Levinas - Judaísmo, Alteridade e Educação 2021.2
Levinas - Judaísmo, Alteridade e Educação 2021.2
Levinas - Judaísmo, Alteridade e Educação 2021.2
1. A civilização do Livro
Sob impacto da Ia Guerra mundial, ainda criança migra com a família para a
Ucrânia, de onde pouco depois lhe chegam alvíssaras da Revolução Soviética, até que,
duas décadas mais tarde, com Stalin, visse sepultadas esperanças revolucionárias junto
aos corpos de prisioneiros políticos dos gulags. Em fins da década de 1930, já professor
de Filosofia estabelecido em Paris – e naturalizado francês “por amor à língua de Racine
e Pascal” –, é recrutado como oficial do exército quando estoura a II Guerra. A decisão
cívica-literária termina por salvar-lhe a vida, pois, capturado pelos nazistas, fica retido
por mais de quatro anos em campo de refugiados, sob proteção da jurisdição militar, ao
passo que – como saberá depois de finda a Guerra – quase todos os seus familiares são
mortos nos campos de concentração. Junto a milhões de outros judeus, eles conheceram
a “derrelição” extrema, “condição inferior à das coisas, experiência de passividade total,
experiência da Paixão.” (URA, 25) Liberto do cativeiro, retorna a Paris, onde reassume o
posto docente. Enquanto as potências nucleares medem forças à sombra fria do pós-
Guerra, nos países de Terceiro Mundo proliferam guerras civis de libertação contra o
capitalismo neocolonial. Em suma, nas palavras de Levinas:
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Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com Pós-
Doutorado em Filosofia Moral e Política pela Universidad Metropolitana de México (UAM). Professor
Titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), credenciado no Programa de Pós-Graduação em
Educação e Contemporaneidade (PPGEDUC). Contato: [email protected]
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Todas as traduções dos textos extraídos da obra Difficile Liberté são de autoria nossa.
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O pensamento de Levinas madura nesse cenário de ruínas atravessado por dentro,
a cobrar-lhe excepcional gravidade e vigilância. A leitura desse feixe de acontecimentos
extremos converge em sua obra para o reconhecimento de uma crise de sentido que mina
os fundamentos da civilização ocidental, abrangendo as dimensões econômica, política,
jurídica, cultural, filosófica e pondo em cheque a sua expansão planetária sob o paradigma
da modernidade. O colapso histórico do entre (e pós) Guerras não seria, portanto, senão
o aflorar de uma crise civilizatória que estaria a exigir radical reposição do sentido do
humano.
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Talvez o pensamento judaico, em seu conjunto, consista hoje em se ligar mais
fortemente que nunca a essa permanência e eternidade. (PJH, 232)
Não obstante o alcance de sua vocação civilizatória, há séculos, especialmente
desde o XIX, a presença de Israel sofre intenso refluxo no mundo ocidental, a partir do
processo de emancipação social que levou as comunidades judaicas a adotarem no espaço
público as formas culturais vigentes, diluindo a mensagem do Livro em um humanismo
mediano constituído de ideais “genéricos e generosos”, remanescentes do patrimônio
greco-romano-cristão acomodado ao espírito liberal moderno. Para inscrever-se na
sociedade civil em condições de igualdade, Israel suprimiu a sua voz ou passou a falar
apenas para dentro de sua circunscrição confessional, fazendo de sua herança espiritual
um mister reservado aos seus. Reduziu espiritualidade a instrução religiosa, ritualismo
tradicional e piedade. Reduziu ação social a beneficência. Privatizou a vida espiritual,
aprisionada na sinagoga, tornando-a assunto de especialistas, com seus “lugares especiais,
dias especiais e horas especiais, em presença de uma clientela de especialistas,
frequentemente pagos.” (CJP, 342) Com isso, Israel renunciou à primogenitura e ao
protagonismo histórico e deixou de contar como cultura, se por esta se entende não “um
conjunto de curiosidades arqueológicas às quais um sentimento de piedade conferiria, por
sua virtude própria, valor e atrativo”, mas “um conjunto de verdades e formas que
respondem às exigências da vida espiritual e da vida propriamente dita.” (REJ, 370-371)
Ao destituir-se como cultura e perder o compasso do tempo, Israel acabou perdendo a
audiência dos que esperariam ouvir a palavra que ele teria a dizer: “A Sinagoga sem
fundamento não saberia subsistir. É preciso buscar as condições de sua possibilidade. Pois
um fato é certo: reduzida a si mesma, sob as tempestades dos tempos modernos, a
Sinagoga esvaziou as sinagogas.” (CJP, 343)
No entanto, para Levinas não basta assumir o Livro como centro da vida e da
civilização; é preciso retomá-lo em sua língua originária – o hebraico – e à luz dos
comentários sapienciais rabínicos do Talmud3 que, séculos a fio, fazem-no falar a partir
dos acontecimentos da história, reinaugurando a cada vez “um diálogo inacabado com
um mundo reposto em questão.” (REJ, 372) Longe de reivindicar uma suspeitosa
prerrogativa de endogenia confessional, ler o Livro no hebraico e à luz do Talmud – no
espírito que suscitou Israel – seria, para Levinas, garantir a perene atualização histórica
de sua mensagem, mas sobretudo salvar o crivo hermenêutico das “verdades correlativas
de virtudes”, sem o qual a sabedoria do Livro ficaria limitada, aí sim, ao mero
“pensamento de um povo isolado” (PHH, 383): “Segundo o judaísmo, o verdadeiro não
encontra simbolismo fiel que o preserve da imaginação senão nas atitudes práticas, numa
Lei. Os grandes textos do judaísmo rabínico, inseparáveis da Bíblia, expõem essa Lei na
qual consistem as grandes verdades.” (PHH, 382).
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Livro sagrado dos judeus, contém as discussões rabínicas referentes à lei, costumes e história do judaísmo.
Compõe-se da Mishna (220 d.C), primeiro compêndio escrito da Lei Oral judaica; e da Guemara (500 d.C),
discussão da Mishna e de outros escritos sapienciais judaicos.
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De qual lei se trata, afinal? Ei-la:
O monoteísmo que anima o Livro – a mais perigosa, a mais alta das abstrações –
não consiste em conduzir o ser humano, em suas imperfeições, ao encontro de um
Deus consolador, mas em reportar a presença divina à justiça e aos esforços
humanos, como se reporta a luz do dia aos olhos, único órgão capaz de ver. A
visão de Deus é ato moral. Essa ótica é uma ética. O Livro não nos conduz aos
mistérios de Deus, mas às tarefas humanas. O monoteísmo é um humanismo.
Somente os néscios fazem dele uma aritmética teológica. Os livros em que esse
humanismo se inscreve esperam seus humanistas. Para os que querem continuar
o judaísmo, a tarefa consiste em abrir esses livros. (PHH, 382-383)
Uma ressalva primordial, porém, seja feita. De tal modo a “mais perigosa e alta
das abstrações” que funda o humanismo hebraico separa-se, na tradição do Talmud, de
toda noção nacional, local, racial ou histórica associada a Israel, que, para o Rabi Meïr –
um dos principais doutores da Lei –, “um pagão que conheça a Torá4 é igual ao Grande
Patriarca de Israel”. (URA, 40) Israel detém a primogenitura, mas não a exclusividade da
mensagem que lhe foi confiada.
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Cinco primeiros livros da Bíblia judaica (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), que
constituem o texto central do judaísmo.
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Nome dado aos judeus provenientes da Europa Central e Europa Oriental.
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deu valiosa expertise na compreensão do papel civilizatório das escolas rabínicas no pós-
Guerra.
A sabedoria judaica é tão inseparável dos textos bíblicos e rabínicos quanto estes
o são da língua hebraica em que foram originalmente escritos, cuja “vida profunda” só
pode ser decifrada com o método, disciplina e dedicação que o ambiente escolar oferece.
Ademais, a aproximação dos textos sagrados impõe o mesmo “espírito interrogador” que
permitiu aos comentaristas talmúdicos do passado desentranhar do Livro novos
ensinamentos a partir de seus respectivos tempos históricos e pontos de vista. Sendo
assim, é preciso transformar o judaísmo em ciência, e organizar a ciência do judaísmo em
instituição escolar, o que não significa meramente submeter suas fontes à perícia técnica
da filologia e outras especialidades, mas permitir que seus textos permaneçam tão
ensinantes hoje quanto o foram outrora. (REJ, 372) Aqui, o rigor sobre o texto deriva do
amor ao que ele revela.
Só se impõe de verdade o que traz o selo do intelecto. A única honra dos tempos
modernos consiste em tomar consciência da razão, na qual o judaísmo se
reconhece. Só os altos estudos tornarão possível um ensino secundário ou primário
que não será desmentido ou esquecido ao primeiro contato com o mundo no qual
entendemos viver, trabalhar e criar. (REJ, 373)
Decorre da dimensão secularizante do humanismo judaico a firme recusa de toda
e qualquer forma de sacralidade numinosa. Esta não se dirige à inteligência de face,
privando-a do direito de compreensão e resposta, ao tempo em que aliena o ser humano
a uma potência sagrada triunfante, “com sua vida clandestina e misteriosa”, que o possui
no “entusiasmo extático” e – de tudo o mais grave – substitui o Eterno por um ser divino
à imagem das representações e à medida dos desejos humanos. O judaísmo é
imensamente cioso da transcendência de Deus, da liberdade do ser humano e da
autonomia da inteligência e, com o mesmo ardor com que os reverencia, trata de investir
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impiedosamente contra os “mitos” religiosos que os ameaçam, “desenfeitiçando” assim
o mundo e denunciando como idolatria essa religiosidade do sagrado:
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divina tradição da justiça intransigente que, por antecipação, expia as blasfêmias.
(EE, 16-17)
Extremo paradoxo típico da condição judaica: ateus devotos da “divina justiça” a
expiar por seus atos a culpa dos que transgridem a Lei de Deus, por vezes, em nome de
Deus; rebeldes reverentes que se insurgem contra estéreis tradicionalismos litúrgicos por
fidelidade à tradição de justiça saída do Livro. Para quem se contente em ver nessa
expressiva estirpe judaica de “piedosos ateus” ou “reverentes rebeldes” apenas um
desconcertante acaso, caberia indagar se a recusa ateia – dura, madura – das máscaras do
divino justamente não favoreceria a devoção ao caráter divino da justiça que clama pelo
rosto do próximo, conforme uma vetusta linhagem de profetas hebreus que denunciavam
o culto a Baal6 em nome da sacralidade das vítimas humanas a ele imoladas. Caberia
questionar se o enterro do deus morto não liberaria afinal o ser humano para a dimensão
de “altura” a partir da qual o Eterno se pode revelar, considerando que “Deus eleva-se a
sua suprema presença como correlativo da justiça feita aos humanos.” (TI, 64) Para a
salvaguarda dessa cultura que “identifica espírito e justiça” foram plantadas as escolas
judaicas da Diáspora, cujos estudos não oferecem ao ser humano uma sabedoria exótica
a mais, mas visam “ressuscitar uma de suas almas”. (PHH, 384) Em suma, “Que a relação
com o divino atravesse a relação com os seres humanos e coincida com a justiça social –
eis todo o espírito da Bíblia judaica.” (UR, 36)
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Deus principal dos fenícios e cartagineses.
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Em torno desse enlace seminal de transcendência divina e alteridade humana,
germinam as principais concepções do legado espiritual judaico, das quais Levinas
oferece um resumo exemplarmente didático – como convém a um texto desse teor – no
verbete “Judaísmo”, escrito para a Encyclopaedia Universalis, para cuja transcrição mais
extensa pedimos licença ao leitor:
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modo que “a falta cometida contra Deus aumenta o seu perdão, mas não a ofensa contra
o próximo.” (URA, 37) Assinalado pelo Eterno, o sujeito encontra a sua unicidade não
em si mesmo, mas na responsabilidade pelo outro que o interpela. E vai tanto mais ao
encontro de sua salvação, quanto menos esta importa para si mesmo. Nessa linha,
movendo-se na contracorrente de uma milenar obsessão que lateja no coração de fiéis das
mais diversas tradições (e de tantos infiéis), a sabedoria judaica reserva importância
secundária – ou franca desconsideração – ao afã de imortalidade, face à urgência de acudir
aos clamores dos “miseráveis e perseguidos da terra”, pois, mais importante que persistir
no ser em “outra vida”, é agir de acordo com o sentido que o justifique nesta. “Ser ou não
ser” já não é, portanto, a questão. A tal ponto chega a primazia judaica do bem sobre o
ser que o salmista, do fundo de sua fossa, com a alma “sedenta”, ainda clama pelos
mandamentos divinos, como se estes fossem o próprio respiro de sua alma e lhe valessem
antes que todo consolo ou conforto: “Minha alma parte-se por suspirar por teus
julgamentos a cada instante.” (Sl 119, 20, apud URA, 36)
4. Ótica ética
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“o piedoso é o justo”. Mesmo o amor a outrem demanda justiça aos outros, uma vez que
a terna responsabilidade devida ao ser amado não perde de vista o outro ser humano – o
“terceiro”, próximo do próximo – que, em sua relação com o ser amado, fora do circuito
amoroso dialógico, me interpela à justiça e, nessa medida, também é meu próximo. Isto
significa que o amor ao próximo só o é propriamente quando me abre e permanece aberto
à aproximação dos demais. (URA, 34) Realizar a sociedade justa entre os humanos é “a
beatitude e o sentido da vida” e, ipso facto, elevação à sociedade com Deus. Nenhuma
relação com Deus é mais própria, ou mais imediata, que a relação ética, e o Divino não
se manifesta senão pelo próximo. (PJH, 223)
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põe em movimento dialético, mas o primeiro ensino racional, a condição de todo ensino.”
(TI, 171) A inteligência humana desperta a partir da revelação da alteridade do outro e,
por isso, o estatuto de racional sequer caberia a um discurso constituído à margem do
encontro e do diálogo. (SANTOS, L., 170)
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5. Libertar a liberdade
Intuição fundamental da moral: eu não sou igual a outrem, pois me vejo obrigado
a seu respeito e, pois, sou infinitamente mais exigente em relação a mim que a ele.
Não há consciência moral sem consciência da posição excepcional do eu derivada
dessa eleição. A reciprocidade é uma estrutura fundada sobre uma desigualdade
original.
Se houvesse apenas a alteridade de outrem diante de mim, a relação ética
permaneceria assimétrica. No entanto, há o próximo do próximo (o terceiro), e o outro
daquele, e assim por diante, a instaurar um espaço coletivo que reúne presenças laterais
sob a mesma perspectiva geral. O “ser-para” da socialidade ética dá lugar ao “ser-com”
da socialidade jurídica; os rostos se apagam e aparecem os perfis indiferenciados a
coexistir na ordem civil. Impõe-se, portanto, comparação e mensuração em vista do
estabelecimento de uma justiça objetiva que considere a todos – inclusive a mim – como
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iguais perante a lei impessoal, evitando que privilégios privados suprimam direitos
universais. Porém, para Levinas a justiça equitativa é tão somente uma extensão mitigada,
para os demais seres humanos, da responsabilidade ilimitada originalmente devida ao
próximo. Trata-se de uma necessária limitação da responsabilização interpessoal em
favor da garantia do direito de todos, que de modo algum retira da ética assimétrica a
primazia pedagógica na constituição do sentido do bem. Com efeito, a sociedade “não é
coexistência de multidões humanas ou participação nas leis coletivas, mas o milagre da
saída de si.” (EI, 22) Transferir para o plano normativo tal prerrogativa pedagógica seria
reduzir a prática da justiça a um cálculo ardiloso pelo qual o dever para com outrem seria
exercido como inevitável contrapartida ao usufruto do próprio direito, fazendo da ética,
no final das contas, uma organização racional dos deveres de todos a serviço do interesse
de cada um.
Segundo Levinas, ser eu “é ter a identidade como conteúdo.” (TI, 24) Aqui, a
identidade não é lida à luz da categoria de substância da ontologia clássica, que estabelece
neutra equivalência tautológica do ser a si mesmo (“eu sou eu”); muito menos o eu se
inscreve no âmbito do Espírito absoluto, como no idealismo alemão. Em chave
fenomenológica, Levinas descreve a identidade do eu a partir do mundo, como processo
de identificação inseparável do “concreto do egoísmo”. O eu existe para si, como
dinâmica de autocentramento ou interioridade, separado da totalidade das coisas,
mantendo-se no mundo como sua morada pela apropriação do outro como objeto de saber,
fruição, trabalho, posse, em suma, como objeto de poder. No mundo, ser eu é permanecer
o Mesmo contra o outro:
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Se eu tivesse diante de mim apenas coisas à vista e à mão, a vida não passaria de
uma alegre dissipação de posses, e o mundo seria um reino ao dispor de minha solitária
soberania. Mas eis que, de fora e acima de meu mundo, sobrevém o rosto de outrem, tábua
viva da lei na qual se inscreve o “não matarás” e demais interdições ao meu poder, pondo
“em questão minha tendência natural a me apropriar de tudo o que toco.” (URA, 32) A
existência econômica é, então, chamada a converter-se em existência ecumênica,
derivada do mencionado “milagre da saída de si”. Assim, a condição de possibilidade da
sociedade reside no reconhecimento de que poder não equivale a dever, e que o eu não é
inocente: “A consciência é a impossibilidade de invadir a realidade como uma vegetação
selvagem que absorve, rompe ou expulsa o que a circunda.” (EE, 22) A consciência de si
é, portanto, inseparável da consciência da injustiça natural feita por si a outrem, em razão
da própria estrutura do Ego. Na consciência de si, a descoberta de seus poderes não se
separa da descoberta de sua ilegitimidade; por isso, a consciência moral é o modo
elementar da consciência de si. Ser para si, é já saber minha falta para com outrem.
“Inteiramente só”, o eu se encontraria em estado de “dilaceração”, como se já houvesse
usurpado um lugar que não lhe pertence. (URA, 32-33) Nesse sentido, ética é “a
impugnação de minha espontaneidade pela presença de outrem.” (TI, 30)
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efeito, na relação ética outrem se apresenta como absolutamente outro, mas sua alteridade
radical não destrói minha liberdade: “A relação ética é anterior à oposição das liberdades.
O rosto do próximo tem uma alteridade que não é alérgica, mas abre o além (au-delà).”
(URA, 34) Por isso, a mesma educação que ensina o ser humano a obedecer à lei divina
também permanece relação com um ser livre, posto que “A liberdade não é um fim em
si, mas a condição de todo valor que o ser humano possa atingir.” (URA, 29) Não se trata,
portanto, de encurtar o campo de ação da liberdade, mas de encontrar sentido ao seu poder
ou “a força que institui a força”. Dito em termos teológicos, “O Deus do céu é acessível
sem nada perder de sua transcendência e sem negar a liberdade do fiel.” (URA, 34) Ou
ainda:
6. Antiga atualidade
Por suposto, não é sem esforço e luta que o fiel-educando é chamado a vencer,
pelo rito, a força gravitacional da própria vontade. No entanto, por mais que a fidelidade
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ritual demande uma “coragem, calma e nobreza maiores que a do guerreiro”, para o judeu
ela não chega a ser um “jugo”, considerando a singular alegria que brota da libertação da
liberdade pela prática do bem, da qual “se alimentam uma vida religiosa e toda a mística
judaica.” (URA, 35)
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como um pequeno deus e não mais teria por que nem para quem prestar contas – “é
proibido proibir”. Aqui, “não há necessidade de nenhuma relação inter-humana e as
responsabilidades se desatam.” (AH-E, 395-396) É nesse lisérgico jardim de delícias que
viceja a espiritualização “cósmica” na qual o eu (Eu) e Deus (deus) se tornariam um e o
rosto do outro, afinal, se apagaria:
Para o filósofo judeu, não se trata, porém, aqui, de preocupação de ordem policial,
mas “que os jovens não sejam educados sem reconhecer a distinção entre bem e mal e as
ilusões da felicidade.” Afinal, após toda margem possível de revolucionária
experimentação concedida ao campo sexual, por exemplo, com seus imprevistos efeitos
colaterais no âmbito das relações conjugais e familiares, não acontece que “o amor sem
lei” possa desembocar no “prazer sem amor?” (A-HE, 396-397) Não acontece que, na
voragem do desejo para além de bem e mal, a alteridade de outrem se veja reduzida a
objeto de fruição?
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oportuna e “vivente”, quanto mais se cava a distância entre a sua ótica ética e o espírito
lasso dos tempos:
Que textos desenvolvendo a lei da estrita justiça (essa entediante ética, tão
desacreditada por artistas e místicos) possam nos levar às contradições secretas e
à mais íntima respiração da alma humana; que a preocupação mais concreta,
moderna, pesada e plana de justiça social e econômica, nos transpasse como o
próprio verbo desse Deus tão familiar, amigo, cuidadoso e exigente – eis a incrível
aventura do estudante ocidental do Talmud. (PJH, 227)
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Por retirar sua força inovadora da fidelidade às própria fontes, as escolas rabínicas
professam um judaísmo “intelectualmente ambicioso”, receptivo ao mundo moderno mas
arrostando-o a partir de seu lugar hermenêutico sapiencial. Formado no espírito
questionador do Talmud, longe de fazer da memória da paixão judaica um “masoquismo
de perseguidos”, o pensamento desenvolvido na escola rabínica da Diáspora assume a
tarefa radical de encontrar um sentido ao ser e de resguardar a essência humana à luz de
um “humanismo do outro ser humano”, de modo que, “em sua revolta ou em sua
paciência”, os perseguidos de todas as terras e línguas “não se convertam em
perseguidores e aprendam a desconfiar de todo ressentimento”. (A-HE, 392)
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
LEVINAS, Emmanuel. “Refflexions sur l’éducation juive”. In: Difficile Liberté. Paris:
Editions Albin Michel, 1976.
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