Alexandrita - Nikolai Leskov

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EDITORA 34

Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa C:EP OI 455-000
São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3811-6777 www.editora34.com.br

Copyright(!) Editora 34 Ltda., 2012


Tradução© Denise Sales, 2012
Ensaio© Elena Vássina, 2012

A FOTOCÓPIA DF. QUALQlJER FOLHA DESTE U\'RO E ILEGAL E CONFIGURA UMA


A FRAUDE
Al'ROl'Rl,\ÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUI"OR.
E OUTRAS HISTÓRIAS

Irn,1gem da capa:
Boris Kustodieu, Revolta contra os boiardos na velha Rússia, 1897 l. Kótin, o provedor, e Platonida .............................. . 7
Capa. projeto gráfico e editoração eletrônica: 2. Águia Branca ................ ,., ... , ... ,., ........................... . 59
Bracher & Afoita Produção Gráfica 3. A voz da natureza ................................... , ........... ,. 89
Revisão:
4. A fraude ., ........ , ....... ,.,., ..................................... -.. . 101
Lucas Sirnum: 5. Alexandrita ........... ,.,., .............. ,.,., ....... , ............... . 147
Cide Piquet 6. A propósito de A Sonata a K.reutzer ..... , ............... . 167
Ceália Rosas

Sobre os contos, .. , ....... ,.,., ... , .... ,.,., ............................ . 191


1' Edição -2012, 2' Edição -2014
Pela vida russa, Denise Sales ................................ , ... . 195

CIP - Brasil. Catalogação-na-Fonte Níkolai Leskov, o mais original


(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) dos escritores russos, E/ena Vássina 203
Leskov. Nikolai. 1831-1895
L724f A fraude e outras h.isróri,ls / Nikolai
Leskov; traduçiio, posfricio e noras de Denise Sales;
ens.iio de Elen.i Vássina - Siio Puulo: Edirorn 34,
2014 (2·' Edição).
224 p. (Coleção Leste)
ISBN 978-85-7326"496-8
L L1ter.atura n1ss.1. l. Sales, Denise.
li. V.-i~sina, Elena. Ili. Título. ]V. Série.
CDD - 891.73
ALEXANDRITA
(Um fato natural à luz do misticismo)

"Em cada um de nós, cercado pelos mistérios do


mundo, há uma inclinação ao misticismo, e alguns,
em certo estado de espírito, encontram segredos
ocultos lá onde outros, girando no turbilhão da
vida, encontram tudo claro. Cada folhinha, cada
cristal lembra-nos da existência, em nós próprios,
de um laboratório misterioso."
N. Pirogov 1

Eu me permitirei fazer uma pequena comunicação sobre


um cristal requintado, cujo descobrimento, nas profundezas
das montanhas russas, está relacionado com a memória do
finado soberano Aleksandr Nikoláievitch. 2 O assunto aqui é
a bela e valiosa pedra de verde intenso que recebeu o nome
de "alexandrita" em homenagem ao falecido imperador.
Serviu de motivo para darem esse nome ao mineral men-
cionado o fato de a pedra ter sido encontrada pela primeira
vez em 17 de abril de 1834, dia em que Aleksandr II atingiu
a maioridade. Descobriram a alexandrita nas minas de esme-
ralda dos Montes Urais, situadas a 85 verstas de Ekaterin-

1 Nikolai Ivánovitch Pirogov (1810-1881), cirurgião e anatomista


russo. (N. da T.)
2 Aleksandr Nikoláievitch Románov (1818-1881), tsar Alexandre II
ou Alexandre, o Libertador. Foi coroado em 1855. Enfrentou várias crises
políticas e socioeconômicas. Promoveu reformas, entre elas a camponesa,
em 1861, que aboliu a servidão. Morreu em março de 1881, em um aten-
tado a bomba. (N. da T.)

Alexandrita 147
burgo, ao longo do ribeirão Tokovaia, que desemboca no Essas informações retirei do livro de Mikhail Ivánovitch
rio Bolchoi Rieft. O nome "alexandrita" foi dado a essa pe- Piliáiev, publicado pela Sociedade de Mineralogia de São Pe-
dra pelo famoso cientista e mineralogista finlandês Norden- tersburgo, em 1877, com o título: Pedras preciosas: caracte-
skiéild, 3 precisamente porque a pedra fora encontrada por rísticas, lugares de ocorrência e uso.
ele, senhor Nordenskiold, no dia da maioridade do falecido Ao que consta no artigo de Piliáiev sobre a localização
soberano. O motivo dado, creio eu, é suficiente para que não da alexandrita, é preciso acrescentar que a raridade dessa
se busque nenhum outro. pedra aumentou ainda mais por dois motivos:
Nordenskiold renomeou o cristal encontrado de "pedra 1) a arraigada crença, entre os garimpeiros, de que on-
de Aleksandr", e assim ele se chama até hoje. No que se re- de se encontron alexandrita já não adianta procurar esme-
fere às características da sua natureza, sabe-se o seguinte: raldas; e
A alexandrita (Alexandrit, Chrisoberil Cymophone), 2) as minas de onde se retiraram os melhores exempla-
mineral valioso, é uma variedade de crisoberilo 4 dos Urais. res da pedra de Aleksandr II foram inundadas pelas águas de
Tem cor verde-escura, muito parecida com a cor da esme- um rio transbordado.
ralda escura. Sob iluminação artificial, perde esse colorido Dessa forma, peço observarem que muito raramente é
verde e adquire um tom framboesa. possível encontrar a alexandrita entre joalheiros russos, e os
"Os melhores cristais de alexandrita foram encontrados joalheiros e lapidadores estrangeiros, como diz M. I. Piliáiev,
à profundidade de três braças, na lavra de Krasnobolotski. 5 "a conhecem apenas de ouvir falar".
Engastes de alexandrita são muito raros; cristais completa-
mente bons são a maior das raridades e não excedem o peso
de um quilate. 6 Em consequência disso, é muitíssimo raro II
encontrar-se uma alexandrita à venda, e alguns joalheiros,
inclusive, a conhecem apenas de ouvir falar. Ela é considera- Após o passamento trágico e profundamente triste do
da a pedra de Aleksandr II." soberano,7 cnjo reinado trouxe cálidos dias primaveris para
as pessoas de nosso tempo, muitos de nós, por um hábito
bastante disseminado na sociedade humana, queriam ter do
3
Adolf Erik Nordenskiõld (1832-1901), doutor em mineralooia e caro finado todas as "lembrancinhas" materiais que pudes-
geologia, pesquisador do Ártico, membro da Academia de Ciência~ da sem conseguir. Para isso, diversos veneradores do falecido
Suécia, professor da Universidade de Estocolmo, membro efetivo da So- soberano elegeram as coisas mais variadas; de preferência,
ciedade de Mineralogia de São Petersburgo a partir de 1866. (N. da E.)
4
por sinal, aquelas que podiam manter sempre consigo.
Terceiro mineral em grau de dureza. É encontrado muito raramen-
Alguns adquiriram retratos em miniatura do falecido
te; descoberto nos montes Urais, na Rússia. (N. da E.)
5
M. I. Piliáiev comenta que os mais puros cristais de alexandrita
foram encontrados em 1839, justamente nestas lavras. (N. da E.)
6
Considera-se um quilate precisamente o peso médio de um grão da
alfarrobeira (0,0648 g.). (N. do A.) 7 Referência ao assassinato de Alexandre II. (N. da T.)

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soberano e encaixaram-nos na carteira ou no medalhão do um comerciante e chegou a mim. Serviu-me e, depois que o
relógio, outros entalharam em objetos de estimação os dias coloquei no dedo, com ele fiquei.
do seu nascimento e morte; terceiros fizeram ainda alguma O anel tinha sido feito com muita criatividade e enge-
outra coisa nesse gênero; e uns poucos, a quem os meios nho, com um simbolismo: a pedra do falecido soberano Alek-
permitiam e aos quais se apresentava a oportunidade, adqui- sandr II não estava sozinha, mas sim cercada de dois brilhan-
riram uma pedra de Aleksandr II, e com ela fizeram um en- tes puríssimos. Eles deviam representar aqui os dois feitos
gaste em um anel, para levar sempre essa lembrancinha e brilhantes do reinado passado: a libertação dos servos e o
nunca tirá-la da mão. estabelecimento de um sistema judicial melhorado, que subs-
Os anéis com alexandrita eram uma das lembrancinhas tituiu a antiga "injustiça negra".
preferidas, além de serem uma das mais raras e, talvez, das A boa alexandrita, de colorido forte, tinha pouco menos
mais características, e quem conseguia para si uma dessas, já de um quilate, enquanto cada brilhante tinha apenas meio
não se separava dela jamais. quilate. De novo, evidentemente, a intenção disso era fazer
Anéis com alexandrita, no entanto, nunca houve em com que os brilhantes, representantes dos feitos, não ocul-
grande quantidade, uma vez que, como tão bem disse o se- tassem a modesta pedra principal, que devia lembrar a pró-
nhor Piliáiev, bons engastes de alexandrita são raros e caros. pria pessoa do nobre autor dos feitos. Tudo isso tinha sido
E por isso, nos primeiros tempos, havia quem empregasse incrustado em ouro puro e liso, como fazem os ingleses, sem
esforços extremamente grandes para encontrar uma alexan- nenhum tipo de colorido ou adorno, para que o anel fosse
drita, mas, com frequência, não a achava por dinheiro ne- uma recordação cara, mas não "cheirasse a dinheiro".
nhum. Contavam que essa demanda intensa teria até provo-
cado experiências de falsificação de alexandrita, porém imitar
essa pedra original revelou-se impossível. Toda imitação aca- IV
ba por se entregar, sem falta, uma vez que a "pedra de Alek-
sandr II" apresenta um dicroísmo ou mudança de cor. De No verão de 1884, 8 tive ocasião de visitar as terras tche-
novo peço que se lembrem que a alexandrita à luz do dia fica cas. Tendo uma inquieta inclinação a me entusiasmar por
verde e à luz artificial, vermelha. diversos ramos da arte, lá me interessei um tanto por ourives
É impossível conseguir isso com uma liga produzida. locais e trabalhos de lapidaria.
Não são poucas as pedras preciosas em terras tchecas,
mas todas elas têm pouco valor e, em geral, perdem em mui-
III to para as do Ceilão e para as nossas siberianas. É exceção
apenas o piropo tcheco ou "granada de fogo", extraído dos
Chegou a mim um anel com alexandrita, saído das mãos
de uma das pessoas memoráveis do reinado de Aleksandr II. 8
Em 31 de julho, Nikolai Leskov partiu de Dresden para Praga.· Em
Eu o adquiri da maneira mais simples: comprei-o após a mor- 2 de agosto, encontrava-se em Praga e no mesmo dia viajou para Viena.
te daquele que usava o artigo. O anel passou pelas mãos de (N.daE.)

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"campos secos" de Merunice. Granada melhor não há em líssimo exemplar da granada de fogo ser considerado um dos
lugar nenhum. melhores adornos da coroa austríaca e custar horrores.
Entre nós, certa época, o piropo gozava de consideração,
e antigamente era muito valorizado, mas hoje é quase impos-
sível encontrar um piropo tcheco grande e bom em algum V
ourives da Rússia. Muitos nem têm ideia de como ele seja.
Antes de uma viagem ao exterior, a propósito, recebi de
Atuahnente, entre nós, encontra-se em artigos baratos de ou-
rivesaria ou a granada tirolesa opaca e escura ou a "granada um amigo de São Petersburgo a incumbência de trazer-lhe da
aquífera", mas já não há o piropo grande, de fogo, oriundo Boêmia as duas melhores granadas que fosse possível encon-
dos "campos secos" de Merunice. Todos os melhores exem- trar entre os tchecos.
Procurei duas pedras de grandeza considerável e boa cor;
plares antigos dessa maravilhosa pedra de cor intensa, a maio-
ria deles lapidada em rosa com facetas miúdas, foram açam- mas uma delas, mais agradável pelo matiz, para minha indig-
barcados por estrangeiros a preços insignificantes e levados nação, tinha sido estragada por uma lapidação muiro imper-
para fora do país, e os bons piropos recentemente encontra- feita e grosseira. Tinha a forma de um brilhante, mas a face-
dos em terras tchecas vão direto para a Inglaterra ou América. ta superior era um tanto canhestra, cortada em linha reta, e
Lá os gostos são mais estáveis, e os ingleses admiram muito por isso a pedra não tinha nem profundidade, nem brilho. O
essa bela pedra, com o fogo misterioso nela encerrado ("fogo tcheco que me orientava no negócio, entretanto, aconselhara-
em sangue": Feuer in Blut em alemão), e a valorizam. Ingle- -me a levar essa granada e depois submetê-la a uma segunda
ses e americanos, a propósito, em geral gostam muito de pe- lapidação por um famoso lapidador local, de nome Wenzel,
dras peculiares, como por exemplo o piropo ou a "pedra da que o meu guia dizia ser um excelente mestre na sua arte e,
lua", que, sob qualquer ilu1ninação, irradia apenas uma úni- ainda por cima, muito original.
ca cor enluarada. Na brochura pequena, mas muito útil, Re- - É um artista, e não um artesão - disse o tcheco e
gras da polidez e do bom-tom, há inclusive a indicação dessas contou-me que o velho Wenzel era cabalista e místico, e tam-
pedras como as mais merecedoras do gosto de um verdadei- bém, em parte, poeta inspirado e grande supersticioso, porém
ro gentleman. Dos brilhantes lá se diz que "podem ser usados homem originalíssimo e, por vezes, até muitíssimo interes-
por qualquer llm que tenha dinheiro". Na Rússia, quanto a sante.
isso, há outra opinião: entre nós, hoje, não prezam nem o sim- - O senhor não o conhecerá em vão - disse o meu
bolismo, nem a beleza, nem o enigma das cores surpreenden- companheiro. - A pedra, para o vovô Wenzel, não é um ser
tes da pedra e não desejam ocultar o "cheiro do dinheiro". sem alma, mas animado. Ele sente nela o reflexo da vida
misteriosa dos espíritos das montanhas e, peço-lhe que não
Entre nós, ao contrário, valorizam exatamente aquiío "que
aceitam na casa de penhores". Por causa disso, as assim cha- ria, estabelece relações misteriosas com eles através da pedra.
madas pedras de apreciadores não têm saída e são desconhe- Às vezes, ele conta sobre revelações recebidas, e as suas pa-
cidas de nossos atuais caçadores de preciosidades. Talvez até lavras fazem muitos pensarem que o pobre velho já não tem
lhes parecesse surpreendente e inverossímil o fato de um be- tudo em ordem debaixo do crânio. Já é muito velho e cheio

153
152 Nikolai Leskov Alexandrita
de caprichos. Ele próprio agora raramente se põe a trabalhar; que, já desde o primeiro minuto, embora todo o assunto
com ele trabalham seus dois filhos, mas se lhe pedem e se a fosse o piropo, o meu interesse concentrou-se, particularmen-
pedra o agrada, então faz tudo sozinho. E se ele próprio fizer te, no próprio lapidador.
será magnífico, pois, repito, Wenzel é um grande artista em Ele olhou a pedra por muito, muito tempo, mascando
seu ofício, e ainda por cima inspirado. Há muito nos conhe- com os maxilares desdentados e, em sinal de aprovação, ba-
cemos e juntos tomamos cerveja no Jedliczka. Pedirei e espe- lançando a cabeça; depois segurou o piropo entre dois de-
ro que ele conserte a pedra para o senhor. Então essa será dos, olhou-me fixamente, apertou e reapertou os olhos, como
uma excelente aquisição, com a qual o senhor poderá melhor se tivesse comido a casca verde de uma noz e, de repente,
satisfazer àquele que fez o pedido. declarou:
Obedeci e comprei a granada; logo em seguida a leva- - Sim, é ele.
mos ao velho Wenzel. - É um bom piropo?
Em lugar de uma resposta direta, Wenzel disse que aque-
la pedra "ele havia muito conhecia". Eu conseguia me ima-
VI ginar perfeitamente diante do rei Lear e respondi:
- Com isso fico desmedidamente feliz, senhor Wenzel.
O velho vivia em uma das ruas sombrias, estreitas e es- A minha deferência agradou o velho; ele me indicou um
premidas do arrabalde judeu, perto de uma sinagoga histó- banco, depois se aproximou tanto de mim que espremeu os
rica famosa. 9 meus joelhos com os seus e pôs-se a falar:
O lapidador era um velho alto, magro, um pouco ar- - Já nos conhecemos há muito tempo ... Eu o vi ainda
queado, de cabelos longos completamente brancos e vivos em sua terra natal, nos campos secos de Merunice. Naquela
olhos castanhos, cuja expressão indicava grande concentra- época, ele se encontrava em sua prisca simplicidade, mas eu
ção, com um matiz de algo que se observa em pessoas doen- o percebi ... E quem poderia dizer que o seu destino seria tão
tes tomadas de uma demência altiva. De coluna curvada, terrível? Oh, o senhor pode ver nele corno os espíritos das
'
mantinha a cabeça erguida e olhava como um rei. Um ator montanhas são cautelosos e perspicazes! Ele foi comprado
que observasse Wenzel poderia usá-lo se caracterizar magni- por um ladrão suábio, 10 e a um suábio coube lapidá-lo. O
ficamente de rei Lear. suábio consegue vender bem uma pedra, porque tem um co-
Wenzel examinou o piropo comprado por mim e balan- ração de pedra; mas, lapidar, o suábio não consegue. O suá-
çou a cabeça. Por esse movimento e pela expressão do rosto bio é um opressor, quer tudo à sua maneira. Não se acon-
do velho podia-se entender que ele considerava a pedra boa, selha com a pedra sobre aquilo em que ela pode se transfor-
m as além disso o velho Wenzel levou as coisas de um jeito mar, e o piropo tcheco é orgulhoso demais para responder a
' '

9 Refere-se à sinagoga Staronová, de estilo gótico, construída apro-


ximadamente em 1270 e que se localiza no gueto judeu da Cidade Velha
1
°
Falante do suábio ou originário da Suábia, atual região no su-
de Praga. (N. da E.) doeste da Alemanha. (N. da T.)

Nikolai Leskov Alexandrita 155


154
um suábio. Não, ele não conversaria com um suábio. Não, ao seu discurso fantasioso e pouco compreensível. E ele, ao
nele e no tcheco há um mesmo espírito. O suábio não vai que parece, compreendeu a minha dificuldade: pegou-me por
conseguir fazer dele o que lhe der na telha. Quiseram fazê-lo uma mão, com a outra agarrou o piropo com as pontinhas
em rosa; pois o senhor pode ver (eu não vi nada), ele não se de urna pinça, ergueu-o com dois dedos diante do próprio
entregou. Oh, não! Ele é um piropo! Usou de subterfúgios, rosto e continuou, num tom de voz mais alto:
antes perm1tm que os suábios lhe cortassem a cabeça fora e - Ele próprio é um rei tcheco, um prisco príncipe de
eles cortaram. '
Merunicel Ele sabia como fugir de ignorantes: diante dos
- Pois é - interrompi eu. - Quer dizer, está morto. olhos deles, transvestiu-se de limpa-chaminés. Sim, sim, eu o
- Morto?! Por quê?
vi; eu vi o mascate judeu levando-o no bolso, e era por ele
- O senhor mesmo disse que lhe cortaram a cabeca fora. que o mascate escolhia outras pedras.11
O vovô Wenzel sorriu, penalizado: •
Mas não foi para isso que ele ardeu no prisco fogo, para
- Cabeça! Sim, a cabeça é tuna coisa importante, meu se perder como uma monstruosidade na bolsa de couro de
senhor, mas o espírito ... O espírito é ainda mais importante
um mascate, Ele se cansou de andar como limpa-chaminés,
que a cabeça. Acaso foram poucas as cabecas tchecas corta-
0 e veio até mim em busca de urna roupa radiante. Oh! Nós
das? Pois eles continuam vivos. Ele fez tudo 0 que podia fazer
compreendemos um ao outro, e o príncipe das montanhas de
quando cam nas mãos do bárbaro. Tivesse o suábio agido
Merunice mostra-se como príncipe. Deixe-o comigo, meu
dessa forma vil com alguma pedra animal, uma pérola ou um
senhor. Passaremos um tempo juntos, trocaremos conselhos,
"olho de gato", que hoje está na moda, deles não teria so-
e o príncipe se fará príncipe.
brado nada. Deles teria saído t1m reles botão, que restaria
Com isso, bastante desrespeitosamente, Wenzel balan-
apenas Jogar fora. Mas o tcheco não é desses, ele não se dei-
çou a cabeça e, ainda menos respeitosamente, largou o pris-
xa triturar logo no pilão do suábio! Os piropos têm sano-ue
co príncipe num prato imundo, sujo de moscas, onde havia
de guerreiro ••• Ele sabia o que precisava fazer. Fingiu, co~o
algumas granadas de aparência de todo desagradável. _
o tcheco sob os suábios, entregou a própria cabeça, mas es-
Não gostei disso e até cheguei a temer que o meu piropo
condeu o seu fogo no coração ... Sim, senhor, foi isso! o se-
se confundisse no meio de outros piores.
nhor não está vendo o fogo? Não?l Pois eu o vejo: eis aqui
0 Wenzel notou isso e franziu a testa.
fogo denso e mextmguível da montanha tcheca ... Ele está
- Espere! - disse ele e, misturando com a mão todas
vivo e••• por favor, desculpe-o: está rindo do senhor.
as granadas do prato, inesperadamente jogou todas em meu
O próprio Wenzel pôs-se a rir, balançando a cabeça.

11 Quando examinamos longamente pedras de uma única cor, o


VII
olho "emburrece" e perde a capacidade de distinguir as melhores cores das
piores. Para restabelecer essa capacidade, os compradores de pedr~s levam
. Eu estava de pé, diante do velho que segurava na mão a consigo um regulador, ou seja, uma pedra cuja cor já lhes é conhec1d~ pela
mmha pedrinha, e decididamente não sabia o que responder qualidade. Ao compará-la com outra, ele logo vê a diferença de bnlho e
pode avaliar com correção o seu valor. (N. do A.)

156
Niko1ai Leskov Alexandrita 157
chapéu, depois virou o chapéu, e, enfiando a mão lá dentro, disse sobre uma pedra de vinte rublos! Prisco príncipe, cava-
sem olhar, da primeira vez já retirou o "limpa-chaminés". leiro tcheco, e depois ele próprio a lançou num prato sujo ...
- Quer repetir isso cem vezes ou está satisfeito? Está - Está claro, é louco.
satisfeito com uma vez só? Mas Wenzel, para contrariar, não saía da minha cabeça
Ele sentia e distinguia a pedra pela densidade. e pronto. Começou a me aparecer até em sonhos. Nós dois
- Estou satisfeito - respondi. galgávamos as montanhas de Merunice e, sei lá por que mo-
Wenzel de novo lançou a pedra no prato e ainda mais tivo, nos escondíamos dos suábios. Os campos eram não
orgulhosamente balançou a cabeça. apenas secos, mas também quentíssimos, e então Wenzel, ora
Com isso nos despedimos. aqui, ora acolá, agachava-se até o chão, punha as palmas das
mãos no cascalho poeirento e murmurava-me: "Veja! Veja
corno está quente! Corno elas ardem aqui! Em nenhum outro
VIII lugar há pedras assim!".
E sob a inspiração de tudo isso, a granada comprada por
Em tudo o que dizia e em toda a sua figura, o velho la- mim começou de fato a me parecer animada por "priscos
pidador tinha tanto de caprichoso e de particular, que era fogos". Era só eu ficar sozinho, de imediato começava a vir
difícil considerá-lo uma pessoa normal, e, de qualquer modo, à minha lembrança a viagem de Marco Polo lida na infância
dele sentia-se um sopro de saga. e ditos pátrios dos moradores de Nóvgorod "sobre pedras
- Já pensou-veio-me à cabeça- se um grande aman- preciosas, úteis em várias situações". Vinha-me à lembrança
te de pedrarias como Ivan, o Terrível, 12 em sua época, tives- como lia e me surpreendia com as pedras: "a granada que
se se encontrado com um conhecedor de pedras tão original alegra o coração humano; de quem a porta consigo, ela en-
como esse?! Eis com quem o tsar conversaria à vontade, e direita o fraseado e o pensamento e atrai o amor das pes-
depois, quem sabe, mandaria soltar seu melhor urso em cima soas". Mais tarde, tudo isso perde o significado, começamos
dele. Em nossa época, Wenzel é urna ave perdida no tempo, a ver todos esses ditos corno mera superstição, começamos a
urna carta fora do baralho. Em qualquer casa de penhor, pro- duvidar de que o "diamante amolece se deixado de molho
vavelmente há conhecedores que lhe dedicariam pelo menos em sangue de cabras", que o diamante "afasta sonhos maus",
o mesmo desprezo que ele lhes devota. Quanto ele não me e que quem o porta consigo, caso "se aproxime de uma co-
mida envenenada, começa logo a suar"; que a safira fortale-
12 A coleção de pedras preciosas do tsar 1usso Ivan, o Terrível (1530-
ce o coração, o rubi multiplica a felicidade, a lazulita abate
15 84) era uma das melhores da Europa. Ele sabia avaliar pedras e as ad- a doença, a esmeralda cura os olhos, a turquesa protege con-
quiria pelo mundo todo. Não apenas a grandeza e brilho, mas também as tra quedas de cavalo, a granada incinera n1aus pensamentos,
análises místicas e nebulosas feitas pelo tsar impressionavam aqueles que o topázio interrompe a ebulição da água, a ágata protege a
visitavam o tesouro real. Nas pedras, Ivan, o Terrível, via um dom de Deus
castidade das donzelas, o bezoar debela qualquer tipo deve-
e um segredo da natureza, colocados à disposição dos homens para uso e
contemplação (R. G. Skrinnikov, Ivan Grózni [Ivan, o Terrível], Moscou,
neno. Pois eis que me aparecia esse velho em desvairado de-
pp. 181-2). (N. da E.) lírio, e eu já estava pronto a delirar de novo com ele.

158 Nikolai Leskov Alexandrita 159


IX em "peixes mudos" . 15 Com certeza o velho Wenzel desati-
nava, repetindo histórias antigas que se embaralhavam no
Ia dormir e sonhava com tudo isso ... E como tudo era seu cérebro debilitado.
maravilhoso, denso, vivo, embora eu soubesse ser tudo ab- Mas como me martirizou esse velho estrambótico!
surdo. Não, não é absurdo, é o que qualquer avaliador de Quantas vezes não fui procurá-lo, e o meu piropo não só não
pedras de uma casa de penhor já sabe. Ah, sim, então não é estava pronto, como Wenzel nem mesmo se ocupara dele. O
absurdo. É uma avaliação ... um fato ... meu "prisco príncipe" ficava jogado no prato como um "lim-
Pois também isso, certa época, foi fato ... O patriarca pa-chaminés", na companhia mais baixa e mais indigna dele.
Nikon 13 realmente escreveu sobre isso ao tsar Aleksei, 14 quei- Se houvesse ainda que só um pingo de superstição, porém
xando-se de seus desafetos. Queriam dar cabo dele e servi- sincera, de que naquela pedra vivia um orgulhoso espírito
ram-lhe uma comida com veneno mortal; o patriarca, porém, da montanha, que pensa e sente, então tratá-lo de modo tão
era precavido: levava consigo uma "pedra bezoar" e "o be- desrespeitoso também seria uma barbaridade.
zoar chupou fora o veneno". Longamente ele lambeu a pedra
bezoar que ficava enfiada no seu anel; isso o ajudou bastante,
e foram os seus desafetos que sofreram. Está certo que tudo X
isso aconteceu em priscas eras, quando tanto as pedras nas
entranhas da terra quanto os planetas nas alturas celestes, Wenzel já não me interessava~ e sim irritava. Não res-
todos eles se preocupavam com o destino do homem, e não pondia a nada direito, e às vezes até parecia um pouco atre-
atualmente, quando até nos céus há desgosto e sob a terra vido. Às minhas observações mais corteses de que havia tem-
restou a indiferença fria pelo destino dos filhos dos homens po demais esperava um pequeno giro em sua roda de esme-
e de lá não chegam vozes nem obediência. Todos os planetas, ril, ele, melancólico, limpava os dentes podres e começava a
de novo descobertos, já não recebiam mais nenhuma atribui- divagar sobre o que é urna roda e quantas rodas diferentes
ção nos horóscopos; há também muitas pedras novas, e todas há no mundo. A roda do moinho do rnujique, a roda da te-
são medidas, pesadas, comparadas em termos de peso espe- lega do rnujique, a roda do vagão, a roda da carruagem vie-
cífico e densidade, mas depois nada profetizam, não são úteis nense, a roda do relógio antes de Breguet e a roda do relógio
em nada. O seu tempo de falar ao homem já virou passado, depois de Breguet, a roda nos relógios de Denis Blondel e a
agora são como "loquazes tribunos" que se trànsformaram roda do relógio de Louis Audemars ... 16 Em resumo, só o
diabo é que sabia aonde ia levar aquela falação, e, no final,
acabava por dizer que era mais fácil forjar um eixo de car-
13
Nikita Minov (1605-1681) foi escolhido patriarca da ortodoxia
russa em 1652 e realizou reformas na igreja. Terminou a vida no degredo. 1s Ambas as expressões entre aspas são trechos de um hino acatisto,
(N.daE.) cantado de pé no serviço religioso ortodoxo. (N. da T.)
14
Aleksei Mikháilovitch Románov (1629-1676), coroado tsar em 16 O personagem cita nomes que aperfeiçoaram o mecanismo dos
1645. (N. da T.) relógios. (N. da E.) '

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Alexandrita
reta do que lapidar uma pedra, e por isso dizia: "espere, es- - Isso é muito estranho! - comentou ele incrédulo e
contou que aconteciam casos de piropos magníficos' '
encon-
lavo".
Perdi a paciência e pedi a Wenzel que me devolvesse a trados simplesmente no reboco de paredes de isbás. A rique-
pedra como estava; em resposta a isso, o velho começou, z:' _das pedras era tão enorme, que elas se lançavam à super-
amigavelmente: f1C1e da terra e iam parar na argila do estuque.
- Mas como é possível? Para que esses caprichos? Provavelmente Wenzel tinha tudo isso na cabeça quando
Confessei que aquilo tinha me cansado. estava sentado no jardinzinho da cervejaria, junto às escadas
- Ah-ah - respondeu Wenzel. - E eu que pensei que de Nusle, e levou-o consigo a uma colina árida, onde pegou
o senhor já tinha se transformado em suábio e queria deixar em_ um sono tranquilo e profundo e teve um sonho curiosís-
simo: viu uma isbá tcheca, pobrezinha, nas montanhas de
0 príncipe tcheco como limpa-chaminés intencionalmente •••
E \Venzel começou a gargalhar, de boca bem aberta, de Meruni:'e; nessa isbazinha, estava uma jovem camponesa,
modo que dela, por todo o cômodo, espalhou-se um cheiro fiando la de cabra com as próprias mãos enquanto balancava
' >

de lúpulo e malte. Pareceu-me que o velho, naquele dia, be- com o pé um berço que, a cada movimento, tocava de man-
bera uma caneca a mais de cerveja pilsen. sinho a parede. O estuque descascava aos poucos e caía em
Wenzel até começou a me contar uma bobagem qual- forma de pó ... foi então que "ele despertou". Ou seja, des-
quer: ele o teria levado para passear em Vinohrady, além da pertou não, Wenzel, nem o bebê que estava no berço, mas ele,
escadaria de Nusle. Ali teriam sentado juntos em uma colina o pnsco pnnc1pe rebocado no estuque ... Despertou e deu uma
árida, em frente da muralha de Carlos, 17 e ele teria revelado espiadinha lá fora para se deleitar com o melhor espetáculo
a Wenzel, afinal, toda a sua história, desde os "priscos dias", da terra: uma jovem mãe, que fia e embala o filho ...
quando não havia nascido nem Sócrates, nem Platão, nem A mãe tcheca percebeu a granada à luz e pensou: "eis
Aristóteles, e também não tinha acontecido nem o pecado de um percevejo", e para que o inseto nojento não picasse o seu
Sodoma nem o incêndio de Sodoma, até aquela primeira ho- filhinho, bateu nele com o seu sapato velho com roda a força.
ra, quando ele se arrastara para fora da parede como um Ele se soltou da argila e rolou pelo chão; então ela percebeu
percevejo e rira de uma moça ... que era uma pedra e vendeu-a a um suábio por um punhado
Wenzel parecia ter-se lembrado algo muito engraçado, de grãos de ervilha. Tudo isso foi naquela época em que um
de novo começou a gargalhar e de novo encheu o cômodo grão de piropo custava um punhado de ervilha. Foi antes de
com o cheiro de malte e lúpulo. acontecer o que está descrito nos milagres de São Nicolau,
- Pare, vovô Wenzel, não estou entendendo nada. quando um piropo foi engolido por um peixe e apanhado por
uma mulher pobre, e esta enriqueceu com o achado ...
- Vovô Wenzel! - disse eu. - Desculpe-me, o senhor
está contando coisas muito curiosas, mas não tenho tempo
17 Esta e as duas referências anteriores tratam das cercanias de Pra- de ouvi-las. Partirei depois de amanhã bem cedo, e por isso
ga, da escadaria que leva ao castelo de Carlos IV (1316-1378). No int~rior amanhã venho pela última vez pegar de volta a minha pedra.
desse castelo, há uma capela famosa, ornamentada com pedras semipre-
- Excelente, excelente! - respondeu Wenzel. - Venha
ciosas. (N. da E.)

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amanhã ao anoitecer, quando começarem a acender as luzes: - Feiticeiro! Estou dizendo: feiticeiro! - pôs-se a gritar
o limpa-chaminés o receberá como príncipe. Wenzel bem alto. - Veja só que pedra! Nela a manhã é ver-
de e a noite sangrenta ... É o destino, é o destino do nobre tsar
Aleksandr!
XI E o velho Wenzel voltou-se para a parede, apoiou a ca-
beça no braço e... pôs-se a chorar.
Cheguei bem na hora combinada, quando já tinham Os seus filhos ficaram ali, imóveis, calados. Não só para
acendido as velas, e dessa vez o meu piropo estava realmen- eles, mas até para mim, que há tanto tempo via constante-
te pronto. Nele o "limpa-chaminés" tinha desaparecido, e a mente, em minha própria mão, a "pedra de Aleksandr II",
pedra absorvia e expelia de si feixes de fogo denso, escuro. era como se ela, de repente, estivesse cheia do profundo sen-
Wenzel, seguindo certa linha invisível, havia tirado as extre- tido das coisas, e o meu coração apertou-se de tristeza.
midades da faceta superior do piropo, e o seu meio erguera- Quer queiram, quer não, o velho viu e'leu na pedra algo
-se como um capucho. A granada adquirira cor e cintilava: que parecia já existir nela, mas que, antes dele, nunca se ma-
nela de fato ardia num fogo inextinguível uma gota encanta- nifestara aos olhos de ninguém.
da de sangue. Eis o que às vezes significa olhar uma coisa com o espí-
- E então? Que tal o nosso valente guerreiro?! - ex- rito extraordinário da fantasia!
clamou Wenzel.
Eu, na verdade, não me cansava de contemplar o piropo
(1884)
e queria expressar isso a Wenzel, mas, antes que eu conse-
guisse expressar uma palavra sequer, o velho sábio aprontou
uma das suas, inesperada e estranhíssima: de repente, agar-
rou-me pelo anel com a alexandrita, que agora, sob a luz,
estava vermelha, e pôs-se a gritar:
- Meus filhos! Tchecos! Depressa! Vejam só, eis aqui
aquela pedra russa profética da qual lhes falei! Siberiana as-
tuta! O tempo todo estava verde como a esperança, mas ago-
ra, com a aproximação do anoitecer, banhou-se de sangue.
Desde priscas eras ela é assim, mas escondeu-se o tempo todo,
no seio da terra, e permitiu que a encontrassem apenas no
dia da maioridade do tsar Aleksandr, quando um grande fei-
ticeiro, mago, bruxo, foi à Sibéria procurar por ela.
- O senhor está falando asneiras - interrompi. - Essa
pedra não foi encontrada por um feiticeiro, foi por um cien-
tista: N ordenskiõld !

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