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Quinto Império, messianismos: Padre Antônio Vieira e a cultura

popular tradicional luso-afro-brasileira

Amon Pinho
Universidade Federal de Uberlândia
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

Resumo
Mediante perspectivas desenvolvidas por certos trabalhos de Agostinho da Silva e de Ariano
Suassuna, o artigo trata das potenciais afinidades eletivas entre o pensamento profético-
escatológico do Padre Antônio Vieira e alguns dos aspectos messiânicos da cultura popular
tradicional luso-afro-brasileira, enquanto formas de expressão das culturas letrada e iletrada,
respectivamente. O objetivo central é refletir sobre as afinidades, similaridades ou analogias,
apreendidas pelos autores referidos, considerando como eles constituem, em seus escritos,
cadeias sincrônicas de sentido, nas quais o “erudito” está intimamente relacionado com o
“popular” e vice-versa.

Palavras-chaves: Padre Antônio Vieira; cultura popular tradicional luso-afro-brasileira;


afinidades eletivas; Agostinho da Silva; Ariano Suassuna.

Abstract
The article deals with potential elective affinities between the prophetic-eschatological thinking
of Father Antonio Vieira and some messianic aspects of the luso-afro-brazilian folk culture, as
forms of expression of literate and non-literate cultures, respectively. This is achieved through
the perspectives developped by certain works of Agostinho da Silva and Ariano Suassuna. Its
main purpose is to reflect on the affinities, similarities or analogies observed by the mentioned
authors, taking into consideration how they constitute, in their writings, synchronic chains of
meaning, in which the “erudite” is closely related to the “popular”, and vice versa.

Keywords: Father Antonio Vieira; Luso-afro-brazilian folk culture; elective affinities;


Agostinho da Silva; Ariano Suassuna.

O Quinto Império de que falamos e de que falam as profecias de Daniel é o Império


completo e consumado de Cristo. […] não no primeiro estado de pequeno e incoado, nem
no segundo estado, de maior e incompleto, senão no terceiro e último estado de perfeito,
completo e consumado, porque só então encherá o dito Império toda a terra, dominando
não alguma parte das partes do mundo […], senão todo ele e todas suas partes, assim as
descobertas e conhecidas, como as que ainda estão encobertas e incógnitas.
Antônio Vieira, Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício

Havia ali [em Canudos], como fundo, as crenças religiosas portuguesas da Idade Média,
vamos pôr priscilianismo, joaquimismo, franciscanismo espiritual, e diga quem disso
souber mais do que nós […] o que é ortodoxo e o que é heterodoxo em tudo isto; havia
sebastianismo ou messianismo, como queiram, no sentido de atitude de uma cultura que
recusa submeter-se a outra com mais força; havia cristianismo de evangelho, portanto

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revolucionário; havia crenças africanas, havia mitos indígenas; havia um sincretismo ou


um ecumenismo bem digno de gente de língua portuguesa.
Agostinho da Silva, Dispersos, Barca d’Alva: Educação do Quinto Império

Tanto faz dizer Português como Brasileiro, Quaderna! (…), a história de Dom Sebastião,
O Desejado, transcende os limites puramente individuais e nacionais para ser um Mito
humano: o do homem sempre desejoso de se transcender, alçando-se, pela Aventura, pelo
delírio, pelo risco, pela grandeza, pelo martírio, até o Divino! É por isso que meu livro de
poemas, O Rei e a Coroa de Esmeraldas será uma espécie de sagração mítica da História
de Portugal na História do Brasil.
Ariano Suassuna, Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta

Proponho-me, com estas notas à margem, delinear uma reflexão sobre as afinidades
ou confluências que possam haver entre a obra profético-escatológica do Padre Antônio
Vieira e algumas das manifestações da cultura popular tradicional luso-afro-brasileira,
enquanto registros que respectivamente são de uma cultura letrada, por um lado, e de
uma cultura sertaneja majoritariamente iletrada, por outro. Culturas que sem sombra de
dúvida configuram duas esferas distinguíveis, que igualmente poderíamos denominar
pelos termos latos de cultura erudita e de cultura popular, e sobre as quais procurarei
refletir ancorado na perspectiva basilar de que não constituem compartimentos
homogêneos e estanques, e sim instâncias heterogêneas que incessante e reciprocamente
interagem, comportam circularidades e se interseccionam, inspirando-se,
transformando-se, afirmando-se e/ou negando-se mutuamente. Não o farei, todavia, na
forma de uma aproximação direta aos sujeitos-objetos em causa. Alternativamente, será
meu propósito realizar uma abordagem mediada deles, por meio dos pensamentos e
experiências de vida de autores como Agostinho da Silva, Ariano Suassuna e, a um
nível apenas preambular, Jaime Cortesão, o grande historiador dos “fatores
democráticos na formação de Portugal” (1984), da expansão comercial-marítima e do
“humanismo universalista dos portugueses” (1966).
Ao regressar a Portugal, na segunda metade dos anos cinquenta do século passado,
depois de um prolongado exílio político na França, na Espanha e sobretudo no Brasil,
Cortesão (CORTESÃO et al., 1991, p. 61) concedeu uma entrevista em que declarava
ter a sua ida para o Brasil realizado-se, em 1940, sob o imperativo de circunstâncias
alheias (para não dizer de todo adversas) à sua vontade.

A expatriação [assertava com o peso e a certeza de quem por tanto tempo a


emigração compulsória experienciara] é sempre dolorosa. Mas nenhum país
[observava, não obstante] pode para um português substituir a sua pátria, a não ser o

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Brasil. Depois, viver no Brasil é conhecer, sob certos aspectos, um Portugal mais
português que o da metrópole; um Portugal que foi sonhado e medido pelas
dimensões de um continente e transplantado com a totalidade da seiva originária
para uma terra, um clima e um meio humano que representavam outros tantos e
terríveis problemas de adaptação a resolver. Não é pequena lição e proveito para um
português haver compreendido este fato e transformá-lo em programa de ação.

E “como entender então esse programa?”, perguntou-lhe oportunamente o entrevistador


ou entrevistadora da ocasião, ao que respondeu pronta e esclarecedoramente Cortesão:

O Brasil é hoje uma nação essencialmente americana, com tendências, interesses e


ideais americanistas. Está em plena formação e transformação, com o afluxo
constante de emigrantes de várias nações, alguns, como os italianos, de uma alta
civilização afim da nossa; outros, como os alemães ou os sírios, de uma cultura
muito diferente. Certos setores desta população, ainda tão heterogênea, tendem a
esquecer, quando não a depreciar, as origens portuguesas do Brasil. A todo e
qualquer português cabe, pois, ali, uma ação catalisadora: marcar, pela simples
presença e uma conduta exemplar, a substância, a excelência e o prestígio daquelas
origens. Um escritor e um professor, como tenho sido no Brasil durante muitos anos,
pode e deve, no jornal, no livro ou na cátedra, dentro da livre discussão e sempre
com o devido respeito ao que há de novo e original na sua formação e tendências,
afirmar o que, apesar dos erros inevitáveis, houve de benéfico na ação colonizadora
dos portugueses.

E identificando e definindo de forma explícita e lapidar o propósito de fundo da obra


monumental que produzira ao longo do seu período brasileiro, arrematou sem vacilar:
“Esse foi constantemente o meu programa”.
Mutatis mutandis, podemos afirmar que foi este também, e talvez de forma ainda
mais paradigmática e enfática do que em Cortesão, o programa de Agostinho da Silva, o
filósofo, filólogo, pedagogo e crítico literário português que, à semelhança de Cortesão
e de outros perseguidos políticos do Salazarismo (cf. LEMOS, LEITE, 2003; GOBBI,
FERNANDES, JUNQUEIRA, 2002), foi bater às costas brasileiras em meados do
Novecentos, e que depois de uma experiência de Brasil de quase um quarto de século
afirmava, sempre, ter sido esta experiência a coisa fundamental da sua vida: “Se nunca
tivesse saído de Portugal, nunca teria percebido o que há de essencial na cultura
portuguesa e que me parece estar muito mais vivo, muito mais claro no Brasil” (Silva,
1969).
E qual seria, consoante a perspectiva agostiniana, este aspecto essencial do Portugal
histórico-cultural, ou melhor, daquele seu Portugal a meio caminho da história, da

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mitopoese e da utopia concreta, um Portugal-ideia, que mais vivo estaria no Brasil?1


Numa palavra, poderíamos dizer que teria sido o pendor ou o gosto pela imaginação do
futuro – traço marcante do ethos e da psicologia coletiva luso-brasileira, de acordo com
o prisma antropológico de Agostinho da Silva, e cuja expressão privilegiada se dava, em
primeiro lugar – e ainda segundo o referido prisma –, nas diversas manifestações
messiânicas, proféticas e místicas da cultura popular tradicional portuguesa que, desde
os tempos da colonização, haviam emigrado para o Brasil, ali se adaptando,
miscigenando, diversificando e difundindo.
Como primeira entre tais manifestações, Agostinho da Silva elegia o culto popular
do Espírito Santo, cujas origens, variedade qualitativa e multiplicidade conhecia bem,
não só por meio dos estudos e livros (entre os quais, assinale-se, figuravam os do seu
sogro Jaime Cortesão, a exemplo de Os descobrimentos portugueses), mas igualmente
pelo contato direto com a manifestação viva, e in loco, do culto ele mesmo, tanto em
Portugal quanto no Brasil. Culto este que, perseguido pela Inquisição na metrópole do
século XVI, havia se alastrado como fogo nas terras coloniais de além-mar, contagiando
os adeptos com os seus ideais religiosos e sonhos sociais de renovação, abundância,
justiça, fraternidade e liberdade.
Em segundo lugar, não obstante de forma articulada ao mencionado auto de
Pentecostes, os profetismos, sebastianismos e sonhos redentores de Paraísos terrestres e
Reinos divinos, que incendiaram o Brasil nos séculos XIX e XX – refiro-me, por
exemplo, aos movimentos messiânicos da Serra do Rodeador, do Reino da Pedra
Bonita, de Canudos e do Contestado – e sobreviveram nos imaginários sociais dos
povos do sertão; esses profetismos, sebastianismos e sonhos populares de salvação e
redenção impactaram fortemente a sensibilidade e o pensamento agostinianos,

1
Interessante notar as estreitas conexões entre essa noção do Portugal-ideia, conceito que é de um
Portugal-ideal, e o Padre Antônio Vieira, estabelecidas por Agostinho da Silva em Reflexão à margem da
literatura portuguesa, livro de 1957: “Portugal ideal em que o primeiro momento é marcado pela atuação
de Vieira, cuja grandeza só pode ser plenamente aferida quando se lhe liga a figura à construção desse
Brasil que afinal sonhava como base ou centro de um Quinto Império, para que Portugal provavelmente,
para quem tinha olho de águia, se revelava já impotente. O pregador […] viu como ninguém que era
extraordinariamente difícil que Portugal se recuperasse da crise […]. E então, para Vieira, Portugal passa
a ser não propriamente um determinado país – no qual, no entanto, ainda tenta intervir, supondo que a
força acumulada no Brasil por jamais se ter aceitado no período de 1580 a 1640 qualquer interferência
espanhola poderia ser transferida para Portugal –, mas sim uma ideia a difundir pelo mundo. Dizer-se
Portugal é para Vieira dizer-se não os graus de longitude, a latitude, que ficam entre tal ou tal ponto da
carta, mas o Reino de irmandade, de compreensão, de cooperação que se devia estender pelo universo
como preparação necessária para um futuro Reino de Deus” (Silva, 2000, p. 64-65).

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revolucionando completamente as suas ideias sobre Portugal, sobre o Brasil e o mundo


de língua portuguesa, suas respectivas histórias e tradições.
O ponto, todavia, a destacar é que desta revolução de ordem, a um tempo, pessoal e
intelectual, adveio, pois, a concepção de uma teoria da história de Portugal em cuja
formulação também desempenharam papel crucial o pensamento profético, messiânico e
escatológico do Padre Antônio Vieira, nos termos da História do futuro, e a poesia do
Fernando Pessoa fundamental, que para Agostinho da Silva era o poeta ortônimo da
Mensagem.
Noutros termos, e de forma sumária, o que quero dizer é que este Brasil de meados
do século XX – e aqui temos que especificar, Brasil sobretudo sertanejo –, considerado
por Cortesão e por Agostinho como mais português do que o próprio Portugal, este
Brasil trazia no tecido da sua miscigenada cultura popular luso-afro-brasileira tramas de
tradições e de permanências de longuíssima duração histórica que, ao se cruzarem com
a mundividência de Agostinho da Silva, vieram a ser intimamente relacionadas com as
visões profético-messiânicas vieirina e pessoana, como se estas fossem a sua contraparte
erudita.
Considero este encontro do popular com o erudito – processado, no caso em
questão, segundo o movimento de um determinado pensamento – um fenômeno de
afinidade eletiva. Isto é, um fenômeno que se dá em razão das correspondências,
sincronicidades ou semelhanças que se estabelecem entre as compleições dos elementos
de foro popular e/ou erudito mencionados, não obstante as suas particularidades e
diferenças, não obstante a sua pertença a tempos e espaços distintos.
Dispostos na diacronia de suas respectivas épocas e conjunturas, os ritos e folias
populares, de inspiração franciscana e joaquimita, em fé e em honra do Divino
Paráclito; as quadras de Bandarra, a batalha de Alcácer-Quibir e o espírito de cruzada e
de cavalaria; os messianismos brasileiros da Serra do Rodeador à Guerra do Contestado;
bem como os quinto-imperialismos de Pessoa e Vieira; dispostos, pois, na diacronia de
suas respectivas épocas e conjunturas, estes atores e eventos como que são arrancados e
arrastados da sua cadeia espaçotemporal, e rearticulados, por semelhança, numa cadeia
sincrônica de sentido, instaurada por, e coincidente com, o despertar de Agostinho da
Silva para uma nova consciência de si e de sua terra natal, desde a sua extensa e intensa
experiência brasileira.

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Tão profundas consequências, na obra de Agostinho da Silva, terá tido este


despertar, este redescobrir-se ou reinventar-se a si e à hermenêutica de Portugal, que
dali em diante passou o autor de Um Fernando Pessoa, da Reflexão à margem da
literatura portuguesa e do Ensaio para uma teoria do Brasil (Silva, 2000) a alicerçar o
entendimento que tinha da história e da cultura luso-brasileiras numa constelação de
sentido formada pelo culto popular do Espírito Santo, pela obra profética do Padre
Antônio Vieira e pela poesia “nacionalista” e mística de Fernando Pessoa, constelação,
pois, de caráter visionário, providencialista, escatológico e messiânico, sem a qual, a seu
ver, não se poderia iluminar, ou compreender verdadeiramente, aspectos decisivos das
identidades culturais de Portugal e do Brasil.
Ante semelhante entendimento agostiniano e respectivo alicerce, parece-me
esclarecedor, em primeiro lugar, rememorarmos as palavras insuspeitas do francês Jean
Delumeau (1998, p. 446-447), quando considera:

[...] que Portugal foi atravessado, do século XV ao XVII inclusive, por profundas
correntes milenaristas, sem o conhecimento das quais a história desse país
permanece incompreensível. Pôde-se escrever que, em Portugal, “a persistência do
messianismo animando a mentalidade de um povo, durante um tempo tão longo e
conservando-lhe a mesma expressão, é um fenômeno que, com exceção da raça
judia, não tem equivalente na história”.

E prossegue o autor:

A pesquisa recente mostrou que era preciso dar uma significação escatológica aos
projetos e às expedições além-mar de Manuel, o Venturoso. Ele pensava em uma
espécie de realeza universal e messiânica, o quinto império de Daniel, que veria
Portugal trazer para a religião de Cristo todas as nações não cristãs. Fato particular
em Portugal: as trovas, especialmente as do inspirado sapateiro Bandarra, compostas
entre 1530 e 1546, anunciavam o próximo aparecimento de um rei ainda oculto – o
Encoberto – que seria o salvador do mundo. A esperança do reaparecimento do rei
Sebastião, desaparecido em 1578 por ocasião de uma batalha contra os “mouros” no
Marrocos, inscreve-se nessa tradição.

Ou então recuperarmos, em segundo lugar, o que nos descortina Ariano Suassuna,


quando diz, em relação ao Brasil, algo muito próximo do que Delumeau perspectivou
relativamente a Portugal. Numa formulação enigmática e lapidar, que brota da prosa do
protagonista do Romance d’A Pedra do Reino, Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, eis
o que Ariano (2007, p. 66, destaques meus) pondera: os Reis meus antepassados
revelaram as “duas enormes Pedras castanhas” que formam as torres do meu Castelo
como “as pedras-angulares do nosso Império do Brasil”.

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A despeito de apropriadas pelo discurso ficcional do romancista, as tais duas pedras


castanhas são bem concretas e reais. Meio cilíndricas, meio retangulares, estreitas e
paralelas, alçando-se a uma altura de mais de vinte metros, como a quererem tocar o
céu, e localizadas numa serra áspera e pedregosa do Sertão do Pajeú, na divisa da
Paraíba com Pernambuco, elas foram o palco central no qual se desenrolou um dos mais
trágicos movimentos sebastianistas do catolicismo popular brasileiro, que ficou
conhecido como o Reino Encantado ou o Reino da Pedra Bonita, donde o título do
“romance armorial brasileiro” (Suassuna dixit) que nele se inspirou, tomando-o como
mote a ser glosado em proveito da interpretação que seu autor faz do Brasil, a partir do
que ele mesmo chamou “o meu mundo mítico do sertão” (2007, p. 5).
Mas, como há pouco escrevia, é por intermédio do seu protagonista, Dom Pedro
Dinis Quaderna, que Ariano define a dupla Pedra do Reino como a pedra angular do
“Império do Brasil”, como que com isso querendo dizer que o fundamento-chave do seu
próprio país residia precisamente no significado mítico daquele imenso monumento
pétreo, que a comunidade religiosa do Reino Encantado constituíra como seu principal
objeto de culto, entre os anos de 1836 e 1838. Afinal, segundo acreditava-se então, no
interior daquela dúplice Pedra encontrava-se preso, em razão de um cruel encantamento,
ninguém menos do que El-Rei Dom Sebastião, o qual, por sua vez, desde que
desencantado e liberto, converter-se-ia no salvador e redentor dos fiéis que o cultuavam
naquele pedaço de chão, cumprindo-lhes a profetizada promessa de consagrá-los em
beleza, juventude, felicidade e riqueza, tanto quanto em imortalidade e poder.
Ora, se o cerne da dupla Pedra do Reino – reinventada e ressignificada pelos seus
fiéis enquanto um imponente santuário e uma autêntica catedral – é um encantado Dom
Sebastião, a pedra angular do “Império do Brasil”, consoante a mirada de Suassuna,
outra coisa não é senão o cerne mesmo, cerne semântico, quer daquela quer das demais
formas de sebastianismo que se alastraram pelos sertões brasileiros, povoando o
imaginário de um sem-número de devotos, que, em vez de esperar, resolveram apressar
de vário modo o advento de um Reino messiânico de dádivas, glórias e paz, justiça,
fartura e bem-aventurança, a ser instaurado como Reino neste mundo.
Note-se, porém, que à semelhança do forçoso desencantamento de que Dom
Sebastião, posto que prisioneiro pétreo, deveria ser objeto, de modo a, sendo libertado,
constituir-se em sujeito de toda a libertação, aquele cerne semântico de dimensão

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histórica, antropológica e civilizacional careceria também de ser percebido, reconhecido


e conscientizado – numa palavra, desencoberto – na sua radical condição de pedra
angular, base sólida ou fundamento da cultura e da identidade brasileiras, tal como
pensadas por Suassuna e por seu protagonista, Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, “o
Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão”, que Ariano literalmente
apresenta como “Dom Pedro IV, O Decifrador”, “Rei do Quinto Império e do Quinto
Naipe, Profeta da Igreja Católico-Sertaneja e pretendente ao trono do Império do Brasil”
(2007, p. 35, 151 e 33, respectivamente).
Se em Agostinho da Silva, como vimos, o Padre Antônio Vieira e a sua visão
profético-escatológica da história são elevados a um dos três marcos vitais para uma
compreensão profunda da história e da cultura luso-brasileiras, em Jean Delumeau, ele é
definido como um “verdadeiro milenarista” a quem o sebastianismo, no século XVII,
ficou a dever a sua transformação efetiva em um “milenarismo autêntico” (1998, p.
447). No citado romance de Suassuna, por sua vez, o célebre pregador e prosador
barroco figura como o visionário idealizador do sonho profético e messiânico do Quinto
Império do Brasil (2007, p. 223) que àquele rei encoberto ou encantado das paragens do
sertão cumpre instaurar.
O que todavia me parece o mais importante a destacar nesta obra máxima – que é
tratado, é romance, odisseia e poema, que é epopeia, sátira e apocalipse (QUEIROZ,
2007, p. 15) – do notável escritor, dramaturgo, poeta e iluminogravurista paraibano, é
como ela se constitui na demonstração mais cabal das confluências ou afinidades
eletivas, quando não co-incidências, entre os universos vieirino, por um lado, e
tradicional brasileiro, por outro, de profecias, messianismos, impérios redentores e
escatologias. Nada do mundo luso-brasileiro que pertença a tais temas parece deixar de
estar representado ali: De Antônio Conselheiro e Canudos ao Pentecostes e à Bandeira
do chamado “Divino Espírito Santo do Sertão”, carregada por um “Frade-cangaceiro”,
digo, “Monge-cavaleiro”, passando pela ainda não mencionada Juazeiro do Padre
Cícero, nada mesmo parece ficar de fora dessa grande síntese em que o prisma erudito
de Ariano, vieirina entre tantos outros mentes formado, decompõe a intensa luz e beleza
da cultura popular tradicional luso-afro-brasileira, sem a falsear. Não é o sebastianismo
ali tratado como “o grande assunto nacional que pode servir de base à Obra da Raça”? E
não é Dom Pedro Dinis Quaderna considerado o “Rei e profeta do Quinto Império e da

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Pedra do Reino do Brasil” (SUASSUNA, 2007, p. 214 e 151, respectivamente)? Essa


pedra messiânica que no romance faz as vezes de versão sertaneja daquela outra-mesma
pedra que, no Livro de Daniel (A BÍBLIA, 1993, p. 1681-1684, Dn 2: 1-49), tritura os
pés de argila e ferro da estátua compósita do sonho de Nabucodonosor, a seguir se
alargando inté tomar o inteiro mundo?
Ainda hoje, em pleno século XXI, o mito de Dom Sebastião e o sonho do Quinto
Império permeiam as tradições populares vivas nas práticas e representações coletivas
dos homens e mulheres do sertão brasileiro (e não só). De acordo com uma das atuais
legendas – aqui condensada ao sabor de uma de suas variantes, recriadas amiúde no
embalo do devir da imaginação popular –, Dom Sebastião manifesta-se nas noites de lua
cheia, percorrendo as dunas da Ilha dos Lençóis, no Maranhão, encantado sob a forma
de um touro preto coroado, que traz à testa uma estrela. Ele está à espera de que lhe
atinjam a estrela com um golpe, com uma flecha ou com o golpe de uma flecha. Pois no
dia em que semelhante feito se der, quebrando o encantamento, ver-se-á, desde a Ilha
dos Lençóis, a urbe de São Luís afundar, enquanto o palácio, os tesouros, a corte real, o
exército e a cidade sebastianos emergem das profundezas do mar, no horizonte da Praia
dos Lençóis.
O que, noutras palavras, significa dizer que o sonho messiânico vieirino de um
Reino de Cristo na terra consumado não está nem um pouco esquecido ou abandonado,
tal como também o demonstram os versos do samba-enredo 2008 da Mocidade
Independente de Padre Miguel (MARINO, HENRIQUE, LEAL, 2008), que, como se
verá, pertencem tanto quanto a este quadricentenário e incontornável mestre luso-
brasileiro:

Portugal
Bendito seja... Abençoado pelo Criador
Uma utopia, um destino, um sonho
Místico de grandes realezas
Sonhar... Com glórias um rei desejar
E o sol volta a brilhar
Com a esperança no olhar
Mas desapareceu como um grão de areia no deserto
E encantado renasceu
Em cada ser, em cada coração
Para afastar a cobiça, na busca do ideal
O Quinto Império Universal

Deixa o meu samba te levar

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Quinto Império, messianismos: Padre Antônio Vieira e a cultura popular tradicional luso-afro-brasileira

E a minha estrela te guiar


À Praia dos Lençóis, nas crenças do Maranhão
Tem um castelo que é do Rei Sebastião

[…]
Nas terras tropicais do meu Brasil
A herança, a dor... O mito ressurgiu
Eis o guerreiro sebastiano
O mais ufano dos lusitanos em verde e branco
Que traz no peito uma estrela a brilhar
De Norte a Sul desta nação
Faz a manifestação popular

Minha Mocidade guerreira


Traz a igualdade, justiça e paz
Hoje o Quinto Império é brasileiro, amor
Canta Mocidade, canta

Referências

A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1993.


CORTESÃO, Jaime. O humanismo universalista dos portugueses: a síntese histórica e literária.
Lisboa: Portugália, 1966. (Obras Completas de Jaime Cortesão, vol. 6)
______. Os factores democráticos na formação de Portugal. 4. ed. Lisboa: Livros Horizonte,
1984.
______. Os descobrimentos portugueses, v. I. Apresentação de José Manuel Garcia. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990.
______ et al. Palavras no tempo. Lisboa: Diário de Notícias: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1991. (Volume 2 – Cultura)
DELUMEAU, Jean. Uma travessia do milenarismo ocidental. In: NOVAES, Adauto (Org.). A
descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 441-452.
GOBBI, Márcia Valéria Zamboni; FERNANDES, Maria Lúcia Outeiro; JUNQUEIRA, Renata
Soares (Orgs.). Intelectuais portugueses e a cultura brasileira: depoimentos e estudos. São
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Amon Pinho

VIEIRA, P.e Antônio. Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício, 2 vols. Introdução e notas de
Hernâni Cidade. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957.
______. História do futuro. 2. ed. Introdução e notas por Maria Leonor Carvalhão Buescu.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992.

Minicurrículo

Amon Pinho é pós-doutor em Filosofia pela Universidade de Lisboa (2011) e doutor em


História pela Universidade de São Paulo (2006), onde igualmente se bacharelou, pela
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (1999), e se licenciou, pela
Faculdade de Educação (1999). É Pesquisador Associado e membro integrado do
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL) e Professor Adjunto na
Universidade Federal de Uberlândia, onde coordena o Laboratório de Estudos em
Teorias e Escritas da História (LETEH) e integra o Núcleo de Estudos e Pesquisas em
História Política (NEPHISPO). Atua nas áreas de História e Filosofia, com ênfase em
História Intelectual e Teoria e Filosofia da História. Tem ensaios e artigos publicados
no Brasil e no exterior, e edições coletivas organizadas em torno de pensadores como
Antônio Vieira, Agostinho da Silva e Walter Benjamin.

RCL |Convergência Lusíada n. 30, junho - dezembro de 2013 131

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