Jesus Martin Barbero Dos Meios As Mediac3a7c3b5es

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PRIMEIRA PARTE

POVO E MASSA NA CULTURA:


OS MARCOS DO DEBATE

Os conceitos básicos, dos quais partimos, deixam repentinamente de


ser conceitos para converterem-se em problemas; não problemas analí-
ticos, mas movimentos históricos, que contudo não foram resolvidos.

Raymond Williams

Fazer história dos processos implica fazer história das cate-


gorias com que os analisamos e das palavras com que os nomeamos.
Lenta mas irreversive1nente viemos aprendendo que o discurso não é
um mero instrumento passivo na construção do sentido que tomam
os processos sociais, as estruturas econômicas ou os conflitos políticos.
E que há conceitos tão carregados de opacidade e ambigüidade que só
a sua historicização pode permitir-nos saber de que estamos falando
mais além do que supomos estar dizendo. O que buscaremos nesta
primeira parte será pois des-cobrir, no sentido mais genérico deste
verbo, o movimento de gestação de alguns "conceitos básicos": isto é, o
duplo tecido de significados e referências de que são feitos. Historicizar
os termos em que se formulam os debates é já uma forma de acesso
aos combates, aos conflitos e lutas que atravessam os discursos e as
coisas. Daí que nossa leitura será transversal: mais que perseguir a
coerência de cada concepção, questionará o movimento que a constitui
em posição.
CAPíTUL01
AFIRMAÇÃO E NEGAÇÃO
DO POVO COMO SUJEITO

Em sua" origem" o debate se acha configurado por dois gran-


des movimentos: o que contraditoriamente põe em marcha o mito do
povo na política (os ilustrados) e na cultura (românticos); e o que
fundindo política e cultura afirma a vivência moderna do popular
(anarquistas) ou a nega por sua "superação" no proletariado (marxis-
tas).

O POVO-MITO:
ROMÂNTICOS VERSUS ILUSTRADOS

Historicamente o Romantismo é reação, mas não necessaria-


mente reacionária. Reação de desconcerto e fuga frente às contradições
brutais da nascente sociedade capitalista: é também reação de lucidez
e crítica frente ao racionalismo ilustrado e sua legitimação dos "novos
horrores". Em todo caso não se pode compreender o sentido do popular
na cultura que se gera no movimento romântico, senão por relação ao
sentido que adquire o povo na política tal e como é elaborado pela
Ilustração.
Desde o início da Reforma, e de maneira explícita nos Discorsi
de Maquiavel, vemos organizar-se em torno da figura do povo a busca
de um novo sistema de legitimação do poder político que, nos tratados
de Erasmo, Victoria e Las Casa' se ligará inclusive à defesa pioneira de
certos direitos e valores populares que passando o tempo se chamariam
anticolonialistas. Mas uma ambivalência fundamental atravessa esse
discurso. Maquiavel chega já a pensar que "boas leis surgem dos
tumultos" e que "embora ignorante o povo sabe distinguir a verdade";!
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE

mas, ao mesmo tempo, vê no povo a ameaça mais insidiosa e perma-


econômico se fará evidente o dispositivo central: de inclusão abstrata
nente contra as instituições políticas. E é precisamente essa ameaça
e exclusão concreta, quer dizer, a legitimação das diferenças sociais.
constante de desordem civil que vem da multidão, e a tentação tota-
litária que essa desordem provoca, o que Hobbes converte no centro A invocação do povo legitima o poder da burguesia na
medida exata em que essa invocação articula sua exclusão da cultura.
de sua reflexão sobre o Estado moderno. Reflexão que é sem dúvida
o pensamento-matriz a partir do qual constroem os ilustrados sua E é nesse movimento que se geram as categorias "do culto" e "do
filosofia política. popular". Isto é, do popular como in-culto, do popular designando,
no momento de sua constituição em conceito, um modo específico de
À noção política do povo como instância legitimante do
relação com a totalidade do social: a da negação, a de uma identidade
Governo civil, como gerador da nova soberania, corresponde no âm-
reflexa, a daquele que se constitui não pelo que é mas pelo que lhe falta.
bito da cultura uma idéia radicalmente negativa do popular, que
Definição do povo por exclusão, tanto da riqueza como do "ofício"
sintetiza para os ilustrados tudo o que estes quiseram ver superado,
político e da educação. Quanto à primeira não faltam argumentos.
tudo o que vem varrer a razão: superstição, ignorância e desordem.
Quanto à segunda, Habermas se pergunta: "por que não chama sim-
Contradição que tem a sua fonte na ambigüidade que a figura mesma
plesmente Rousseau opinião à opinião popular soberana; por que a
do povo tem em sua acepção política. Mais que sujeito de um movi-
identifica com a opinião pública"? Porque a recondução rousseauniana
mento histórico, mais que ator social, "o povo" designa no discurso
da soberania real à soberania popular não foi capaz de superar o
ilustrado aquela generalidade que é a condição de possibilidade de uma dilema: a transformação da voluntas em ratio acaba traduzindo o
verdadeira sociedade. Pois é pelo pacto "que o povo é um povo (...)
interesse geral em argumentos privados, esses que delimitam e cons-
verdadeiro fundamento de uma sociedade".2 De modo que o povo é
tituem o "verdadeiro" espaço do político que é o espaço público
fundador da democracia não enquanto população, senão só enquanto
burguês.4 Sobre a relação do povo com a educação - que é o modo
"categoria que permite dar parte, enquanto garantia, do nascimento do
ilustrado de pensar a cultura -, trata-se da relação mais" exterior" das
Estado moderno".3 Uma sociedade moderna não é pensável, segundo três, pois só a partir de fora pode a razão penetrar a imediatez instintiva
Rousseau, se não é constituída a partir da "vontade geral", e por sua da mentalidade popular. À qual nada ajuda, nesse aspecto, a bondade
vez essa vontade é a que constitui o povo como tal. A racionalidade ou essas virtualidades naturais que sobrevivem à corrupção dos costu-
que inaugura o pensamento ilustrado se condensa inteira nesse circuito mes. A relação não poderá ser senão vertical: desde os que possuem
e na contradição que encobre: está contra a tirania em nome da ativamente o conhecimento até os que, ignorantes, isto é, vazios, só
vontade popular mas está contra o povo em nome da razão. Fórmula podem deixar-se satisfazer passivamente. E de um conhecimento ao
que resume o funcionamento da hegemonia. Dado que, fora da "gene- qual em última instância sempre permaneceram estranhos ... exceto em
ralidade", o povo é a necessidade imediata - o contrário da razão que seus aspectos prdticos. Voltaire o dirá sem evasivas: são outros os
pensa a mediação -, não se responderá com leis à descoberta do povo prazeres - diferentes daqueles do saber - e "mais adequados a seu
como produtor de riqueza, mas com filantropia: como fazer para caráter" os que o governo deve buscar para o povo.
sermos justos com suas "necessidades humanas" sem estimular no povo Acusa-se o Romantismo de haver-nos deformado a Idade
as paixões obscuras que o dominam, e sobretudo "essa inveja rancorosa
Média, mas poucos períodos por sua vez foram tão preconceituo-
que se disfarça de igualitarismo". Assim, na passagem do político ao
samente vistos a partir da modernidade quanto este Romantismo,
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DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES POVO E MASSA NA CU •..TURA: OS MARCOS DO DEBATE

reduzido a "escola" literária ou musical, e em definitivo a um adjetivo Com esses três ingredientes o Romantismo constrói um novo
que se confunde com o melodramático e sentimental. Hoje surge outra imaginário no qual pela primeira vez adquire status de cultura o que
leitura histórica que permite valorizar a ruptura que o movimento vem do povo. Mas isto foi por sua vez possível na medida em que a
romântico introduz no espaço da política e da cultura. Mas além das noção mesma de cultura mudou de sentido. Da relação entre a mu-
modas - e sabemos que a indústria cultural pode hoje vender-nos até dança na idéia de cultura e o acesso do popular ao espaço que a nova
isso, pondo em moda uma época histórica - o interesse atual pelo noção recobre, é bom exemplo o fato de que Herder, que em 1778
movimento romântico está ligado à crise de uma concepção da política publica os Volkslieder, nos quais apresenta como autêntica poesia a que
como espaço separado, separado da vida e da cultura, convertida em emerge do povo, "comunidade orgânica", só uns anos depois, em
atividade desapaixonada, um espaço sem sujeitos. 1784, escreve Idéias para uma filosofia da história da humanidade, onde
O românticos chegam por três vias, nem sempre convergen- estabelece a impossibilidade de compreender a complexidade da evo-
tes, à "descoberta" do povo. A da exaltação revolucionária, ou ao lução da humanidade a partir de um só princípio, e tão abstrato como
menos de seus ecos, dotando a chusma, o populacho, de uma imagem a "razão", e a necessidade então de aceitar a existência de uma
em positivo que integra duas idéias: a de uma coletividade que unida pluralidade de culturas, isto é, d,e diferentes modos de configuração da
ganha força, um tipo peculiar de força, e a do herói que se levanta e vida social. A mudança na idéia de cultura vai nesse movimento em
faz frente ao mal. Uma segunda via: o surgimento, e exaltação também, duas direções. Uma que a separa da idéia de civilização num movimen-
do nacionalismo reclamando um substrato cultural e uma "alma" que to de interiorizaçã06 que desloca o acento do resultado exterior para
dê vida à nova unidade política, substrato e alma que estariam no povo o modo específico de configuração, seja de um "sistema de vida" ou
enquanto matriz e origem telúrica. E por último, uma terceira via: a de uma "realidade artística". E outra, que ao re-conhecer a pluralidade
reação contra a Ilustração a partir de duas frentes: a política e a estética. do cultural propõe a exigência de um novo modo de conhecer: o
Reação política contra a fé racionalista e o utilitarismo burguês que em comparativo. Foi a partir dessa nova idéia e do método que aí se origina
nome do progresso têm convertido o presente em um caos, em uma que Herder chega a colocar em pé de igualdade, isto é, em posição de
sociedade desorganizada. Logo: idealização do passado e revalorização relacionáveis, a poesia literária e a poesia dos cantos populares. Daí que
do primitivo e irracional. Mas não se deve esquecer que nessa volta ao a importância histórica da posição romântica neste debate - seja nos
presente o movimento romântico tem não poucos laços com o socia- trabalhos de Herder sobre as canções, dos irmãos Grimm sobre os
lismo utópico e seu protesto contra a ausência de uma verdadeira contos e de Arnim sobre a religiosidade popular - resida na afirmação
sociedade. "Os românticos quiseram viver a imagem do possível que do popular como espaçode criatividade, de atividade eprodução tanto ou
projetava sobre o futuro o socialismo utópico. Opuseram sua socieda- mais que na atribuição a essa poesia ou a esses relatos de uma auten-
de ideal à sociedade real e prática. Justapuseram, à sociedade burguesa ticidade ou uma verdade que já não se acharia em outra parte. Frente
real, a do desprezo e da separação, a da comunidade e da comunhão".5 a tanta crítica fácil e recorrente da concepção romântica do popular,
E reação, ou melhor, rebelião estética, contra a arte real e o classicista na qual se faz tão difícil separar o que vem de uma percepção histórica
princípio de autoridade, revalorizando o sentimento e a experiência do dos processos daquilo que é proposto por um obstinado preconceito
espontâneo como espaço de emergência da subjetividade. racionalista, é necessário afirmar com Cirese que "a posição romântica

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faz progredir definitivamente a idéia de que existe, para além da cultura nomeia a dimensão do tempo na cultura, a relação na ordem das
oficial e hegemônica, outra cultura. A noção romântica do "povo", práticas entre tradição e modernidade, sua oposição e às vezes sua
cuja utilização conceitual é hoje refutada, foi então um instrumento mistura. Volkskunde capta a relação - superposição - entre dois
positivo para o alargamento do horizonte histórico e da concepção extratos ou níveis na configuração "geológica" da sociedade: um exte-
humana".? Segue essa linha a releitura efetuada por Hobsbawm ao rior, superficial, visível, formado pela diversidade, a dispersão e a
estudar as relações entre românticos e revolucionários,8 releitura que inautenticidade, tudo isto resultado das mudanças históricas, e outro
começa a abrir caminho também na América Latina. Assim, Morande interior, situado debaixo, na profundidade e formado pela estabilidade
propõe que, em sua relação com o povo, a renovação do conceito de e pela unidade orgânica da etnia, da raça. Nos usos românticos,
cultura passa por um reestudo do conceito de Nação com a qual os enquanto folklore tenderia a significar antes de tudo a presença perse-
românticos põem em jogo - frente aoracionalismo iluminista - "a guida e ambígua da tradição na modernidade, volk significaria
valorização dos elementos simbólicos presentes na vida humana" e a basicamente. a matriz telúrica da unidade nacional "perdida" e por
partir dos quais "a pergunta pela cultura se converte na pergunta pela recuperar. Entre o povo-tradição e o povo-raça não deixará de haver
sociedade como sujeito".9 Dimensão que adquire hoje um relevo especial no transcurso histórico laços e tramas que os aproximam e confundem,
na hora de pensar a crise política e o sentido dos novos processos de mas de todo modo estes dois imaginários nos permitem diferenciar o
democratização na América Latina e a necessidade então de "uma idealismo histórico, o historicismo que situa no passado a verdade do
aprendizagem na dimensão da estruturação simbólica do mundo, presente, de um racismo-nacionalismo telúrico em sua negação da
assegurando a intersubjetividade das diversas experiências possíveis". 10 história. E frente a estes dois imaginários, o uso romântico de peuple
Uma pista de acesso ao conteúdo da idéia do popular traba- _ de Hugo a Michelet - fala antes de tudo da outra face da sociedade
lhada pelos românticos acha-se na topologia tendencial que assinala o constituída. Campesinato e massas operárias formam o universo do
uso dos nomes e os campos semânticos que a partir daí se constituem. povo enquanto universo de sofrimento e de miséria - "a canalha é o
Três nomes -folk, volk e povo - que, parecendo falar do mesmo, no começo doloroso do povo", dirá Hugo -, esse reverso da sociedade
movimento "traiçoeiro" das traduções, impedem de ver o jogo das que a burguesia oculta e teme porque é a permanente ameaça que ao
diferenças e as contradições entre os diversos imaginários que mobi- assinalar o intolerável do presente indica o sentido do futuro.
lizam.11 De um lado folk e volk serão o ponto de partida do vocábulo A travessia dos imaginários permite compreender melhor o
com que se designará a nova ciência - folklore e volkskunde-, enquan- que a concepção romântica do popular nos impede de pensar, e o que
to peuple não se ligará a um sufixo nobre para engendrar o nome de tem feito até hoje quase sempre aliada e componente ideológico das
um saber, mas sim a uma modalização carregada de sentido político políticas conservadoras. Em primeiro lugar a mistificação na relação
e pejorativo: populismo. E enquanto folk tenderá a recortar-se sobre povo-Nação. Pensado como "alma" ou matriz, o povo se converte em
um topos cronológico, volk o fará sobre um geológico e peuple, sobre entidade não analisável socialmente, não trespassável pelas divisões e
um sociopolítico. Folklore capta antes de tudo um movimento de pelos conflitos, uma entidade abaixo ou acima do movimento do
separação e coexistência entre dois "mundos" culturais: o rural, con- social. O povo-Nação dos românticos conforma uma "comunidade
figurado pela oralidade, as crenças e a arte ingênua, e o urbano, orgânica", isto é, constituída por laços biológicos, telúricos, por laços
configurado pela escritura, a secularização e a arte refinada: quer dizer, naturais, quer dizer, sem história, como seriam a raça e a geografia.
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Analisando a persistência dessa concepção na cultura política dos unicamente por fora - civilizados/bárbaros -, mas também por
populismos, García Canclini resume assim a operação de mistificação: dentro - entre cultura hegemônica e culturas subalternas: "Só através
"os conflitos em meio dos quais se formaram as tradições nacionais são do conceito de 'cultura primitiva' é que se chegou a reconhecer que
esquecidos ou narrados lendariamente, como simples trâmites arcaicos aqueles indivíduos outrora definidos de forma paternalista como' ca-
para configurar instituições e relações sociais que garantam de uma vez madas inferiores dos povos civilizados' possuíam cultura". 15Mas, por
por todas a essência da Nação"Y Em segundo lugar, a ambigüidade sua vez, "o primitivo", designando o selvagem na África ou o popular
da sua idéia de "cultura popular", Se os românticos resgatam a ativi- na Europa, continuará obstinadamente significando, a partir de uma
dade do povo na cultura, no mesmo movimento em que esse fazer concepção evolucionista da diferença cultural dominante até hoje,
cultural é reconhecido, se produz seu seqüestro: a originalidade da aquilo que olha para trás, um estágio talvez admirável porém atrasado
cultura popular residiria essencialmente em sua autonomia, na ausência do desenvolvimento da humanidade e, por essa razão, expropriável por
de contaminação e de comércio com a cultura oficial, hegemônica. E aqueles que já conquistaram o estágio avançado. Assim como o inte-
ao negar a circulação cultural, o realmente negado é o processo histórico resse pelo popular no princípio do século XIX racionaliza uma censura
de formação do popular e o sentido social das diferenças culturais: a política 16 _ idealiza-se o popular, suas canções, seus relatos, sua
exclusão, a cumplicidade, a dominação e a impugnação. E ao ficar sem religiosidade, justo no momento em que o desenvolvimento do capi-
sentido histórico, o que se resgata acaba sendo uma cultura que não talismo na forma do Estado nacional exige sua desaparição -, na
pode olhar senão para o passado, cultura-patrimônio, folclore de scgunda metade do XIX a antropologia introduz-se como disciplina,
arquivo ou de museu nos quais conserva a pureza original de um povo- racionalizando e legitimando a expoliação colonialista.
menino, primitivo. Os românticos acabam assim encontrando-se com
seus adversários, os ilustrados: culturalmente falando, o povo é o POVO E CLASSE:
DO ANARQUISMO AO MARXISMO
passado! Não no mesmo sentido, mas sim em boa parte. Para ambos
o futuro é configurado pelas generalidades, essas abstrações nas quais -4idéia de, povo qUe:geraoQoIIlovimento romântico vai sofrer
a burguesia se encarna, "realizando-as": um Estado que reabsorve a ~IO longo do século XDCumadissoluçãocompleta: pela esquerda, nQ
partir do centro todas as diferenças culturais, já que resultam em' , ~onceito de classesocial, e pe:1adireita, no de massa. Abordaremos esse
obstáculos ao exercício unificado do poder, e uma Nação não analisável duplo deslocamento analisando separadamente os modós em que se
em categorias sociais, não divisível em classes, já que se acha consti- ef(-wa a operação de dissolução.
tuída por laços naturais, de terra e sangue. A transformação do conceito de povo no de classe a partir da
Assim começa a "operação antropológica"13 que une o tra- M'I',lIndametade do século XIX tem um lugar de acesso privilegiado no
balho dos folcloristas com o projeto dos antropólogos que se inicia em debate entre anarquistas e marxistas. Debate em que, enquanto o
Taylor e a transformação conceitual das superstições em "sobrevivên- ;lllarquismo inscreve certos traços da concepção romântica num pro-
cias" - survival- culturais.14 Em um duplo plano. É mediante o ;,'(0 c em algumas práticas revolucionárias, o marxismo pelo contrário
contato com as sociedades primitivas não-européias que a idéia da ef(-tlIará uma ruptura completa com o romântico, recuperando não
diversidade das culturas adquire estatuto científico. De forma que a poucos traços da racionalidade ilustrada. Mas o que tanto anarquistas
ruptura do exclusivismo cultural só se fará operante agora e não I 111110 marxistas efetuarão de início será a ruptura com o culturalismo

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dos românticos ao politizarem a idéia de povo. Politização que signi- como um setor ou uma parte da sociedade vitimada pelo Estado, mas
fica a explicitação da relação do modo de ser do povo com a divisão como "a massa dos deserdados".17 E nesse sentido Piu Rivers pôde
da sociedade em classes, e a historicização dessa relação enquanto ;lf-lrmar que o conceito de povo se converteu na pedra angular da
processo de opressão das classes populares pela aristocracia e pela política anarquista. 18 E nesse caso o sujeito da ação política se impreg-
burguesia. Em síntese, marxistas e anarquistas compartilham de uma nará de alguns traços românticos, só que agora a partir de uma
concepção do popular que tem como base a afirmação da origem ~ignificação diferente: a verdade e a beleza naturais que os românticos
social, estrutural da opressão como dinâmica de conformação da vida descobriram no povo se transformam agora nas "virtudes naturais" que
do povo. Frente aos ilustrados, isso significa que a ignorância e a ~ão seu "instinto de justiça", sua fé na Revolução como único modo
superstição não são meros resíduos, senão efeitos da "miséria social" de conquistar "sua dignidade".
das classes populares, miséria que por sua vez constitui a contraparte A conexão do movimento libertário com os românticos se
vergonhosa e ocultável d<i"nova sociedade". E frente aos românticos, produz sobre vários registros. Há um componente romântico
isso implica descobrir na poesia e na arte populares não uma "alma" indubitável na realização das virtudes justiceiras do povo. Ele é a parte
atemporal, mas as pegadas corporais da história, os gestos da opressão ~ãda sociedade, a que em meio da miséria tem sabido conservar intacta
e da luta, a dinâmica histórica atravessando e fendendo o enganosa- -;I exigência de justiça e a capacidade de luta. Mas igualmente clara será
mente tranqüilo gerar-se da tradição. ;1 ruptura: o que tem sabido conservar o povo não é algo voltado para
A partir daí a concepção do popular nas esquerdas vai se o passado, mas pelo contrário sua capacidade de transformar o presente
dividir profundamente: os anarquistas conservarão o conceito de povo e construir o futuro. Tocamos aí um ponto nevrálgico nas diferenças
porque algo se enuncia nele que não cabe ou não se esgota no de classe entre anarquistas e marxistas: o referente à memória do povo e em
oprimida, e os marxistas rechaçam seu uso teórico por ambíguo e particular à memória de suas lutas.19 Os libertários pensam seus modos
mistificado r substituindo-o pelo de proletariado. de luta em continuidade direta com o longo processo de gestação do
povo. Os marxistas em troca põem em primeiro plano as rupturas nos
Emergência do popular llIodos de luta que vêm exigidas pelas rupturas introduzidas pelo novo
nos movimentos anarquistas
Illodo de produção. A continuidade é para os anarquistas não uma
A concepção anarquista do popular poderia situar-se topo- Illera tática, mas a fonte de sua estratégia: aquela que pensa a ação
graficamente "a meio caminho" entre a afirmação romântica e a política como uma atividade de articulação das diferentes frentes e
negação marxista. Porque, de um lado, para o movimento libertário 11 IOdos de luta que o povo mesmo se dá. Além de implicar na luta todos

o povo se define por seu enfrentamento estrutural e sua luta contra a os que estão sujeitos à opressão enquanto capazes de resistência e
burguesia, mas, de outro, os anarquistas se negam a identificá-l o com illlpngnação, desde as crianças e os velhos, até as mulheres e os
o proletariado no sentido restrito que o termo tem no marxismo. E isso delinqüentes. É a relação da opressão e a resistência à cotidianidade o
porque a relação constitutiva do sujeito social do enfrentamento e da que os libertários estavam pioneiramente relevando ao valorizar do
luta é para os libertários não uma determinada relação com os meios POllto de vista da transformação social "a luta implícita e informal",
.1 luta cotidiana, para a qual o marxismo, segundo Castoriadis, tem
de produção, mas a relação com a opressão em todas as suas formas.
Aí está o núcleo da proposta bakuniniana: entender o proletariado não (Oll~ervado uma especial cegueira.20
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E através da memória das lutas os anarquistas se ligam à a continuidade da arte com a vida, encarnada no projeto de lutar
cultura popular. Não resta dúvida de que a visão dessa cultura está contra tudo o que separe a arte da vida.24Já que mais do que nas obras,
impregnada de uma concepção instrumental - que em nenhum a arte reside é na experiência. E não na de alguns homens especiais, os
momento tratarão de ocultar - mas também é certa a valorização que artistas-gênios, mas até na do homem mais humilde que sabe narrar
aí se produz. Poderíamos dizer que num primeiro momento a ou cantar ou entalhar a madeira. Os anarquistas estão contra a obra-
instrumentalização foi a única forma de valorização possível, já que em prima e os museus, mas não que sejam "terroristas", nem por um
sua ambigüidade o que os libertários percebiam obscura mas certamen- "insano amor de destruição" como pensam seus críticos, mas por
te é que, se a luta política não assumia as expressões e os modos do militarem em favor de uma arte em situação, concepção decorrente da
popular, o próprio povo é que acabaria sendo usado. transposição para o espaço estético do seu conceito político de "ação
O interesse dos anarquistas pela cultura popular, embora direta". De Proudhon e Kropotkin, mas também de T olstói, a estética
tenha sido explícito desde o início, demorou muito tempo a atrair o anarquista retira seu projeto de reconciliar a arte com a sociedade, com
interesse dos historiadores ou dos sociólogos da cultura. Só nos últimos o melhor da sociedade que é a sede de justiça que lateja no povo.
anos tem-se começado a estudar o modo como os anarquistas assumi- Romântica, essa estética proclama uma arte antiautoritária, baseada na
ram as copIas e os romances de folhetim, os evangelhos, a caricatura espontaneidade e na imaginação. Mas anti-romântica, essa mesma
ou a leitura coletiva dos periódicos, quer dizer, a nova idéia que estética não crê numa arte que se limite a expressar a subjetividade
começam a forjar da relação entre povo e cultura. 21 E um primeiro individual: o que faz autêntica uma arte é sua capacidade de expressar
traço-chave dessa imagem é a lúcida percepção da cultura como espaço a voz coletiva. E nesse sentido é "realista", ao colocar a cotidianidade
não só de manipulação, mas de conflito, e a possibilidade então de em relação com o conflito, que a leva a escolher a face visível da
transformar em meios de liberação as diferentes expressões ou práticas experiência, a realidade ftsica da miséria. O que do ponto de vista
culturais. Isso se materializa em uma política cultural que não só plástico e gráfico se traduz em um "impressionismo ácrata",25 próximo
promove instituições de educação operária que canalizem a "fome de ao de Seurat e Pisarro, e no campo literário a um expressionismo à Sué
saber",22 mas em uma sensibilidade especial para a transformação dos ou Gorki.
modelos pedagógicos.23 E em uma percepção da continuidade entre E a partir da estética, mas apontando para muito mais "lon-
leitura coletiva do folhetim e a tradição das vigílias enquanto espaço ge", está a percepção anarquista da nova problemática cultural
de expressão e participação popular. Ou na diferença que estabelecem estabelecida pelas relações entre arte e tecnologia, que constituirá anos
entre a luta contra a religião oficial - um anticlericalismo radical - depois um aspecto fundamental da reflexão de Benjamin. Em um
e o respeito pelas formas e figuras populares do religioso, tanto no nível primeiro momento trata-se da tecnologia como tema, da afirmação do
das crenças quanto no da moral, em que percebem profundas relações (ecnológico no espaço das artes mediante a introdução recorrente das
entre certas virtudes populares e algumas exigências cristãs, que ligam Ilovas ferramentas e aparatos técnicos: as fábricas, as estações de trem,
a libertação de que fala o Evangelho com a libertação social. :1 iluminação elétrica, os postes com os fios do telégrafo. Mas em um
Uma segunda linha de trabalho a resgatar é a preocupação segundo momento "já não se trata só da inclusão de elementos mecâ-
por elaborar uma estética anarquista, e na qual o traço primordial será, lIicos figurativos na esfera da arte, mas que esses temas testemunham
por sua vez, e por paradoxal que possa soar, popular e nietzschiano: ;1 mudança de estrutura social e sugerem novos caminhos ao mesmo
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tempo sociais e plásticos. O mundo da indústria incluía a participação ou dimensões do social se organizam e adquirem seu sentido a partir
artística do homem não só como espectador, mas também como ator, das relações de produção. E toda concepção de luta social que não se
pois o conceito de beleza na obra de arte é substituído pelo desejo de centre aí, que não parta desse centro nem a ele se dirija, é mistificadora
significar".26 E desse desejo participam, sim, as classes populares em c enganosa, desvia e obstaculiza. A certeza teórica e a claridade política
luta contra aquele conceito de arte que acaba excluindo o popular da se reforçarão mutuamente, já que o que o marxismo aspira a transbor-
cultura. Em um comentário ao cinema de Chaplin, intitulado O pobre dar os limites do pensamento e se apresenta como o movimento
e o proletariado, Barthes analisa o sentido dessa transformação da mesmo da história, feito consciência na classe capaz de realizar seu
beleza em desejo de significar e da peculiaridade que isso introduz na sentido.29 Frente à multiplicidade de níveis e planos de luta, frente à
estética anarquista. "Chaplin viu sempre o proletário sob os traços do "ambigüidade" política em que se moviam os anarquistas, o marxismo
pobre, dali surge a força humana de suas representações mas também possuía unidade de critério e um acréscimo de claridade que vinha em
sua ambigüidade política". Em um filme, cuja máxima expressão será última análise a sujeitar a experiência do movimento - que era o
Tempos modernos, é apresentado um proletário "pré-político", homem primordial entre os anarquistas - à análise-confrontação da situação
com fome, torpe, golpeado continuamente pela política, e contudo com a doutrina. O componente racionalista rompia definitivamente
dotado de uma capacidade de significar, de uma força representativa com os resíduos de romanticismo que arrastavam os libertários, e que
imensa, tanta que "sua anarquia, discutível politicamente, talvez repre- lhes impossibilitavam pensar a especificidade do político como um
sente em arte a forma mais eficaz de Revolução" Y terreno demarcável e separado, aquele justamente em que era pensável
c efetuável a resposta à dominação econômica. Nesse contexto teórico
Dissolução do popular no marxismo a idéia de povo não poderia resultar senão retórica e perigosa, e em
Dessa original e ambígua adoção que os anarquistas fazem da Iermos hegelianos superada.
idéia de povo, o marxismo "ortodoxo"28 negará a validade tanto Que implicou todavia, quais foram os custos dessa supera-
teórica como política. Há na reflexão marxista que dá conta da expe- ~:;l0?No plano mais visível e exterior o fato de que durante muitos anos
riência do movimento operário de finais do século XIX e começos do o apelo ao conceito de povo ficará reservado à direita política e
século XX um ponto que a distancia especialmente do pensamento adjacências. Já desde alguns anos a questão, contudo, voltou a ser
libertário: a consciência da novidade radical que o capitalismo produz, proposta a partir da esquerda. Na Europa, através da reescrita da
convertida em expressão do salto qualitativo no modo de luta do história do movimento operário que, como no caso de E. P.
movimento operário. O proletariado se define como classe exclusiva- Thompson,3o propõe explicitamente a impossibilidade histórica de
mente pela contradição antagônica que a constitui no plano das separar taxativamente a luta operária das "lutas plebéias", de modo que
relações de produção: o trabalho frente ao capital. Daí que não se f:tzer a história da classe operária implica necessariamente fazer a
poderá falar de classe trabalhadora senão no capitalismo, nem de ilistória da cultura popular. Ou em A experiência do movimento operá-
movimento operário antes da aparição da grande indústria. A explica- rio, de Castoriadis, em que sem apelar explicitamente para o conceito
ção da opressão e a estratégia da luta se situam assim em um só e único de popular se efetua contudo uma reelaboração do conceito de pro-
plano: o econômico, o da produção. Todos os demais planos ou níveis letariado que faz entrar na reflexão não pouco do que aquele significava

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DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE

no pensamento anarquista de finais de século. Na América Latina a conjunto de atores, espaços e conflitos que são aceitos socialmente mas
questão do povo é retomada com força nos últimos anos ligada tanto que não são interpelados pelos partidos políticos de esquerda". 34Sur-
a uma releitura dos movimentos populistas quanto à revalorização da gem assim atores como a mulher, o jovem, os aposentados, os inválidos
cultura no interior dos projetos de transformação democrática.31 enquanto portadores de reivindicações específicas; espaços como a casa,
Em linhas gerais o que começa a ser proposto como as relações familiares, o seguro social, o hospital, etc. E um segundo
impensável, a partir da negação efetuada pelo marxismo ortodoxo dos tipo de popular não representado, constituído pelas tradições culturais:
conceitos de povo, é em primeiro lugar essa outra "determinação práticas simbólicas da religiosidade popular, formas de conhecimento
objetiva", esse outro pólo da contradição dominante que, segundo E. oriundas de sua experiência, como a medicina, a cosmovisão mágica
Laclau, se situa não no plano das relações de produção, mas no das ou a sabedoria poética, todo o campo das práticas festivas, as romarias,
formações sociais, e que se constitui "no antagonismo que opõe o povo as lendas e, por último, o mundo das culturas indígenas.
ao bloco no poder".32 Esse antagonismo dá lugar a um tipo específico O popular reprimido "se constitui como o conjunto de atores,
de luta, a luta "popular-democrática". Comentando o texro de Laclau, espaços e conflitos que têm sido condenados a subsistir às margens do
E. de Ipola particulariza o terreno e as características dessa luta. Seu social, sujeitos a uma condenação ética e política".35 Atores como as
lugar de exercício se' situa predominantemente no ideológico e no prostitutas, os homossexuais, os al~ólatras, os drogados, os delinqüen-
político: na interpretação-constituição dos sujeitos políticos. Seus con- tes etc.; espaços como os reformatórios, os prostíbulos, os cárceres, os
teúdos históricos são ao mesmo tempo mais concretos- já que variam lugares de espetáculos noturnos etc.
segundo as épocas e as situações - e mais gerais que os conteúdos da Mas a negação do popular não é só temática, não se limita
luta de classes, pois possuem uma continuidade histórica que se expres-
sa "na persistência das tradições populares frente à descontinuidade
a desconhecer ou condenar um determinado tipo de temas ou proble-
mas, mas revela a dificuldade profunda do marxismo para pensar a )
que caracteriza as estruturas de classe",33 Ainda que "superada", a questão da pluralidade de matrizes culturais, a alteridade cultural.
questão do popular não tem deixado sem dúvida de ter uma'represen- Reduzida já em Marx ao problema dos modos pré-capitalistas de
tação no marxismo. Uma análise particularmente lúcida dessa produção, cujo paradigma estaria no "modo de produção asiático" -
representação tem sido realizada por O. Sunkel. Duas seriam suas redução que R. Bahro não duvida em colocar como um problema de
linhas de força: uma idéia do politizável na qual não cabem mais atores ctnocentrism036 -, a questão perde seu sentido e a perspectiva teórica,
populares que à classe trabalhadora, nem mais conflitos que os que quando se introduz, ficará ancorada no evolucionismo primário de
provêm do choque entre capital e trabalho, nem mais espaços que os Morgan. Certo que há em Lenin uma referência explícita à questão a
da fábrica e do sindicato; e uma visão heróica da política, mas não no propósito da análise da formação social soviética, na qual distingue
sentido dos românticos, e sim deixando de fora o mundo da lima cultura dominante burguesa, algumas culturas dominadas - as
cotidianidade e da subjetividade. do campesinato tradicional-, e "elementos de uma cultura democrá-
A partir daí se produz uma dupla operação de negação, ou t ica socialista" no proletariado.37 Mas o afã de referir e explicar a
melhor, esta se configura em dois modos de operação: a não-represen- diferença cultural pela diferença de classe impedirá de se pensar a
tação e a repressão. O popular não-representado "se constitui como o l'specificidade dos conflitos que articula a cultura e dos modos de luta

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POVO E MASSA NA CU!. TURA: OS MARCOS DO DEBATE
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES

que a partir daí se produzem; "o papel das identidades socioculturais Uma questão mais geral, mas que está profundamente ligada
como forças materiais no desenvolvimento' da história". 38E portanto à "negação" do popular no marxismo: a equiparação entre o conceito
sua capacidade de converterem-se em matrizes constitutivas de sujeitos de cultura e o de ideologia. Refiro-me mais uma vez ao marxismo
sociais e políticos, tanto no intercâmbio ou no enfrentamento entre ortodoxo, a esse que tem desconhecido ou deformado o conceito
formações sociais diferentes como no interior de uma formação social. gramsciano de hegemonia "recuperando-o" no interior de uma con-
Em última instância, trata-se da impossibilidade de remeter todos os cepção que continua sendo dominante. Foi no debate dos anos 3041
conflitos a uma só contradição e de analisá-los a partir de uma só 'que começaram a se fazer patentes o significado e os efeitos dessa
lógica: a lógica interna à luta de classes. O que não significa que a luta equiparação. A impossibilidade de assumir e dar conta da complexi-
de classes não atravesse, e em determinados casos articule, as outras. dade e da riqueza cultural desse momento se materializará na tendência
O problema é pensá-Ia como expressão de uma pretendida "unidade a idealizar a "cultura proletária"42 e a encarar como decadente a pro-
da história". Para Marx isso não oferece dúvida, e o livro I d' O Capital dução cultural das vanguardas. A crítica dessa equiparação tem hoje já
afirma, precisamente para justificar a destruição da sociedade atrasada: bem delimitados os impasses, tanto o que se situa na predominância
"O capitalismo industrial funda a história mundial ao fazer cada nação do sentido negativo - falsificação da realidade - sobre os outros
e cada indivíduo e dependentes, para a satisfação de suas 'necessidades, sentidos e efeitos da ideologia - concepção de mundo, interpelação
do mundo inteiro". Mas a unificação imposta pelo capital não pode dos sujeitos43 - como o que resulta de pensar as relações de produção
todavia escapar à ruptura da unidade de sentido. O capitalismo pode como um espaço exterior aos processos de constituição do sentido.44
destruir culturas mas não pode esgotar a verdade histórica que existe Por isso me parece fundamental retomar a questão a partir das relações
nelas. E o marxismo não escapa a essa lógica quando pretende pensar entre cultura e modernidade. Como demonstrou Rezsler, a tese da
decadência da arte moderna não fala só da estreiteza de um marxismo
as sociedades "primitivas" do passado ou as outras culturas do presente
a partir de uma particular configuração da vida social erigida em vulgar, mas de um impasse de fundo na teoria marxista ortodoxa.
modelo. Para um etnólogo como P. Clastres, essa "pretensão" a ditar Claro que a argumentação de Idanov não é a de Lukács, mas o
a verdade de todas as formações sociais que balizam a história levou significado da tese e os efeitos políticos foram os mesmos. Em ambos ~ *'
o marxismo a "reduzir-se a si mesmo reduzindo a espessura do social o que se condena como a-social por ser individualista, ou anti-social
a um só parâmetro", pois com essa medida o que se produz é "a por ser burguês, é o experimentalismo: a capacidade de experimentar e
supressão pura e simples da sociedade primitiva como sociedade espe- a partir daí questionar as "pretensões de realidade" que encobria o
cífica".39 Estudando o tratamento que a estética marxista dá às artes realismo. Realismo que é assumido como o gosto profundo e o modo
plásticas das culturas dominadas, Mirko Lauer explicita as duas ope- de expressão das classes populares. O paradoxo toca fundo: a invocação
rações em que se traduz o desconhecimento da alteridade cultural: do povo é só para opor o conservadorismo de seu gosto, "seu bom
"indiferença generalizada" frente à especificidade das culturas margi- sentido", à revolução que está transformando a arte. E a continuidade
nais, e "incapacidade para apreender essas culturas em seu duplo que se reclama com o passado é "a continuidade com os valores
caráter de dominadas e de possuidoras de uma existência positiva a ser culturais da época burguesa solapados pelos movimentos modernis-
desenvolvida".40 tas".45 Apela-se ao povo no sentido mais populista e mais negativa-

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DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES

mente romântico: para exaltar como critérios básicos da "verdadeira" CAPíTULO 2


NEM POVO NEM CLASSES:
obra de arte a simplicidade e compreensibilidade por parte das massas. A SOCIEDADE DE MASSAS
Em outro nível certamente, mas em uma direção bem próxima, acha-
se a condenação que faz Lukács da modernidade por dissolver a forma
e misturar, confundir os gêneros. Os que estão próximos da apocalí-
ptica e conservadora teoria da decadência cultural na sociedade de
massas, que vamos estudar adiante, configuram uma estranha coinci-
dência.
A idéia de uma "sociedade de massas" é bem mais velha do
que costumam contar os manuais para estudiosos da comunicação.
Obstinados em fazer da tecnologia a causa necessária e suficiente da
nova sociedade - e decerto da nova cultura -, a maioria desses
manuais coloca o surgimento da teoria da sociedade de massas entre
os anos 30/40, desconhecendo as matrizes históricas, sociais e políticas
de um conceito que em 1930 tinha já quase um século de vida, e
pretendendo compreender a relação massas/cultura sem a mais míni-
ma perspectiva histórica sobre o surgimento social das massas. Para
começar a contar essa história, que é a única maneira de fazer frente
à fascinação produzida pelo discurso dos tecnólogos da mediação de
massa, talvez seja boa uma imagem: o acionamento durante o século
XIX da teoria da sociedade-massa é o de um movimento que vai do j
medo à decepção e daí ao pessimismo, mas conservando o asco. Em
seu ponto de partida - a desencantada reflexão de liberais franceses
e ingleses no convulsivo período pós-napoleônico que vai da restaura-
çãoà Revolução de 1848 - fica bem difícil separar o que há de
decepção pelo caos social que tem trazido o "progresso" do medo das
perigosas massas que conformam as classes trabalhadoras.46
Até 1835 começa a gerar-se uma concepção nova do papel
e do lugar das multidões na sociedade, concepção que guarda sem
dúvida, em suas dobras, rastros evidentes do "medo das turbas" e do
desprezo que as minorias aristocráticas sentem pelo "sórdido povo".
Os efeitos da industrialização capitalista sobre o quadro de vida das
classes populares são visíveis. E vão mais longe do que as burguesias
talvez esperassem. É toda a trama social que se vê afetada, transbordada
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