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Artigo

Educação, política e militância


no jesuíta Antonio Vieira
Education, politics and militancy of the jesuit Antonio Vieira

Paulo Meksenas
Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo Abstract
Esta é uma análise do sermão da Sexagé- This is an analysis of the Sexagésima (sixtie-
sima, proferido pelo padre Antonio Vieira th) Sermon issued by Father Antonio Vieira
em 1655, na Capela Real da cidade de in 1655, at the Royal Chapel in Lisbon,
Lisboa, Portugal. Aborda os problemas da Portugal. It looks at the persecution of the
perseguição dos jesuítas na província do Jesuits in the province of Maranhão, in the
Maranhão no Brasil Colônia, porque defen- Brazil colony period, because they defen-
diam as populações indígenas exploradas ded the indigenous populations against 49
economicamente por colonos e proprietá- economic exploitation by the settlers and
rios de terra.Vieira discorre sobre o signi- landowners. Vieira discussed the meaning
ficado da prédica como ação militante. of preaching as militant action. This article
Este artigo trata o referido sermão como um treats this sermon as a classic text of modern
texto clássico da ciência política Moderna political science and establishes its own ter-
e estabelece uma terminologia própria: o minology: the term sermon is defined as a
termo sermão é empregado como parte de part of a political theory and the term pre-
uma teoria política; o termo pregação é en- aching is understood as a guided political
tendido como ação política orientada ou action or militancy, strictly speaking. In this
militância propriamente dita. Neste contex- context, it is possible to question the mea-
to, é possível interrogar-se acerca dos sig- ning of militant education that takes place
nificados de uma educação militante que by means of didactic strategies of sociali-
se dê por meio de estratégias didáticas da zation of theory.
socialização da teoria. Keywords: Education. Political theory. Mi-
Palavras-chave: Educação. Teoria política. litancy.
Militância.

Revista Educação em Questão, Natal, v. 29, n. 15, p. 49-75, maio/ago. 2007


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Falar em Educação no período Brasil Colônia é falar em jesuítas,


que traziam na bagagem a famosa Ratio Studiorum elaborada por Inácio de
Loyola e constituiria o alvo de seu trabalho – a evangelização. As missões
eram entendidas como um pré-requisito, pois com elas criariam as bases
para seu trabalho futuro, nos seus famosos colégios. Dentre os jesuítas, me-
rece referência o padre Antonio Vieira, famoso por sua eloqüência e seus
discursos-sermões. Deles colhe-se um panorama da época em que é possível
encontrar elementos de educação, socialização, teoria política e militância,
entre outros.
O objeto de análise do presente artigo é o Sermão da Sexagésima,
proferido pelo padre Antonio Vieira na Capela Real em Lisboa, Portugal, no
ano de 1655. Neste momento, ele acabava de chegar a Portugal, expulso
do Brasil. Seu maior objetivo era obter apoio político da Coroa Portuguesa
e da alta hierarquia da Igreja Católica em favor do trabalho dos jesuítas na
província colonial do Maranhão. O que encontramos nesta prédica pode ser
visto como continuidade de uma crítica anterior, já contemplada no sermão
Santo Antônio aos Peixes, que denunciava abusos dos grandes proprietários
e extrativistas contra a população indígena e mestiça daquela região. Na
50 prédica da Sexagésima, porém, o padre Antonio Vieira vai além. Ele se re-
fere expressamente a perseguição aos jesuítas que atuavam no Maranhão e,
mais, denunciava a insensibilidade do alto clero e daqueles que viviam con-
fortavelmente na Metrópole. A estes últimos, Vieira se dirige por meio de uma
bela incursão teórica nos conceitos de militância; prática política e ao papel
da teoria na orientação da ação. Antes de procedermos à análise proposta
e razão deste estudo, vale uma referência biográfica.

O padre Antônio Vieira e a sua importância à compreensão


do Brasil
Nascido em Lisboa em 6 de fevereiro de 1608, acompanhou o pai,
que no ano de 1614 se estabeleceu na Bahia, em missão administrativa.
Os Sermões, que o tornaram célebre, são instrumentos da ação e não só do
pensamento. Associados à sua vida política, todos foram escritos com metas
precisas, ora a favor de Portugal e na defesa da Colônia frente às invasões
holandesas, ora contra os maranhenses, que escravizavam índios sob a tute-

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la dos próprios jesuítas, ou, mesmo, contra os administradores corruptos da


Colônia, entre outros.
Jesuíta, ordenou-se sacerdote em 1635. Desde os vinte anos de ida-
de era professor de retórica. Com a Restauração, em 16401, o Pe Antonio
Vieira retornou a Portugal em missão diplomática de adesão da Colônia à
Metrópole. Lá, tornou-se protegido de D. João IV e encarregado de realizar di-
versas missões diplomáticas a favor da burguesia comercial, o que o indispôs
com a Santa Sé – defendeu que D. João IV mantivesse as colônias fora dos
confiscos inquisitoriais. Por outro lado, com a morte do rei e a ascensão de D.
Afonso IV ao torno português, foi perseguido pela Inquisição. Voltou, então,
ao Brasil e instalou-se no Maranhão por quase dez anos, quando, finalmente,
foi julgado e condenado ao silêncio e a oito anos de prisão. Anistiado em
1668, após a destituição de seu desafeto D. Afonso IV, o jesuíta foi a Roma,
ganhou o apoio da rainha Cristina da Suécia, mecenas e recém-convertida
ao catolicismo. Por meio dela, aproximou-se do Papa Clemente X, que o
livrou da perseguição do Santo Ofício. De volta ao Brasil em 1681, aos 73
anos de idade, passou a residir na Bahia, onde preparou os seus Sermões
para publicação, trabalhando neles até a sua morte, em 16972. Cidadão
em época que a palavra cidadania era inexpressiva e cidadão porque pre- 51
gava a necessidade de um poder público profissional contra os desmandos
do poder privado patrimonial, afirmou no Sermão do Bom Ladrão:

A porta por onde legitimamente se entra ao ofício, é só o mereci-


mento; e todo o que não entra pela porta, não só diz Cristo que
é ladrão: Fur est, et latro. E por que é duas vezes ladrão? Uma
vez porque furta o ofício, e outra vez pelo que há-de furtar com
ele. O que entra pela porta, poderá vir a ser ladrão, mas os que
não entram por ela já o são. Uns entram pelo parentesco, outros
pela amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos
pela negociação. E quem negocia não há mister outra prova;
já se sabe que não vai a perder. Agora será ladrão oculto, mas
depois ladrão descoberto, que essa é, como diz S. Jerônimo, a
diferença de fur a latro. (VIEIRA, 1945, p. 73).

No fragmento em citação, Vieira se refere aos administradores do


Brasil Colônia e indica a diferença que pode existir na administração públi-
ca, marcada por uma ordenação meritocrática e profissional – a porta por
onde legitimamente se entra ao ofício é só o merecimento – e a outra, que

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implica a corrupção do serviço público: uns entram pelo parentesco, outros


pela amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negocia-
ção. Ora, não existe atualidade histórica neste Sermão proferido em 1655?
Não foi essa a temática presente em vários dos clássicos das ciências sociais
no Brasil?3 Trata-se, portanto, de compreender as características que fazem
um autor produzir uma obra que transcende o seu tempo porque, justamente,
é uma obra profundamente crítica de seu tempo e, por essa via, tornou-se um
clássico.
Vale insistir: é possível utilizar a obra do jesuíta Antonio Vieira para
compreender aspectos da dinâmica política no Brasil para além da época
em que ele escreveu? A resposta pode vir de situação semelhante e presente
em estudo sobre Rebelais. Escreveu Febvre:

Portanto, eis um problema de método. Que é sempre muito difícil


conhecer um homem, a verdadeira face de um homem: é coisa
que se entende. Mas em relação ao século XVI, seus escritores
e suas opiniões religiosas, realmente se cometem exageros. [...]
Não estaríamos substituindo o seu pensamento pelo nosso e co-
locando atrás das palavras que eles empregavam, sentidos que
não eram os seus? O problema mal colocado pode tornar-se, as-
52 sim, um problema bem colocado. Entretanto, é toda a concepção
do século XVI humanista que se acha em questão. Numa palavra,
é todo um século para se repensar. (FEBVRE, 1978, p. 31).

Devemos aplicar este método à análise dos Sermões de Vieira, re-


digidos no século XVII, para afirmarmos, com Febvre (1978, p. 31), que
é possível “[...] centralizar a investigação sobre um homem, escolhido não
somente porque se torna célebre, mas porque o estado dos documentos que
permitem reconstruir seu pensamento o qualificam de modo especial.” Em
outros termos, podemos compreender o homem no recuo do tempo e, simul-
taneamente, relacionar a sua obra para além do momento específico em que
viveu, porque o autor em questão, mais que um século, personificou um modo
de pensar inédito. Este é um cuidado metodológico fundamental. Assim e na
análise do Sermão da Sexagésima, mais do que buscar pela sua anteriorida-
de no tempo histórico, trata-se de buscar a sua contemporaneidade e explicar
por que algumas questões políticas, elevadas à categoria de problema do
pensamento, são fundamentais à compreensão da modernidade que se tece
hoje no Brasil.

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Ainda há que dizer, de um modo geral, que os Sermões de Antônio


Vieira indicam o talento de seu autor e a facilidade na sua lida com a lingua-
gem, enfatizando a luta dos contrários, pois, quando diz que “[...] o ladrão
que furta para comer, não vai nem leva ao Inferno: os que não só vão, mas
levam, de que eu trato, são os ladrões de maior calibre e de mais alta esfe-
ra.” (VIEIRA, 1945, p. 68), indica que há uma distinção entre aqueles que
eram pobres no Brasil Colônia, e praticavam o furto, e aqueles que se fizeram
ricos por meio do ofício público. Segundo o pregador, os primeiros estariam
livres da pecha de pecadores; os últimos estariam condenados. Esse é um
exemplo da tensão dos contrários e que aparece como elemento estrutural
da sua prédica.
Como homem político, Vieira soube lidar com as contradições pre-
sentes na vida da corte; dos negócios burgueses e do papado. Defendeu
interesses comerciais da Coroa Portuguesa e assim se contrapôs à Igreja,
sendo levado a julgamento pelo Santo Ofício. Em outro momento, questionou
a escravidão, ficando ao lado da Igreja,contrapondo-se à Coroa, que o
obrigou a abandonar o Brasil. Fica a dúvida: Vieira estava mais próximo da
Coroa ou da Igreja? Ou distante dos dois? Ou, ainda, próximo de ambos?
Acerca destas indagações, diz Theodoro: 53
Vieira reproduziu os paradoxos do seu texto no cotidiano, mar-
cado também pela presença dos contrários. Às vezes, estava
comprometido com missões políticas, vivendo em meio ao fausto
da Corte; outras vezes, pregava no sertão brasileiro, convivendo
de perto com o negro e com o indígena [...] Sua conduta foi
ousada em relação aos cristãos-novos. Suas falas, habilmente
elaboradas, não impediram que a acusação encontrasse um
bom motivo para retirá-lo da cena histórica. Seus escritos sobre
o Espírito Profético de Bandarra, e o Quinto Império do Mundo,
enviado ao bispo do Japão para consolar a rainha D. Luíza de
Gusmão pela morte do marido D. João IV, serviram como matéria
de acusação. O texto escrito para consolo da rainha o levou ao
cárcere. (THEODORO, 1992, p. 157).

Veremos, em discussão adiante, que Antônio Vieira elaborou uma


proposta de ação didática e que buscava aliar a socialização do conhe-
cimento a uma prática militante. Fiel a esse projeto, a sua posição emerge
sempre de modo contraditório frente às mais diversas disputas econômicas,

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políticas e religiosas. Entretanto, fica a questão: quais as lições a aprender


de apenas um do cento de sermões que redigiu e proferiu? A análise nos
dirá! Mas, antes, vale repetir que o resultado deste artigo não trata o referido
sermão como uma peça de museu – a ilustrar um cenário longínquo – capaz
de trazer à memória aspectos de uma cultura perdida no tempo. Ao contrário,
nos propusemos tomá-lo como uma teoria política, capaz de conter conceitos
úteis à compreensão histórica do exercício da militância política na moderni-
dade4. Esta é uma proposta pouco comum diante de textos classificados mais
como exemplos de literatura barroca no Brasil colonial e menos como obra
constituinte da ciência política moderna5.
Deve-se notar, entretanto, que Nicolau Maquiavel viveu e escreveu
entre fins do século XV e início do XVI; Thomas Hobbes e John Locke, no sé-
culo XVII, o mesmo de Antonio Vieira. Por que não incluir nesse rol de autores
que fundaram a ciência política moderna a significativa obra do inaciano?
É o que a análise a seguir toma como princípio. Ao leitor caberá dizer se
o intento é válido ou não. Em outros termos, este artigo tratando a obra de
Vieira como um clássico da ciência política moderna. Neste contexto é que
estabelecemos uma terminologia própria: o termo sermão é definido como
54 capítulo ou parte de uma teoria política; o termo pregação é entendido como
ação política orientada ou militância propriamente dita.

O labor da teoria e a sua socialização: contradições da prática


daquele que teoriza
Para que se entenda o cenário em que se situa o Sermão da
Sexagésima do jesuíta Antonio Vieira, é importante informar que a “sexa-
gésima”, no calendário litúrgico da Igreja Católica em uso até o Concílio
Vaticano II (1965), é o segundo domingo antes do primeiro da quaresma,
isto é, aproximadamente 60 dias antes da Páscoa. Vieira problematiza nesta
prédica que, “[...] nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tan-
tos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como
é tão pouco o fruto?” (VIEIRA, 1945, p. 2) E, centrada na antinomia palavra
– boa obra, aborda a moderna contradição entre discurso e ação, ou teoria
e prática. Como o sermonista pensa os pólos dessa contradição? Para tal,
introduz o seu ouvinte/leitor ao modo como entende o conhecimento e, a

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partir daí, como é possível e necessária a tarefa de socialização do conhe-


cimento a ponto de converter-se em trabalho teórico-militante. Nesse ponto,
também aparece a defesa de uma didática. Essa didática é que rompe com
o método jesuítico contido na ratio studiorum. Isto posto, temos condições de
enfrentar o trabalho de análise!
Na primeira parte do Sermão da Sexagésima, o padre Antonio Vieira
estabelece a distinção entre sair para semear e semear sem sair. No primeiro
caso, supõe-se a pregação que divulga uma teoria política para além do
espaço nacional. No segundo, a pregação aparece restrita localmente. Com
isso, admite que toda proposta teórica deve conter universalidade, uma vez
que pode contemplar a ambos.
O ato de pregar é definido como uma ida do pregador ao campo
social, isto é, toda teoria tem valor à medida que o teórico assume a tarefa de
divulgar a teoria; não há como teorizar sem a ação de divulgar o teorizado.
É o que significam as palavras: “[...] diz Cristo que o semeador do evangelho
saiu, porém não diz que tornou, porque o pregador evangélico, os homens
que professam pregar e propagar a fé, é bem que saiam, mas não é bem
que tornem.” (VIEIRA, 1945, p. 2). O tornar ou o voltar do ato de pregar é
definido por Vieira como desistência da ação política e inerente à divulgação 55
da teoria, sendo condenável pelo sermonista.
O ato de pregar também é definido no Sermão da Sexagésima pelo
uso que o jesuíta faz da parábola da semeadura6 e da pergunta pela qual
problematiza a desistência da ação política. Indaga Vieira (1945, p. 3): “E
se esse semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; e se
armassem contra ele os espinhos; e se levantassem contra ele as pedras, e se
lhe fechassem os caminhos, que havia de fazer?” Isto é, o que fazer quando o
contexto histórico é capaz de sufocar a propagação de uma teoria política? E
mais: o que ocorre quando não é apenas uma teoria política que é combatida,
mas quando, e sobretudo, são combatidos os divulgadores de tal teoria? Com
determinação, Vieira responde exemplificando por meio de sua experiência:

Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior.


A maior é a que se tem experimentado na seara aonde fui, e
para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram
lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado,
trigo afogado, trigo comido, e trigo pisado [...] Tudo isto pade-
ceram os semeadores evangélicos da missão do Maranhão de

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doze anos a esta parte. Houve missionários afogados, porque


uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve
missionários comidos, porque a outros os bárbaros na ilha dos
Aroans; houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da
jornada dos Tocantins, mirrados da fome e da doença, onde tal
houve, que andando vinte e dois dias, perdido nas brenhas, ma-
tou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede
se lhe quadra bem o Natun aruit, quia non habebat humorem?
E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre os comidos, ainda
se vejam pisados e perseguidos dos homens: Conculcatum est?
(VIEIRA, 1945, p. 4).

Em outras palavras, ser interrompido não significa que o semeador


ou o teórico tenha desistido do ato da pregação. Apenas, diz Vieira, foi bus-
car forças para continuar o seu trabalho militante, pois, quando o contexto
histórico é capaz de sufocar a propagação de uma teoria política, é melhor
rever-se neste contexto. Mas o que interessa reter dessa prédica é a inversão
que Vieira produz das escrituras: o mais importante não é evangelho, é sim o
evangelista. O que pode soar como heresia aos católicos significa, em nossa
análise, que o teórico é mais importante que a teoria, o que não deixa de ser
56 outra heresia, agora frente ao establishment acadêmico. Mas também nesse
espaço social é possível ver a relação entre teoria e prática, ou do sermão
com a prédica. Para exemplificar, vale, por analogia, a perda da relação
teoria-prática feita por Perry Anderson:

O divórcio estrutural entre teoria e prática inerente à natureza


dos partidos comunistas desta época [refere-se ao pós-guerra]
impediu o trabalho político-intelectual unificado do tipo que de-
finiu o marxismo clássico. O resultado disso foi a reclusão dos
teóricos nas universidades, distantes do proletariado de seus pró-
prios países, e o estreitamento do campo de atuação da teoria,
concentrando-se na filosofia em detrimento da economia e da
política. Esta especialização veio acompanhada de um crescente
hermetismo da linguagem, cujas barreiras técnicas foram fator de
distanciamento das massas. (ANDERSON, 2004, p. 112).

Desse modo, parece que o foco da primeira parte do Sermão da


Sexagésima não é a teoria – como o corpo do discurso –, mas aquele que

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discursa, o sujeito-que-age. Portanto, a ação aparece como mais importante


que a palavra e a palavra-que-é-dita se define como ação. Isso nos remete
ao pensamento binário, característica da retórica: a cisão prática–teoria.
Por outro lado, Vieira parece ir além do pensamento binário (clássico à sua
época) ao lembrar que, escrever sermões também significa agir e que, ao fim
de sua vida, é nesta tarefa que se empenha; em outros termos, o teorizar é,
em si, uma prática:

Dá-me grande exemplo o semeador, porque depois de perder


a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a
quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam
as três partes da vida [que foram momentos da ação política de
Vieira], já que uma parte da idade a levou os espinhos, já que
outra parte a levou as pedras, já que outra parte a levou os ca-
minhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último
quartel da vida [aquela em que Vieira se dedica exclusivamente
a escrever sermões] porque se perderá também? Por que não
dará fruto? Por que não terão os anos o que tem o ano? Por que
não terá também o seu outono a vida? (VIEIRA, 1945, p. 5).

A possibilidade de pensar que a teoria contém ação porque tam- 57


bém é o resultado de uma ação anterior nos lembra Adorno, ao afirmar, na
“Dialética Negativa”, que “[...] a teoria é uma forma de prática.” (ADORNO,
1975, p. 52).
Na segunda parte do sermão da Sexagésima, a prédica apresenta
um problema que constitui a peça central. Trata-se de indagar sobre os efeitos
da palavra – o discurso profético – sobre os ouvintes. Vieira (1945, p. 2)
diz: “Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão
pouco fruto da palavra de Deus?” E ainda: “Nunca na Igreja de Deus houve
tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia
a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto?” Na parte III da Sexagésima,
o seu autor indica três possibilidades de resposta ao problema enunciado:
ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Por
outro lado, antes de indicar o único caminho possível de resolução do proble-
ma, segue-se uma argumentação em torno da possibilidade de a conversão
dar-se mediante o ouvir a palavra e, simultaneamente, utilizá-la como um
mecanismo de auto-entendimento.

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A idéia de conversão em Vieira, em outras palavras, lembra um


pouco, ainda que intuitivamente, o método socrático do ver-se a si mesmo.
Neste sentido, palavra é a mediação entre o ser; o descobrir-se e o novo
agir. Afirmou o sermonista:

Para uma alma se converter por meio de um sermão, há de ha-


ver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina,
persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento,
percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando.
Para um homem se ver a si mesmo são necessárias três coisas:
olhos, espelho e luz. Tem-se espelho e é cego, não se pode ver
por falta de olhos; tem-se espelho e olhos, e é de noite, não se
pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, ha mister espelho
e ha mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão
entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista
são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho7.
O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus
concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os
olhos, que é conhecimento. (VIEIRA, 1945, p. 8).

Ora se o ato de conversão – a tomada de consciência – pressupõe


58 o concurso destes quatro elementos – a teoria (como proposta utópica – a
doutrina); o líder (como pregador – o espelho); o ouvinte (como liderado –
os olhos) e a graça (como escolha ou decisão – a luz) –, Vieira atribui as
dificuldades de realização do projeto utópico a um fator mais relacionado
ao líder (aquele que é espelho, pois reflete a teoria) do que aos demais fato-
res. Mas antes de aprofundarmos o entendimento da relação líder-liderado,
chamamos a atenção para o contexto determinado pelo processo de cons-
cientização política. Isto é, se toda formação da consciência política envolve
o ato de o sujeito circunscrever-se para realizar o conhece-te a ti mesmo, é
igualmente preciso lembrar que a faísca (ou fagulha) que desencadeia este
processo é a ação de um outro (representado, metaforicamente, pelo espe-
lho). Podemos dizer que o alter empurra o ego para dentro de si mesmo.
Neste processo e uma vez que se atinge um dos patamares da conscienti-
zação política, é chegado o momento da graça, isto é, de fazer escolhas,
tomar decisões. Considerando este tema na moderna cotidianidade, Agnes
Heller já afirmou:

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A vida cotidiana está carregada de alternativas, de escolhas.


Essas escolhas podem ser inteiramente indiferentes do ponto de
vista moral (por exemplo, a escolha entre tomar um ônibus cheio
ou esperar o próximo); mas também podem estar moralmente
motivadas (por exemplo, ceder ou não o lugar a uma mulher
de idade). Quanto maior é a importância da moralidade, do
compromisso pessoal, da individualidade e do risco (que vão
sempre juntos) na decisão acerca de uma alternativa dada, tanto
mais intensa é a motivação do homem pela moral, isto é, pelo
humano-genérico, tanto mais facilmente se elevará (através da
moral) à esfera da genericidade. (HELLER, 1998, p. 24).

Em outro texto, complementa a socióloga húngara e aluna de Lúkacs:

As calmas palavras de Rosa Luxemburgo na prisão, quando sua


morte violenta era cada vez mais próxima: Ultra posse, nemo
obligatur transmitem exatamente esse sentido. Ela estava satisfei-
ta com sua vida, embora não tivesse em absoluto motivo algum
para se sentir satisfeita com o estado do mundo que se achava
prestes a deixar, nem, aliás, com o seu próprio fado pessoal.
(HELLER; FEHÉR, 1998, p. 46).

Relacionando esses diferentes autores – Heller e Vieira – , pode-se 59


concluir que as escolhas que fazemos na vida indicam o ponto em que nos
situamos entre o aceitar ou o questionar o mundo, a história. Escolhas mo-
ralmente/politicamente motivadas podem nos levar a situações-limite, como
aquelas vividas por Rosa Luxemburgo; por outro lado, as escolhas – como
atos conscientes – apenas são possíveis se remetidas a um momento anterior,
o da tomada de consciência, – ou da graça/luz –, como quer Vieira. Ora,
para obter-se a graça ou a luz, é necessário doutrina ou teoria (obtida por
ouvir-se a prédica, que contém os elementos do projeto utópico) e o enten-
dimento da doutrina (o impacto desta proposta no ouvinte). Após e somente
após é que se abre espaço para uma escolha consciente. Neste processo,
o jesuíta centra-se naquilo que tomou como problema: o sujeito não obtém a
graça porque o responsável por produzir a fagulha do entendimento [munido
da teoria, é capaz de converter as pessoas para a transformação da história]
não soube realizar a sua prédica, não soube socializar a teoria política junto
às massas.

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A importância do líder em qualquer movimento social também foi as-


sinalada por Marx quando analisou a experiência do governo revolucionário
da Comuna de Paris. Já perto da derrota, os communards buscaram realizar
um acordo com o governo francês para a liberação de prisioneiros dos dois
lados do conflito. Anotou Marx:

A Comuna propôs reiteradas vezes a troca do arcebispo e de


inúmeros sacerdotes por um único prisioneiro, Blanqui, que Thiers
mantinha então em suas garras. E Thiers negou-se obstinadamen-
te. Sabia que com Blanqui dava à Comuna uma cabeça e que
o arcebispo serviria melhor aos seus fins como cadáver. (MARX,
1986, p. 94).

No desenvolvimento dos acontecimentos revolucionários, ou mesmo


antes, no de sua lenta organização e preparação, o papel representado pela
liderança, que sintetiza o projeto utópico, é insubstituível. Aquilo para o que
Vieira parece chamar a atenção em sua prédica é a emergência dos tempos
de crise social marcados pela carência de uma liderança verdadeira.
É possível, a partir destas posições de Vieira, assumidas no sermão
60 da Sexagésima, relacionar o padre, o político e o professor como ofícios de
liderança. Aliás, o próprio Vieira combinou esses três ofícios em diferentes
momentos da sua vida.

Princípios da socialização da teoria presentes na prática


educativa
A Parte IV do Sermão da Sexagésima é dedicada a explicitar aquilo
que compõe a ação da pregação ou, como sintetizamos neste artigo, a prá-
tica da socialização da teoria política a um conjunto de outros militantes. O
sucesso ou o fracasso de uma pregação resulta de um erro que o pregador
ou líder possa vir a cometer, segundo Vieira (1945, p. 12) “[...] frente a cinco
circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz da pessoa.”
Isto é: 1) frente àquele que profere o discurso e assim socializa conhecimento
profético e/ou político em função de um projeto de história; 2) frente ao cor-
pus do conhecimento – as sagradas escrituras ou uma teoria – associado ao
projeto; 3) frente ao tema específico de uma pregação localizada; 4) frente

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à didática com a qual o profeta e/ou o militante atinge o seu público locali-
zado; 5) frente à voz, como a sedução exercida pelo movimento do corpo.
Em síntese, teríamos:

o sujeito do discurso...................................... a pessoa


o conteúdo do conhecimento........................... a ciência
o tema e o conteúdo do discurso..................... a matéria
a didática.................................................... o estilo
o corpo em movimento sonoro......................... a voz

Frente a esse conjunto, qual seria o ponto exato do sucesso ou fra-


casso de uma pregação? Para responder a tal indagação, Vieira estabelece
uma contradição, agora no binômio que põe em dicotomia a palavra toma-
da em si versus a palavra tornada ação. Em outros termos, pode o teórico
da política formular problemas e estabelecer resoluções para os problemas
que formula seguindo apenas a lógica discursiva, inerente ao discurso que 61
profere? Ou deverá formular problemas cuja resolução exija a ação, tanto
de quem prega quanto de quem ouve? Este é o sentido da dicotomia que
se estabelece entre pregar-que-é-falar e pregar-que-é-fazer. Nas palavras do
inaciano:

O pregar, que é falar, faz-se com a boca; o pregar, que é seme-


ar, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para
falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho, que
a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer?
Quer dizer, que de uma palavra nasceram cem palavras? Não.
Quer dizer, que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois
palavras que frutificam obra, vede se podem ser só palavras?
Quis Deus converter o mundo, e o que fez? Mandou ao mundo
seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus enquanto Deus,
é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum, non factum.
O filho de Deus enquanto Deus é Homem, é palavra de Deus e
obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est. (VIEIRA, 1945,
p. 13).

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Artigo

Vieira confronta palavra com obra, para defender que a palavra


que se torna palavra não é importante, mas a que se torna ação. Por outro
lado, o sermonista supera o binarismo proposto e atinge a formulação de
uma contradição quando induz o leitor a pensar: o fato de a ação ser mais
importante do que a palavra não significa que ela, a palavra, não seja tam-
bém um princípio fundador da ação: “[...] o Filho de Deus enquanto Deus,
é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum, non factum. O filho de
Deus enquanto Deus é Homem, é palavra de Deus e obra de Deus juntamen-
te: Verbum caro factum est.” (VIEIRA, 1945, p. 13). De outro modo, mesmo
admitindo que uma teoria política não seja capaz, por si mesma, de produzir
uma revolução, não pode haver revolução sem uma teoria.
Não é possível ignorar, entretanto, que a obra de Vieira é condicio-
nada ao momento em que militava. Assim, a sua definição de ação estava
presa na aparente oposição entre missão salvífica (eminentemente religiosa)
e missão colonizadora (eminentemente político-econômica). Não há como
dissociá-las e ambas aparecem conciliadas como prática catequética com-
binada com prática colonizadora. Pode-se notar, porém, que tanto a visão
catequética quanto a colonizadora tinham bases próprias no inaciano e até
62 apareciam em contradição com as proposições dominantes, oriundas da
Companhia de Jesus, ou a Igreja, de um lado, e dos proprietários locais, de
outro, e da Coroa, ou Estado, de um terceiro. Os conflitos nos quais Vieira
se meteu e os grandes problemas junto à Ordem, junto à Coroa ou aos
dominantes locais, devem-se a esta fusão de mensagem com teoria política
e anúncio salvífico. Postura que, contraditoriamente, também o levou ora a
posicionar-se junto ao explorado (escravos, índios) contra o explorador (os
proprietários na Colônia; a Coroa Portuguesa; a Ordem e o Vaticano), ora
junto ao explorador (Coroa Portuguesa, em específico) contra seus concorren-
tes mercantis (Holanda, Espanha).
Não nos aprofundaremos aqui na compreensão destas posturas
em contradição, pois o objetivo maior deste artigo é oferecer ao leitor uma
discussão do Sermão da Sexagésima como peça integrante de uma teoria
política, a explicar a possibilidade da ação utópica na modernidade. Neste
caso, são os fundamentos do conceito de militância na socialização de uma
teoria que estão sob apreciação do analista.
Ainda, na quarta parte deste Sermão, Vieira aposta na importância
da imagem, ou do modo de atingir os ouvintes fazendo uso da imagem.

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Pensa o jesuíta na prática política que seduz e contagia por ser uma práti-
ca capaz de congregar imagem em si. As práticas políticas devem conter
sempre uma dimensão imagética e isto significa fazer/agir e anunciar/tor-
nar público aquilo que é feito. Não há como envolver um maior número de
pessoas com uma ação política que é feita às escondidas, sorrateiramente.
Ninguém liberta ninguém e ninguém se liberta sorrateiramente. A libertação é
um ato público, daí o valor que Vieira dá aos termos imagem/luz/espelho.
Uma prática política feita às escondidas não tem imagem e não pode, por-
tanto, ser pública e, menos ainda, revolucionária. Isto merece uma citação:

A razão d’isto é, porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se;


as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e
a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos.
No céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de
o amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem.
Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no céu como na
terra? Pois como no céu obriga e necessita a todos a o amarem e
na terra não? A razão é, porque Deus no céu é Deus visto; Deus
na terra é Deus ouvido. No céu entra o conhecimento de Deus à
alma pelos olhos: Vide bimus eum sicut est; na terra entra-lhe o co-
nhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o que entra
pelos ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Vissem os
63
ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do
sermão seriam muito outros. (VEIRA, 1945, p. 14).

Essas considerações também pressupõem a política como um ato


moral, isto é, que ocorre dentro de contexto balizado por normas, conferin-
do legalidade às ações humanas. Vieira não foi o único a associar o ato
político ao ato moral. Antes, Maquiavel, em 1513, escrevia em O Príncipe
que, mesmo “[...] não se podendo considerar ação meritória a matança de
seus concidadãos, trair os amigos, não ter fé, ainda assim pode-se com isso
conquistar o mando, nunca a glória.” (MAQUIAVEL, 1977, p. 51). Assim, a
ausência de moral para garantir a posse do poder, mesmo sem garantir a sua
legitimidade, é criticada por Maquiavel. Por outro lado, vale lembrar que o
florentino estabelece uma fronteira tênue entre o intolerável e o tolerável na re-
lação do ato político com o ato moral. Diz também: “[...] por isso, não pode
um príncipe de prudência, nem deve, guardar a palavra empenhada quando
isso lhe é prejudicial e quando os motivos que o determinaram deixaram
de existir.” (MAQUIAVEL, 1977, p. 99). Assim, são intoleráveis a matança

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e a traição para assegurar o poder; entretanto, o mesmo não vale para a


mentira. Talvez uma das diferenças entre Vieira e Maquiavel seja o princípio
radical com que o primeiro defendeu o ato político como um ato moral, a
ponto de sentir de perto o cotidiano da Inquisição. Daí indagar:

[...] se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm


diante dos olhos as nossas manchas, como hão de conceber
virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina,
se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma
coisa é o semeador e outra o que semeia, como há de fazer
fruto? (VIEIRA, 1945, p. 15).

Claro que Maquiavel vê a tênue linha que se ergue entre a fronteira


do ato político com o ato moral, pois está preocupado com ganhar, manter
ou perder o poder de um principado. Já Vieira quer mais; deseja profunda-
mente a criação de uma nova ordem social e nisso foi além de Maquiavel.
Daí a diferença. Para Vieira, a teoria política aparece como o entendimento
que educa. Para Maquiavel, a teoria aparece como o entendimento que se
conforma ao poder.
64 Avançando na análise, abordaremos o estilo das pregações. A par-
te V do Sermão da Sexagésima propicia ao leitor uma reflexão acerca da
didática que deve envolver a prática de quem socializa uma teoria política.
Escreve:

Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte


que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo é
arte; na musica tudo se faz por compasso, na arquitetura tudo se
faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria
tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem
arte; caia aonde cair. (VIEIRA, 1945, p. 16).

A idéia de arte relaciona-se à capacidade do ser humano de pôr


em prática aquilo que possuía apenas uma existência ideal. Fazer uma arte
também consiste em exprimir e exteriorizar. Assim, uma teoria política produz
uma arte política porque não possui apenas existência ideal, e sim porque
é capaz de contagiar leitores/ouvintes e exteriorizar-se e exprimir-se, enfim,
tornar-se ação. O momento da arte política não é, entretanto, o mesmo que o
da elaboração da teoria política. Aparecem como tempos distintos em Vieira.
Ou, o movimento que elabora um pensamento não é o mesmo que o socia-

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liza. O semear não é assim. É uma arte sem arte; caia aonde cair, isto é,
aquele que teoriza a política deve militar politicamente e isto significa socia-
lizar o conhecimento que produziu, semear. Esta socialização, por sua vez,
possui uma dinâmica diferente daquela presente no ato de teorizar. Socializar
a teoria, insistimos, não é o mesmo que teorizar. No teorizar, o conceito é
que se destaca, é a sua régua e o seu compasso. Na socialização dessa
teoria, ou no semear, o exemplo dado pela boa obra daquele que professa é
o que mais se destaca: é uma arte sem arte porque é um exemplo moral.
Neste ponto encontramos a definição do papel da didática na so-
cialização da teoria ou, nos termos inacianos, do estilo da pregação. Deve,
ainda, essa socialização ser diferente do

[...] estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir os tristes
passos da Escritura, como quem vem ao martírio; uns vêm acor-
rentados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm
torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal ti-
rania? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não
está a cousa no levantar, está no cair. (VEIRA, 1945, p. 16).

A divulgação pelo ensinamento de uma teoria política com auto- 65


ritarismo atinge as pessoas por cima, por alto, que bem levantado está o
conceito. Aqui a teoria manifesta-se por palavras de ordem, que soam como
um martírio para os ouvintes; conceitos acorrentados; arrastados; estirados.
Só atados não vêm, isto é, relacionados entre si não podem vir porque estão
torcidos [são manipulados] e despedaçados [descontextualizados]. O socia-
lizar a teoria política só pode dar-se por democracia, porque aí os conceitos
caem nas pessoas; caem em profundo e em largo. O segredo não está a
cousa no levantar, está no cair – porque caindo está atingindo o nível da
compreensão, da interioridade humana e nesse, apenas nesse nível – o da
interioridade –, é que as pessoas fazem as suas escolhas éticas. No contexto
da socialização e do aprendizado político, as palavras proferidas seguem
um ordenamento. Qual?

Aprendemos do céu o estilo da disposição, e também o das


palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há
de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem
por isso temais que pareça o estilo mais baixo; as estrelas são
muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito

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claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e
tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico
acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante
para sua navegação e o matemático para as suas observações
e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante,
que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas; e o mate-
mático, que tem lido quanto escreveram, não alcança a entender
quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: – estrelas que todos
vêem e muito poucos as medem. (VIEIRA, 1945, p. 18).

Simples assim, a exposição da teoria política deve ser clara aos


ouvintes e o fato de o militante buscar a didática não o transforma em orador
simplista. Ou, em síntese, o socializar uma teoria não significa simplificá-la.
Daí que os autores que tomamos por modernos e clássicos, simultaneamente,
são assim definidos por duas ordens de coisas: 1) inovarem no modo de
pensar de uma época, até capazes de transcender essa época, e 2) exporem
com clareza os seus pensamentos. O contrário destes caracteres aparece ge-
ralmente nos autores que comentam os clássicos. Aqui vale um exemplo com
referência à produção teórica marxista do período de 1924 a 1968. Com
rara exceção, afirma o historiador:
66
A natureza secundária do discurso desenvolvido nessas obras8 –
mais sobre o marxismo do que propriamente marxistas – teve
uma conseqüência adicional. A linguagem em que foram escritas
adquiriu um caráter crescentemente especializado e inacessível.
Durante um período histórico inteiro, a teoria transformou-se numa
disciplina esotérica cuja linguagem altamente técnica dava medi-
da de sua distância da política. (ANDERSON, 2004, p. 73).

Evitando o mérito da classificação das obras que Perry Anderson


cita, aqui vale apenas a exemplificação da possibilidade do distanciamen-
to de textos da ciência política, e mesmo da filosofia, em relação à práxis
política. Este historiador contemporâneo critica a existência de um marxismo
que, na sua opinião, se faz com uma linguagem esotérica. De nossa parte,
acrescentaríamos que Vieira ainda serve nos dias de hoje porque foi capaz
de alertar os teóricos para fato semelhante, e isso no século XVII. Ou seja,
a teoria política e o ato de sua socialização deveriam contar com um estilo
que pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não

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sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. Para tal, é
preciso superar o estilo violento e tirânico que hoje se usa.
Ao abordar a questão dos conteúdos presentes no processo de socia-
lização de uma teoria política, Vieira adverte, no item VI da Sexagésima, que
o sermão há-de ser de uma só cor, há-de ter um só objeto, um só assunto, uma
só matéria, isto é, deve o pregador buscar o estabelecimento da didática no
que se refere ao tema do seu discurso político, porque a extrema variedade
de temas, conceitos, problemas e questões que se propõem ao militante-
ouvinte pode mais confundir que esclarecer. Vieira se explica retomando a
parábola do semeador, que serve de linha mestra ao seu raciocínio:

Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre trigo semeara cen-


teio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre
o milho semeara cevada, que haveria de nascer? – Uma mata
brava, uma confusão verde. Eis o que acontece aos sermões
deste gênero. Como semeiam tanta variedade, não podem co-
lher cousa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo.
(VIEIRA, 1945, p. 19).

Por outro lado, é possível interpretar a questão da matéria do sermão


para além de sua didática e enfatizá-la como uma crítica à postura eclética.
67
Em outros termos, Vieira questiona a validade de uma teoria política que pro-
curar entender um determinado contexto por meio da mistura de várias teorias
políticas. Mais que isso: ao estabelecer essa crítica, estabeleceu os objetivos
que devem perseguir uma proposta doutrinária de conteúdos9. Em síntese, os
objetivos seriam:

• definir um assunto ou tema empírico;


• subdividir um tema de modo a possibilitar o estabelecimento de
distinções contextuais e acerca do mesmo assunto;
• relacionar tema empírico com a teoria, estabelecendo relações,
exemplificando e sanando previamente as possíveis dúvidas dos
ouvintes;
• utilizar os procedimentos até aqui expostos para explicitar o con-
texto localizado, isto, permitir a análise de conjuntura;
• argumentar; convencer; concluir e propor.

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Desse modo, a matéria do sermão e a matéria da pregação pos-


suem forma. O conteúdo segue um método e o método traduz um conteúdo.
Os pólos sermão e pregação, conteúdo e método, são entendidos em contra-
dição, isto é, numa relação de diferença e reciprocidade, simultaneamente.
Lembramos que neste estudo o termo sermão é definido como parte de uma
teoria política e pregação, como ação política orientada. Por meio desses
pólos conceituais, que traduzem uma proposta de prática política, Vieira
assume a clara diferença que existe entre uma atitude pedagógica e uma
atitude militante: uma cousa é expor e outra é pregar; uma ensinar e outra
persuadir. E desta última é que eu falo. Isto é, enquanto a atitude pedagógica
socializa um conhecimento pela exposição e se traduz em uma prática de
ensino, a atitude militante quer ir além e pregar por meio da persuasão.
O que isto pode significar? Segundo Rodrigues Filho (1966, p. 2) é
possível estabelecer uma distinção entre convencer e persuadir. “Convencer
é levar outrem à aceitação de uma evidência; persuadir é induzir outrem a
uma ação ou decisão. À convicção basta o entendimento; à persuasão, é
necessária a emoção e a vontade.” Assim, se a atitude pedagógica se refere
a convencimento, à atitude militante convém a persuasão, porque se trata,
68 neste segundo caso, da realização de escolhas morais com vistas à resolu-
ção da política. Para tal não basta o entendimento; há que ter vontade e uma
vontade animada pelo desejo.
Podemos inferir, com as considerações feitas até o presente momen-
to, que foi sobretudo a prática de Vieira, não sua maneira de ver as coisas
mas, que condicionou a sua concepção própria de mundo. Foi isso que lhe
granjeou os dissabores que teve em vida, seja contra colonizadores no Brasil,
nobreza e burguesia em Portugal, no Vaticano e na própria ordem, da qual
fazia parte. Daí a sua intensa preocupação com a militância. A pregação
como militância.
Quando o leitor entra na parte VII do Sermão da Sexagésima, a
relação entre teoria e militância continua em cena. Aquele que prega deve
possuir uma boa formação intelectual. Ter o domínio da teoria política signi-
fica saber pensar uma prática pela orientação contida nos conceitos dessa
teoria. Por exemplo, aquele que socializa a teoria de Karl Marx deve ser
capaz de pensar a sua própria prática política pelos conceitos marxistas.
Esta é a condição sine qua non para socializar um conhecimento advindo de

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uma teoria política. Só assim essa teoria política se converterá em prática,


também para os ouvintes:

Vede-o no estilo de cada um dos Apóstolos sobre que desceu o


Espírito Santo. Só de cinco temos escrituras; mas a diferença com
que escreveram, como sabem os doutos, é admirável. As penas
todas eram tiradas das asas daquela pomba divina; mas o estilo
tão diverso, tão particular e tão próprio de cada um, que bem
mostra que era seu. Mateus fácil, João misterioso, Pedro grave,
Jacob forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que
cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão
um triunfo. Ajuntai a estes cinco, S. Lucas e S. Matheus, que tam-
bém ali estavam, e achareis o número daqueles sete trovões que
ouviu S. João no Apocalipse: Locuta sunt septem tonitrua voces
suas. Eram trovões que falavam e desarticulavam as vozes, mas
essas vozes eram suas: Voces suas; ‘suas e não alheias’, como
notou Ansberto: Non aliens, sed suas. (VIEIRA, 1945, p. 24).

A título de exemplo, podemos perceber que na história do marxismo


foi justamente isso que ocorreu. Marx era teórico e militante. Lênin considerou
a teoria de Marx, mas a desenvolveu em outras direções e como algo decor-
rente da sua militância. Assim aconteceu com Gramsci, ou com Thompson, 69
mais recentemente. Aqui, a lista de autores seria interminável. Entretanto,
ainda há que considerar que o estilo, a didática, a apresentação, em suma,
a forma da socialização é algo muito próximo ao modo próprio do fazer
militante, na sua relação com a teoria e com a sua experiência na história.
Isto implica o fato de que a militância se faz com preparo, com estudos dis-
ciplinados e envolvimento com a ação política.
Finalmente, Vieira aborda a quinta e última determinação do sermão
na prática daquele que o profere: a voz, ou a entonação. Pelo fato de “[...]
os brados no mundo poderem tanto, bem é que bradem alguma vez os
pregadores.” (1945, p. 26). Em outras palavras, no cerne do trabalho de
militância a socialização de uma teoria política consiste, como o vimos, em
persuadir o outro em direção a uma tomada de decisão. Nisto, não se de-
vem apenas esperar frutos por intermédio da razão; são também necessárias
a emoção e a vontade. Daí que o ato de socialização deva conter a ento-
nação e o volume de voz propício; gestos envolventes; movimento do corpo;
respiração. Tudo na conciliação da razão com a vontade.

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Palavras finais
As partes IX e X do Sermão da Sexagésima são dedicadas à con-
clusão e buscam uma resposta ao problema que a prédica procurou pôr em
questão. Inicialmente, o inaciano inquiriu-se: nunca houve tantas pregações,
nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de
Deus, como é tão pouco o fruto? Após uma minuciosa exposição, abordando
todos os ângulos desta pergunta, Vieira observa:

A causa de não fazerem hoje fruto os pregadores com a palavra


de Deus, nem é a circunstância da pessoa: Qui seminat; nem a
do estilo: seminare; nem a da matéria: sêmen; nem a da ciência:
suum; nem a da voz: Clamabat. Moisés tinha fraca voz; Amós
tinha grosseiro estilo; Salomão multiplicava e variava os assuntos;
Balaão não tinha exemplo de vida; o seu animal não tinha ciên-
cia; e contudo todos estes, falando, persuadiam e convenciam.
Pois se nenhuma destas razões que discorremos, nem todas elas
juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto que
hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que é a
verdadeira causa? (VIEIRA, 1945, p. 26).
70
A indagação persiste! Mesmo após todas as lições que nos foram
anunciadas, o problema ainda se faz persiste! Qual seria, enfim, o esboço
da sua solução? Vieira partiu do pressuposto da possibilidade de uma teoria
política se apresentar como uma verdade10. O que se pode dizer disso? Ao
concordar com esta hipótese e ao admitir a possibilidade de múltipla inter-
pretação do real com a designação de “teoria verdadeira” e “teoria falsa”,
não pretendemos aceitar uma atitude relativista em ciência, segundo a qual,
neste caso, seria suficiente algo ser proferido com método para ser verdade.
Ao contrário, e pensando junto com Vieira, admitimos que há sim uma ciên-
cia que pode ser falsa, ou melhor, existe a possibilidade da emergência de
teorias que se afirmam associadas a práticas de dominação/manipulação
e outras, estas verdadeiras, porque, frente às diversas formas de opressão/
exploração e mesmo, demonstra-se serem relacionadas aos processos de
emancipação da humanidade e visam ao bem comum. Isto, porém, trans-
cende o campo da epistemologia e joga o cientista político na arena das
práticas sociais. Assim, é a história que torna uma teoria política verdadeira

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ou falsa. Por isso, os pesquisadores recorrem ao “tribunal de recursos” da


História, como o faz Thompson. Literalmente, diz o historiador:

Devemos defender não que a realidade histórica se modifique


de época para época, com as modificações na hierarquia de
valores, mas que o ‘significado’ que atribuímos a tal realidade se
modifica dessa maneira [...] não é verdade que a teoria pertença
apenas à esfera da teoria. Toda noção, ou conceito deve surgir
de engajamentos empíricos e por mais abstratos que sejam os
procedimentos de sua auto-interrogação, esta deve ser remetida
a um compromisso com as propriedades determinadas da evi-
dência, e defender seus argumentos ante os juízes vigilantes no
‘tribunal de recursos’ da história. (THOMPSON, 1981, p. 53).

E, assim, afirmamos que elaborar uma teoria significa localizar evi-


dências históricas a respeito do fato estudado e que estas, por si mesmas,
demonstrem o verídico e o inverídico contido em determinadas teorias. Afinal,
ainda é desse modo que lutamos contra a emergência da ciência burguesa:
provando a sua falibilidade.
Pois bem, e supondo que um militante socialize uma teoria verda-
deira, poderá ele ou não, sob o ponto vista que acabamos de definir, ser 71
fiel a essa verdade no momento dessa socialização? Esse é o problema que
Vieira coloca nas duas últimas partes do Sermão da Sexagésima, quando
argumenta:

Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verda-


deiramente de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis
que tantas vezes levantais, essas empresas ao vosso parecer
agudas que prosseguis, achaste-las alguma vez nos Profetas do
Testamento Velho, oi nos Apóstolos e Evangelistas do Testamento
Novo, ou no amor de ambos os Testamentos, Cristo? – É certo
que não, porque desde a primeira palavra do Gênesis até a últi-
ma do Apocalipse, não há cousa em todas as Escrituras. Pois se
nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais
que pregais a palavra de Deus? Mais: Nesses lugares, nesses
textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido
em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem
os Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das
palavras? – Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo
que toam e não pelo que significam, talvez nem pelo que toam.
(VIEIRA, 1945, p. 29).

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Vieira adverte para a possibilidade de o teórico não servir à verdade


contida em sua teoria ou na que diz representar, quando a socializa junto a
um determinado público. Bem nesse caso, por mais capaz e competente que
venha a ser o nosso teórico, a sua ação seria daninha, posto que não estaria
a serviço da verdade como o diz. Hoje, talvez até mais que nos tempos de
Vieira, é comum agir em nome de uma teoria e usá-la mais como um meca-
nismo de dominação do teórico sobre o seu público. Ainda há que se estudar
as condições históricas que conduzem parcelas significativas de intelectuais à
abdicação das possibilidades de militância para se apegarem meramente ao
status da profissão, por meio de pesquisas e publicações que se prestam mais
à ascensão na carreira e, por isso, servem menos à capacidade de crítica.
Quem forma a universidade brasileira hoje? Os intelectuais de classe? As
pessoas teóricas, produtivas de boa vontade e tímidas? Fiquemos, pois, com
as lições do Padre Antonio Vieira.

Notas
1 Dá-se o nome de Restauração ao regresso de Portugal à sua completa independência em relação
72 ao Reino de Castela, depois de sessenta anos de regime de monarquia dualista (1580-1640)
em que as coroas dos dois países couberam ambas a Felipe II, Felipe III e Felipe IV de Castela.
A má administração do governo espanhol e o excesso de tributos que recaíam sobre a burguesia
comercial portuguesa constituíram causas maiores de insatisfação, sendo responsáveis pelo levan-
te do povo lusitano contra a união de Portugal com Castela. Após a restauração, em 1640, D.
João IV assume a Coroa portuguesa. Para aprofundar esta questão, vide: Grande Enciclopédia
Portuguesa e Brasileira (1978).
2 Para aprofundar aspectos da vida e obra de Antônio Vieira ver: Muraro (2003).
3 Só para citar alguns, vide: Faoro (2000), Holanda (1999) e Leal (1997).
4 Entendemos por militância política a prática do sujeito que age orientado por um projeto utópico
de sociedade, no qual a crítica à experiência social em que vive o impulsiona em direção a atitu-
des de questionamento e mesmo de ruptura de determinado contexto social. Acerca do conceito
de militância política, ver Relatório de Pesquisa intitulado A pedagogia da ação política popular:
histórias de militância (2005).
5 A opinião de Antonio Cândido (2000), como sabemos, influenciou e ainda expressa enormemen-
te uma opinião acadêmica. Admite este autor que a produção literária no Brasil em seu período
formativo – que se situa entre o século XVI, com os autos e cantos de Anchieta, e as Academias
da primeira metade do século XVIII, fase em que também congregou as obras de Antonio Vieira –,
não constituiu o que denominou por sistema literário. Em outras palavras, mesmo que incorporasse
Antonio Vieira em sua Formação da Literatura Brasileira, ainda assim o jesuíta seria abordado em
perspectiva puramente literária. Tal perspectiva é, deliberadamente, evitada neste artigo.

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6 Consta no Evangelho de São Matheus, 13, 4 – 9: “Eis que o semeador saiu a semear e, ao
semear, uma parte da semente caiu à beira do caminho e as aves vieram e comeram. Outra parte
caiu em lugares pedregosos, onde não havia muita terra. Logo brotou, porque a terra era pouco
profunda. Mas, ao surgir o sol, queimou-se e, por não ter raiz, secou. Outra ainda caiu entre os
espinhos [...] (falta alguma coisa aqui) [...] cresceram e a abafaram. Outra parte, finalmente,
caiu em terra boa e produziu fruto à razão de cem, sessenta e trinta por um. Quem tem ouvidos,
ouça.”
7 Acerca da metáfora do espelho diz Foucault (1981, p. 33): “Até o século XVII, a semelhança
representou um papel construtor no saber da cultura ocidental.” E assim, o espelho simbolizaria
essa possibilidade de, ao refletir o alter de modo invertido, pensar uma mudança que não
desconsidere aquilo que já está posto. Além disso, n’As palavras e as coisas, Foucault analisa
longamente a pintura Las Meninas, de Velásquez, e chama a atenção do leitor para o espelho
que lá aparece e, a partir daí, tece suas considerações acerca do espelho como possibilidade
de representação.
8 Perry Anderson (2004) cita os livros intitulados sucessivamente Razão e revolução de Marcuse,
A destruição da razão, de Lukács, A lógica como ciência positiva, de Della Volpe, Questão de
método e crítica da razão dialética, de Sartre, Dialética negativa, de Adorno, Ler o capital de
Althusser, e a eles se refere.
9 Nos termos propostos por Vieira (1945, p. 20) significa: “Há-de tomar o pregador uma só ma-
téria, há-de definí-la para que se conheça, há-de dividí-la para que se distinga, há de prová-la
com Escritura [teoria], há de declará-la com a razão, há-de confirmá-la com o exemplo, há-de
amplificá-la com as causa, com os efeitos, com as circuntâncias, com as conveniências que se
hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há-de responder às dúvidas, há-de
satisfazer as dificuldades, há-de impugnar e refutar com toda a força da eloqüência os argumen- 73
tos contrários, e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de
acabar. Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto [...]” prova-la e os
verbos da seqüência deveriam vir acentuados na oxítona.
10 Vale insistir que neste estudo não damos aos termos evangelho; palavra de Deus e Deus, uma
interpretação literal. Na busca de fazer uma leitura de Vieira como um clássico da ciência política
moderna, permitimo-nos fazer dos três termos em questão algumas metáforas: tomamos evangelho
ou escrituras por teoria política, bem como a expressão palavra de Deus. Por fim, tomamos Deus
como a verdade contida em uma teoria que pensa o possível momento de realização histórica
de uma utopia política. Dito isto, fica compreensível – assim esperamos – o raciocínio que se
estabelece após esta nota.

Referências
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Artigo

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Prof. Dr. Paulo Meksenas


Universidade Federal de Santa Catarina
Pesquisador do Núcleo de Estudos de Educação e Sociedade Contemporânea
E-mail | [email protected]

Recebido 26 mar. 2007


Aceito 02 abr. 2007

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