Alexandrita - Nikolai Leskov
Alexandrita - Nikolai Leskov
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Irn,1gem da capa:
Boris Kustodieu, Revolta contra os boiardos na velha Rússia, 1897 l. Kótin, o provedor, e Platonida .............................. . 7
Capa. projeto gráfico e editoração eletrônica: 2. Águia Branca ................ ,., ... , ... ,., ........................... . 59
Bracher & Afoita Produção Gráfica 3. A voz da natureza ................................... , ........... ,. 89
Revisão:
4. A fraude ., ........ , ....... ,.,., ..................................... -.. . 101
Lucas Sirnum: 5. Alexandrita ........... ,.,., .............. ,.,., ....... , ............... . 147
Cide Piquet 6. A propósito de A Sonata a K.reutzer ..... , ............... . 167
Ceália Rosas
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burgo, ao longo do ribeirão Tokovaia, que desemboca no Essas informações retirei do livro de Mikhail Ivánovitch
rio Bolchoi Rieft. O nome "alexandrita" foi dado a essa pe- Piliáiev, publicado pela Sociedade de Mineralogia de São Pe-
dra pelo famoso cientista e mineralogista finlandês Norden- tersburgo, em 1877, com o título: Pedras preciosas: caracte-
skiéild, 3 precisamente porque a pedra fora encontrada por rísticas, lugares de ocorrência e uso.
ele, senhor Nordenskiold, no dia da maioridade do falecido Ao que consta no artigo de Piliáiev sobre a localização
soberano. O motivo dado, creio eu, é suficiente para que não da alexandrita, é preciso acrescentar que a raridade dessa
se busque nenhum outro. pedra aumentou ainda mais por dois motivos:
Nordenskiold renomeou o cristal encontrado de "pedra 1) a arraigada crença, entre os garimpeiros, de que on-
de Aleksandr", e assim ele se chama até hoje. No que se re- de se encontron alexandrita já não adianta procurar esme-
fere às características da sua natureza, sabe-se o seguinte: raldas; e
A alexandrita (Alexandrit, Chrisoberil Cymophone), 2) as minas de onde se retiraram os melhores exempla-
mineral valioso, é uma variedade de crisoberilo 4 dos Urais. res da pedra de Aleksandr II foram inundadas pelas águas de
Tem cor verde-escura, muito parecida com a cor da esme- um rio transbordado.
ralda escura. Sob iluminação artificial, perde esse colorido Dessa forma, peço observarem que muito raramente é
verde e adquire um tom framboesa. possível encontrar a alexandrita entre joalheiros russos, e os
"Os melhores cristais de alexandrita foram encontrados joalheiros e lapidadores estrangeiros, como diz M. I. Piliáiev,
à profundidade de três braças, na lavra de Krasnobolotski. 5 "a conhecem apenas de ouvir falar".
Engastes de alexandrita são muito raros; cristais completa-
mente bons são a maior das raridades e não excedem o peso
de um quilate. 6 Em consequência disso, é muitíssimo raro II
encontrar-se uma alexandrita à venda, e alguns joalheiros,
inclusive, a conhecem apenas de ouvir falar. Ela é considera- Após o passamento trágico e profundamente triste do
da a pedra de Aleksandr II." soberano,7 cnjo reinado trouxe cálidos dias primaveris para
as pessoas de nosso tempo, muitos de nós, por um hábito
bastante disseminado na sociedade humana, queriam ter do
3
Adolf Erik Nordenskiõld (1832-1901), doutor em mineralooia e caro finado todas as "lembrancinhas" materiais que pudes-
geologia, pesquisador do Ártico, membro da Academia de Ciência~ da sem conseguir. Para isso, diversos veneradores do falecido
Suécia, professor da Universidade de Estocolmo, membro efetivo da So- soberano elegeram as coisas mais variadas; de preferência,
ciedade de Mineralogia de São Petersburgo a partir de 1866. (N. da E.)
4
por sinal, aquelas que podiam manter sempre consigo.
Terceiro mineral em grau de dureza. É encontrado muito raramen-
Alguns adquiriram retratos em miniatura do falecido
te; descoberto nos montes Urais, na Rússia. (N. da E.)
5
M. I. Piliáiev comenta que os mais puros cristais de alexandrita
foram encontrados em 1839, justamente nestas lavras. (N. da E.)
6
Considera-se um quilate precisamente o peso médio de um grão da
alfarrobeira (0,0648 g.). (N. do A.) 7 Referência ao assassinato de Alexandre II. (N. da T.)
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de caprichos. Ele próprio agora raramente se põe a trabalhar; que, já desde o primeiro minuto, embora todo o assunto
com ele trabalham seus dois filhos, mas se lhe pedem e se a fosse o piropo, o meu interesse concentrou-se, particularmen-
pedra o agrada, então faz tudo sozinho. E se ele próprio fizer te, no próprio lapidador.
será magnífico, pois, repito, Wenzel é um grande artista em Ele olhou a pedra por muito, muito tempo, mascando
seu ofício, e ainda por cima inspirado. Há muito nos conhe- com os maxilares desdentados e, em sinal de aprovação, ba-
cemos e juntos tomamos cerveja no Jedliczka. Pedirei e espe- lançando a cabeça; depois segurou o piropo entre dois de-
ro que ele conserte a pedra para o senhor. Então essa será dos, olhou-me fixamente, apertou e reapertou os olhos, como
uma excelente aquisição, com a qual o senhor poderá melhor se tivesse comido a casca verde de uma noz e, de repente,
satisfazer àquele que fez o pedido. declarou:
Obedeci e comprei a granada; logo em seguida a leva- - Sim, é ele.
mos ao velho Wenzel. - É um bom piropo?
Em lugar de uma resposta direta, Wenzel disse que aque-
la pedra "ele havia muito conhecia". Eu conseguia me ima-
VI ginar perfeitamente diante do rei Lear e respondi:
- Com isso fico desmedidamente feliz, senhor Wenzel.
O velho vivia em uma das ruas sombrias, estreitas e es- A minha deferência agradou o velho; ele me indicou um
premidas do arrabalde judeu, perto de uma sinagoga histó- banco, depois se aproximou tanto de mim que espremeu os
rica famosa. 9 meus joelhos com os seus e pôs-se a falar:
O lapidador era um velho alto, magro, um pouco ar- - Já nos conhecemos há muito tempo ... Eu o vi ainda
queado, de cabelos longos completamente brancos e vivos em sua terra natal, nos campos secos de Merunice. Naquela
olhos castanhos, cuja expressão indicava grande concentra- época, ele se encontrava em sua prisca simplicidade, mas eu
ção, com um matiz de algo que se observa em pessoas doen- o percebi ... E quem poderia dizer que o seu destino seria tão
tes tomadas de uma demência altiva. De coluna curvada, terrível? Oh, o senhor pode ver nele corno os espíritos das
'
mantinha a cabeça erguida e olhava como um rei. Um ator montanhas são cautelosos e perspicazes! Ele foi comprado
que observasse Wenzel poderia usá-lo se caracterizar magni- por um ladrão suábio, 10 e a um suábio coube lapidá-lo. O
ficamente de rei Lear. suábio consegue vender bem uma pedra, porque tem um co-
Wenzel examinou o piropo comprado por mim e balan- ração de pedra; mas, lapidar, o suábio não consegue. O suá-
çou a cabeça. Por esse movimento e pela expressão do rosto bio é um opressor, quer tudo à sua maneira. Não se acon-
do velho podia-se entender que ele considerava a pedra boa, selha com a pedra sobre aquilo em que ela pode se transfor-
m as além disso o velho Wenzel levou as coisas de um jeito mar, e o piropo tcheco é orgulhoso demais para responder a
' '
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chapéu, depois virou o chapéu, e, enfiando a mão lá dentro, disse sobre uma pedra de vinte rublos! Prisco príncipe, cava-
sem olhar, da primeira vez já retirou o "limpa-chaminés". leiro tcheco, e depois ele próprio a lançou num prato sujo ...
- Quer repetir isso cem vezes ou está satisfeito? Está - Está claro, é louco.
satisfeito com uma vez só? Mas Wenzel, para contrariar, não saía da minha cabeça
Ele sentia e distinguia a pedra pela densidade. e pronto. Começou a me aparecer até em sonhos. Nós dois
- Estou satisfeito - respondi. galgávamos as montanhas de Merunice e, sei lá por que mo-
Wenzel de novo lançou a pedra no prato e ainda mais tivo, nos escondíamos dos suábios. Os campos eram não
orgulhosamente balançou a cabeça. apenas secos, mas também quentíssimos, e então Wenzel, ora
Com isso nos despedimos. aqui, ora acolá, agachava-se até o chão, punha as palmas das
mãos no cascalho poeirento e murmurava-me: "Veja! Veja
corno está quente! Corno elas ardem aqui! Em nenhum outro
VIII lugar há pedras assim!".
E sob a inspiração de tudo isso, a granada comprada por
Em tudo o que dizia e em toda a sua figura, o velho la- mim começou de fato a me parecer animada por "priscos
pidador tinha tanto de caprichoso e de particular, que era fogos". Era só eu ficar sozinho, de imediato começava a vir
difícil considerá-lo uma pessoa normal, e, de qualquer modo, à minha lembrança a viagem de Marco Polo lida na infância
dele sentia-se um sopro de saga. e ditos pátrios dos moradores de Nóvgorod "sobre pedras
- Já pensou-veio-me à cabeça- se um grande aman- preciosas, úteis em várias situações". Vinha-me à lembrança
te de pedrarias como Ivan, o Terrível, 12 em sua época, tives- como lia e me surpreendia com as pedras: "a granada que
se se encontrado com um conhecedor de pedras tão original alegra o coração humano; de quem a porta consigo, ela en-
como esse?! Eis com quem o tsar conversaria à vontade, e direita o fraseado e o pensamento e atrai o amor das pes-
depois, quem sabe, mandaria soltar seu melhor urso em cima soas". Mais tarde, tudo isso perde o significado, começamos
dele. Em nossa época, Wenzel é urna ave perdida no tempo, a ver todos esses ditos corno mera superstição, começamos a
urna carta fora do baralho. Em qualquer casa de penhor, pro- duvidar de que o "diamante amolece se deixado de molho
vavelmente há conhecedores que lhe dedicariam pelo menos em sangue de cabras", que o diamante "afasta sonhos maus",
o mesmo desprezo que ele lhes devota. Quanto ele não me e que quem o porta consigo, caso "se aproxime de uma co-
mida envenenada, começa logo a suar"; que a safira fortale-
12 A coleção de pedras preciosas do tsar 1usso Ivan, o Terrível (1530-
ce o coração, o rubi multiplica a felicidade, a lazulita abate
15 84) era uma das melhores da Europa. Ele sabia avaliar pedras e as ad- a doença, a esmeralda cura os olhos, a turquesa protege con-
quiria pelo mundo todo. Não apenas a grandeza e brilho, mas também as tra quedas de cavalo, a granada incinera n1aus pensamentos,
análises místicas e nebulosas feitas pelo tsar impressionavam aqueles que o topázio interrompe a ebulição da água, a ágata protege a
visitavam o tesouro real. Nas pedras, Ivan, o Terrível, via um dom de Deus
castidade das donzelas, o bezoar debela qualquer tipo deve-
e um segredo da natureza, colocados à disposição dos homens para uso e
contemplação (R. G. Skrinnikov, Ivan Grózni [Ivan, o Terrível], Moscou,
neno. Pois eis que me aparecia esse velho em desvairado de-
pp. 181-2). (N. da E.) lírio, e eu já estava pronto a delirar de novo com ele.
de lúpulo e malte. Pareceu-me que o velho, naquele dia, be- com o pé um berço que, a cada movimento, tocava de man-
bera uma caneca a mais de cerveja pilsen. sinho a parede. O estuque descascava aos poucos e caía em
Wenzel até começou a me contar uma bobagem qual- forma de pó ... foi então que "ele despertou". Ou seja, des-
quer: ele o teria levado para passear em Vinohrady, além da pertou não, Wenzel, nem o bebê que estava no berço, mas ele,
escadaria de Nusle. Ali teriam sentado juntos em uma colina o pnsco pnnc1pe rebocado no estuque ... Despertou e deu uma
árida, em frente da muralha de Carlos, 17 e ele teria revelado espiadinha lá fora para se deleitar com o melhor espetáculo
a Wenzel, afinal, toda a sua história, desde os "priscos dias", da terra: uma jovem mãe, que fia e embala o filho ...
quando não havia nascido nem Sócrates, nem Platão, nem A mãe tcheca percebeu a granada à luz e pensou: "eis
Aristóteles, e também não tinha acontecido nem o pecado de um percevejo", e para que o inseto nojento não picasse o seu
Sodoma nem o incêndio de Sodoma, até aquela primeira ho- filhinho, bateu nele com o seu sapato velho com roda a força.
ra, quando ele se arrastara para fora da parede como um Ele se soltou da argila e rolou pelo chão; então ela percebeu
percevejo e rira de uma moça ... que era uma pedra e vendeu-a a um suábio por um punhado
Wenzel parecia ter-se lembrado algo muito engraçado, de grãos de ervilha. Tudo isso foi naquela época em que um
de novo começou a gargalhar e de novo encheu o cômodo grão de piropo custava um punhado de ervilha. Foi antes de
com o cheiro de malte e lúpulo. acontecer o que está descrito nos milagres de São Nicolau,
- Pare, vovô Wenzel, não estou entendendo nada. quando um piropo foi engolido por um peixe e apanhado por
uma mulher pobre, e esta enriqueceu com o achado ...
- Vovô Wenzel! - disse eu. - Desculpe-me, o senhor
está contando coisas muito curiosas, mas não tenho tempo
17 Esta e as duas referências anteriores tratam das cercanias de Pra- de ouvi-las. Partirei depois de amanhã bem cedo, e por isso
ga, da escadaria que leva ao castelo de Carlos IV (1316-1378). No int~rior amanhã venho pela última vez pegar de volta a minha pedra.
desse castelo, há uma capela famosa, ornamentada com pedras semipre-
- Excelente, excelente! - respondeu Wenzel. - Venha
ciosas. (N. da E.)
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