O chamado de Cthulhu e outros contos
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O chamado de Cthulhu e outros contos - H. P. Lovecraft
(Encontrado entre os papéis do falecido Francis Wayland Thurston, de Boston)
No que tange a tais grandes poderes ou seres, pode-se conceber uma sobrevivência… Uma sobrevivência de um período extremamente remoto, quando a consciência talvez se manifestasse por meio de formas e linhas há muito desaparecidas, antes da maré crescente da humanidade… Formas das quais somente a poesia e a lenda guardam uma lembrança fugaz, chamei-as de deuses, monstros, seres míticos de todos os tipos e espécies…
– Algernon Blackwood
I.
O horror no barro
A coisa mais misericordiosa do mundo, penso eu, é a incapacidade da mente humana de correlacionar todo o seu conteúdo. Vivemos em uma ilha plácida de ignorância no meio dos mares negros do infinito, e isso não significa que devemos ir muito longe. As ciências, cada uma esforçando-se em sua própria direção, até agora nos prejudicaram pouco, mas algum dia a junção de todo esse conhecimento fragmentado levará a visões aterrorizantes da realidade e de nossa assustadora posição, quando enlouqueceremos diante da revelação ou fugiremos da luz mortífera para a paz e a segurança de uma nova era das trevas.
Os teosofistas presumiram a espantosa grandeza do ciclo cósmico, em que nosso mundo e nossa raça humana formam nada mais que incidentes efêmeros. Eles sugeriram estranhos sobreviventes em termos que fariam nosso sangue congelar se não fossem mascarados por um otimismo insípido. Mas eles não foram responsáveis pelo único vislumbre de éons proibidos que me arrepiam quando penso no assunto e me enlouquecem em sonhos. Esse vislumbre, como todos os vislumbres assustadores da verdade, brotou de uma junção acidental de coisas separadas; nesse caso, um velho artigo de jornal e as anotações de um professor já falecido. Espero que ninguém mais o faça. Certamente, se eu viver, nunca fornecerei um elo sequer para uma corrente tão horrenda. Acredito que o professor também pretendia manter silêncio sobre o que sabia, e teria destruído suas anotações se a morte não tivesse se apoderado dele subitamente.
Meu conhecimento sobre o tema começou no inverno de 1926-27, com a morte do meu tio-avô George Gammell Angell, professor emérito de Línguas Semíticas da Universidade Brown, em Providence, Rhode Island. O professor Angell era amplamente conhecido como uma autoridade em inscrições antigas e frequentemente tinha seus serviços utilizados por chefes de importantes museus, de modo que seu falecimento, aos 92 anos de idade, é lembrado por muitas pessoas. Localmente, o interesse foi intensificado pela obscuridade da causa de sua morte. O professor caiu enquanto voltava de barco de Newport. Tombou repentinamente, conforme testemunhas disseram, depois de esbarrar fortemente em um homem negro de aparência de marinheiro que
tinha vindo de um dos estranhos pátios escuros na encosta íngreme
que servia de atalho entre a orla e a casa do falecido, na rua Williams. Os médicos foram incapazes de encontrar qualquer problema aparente, mas concluíram, depois de debaterem a causa, que alguma lesão cardíaca obscura, induzida pela rápida escalada de uma colina tão íngreme por um homem tão idoso, foi responsável por seu fim. Na época, não vi razão para discordar desse consenso, mas ultimamente estou inclinado a imaginar – e mais do que imaginar.
Como herdeiro e testamenteiro de meu tio-avô, que morrera sem deixar esposa nem filhos, esperava-se que eu examinasse seus documentos com alguma seriedade, e foi com esse propósito que enviei todo o seu conjunto de arquivos e caixas para os meus aposentos em Boston. Uma grande parte do material que correlacionei será publicado mais tardiamente pela American Archaeological Society, mas havia uma caixa extremamente intrigante, e me senti muito avesso a que outros olhos a vissem. Ela estava trancada e eu não encontrava a chave, até que me ocorreu examinar o chaveiro que o professor carregava sempre no bolso. Então, na verdade, consegui abri-la, mas, quando o fiz, tive de transpor uma barreira ainda maior e mais difícil. Qual seria o significado
do estranho baixo-relevo em argila e das anotações, das divagações e dos recortes desconexos que encontrei? Será que meu tio-avô, em seus últimos anos, tornou-se crédulo das imposturas mais superficiais? Resolvi procurar o excêntrico escultor responsável por essa aparente perturbação da paz de espírito de um idoso.
O baixo-relevo era um retângulo áspero com menos de 2,5 centímetros de espessura e cerca de 12,7 por 15,7 centímetros de área; obviamente, tinha origem moderna. Os entalhes, no entanto, estavam longe de apresentar uma atmosfera moderna, pois, embora os caprichos do cubismo e do futurismo sejam diversos e selvagens, eles nem sempre reproduzem essa regularidade enigmática que se esconde nas escritas pré-históricas. E a maior parte desses detalhes parecia certamente ser algum tipo de escrita, mas minha memória, apesar da grande familiaridade com os papéis e as coleções de meu tio-avô, não conseguia de alguma forma identificar essa espécie em particular, nem mesmo sugerir suas afiliações mais remotas.
Acima desses hieróglifos aparentes havia um entalhe evidentemente pictórico, embora sua execução impressionista proibisse uma ideia muito clara sobre sua natureza. Parecia ser uma espécie de monstro, ou um símbolo representando um monstro, de uma maneira que só uma mente doentia poderia conceber. Se eu disser que minha imaginação um pouco extravagante produziu imagens simultâneas de um polvo, um dragão e uma caricatura humana, não serei infiel ao espírito da coisa. Uma cabeça carnuda e tentacular se sobrepujava de um corpo grotesco e escamoso com asas rudimentares, mas a silhueta era o que tornava a criatura ainda mais assustadora. Por trás da figura havia uma vaga sugestão de um pano de fundo arquitetônico ciclópico.
As anotações que acompanhavam esse estranho objeto, além de uma pilha de recortes de imprensa, continham a mais recente caligrafia do professor Angell, e não fingiam um estilo literário. O que parecia ser o documento principal estava intitulado O CULTO A CTHULHU
em caracteres meticulosamente desenhados para evitar a leitura errônea de uma palavra tão inédita. O manuscrito foi dividido em duas seções, a primeira das quais foi intitulada 1925 – Sonho e Obra de H. A. Wilcox, rua Thomas 7, Providence, RI
, e a segunda, "Relato do Inspetor John R. Legrasse, rua Bienville 121, Nova Orleans, Louisiana, Congresso da
A. A. S. em 1908. – Notas sobre o Insp. e Depoimento do Professor Webb". Os outros artigos do manuscrito eram todos notas breves, algumas delas relatos dos estranhos sonhos de diferentes pessoas, alguns deles citações de livros e revistas teosóficas (notavelmente de Atlantis e Lemúria, de W. Scott-Elliot), e o restante comentava sobre sociedades secretas e cultos misteriosos que sobrevivem há tempos, com referências a passagens em fontes mitológicas e antropológicas como O ramo de ouro, de Frazer, e O Culto da Bruxa na Europa Ocidental, de Margareth Murray. Os recortes aludiam em grande parte às doenças mentais bizarras e aos surtos de loucura ou de histeria coletiva na primavera de 1925.
A primeira metade do manuscrito principal contava uma história muito peculiar. Parece que, no dia 1º de março de 1925, um jovem magro e moreno, de aspecto neurótico e exaltado, havia procurado o professor Angell trazendo o singular baixo-relevo de barro, que estava então extremamente úmido e fresco, em mãos. Seu cartão tinha o nome de Henry Anthony Wilcox, e meu tio-avô o reconhecera como o filho mais novo de uma excelente família que ele conhecia pouco, que estudara escultura na Escola de Design de Rhode Island e morava sozinho no Edifício Fleur-de-Lys, perto dessa instituição. Wilcox era um conhecido jovem precoce, de grande excentricidade, e desde a infância despertara a atenção de todos pelas estranhas histórias e sonhos inusitados que costumava contar. Ele mesmo dizia sofrer de uma hipersensibilidade psíquica
, mas o povo sério da antiga cidade comercial o tratava meramente como estranho
. Nunca se misturava muito com os de sua espécie, havia negado gradualmente a visibilidade social e agora era conhecido apenas por um pequeno grupo de estetas de outras cidades. Até mesmo o Providence Art Club, preocupado em preservar seu conservadorismo, achara-o um caso totalmente perdido.
Na ocasião da visita, de acordo com o manuscrito do professor, o jovem escultor recorreu abruptamente ao conhecimento arqueológico do seu anfitrião para identificar os hieróglifos no baixo-relevo. Falava de uma maneira sonhadora e empolada, que sugeria uma certa pose e falta de simpatia; e meu tio-avô demonstrou certa nitidez ao responder, pois o frescor conspícuo da tabuleta indicava falta de parentesco com a arqueologia. A réplica do jovem Wilcox, que impressionou meu tio-avô o suficiente para fazê-lo recordar-se dela mais tarde e registrá-la literalmente, palavra por palavra, era de um viés fantasticamente poético que deve ter permeado toda a sua conversa, e que desde então achei altamente característico dele. Ele disse: É recente, de fato, porque eu a criei na noite passada, depois de sonhar com cidades estranhas; e os sonhos são mais antigos do que as reminiscências de Tiro, ou a contemplativa Esfinge, ou a Babilônia cercada por jardins
.
Foi então que ele começou um relato desconexo que, de repente, tocou uma lembrança adormecida e conquistou o interesse febril de meu tio-avô. Houve um ligeiro tremor de terra na noite anterior, o mais considerável na Nova Inglaterra durante alguns anos, e a imaginação de Wilcox foi profundamente afetada. Ao se deitar, ele teve um sonho sem precedentes com grandes cidades ciclópicas feitas de blocos titânicos e grandes monólitos, todos cheios de uma gosma verde e sinistra com o horror latente. Os hieróglifos cobriam as paredes e os pilares, e de algum ponto indeterminado havia surgido uma voz que não era uma voz; uma sensação caótica que só a fantasia poderia transmutar em som, mas que ele tentou processar pela mistura quase impronunciável de letras: Cthulhu fhtagn
.
Essa desordem verbal foi a chave para a lembrança que empolgou e perturbou o professor Angell. Ele questionou o escultor com rigor científico e estudou com intensidade quase frenética o baixo-relevo em que o jovem se encontrava trabalhando, com frio e vestido apenas com suas roupas de dormir, até que a vigília o pegasse de surpresa desconcertantemente. Meu tio-avô culpou sua velhice, segundo Wilcox, por sua lentidão em reconhecer hieróglifos e desenhos pictóricos. Muitas de suas perguntas pareciam muito fora de propósito para seu visitante, especialmente aquelas que tentavam conectá-lo com estranhos cultos ou sociedades, e Wilcox não conseguia entender as repetidas promessas de silêncio que lhe foram oferecidas em troca da admissão em alguma seita mística ou pagã amplamente difundida. Quando o professor Angell se convenceu de que o escultor era realmente ignorante de qualquer culto ou sistema de conhecimento críptico, impôs cerco ao visitante com exigências de relatos futuros de sonhos. Isso resultou em bons frutos regularmente, porque, depois da primeira entrevista, o manuscrito registrava visitas diárias do jovem, durante as quais ele relacionava fragmentos surpreendentes de paisagens noturnas cujo mote era sempre alguma terrível visão ciclópica de uma pedra escura e gotejante, com uma voz ou uma inteligência subterrânea soando monotonamente como impactos indescritíveis, exceto pelos sussurros. Os dois sons repetidos com mais frequência são aqueles representados pelas letras Cthulhu
e R’lyeh
.
Em 23 de março, o manuscrito continuou, mas Wilcox não apareceu. Investigações em seus aposentos revelaram que ele havia sido atingido por um tipo obscuro de febre e levado para a casa de sua família na rua Waterman. Ele berrara durante toda a noite, despertando vários outros artistas no prédio, e manifestara desde então apenas alternâncias entre inconsciência e delírio. Meu tio telefonou imediatamente para a família e, daquele momento em diante, acompanhou o caso de perto, ligando frequentemente para o escritório do dr. Thobey, na rua Thayer. A mente febril do jovem, aparentemente, meditava sobre coisas estranhas, e o médico estremeceu enquanto falava delas. Não era apenas uma repetição do que ele havia sonhado anteriormente, mas versavam selvagemente sobre uma coisa gigantesca, de metros de altura
, que alternava entre andar e se arrastar. Em momento algum ele descreveu completamente esse ser, mas ocasionais palavras frenéticas, repetidas pelo dr. Tobey, convenceram o professor de que ele deveria ser idêntico à monstruosidade sem nome que ele procurara retratar em sua escultura. A referência a esse objeto, acrescentou o médico, era invariavelmente um prelúdio da entrega do jovem à letargia. Sua temperatura, curiosamente, não estava muito acima do normal, mas toda a sua condição sugeria mais uma febre verdadeira do que um problema mental.
No dia 2 de abril, por volta das três da tarde, todos os vestígios da doença de Wilcox cessaram repentinamente. Ele se sentou na cama, espantado por se encontrar em casa e completamente ignorante em relação ao que acontecera em sonho ou realidade desde a noite de 22 de março. Depois que o médico declarou que estava bem, ele retornou aos seus aposentos em três dias, no entanto não conseguiu mais ser de algum valor para o professor Angell. Todos os vestígios de sonhos estranhos tinham desaparecido com a sua recuperação, e meu tio não manteve nenhum registro de seus pensamentos noturnos depois de uma semana de relatos inúteis e irrelevantes de visões completamente usuais.
Aqui termina a primeira parte do manuscrito, mas as referências a algumas das anotações dispersas me deram muito o que pensar – tanto, de fato, que apenas o ceticismo arraigado formador de minha filosofia poderia explicar minha contínua desconfiança em relação ao artista. As anotações em questão eram descritivas dos sonhos de várias pessoas cobrindo o mesmo período em que o jovem Wilcox recebeu suas estranhas visitas. Meu tio, ao que parece, instituíra rapidamente um corpo prodigiosamente extenso de investigações entre quase todos os amigos que ele podia questionar, solicitando relatos noturnos de seus sonhos e as datas de quaisquer visões notáveis surgidas naquela época. As atitudes ante seu pedido parecem ter sido variadas, mas ele deve, no mínimo, ter recebido mais respostas do que qualquer homem comum poderia ter tratado sem o auxílio de uma secretária. Essa correspondência original não foi preservada, mas suas anotações formavam um resumo completo e realmente significativo. As pessoas comuns, envolvidas na sociedade e nos negócios locais – o tradicional sal da terra
da Nova Inglaterra – deram uma resposta quase sempre completamente negativa, embora casos esparsos de impressões noturnas inquietas mas sem forma apareçam aqui e ali, sempre entre 23 de março e 2 de abril – o período de delírio do jovem Wilcox. Os homens das ciências foram um pouco menos afetados, embora quatro casos de descrição vaga sugiram vislumbres fugidios de paisagens estranhas, e em um caso mencionou-se um medo de algo sobrenatural.
As respostas mais pertinentes vieram dos artistas e dos poetas, e sei que o pânico teria se espalhado se tivessem sido capazes de comparar suas anotações. Da maneira como estava, faltando-lhes as cartas originais, eu quase suspeitava que o compilador tivesse feito perguntas tendenciosas ou tivesse editado a correspondência para refletir o que ele havia deliberadamente decidido ver. É por isso que continuei a sentir que Wilcox, de algum modo consciente dos antigos dados que meu tio possuíra, quisesse se aproveitar do veterano cientista. As respostas dos estetas contaram uma história perturbadora. De 28 de fevereiro a 2 de abril, grande parte deles sonhara com coisas muito bizarras, sendo a intensidade dos sonhos imensamente mais forte durante o período do delírio do escultor. Mais de um quarto relataram cenas e sons parecidos com os que Wilcox descrevera; e alguns confessaram o medo agudo da gigantesca coisa sem nome visível nos últimos sonhos. Um caso, descrito enfaticamente nas anotações, foi particularmente triste. O sujeito, um arquiteto amplamente conhecido com inclinações para a teosofia e o ocultismo, ficou violentamente insano na data em que o jovem Wilcox adoeceu, vindo a falecer vários meses depois, após gritar incessantemente que fosse salvo de um habitante foragido do inferno. Se meu tio tivesse se referido a esses casos pelo nome, em vez de simplesmente pelo número, eu poderia tentar alguma corroboração e iniciado uma investigação pessoal, mas, da maneira como tudo aconteceu, consegui descobrir apenas alguns deles. Todos, no entanto, comprovavam as anotações na íntegra. Muitas vezes me perguntei se todos os que foram objeto do questionamento do professor pareciam tão confusos quanto esse grupo. É bom que nenhuma explicação jamais chegue até eles.
Os recortes de materiais da imprensa, como eu sugeri, versavam sobre casos de pânico, mania e excentricidade durante o mesmo período. O professor Angell deve ter colocado um departamento apenas para fazer os recortes, pois o número de notas era enorme, e as fontes estavam espalhadas ao redor do mundo. Havia uma sobre um suicídio noturno em Londres, quando um adormecido solitário saltou de uma janela depois de dar um grito horripilante. Também havia uma carta para o editor de um jornal na América do Sul, em que um fanático deduz um futuro terrível de acordo com visões que teve. Um despacho da Califórnia descreve uma colônia de teosofistas vestindo macacões brancos em massa e aguardando alguma realização gloriosa
que nunca chega, enquanto os recortes da Índia falam cautelosamente de graves conflitos entre nativos no final de março. As orgias vodus se
multiplicavam no Haiti, e os postos avançados africanos relatavam murmúrios sinistros. Oficiais americanos nas Filipinas achavam que certas tribos estavam incômodas nessa época, e os policiais de Nova York se viram cercados por levantinos histéricos na noite de 22 para 23 de março. O oeste da Irlanda também estava cheio de boatos e lendas, e um fantástico pintor chamado Ardois-Bonnot exibiu uma obra blasfêmia chamada Dream Landscape
no salão de primavera de Paris em 1926. E tão numerosos eram os problemas registrados em hospícios que somente um milagre poderia ter impedido a classe médica de notar paralelismos estranhos e chegar a conclusões mistificadas. Em geral, havia um monte de estranhos recortes e, dito isso, neste momento mal posso conceber o racionalismo insensível com o qual os pus de lado.
No entanto, fiquei convencido de que o jovem Wilcox sabia dos assuntos mais antigos mencionados pelo professor.
II.
O relato do inspector Legrasse
Os assuntos mais antigos, que haviam tornado o sonho e o baixo-relevo do escultor tão significativos para o meu tio, formavam o tema da segunda metade de seu longo manuscrito. Uma vez antes, parece, o professor Angell tinha visto os contornos infernais daquela monstruosidade sem nome, indagado sobre os hieróglifos desconhecidos, e ouvido as sinistras sílabas que só podem ser traduzidas como Cthulhu
, e tudo isso em uma conexão tão assustadora e horrível, que não é de admirar que ele perseguisse o jovem Wilcox com perguntas e demandas por mais informações.
A experiência anterior ocorrera em 1908, dezessete anos antes, quando a American Archaeological Society realizou seu congresso anual em St. Louis. O professor Angell, por sua autoridade e suas realizações, teve um papel proeminente em todas as deliberações e foi um dos primeiros a ser abordado pelos vários estranhos que aproveitaram o local para fazer perguntas e sugerir problemas a fim de que especialistas pudessem solucioná-los.
O chefe desses forasteiros, foco de interesse de todo o congresso, era um homem de meia-idade e aparência comum que viajara desde Nova Orleans para obter informações especiais que não podiam ser obtidas de nenhuma fonte local. Seu nome era John Raymond Legrasse, e era inspetor da polícia. Viajava com ele o assunto de sua visita: uma estatueta de pedra grotesca, repulsiva e aparentemente muito antiga, cuja origem ele não conseguia determinar. Não pense que o inspetor Legrasse tinha o menor interesse em arqueologia. Pelo contrário, seu desejo de esclarecimento foi motivado por considerações puramente profissionais.
A estatueta, o ídolo, o fetiche ou o que quer que fosse havia sido capturado alguns meses antes nos pântanos arborizados ao sul de Nova Orleans durante uma operação policial em um suposto ritual vodu, e tão singulares e hediondos eram os ritos ligados a ela, que a polícia não podia deixar de perceber que havia encontrado um culto maligno totalmente desconhecido e infinitamente mais diabólico do que o mais obscuro dos círculos vodus africanos. De sua origem, além dos contos erráticos e inacreditáveis extorquidos dos membros capturados, absolutamente nada poderia ser descoberto, daí a ansiedade da polícia por qualquer conhecimento que pudesse ajudá-los a entender o símbolo assustador e, por meio dele, rastrear o culto até sua fonte.
O inspetor Legrasse não estava preparado para o que viria por conta de seu relato. Uma única visão do objeto tinha sido o suficiente para fazer com que os homens da ciência se reunissem num estado de excitação tensa, e eles não perderam tempo em se aglomerar em torno dele para contemplar a figura diminuta cuja total estranheza e ar de antiguidade genuinamente abissal insinuavam tão poderosamente panoramas desconhecidos e antigos. Nenhuma escola de escultura reconhecida tinha criado esse objeto terrível, mas séculos e até milhares de anos pareciam registrados em sua superfície opaca e esverdeada de pedra indefinível.
O objeto, que passava devagar pelas mãos de cada homem para que pudesse ser feito um estudo atento e cuidadoso, tinha entre sete e oito polegadas de altura e um acabamento artístico requintado. Representava um monstro de contornos vagamente antropoides, mas com uma cabeça parecida com um polvo, cujo rosto era uma massa de antenas, de corpo escamoso e aspecto emborrachado, garras prodigiosas nas patas traseiras e dianteiras, além de asas longas e estreitas nas costas. Essa coisa, que parecia instintiva e com uma malignidade assustadora e sobrenatural, tinha uma corpulência um tanto inchada e se agachava maldosamente sobre um bloco ou pedestal retangular coberto de caracteres indecifráveis. As pontas das asas tocavam a parte de trás do bloco e o corpo ocupava o centro, enquanto as garras compridas e curvadas das patas traseiras agarravam-se à borda da frente e se estendiam por um quarto do caminho em direção ao pedestal.
A cabeça do cefalópode estava inclinada para a frente, de modo que as extremidades dos tentáculos faciais roçavam o dorso das enormes patas dianteiras que seguravam os joelhos elevados. O aspecto do todo era anormalmente real, ainda mais temeroso, porque sua fonte era totalmente desconhecida. Sua idade vasta, impressionante e incalculável era inconfundível; contudo, nenhum elo mostrava qualquer tipo de arte que remetesse à juventude da civilização – ou mesmo a qualquer outro momento histórico. O próprio material de que era feito era um mistério, pois a pedra lisa, preto-esverdeada, com suas manchas e estrias douradas ou iridescentes não se assemelhava a nada familiar na geologia ou na mineralogia. Os caracteres ao longo da base eram igualmente desconcertantes; e nenhum membro presente, apesar de representar metade do conhecimento especializado mundial neste campo, poderia ter a menor noção até mesmo de seu parentesco linguístico mais remoto. Os hieróglifos, assim como o tema e o material, pertenciam a algo horrivelmente remoto e distinto da humanidade como a conhecemos; algo assustadoramente sugestivo de ciclos de vida antigos e profanos nos quais nosso mundo e nossas concepções não se aplicam.
E, no entanto, quando os participantes do congresso balançaram a cabeça e confessaram a derrota diante do problema do inspetor, havia um homem no local com um toque de familiaridade bizarro com aquela forma e escrita monstruosas, e, naquele momento, contou o pouco que sabia com alguma timidez. Essa pessoa era o falecido William Channing Webb, professor de antropologia na Universidade de Princeton, um explorador de pouca importância. O professor Webb fora contratado, quarenta e oito anos antes, em uma excursão pela Groenlândia e Islândia, em busca de algumas inscrições rúnicas que ele não conseguiu encontrar e, ainda no alto da costa ocidental da Groenlândia, havia encontrado uma tribo singular ou culto de esquimós degenerados cuja religião, uma forma curiosa de culto ao diabo, o deixou petrificado e gelado com sua deliberada sede de sangue e horror. Era uma fé de que outros esquimós pouco sabiam, e que eles mencionaram com calafrios, dizendo que era proveniente de éons muitíssimo antigos, quando o mundo nem mesmo havia sido criado. Além de ritos inomináveis e sacrifícios humanos, havia certos rituais estranhos dirigidos a um supremo demônio e ancestral, chamado tornasuk; e o professor Webb fez uma transcrição fonética de um velho angekok, ou velho bruxo-sacerdote, expressando os sons em alfabeto romano da melhor maneira possível. Mas agora era de primordial importância o fetiche que esse culto adorava, e em torno do qual dançavam quando a aurora surgia sobre os penhascos de gelo. Era, segundo declarou o professor, um baixo-relevo muito grosseiro de pedra, que compreendia uma imagem medonha e uma inscrição enigmática. E, até onde ele sabia, era um paralelo mal-acabado em todos os aspectos essenciais do artefato discutido naquele congresso.
Esses dados, recebidos com suspense e assombro pelos membros do congresso reunidos, revelaram-se duplamente incitantes para o inspetor Legrasse, e ele começou imediatamente a fazer perguntas ao informante. Tendo copiado em papel um rito oral feito pelos adoradores que