Sabedoria Tradicional e Superstições Modernas
Sabedoria Tradicional e Superstições Modernas
Sabedoria Tradicional e Superstições Modernas
SABEDORIA TRADICIONAL
&
SUPERSTIÇÕES MODERNAS
MARTIN LINGS
SUMÁRIO
Apresentação..................................................................................................4
Prefácio...........................................................................................................8
O Passado à Luz do Presente..........................................................................9
Os Ritmos do Tempo...................................................................................24
O Presente à Luz do Passado........................................................................35
Liberdade e Igualdade..................................................................................54
Intelecto e Razão..........................................................................................66
O Encontro dos Extremos...........................................................................78
Apêndice I.....................................................................................................86
Apêndice II...................................................................................................91
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APRESENTAÇÃO
1 Sábio hindu do século VII d.C., considerado o maior expositor da escola advaita, não-dualista.
MARTIN LINGS
U
PREFÁCIO
MARTIN LINGS,
Londres
MARTIN LINGS
CÁPITULO I
T
O PASSADO À LUZ DO PRESENTE
7 The Transformist Ilusion (prefácio), Dchoff Publications, Tennessee, 1957 (Ver no Apêndice I a rese-
nha deste livro).
8 Porque como o mesmo autor diz noutro trecho da obra citada na nota anterior: “nenhum evolucionis-
ta que preza sua reputação mencionará qualquer fóssil conhecido e dirá que, mesmo não sendo huma-
no, é um anscestral do Homo Sapiens” (página 114).
9 Ibid., página 294.
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conjunto de fatos. O que mudou não foi tanto o conhecimento dos fatos, mas
o juízo de valores.
Até recentemente, os homens não pensavam mal de seus ancestrais por te-
rem vivido em cavernas e bosques ao invés de casas. Não faz muito tempo,
Shakespeare colocou na boca do Duque desterrado, que vivia na floresta de Ar-
den “como se vivia na Idade de Ouro”:
“Aqui não sentimos nada além do castigo de Adão,
A mudança das estações...
E nossa vida, livre da angústia da vida pública,
Descobre falas nas árvores, livros nos córregos,
Sermões nas pedras, e o bem em todas as coisas.
Eu não mudaria isso.”
Essas palavras ainda podem despertar em algumas almas uma reminiscên-
cia séria, um assentimento que é consideravelmente mais do que mera aprova-
ção estética. E, antes de Shakespeare, durante toda a Idade Média e remontando
até o mais distante passado histórico, não houve época em que o mundo oci-
dental não tivesse seus eremitas, alguns dos quais estavam entre os homens mais
venerados de sua geração. Nem pode haver dúvida de que esses poucos seres de
exceção, que viviam em ambiente natural, sentiam uma certa compaixão bene-
volente pela dependência servil de seus outros irmãos em relação à “civilização”.
No que diz respeito ao Oriente, ele nunca rompeu inteiramente com o antigo
código de valores, segundo o qual o melhor ambiente para o homem é o ambi-
ente primordial. Entre os hindus, por exemplo, ainda é um ideal — e um privi-
légio — para um homem terminar seus dias na solidão da natureza virgem.
Para aqueles que podem compreender facilmente este ponto de vista, não
será difícil ver como a agricultura, depois de haver alcançado certo grau de de-
senvolvimento, longe de significar qualquer “progresso”, torna-se de fato a “go-
ta d'água” da fase final da degeneração do homem. No Antigo Testamento, esta
“gota”, que consiste sem dúvida de centenas de gerações humanas, é sintetizada
na pessoa de Caim, que representa a agricultura — enquanto distinta da caça e
do pastoreio — e que também construiu as primeiras cidades e cometeu o pri-
meiro crime. De acordo com os comentários do Gênesis, Caim “tinha paixão
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10 Frithjof Schuon, Language of the Self, p. 220 (Luzac & Co., Londres, para Ganesh, Madras, 1959).
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“toda essa classe de literatura profética que inclui a Bíblia, os Vedas, o Edda, 11 os
grandes épicos e, em geral, os ‘melhores livros’ do mundo”:
“Vários destes livros existiram muito antes de serem escritos, muitos nun-
ca foram escritos e outros estão se perdendo ou se perderão.”12
Um número incontável de homens completamente iletrados têm sido
mestres de uma linguagem altamente elaborada.
“Estou inclinado a pensar que o melhor dialeto [da Grã Bretanha] é o fa-
lado nas ilhas pelos homens mais iletrados... Homens de mente clara e memória
maravilhosa, geralmente muito pobres e idosos, que vivem em lugares remotos
e falam apenas o Celta”.13
“A capacidade da tradição oral em transmitir uma grande quantidade de
versos, por centenas de anos, é comprovada e admitida... E a educação não é boa
amiga dessa literatura oral, como os franceses a chamam. A cultura destrói esta
literatura, às vezes com surpreendente rapidez. Quando uma nação começa a
ler, ...o que antes era propriedade do povo como um todo, torna-se herança dos
iletrados apenas, e logo, a não ser que seja recolhida pelos colecionadores de an-
tiguidades, desaparece totalmente”.14
“Se tivéssemos de indicar um único fator para o declínio da cultura aldeã
inglesa, teríamos de dizer que este fator foi a alfabetização”.15
Nas Novas Hébridas16, “as crianças são educadas ouvindo e observando...
Sem a escrita, a memória é perfeita, a tradição exata. À medida que cresce, a cri-
ança é ensinada a respeito de tudo que é conhecido... Canções são uma forma
de contar histórias... A forma e o conteúdo dos milhares de mitos que toda cri-
ança aprende, geralmente de cor — e uma narrativa pode durar horas — são
11 “Edda” é o nome dado a duas coletâneas distintas de textos do séc. XIII, encontradas na Islândia, e que
permitiram iniciar o estudo e a compilação das histórias referentes aos deuses e heróis da mitologia
nórdica e germânica: A Edda em prosa e a Edda em verso. (N.R.)
12 AK. Coomaraswamy, The Bugbear of Literacy, p. 25 (Denis Dobson, Londres, 1949).
13 J. F. Campbell, Popular Tales ofthe West Highlands.
14 G. L. Kitredge, em sua introdução a English and Scottish Popular Ballads, de F. G. Childe.
15 W. G. Archer, The Blue Grove, prefácio (G. Allen & Unwin, Londres, 1940).
16 Conjunto de ilhas “descobertas” pelos portugueses no Occano Índico, próximo à costa leste da Austrá-
lia. A maior dessas ilhas chama-se Espírito Santo. (N. T.)
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uma biblioteca completa... Os ouvintes são mantidos numa teia feita de pala-
vras.”
Eles conversam ao mesmo tempo “com aquela precisão e beleza de pala-
vras que nós perdemos... Os nativos aprendem facilmente a escrever após o con-
tato com o homem branco. Eles consideram a escrita uma realização curiosa e
inútil e se perguntam: um homem não pode se lembrar e falar?”17
Além destas citações, todas tiradas de Coomaraswamy, podemos observar
que, entre os árabes pré-islâmicos, era costume dos nobres de Meca enviar os fi-
lhos para serem educados entre os beduínos do deserto, pois esses nômades
completamente iletrados eram conhecidos por falar um árabe mais puro que
seus companheiros mais “civilizados” da cidade.
Não há dúvida de que, em geral, a civilização embota a vivacidade e a
atenção naturais do homem, que são as qualidades mais necessárias para a pre-
servação da língua. Em particular, a capacidade de ler e escrever “adormece” os
homens, dando-lhes uma falsa sensação de segurança e a impressão de que sua
fala cotidiana não é mais o “único banco” no qual o tesouro da língua é deposi-
tado; e, uma vez que a ideia de duas línguas, uma escrita e outra falada, cria raí-
zes, a língua falada é condenada a degenerar-se com relativa rapidez e, afinal, ar-
rastar consigo também a língua escrita — como prova a nova tradução inglesa
da Bíblia.
No Ocidente de hoje, a degradação da linguagem falada atingiu um pon-
to tal que, apesar de um homem encontrar certas dificuldades para colocar seus
pensamentos no papel, o orgulho da dignidade do falar tornou-se algo quase
desconhecido. É verdade que se é ensinado a evitar certas coisas ao falar, mas is-
so por razões puramente sociais, que não têm nenhuma relação com a riqueza
da sonoridade ou com qualquer outra qualidade positiva que a língua possa ter.
Ainda assim, a maneira pela qual um homem se expressa oralmente continua
sendo um fator muito mais significativo em sua vida do que a maneira como ele
escreve, pois possui um efeito cumulativo sobre sua alma, o que a escrita espo-
rádica nunca poderia ter.
É necessário esclarecer que o propósito destas observações não é negar as
utilidades do alfabeto escrito. A linguagem tende a se deteriorar no curso natu-
17 T. Harrison, Savage Civilization, pp. 45, 334, 351, 353 (1937).
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18 Ver, por exemplo, Alain Daniélou, Introduction to the Study of Musical Scale, Royal India and Pakis-
tan-Society, Londres, 1943.
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CÁPITULO II
E
OS RITMOS DO TEMPO
vra, mais suas atividades escapam do ritmo mais baixo e mais estão de acordo
com o mais elevado.
A arte, por exemplo, em seus aspectos mais elevados, está inextrincavel-
mente ligada à espiritualidade, apesar da inspiração artística de maneira nenhu-
ma sempre surgir nos primórdios de uma religião; pois, quando a espiritualida-
de em geral está em seu ponto mais alto, os homens têm menos necessidade da
arte do que em qualquer outro período. Na Cristandade, o decadente estilo
greco-romano prolongou-se em certos domínios por três ou quatro séculos, an-
tes de ser substituído por um estilo genuinamente cristão; mas a substituição
geralmente ocorre de uma maneira mais ou menos instantânea.
Tomemos um exemplo de arte do mais alto nível. Os judeus não tinham
arquitetura sacra até que Salomão construísse o templo, conforme os planos re-
velados a Davi. Tão repentina foi a realização deste ápice arquitetônico que seus
construtores tiveram de ser trazidos do estrangeiro. Embora este exemplo seja
uma exceção — por ter se originado mesmo de algo mais do que inspiração, isto
é, de uma revelação direta —, a inspiração, contudo, move-se de maneira simi-
lar. A arte mais primitiva que chegou até nós é um exemplo notável — suficien-
temente notável para se impor até mesmo àqueles cujas ideias ela contradiz
completamente e que ficam “perplexos” com o que, na verdade, seria surpreen-
dente se não fosse assim.
“Sem dúvida, o aspecto mais surpreendente do fenômeno artístico, quan-
do ele nos é apresentado pela primeira vez, é o alto grau de maturidade demons-
trado nas expressões mais antigas. A súbita aparição de obras de arte estilistica-
mente desenvolvidas nos pega completamente de surpresa, com uma erupção
maravilhosa de valores estéticos... Mesmo os exemplos que, sem dúvida, perten-
cem à fase mais antiga, são trabalhos de uma maturidade artística surpreenden-
te.”23
Muitas coisas são inexplicáveis, a menos que percebamos que existem du-
as “correntes” ou “ritmos” em ação na história, e não apenas uma. Nossos ante-
passados, sem dúvida, tinham consciência disso, pois todos percebiam a corren-
te de superfície de expansão e contração. No que diz respeito à “elevação” súbi-
ta e à “queda” gradual que são inevitáveis para o que há de mais elevado em uma
23 Paolo Graziosi, Palaeolithic Art, pp. 23-24 (Faber & Faber, 1960).
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ao dos anjos. Se nos voltamos para o Extremo Oriente, percebemos que, apesar
da forma bastante diferente, a verdade expressa é a mesma. Na China, há mais
de dois mil anos, o sábio taoísta Chuang Tsu disse:
“O conhecimento dos antigos era perfeito. Perfeito até que ponto? De
início, eles ainda não sabiam sobre a existência das coisas (com exceção do Tao, a
Via, que significa o Eterno e o Infinito); este é o conhecimento mais perfeito,
nada pode ser acrescentado. Em seguida, eles tomaram conhecimento da exis-
tência das coisas, mas ainda não faziam distinções entre elas. Depois, fizeram dis-
tinções; mas ainda não as julgavam. Quando os julgamentos foram feitos, o co-
nhecimento do Tao foi destruído.”26
Muito distinta externamente, mas ainda assim essencialmente a mesma, é
a mensagem de uma antiga canção lituana, que chegou até nós das sombras da
pré-história. Esta canção nos conta como “a Lua se casou com o Sol na primeira
primavera”, como na sequência a Lua, “extraviando-se”, vislumbrou a Estrela da
Manhã e apaixonou-se por ela, com o que Deus, o Pai do Sol, cortou a Lua em
dois.
O Sol é universalmente o símbolo do Espírito, e a sua luz simboliza o co-
nhecimento direto das verdades espirituais; enquanto a Lua representa tudo
que é humano e, em particular, a mente — uma vez que o conhecimento men-
tal, como o luar, é indireto e refletido. É através da mente que as “distinções” e
os “julgamentos” são feitos.
“A Lua casada com o Sol” é o Homem Primordial; com suas duas nature-
zas, humana e Divina; e, assim como a Lua reflete o Sol, a alma humana com to-
das as suas faculdades e virtudes reflete as Qualidades Divinas. Portanto, a Lua,
enquanto símbolo da natureza humana, expressa a doutrina universal de que o
homem “é feito à imagem de Deus”, e que ele é “o representante de Deus na
Terra”.
Criação significa separação de Deus. O ato de criar pôs em movimento
uma tendência exteriorizante e separativa, à qual todas as criaturas, enquanto
tais, estão sujeitas. No entanto, nas criaturas não-humanas, esta tendência é de-
tida pela falta de liberdade. Constituindo apenas reflexos remotos e fragmentá-
rios do Criador, estas criaturas somente refletem seu Livre Arbítrio num senti-
do muito limitado; e se possuem menos liberdade do que o homem para o bem,
têm também menos liberdade para degenerar. Para o homem, o impulso exteri-
orizante nascido da criação era perfeitamente equilibrado, “na primeira prima-
vera”, pelo magnetismo interior de sua natureza mais elevada.
O ponto de encontro das duas naturezas, o ponto mais sublime da alma,
que é também o seu centro — pois o Reino dos Céus está tanto “dentro” como
“acima” de nós — é o que a maioria das religiões chama de Coração (escrito
aqui sempre com maiúscula para diferenciá-lo do centro do corpo); e o Coração
é o trono do Intelecto, no sentido em que Intellectus era entendido ao longo de
toda a Idade Média, isto é, a faculdade “solar” que capta diretamente as verda-
des espirituais, ao contrário das faculdades lunares da razão, memória e imagina-
ção, que são os reflexos diferenciados do Intelecto.
Em virtude do “casamento da Lua com o Sol”, o dividido e separativo “co-
nhecimento do bem e do mal” foi completamente subordinado ao conheci-
mento-do-Coração, unitivo e interiorizante, que remete toda criatura de volta
ao seu Criador. “A divisão da Lua em dois” representa a separação entre o Cora-
ção e a mente, entre o Intelecto e a razão, com a consegiente perda, no homem,
do conhecimento direto e unitivo e sua sujeição ao dualismo do conhecimento
indireto, o conhecimento do bem e do mal.
Foi a independência da mente, representada pela “Lua perdida”, que
trouxe consigo a possibilidade de impulsos e ações puramente profanos. Não
houve nada de espiritual no fato da Lua ter renunciado à Luz maior pela me-
nor, assim como não houve nada de espiritual no impulso que levou Pandora a
abrir a caixa, ou naquele que levou ao consumo do fruto proibido; e o significa-
do deste último ato pode ser melhor compreendido à luz da religião de Zōroas-
trēs, segundo a qual um dos estágios da corrupção do homem seria assinalado
pelo desfrute do alimento em si mesmo e pela não atribuição de sua qualidade
ao Criador.
Em um certo sentido, o Estado Edênico estava situado acima do tempo,
pois nele não existiam nem as estações e nem a morte. Tampouco havia religião
alguma, pois o fim do qual a religião é um meio ainda não tinha sido perdido,
enquanto a Idade de Ouro, que começa imediatamente após o pecado original
MARTIN LINGS
27 Ver Midrash Rabbah, sobre o Gênesis IV, 26 (Soncino Press, Londres, 1939, Vol. 1, p. 196). Num de-
terminado sentido — pois um texto sacro sempre foi visto como uma síntese de distintos significados
em diferentes níveis — a história de Adão, Caim e Abel compreende toda a História da humanidade.
Hoje, a transgressão de Caim é quase completa e os nômades foram quase que totalmente extintos pe-
los habitantes das cidades (Ver René Guénon, O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, Cap.
XXI). Deste ponto de vista, pode-se dizer que uma nova alegoria inicia-se com a narrativa de Adão e de
Seth. Mas, de outra perspectiva, se Caim de certo modo recapitula a Queda e personifica toda a “sabe-
doria mundana” que dela resulta, e se Abel representa a perda do Éden, personificando o arrependi-
mento e a penitência de Adão, Seth representa a compaixão de Deus para com Adão e o estabelecimen-
to da Idade de Ouro.
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29 Há algo nas crenças antigas que possa nos levar a concluir pela probabilidade, ou mesmo pela possibili-
dade, de ocorrer uma transformação entre os dias de hoje e o final do ciclo? Uma resposta parcial a esta
questão pode estar no fato de que, quando Cristo disse, falando dos sinais que precederiam Sua Segun-
da Vinda: “Se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma criatura escaparia, mas, por causa dos elei-
tos, esses dias serão abreviados” (Mateus 24:22), ele claramente não estava falando do fim definitivo do
“primeiro Céu e da primeira Terra”, como preparação para um “novo Céu e uma nova Terra”, mas sim
de uma destruição parcial preliminar. Os “dias” em questão parecem não ser outros senão aqueles aos
quais os índios americanos, os hopis em particular, chamam de Dia da Purificação — que eles conside-
ram iminente. Como a própria palavra “purificação” sugere, eles têm a expectativa de que a destruição
também possua um aspecto positivo. Da mesma maneira, o ʾIslām sempre esperou por uma regenera-
ção espiritual passageira com a vinda do Mahdī, nos anos imediatamente precedentes ao advento do
Anticristo. Na profecia de Cristo, a razão pela qual os dias de destruição serão encurtados sugere que
eles serão acompanhados por uma espécie de renovação espiritual, ainda que transitória e fragmentá-
ria.
30 Cf. Mateus 24:21.
31 Cf. Mateus 24:27.
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CÁPITULO III
N
O PRESENTE À LUZ DO PASSADO
que os foguetes espaciais levantam voo de um mundo que está realmente seden-
to de movimento ascensional em todos os planos mais elevados, um mundo do-
minado por uma perspectiva que é, em muitos aspectos, abismal e, na melhor
das hipóteses, totalmente achatada.
Por outro lado, não seria errôneo dizer que a perspectiva dos antigos era
“alada”, já que por todo o seu mundo, no Ocidente e no Oriente, a vida con-
templativa era geralmente reconhecida como o tipo de vida mais sublime que
um homem podia levar, sendo seu aspecto essencial a fixação dos pensamentos
no Espírito, na aspiração de elevar-se em direção a ele nas asas da intuição inte-
lectual.
De acordo com as antigas tradições, a esfera da Lua não é nada mais que
um símbolo, isto é, a sombra projetada no mundo material do tempo e do espa-
ço do Céu da Lua, o mais baixo dos sete Céus, e o primeiro dos estágios espiri-
tuais pelos quais o ser tem de passar em sua jornada rumo ao Infinito e ao Eter-
no, depois de ter ultrapassado os limites deste mundo. É na Lua que se passa o
primeiro canto do Paraíso de Dante, pois foi a este Céu que ele se alçou do Para-
íso Terrestre, após ter escalado a Montanha do Purgatório. A idéia de tentar vo-
ar pelo espaço até a Lua material ficou reservada para uma época em que a jor-
nada descrita por Dante raramente é vista como tendo efetivamente ocorrido.
A tudo isso pode ser objetado que a jornada de Dante ainda permanece,
de fato, uma possibilidade tão real como nunca, e que há alguns verdadeiros
místicos34 vivos no mundo moderno; mesmo na Idade Média, eles nunca passa-
ram de uma minoria. Com relação a este último ponto, o mesmo pode ser dito
de épocas e lugares que foram muito melhores do que a Europa medieval. Ou-
tro nome da Idade de Ferro como um todo, o de Idade Sombria, advém do fato
de nela os místicos, a luz da Terra, serem minoria. Não obstante, mesmo em
uma época tão tardia da Idade de Ferro como a de Dante, esta minoria, longe de
34 O termo “místico” coincide parcialmente com “intelectual”, pois o místico é aquele que percebe, ou
aspira a perceber, os mistérios do Reino Celeste; e o intelecto é a faculdade por meio da qual essa per-
cepção ocorre. Em geral, “místico” tende a ser o termo mais genérico, enquanto “intelectual” refere-se
preferencialmente à via mística do conhecimento e não à do amor, apesar de, por outro lado, “amor in-
telectual” ser utilizado algumas vezes no sentido de “amor místico” ou “amor espiritual”. Para uma de-
finição mais clara e abrangente destas duas vias místicas, ver Frithjof Schuon, Gnosis, pp. 45-46 (John
Murray, 1959).
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ser deixada de lado, estava totalmente alinhada com a maioria, pois representava
os mais altos ideais do homem. A Europa ainda estava sob o encanto das pala-
vras de Cristo e, portanto, da narrativa evangélica de Maria e Marta: como her-
deira de Maria e possuidora da “única coisa necessária”, esta minoria encon-
trava-se, por assim dizer, no topo de uma pirâmide, estabelecendo uma norma à
qual uma maioria, que se autoreconhecia como anormal, procurava observar, e
da qual uma influência espiritual podia fluir através dos distintos estratos da so-
ciedade. Num certo sentido, esta pirâmide ainda existe, pois sua existência está
na própria natureza das coisas, mas, “oficialmente”, ela foi posta abaixo.
✤
Segundo os Purāṇas hindus, a doença física era desconhecida até uma fa-
se bem adiantada da Dvāpara-Yuga, isto é, a Idade de Bronze, a terceira das qua-
tro eras. Com relação às antigas ciências da cura, que foram transmitidas desde
tempos pré-históricos ente os vários povos, a função do “curandeiro” muitas ve-
zes era simplesmente parte da função do sacerdote e, de qualquer maneira, a
própria ciência estava sempre intimamente ligada à religião. Por esta razão, ela
estava também mais ou menos vinculada às outras ciências antigas, cada uma
das quais constituindo um ramo da religião, e todas estavam baseadas no conhe-
cimento de certas verdades cosmológicas que, segundo a tradição, chegaram ao
homem por inspiração e, em certos casos, por revelação.
Todas essas verdades são aspectos da harmonia do universo: constituem as
correspondências entre o microcosmo, o macrocosmo e o metacosmo, isto é,
entre o pequeno mundo do indivíduo humano, o grande mundo exterior e o
outro mundo, que transcende ambos. Tomemos um exemplo: cada planeta (is-
to é, aqueles planetas visíveis a olho nu que, juntamente com o Sol, perfazem se-
te) relaciona-se com um metal específico, com certas pedras, plantas e animais,
com uma cor particular e uma nota na escala musical; cada planeta tem seu dia
da semana e suas horas durante o dia, governa certas partes do corpo e corres-
ponde a certas doenças; no plano psíquico, relaciona-se a certos temperamen-
tos, virtudes e vícios; e, metafisicamente, corresponde a um dos Sete Céus e a
certas Potências Angélicas, Santos, Profetas e Nomes Divinos.
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que vivemos em um mundo onde todos estão meio mortos porque ninguém
morre seria certamente um exagero, mas esta é, de qualquer forma, a tendência.
Frustrando finalmente seus próprios objetivos, esta ciência está condenada a ser
uma das muitas ilustrações fornecidas pelo mundo moderno sobre a verdade da
parábola dos talentos, segundo a qual “daquele que não tem, será tirado até o
que tem”.
Mas se, nos nossos dias, a ciência médica escapou, em vários sentidos, do
controle do homem, decididamente, o aspecto mais sinistro da situação é que
ela assumiu sua importância pseudo-absoluta atual pela usurpação, em grande
medida, de algo que, de fato, concerne ao Absoluto. O mundo moderno dedica
ao tratamento dos corpos doentes uma soma incalculável de energia, que no
passado era dedicada ao tratamento das almas enfermas. Os homens eram edu-
cados na consciência de que todas as almas eram doentes, salvo raríssimas exce-
ções. Não é preciso dizer que os padrões modernos também consideram que
muitas almas estejam enfermas e nós somos continuamente advertidos de que
tanto o número de criminosos quanto o de loucos aumenta todo dia. Mas a
grande maioria das almas — as dos honestos e sãos — é considerada hoje como
possuidora de boa saúde, ou, de qualquer maneira, como boa o suficiente para
não precisar de tratamento. Supõe-se que essas almas estejam mais ou menos
imunes à deteriorização. Perdeu-se de vista o abismo que separa esta assim cha-
mada “boa saúde” da saúde perfeita e, em geral, ideias sobre o que é a perfeita
saúde da alma são bem vagas. Essas ideias também não parecem ter sido, via de
regra, muito menos vagas nas gerações recentes, as dos últimos dois ou três sécu-
los, cujo moralismo cada vez mais tolo e superficial iria acabar provocando uma
reação de ceticismo amoral.
Por outro lado, se nossos antepassados menos recentes sabiam tão bem
que suas almas estavam doentes e se compreendiam tão bem a natureza da do-
ença, era porque sua civilização estava fundamentada na ideia da saúde psíquica
e era dominada pelo conceito da alma perfeita. Eles também não estavam sós,
pois não se pode sinceramente dizer que este conceito, baseado em princípios
universais, tenha variado de um lado para o outro do Mundo Antigo, exceto
onde a religião tenha se degenerado ao ponto de perder de vista o próprio fim
de sua existência, que é, acima de tudo, reconciliar o homem com sua Fonte Ab-
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soluta, Eterna e Infinita. Onde quer que a religião mantenha este propósito em
vista, a concepção da mais alta possibilidade humana permanece necessariamen-
te a mesma; e levando em conta certas diferenças de formulação, as grandes reli-
giões do mundo são de fato unânimes em afirmar que o aspecto essencial da-
quele que reconquistou o estado do Homem Primordial, readquirindo, portan-
to, a completa saúde da alma, é a consciência do “reino do Céu dentro de si”: ele
não tem necessidade de “buscar”, pois já encontrou; nem necessidade de “ba-
ter”, pois já se “abriu” para ele. E, através desta abertura, a alma humana, em
forma de espelho, é capaz de refletir as Qualidades Divinas e ser, como foi cria-
da, “à imagem de Deus”.
As Qualidades Divinas, conforme representadas na doutrina islâmica, di-
videm-se em dois tipos: Qualidades de Majestade e Qualidades de Beleza, o que
está de acordo com o que outras religiões ensinam, implicitamente senão expli-
citamente, sobre a Perfeição Divina.36 O mais alto ideal que o plano humano
pode alcançar pode ser então definido como a majestade e a beleza da alma, às
quais devem ser acrescentadas, pela própria natureza das coisas, a santidade e a
humildade;37 santidade em virtude do contato direto da alma com o Espírito e
humildade porque apenas a alma que tem acesso ao espírito é totalmente cons-
ciente, em comparação, das limitações da alma como tal.
Em toda civilização teocrática, este ideal é encarnado acima de tudo pelo
Mensageiro Divino, o fundador da religião sobre a qual a civilização em questão
está fundamentada, e no núcleo de homens e mulheres que foram seus compa-
nheiros e sucessores imediatos. Esse ideal é conservado em seus túmulos, bem
como nos dos santos mais recentes, e todo santuário como esse enriquece a co-
munidade com outras possibilidades de peregrinação. É glorificado na liturgia e
na poesia, na pintura e na escultura; traduzido na linguagem dos símbolos geo-
métricos, eleva-se cristalizado na majestade e beleza dos grandes templos, onde
também é escutado, transposto para o domínio do ritmo e da cadência, e essa
música, fluindo sobre o mundo, fixa sua marca mais ou menos profundamente
36 Na tradição extremo-oriental estes dois aspectos da Divindade são simbolizados respectivamente pelo
dragão e a fênix; na tradição greco-romana, pela águia e o pavão.
37 No Cristianismo estas duas virtudes, assim como majestade e beleza, estão refletidas no cuplo nome
Iesu-Maria.
MARTIN LINGS
todo é unir firmemente tudo que está disperso no homem por meio da fixação
em sua alma de um ímpeto em direção ao centro, que a colocará mais uma vez
ao alcance da atração do Coração. E se isso se aplica acima de tudo aos ritos reli-
giosos, concerne também a tudo o que possui uma função espiritual. Por exem-
plo, quando contemplamos uma obra de arte verdadeiramente sacra, a alma in-
teira se aglutina, como que em resposta a uma ordem imperativa. Não se trata
de uma reação fragmentária, pois não podemos nos maravilhar o bastante. Esta
é a essência de uma civilização sacra: sempre solicitar, de todas as formas e em
todas as circunstâncias, que a alma se concentre e se mantenha coesa. Na res-
posta das almas a esta solicitação assenta-se uma das grandes superioridades do
passado sobre o presente. Para dar um pequeno, mas significativo exemplo:
quando escutamos a música para dançar da Idade Média, mesmo aquela das
danças mais extrovertidas, não temos em qualquer sentido a impressão de que
um fragmento da alma tenha se rebelado e se separado do restante. Ao contrá-
rio, esse tipo de música conjura a presença de homens e mulheres que em seus
divertimentos não podiam esquecer, e não queriam esquecer, a brevidade fugaz
da vida e a certeza da morte.
Nossa atual civilização não faz tais solicitações à alma. Quaisquer que se-
jam os “remédios” sacramentais que uns poucos possam tomar, o mundo mo-
derno cuida para que os homens estejam perpetuamente cercados por antídotos
a esses remédios, por toda sorte de venenos que favorecem a doença ao invés de
mantê-la sob controle. É um fato monstruosamente irônico a única civilização
que professa não levar em conta a “hereditariedade” e coloca toda a sua fé no
“ambiente” ser a única a não possuir um meio ambiente positivo a oferecer.
Ademais, não seria exagerado dizer que muito, senão a maior parte, do bem que
os homens obtêm hoje corre o sério risco de ser anulado precisamente pelo am-
biente no qual eles estão condenados a crescer e a levar suas vidas. Sua educação,
o trabalho que a maioria deles tem de fazer, 40 as roupas que eles têm de vestir41 e
40 Sc o passado pudesse tertemunhar o presente ele bradaria, com referência à maior parte dos mcios de
subsistência no mundo moderno: “O homem foi criado para isso?”
41 Depois do corpo, as roupas são a ambiência mais próxima da alma humana e possuem um efeito incal-
culável sobre ela, como os antigos bem sabiam. Seus trajes, variando magnificamente de civilização pa-
ra civilização, constituíam sempre um lembrete da dignidade do homem como representante de Deus
na Terra. Mas, na Europa Ocidental, temos de recuar quase mil anos para encontrar trajes que se com-
MARTIN LINGS
talvez acima de tudo a maneira pela qual supostamente se espera que passem su-
as horas de lazer e “diversão”, tudo isto é calculado não apenas para sufocar todo
senso de majestade e beleza, mas também para eliminar as virtudes da unidade,
da simplicidade e da sinceridade pela fragmentação da substância psíquica. Ao
contrário de ser disciplinada para estar sempre “inteira”, a alma se esquece de
como se dar inteiramente a qualquer coisa que seja, pois há pouco ou nada em
sua dieta diária que a faça chegar perto de aprovar algo totalmente. Seu ambien-
te é como uma multidão de mãos puxando-a de todos os lados apenas para lhe
dizer: “Dê-me só um pouco de sua atenção”. O número dessas “mãos” não pára
de crescer e suas exigências são cada vez mais insignificantes.
Em outras palavras, com relação à sua saúde psíquica, o mundo moderno
está se transformando cada vez mais num grande hospital, onde as doenças cor-
rem o sério risco de receber um tratamento exatamente contrário ao que preci-
sam, um hospital em que os diabéticos, por assim dizer, são mantidos numa die-
ta de açúcar — a tal ponto os médicos “lavaram as mãos” quanto à cura das al-
mas, pelo menos no que concerne aos honestos e aos sãos.
✤
Entre as correspondências nas quais as ciências sagradas estão baseadas,
encontra-se a correspondência entre o coração como centro do corpo e o Sol co-
mo centro do mundo material; coração e Sol sendo ambos símbolos daquele
Coração que é o Centro de todas as coisas. Este conhecimento da centralidade
parem àqueles de outras civilizações teocráticas, ou à dignidade da simples nudez. É verdade que, já
próximo do fim da Idade Média, os cristãos ainda continuavam a mostrar um certo senso de forma e
proporção no que vestiam, mas uma marca inconfundivelmente mundana, secular, tinha sido impres-
sa, arauto fatídico do que estava por vir. Da metade do século XVI em diante, enquanto o restante do
mundo permanecia fiel ao traje tradicional, as modas europeias avançaram de paroxismo em paroxismo
de extravagância e futilidade, numa espécie de agonia mortal dos valores espirituais, para finalizar com
um traje que, como observam os árabes, “cheira a ateísmo”. Para se ter uma visão objetiva da natureza
anti-espiritual dos estilos modernos, basta lembrar que, na arte sacra de muitas civilizações, os Espíritos
bem-aventurados do Paraíso são representados, sem o mínimo contrassenso, em trajes semelhantes aos
usados pelos próprios artistas e seus contemporâneos. Imaginemos agora uma pintura como esta, feita
por um artista moderno, com as imagens vestidas com as mesmas roupas que ele costuma usar... É sig-
nificativo também que, quanto mais “corretamente” eles estiverem vestidos, isto é, quanto mais repre-
sentativos seus trajes forem de nosso século em qualquer de suas décadas, mais fragmentado seria o
efeito.
SABEDORIA TRADICIONAL & SUPERSTIÇÕES MODERNAS
A alma é deste mundo, enquanto que o Espírito não o é; mas, desde que
havia a princípio uma relativa continuidade entre a alma e o Espírito, há uma
determinada parcela da substância psíquica — parcela esta que fica no limite su-
perior da alma, mais próxima do Coração — que num certo sentido “não é des-
te mundo”, já que sua função é receber do Intelecto a luz do espírito. Num ou-
tro sentido, ela é “deste mundo”, pois sua função é transmitir tal luz às outras
faculdades da alma, e também porque, com o velamento do Intelecto e o fecha-
mento das fronteiras entre os dois mundos, ela foi deixada do lado anímico da
fronteira.42
Esta porção mais elevada e preciosa da substância psíquica não é nada
mais que o domínio das três virtudes: fé, esperança e amor, que constituem os
três diferentes modos de aspiração da alma para o outro mundo. Consideremos,
por um momento, a virtude do meio, que, num certo sentido, participa das ou-
tras duas.
A virtude da esperança consiste em encarar a vida humana como uma jor-
nada que leva à satisfação infinita e eterna de todos os possíveis desejos, desde
que certas condições, satisfatoriamente ao alcance de nossas capacidades, sejam
cumpridas. Este fim pode ser alcançado não apenas após a morte, mas também,
para uns poucos privilegiados — isto é, privilegiados no atual estágio do ciclo
— mesmo durante esta vida. De qualquer maneira, para que a vida seja uma jor-
nada na direção correta, as condições a serem cumpridas têm sempre de coinci-
dir com o movimento “para cima”, contra a corrente, apesar de serem muitas as
maneiras pelas quais isso pode ser feito. Algumas maneiras são mais fáceis para
um grupo da humanidade do que outras — advém daí a diversidade de religi-
ões.
E sempre há, no interior de cada religião, um certo campo de possibilida-
des, que leva em conta as grandes diferenças entre os indivíduos. Uma vida de
42 Várias tradições costumam inclusive dar nomes diversos para a parte da alma que é deste mundo e com
ele perece e a que não é deste mundo: a centelha divina (vünkelin) e imortal. A tradição judaica as cha-
ma, respectivamente, de rūaḥ e nəšāmāh, a tradição hermética (especialmente Paracelso e Boehme), de
alma sidérica ou astral e alma espiritual; a tradição grega, de psychē (ψυχή) mortal (que é o conjunto da
alma vegetativa e da sensitiva) e de psychē imortal (que é a alma intelectiva), além da qual estão a Inteli-
gência ou o nous (νοῦς) e o espírito ou pneuma (πνεῦμα); a tradição islâmica, de nafs ammāra e de nafs
nátiga ou galb (Coração), além das quais estão o ‘aql o intelecto e o rāh ou o espírito. (N. E.)
SABEDORIA TRADICIONAL & SUPERSTIÇÕES MODERNAS
que foi descrito por um político no início deste século como “a gloriosa alvora-
da do mundo”.
Enquanto isso, pela apropriação da maioria dos homens eminentes do
passado como seus “precursores”, sua “doutrina” se torna cada vez mais plausí-
vel. E não são apenas os revolucionários de ontem que são aclamados como os
campeões do progresso, mas também as grandes figuras espirituais. Deixando de
lado o fato de que suas missões consistiam em levar os homens de volta à perfei-
ção primordial na qual a humanidade foi criada, afirma-se que Buddha, Cristo e
Muḥammad estavam “muito à frente de seu tempo”.
Com efeito, o ditado “o homem não pode viver sem esperança” teve com-
provada sua total exatidão. Pois foi apenas depois de grande parte da humanida-
de ter deixado de acreditar na possibilidade de um progresso “vertical”, o do in-
divíduo rumo ao Eterno e ao Infinito, que os homens começaram a fixar suas es-
peranças num vago “progresso” horizontal para a humanidade como um todo,
rumo a um estado de “bem-estar” terreno, do qual existem muitas razões não só
para duvidar da possibilidade de sua existência, mas também dele ser desejável
— na hipótese dele ser o fruto final das tendências hoje em curso — e que, de
qualquer maneira, nunca ninguém poderá desfrutar dele por mais de alguns
poucos anos, o breve espaço de uma vida humana.
✤
O agnósticos e ateus têm a liberdade de extirpar um membro do corpo,
mas não podem, ao recusar a crença no Transcendente, livrar-se daquelas com-
ponentes psíquicas cuja função normal é conduzir a aspiração em direção ao
Transcendente. Muitas das incongruências no mundo moderno podem ser ex-
plicadas pela presença, nas almas de seus líderes e outros, de quantidades indese-
jadas de substância psíquica. O perigo dessa substância estar “sem ter o que fa-
zer” é ainda maior, pois ela contém o que é, em si mesmo, o mais precioso e po-
deroso dos elementos da alma. Mesmo independentemente dos ateus e agnósti-
cos, a religião meramente indiferente e semi-agnóstica que caracteriza a maioria
dos “líderes do pensamento” no Ocidente moderno, que ainda afirmam possuir
alguma religião, é impotente para desobstruir as janelas da alma e construir uma
saída para suas aspirações mais elevadas. Consequentemente, a alma perde o
SABEDORIA TRADICIONAL & SUPERSTIÇÕES MODERNAS
CÁPITULO IV
O
LIBERDADE E IGUALDADE
referiu quando disse: “Buscai a verdade, e a verdade vos libertará”, 43 visto que o
conhecimento direto, Gnose, significa união com o objeto de conhecimento, ou
seja, Deus. Mas estas palavras do Cristo possuem também uma aplicação secun-
dária em um nível mais baixo: há uma liberação relativa no conhecimento dire-
to de verdades espirituais, pois tal conhecimento propicia acesso a um mundo
superior e constitui, portanto, uma possibilidade de libertação deste mundo.
Esta libertação é a “subida da caverna”, na famosa imagem de Platão; e não seria
despropositado lembrar aqui o que ele diz, pois representa o ponto de vista do
mundo antigo, tanto oriental quanto ocidental.
Platão — ou melhor, Sócrates, pois é em sua boca que Platão coloca este
discurso44 — nos pede para imaginar uma grande caverna subterrânea, com pri-
sioneiros confinados ali desde a infância. Eles foram obrigados a se sentar em
uma longa fila, de frente para uma das paredes da caverna, acorrentados de tal
maneira que não podem virar a cabeça, conseguindo somente olhar para a fren-
te. Uma fogueira, colocada às suas costas, ilumina a parede. Entre eles e o fogo,
são carregados bonecos, feitos à imagem de todos os tipos de criaturas terrenas,
vivas e inanimadas. Mas, não podendo virar a cabeça, os prisioneiros conseguem
ver apenas as sombras que os bonecos lançam sobre a parede à sua frente.
A seguir, Sócrates nos pede para imaginarmos que um dos prisioneiros es-
capa das correntes. A princípio, ele é capaz de se virar e ver os próprios bonecos.
Depois, escapa da caverna e sobe até o mundo exterior, onde serão vistas todas
aquelas coisas em cuja similitude os bonecos foram feitos. No início, ele conse-
gue olhar apenas para as sombras e para os reflexos na água, primeiro com a aju-
da do luar e depois com a luz do Sol; depois, é capaz de olhar diretamente para
as próprias coisas; finalmente, ele é capaz de olhar para o Sol.
À caverna é este mundo e os prisioneiros são mortais em sua vida terrena.
Devido à falta de objetividade, causada pela inércia, embotamento e preconcei-
to, os prisioneiros não podem ver claramente nem mesmo os bonecos, isto é, as
coisas deste mundo; podem ter apenas uma vaga e obscura imagem deles, “pois
agora vemos como em espelho, obscuramente, mas depois veremos face a fa-
45 I Coríntios 13:12.
SABEDORIA TRADICIONAL & SUPERSTIÇÕES MODERNAS
colocá-la em uma posição que possa beneficiar da melhor forma possível a socie-
dade como um todo. Esse sistema, além do mais, demonstrou satisfatoriamente
sua utilidade, sendo praticado sem dúvida de uma forma mais rigorosa e me-
tódica entre os hindus do que entre outros povos; e foram os hindus que conse-
guiram preservar intacta até nossos dias, em toda a sua intelectualidade, uma re-
ligião extraordinariamente antiga. As religiões correlatas a ela, como a grega, ro-
mana e germânica já estavam degeneradas no início dos tempos históricos.
A existência de castas baixas, anormal em si mesma, tende a tornar-se nor-
mal à medida que se aproxima o fim de um ciclo de tempo, e o mundo antigo
preocupava-se com o problema da auto-preservação, com a melhor maneira de
deter o curso da decadência, isto é, de como controlar a geração de tipos huma-
nos inferiores e diminuir a velocidade de um movimento descendente, que eles
sabiam ser inevitável. Porém, os métodos de resistência a este movimento varia-
ram. O sistema de castas implica a aceitação de que uma certa decadência já ha-
via ocorrido. Um meio mais antigo de auto-preservação para um povo é manter
afastadas, como fazem os índios norte-americanos, algumas das principais cau-
sas externas da decadência humana, como a vida não nomádica, sedentária e tu-
do o que a acompanha, e permanecer no maior contato possível com a natureza
virgem, isto é, em um contato físico e psíquico que é ritualizado e iluminado
por um verdadeiro contato intelectual. Esta última condição é indispensável.
“É através das espécies animais e do fenômeno da natureza que os índios
contemplam as essências angélicas e as Qualidades Divinas... Para eles, nenhum
objeto é o que parece ser, mas é simplesmente a pálida sombra de uma Realida-
de. É por esta razão que todo objeto criado é wakan, sagrado.
O santuário do pele-vermelha está em toda parte; eis porque a Terra deve
permanecer intacta, virgem e sacra, como quando saíram das Mãos Divinas, já
que apenas o que é puro reflete o Eterno. O índio não tem nada de ‘panteísta’,
nem imagina por um momento que Deus esteja no mundo. Mas ele sabe que o
mundo está misteriosamente imerso em Deus.”48
48 Frithjof Schuon, Language of the Self, pp. 205, 221. Este livro deve ser lido não apenas por seu estudo,
baseado em contatos diretos, da espiritualidade dos peles-vermelhas, principalmente aqueles das pla-
nícies, mas também por seu capítulo sobre “Distinções na Ordem Social”, que lança uma luz há muito
requerida sobre toda a questão das castas e classes segundo as diferentes perspectivas religiosas.
SABEDORIA TRADICIONAL & SUPERSTIÇÕES MODERNAS
Esta perspectiva impõe um modo de vida que torna possível dispensar to-
talmente um sistema de castas e conservar uma ordem social que é, ao menos
virtualmente, um prolongamento da igualdade primordial. Não há “classe bai-
xa” nem “classe média” entre os peles-vermelhas; e, desde que se mantenham fi-
éis a si mesmos e não sejam contaminados pelos “caras-pálidas”, os índios cons-
tituem uma raça de nobres que ainda forma em cada geração uma pequena mi-
noria de exemplares dos sacerdotes-reis da antiguidade remota.
Mas uma mera persistência no nomadismo, se não estiver baseada em um
contato intelectual com a natureza, constitui apenas uma garantia contra certas
formas de degeneração. São muitos os caminhos que levam à decadência, e o
mundo é velho o bastante para que eles se tornassem bem variados. A palavra
“primitivo” é utilizada hoje em dia com muito pouca discriminação. Compara-
dos aos homens de épocas mais primordiais, os peles-vermelhas da Idade de Fer-
ro consideram-se a si mesmos como corrompidos. Mas, de modo relativo, eles
merecem, sem dúvida, o título de “primitivos”, considerando que muitos, se
não a maioria, dos “selvagens” que atualmente são chamados de “primitivos”,
estão extraordinariamente corrompidos. Não faz sentido chamá-los de primiti-
vos simplesmente porque um contato mais próximo com a natureza os livrou
dessa forma particular de decadência que atingiu seu ponto máximo na civiliza-
ção moderna.
A encarnação da perspectiva intelectual em uma autoridade espiritual so-
lidamente constituída é o que Platão sustentou ser a melhor defesa contra a de-
cadência. E isso é o que os peles-vermelhas compartilham com os hindus, assim
como com aquelas últimas teocracias sedentárias que não possuem sistema de
castas. Surpreendentes e características são as maneiras pelas quais as duas últi-
mas teocracias buscaram neutralizar, ou reduzir ao mínimo, as discrepâncias en-
tre casta e classe, isto é, entre qualificações naturais e posição social, a qual está
cada vez mais sujeita a ser o resultado de meros “acidentes”. A Cristandade con-
servou a ordem social existente por sua correspondência parcial com um verda-
deiro sistema de castas, mas estabeleceu acima dela uma casta superior, aberta a
todas as classes, apesar de protegida dos intrusos pelos grandes sacrifícios im-
postos a seus membros. No ʾIslām, que representa um apelo direto ao sacer-
dote-rei que permanece no fundo da natureza humana, ser membro da casta
MARTIN LINGS
mais alta é uma imposição a todas as classes. Mas, a distância entre o ideal da
Idade de Ouro e a realidade da Idade Sombria é transposta pela insistência do
Qurʾān e do Profeta sobre os “graus”. Ainda que seja enganoso dizer que a civi-
lização islâmica está permeada de um senso de casta, pode-se de fato dizer que
ela é extraordinariamente permeada do sentido da essência do sistema de castas,
a saber, um senso da hierarquia dos diferentes graus de possibilidades espirituais
da humanidade. Assim, para o mussulmano, a hierarquia secular das distinções
de classe é antes de mais nada eclipsada pela igualdade virtual do sacerdócio e, a
seguir, substituída pela hierarquia espiritual no interior do quadro daquela
igualdade.
Considerando como seria possível, na prática, formar um Estado ideal,
que ele chama de “aristocracia”, Platão diz que primeiro seria necessário encon-
trar alguns verdadeiros filósofos e colocá-los na posição de governantes, mesmo
contra a vontade deles. A partir de sua descrição destes aristocratas, fica claro
que ele está se referindo a santos, no sentido pleno da palavra, pois o verdadeiro
filósofo é alguém que “escapou da caverna” e possui visão direta do “Sol”. O Es-
tado de Platão é, na realidade, uma teocracia: tendo escapado da caverna, o aris-
tocrata, no sentido platônico pleno, é doravante capaz de executar um ir e vir
entre ela e o mundo acima. E aqui reside o significado da função de pontífice,
em latim Pontifex, literalmente “construtor de ponte”.
Mas, e se a autoridade espiritual estiver longe de ser em si mesma um ver-
dadeiro aristocrata? A História não tem demonstrado que os postos mais altos
podem ser como aquelas roupas que ficam grandes demais em certas pessoas?
A “solução” moderna para esta questão é encurtar a roupa para que ela
sirva num anão. A solução dos antigos era ser paciente e esperar um homem me-
lhor. Além disso, eles sabiam que a roupa em si era preciosa, independentemen-
te daquele que a vestia. O teocrata pode estar bem longe de possuir de fato a
qualificação espiritual que corresponda à sua função, mas tal função é ainda as-
sim pontifex em si mesma, no sentido de que sua existência à frente do Estado
afirma a supremacia do espiritual sobre o temporal, e constitui um reconheci-
mento oficial da “saída da caverna” e uma garantia da orientação da coletividade
nesta direção. Mais ainda, além da hierarquia exterior dos dignatários espiritu-
ais, há a hierarquia interior dos santos, daqueles que são pontífices em si mes-
SABEDORIA TRADICIONAL & SUPERSTIÇÕES MODERNAS
noção em voga de que a “classe baixa” era “oprimida” na Idade Média está base-
ada numa concepção puramente mundana do “superior”. Seria uma contradi-
ção se uma teocracia permitisse que qualquer parcela da comunidade fosse deli-
beradamente impedida de ser atraída para perto do Espírito, que é a única ma-
neira de ascensão que um monge medieval, por exemplo, consideraria digna do
nome. Para ele, o fato de que era extremamente difícil, senão impossível, ao po-
bre adquirir riquezas e títulos, aos quais ele mesmo tinha virado as costas, não
teria parecido uma grande tragédia, para dizer o mínimo. Mas, com relação à as-
censão no sentido positivo, mesmo o sistema de castas mais rígido certamente
sanciona, à margem da sociedade, uma via ascendente que é aberta a todos sem
restrição, incluindo os membros da casta mais baixa.
“Se o Hinduísmo considera a natureza humana antes de mais nada, aque-
las tendências fundamentais que dividem os homens em tantas categorias hie-
rárquicas, ele contudo concebe a igualdade na sobre-casta dos monges errantes,
os Saṃnyāsa, na qual a origem social não tem mais importância. O caso do cle-
ro cristão é similar, no sentido de que em seu interior os títulos de nobreza desa-
parecem: um camponês não poderia tornar-se príncipe, mas poderia chegar a ser
Papa e coroar um Imperador.”49
Os casos individuais de injustiça e opressão, a grande distância que se
abriu aqui e acolá, de tempos em tempos, entre a teoria e a prática, na Cristan-
dade e em outras civilizações sacras conhecidas da História, não foram de res-
ponsabilidade da teocracia, mas sim da decrepitude coletiva da raça humana em
sua extrema senilidade. Mais ainda, se as coisas foram mal, como geralmente
aconteceu, foi graças à teocracia que elas não foram piores. E ocasionalmente,
em algumas épocas e em alguns lugares, elas foram bem. E sempre se manteve a
esperança de que o bem que houve uma vez poderia se repetir.
A Idade de Ferro como um todo pode ser chamada de “a época da escolha
entre dois males”. A Idade Média, ao contrário de qualquer período subsequen-
te, teve pelo menos a virtude de merecer ser chamada de “a época da escolha do
mal menor”. Os piores Papas e os piores Califas do ʾIslām causaram um mal in-
presença Divina — que sempre haja um bem maior a ser tirado de toda situa-
ção. No caso presente, um aspecto deste bem pode ser expresso da seguinte ma-
neira: no passado, os homens proclamavam ativa e diretamente a futilidade des-
te mundo, anunciando o “sauve qui peut”52 da religião, mas o mundo mesmo
permanecia relativamente silencioso, ao passo que hoje em dia, quando os ho-
mens são cada vez menos ativos em proclamar esta verdade, o próprio mundo,
com os homens aí incluídos de uma maneira puramente passiva, proclama cada
vez mais a sua própria futilidade. Na realidade, tudo o que vivemos diariamente
de um mundo em desvario demonstra que ele é realmente um lugar “onde a tra-
ça e o mofo apodrecem”, e cada vez mais os falsos deuses, aos quais os homens
se agarram, se desfazem em suas próprias mãos.
Dizer que uma coisa é perder a fé neste mundo e outra bem diferente é
acreditar no vindouro, é uma simplificação. Descendemos remotamente de ho-
mens para os quais se erguia, na fronteira entre o mundo vindouro e este, não
uma porta fechada, mas uma passagem aberta. Suas almas eram adequadamente
preparadas e, sejamos conscientes disso ou não, herdamos certas coisas deles. E,
apesar de não haver esperança de que um pássaro voe enquanto persistir em ir
com suas asas de encontro à terra, se ele puder ser levado, por algum motivo, a
parar de se bater contra o chão, haverá uma boa chance de que ele, pelo menos,
tente alçar vôo.
CÁPITULO V
D
INTELECTO E RAZÃO
53 Sheikh Ahmed Al-Alawi. Ver Martin Lings, A Sufi Saint of Twentieth Century, p. 33 (University of
California Press, 1973).
MARTIN LINGS
suas interpretações dos problemas da origem da vida e da matéria, são tão subra-
cionais quanto as explicações “psicológicas” da origem da religião.
O racionalista pensa, por definição, em apenas duas dimensões, pois sua
mente é “livre”, tendo “rompido as cadeias da superstição”. Essas cadeias, pelas
quais a razão é ligada ao Intelecto, são o que produz a terceira dimensão da al-
ma. Daí o culto de várias concepções que têm, em si mesmas, apenas duas di-
mensões, como a estatística, por exemplo, e que são tão caras ao mundo moder-
no. Entre os especialistas do pensamento bidimensional, muitos dos represen-
tantes da assim chamada “alta cultura” devem ser incluídos. É irônico que este
termo deva ser usado precisamente nos dias de hoje, quando o aumento do co-
nhecimento, além de um certo ponto, não vem mais, como antes, por “multi-
plicação” — isto é, pelo enobrecimento da extensão e da amplitude através da
dimensão da altura —, mas pela “divisão” — ou seja, pela subdivisão infinita de
uma superfície chata em compartimentos cada vez menores, numa acumulação
puramente quantitativa de fatos que escaparam à atenção — e ao interesse —
das gerações anteriores.
De acordo com o simbolismo da árvore, que como uma imagem do uni-
verso engloba o microcosmo e o macrocosmo, faz-se presente nas doutrinas de
quase todas as religiões. O Espírito é a raiz da alma, sendo a razão “o seu tron-
co”54 e as outras faculdades, seus galhos e folhas. O movimento centrífugo ao
qual a criação está sujeita, significando uma diminuição gradual do contato
com o Espírito, pode ser descrito como uma crescente constrição dos canais pe-
los quais a seiva flui da raiz até o tronco. Essa constrição é agravada pela forma
particularmente intensa do racionalismo. Além disso, a ”seiva” não possui ape-
nas um aspecto intelectual, mas também um aspecto vital. Isso significa que as
almas humanas tendem a estar não apenas cada vez mais frouxamente unidas
pelo enfraquecimento dos tendões que as mantêm coesas, mas também cada vez
mais atrofiadas devido à privação da adequada nutrição.
Isso sem dúvida explica em parte uma das diferenças entre as religiões
mais antigas e as mais recentes. Todas as religiões são necessariamente idênticas
54 Do mesmo modo, na ciência medieval da arquitetura, “de acordo com alguns Padres, o santuário (em
uma igreja) é uma imagem do Espírito, enquanto que à navc é uma imagem da razão”. (Titus Burck-
hardt, Principes et Méthodes de l’Art Sacré, p. 70, Derain, Lyon, 1958).
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55 Para mais compreensão, ler “O Livro Tibetano dos Mortos”. (N. E.)
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facilidade cada vez maior de viagens no mundo moderno constitui uma imagem
exterior da volubilidade e superficialidade sempre crescente dos movimentos da
mente. Apesar de todo o refinamento das palavras, aquilo que se chama “enri-
quecer o próprio panorama cultural”, ou “ampliar a própria perspectiva”, ou
ainda “alargar o horizonte cultural”, não guarda nenhuma relação com aquela
magnanimidade — literalmente “grandeza de alma” — que é um aspecto essen-
cial do verdadeiro aristocrata. Se uma substância plástica é continuamente esti-
cada de lá para cá de modo a aumentar sua extensão e largura, sua terceira di-
mensão ficará reduzida a um mínimo. A “mente ampla” do humanista é sim-
plesmente uma mente estreita que foi esticada.
Mas, não é possível aumentar a substância psíquica como um todo? A res-
posta a esta questão já está implícita na imagem da árvore, pois não se pode fa-
zer uma árvore crescer puxando os seus galhos, e assim é com a alma, cuja subs-
tância só pode crescer a partir de sua raiz no Espírito; e se a realização apropria-
da dos ritos dá à raiz da árvore o alimento de que necessita, o crescimento não
apenas é mais encorajado ainda, como também tornado mais perfeito pela arte
da poda, isto é, pelas abstenções e sacrifícios ordenados ou recomendados pela
religião. “Para receber, antes certamente é preciso dar”.58
À doutrina das ações e reações concordantes, na qual o Taoísmo e o
Buddhismo colocam uma ênfase particular, é de uma importância universal tal
que deve ser considerada a base de todas as práticas religiosas. Toda ação produz
uma reação e, como acontece com as ondas do mar, se uma “onda” puder ser le-
vada a fluir deste mundo para o outro, inevitavelmente uma maré do outro
mundo virá até este, e os ritos prescritos por uma religião constituem instruções
da Providência ao homem quanto à melhor maneira de colocar essas ondas em
movimento. A desproporção entre a ação humana e a reação Divina é tão imen-
sa que a reação tem de ser armazenada59 para a alma nos tesouros do mundo
vindouro, sendo permitido um transbordamento conforme ao que a alma esteja
preparada para receber ainda nesta vida.
CÁPITULO VI
A
O ENCONTRO DOS EXTREMOS
afastado dela, acabou por esquecê-la. Mas, quanto a uma nova religião para os
dias de hoje, podemos afirmar que não há espaço para isto em lugar algum do
mundo, pois não há mais nenhum povo num estado comparável àquele dos gre-
gos, romanos e germanos pré-cristãos, ou aquele dos não hindus da Índia, ára-
bes e persas pré-islâmicos. Toda comunidade no mundo está agora ao fácil al-
cance, tanto geográfica quanto psicologicamente, de pelo menos uma religião
verdadeira61 que permaneceu, apesar das heresias que possam ter surgido a seu
redor, plenamente válida e integral, tanto que é realmente difícil conceber uma
nova religião sendo revelada entre os dias de hoje e o final do ciclo. Ao contrá-
rio, as religiões existentes têm sido de certo modo renovadas e confirmadas num
tempo de grande necessidade por meio da aquisição de um conhecimento obje-
tivo a respeito de cada uma das outras religiões, numa medida que elas nunca ti-
veram antes.
Não é preciso dizer que nossos antepassados tinham consciência da exis-
tência de outras religiões, além da sua própria. Mas, fascinados e impregnados
como estavam pela forte luz que brilhava diretamente sobre eles, o vislumbre de
outras luzes mais remotas e — de seu ponto de vista — mais oblíquas brilhando
no horizonte não poderia despertar nenhum interesse positivo, nem tampouco
criar problemas. Hoje, contudo, essas luzes não são mais tão remotas e, apesar
do grande mal que adveio de tudo o que contribuiu para aproximá-las, algum
bem acabou inevitavelmente por manifestar-se.
É verdade que muito, senão a maior parte, do interesse moderno por ou-
tras religiões, ou tolerância para com elas, longe de estar baseado em uma com-
preensão mútua, deriva apenas da curiosidade acadêmica ou da apatia religiosa,
combinadas com a “superstição da liberdade”. Não obstante, há alguns cristãos
sinceros, por exemplo, que precisam saber — e cuja fé cristã é em muito fortale-
cida por este conhecimento — que o Buddhismo é uma religião tanto quanto o
Cristianismo e que por mais de 2.000 anos tem servido às necessidades espiritu-
ais de milhões de asiáticos de um modo bem melhor, presumivelmente, do que
o Cristianismo poderia fazê-lo. Eles precisam saber disso porque pensar de ou-
tro modo, com sua aguda consciência atual das outras religiões, seria fazer pou-
61 “E este evangelho do reino será pregado em todo o mundo, em testemunho a todas as nações, e então
virá o fim” (Mateus 24:14.).
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62 Estas palavras, ditas confidencialmente pelo papa Pio XI ao cardeal Facchinetti, designado por ele co-
mo delegado apostólico na Líbia, tornaram-se públicas apenas nos últimos anos ( L'Ultima, Anno VII,
75-76, p. 261, Florença, 1959).
63 Toda religião compreende, pelo menos, um elemento transcendente - um descenso do Divino no pla-
no humano. No entanto, esse elemento pode assumir formas diferentes. Assim como a grande heresia
no Cristianismo é negar a Divindade do “Verbo feito carne” e recusar o prolongamento dessa Divinda-
de na Eucaristia, a grande heresia no ʾIslām é negar a Eternidade do Qurʾān, “o Verbo feito livro”.
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uma totalidade que a tudo abarca, requer uma fidelidade total que não deixa ne-
nhuma parte do homem livre para aderir a qualquer outra coisa.
A concepção islâmica da globalidade da ortodoxia é particularmente ex-
plícita e, a partir dela, deixando de lado o que diz respeito apenas ao ʾIslām, po-
demos extrair uma definição geral, que pode ser formulada nos seguintes ter-
mos. Religião é uma tríplice Revelação Divina. Em primeiro lugar, inclui uma
doutrina do que se deve e não se deve acreditar sobre o Absoluto, o Infinito e a
Verdade Eterna, tanto em Si como em relação ao universo, isto é, o relativo, o fi-
nito e o efêmero, com especial referência ao homem. Em segundo lugar, inclui
uma lei sobre o que deve e o que não deve ser feito, o aspecto positivo da lei in-
cluindo uma forma de culto, com amplitude e variedade suficientes para envol-
ver e permear a vida de todos os adeptos da religião. Em terceiro lugar, admitin-
do a grande diferença de qualificações espirituais entre os homens, inclui uma
mística ou um esoterismo. Crença na doutrina e obediência à lei são obrigató-
rias a todos, pois constituem meios de salvação. O aspecto místico da religião,
que se destina apenas àqueles com certas qualificações, constitui uma dimensão
extra da fé e do culto, pois implica um entendimento amplo e agudo da doutri-
na e uma profunda sinceridade e concentração na realização dos ritos. Este as-
pecto oferece, além da salvação, a possibilidade de santificação ainda nesta vida
e, mais que isso, a possibilidade de alcançar o próprio Deus.
Expressa nestes termos gerais, a concepção islâmica da tríplice plenitude
da ortodoxia é evidentemente bastante universal para aplicar-se também a todas
as outras religiões, pois corresponde a fatos humanos inegáveis. Nada com um
menor alcance poderia responder às necessidades espirituais de qualquer parcela
racial ou geográfica da raça humana tal qual se encontra hoje em dia e tal qual
tem sido através de todos os tempos “históricos”;64 e apesar da definição acima
não tocar em aspectos particulares da ortodoxia, pois neste caso cada religião de-
ve ser analisada separadamente, ela não obstante nos capacita a ver num relance,
sem entrar em detalhes, quais das igrejas cristãs, por exemplo, permaneceram
isentas dos empobrecimentos que constituem a característica principal das here-
64 Apenas em épocas em que a mística era uma norma poder-se-ia dizer que a religião tinha duas faces,
consistindo simplesmente de doutrina e culto.
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65 Com relação aos empobrecimentos bastante deplorados que ocorreram no Catolicismo Romano des-
de o Concílio Vaticano II — empobrecimentos firmemente repelidos por alguns fiéis —, é suficiente
expor os surpreendentes fatos como eles são. Um deles é que os dirigentes da Igreja decidiram subita-
mente abolir e até mesmo proibir o uso da liturgia tradicional, na qual todo membro da Igreja tinha si-
do educado e que constituía, portanto, a base da vida espiritual de milhões de homens e mulheres. Co-
mentários a este fato são desnecessários. Aqueles, contudo, que gostariam de se informar sobre outros
fatos e de como tudo aconteceu podem consultar a obra “Ensaios sobre a Destruição da Tradição Cris-
tã”. (T. A. Queiroz, São Paulo, 1990), tradução de The Destruction of the Christian Tradition (Perenni-
al Books, Londres, 1981), de Rama P. Coomaraswamy. Ver também o Apêndice II ao final deste livro.
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mo possui um centro, e seria sem dúvida correto dizer que as almas hoje, em sua
maioria, estão excessivamente desintegradas, extremamente inconscientes do
centro dentro de si para serem consideradas um microcosmo. Elas perderam,
por assim dizer, sua identidade, tendo sido absorvidas pelo macrocosmo, onde
desempenham a função meramente fragmentária de representar as várias possi-
bilidades da decadência humana. No entanto, se uma alma puder se libertar do
macrocosmo e tornar-se um microcosmo mais uma vez, por meio da religião,
que lhe confere pelo menos um contato virtual com seu centro ou, em outras
palavras, se uma alma tiver o vigor de tornar-se de novo virtualmente como um
pequeno mundo lado a lado com o grande mundo, então ela poderá se benefici-
ar, por um tipo de refração, de tudo o que é positivo no estado do grande mun-
do. A plenitude e a consumação de um macrocosmo que avança para seu fim
ajudarão a precipitar a plenitude e a consumação no microcosmo, induzindo a
alma a “relaxar”, num sentido puramente positivo; e posto que este é também,
simultaneamente, o efeito dos ritos sagrados, cujo objetivo é levar a alma à sua
realização, pode-se dizer que os ritos “contam” mais do que antes, porque o po-
der que eles possuem em si mesmos está atrelado ao ímpeto da época.
Se todos os trabalhadores da vinha receberam o mesmo soldo, foi porque
os retardatários, devido a uma providencial diferença de condições, foram de fa-
to capazes de ajuntar em um pequeno espaço de tempo tantos frutos quanto
aqueles que trabalharam duro durante todo o dia.
MARTIN LINGS
I
APÊNDICE I
homem razoável poria em dúvida, e que são editados ano após ano, causando
um mal incalculável. E desses livros, não menos prejudiciais são aqueles escritos
por crentes à beira da descrença, alguns deles dignatários religiosos, que procu-
ram firmar a hesitante fé, a própria e a dos outros, por meio de uma reinterpre-
tação da religião “à luz do moderno conhecimento científico”.
✤
Abordando a questão de um ângulo diferente, mas dentro do espírito de
nosso livro, deve-se lembrar que é apenas libertando-se do tempo que o homem
pode libertar-se das fases do tempo. A via espiritual liberta-se dessas fases por-
que apenas seu ponto de partida se encontra totalmente no interior do tempo.
Daí em diante, ela é um movimento “vertical” ascensional através de domínios
que são parcial ou integralmente supratemporais, como representados no Pur-
gatório e no Paraíso de Dante. A ciência moderna, no entanto, não sabe de nada
deste tipo de movimento, nem está preparada para admitir a possibilidade de
uma libertação da condição temporal. A ascensão gradual sem retorno, que é
imaginada pelo evolucionismo, é uma ideia que foi sub-repticiamente empresta-
da da religião e simploriamente trasladada do supratemporal para o temporal.
O evolucionista não tem nenhum direito a esta ideia, pois, ao acolhê-la, está vi-
rando as costas para seus próprios princípios científicos. Todo processo de de-
senvolvimento conhecido da ciência moderna está sujeito a um vai-e-vem análo-
go ao das fases da Lua, das estações do ano e dos diferentes períodos da vida do
homem. Mesmo as civilizações, como a história testemunha, têm sua aurora,
seu auge, sua véspera e seu crepúsculo. Se o ponto de vista evolucionista, ao in-
vés de ser sectário e pseudo-religioso, fosse genuinamente “científico”, no senti-
do moderno, admitiria que a evolução da raça humana foi uma fase de desenvol-
vimento que seria necessariamente acompanhada por uma fase complementar
de decadência. E seria um dos principais aspectos da literatura evolucionista sa-
ber se o homem já está ou não na fase descendente. Mas a questão nunca é colo-
cada. E tampouco pode haver qualquer dúvida de que, se os evolucionistas pu-
dessem ser levados a encarar esta questão de frente, a maior parte deles renunci-
aria à sua teoria como alguém que larga um pedaço de carvão em brasa.
MARTIN LINGS
Tal evolução não poderia ser concebida pela perspectiva da antiga ciência
natural, que não pretendia abarcar todas as coisas em seu campo de ação, isto é,
dentro do domínio temporal, e que podia, portanto, admitir ser transcendida
pelas origens mesmas das coisas terrenas. Para tais origens, ela se voltava para
além da duração temporal, para o Ato Criador Divino que estabeleceu o ho-
mem — e toda a condição terrena — em um ápice diante do qual a evolução,
no sentido de progresso terrestre, é inconcebível.
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O
APÊNDICE II
69 A proibição, estabelecida pela reforma litúrgica realizada por Paulo VI (a Novus Ordo Missae), foi re-
centemente revogada por João Paulo II. Agora, embora não seja fácil, é possível para o sacerdote solici-
tar autorização para celebrar a missa conforme o rito tradicional. (N. do E.)