elas a dizer?
MLLE X – Houve também um fal do seu noivo?
MLLE XX – Não o fal foi do kipper.
(...)
FELISDORO – (...) Aquilo é fute-ból. Foóte-bo-ól como dizem os ingleses.
Você nunca viu um jogo de fute-ból?
BARBALHO – Já vi sim senhor. É uma brincadeira que se faz no meio da
rua e que ó serve para quebrar os vidros das casas...
FELISDORO – Isso é jogo vagabundo. O Foot Ball é delicado, mimoso,
educado e assistido com o maior entusiasmo pelo povo com o maior respeito.
Vamos ao match... (saem)
(Abre a cortina surge ao fundo uma arquibancada cheia de gente. Ao meio da
cena uma grade. Junto a esta populares) 494

Na primeira parte da cena, transcrita acima, observamos a conversa entre duas


mademoiselles referente ao jogo do futebol. Através das falas, observa-se um
vocabulário tendendo para o inglês. Além disso, elas mencionam o noivo de uma delas,
que é um dos jogadores. Por essa caracterização percebemos o futebol associado a
camadas sociais mais elevadas e elegantes. Na segunda parte da cena, no entanto, o
personagem Felisdoro busca explicar a qual jogo as mulheres se referiam. Podemos
concluir que o personagem faz uma oposição entre o jogo ―de rua‖ dos populares –
caracterizado como ―jogo vagabundo‖ – e o futebol fino e elegante. Ou seja, na fala de
Felisdoro o verdadeiro futebol é aquele ―educado‖ em que os populares assistem da
grade, enquanto os elegantes ficam na arquibancada.
O diálogo entre Barbalho e Felisdoro sugere uma disputa a respeito do
verdadeiro significado do futebol. Seria ele um ―jogo vagabundo‖, uma simples
brincadeira de rua, ou o ―foot ball delicado, mimoso e educado‖? Como mostra
Leonardo Pereira, essa disputa foi travada no dia a dia da cidade. O resultado desta luta
foi a conquista, pelos populares, do direito de jogar e torcer, em um processo que
acabaria transformando o futebol em esporte de massas e símbolo da identidade
nacional.
A afirmação de uma identidade social e cultural associada ao futebol não apenas
traduz as repercussões da massificação cultural, mas reflete as tensões inerentes à
construção de um ideal de nação. O esporte, e principalmente o futebol, ganha
conotações ufanistas e patrióticas a partir da Primeira Guerra Mundial, e isso se reflete

494
PORTO, Marques; PEIXOTO, Luís. Cangote Cheiroso (1927). Arquivo Nacional, 2 DAP, cx. 51, n.
1201.
171

no campeonato sul americano, em 1919. Leonardo Pereira analisa a ligação existente


entre futebol e nacionalismo:

A ligação entre o surgimento desse novo nacionalismo com o esporte já


parecia, para os que acompanhavam o furor causado pelas disputas
internacionais, bastante evidente. Ao ver nos selecionados de cada país
representantes da própria nacionalidade, os adeptos do futebol no Brasil
demonstravam nos campos o crescimento da lógica de enfrentamento entre as
nações495.

Esse sentimento aflora quando, em 1919, os brasileiros se veem jogando contra


selecionados de outras nações, fortalecendo a devoção pelo selecionado nacional 496. A
conquista do campeonato sul americano, a vitória sobre a equipe inglesa, no mesmo
ano, além de outras vitórias no âmbito internacional, representavam, para os brasileiros,
formas de colocar-se em posição de igualdade ou de destaque frente às outras nações
modernas.
No que diz respeito à associação do futebol com o sentimento nacional, Soares e
Lovisolo afirmam que as vitórias e a massificação desse esporte permitiram que o
futebol fosse incorporado nos discursos relativos ao sentimento nacional497. Os autores
citam as palavras de Américo Netto, redator da seção esportiva do jornal O Estado de S.
Paulo, em relação às vitórias de 1919:

Porque vencemos? Por uma questão de valor real, de decidida superioridade


ou apenas por um feliz conjunto de circunstâncias? Que o digam os
resultados dos jogos em que batemos chilenos, uruguaios e argentinos, não
sendo batidos por nenhum deles [...]. Vencemos simplesmente porque não
jogamos como eles, porque é muito diferente, é muita nossa, muito brasileira,
a escola de foot-ball que adotamos ou, antes, que criamos para nosso uso
exclusivo. [...] Ao passo que a escola inglesa quer seja a bola levada por
todos os atacantes até as portas do ―gol‖ inimigo e para aí mandada do mais
perto que se possa conseguir, a escola brasileira preceitua que a bola seja
atirada ao gol de qualquer distância mais valendo a precisão do chute do que
o fato de ser ele realizado muito próximo do ponto visado 498.

Observa-se que as vitórias do Brasil são atribuídas a um estilo, um jeito de jogar


do brasileiro. Nesse sentido, é atribuída ao futebol uma afirmação do caráter brasileiro.
Porém, o discurso de Américo Netto não era amplamente aceito nos meios intelectuais.
Havia certa tensão entre a definição de nacional e a crítica ao esporte. Por exemplo,
Lima Barreto criticava a febre do futebol no Brasil, não integrando, portanto, o caráter

495
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda, op. cit., 2000, p.143.
496
Ibidem, p. 136.
497
SOARES, Antonio Jorge; LOVISOLO, Hugo Rodolfo. Futebol: a construção histórica do estilo
nacional. Revista. Brasileira Ciências e Esporte, Campinas, v. 25, n. 1, p. 129-143, set. 2003, p. 135.
498
NETTO, Américo. Football: inovação brasileira. Sports, ano 1, n. 1, São Paulo, 1919. Apud:
SOARES, Antonio Jorge; LOVISOLO, Hugo Rodolfo, op. cit., p. 133.
172

brasileiro a este esporte. Cabe observar que isso também ocorria com outras expressões
culturais analisadas nesse trabalho, visto que a construção da identidade nacional
perpassava amplas tensões e negociações.
Apesar das diferentes visões sobre o sentimento nacional e o futebol, ao longo
da década de 1920 o esporte passa a ser visto, por alguns jornalistas e intelectuais, como
um dos espaços de sintetização cultural, à medida que propiciava o encontro entre
classes antagônicas e diferentes raças499. Na década de 1930, essa visão do futebol se
torna hegemônica, encontrando em Freyre seu principal difusor e tendo o Estado, na
figura de Getúlio Vargas, como legitimador. Assim, o futebol acaba se tornando
símbolo da nação500. Freyre ponta a miscigenação como um fator nacional que está
presente no futebol:
Acaba de se definir de maneira inconfundível um estilo brasileiro de foot-
ball; e esse estilo é mais uma expressão do nosso mulatismo ágil em
assimilar, dominar, amolecer em dança, em curvas ou em músicas técnicas
européias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto: sejam alas
de jogo ou de arquitetura. Porque é um mulatismo, o nosso –
psicologicamente, ser brasileiro é ser mulato – inimigo do formalismo
apolíneo – para usarmos com alguma pedanteria a classificação de Spengler –
e dionisíaco a seu jeito – o grande jeitão mulato. Inimigo do formalismo
apolíneo e amigo das variações; deliciando-se em manhas moleironas,
mineiras a que se sucedem surpresas de agilidade 501.

Para Freyre a diferença entre o estilo de jogar futebol brasileiro e o


europeu está no mulatismo, ou seja, na miscigenação, entendida em termos ―raciais‖ e
culturais. A cultura miscigenada permite que nós, brasileiros, assimilemos as culturas
externas de acordo com a nossa forma de ser. Para essa visão de Freyre, portanto, o
futebol realizado no Brasil é produto da assimilação, pelos brasileiros, do esporte
bretão, e por isso deve ser visto como uma forma de identificação nacional. A afirmação
de um jeito ―mulato‖ / brasileiro de jogar futebol corresponde, não por acaso, à
construção de uma imagem mestiça para o Brasil.

499
Essa imagem do futebol tendia a ocultar uma história de conflitos, em que negros e pobres foram
considerados indignos do esporte bretão.
500
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Pelos campos da nação: um Goal-Keeper nos primeiros
anos do Futebol Brasileiro. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.10, n.19, p.23-40, 1997.
501
FREYRE, Gilberto. Football mulato. In: Diário de Pernambuco, 17 de junho de 1938. Disponível em:
http://nacaomestica.org/blog4/?p=1782 Acesso em: 10 de fevereiro de 2013
173

Cena 3: Formas de sentir as inovações e as mudanças: percepções sobre tempo e


espaço

O modernismo, como já apontamos no início deste quadro, é a representação da


modernização, ou seja, das inovações técnicas e industriais ocorridas em um período
histórico. Apesar de, na década de 1920, a industrialização no Brasil ainda ser precária,
diversos autores se debruçaram sobre as suas implicações na sociedade, nesse período.
O teatro de revista, como uma arte que tinha por estímulo a reflexão sobre a realidade,
não deixou, assim, de tratar sobre esse tema.
Na tentativa de compreender as percepções sobre a introdução das novas
técnicas e o impacto delas na experiência dos indivíduos, a pesquisa se sustentou nas
diferentes visões apresentadas nos textos teatrais. Uma das revistas que permite discutir
o impacto tecnológico é Zig-Zag, de Bastos Tigre, apresentada em 1926 pela
Companhia Tro-ló-ló. Já apresentamos trechos desta revista em outros capítulos, porém
não abordamos o seu enredo. A revista Zig-Zag tinha como temática principal os
costumes e a vida moderna. O nome da peça fica explícito no seguinte fragmento:

Madame Zig-Zag: Querem ver como tudo hoje é diferente? (Passa um rapaz
com a mão na cintura de uma rapariga)
Melindroso: Juro-te que não te enganarei; serei um perfeito cavalheiro.
Melindrosa – Mas...
Melindroso – A minha garçoniere é o que há de mais discreto nesse mundo;
fica na Avenida em cima de um cinema.
Melindrosa – Não me fica bem, a mim, uma menina solteira, tomar chá numa
garçoniere.
Melindroso – Mas essa garconiere é própria mesmo para meninas, tenho
outra para senhoras, mas é no Leblon.
Melindrosa – Ah, bem; nesse caso, desde que você garante que não há
inconveniente.
Madame – Aí está um que não se dá bem com a linha reta. Em zig-zag chega
mais depressa e com menos trabalho 502.

O termo zig-zag se refere à costura moderna, apresentada como mais rápida e


menos trabalhosa. Mas refere-se, também, aos caminhos da conquista empreendida por
―Melindroso‖503. A temática ―moderna‖ corta a peça como um todo. Assim,
encontramos temas relacionados à moda masculina, aos costumes modernos – como o

502
TIGRE, Bastos. Zig-Zag (1926), 2ª DAP, Caixa 37, n. 785. .
503
É curioso que essa expressão seja usada para caracterizar um personagem masculino. Como vimos, o
―par‖ da melindrosa era, mais frequentemente, nomeado como almofadinha.
174

futebol, a bebida (aperitivo), os jogos, os clubes etc. – e à industrialização e seus


atributos – meios de transporte, publicidade, etc.
O tema principal da peça é já destacado no prólogo504, onde Fausto (o diabo)
conversa com as feiticeiras afirmando que está desanimado porque sua última
experiência de magia negra não deu certo. Ele atribui o seu próprio fracasso às Fúrias.
Para contornar a situação, Fausto e suas interlocutoras buscam fazer uma feitiçaria, para
a qual é necessária a presença de uma virgem. Quando eles estão colocando a virgem na
fogueira, entra o Espírito Moderno que afirma: ―O mundo de hoje já não comporta
feitiçarias. Somente com o auxílio das ciências é possível dominar as fúrias que são as
forças brutas da natureza.‖ 505. O prólogo termina com a música cantada por todos:

O espírito moderno
Vitorioso está
Na Terra e até no inferno.
Ele dominará.
Partamos nós
Neste momento
Aos cafundós
Do esquecimento.
Hoje é da ciência
A Hegemonia
Abriu falência
A bruxaria. 506

O personagem Espírito Moderno é o condutor da peça. É, portanto, ele quem


apresenta as novidades e aponta o mundo da ciência e da indústria. Na apoteose do
primeiro ato, todos os personagens se reúnem e louvam os avanços da modernização e
exaltam o Espírito Moderno:

Cada momento que se passa


Ë um passo para frente
É o avião que o rumo traça
Gloriosamente.
A vida de hoje é força, é luta.
É vôo audaz;
É a marcha firme, é a marcha resoluta.
Em plena paz.
Avante, espírito moderno.
Com destemor.
Gênio imortal, do mundo eterno.
Dominador!
É sempre um passo adiante.
- Avante!

504
Segundo Neyde Veneziano, o prólogo é essencial em toda a revista, desde o formato inicial de revista
de ano até as revistas mais modernas. De acordo com a autora, era frequente, principalmente nas revistas
de ano, que elas se iniciassem com um prólogo fantástico ou mágico.
505
TIGRE, Bastos. Zig-Zag (1926), 2ª DAP, Caixa 37, n. 785.
506
Ibidem
175

É do futurismo em prol.
- Ao sol!
A ciência nos conduz
- À luz!
A vida um termo tem.
- O além!
Avante, Espírito Moderno, etc.507

A abordagem acima reflete o entusiasmo em relação aos novos tempos,


principalmente ao avanço da ciência. O momento científico vivenciado mundialmente,
nesse período, se insere dentro do quadro da Revolução Científico-Tecnológica, mais
conhecida como Segunda Revolução Industrial. Esta se iniciou na Europa e nos Estados
Unidos, na segunda metade do século XIX, e se caracterizou pela substituição do
carvão, até então principal fonte energética, pelo petróleo e pela eletricidade; pela
produção de aço, produtos químicos e etc.; pelo desenvolvimento de maquinarias como,
por exemplo, o automóvel, o rádio, o telefone e etc.; pela produção em massa,
impulsionada pelas linhas de produção; e toda uma variedade de inovações industriais,
como alimentos enlatados, refrigerantes e etc.. Assim, a virada do século XIX para o
XX foi vivenciada, na Europa e nos EUA, como um período de grandes conquistas e
avanços científicos.
No século XIX, o Brasil assistiu a algumas mudanças no setor industrial,
impulsionadas, principalmente, pelo setor privado e pelo capital estrangeiro. Dentre as
mudanças desse período, podemos destacar a estrada de ferro e a eletricidade. No século
XX e, principalmente após a eclosão da Primeira Guerra, novos investimentos
industriais foram realizados. Segundo Cano, entre 1920 a 1928 a indústria de
transformação no Brasil assistiu a um ―boom‖ de investimento, promovendo uma ampla
diversificação, com o desenvolvimento da metalúrgica, da mecânica, da química, entre
outras508. De acordo com ele, a produção industrial brasileira, nesse período, já não era
apenas de bens de consumo não duráveis, mas também de ―utensílios duráveis, insumos
industriais e bens de capital (estes, de forma ainda muito incipiente)‖509.
Sevcenko atribui grande importância à I Guerra Mundial para o
desenvolvimento da indústria de massa. Segundo o autor, com a finalidade de mobilizar
o alistamento nos exércitos, a máquina da guerra utilizou-se de formas de comunicação
de massa (fotografia, cinema e publicidade) para atingir o subconsciente tanto daqueles

507
Ibidem.
508
CANO, Wlson. Da Década de 1920 à de 1930: Transição rumo à Crise e à Industrialização no Brasil.
In: Revista Economia, Brasília (DF), v.13, n.3b, p.897–916, set/dez 2012.
509
Ibidem, p. 904.
176

que foram para a guerra quanto dos que ficaram. Através dessas técnicas, buscou-se
combater a nostalgia e a saudade. Além disso, buscou-se afirmar a crença de que a
guerra seria a solução para os conflitos e desequilíbrios. A guerra, por mais
contraditório que possa parecer, foi ―deflagrada mobilizando esperanças‖ 510. O autor
ainda aponta que a Grande Guerra impulsionou as técnicas de racionalização industrial,
assim como formas de planejamento econômico, entre outras metodologias
administrativas importantes para o desenvolvimento dos mercados de massa 511. Para
Sevcenko, o caso do automóvel é exemplar. Enquanto no início do século XX era um
produto de luxo, após a Guerra iniciou-se a produção de seus primeiros modelos
populares512.
Retornando à análise da revista Zig-Zag, podemos sugerir que o fragmento
acima reflete, não apenas um entusiasmo, mas uma realidade impulsionada pelo ―boom‖
industrial que ocorreu na década de 1920. Apesar de Sevcenko traçar um contexto
externo ao Brasil, a eclosão da Guerra impulsionou a indústria brasileira também. Uma
das razões apontadas para isso foi a crise nas exportações brasileiras que impulsionou os
avanços industriais
Portanto, a sensação, apresentada na revista, de que cada momento que se vive é
um passo adiante, não é um simples entusiasmo ou um simples desejo pela
modernização, mas é uma experiência sentida por diferentes camadas da sociedade. As
distintas experiências da modernização compunham as temáticas das revistas analisadas.
Estas apresentam percepções sobre diferentes inovações tecnológicas, como por
exemplo o automóvel, o rádio, entre outras.
Na revista Verde e Amarelo, de Patrocínio Filho e Ary Pavão, de 1925, há um
quadro que comenta os efeitos do automóvel no cotidiano da cidade, como se observa
na rubrica do cenário:
Cenário: Ainda com a cortina fechada, ouve-se a descarga forte de um
automóvel que passa pelo interior, acompanhado de vários toques de buzina,
dando a impressão de que leva grande velocidade. Ao abrir a cortina, o
cenário representa um trecho da rua. À esquerda um poste de iluminação de
três lâmpadas, completamente torto, dando a ideia de que tal estrago foi feito
pelo automóvel que passou. Ao fundo, em cenário, várias pessoas caídas na
rua, algumas com os membros separados do tronco, outras voando;
carrocinhas em pedaços, burros de carro espetados nos pára-raios dos
telhados513.

510
SEVCENKO, Nicolau, op.cit., 1992, p. 164.
511
Ibidem, p.165.
512
Ibidem, p. 163.
513
PATROCÍNIO FILHO, José; PAVÃO, Ary. Verde e Amarelo (1925). 2ª DAP, Caixa 31, n. 635.
177

A caracterização acima reflete uma imagem de caos associada ao uso do


automóvel. A calamidade, porém, não era apenas uma forma de compreender os
avanços tecnológicos. Sevcenko afirma que no momento em que os automóveis
chegaram ao Brasil514 não havia ainda uma estrutura viária, sinalização e nem leis de
trânsito515. Assim, além do espanto causado pela novidade de uma estrutura pesada de
ferro alcançar uma alta velocidade no espaço urbano, somavam-se o temor dos possíveis
acidentes e a pouca importância dada pelos legisladores. Por exemplo, os
atropelamentos, seguidos ou não de mortes, tinham por punição ―uma multa pecuniária
de valor ínfimo para os infratores‖516.
A primeira cena deste quadro aborda as calamidades provocadas pela passagem
de um carro. A cena inicia-se com Emygio, que estava em cima do posto danificado,
caindo sobre o solo:
EMYGIO – (Levantando-se e sacudindo a poeira da roupa) Puxa, menino,
que disparada... (Esfregando os olhos para ver melhor) Uê ... Quedê os
companheiros? A gente tava aqui tocando uns troço, esse automóvel passou e
eu só sei que acordei em cima do poste. (Voltando-se para os fundos) Santo
Deus! Esse diabo é pior que um terremoto. (Volta-se a frente) Eu só queria
saber em que telhão deve andar o pessoal? (Apanhando no chão uma perna)
Céus! A perna do Néco Cavaquinho com as botinas que o Sebastião deu a
ele.... (largando a perna e apanhando do chão uma cabeça que tem um pedaço
de pau espetado na testa) Uê, a cara de Chico Clarinete... mas... espere... aqui
tem esse troço na testa... isso é um chifre e o Chico não usava isso...
PINDOBA – Emygio, desgraçado, que é que tu foi fazer?
EMYGIO – Eu não fiz nada... Veja lá se você conhece o dono dessa cabeça.
PINDOBA – (examinando e vendo o chifre) Não, não conheço ninguém que
use esse negócio... Mas como é que você arranjou esse necrotério todo?
EMYGIO – Eu não, foi o maldito do automóvel; passou na disparada e
quando desapareceu foi isso que se vê 517.

A cena expressa, de forma irônica e exagerada, a idéia de que os automóveis


provocavam desastres. Os autores levam para a cena os receios de uma população que
via nos automóveis o perigo de acidentes e calamidades. Os automóveis, como já
mencionados anteriormente, ganharam popularidade após a I Guerra Mundial. No
Brasil, o número de automóveis nas ruas cresce bastante ao longo da década de 1920.
Segundo Leite, a frota brasileira de veículos passou de 30 mil unidades, em 1920, para
250 mil veículos em 1930518. Dentre as razões para este surto automobilístico situam-se

514
O primeiro automóvel a chegar no Brasil pertencia ao irmão do aviador Santos Dumont, em 1893.
515
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: _______ (Org.) História
da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1998, p. 558.
516
Ibidem.
517
PATROCÍNIO FILHO, José; PAVÃO, Ary, Verde e Amarelo (1925). 2ª DAP, Caixa 31, n. 635..
178

a instalação, em 1919, da primeira linha de montagem da Ford em São Paulo e o


surgimento, em 1925, de uma montadora da General Motors na mesma cidade519.
. O automóvel adquiriu várias simbologias no início do século XX. Era atribuído
a ele o emblema de poder e força, o que o tornava não apenas símbolo de distinção
social, mas também símbolo da masculinidade, já que ―o carro permite multiplicar as
oportunidades de contato, convívio e desfrute da companhia feminina‖ 520. As
representações do automóvel estavam associadas também às novas perspectivas de
tempo e espaço atreladas à velocidade. Os automóveis, juntamente com as novas
técnicas de locomoção, proporcionavam ―o espetáculo de superação de distâncias, antes
aparentemente enormes, graças ao movimento mecânico. E, também, de um controle
possível sobre o tempo, que parecia possível alargar ou comprimir, de acordo com o uso
ou não de tais maquinismos‖521.
A percepção do tempo é um dos aspectos mais importantes da modernidade. O
tempo deixa de ter um caráter eterno, definido pelas mudanças na natureza, para
assumir uma feição externa ao meio natural. Ele passa a ser entendido como linear e
dividido de acordo com categorias humanas522. A invenção do relógio, portanto,
modifica a percepção de tempo e a forma como a sociedade se organiza em função dele.
Na peça Se a moda pega, de Bittencourt e Meneses, podemos observar como se
processava essa percepção do tempo na sociedade carioca, ou ao menos em parte dela.
Os autores abordam a questão comentando a presença de diversos relógios na cidade.
Segundo os autores, cada relógio marcava um horário diferente. O relógio como
medidor de tempo passa a ser fundamental para a sociedade moderna, porém, de acordo
com a revista, nem sempre essa tecnologia é confiável. Os autores realizam uma crítica
a essa tecnologia no terceiro quadro da peça. Com a denominação ―Está na hora‖, o
quadro aborda a diferença nas horas marcadas pelos relógios públicos da cidade: o da
Torre de S. Francisco, o da Glória, o da Estrada de Ferro, o da Light, o das Barcas,
dentre alguns outros. A primeira cena inicia-se com os personagens Chanchada e
Borrachudo tratando sobre esse assunto:

518
LEITE, Rodrigo Peixoto. Painel de automóveis populares: o design do cluster de direção sob o aspecto
da ergonomia informacional. Dissertação de Mestrado em Design. Rio de Janeiro: PUC-Rio,
Departamento de Artes e Design, 2006, p. 56.
519
Informação disponível em: <http://www.saopaulo.sp.gov.br/conhecasp/historia_republica-industria-
automobilistica> Acesso em: 13 de fevereiro de 2013.
520
SEVCENKO, Nicolau, op. cit., 1998, p. 559.
521
SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo das letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São
Paulo: Companhia das letras, 1987.
522
VELLOSO, Mônica Pimenta, op.cit.,1996, p.22.
179

CHANCHADA – Eu não dizia? Veja! Não há um só relógio que marque a


mesma hora!
BORRACHUDO – É curioso! Porque será, hein?
CHANCHADA – Talvez devido à falta do célebre balão do Castello 523
S. FRANCISO – (surgindo no galo da torre) Mas, agora, há o tiro das oito na
Ilha das Cobras.
GLORIA – Falou o galo de S. Francisco?! Ora graças!
ESTRADA DE FERRO – Olá! Vocês, hoje, andaram mais depressa que o
colega da Light
LIGHT – Perdão! Eu nunca ando atrasado! Quer se trate da hora, quer do gás
ou da eletricidade...
(...)
CHANCHADA – (rindo) Qual! Estão todos malucos. Nenhum deles regula.
LOTERIA – Protesto! Comigo não há disso! Na hora certa, exata, quem não
fecha... leva na cabeça!
BORRACHUDO – Quem é aquele?
CHANCHADA – É o relógio das loterias! O relógio do bicho! Vou, quanto
antes, acertar o meu cronômetro.
BORRACHUDO – Bem lembrado! (pausa) Que horas são?
S. FRANCISCO – Cinco para as onze.
LIGHT – Onze horas!
GLORIA – Onze e dez!
ESTRADA DE FERRO – Dez e ciquenta e sete!
BARCAS – Dez e ciquenta e oito!
LOTERIA – Onze e um quarto!524

A medição do tempo por frações de hora sugere uma ideia de tempo


sincronizado. Segundo Sevcenko, a adoção de um padrão horário único pela Alemanha
foi uma das características da Guerra Franco-Prussiana em 1870. Segundo o autor, uma
das razões que possibilitaram a vitória alemã foi a coordenação da mobilização militar
pelo padrão hora. Após esse período, essa forma de padronização se universalizou,
homogeneizando, assim, as escalas horárias. Para ele, este fator é importantíssimo para
compreender o funcionamento de uma Guerra Mundial como a de 1914-1919525.
Porém, a cena sugere uma ideia contrária ao sincronismo desta padronização, ou
seja, o que observamos é uma dissonância entre os diferentes relógios públicos. A
crítica realizada é a de que a ausência de uma definição da hora certa prejudica os
cidadãos da cidade, que passam a se basear e a regular seus relógios de pulso por esses
relógios públicos. O dano causado pelos desacertos é expresso em ma estrofe cantada
pelo personagem Estrada de Ferro:

523
O Observatório Astronômico do Rio de Janeiro que, estava instalado no Morro do Castelo até a sua
demolição em 1921, tinha como uma das suas atividades o serviço de hora. Todas as manhãs, às 8h, esta
instituição soltava um balão vermelho que tinha como proposta regular os cronômetros do navio. Isto
ocorreu durante toda segunda metade do século XIX e princípio do XX. SOCIEDADE BRASILEIRA DE
CARTOGRAFIA. Boletim Mensal da SBC. N. 51, fev. 2004. Disponível em:
http://www.cartografia.org.br/boletim/Boletim51.pdf. Acesso em: 15 de fevereiro de 2013.
524
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se moda pega (1925), 2ª DAP, n.683 - cx. 33,,.
525
SEVCENKO, Nicolau., op. cit., 1992, p. 180.
180

ESTRADA DE FERRO – O novo horário


Faz andar tudo atrasado,
O pobre do passageiro
É quem sai prejudicado
Eu sou esperto,
Na central há um [a] mais
O da frente aponta o certo,
Não funciona o de trás526.

O trecho apresentado é, portanto, uma crítica ao desacerto dos relógios da


cidade, que indicaria o caráter precário da presença da modernidade no espaço público.
Mas não é apenas isto. Há uma crítica política embutida, que se verifica a partir da
seguinte frase: ―O da frente aponta o certo, não funciona o de trás‖. Nesta, há uma
crítica à falta de consideração pelos habitantes, que necessitam da hora certa para usar o
serviço de trens..
Independente de fatores políticos, a revista Se a moda pega realiza uma reflexão
sobre as novas percepções de tempo e as máquinas.. A relação entre tempo e velocidade
está associada a outras técnicas modernas. Na revista Fla-Flu, também levada à cena em
1925 e escrita pelos mesmos autores, as ondas hertzianas e sua captação são abordadas
enquanto exemplo de inovações que alteram a noção de espaço e tempo:

ELA – Será possível que não saibas o que vem a ser um aparelho
radiográfico?
ELE – Confesso-te a minha ignorância.
ELA – Nesse caso fica sabendo que, graças à radiografia, vou conseguir toda
a felicidade que ambiciono.
ELE – Como assim?
ELA – É muito simples. Com o auxílio das ondas hertezianas, este aparelho
não só recebe e reproduz, como também, transmite para todas as estações e
similares da cidade esta nossa conversação, por exemplo.
ELE – Admirável!
ELA – Ora, sendo assim, em família, pode-se, igualmente, ouvir uma ópera
que é cantada no Municipal, um concerto a bordo do transatlântico em
viagem, etc. etc.
(...)
ELA – é ou não é um excelente meio de evitar que certos cavalheiros saiam
de casa, à noite, e caiam na farra?
ELE - Perfeitamente! (pausa) Então o que conversamos aqui pode ser ouvido
por outros?
ELA – Como não? Queres ter a prova? (prepara o aparelho) vou cantar: de
todos os pontos da cidade, onde houver um aparelho igual a este, serei ouvida
e, igualmente, ouviremos o que de lá transmitirem.
ELE – E as tais ondas hertezianas?
ELA – Entrarão em função a seu tempo 527.

526
BITTENCOURT, Carlos; MENEZES, Cardoso. Se moda pega, op. cit, 1925.
527
BITTENCOURT Carlos; MENESES, Cardoso de. Fla-Flu (1925). Arquivo Nacional, 2ª DAP, cx. 36,
n. 755.
181

Apesar da denominação de aparelho de ―radiografia‖, o trecho citado


exemplifica o funcionamento de um aparelho de radiocomunicação. Este continha tanto
o receptor quanto o transmissor, como explica a personagem: ―de todos os pontos da
cidade, onde houver um aparelho igual a este, serei ouvida e, igualmente ouviremos o
que lá transmitirem‖. Por esta fala, podemos concluir que os personagens não se
referem ao aparelho de rádio, receptor, apenas, mas aos transceptores que tanto
transmitem quanto recebem. Os primeiros destes aparelhos no Brasil eram utilizados
apenas por militares. Posteriormente, surgem os radioamadores, possibilitando que a
comunicação por esses aparelhos fosse feita por diferentes pessoas.
Os transceptores se desenvolvem juntamente com os rádios receptores – os
rádios conhecidos por nós –, também abordados na peça. A primeira demonstração
pública de transmissão radiofônica oficial no Brasil ocorreu em 1922, à época da
comemoração do Centenário da Independência. Além das palavras de Epitácio Pessoa,
foram transmitidos trechos da ópera Guarany, que estava em cartaz no Teatro
Municipal528. As repercussões dessas primeiras transmissões possibilitaram a abertura
da primeira emissora de rádio, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, tendo Roquette
Pinto à frente529.
A transcrição acima aborda, além do funcionamento de aparelhos de
radiocomunicação, as percepções sobre as mudanças de comportamento ligadas a ele.
Quando a personagem afirma que irá conseguir toda a felicidade que ambiciona por
meio deste aparelho, há uma ideia de que o rádio irá solucionar alguns problemas na
vida privada. Os personagens afirmam que este instrumento possibilitará a reunião da
família em casa. Ou seja, o homem, ao invés de ir assistir a um concerto no teatro, ficará
em casa, com sua família, apreciando a música através do rádio.
Sobre esta percepção, Sevcenko aponta que o rádio teve um papel importante
para o recôndito familiar, pois o ―rádio religa o que a tecnologia havia separado‖ 530.
Nesse sentido, o rádio era visto como um impulsionador para a redução na concepção
de espaço, já que a diversão poderia ocorrer no espaço familiar e não mais nas ruas.
Encurtava-se, assim, não apenas o tempo entre sair de casa e assistir a uma ópera, por
exemplo, mas também o próprio espaço, aglutinando diferentes funções em um mesmo
ambiente, a casa.

528
CALABRE, Lia. A era do rádio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
529
Ibidem, p. 11.
530
SEVCENKO, Nicolau, op. cit., 1998, p. 583.
182

Apesar de ainda ser pouco popular na década de 1920, o rádio possibilitava que
algumas famílias se reunissem para alguns programas. Além disso, permitia a
construção de identidades, por meio de uma afeição pela voz que penetrava os espaços
privados dos ouvintes. O reconhecimento desta característica permitiu seu uso tanto
pelo setor político, quanto pela publicidade. No Brasil, porém, na década de 1920, seu
uso era ainda restrito, devido aos problemas técnicos de transmissão e à (má) qualidade
do sinal. Porém, mesmo com restrições, o uso do rádio, seja enquanto receptor seja
enquanto transceptor, proporcionou efeitos importantes nas mudanças dos
comportamentos e das mentalidades.
O rádio, assim como outros meios de comunicação e transporte, modificou a
forma do indivíduo perceber o tempo e o espaço. Além disso, alterou as relações entre
público e privado – casa e rua –, possibilitando que estes espaços ora se confundissem,
ora se distanciassem. As novas invenções possibilitaram, também, um novo olhar sobre
a sociedade e sobre as formas de participação dentro dela531.
A análise das revistas nos possibilitou compreender que as avaliações sobre a
introdução dessas novas técnicas eram, por vezes, pessimistas, indicando um vazio
moral e social provocado pela industrialização. Em outros termos, porém, eram
creditados a estes produtos uma esperança de unidade e participação social. Portanto, as
representações da modernização, apontadas nesse trabalho, são marcadas por
dicotomias fortes, como desespero e esperança, caos e organização, dispersão e coesão,
diversidade e identidade e etc.
O cômico, como um instrumento de representação e crítica da realidade, foi
importantíssimo na configuração da participação social em meio a essas contradições.
Ele foi um meio encontrado, por intelectuais e artistas, de externalizar as realidades
contraditórias e permitir que identidades se constituíssem. Saliba ressalta estas
características do cômico:
A representação da sociedade brasileira pela dimensão cômica mostrava que
o privado não apenas se confundia com o público, diluindo-o, mas também
criava um espaço para o indivíduo afirmar-se perante aquela espécie de vazio
moral, que se criava cada vez que a aceleração da história reforçava, por
estruturas mais gerais e vastas temporalidades, os redutos da racionalidade 532.

Portanto, podemos associar a dimensão cômica com as preocupações dos artistas


modernistas. O teatro de revista, assim, pode ser enquadrado como uma expressão do

531
SALIBA, Elias Thomé.A dimensão cômica da vida privada na República. In: SEVCENKO, Nicolau,
op. cit., 1998, p. 348.
532
Ibidem, p.364.
183

modernismo brasileiro, devido às representações sobre o moderno e as novas técnicas, e


ao objetivo de integrar a sociedade brasileira e carioca em uma mesma dimensão social
e filosófica.
184

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na análise de textos teatrais da década de 20, buscamos evidenciar ideias,


imagens e pensamentos essenciais para se compreender os debates cruciais que
mobilizavam a sociedade brasileira naquele período. As temáticas abordadas nos textos
do teatro de revista demonstram que o Brasil e o Rio de Janeiro, como cenário-síntese
da nação, estavam vivenciando um período de mudanças em diversos âmbitos: político,
social, urbanístico, industrial e cultural. Mais do que isso, demonstram que
dramaturgos, artistas e público não eram meros espectadores dessas transformações,
mas participavam delas debatendo seus efeitos e imprimindo significados variados às
questões do momento, que giravam em torno da definição do caráter brasileiro, da
escolha e da valorização de manifestações culturais tidas como populares, da construção
de novos padrões de relações raciais, do estabelecimento de formas de relação com a
modernidade e de incorporação dos costumes modernos .
As mudanças presentes na sociedade, e a reflexão sobre elas pelos revistógrafos,
influenciavam na estrutura dos textos teatrais e na encenação das peças. Assim,
transformações no gênero contribuíam para a transmissão da ideia de velocidade,
incorporavam o luxo e intensificavam a fragmentação, fazendo com que os próprios
espetáculos mimetizassem algumas das principais características da vida moderna. O
aumento do público explicava, em parte, a realização de peças por sessões, a busca
incessante pela abordagem de temas cada vez mais atuais e a integração de novos
autores. Mas todos esses elementos só podem ser entendidos como parte integrante do
processo de modernização da sociedade carioca. Portanto, a própria história do teatro de
revista nos indica o quanto a sociedade carioca estava se modernizando, e alterando
algumas de suas proposições, entre as décadas de 10 e 20.
As temáticas das revistas, a cuja análise mais me dediquei na pesquisa, se
referem a noções que estavam em voga nesse período. Assim, podemos perceber, nas
peças, debates sobre a mestiçagem, sobre o papel das heranças portuguesas na
constituição do caráter brasileiro, sobre a malandragem (e a sua antítese, a valorização
do trabalho), sobre a definição do popular, sobre a incorporação de costumes modernos,
sobre as mudanças nas relações de gênero e sobre a industrialização. Alguns desses
temas seriam valorizados, na década seguinte, por intelectuais atuantes em círculos mais
185

restritos, marcando, por exemplo, a reflexão de Gilberto Freyre sobre a sociedade


brasileira.
As características apresentadas acima permitiram a definição do teatro de revista
enquanto uma arte modernista, ou seja, seus discursos e formas se assemelhavam às
abordagens realizadas pelos intelectuais e artistas modernistas. Apesar disso, não tive
por objetivo analisar as aproximações e o distanciamento entre o teatro de revista e os
diversos movimentos modernistas. Procurei apenas averiguar o quanto o teatro de
revista trabalhava com as concepções de moderno, popular e nacional, frequentemente
associadas a uma definição mais estreita de movimento modernista.
Como apontei na introdução, essas concepções não eram contraditórias, uma vez
que ser moderno, no início do século XX, implicava em reconhecer traços populares e
nacionais. Portanto, a afirmação do Brasil enquanto uma nação moderna dependia do
reconhecimento de suas características peculiares. Ser brasileiro era partilhar símbolos,
crenças e culturas. As representações do popular ganharam destaque, por sua
possibilidade de integrar uma vasta gama de habitantes do mesmo território.
Através das múltiplas representações do teatro de revista foi possível observar
que as categorias moderno e popular não foram definidas como instâncias separadas, e
sim como elementos que, ao se misturarem, permitiam a construção de discursos sobre a
identidade nacional. Nas peças, manifestações culturais a princípio associadas aos
segmentos sociais menos favorecidos – como os ranchos carnavalescos, o samba e a
festa da Penha – eram colocados como parte integrante dos debates sobre o caráter
nacional. Ao mesmo tempo, costumes originalmente ―estrangeiros‖ e restritos às elites,
como o futebol, a moda e os costumes modernos, eram trazidos à reflexão. Todo esse
processo alimentaria, e seria alimentado, por intensas e contínuas apropriações culturais,
das quais o próprio teatro de revista seria, ao mesmo tempo, reflexo e agente
propiciador.
Ao trabalhar com noções de moderno e popular enquanto formuladores da
brasilidade, o teatro de revista propiciava, ao mesmo tempo, a formação de identidades
abrangentes, que tendiam a ultrapassar fronteiras sociais, e a expressão e reflexão sobre
formas de distinção social. Apesar de não aprofundá-las nesse trabalho, por falta de
tempo, pude constatar que, à medida em que ocorriam apropriações culturais,
permitindo a integração e a identificação entre diferentes grupos sociais, formas de
distinção eram criadas, como forma de demarcar fronteiras entre classes.
186

Tendo como características a diversidade de público e o objetivo de apresentar


diferentes opiniões sobre os mesmos temas, o teatro de revista não apresenta uma
concepção fechada sobre a identidade nacional na década de 1920. No entanto,
proporciona uma aproximação aos debates que mobilizavam intelectuais, autoridades,
artistas e público. Enquanto documento histórico, o teatro de revista não oferece
respostas fechadas, mas apresenta indícios de como a sociedade se transformava e de
como diferentes segmentos sociais debatiam sobre essas transformações.
187

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VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.


200

ANEXO

Relação das revistas por ordem cronológica e motivo da escolha

 1920
- Quem é bom já nasce feito – Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes - Data de
registro na polícia 18 de outubro de 1920 – Data da estreia: 19 de outubro de 1920.
Theatro S. José (localizava-se na atual Pç Tiradentes) – Empresa Pachoal Segreto
Motivo da escolha: A escolha se originou a partir da leitura da dissertação do Tiago de
Mello Gomes intitulada Lenço no pescoço: o malandro no teatro de revista e na música
popular: “nacional”, “popular” e cultura de massas nos anos 1920. Gomes, ao citar a
revista Quem é bom já nasce feito afirma: ―Bittencourt e Menezes buscaram valorizar o
nacional-popular de forma mais direta, sem maiores elaborações. A peça parece ser uma
crítica a um país que está completamente voltado para o estrangeiro, deixando seus
valores morrerem à míngua‖533 .

 1921
- Réco-Réco – Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes – Data de registro na
polícia 12 de janeiro de 1921 – estreou em 12 de janeiro de 1921- Theatro São José -
Empresa Paschoal Segreto.
Motivo de escolha: A motivação se originou a partir da pesquisa realizada na biblioteca
da FUNARTE. Interessei-me pelo título da peça, uma vez que ele retratar um
instrumento musical presente no samba. Assim, me questionei sobre sua temática e
sobre as raízes culturais do Brasil.

- Duzentos e Ciquenta contos – Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes. Data de


registro na polícia 24 de setembro de 1921 – Teatro Carlos Gomes (localizava-se na
atual Pç Tiradentes)
Motivo da Escolha: A peça chamou-me atenção ao ler o artigo Formas e sentidos da
identidade nacional: o malandro na cultura de massas (1884-1929) de Tiago de Melo

533
GOMES, Tiago de Melo. Lenço no pescoço: o malandro no teatro de revista e na música popular:
―nacional‖, ―popular‖ e cultura de massas nos anos 1920. Dissertação (Mestrado em História) - Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998, P.75.
201

Gomes, publicado na Revista de História da USP em 1999. Neste artigo o autor retrata
que a peça tem por tema principal o caráter nacional e a questão racial. Além disso, ela
trata muito bem as perspectivas de democracia racial e, possui uma gama variada de
pensamentos sobre quem seria o brasileiro.

 1924

À la garçonne – Marques Porto e Affonso de Carvalho – data de registro na


polícia 29 de maio de 1924.
Motivo da Escolha: A peça foi escolhida a partir de seu título. Este faz referência ao
corte curto do cabelo feminino, me interessei pela análise da peça em busca de
representações do moderno.

 1925
- Se a moda pega – Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes - Data de estreia: 1
de julho de 1925 - Theatro São José - Empresa Paschoal Segreto..
Motivo da Escolha: A peça foi escolhida a partir de seu título. Ao me deparar com ele,
me questionei sobre as ideias que poderiam estar presentes na peça em relação aos
novos costumes, temática que abordarei na dissertação.

- A mulata – Marques Porto – Data de estreia 19 de março de 1925 – Teatro


Recreio (localizava-se na atual Pç. Tiradentes) - Empresa Pinto e Neves.
Motivo da escolha: Esta peça me chamou atenção, primeiramente pelo nome. Ao lê-la
observei a questão da contradição entre moderno e tradição, principalmente na
abordagem dos costumes modernos.

– Verde e Amarelo – José do Patrocínio Filho e Ary Pavão – Data de entrada na


polícia: 21 de março de 1925 - Data de estreia: 27 de março de 1925 - Teatro S. José –
Empresa Paschoal Segreto.
Motivo da escolha: O interesse pela peça surgiu a partir da leitura do livro Um espelho
no palco: identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos
20, do Tiago de Melo Gomes. Neste livro, o autor cita a peça como um expoente do
caráter nacional. Desde então, o nome me instigou a procurá-la com mais afinco nos
arquivos.
202

- Fla-Flu - Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes - Data de registro na


polícia: 3 de dezembro de 1925 – Teatro Glória (na atual Cinelândia) – Companhia Tro-
ló-ló
Motivo da escolha: A escolha da peça se deve a um dos meus objetivos em tentar
verificar as razões para a existência de ideias diversas, que muitas vezes se
contradiziam, em peças de um mesmo autor. A obra Um espelho no palco, citado acima,
me estimulou a analisar esta peça porque o autor trouxe algumas considerações sobre
ela, como por exemplo: peça escrita para a Companhia Tro-ló-ló (companhia que surge
ao estilo das companhias europeias Bataclan e Velasco, ou seja, modernizada
visualmente, com muitos luxos e mulheres exuberantes); a apresentação da peça foi na
Avenida Central, espaço frequentado pela elite, principalmente; forte crítica jornalística,
pois, segundo eles havia uma similaridade das peças realizadas na Praça Tiradentes
(espaço mais popular). A partir dessas considerações, me instigou a ler sobre as
temáticas da peça e as formas ao tratá-las.

 1926
- Zig -Zag– Bastos Tigre– Data de registro na polícia 25 de fevereiro de 1926 –
Teatro Glória – Companhia Tro-ló-ló
Motivo da escolha: O que me impulsionou a escolher a peça foram razões similares a
peça anterior (Fla-Flu). Me questionei sobre as diferenças entre as temáticas e formas de
tratá-las das duas. Apesar de ambas serem escritas para a companhia Tró-ló-ló, os
autores são diferentes.

- Bahiana, olha pra mim! – Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes – Data de


registro na polícia: 25 de fevereiro de 1926. Theatro S. José – Empresa do Paschoal
Segreto
Motivo da escolha: A partir das primeiras leituras realizadas na biblioteca da
FUNARTE, a presente revista me interessou por retratar temas como: a relação entre
mulata e português, identidade do carioca em relação a baiana, novos costumes e etc.

 1927
203

- Não quero saber mais dela - Marques Porto e Luís Peixoto – Data de registro
policial: 14 de agosto de 1927 – Data de estreia: 19 de agosto de 1927. Companhia
Bataplan.
Motivo da escolha: A revista foi escolhida para análise devido à assertiva de Gomes no
que diz respeito à imagem do português como integrado ao caráter nacional534.

- Cangote Cheiroso - Marques Porto e Luís Peixoto – Data de registro policial: 06


de dezembro de 1927. – Theatro Recreio.
Motivo da escolha: A motivação para escolha da peça também foi a obra de Gomes, que
afirma: ―Nesta revista, onde o bom brasileiro é aquele que gosta do jogo do bicho e a
mulata rejeita o português, o personagem malandro se opõe ao português‖ 535. Ideia
completamente oposta da peça anterior.
Na obra de Enio e Vieira, a revista é apresentada como crítica política e de costume. Os
autores ressaltam ainda que, a censura e o juiz de menores consideraram o quadro ―Nu
artístico‖ um atentado ao pudor, ordenando, assim, que todas as artistas e coistas
usassem malhas536.

 1928
- É da fuzarca – Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes – Data de registro
policial: 22 de outubro de 1928 - Teatro Recreio.
Motivo da escolha: A dissertação de mestrado de Gomes revelou questões iumportantes
de diversas revistas da década de 1920. Uma que me chamou atenção foi a revista É da
fuzarca, não apenas pelo título que insinua festa, pândega, mas pelas considerações
feitas pelo autor: ―(...) É da fuzarca, grande sucesso de 1928 de Bittencourt e Menezes
(...).A leitura do Brasil, da capital e de seu povo é óbvia, e sugere a singularidade de um
povo que encara o trabalho de uma outra maneira, e se preocupa acima de tudo com a
diversão‖ 537.

 1929

534
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 1998, P. 106.
535
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 1998, p. 106.
536
ENIO, Lysias; VIEIRA, Luis Fernando. Luiz Peixoto: pelo buraco da fechadura. Rio de Janeiro:
Vieira &Lent, 2002, p. 155.
537
GOMES, Tiago de Melo. op. cit., 1998, p. 103.
204

- Banco do Brasil – Marques Porto e Luís Peixoto – Data de registro na polícia:


10 de outubro de 1929 - Data de estreia: 1 de novembro de 1929. Teatro Recreio –
Empresa Neves e Companhia.
Motivo da escolha: A eleição desta revista se deve as considerações feitas por Luís
Nassif, em seu portal na internet: http://blogln.ning.com/profiles/blogs/as-mil-artes-de-
luiz-peixoto. Em seu texto, Nassif expõe uma música que trata sobre características do
Brasil e do brasileiro, como se evidencia no fragmento abaixo:
Minha terra é um paraíso
Que Deus fez pra se gozá,
O que nos falta é juízo,
O resto tudo dá lá.
(...)
Meu Brasil não é sopa, não:
Tando pronto e sem dinheiro,
Se ele não faz emissão
Pede emprestado ao estrangeiro .

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