Ambienta à à o

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 7

1

Ambientação
Introdução aos Estudos Literários II – Prof. Edu Teruki Otsuka

PAMUK, Orham. O romancista ingênuo e o sentimental. Trad. Hildegard Feist. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. [Trecho do cap. 4, “Palavras, quadros, objetos”, p. 78-82]

Orham Pamuk. “Palavras, quadros, objetos”

[...] A paisagem a que me refiro nestas conferências é a paisagem de cidades, ruas,


lojas, vitrines, salas, interiores, móveis e objetos do cotidiano, e não o tipo de paisagem que
Stendhal apresenta em O vermelho e o negro – uma cidadezinha e seus habitantes vistos
pelos olhos do leitor:

A cidadezinha de Verrières pode ser considerada uma das mais bonitas do


Franco Condado. Suas casas brancas de teto pontiagudo e telhas vermelhas
espraiam-se pela encosta de uma colina cujas menores sinuosidades são
marcadas por grupos de vigorosos castanheiros. O rio Doubs corre a algumas
dezenas de metros abaixo das fortificações, construídas em tempos antigos pelos
espanhóis e agora em ruínas.
[Tradução de Raquel Prado, Cosac Naify, São Paulo, 2006. (N. E.)]

É impossível não ver uma relação entre os grandes progressos da arte do romance em
meados do século XIX – quando esse gênero se tornou a forma literária dominante na
Europa – e o súbito crescimento da riqueza europeia, que, no mesmo período, resultou numa
verdadeira enxurrada de bens materiais nas cidades e nas casas: uma abundância e uma
variedade de objetos sem precedentes no mundo ocidental. Principalmente na vida urbana, a
grande riqueza gerada pela Revolução Industrial cercou as pessoas de novos artefatos, bens
de consumo, objetos de arte, roupas, tecidos, quadros, bibelôs e bricabraque. Os jornais em
que esses objetos eram descritos, as mudanças na vida e no gosto das classes que deles se
serviam, os anúncios incontáveis, as diversas sinalizações na paisagem da cidade tornaram-
se uma parte importante e colorida da cultura ocidental. Toda essa profusão visual, esse
excesso de objetos, essa frenética atividade urbana baniram os estilos de vida mais simples
que pareciam tão corretos nos bons velhos tempos. Agora as pessoas sentiam que tinham
perdido de vista o quadro maior na mixórdia de detalhes e suspeitavam que o significado
estava oculto nas sombras. Adequando-se aos novos modos de vida, o moderno citadino
descobria nesses objetos que enriqueciam a vida parte do significado que buscava. O lugar
de um indivíduo na sociedade e no romance era determinado, em parte, por sua casa, seus
bens, suas roupas, seus aposentos, sua mobília, seu bricabraque. Em Sylvie, romance poético
e muito visual publicado em 1853, Nerval diz que, na época, muita gente colecionava
curiosidades para decorar apartamentos em prédios antigos.
Balzac foi o primeiro escritor a incorporar à paisagem de seus romances o apetite
social e pessoal por objetos e bricabraque. Tanto O vermelho e o negro, de Stendhal, como O
pai Goriot, de Balzac, escrito mais ou menos na mesma época, começam com uma descrição
2

exterior (ou seja, do ponto de vista do leitor) do cenário em que transcorrerão os


acontecimentos. Em Stendhal, o lugar em que entramos pouco a pouco é uma pequena e
pitoresca cidade incrustada num vale, porém em Balzac o cenário é muito diferente: ele
apresenta uma descrição detalhada de uma pensão, começando com a portinhola e o jardim.
Há poltronas e cadeiras estofadas com crina, uma mesa com tampo de mármore de Sainte-
Anne, sobre a qual repousa um serviço de chá branco ornado por um filete dourado já meio
apagado (o tipo de aparelho de chá "que se vê em toda parte, hoje em dia": Balzac acrescenta
com desdém, deixando mais claro o que quer dizer), dois vasos de flores artificiais
aprisionadas em campânulas ao lado de um vulgar relógio de mármore azulado, um odor de
comida no ar, garrafas manchadas, louça grosseira de borda azul, um barômetro, algumas
gravuras ruins o bastante para tirar o apetite, cujas molduras em madeira envernizada são
complementadas por um filete dourado, um cartucho de tartaruga incrustado com cobre, um
calefator verde, lamparinas cobertas de poeira e óleo, uma mesa comprida revestida de um
oleado tão ensebado que um pensionista gozador ali pode escrever o nome com a unha,
cadeiras com o encosto quebrado, capachos lastimáveis sempre desfiando sem se acabar por
completo e aquecedores para os pés caindo aos pedaços, com as aberturas alargadas pelo
uso, as dobradiças quebradas, a madeira carbonizada. Lemos esses detalhes não só como
uma descrição dos objetos na moradia dos protagonistas, mas também como uma extensão
do caráter de madame Vauquer, a dona da pensão ("Toda a sua pessoa explica a pensão,
assim como a pensão implica sua pessoa").
Para Balzac, descrever objetos e interiores era uma forma de permitir que o leitor
deduzisse a posição social e o perfil psicológico dos protagonistas do romance, assim como
um detetive segue pistas para descobrir a identidade de um criminoso. Em L’Éducation
sentimentale, que Flaubert (um romancista muito mais sutil) publicou 35 anos depois que
Balzac escreveu Père Goriot, os protagonistas se conhecem e se julgam mutuamente com os
métodos de Balzac – observando seus bens, suas roupas, o bricabraque que adorna suas
salas: "[Mademoiselle Vatnaz] tirou as luvas e examinou os móveis e os bibelôs do aposento.
[...] e congratulou [Frédéric] por seu bom gosto. [...] Trazia punhos de renda, e o corpete de
seu vestido verde era enfeitado de passamanarias, como o casaco de um hussardo. Seu
chapéu de tule preto, com a aba inclinada, escondia-lhe parte da testa [...]".
[...]
Vejamos o romance francês moderno. Coisas materiais que, em Balzac, revelam a
posição social do herói podem servir, em Flaubert, para indicar qualidades mais sutis, como
gosto pessoal e caráter. Em Zola, podem sinalizar uma exibição de objetividade autoral. Zola
é o tipo de escritor que pensa: "Oh, Anna está lendo – então, enquanto ela lê, vou descrever
um pouco o compartimento": As mesmas coisas materiais (embora talvez não sejam mais as
mesmas coisas) podem tornar-se, em Proust, um estímulo para evocar lembranças do
passado; em Sartre, um sintoma da náusea da existência; e em Robbe-Grillet, entidades
misteriosas e brincalhonas, independentes de seres humanos. Em Georges Perec, objetos são
mercadorias insípidas cuja poesia só pode ser vista se elas são consideradas junto com suas
marcas e dispostas em séries, em listas. Todas essas maneiras de ver são persuasivas,
dependendo do contexto. Contudo, o ponto mais importante é que os objetos são partes
essenciais dos incontáveis momentos distintos do romance, bem como emblemas ou sinais
desses momentos.
3

Nossa mente executa tarefas simultâneas, quando lemos um romance. Por um lado,
olhamos para o mundo do ponto de vista dos protagonistas e nos identificamos com as
emoções das personagens. Por outro lado, mentalmente agrupamos os objetos em torno dos
protagonistas e relacionamos com suas emoções os detalhes da paisagem descrita. Escrever
um romance envolve combinar as emoções e pensamentos de cada protagonista com os
objetos que o rodeiam e depois, com uma hábil penada, juntá-los numa frase. Ao contrário
do leitor ingênuo, não separamos os eventos e os objetos, o drama e as descrições. Nós os
vemos como um todo integrado. A abordagem textual do leitor que exclama: "Estou saltando
as descrições!" evidentemente é ingênua – mas o escritor que separa os eventos das
descrições na verdade estimulou essa reação ingênua. Uma vez que começamos a ler um
romance e estamos trilhando nosso caminho nele, não vemos determinado tipo de paisagem;
ao contrário, instintivamente procuramos nos localizar na vasta floresta de momentos e
detalhes. Contudo, quando encontramos as árvores individuais – ou seja, os momentos e
frases separados que formam o romance –, queremos ver não só os eventos, o fluxo e o
drama, como o correlativo visual desse momento. Assim o romance se mostra em nossa
mente como um mundo real, tridimensional, convincente. Então, ao invés de perceber
divisões entre os eventos e os objetos, o drama e a paisagem, sentimos uma unidade
abrangente, como na vida.

***

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Trad.


George Sperber. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1987. [Trecho do cap. “Na mansão de La
Mole”, p. 419-424.]

E. Auerbach. “Na mansão de La Mole”

Outro escritor da geração romântica, Balzac, que possuía tanta capacidade criadora e
muito maior proximidade do real [do que Stendhal], tomou a representação da vida
contemporânea como uma tarefa pessoal e pode ser considerado, juntamente com Stendhal,
como o criador do realismo moderno. É dezesseis anos mais novo do que este, mas os seus
primeiros romances característicos aparecem quase simultaneamente com os de Stendhal,
isto é, ao redor de 1830. Como exemplo da sua maneira de representar mostraremos,
primeiramente, o retrato de Mme Vauquer, a dona da pensão do romance Le père Goriot,
surgido em começos de 1834. Antecede-o uma descrição muito exata do bairro em que se
encontra a pensão, da casa em si, dos dois aposentos do térreo; deste conjunto todo resulta
uma impressão intensa de desconsolada pobreza, desgaste e rancidez, sendo que, juntamente
com a descrição material, sugere-se também a atmosfera moral. Depois da descrição da
instalação da sala de jantar, aparece, finalmente, a dona da casa, em pessoa:
4

Cette pièce est dans tout son lustre au moment Esse cômodo está em todo o seu esplendor
où, vers sept heures du matin, le chat de Mme quando, cerca de sete da manhã, o gato da sra.
Vauquer précède sa maîtresse, saute sur les Vauquer precede sua dona, salta sobre os
buffets, y flaire le lait que contiennent plusieurs aparadores, fareja o leite contido em várias
jattes couvertes d'assiettes, et fait entendre son tigelas cobertas por pratos e faz ouvir seu
rourou matinal. Bientôt la veuve se montre, ronrom matinal. Logo a viúva se mostra,
attifée de son bonnet de tulle sous lequel pend un ataviada com sua touca de tule, sob a qual pende
tour de faux cheveux mal mis, elle marche en um tufo de cabelo postiço malposto, e anda
traînassant ses pantoufles grimacées. Sa face arrastando seus chinelos enrugados. Sua cara
vieillotte, grassouillette, du milieu de laquelle velhusca, gorducha, do meio da qual sai um
sort un nez à bec de perroquet, ses petites mains nariz em bico de papagaio, suas mãozinhas
potelées, sa personne dodue comme un rat rechonchudas, sua pessoa roliça como um rato
d'église, son corsage trop plein et qui flotte, sont de igreja, seu corpete muito apertado e
en harmonie avec cette salle où suinte le desalinhado estão em harmonia com a sala que
malheur, où s'est blottie la spéculation, et dont destila infelicidade, em que se esconde a
Mme Vauquer respire l'air chaudement fétide especulação, e cujo ar ardorosamente fétido a
sans en être écœurée. Sa figure fraîche comme sra. Vauquer respira sem sentir enjoo. Seu rosto
une première gelée d'automne, ses yeux ridés, fresco como uma primeira geada de outono, seus
don’t l'expression passe du sourire prescrit aux olhos enrugados, cuja expressão passa do sorriso
danseuses à l'amer renfrognement de prescrito às dançarinas à amarga carranca do
l'escompteur, enfin toute sa personne explique la agiota, enfim toda a sua pessoa explica a pensão,
pension, comme la pension implique sa assim como a pensão implica sua pessoa. A
personne. Le bagne ne va pas sans l'argousin, prisão para os forçados não existe sem o comitre,
vous n'imagineriez pas l'un sans l'autre. não se imaginaria um sem o outro. A corpulência
L'embonpoint blafard de cette petite femme est le macilenta dessa mulherzinha é produto dessa
produit de cette vie, comme le typhus est la vida, assim como o tifo é consequência das
conséquence des exhalaisons d'un hôpital. Son exalações de um hospital. Sua anágua de lã
jupon de laine tricotée, qui dépasse sa première tricotada, que fica aparecendo sob sua primeira
jupe faite avec une vieille robe, et dont la ouate saia feita com um vestido velho, e cujo
s'échappe par les fentes de l'étoffe lézardée, acolchoado escapa pelas brechas do pano
résume le salon, la salle à manger, le jardinet, rasgado, resume o salão, a sala de jantar, o
annonce la cuisine et fait pressentir les jardinzinho, prenuncia a cozinha e faz pressentir
pensionnaires. Quand elle est là, ce spectacle est os pensionistas. Quando ela está ali, o espetáculo
complet. Agée d'environ cinquante ans, Mme está completo. Tendo cerca de cinquenta anos, a
Vauquer ressemble à toutes les femmes qui ont sra. Vauquer se parece com todas as mulheres
eu des malheurs. Elle a l'œil vitreux, l'air que conheceram desgraças. Tem os olhos baços,
innocent d'une entremetteuse qui va se o ar inocente de uma alcoviteira que vai
gendarmer pour se faire payer plus cher, mais intimidar para cobrar mais, mas que, aliás, está
d'ailleurs prête à tout pour adoucir son sort, à disposta a tudo para amenizar seu destino, a
livrer Georges ou Pichegru, si Georges ou entregar Georges ou Pichegru, se Georges ou
Pichegru étaient encore à livrer. Néanmoins, Pichegru ainda precisassem ser entregues. No
elle est bonne femme au fond, disent les entanto, ela é no fundo boa mulher, dizem os
pensionnaires, qui la croient sans fortune en pensionistas, que a imaginam sem fortuna ao
l'entendant geindre et tousser comme eux. ouvi-la gemer e tossir como eles. Quem havia
Qu'avait été M. Vauquer ? Elle ne s'expliquait sido o sr. Vauquer? Ela jamais se explicava
jamais sur le défunt. Comment avait-il perdu sa sobre o falecido. Como ele perdera sua fortuna?
fortune ? Dans les malheurs, répondait-elle. Il Nas desgraças, ela respondia. Comportara-se mal
s'était mal conduit envers elle, ne lui avait laissé com ela, só lhe deixara os olhos para chorar,
que les yeux pour pleurer, cette maison pour aquela casa para viver e o direito de não se
vivre, et le droit de ne compatir à aucune condoer de nenhum infortúnio, porque, dizia,
infortune, parce que, disait-elle, elle avait sofrera tudo o que é possível sofrer. [Trad. de
souffert tout ce qu'il est possible de souffrir. Rosa Freire D’Aguiar]
5

O retrato da dona da pensão está ligado à sua aparição matutina na sala de jantar;
aparece neste ponto central de sua atividade, introduzida um pouco à maneira das bruxas
pelo gato que pula sobre o aparador, e imediatamente começa uma descrição pormenorizada
da sua pessoa. A descrição é feita sob um motivo principal, que é repetido várias vezes: o
motivo da harmonia entre a sua pessoa, por um lado, e o espaço em que se encontra a pensão
que dirige, a vida que leva, pelo outro; em poucas palavras, a harmonia entre a sua pessoa e
aquilo que nós (e às vezes também já Balzac) chamamos de meio [milieu]. Esta harmonia é
sugerida da forma mais penetrante: em primeiro lugar, o aspecto gasto, gordo, sujamente
quente e sexualmente repulsivo do seu corpo e das suas roupas, o que concorda com o ar da
habitação, que ela respira sem nojo; pouco mais tarde, em ligação com o rosto e com os
gestos faciais, o motivo é considerado de forma um pouco mais moralista, a saber,
acentuando energicamente a relação mútua entre pessoa e meio: sa personne explique la
pension, comme la pension implique sa personne [sua pessoa explica a pensão, assim como a
pensão implica sua pessoa]. A isto junta-se a comparação com as galés. Segue-se uma
interpretação mais médica, na qual o embonpoint blafard [gordura baça] de Mme Vauquer,
como produto da sua vida, é comparado com o tifo como consequência das exalações de um
hospital. Finalmente, o seu saiote é valorizado como uma espécie de síntese das diferentes
especialidades da pensão, como antegosto dos produtos da cozinha e como prenúncio dos
hóspedes da pensão. Este saiote torna-se, por um instante, símbolo do meio, e depois, o
conjunto todo é ainda resumido na frase: Quand elle est là, ce spectacle est complet [Quando
ela está ali, o espetáculo está completo]; não é necessário esperar o café da manhã e os
hóspedes; tudo isso já está incluído na sua pessoa. Não parece existir uma ordenação
consciente das diferentes retomadas do motivo da harmonia, assim como não parece que
Balzac tivesse seguido um plano sistemático na descrição da aparência de Mme Vauquer; a
sequência das coisas mencionadas – cobertura da cabeça, penteado, chinelos, rosto, mãos,
corpo, novamente rosto, olhos, corpulência, saiote – não permite reconhecer qualquer traço
de composição; também não é indicada nenhuma separação entre roupa e corpo, nem entre
um traço físico e o seu significado moral. A descrição toda, até o ponto em que a
consideramos, dirige-se para a fantasia mimética do leitor, às imagens lembradas de pessoas
semelhantes e de meios semelhantes, que ele possa ter conhecido. A tese da "unidade de
estilo" do meio, na qual são também incluídos os seres humanos, não é fundamentada
racionalmente, mas é apresentada como um estado de coisas imediatamente apreensíveis, de
maneira puramente sugestiva, sem provas. Numa frase como esta: ses petites mains potelées,
sa personne dodue comme un rat d'église... sont en harmonie avec cette salle où suinte le
malheur... et dont Mme Vauquer respire d'air chaudement fétide... [suas mãozinhas
rechonchudas, sua pessoa roliça como um rato de igreja... estão em harmonia com a sala que destila
infelicidade... e cujo ar ardorosamente fétido a sra. Vauquer respira] pressupõe a tese da harmonia,
com tudo o que ela traz consigo (significação sociológico-moral dos móveis e das peças de
vestuário, possibilidade de determinar os elementos ainda não visíveis do meio a partir dos
que já foram dados etc.). Também a menção das galés e do tifo só são comparações
sugestivas; não são provas nem tentativas para tanto. A falta de ordem e o desleixo racional
do texto são consequências da pressa com que Balzac trabalhava, mas, mesmo assim, não
são casuais, pois a própria pressa é, em boa parte, um resultado da sua obsessão por imagens
sugestivas. O motivo da unidade do meio apossou-se do próprio Balzac com tanto ímpeto
que os objetos e as pessoas que constituem um meio ganham para ele, frequentemente, uma
6

espécie de segunda significação, diferente da significação racionalmente cognoscível, mas


muito mais essencial: uma significação que é definida, da melhor maneira possível, pelo
adjetivo "demoníaco". Na sala de jantar, com os seus móveis e apetrechos gastos e
mesquinhos, mas que não deixam de ser tranquilos e inofensivos para uma mente não
influenciada pela fantasia, "ressuma a desgraça, acaçapa-se a especulação" – em meio a esta
quotidianidade trivial, ocultam-se bruxas alegóricas, e no lugar da viúva rechonchuda e
desordenadamente vestida, vê-se surgir, por um instante, uma ratazana. Trata-se, portanto, da
unidade de um espaço vital determinado, sentida como uma visão de conjunto demoníaco-
orgânica e descrita com meios extremamente sugestivos e sensórios.
A parte seguinte do nosso texto, na qual o motivo da harmonia não mais é
mencionado, ocupa-se do caráter e da história pregressa de Mme Vauquer. Mas seria um erro
ver nesta separação entre, por um lado, a aparência e, pelo outro, o caráter e a história
pregressa, um princípio proposital de composição. Mesmo nesta segunda parte aparecem
ainda características físicas (l'oeil vitreux [os olhos vidrados]) e, muito frequentemente, Balzac
também ordena de forma diferente, ou mistura totalmente entre si os elementos físicos,
morais e históricos de um retrato. O tratamento do caráter e da história pregressa não tem, no
nosso caso, a finalidade de esclarecer algo disso tudo, mas serve para colocar a obscuridade
de Mme Vauquer "sob uma luz apropriada", isto é, sob o lusco-fusco do demonismo
subalterno e trivial. No que se refere à história pregressa, a dona da pensão integra a
categoria das mulheres aproximadamente cinquentonas qui ont eu des malheurs [que
conheceram desgraças] (plural!). Balzac não dá explicação alguma acerca da sua vida
pregressa, mas reproduz, parcialmente em discurso indireto, a tagarelice informemente
plangente, perdidamente coloquial, que ela mesma sói apresentar diante de inquirições
compadecidas. Também aqui apresenta o plural suspeito, que se exime da informação
precisa: o seu falecido marido teria perdido a sua fortuna dans les malheurs [nas desgraças];
de forma totalmente semelhante àquela em que, mais tarde, outra viúva suspeita indica que
seu marido, que tinha sido conde e general, morrera sur les champs de bataille [nos campos
de batalha]. A isto corresponde o baixo demonismo do caráter de Mme Vauquer; parece
bonne femme au fond [no fundo uma boa mulher], parece ser pobre, mas possui, como é dito
mais tarde, uma bela fortuninha, e é capaz de qualquer baixeza vulgar para melhorar um
pouco a própria sorte – a limitação baixa e vulgar das metas deste egoísmo, a mistura de
tolice, astúcia e força vital escondida, dá novamente a impressão de algo repulsivamente
fantasmagórico; novamente impõe-se a comparação com um rato ou com um outro animal
que tem sobre a força imaginativa dos homens um efeito demoníaco e vil. A segunda parte
da descrição é, portanto, uma complementação da primeira: depois de Mme Vauquer ter sido
apresentada, na primeira parte, como síntese da unidade do espaço vital por ela dominado, na
segunda, aprofunda-se a opacidade e a baixeza do seu ser que deve agir no mencionado
espaço.
Em toda a sua obra, como neste texto, Balzac sentiu os meios, por mais diferentes que
fossem, como unidades orgânicas, demoníacas até e tentou transmitir esta sensação ao leitor.
Ele não somente localizou os seres cujo destino contava seriamente, na sua moldura histórica
e social perfeitamente determinada, como o fazia Stendhal, mas também considerou esta
relação como necessária: todo espaço vital toma-se para ele uma atmosfera moral e física,
cuja paisagem, habitação, móveis, acessórios, vestuário, corpo, caráter, trato, ideologia,
7

atividade e destino permeiam o ser humano, ao mesmo tempo que a situação histórica geral
aparece, novamente, como atmosfera que abrange todos os espaços vitais individuais. [...]
O realismo atmosférico de Balzac é um produto da sua época, é ele próprio parte e
produto de uma atmosfera. A mesma forma espiritual – isto é, a romântica –, que começava
a perceber sensivelmente com tanta intensidade a unidade atmosférica de estilo das épocas
anteriores, que descobria a Idade Média, o Renascimento e também a forma historicamente
peculiar das culturas estrangeiras (Espanha, o Oriente), esta mesma forma espiritual
desenvolveu também a compreensão orgânica para a peculiaridade atmosférica da própria
época, em todas as suas variadas formas. O historicismo e o realismo atmosféricos estão em
estreita correlação; Michelet e Balzac são arrastados pelas mesmas correntes. Os
acontecimentos que tiveram lugar na França, precisamente entre 1789 e 1815, e as suas
consequências nos anos sucessivos trouxeram como sequela o fato de ser precisamente na
França onde o realismo moderno contemporâneo chegou mais cedo e mais fortemente se
desenvolveu, e a unidade politico-cultural do país deu-lhe, nesse sentido, um avanço
importante com respeito à Alemanha. A realidade francesa podia ser abrangida em toda a
sua variedade, como um todo. Em grau não menor do que a simpatia romântica pela
totalidade atmosférica dos espaços vitais, também uma outra corrente romântica contribuiu
para o desenvolvimento do realismo moderno, a saber, aquela da qual já falamos tão
repetidamente: a mistura de estilos. Foi ela que permitiu que personagens de qualquer classe
social, com todos os seus entrelaçamentos vitais prático-quotidianos, tanto Julien Sorel como
o velho Goriot ou Mme Vauquer, se tornassem objetos da representação literária séria.

Você também pode gostar