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O SCULO SRIO*

Franco Moretti Traduo do italiano: Alpio Correa e Sandra Correa

RESUMO Este ensaio aborda a formao e consolidao do "estilo srio" no romance europeu do sculo XIX. Ao destacar a recorrncia das cenas da vida cotidiana nas obras de Jane Austen, George Eliot, Balzac e Flaubert, entre outras, o autor examina os procedimentos narrativos identificados como "enchimentos", que so aquelas passagens inconcludentes e digressivas, em registro analtico ou descritivo, entremeadas aos desdobramentos mais efetivos da trama. As razes mais fundas da generalizao desse gosto literrio entre escritores e leitores, o autor as aponta na histria da moderna vida privada, ou seja, nos padres de impessoalidade, preciso e regularidade da vida burguesa, cujas necessidades simblicas se vem ento satisfeitas no desfrute da "narrativa sria". Palavras-chave: teoria literria; romance europeu do sculo XIX; estilo srio. SUMMARY This essay discusses the formation and consolidation of the "serious style" in 19th century European novel. Pointing out the recurrence of everyday life scenes in the works of Jane Austen, George Eliot, Balzac and Flaubert, among others, the author examines the narrative procedures that he calls "fillings": those unconclusive and digressive passages, in analytical or descriptive mode, which appear among the narrative's more effective unfoldings. The deepest reasons for the spread of this literary taste among writers and readers can be founded, according to him, in the modern history of private life, that is, in the patterns of impersonality, exactness and regularity of bourgeois life, which symbolic needs are so fulfilled in enjoyment of "serious narrative". Keywords: literary theory; 19th century European novel; serious style.

(*) Este ensaio extrado de O romance, obra coletiva sobre a evoluo e a expanso desse gnero literrio, organizada pelo prprio Moretti. Dos cinco volumes previstos, trs j foram publicados na Itlia pela editora Einaudi: A cultura do romance. As formas e Histria e geografia. No Brasil, a publicao tem incio em setembro prximo, pela editora Cosac & Naify.

Onde se fala do discurso indireto livre, do estilo analtico e dos "enchimentos" romanescos (que so os episdios em que no acontece grande coisa e dos quais, terminada a leitura, mal nos lembramos). Coisas tcnicas e primeira vista pouco promissoras, mas coisas em cujo labor subterrneo tomaro forma alguns grandes valores do sculo XIX: a impessoalidade, a preciso, a conduta de vida regular e metdica, certo distanciamento emotivo em uma palavra (uma palavra que tornar sempre), a "seriedade". E mesmo, para diz-lo de uma vez, a seriedade burguesa: na Frana, na Gr-Bretanha e na Alemanha. Burguesia e seriedade. No incio, para dizer a verdade, eu pensava num horizonte mais vasto, mais indefinido. Redao aps redao, porm, o MARO DE 2003 3

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argumento se restringia cada vez mais ao estilo srio e ao burgus do sculo XIX; um encontro que, infelizmente, exclua muitas outras coisas importantes (Stendhal, Dickens, toda a literatura de massa), mas que conferia ao ensaio aquele tom antropolgico histria da literatura como histria da cultura que a aposta deste volume. Assim sendo, tentemos pensar sobre o sculo srio do romance europeu.

De Vermeer a Austen

Num belo livro de alguns anos atrs, intitulado Arte de descrever, Svetlana Alpers afirma que o Seiscentos holands mudou o curso da arte europia ao substituir a "imitao de aes humanas significativas", tpica da tradio pictrica, pela "descrio do mundo observado". Os holandeses no pintam mais as grandes cenas da histria sagrada e profana, mas naturezasmortas, paisagens, interiores, vistas de cidades, mapas... Em suma: "uma arte descritiva, e no narrativa"1. Bela idia. Mas com uma exceo importante: Vermeer, em cuja obra a verdadeira novidade no parece ser tanto o desaparecimento do componente narrativo, mas a nova forma que ela assume com respeito ao passado. Tome-se a leitora vestida de azul [pg. 5]. Que forma estranha tem seu corpo... Estar grvida? E a carta que est lendo com tanta concentrao, de p quem a escreveu? Um marido no ultramar, como sugere o mapa ali na parede? E o cofrinho aberto, em primeiro plano, significa talvez que a carta antiga e j faz algum tempo que no chegam outras? H muitas cartas em Vermeer, e cada qual traz consigo alguma historieta: ler uma carta significa que algum a escreveu, tempos atrs, sobre acontecimentos ainda mais anteriores trs estratos temporais num pedacinho de tela. E esta outra carta [pg. 6] que a criada acabou de entregar patroa ou ser vice-versa? Observe-se a dinmica dos olhares: preocupao, escrnio, cumplicidade... Quase se v que a criada se torna patroa de sua patroa. E que estranha moldura: a porta, a perspectiva enviesada ser que algum espera uma resposta l fora? E que sorriso este da moa neste outro quadro [pg. 7]? Quanto vinho bebeu daquele jarro sobre a mesa? uma pergunta nada tola na pintura holandesa, e, uma vez mais, uma pergunta de tipo narrativo. E o homem, por que mantido s escondidas? Que espcie de histrias ter contado? E a moa, acreditou nelas? Paro por aqui. Mas a contragosto, porque essas cenas to precisas e ao mesmo tempo to indefinidas sugerem outras mil perguntas, porque so exatamente, pace Alpers, "aes humanas significativas": cenas de uma narrativa, de uma histria abertas. Certo, no so as grandes cenas da Weltgeschichte [histria universal], no o massacre dos inocentes (o tipo de pintura narrativa preferido por Alpers). Mas a questo que a narrativa no feita apenas de grandes cenas. Esse foi o golpe de gnio de Vermeer, e ns tambm procuraremos entender isso, com o auxlio da teoria narrativa. 4 NOVOS ESTUDOS N. 65

(1) Alpers, Svetlana. Arte del descrivere. Scienza e pittura nel Seicento olandese. Turim, 1984, pp. 13 e 16.

FRANCO MORETTI 1966. Roland Barthes escreve sua "Introduo anlise estrutural da narrativa", em que subdivide os episdios narrativos nas classes de "funes cardinais (ou ns)" e de "catlises". A terminologia varia: Seymour Chatman fala de "ncleos" e "satlites"2; eu falarei de "bifurcaes" e "enchimentos" (a bem da simplicidade). Mas a terminologia no importa; o que importa so os conceitos. Assim, Barthes:

(2) Chatman, Seymour. Story and discourse: narrative structure in fiction and film. Nova York, 1978.

(3) Banhes, Roland. "Introduzione all'analisi strutturale dei racconti". In: L'analisi del racconto. Milo, 1969, pp. 19-20.

Para que uma funo seja cardinal [para que seja uma bifurcao], basta que a ao a que se refere abra (ou mantenha aberta, ou feche) uma alternativa que tenha certas conseqncias para o prosseguimento da histria [...]. Entre duas funes cardinais sempre possvel dispor algumas notaes subsidirias que se aglomeram em torno a um ncleo ou outro sem modificar as alternativas apresentadas [...]. Essas catlises [ou enchimentos] permanecem funcionais [...], mas sua funcionalidade tnue, unilateral, parasitria.

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Johannes Vermeer, A carta de amor, leo sobre tela, 1669-70c. Amsterd, Rijksmuseum.

A bifurcao um (possvel) desdobramento da trama; no assim o enchimento, que aquilo que acontece entre uma mudana e outra. Um exemplo: Orgulho e preconceito (1813), de Jane Austen. Elizabeth e Darcy se encontram no terceiro captulo do romance, Darcy se comporta muito mal e Elizabeth no gosta nada disso primeira "alternativa com certas conseqncias para o prosseguimento da histria": os dois protagonistas so postos em conflito. Passam-se 31 captulos, e Darcy pede a Elizabeth que se case com ele segunda bifurcao: abriu-se uma alternativa. Outros 27 captulos, e Elizabeth aceita alternativa fechada, final do romance. Trs bifurcaes; incio, meio e fim; bem geomtrico, bem Austen. Mas, naturalmente, entre uma e outra dessas trs cenas o espao narrativo "preenchido" com muitas outras coisas: Elizabeth e Darcy se encontram, se olham, se falam, pensam um no outro, conversam com outras personagens... enfim, no fcil quantificar coisas desse tipo, mas fiz o melhor que pude e encontrei cerca de 110 episdios do gnero. So esses os enchimentos. E Barthes tem razo, no so grande coisa: acrescentam mil nuanas ao desenrolar dos aconteci6 NOVOS ESTUDOS N. 65

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Johannes Vermeer, Soldado com moa sorridente, leo sobre tela, 1657c. Nova York, Frick Collection.

(4) No comeo do sculo XIX, em todos os termos que indicam o carter cotidiano "alltglich", "everyday", "quotidien", "cotidiano" refora-se justamente a conotao abstrata e um pouco vaga de "habitual", "ordinrio", "freqente", em contraste com o significado mais antigo e vivido que opunha o cotidiano ao sagrado.

mentos, mas no conseguem nunca modificar "as alternativas que foram apresentadas". E no conseguem porque, como em Vermeer, so cotidianos demais para tanto: janta-se e jogam-se cartas, d-se um passeio, um pouco de msica, de conversa, recebem-se cartas, toma-se uma taa de vinho ou uma xcara de ch... Narrao mas do cotidiano. So isso os enchimentos. Narrao, porque tambm h sempre uma incerteza (como Elizabeth reagir s palavras de Darcy? e este, aceitar passear com os Gardiner?); mas a incerteza permanece local, circunscrita, sem "conseqncias para o prosseguimento da histria". Os enchimentos, por assim dizer, mantm a narrativa no interior do carter ordinrio da vida4. Sente-se aqui a sua profunda afinidade com aquela civilidade das boas maneiras to importante no mundo de Austen; e, lgico, as boas maneiras servem justamente para conferir certa regularidade, certa forma existncia. Graas a elas a vida cotidiana se eleva, estiliza: era meio comdia, e se enche de dignidade. Como os quadros de Vermeer em relao pintura "de gnero" holandesa: olhamos para eles e nos damos MARO DE 2003 7

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Gustave Caillebotte, Place de l'Europe, leo sobre tela, 1877. Chicago, Chicago Art Institute.

conta de que ali ningum mais ri no mximo um sorriso, mas mesmo isso raramente, porque de regra as suas personagens tm o semblante educado e composto da mulher de azul: srio. Srio, como na frmula mgica "imitao sria do cotidiano" com que Auerbach define o realismo5 (e j para os Goncourt, no prefcio a Germinie Lacerteux, o romance era "la grande forme srieuse"). Srio: "alieno da superficialit e frivolezze" (dicionrio Battaglia), "in opposition to amusement or pleasure-seeking"(Oxford), "in Gegensatz von Scherz und Spass" (Grimm). Mas o que exatamente significa "srio" em literatura? Para Diderot, que introduz o genre srieux em 1757, nos Dilogos sobre o filho natural, trata-se de uma forma intermediria entre a tragdia e a comdia6. uma intuio genial. Porque efetivamente, com o advento do ethos srio, e com a concomitante multiplicao dos enchimentos, o romance encontra um ritmo novo, tranqilo, um tipo de "neutralidade" narrativa que lhe permite funcionar sem ter de recorrer sempre a medidas extremas. Escreve-se e l-se com um esprito novo, prosaico, sem esperar coisas inauditas a cada volver de pgina. Basta que a histria seja "interessante" para citar uma outra categoria dos Dilogos destinada por sua vez a grande fortuna. O milenar liame entre o estilo e a condio social assim conservado e ao mesmo tempo contornado: elevao aristocrtica do trgico e ao rebaixamento plebeu do cmico a classe mdia acrescenta uma forma que lhe profundamente peculiar, uma forma justamente mdia, intermediria. Mas intermedirio no significa eqidistante, e tanto em Diderot7 como no sculo seguinte o srio anseia claramente por aparentar-se ao estilo das classes dominantes do passado (especialmente seu estilo pblico). Quem contemplar 8 NOVOS ESTUDOS N. 65

(5) Embora o ttulo escolhido por Auerbach para o livro aluda principalmente ao aspecto da "imitao" (mimesis), parece-me que sua verdadeira descoberta consiste justamente na unio do "srio" e do "cotidiano", sobre o que de resto versava o longo estudo preparatrio para Mimesis, "ber die ernste Nachahmung des Alltglichen" (in: Travaux du sminaire de philologie romane. Istambul, 1937), em que tambm se tomavam em considerao os termos "dialtico" e "existencial" como alternativas possveis a "cotidiano". (6) "No me resta seno uma pergunta", lemos no final do segundo Dilogo: "Atente para o gnero de sua obra. No uma tragdia; no uma comdia. O que ento, e que nome cabe lhe dar?". Na abertura do terceiro Dilogo Diderot responde definindo justamente o genre srieux como "meio-termo entre os dois gneros extremos", "posto entre os outros dois" etc. (Diderot, Denis. Entretiens sur le fils naturele. In: Oeuvres. Paris, 1951, pp. 1.243ss). (7) "Concluo que [o gnero srio] se inclina mais para a tragdia do que para a comdia" (ibidem, p. 1.247).

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uma obra-prima da seriedade cotidiana do sculo XIX como Place de 1'Europe, de Caillebotte [pg. 8], por exemplo, compreender que srio no quer dizer trgico, mas certamente cauteloso, impassvel, grave, soturno, frio. A classe mdia se enrijece: agora atende por "burguesia" e usa a seriedade para se distinguir do imaginrio ruidoso e carnavalesco do trabalho manual. Mas da seriedade ainda falarei amide. Por ora, voltemos teoria narrativa.

As estradas se dividem: fatos inauditos, vida cotidiana

Cento e dez enchimentos e trs bifurcaes: 97% de Orgulho e preconceito ocupados por episdios inconcludentes. Mas por qu? Para que serve toda essa vida cotidiana? Numa conversa como tantas, no oitavo captulo do romance, fala-se da irm de Darcy, de como alta, de suas qualidades, das habilidades femininas em geral, da importncia da leitura, tudo isso entrelaado a um jogo de cartas, ao jogo da corte. Pode-se examinar o estilo, as normas da conversao, o perfil cultural das personagens, tudo o que se queira, mas a certa altura se diz: muito bem, mas, em suma, o que aconteceu aqui? Ou melhor: aconteceu de fato alguma coisa? E no, no aconteceu quase nada, o que absurdo: um episdio tpico de uma grande narradora (97%...) e no acontece nada? A teoria narrativa tem uma tese muito simples e elegante a respeito: uma histria merece ser contada se uma norma foi violada (uma norma moral ou probabilstica, ou as duas coisas juntas), se apresenta um "fato inaudito", como dizia Goethe. Mas nunca haver nada de inaudito numa conversa bem-comportada e justamente isso que torna a obra de Austen (e de muito do Oitocentos europeu) to estranha: por que contar matria to pr-escrita, to avessa narrao? muito mais lgico, para dar um exemplo qualquer, o que ocorre nesse grande best-seller da Antigidade tardia que foi o Romance de Alexandre. Alexandre est com Hefesto, os servos esto escovando os cavalos, preciso matar o tempo, e ento assim como em Austen os dois vo dar um breve passeio. Mas ento se deparam com Nicolau, rei dos acarnanianos, e num torneio de poucas frases se declara uma guerra. O enchimento est a, mas s por um instante: uma maneira de passar de uma bifurcao a outra, nada mais. O passeio, o cotidiano so tratados, em suma, como o oposto da narrao: um fardo que afinal no se pode deixar de lado (de vez em quando tambm necessrio escovar os cavalos) mas que removido o mais rpido possvel para deixar espao narrao propriamente dita. De resto, as coisas ainda so assim no incio do sculo XIX. Belinda (1801), de Maria Edgeworth, um dos tantos exemplos de marriage plot da tradio inglesa, em que as grandes linhas do enredo so muito semelhantes s de Austen. Mas quando se passa do macro ao micro, isto , do conjunto da trama aos episdios individuais que a compem, percebe-se de imediato que quase no h trao de enchimento. Longe do cotidiano, Belinda uma s

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sucesso de golpes de cena: o possvel amante Clarence Hervey abre uma carta (Vermeer...) e dela cai uma mecha de cabelos, que Belinda nota e interpreta da pior maneira; um criado entra para um afazer qualquer, v dinheiro sobre uma mesinha e logo espalha uma calnia de conseqncias dramticas; uma me reencontra a filha, uma filha reencontra o pai, uma mulher redescobre o marido e ele a ela... E a quatro pginas do final:"... teramos nos tornado absolutamente infelizes", explica Lady Delacour, "no fosse [...] pelo capito Sutherland". "O capito Sutherland! E quem esse capito Sutherland? Nunca ouvimos falar dele..." Tudo assim, s pressas: inventa-se uma nova personagem (e decisiva!) mesmo com o romance quase terminado. E, repitamos, no h nada de estranho nisso. Quando Edgeworth narra, narra o inaudito, como sempre se fez (e se continuar a fazer no romance folhetinesco, no romance policial, nos romances exticos, em muito da fico cientfica...). Um diagrama feito numa escola primria de Manhattan exemplifica perfeio o que estou procurando dizer. Mary Foote, a professora, e seus jovens colaboradores (bem, juvenssimos) leram a narrativa Julian's glorious summer, de Ann Cameron, e visualizaram a situao do protagonista ao longo de todo o arco dos acontecimentos. O grfico salta continuamente de um extremo a outro: dez vezes feliz ou emocionado, catorze vezes triste, preocupado ou amedrontado e s quatro vezes num estado intermedirio (intermedirio, como em Diderot) que eles chamaram "neutro" (ou "OK"). Ora, a revoluo levada a efeito pelo enchimento romanesco pode ser visualizada assim: um grfico em que o estado neutro se adensa desmedidamente e os extremos se esvaziam o exato oposto do diagrama, em suma.

Diagrama de Julian's glorious summer, de Ann Cameron, elaborado por Mary Foote e alunos8

(8) "Em primeiro lugar decidamos qual era a ao principal do captulo, dispensando ateno particular queles momentos em que Julian se sentia diferente. Dvamos um nome quele estado emotivo e o assinalvamos no diagrama. No final houve uma discusso interessante a propsito daquilo que as crianas notavam ao observar o diagrama. Elas disseram coisas como 'Os sentimentos de Julian mudam bastante'; 'Muitas vezes ele tem emoes fortes, tanto negativas como positivas, e poucas vezes se sente neutro'; ' mais triste que feliz'" (carta de Mary Foote, 17/ 05/2000).

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FRANCO MORETTI exatamente isso o que faz Austen: desloca o inaudito para o fundo e traz o cotidiano ao primeiro plano 9 . Mas por que o faz? Como lhe ocorre essa idia to em desacordo com as leis elementares da narrativa? Isso, infelizmente, no claro, assim como no claro quanto quele outro romance em que a nova hierarquia narrativa fez sua primeira apario, isto , Robinson Crusoe (1719). Lendo-se o frontispcio original do livro, escreve com justia Giuseppe Sertoli, parece que Defoe tinha em mente "um projeto narrativo diferente, do qual teriam restado traos no ttulo do romance" , A vida e as aventuras estranhas e surpreendentes de Robinson Crusoe , e que "a seqncia da ilha no seria seno a expanso imprevista e descontrolada de um episdio interno" daquele projeto inicial10. Isto , a ilha talvez fosse apenas um enchimento entre outros, que devia ligar entre si as "aventuras" bem mais atraentes prometidas pelo ttulo (e depois postas em evidncia nas edies populares e reduzidas do sculo XVIII). Mas ento se verifica no romance de aventuras martimas "uma expanso imprevista e descontrolada" do cotidiano: o superenchimento da ilha se liberta de suas funes estruturais e se torna significativo em si e por si. Rousseau, no Emlio, o primeiro a compreender o que aconteceu: o Robinson deve ser "limpo de toda a sua pacotilha", comear "com o naufrgio" e limitar-se parte da ilha, de modo que Emlio no perca tempo sonhando com aventuras e, antes, reflita sobre a parte sria do livro, o trabalho de Robinson ("ele vai querer saber tudo aquilo que til, e no vai querer saber mais do que isso"11) um modo antiptico de tratar os meninos, mas tambm uma verdade, pois a ilha efetivamente a pedra angular de Robinson. O cotidiano se emancipou. E tomou todos um pouco de surpresa: o autor, que pensava num outro romance, os leitores, que at Rousseau "liam" exatamente o outro romance, e at os piratas editoriais. Bonito. Mas se consegussemos descobrir por que Defoe mudou de projeto e ampliou a parte da ilha... seria ainda mais bonito. Como quase certo porm que jamais o saberemos, deixemos de lado a gnese do enchimento romanesco e rastreemos as suas transformaes no decorrer do sculo XIX.

(9) Talvez aqui fosse mais exato falar de "meia" Austen, porque a estratgia do inaudito, desativada ao longo do eixo central da trama, permanece em vigor nos enredos secundrios de seus romances (a exemplo de Lydia e Wickham em Orgulho e preconceito ou dos Crawford em Mansfield Park). Em resumo, ao tomar o novo caminho Austen no se afasta de todo do antigo, que continua visvel s margens de sua obra. Trata-se de uma mistura de passado e futuro bastante freqente quando um novo paradigma est tomando forma, sem se achar completamente firmado. (10) Sertoli, Giuseppe. "I due Robinson". In: Defoe, Daniel. Le awenture di Robinson Crusoe. Turim, 1998, p. xiv.

(11) Rousseau, Jean-Jacques. Emile [1762]. In: Oeuvres compltes. Paris, 1969, vol. IV, pp. 455-456.

A prosa do mundo

Goethe, Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister (1796), livro II, captulo XII. Filina flerta com Wilhelm no meio da estrada, depois se levanta, caminha na direo do albergue, volta-se para dar uma olhadela. Um instante depois Wilhelm a segue, mas bem porta detido por Melina, diretor de uma companhia teatral, a quem h tempos prometera um emprstimo. Wilhelm pensa em Filina, garante ao outro o dinheiro para aquela mesma noite e segue adiante. Mas detido mais uma vez, por Friedrich, que o sada afetuosamente... e corre para chegar antes dele a Filina. Wilhelm vai para o seu quarto, onde encontra Mignon; est aborrecido, no repara nela; Mignon se inquieta, Wilhelm mal nota (para ele, isso s mais um enchimento). Sai de novo, v o taberneiro falando com um forasteiro, nota que este o observa de esguelha...

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Prosa do mundo, como a chamar Hegel: as aspiraes de Wilhelm frustradas e dispersas num emaranhado de fatos menores. Mas uma prosa em que o amargor da desiluso se confunde curiosamente com um fortssimo senso da possibilidade. Aquele emprstimo concedido a contragosto, por exemplo, faz decolar a fase esttica do romance, com as suas memorveis discusses sobre a arte dramtica; o medo de perder Wilhelm atia a paixo de Mignon (e lhe dita, um pouco mais adiante, o poema lrico "Kennst du das Land"); o forasteiro que conversa com o taberneiro prepara a visita de Wilhelm ao castelo, onde o encontro com Jarno dar incio seqncia conclusiva do romance. E assim por diante. Entendamo-nos: nada disso se realiza naquelas duas ou trs pginas do segundo livro. Trata-se apenas de possibilidades, mas que bastam para "despertar" o cotidiano e torn-lo vivo, narrativo: mesmo que o episdio no cumprisse todas as suas promessas, restaria de qualquer modo a recordao daquele momento de abertura. um modo novo, secularizado, de contar uma histria: seu sentido est disperso em cem momentos diferentes sempre precrio, sempre insatisfatrio, misturado indiferena do mundo, mas tambm sempre tenazmente presente. uma perspectiva que Goethe no conseguiu jamais conciliar de todo com o aspecto teleolgico do Bildungsroman (muitssimo sentido, mas tudo no final). Ainda assim, o primeiro passo foi dado. Goethe revela o cotidiano com o sentido da possibilidade; Scott, em Waverley (1814), pondo em cena os rituais do passado: a caa, o canto, os banquetes, os brindes... Cenas estticas, at mesmo um pouco tediosas; mas Waverley ingls, no conhece a Esccia, faz mil perguntas, no compreende as coisas, ofende seus hspedes e a rotina cotidiana se ilumina de pequenas surpresas. Entenda-se bem: no que Waverley (e o romance histrico em geral) seja uma constelao de enchimentos como o Meister; no, a atmosfera ainda meio gtica, a Weltgeschichte est s portas, as histrias de amor e de morte conferem um tom melodramtico a tudo. Mas no interior do melodrama Scott consegue retardar a ao, cumulando-a de pausas. E no interior dessas pausas abramos aqui uma janela para a prxima seo do ensaio toma forma aquele estilo analtico-impessoal que ser tpico do romance oitocentista; e que permitir, por sua vez, que se conceba a descrio de modo inteiramente novo. E lgico que tudo isso ocorra nos enchimentos e no nas bifurcaes: estas so intensas, bruscas, no permitem olhar ao redor com calma, enquanto os enchimentos so suaves, do tempo suficiente para observar os detalhes, para ser preciso e tambm um pouco mais "imparcial", dir o Scott de The heart of Midlothian (1818). tpico da evoluo literria esse estafeta que conduz do enchimento ao estilo analtico e deste descrio: a nova tcnica no permanece isolada, mas provoca uma pequena reao em cadeia no resto da obra, uma wave of gadgets, uma onda de pequenas invenes, como diriam os historiadores da Revoluo Industrial. No decorrer de uma gerao, a onda redesenha a paisagem.

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Balzac, segunda parte das Iluses perdidas (1839). Lucien de Rubempr est escrevendo (finalmente!) o seu primeiro artigo, que constituir uma verdadeira "revoluo no jornalismo". a oportunidade que ele espera desde o dia em que chegou a Paris. Mas nas pregas desse episdio esconde-se um outro: o jornal est sem artigos, qualquer coisinha serve, rpido, no importa sobre o qu, basta preencher os espaos em branco; e um amigo de Lucien, introduzido por uma vrgula despretensiosa, pe-se tambm a escrever. quase a idia platnica do enchimento romanesco: um trecho que preenche um pouco de espao, nada mais. Entretanto, esse tapa-buraco acaba por atingir um grupo de pessoas que mais tarde, depois de mil reviravoltas, selar a derrocada de Lucien. o mundo de Balzac. Como no "efeito-borboleta" de que fala a teoria do caos, o evento inicial pode muito bem ser insignificante, mas o sistema no qual ele se d a universal sobredeterminao da grande cidade suficientemente rico de variveis para agigantar seus efeitos alm de toda expectativa. Entre o comeo e o fim de cada ao sempre h alguma coisa que se interpe, um vetor narrativo imprevisto, uma "terceira pessoa" que persegue seus objetivos particulares e acaba por desviar o curso das coisas numa direo inesperada; assim, tambm os episdios mais ordinrios e incuos tornam-se captulos de romance (o que, em Balzac, nem sempre agradvel...). O Bildungsroman e o sentido agridoce da possibilidade; o novel of manners e o mundo prescrito das boas maneiras; o romance histrico e a ressurreio do cotidiano desaparecido; o romance urbano e a narrabilidade das estruturas complexas. Uma verdadeira "descoberta" do cotidiano operase no romance da primeira parte do sculo XIX: a trama se adensa, enche-se de mil coisas (como quase tudo na poca: as naes se enchem de estradas e depois de ferrovias; as cidades, de casas; estas, de mveis; os mveis, de infinitos objetos...). Em Defoe o enchimento ainda apresentava um qu de abstrato e francamente tedioso (um sujeito seminu que trana uns cestos etc.). Mas o sculo XIX quer subtrair o cotidiano ao tdio: sacudi-lo, fazer dele narrao. E consegue, como vimos, at mais ou menos a metade do sculo. Depois, a atmosfera muda. Refletindo sobre uma pgina de Madame Bovary (1857) em que Emma e Charles jantam juntos e pode haver um enchimento mais perfeito do que esse? , diz Auerbach:

(12) Auerbach, Erich. Mimesis. Turim, 1967, p. 263. O trecho de Flaubert o mesmo comentado na abertura daquele mencionado ensaio de 1937, "ber die ernste Nachahmung des Alltglichen". Hoje abrimos Mimesis e o livro comea com a Bblia e a Odissia, mas num sentido mais profundo ele principia com Madame Bovary, ou melhor, com os "enchimentos" de Madame Bovary. a que Auerbach reconhece pela primeira vez os aspectos do "cotidiano srio".

Naquela cena nada ocorre de extraordinrio, e sequer ocorreu algo de extraordinrio nos momentos que imediatamente a precederam. um momento qualquer de uma hora que retorna regularmente, em que marido e mulher jantam juntos. [...] Nada ocorre, mas o nada se tornou alguma coisa grave, obscura, ameaadora12.

Um cotidiano grave e ameaador... Culpa do casamento com um homem medocre? Sim e no. Sim, porque Charles decerto um fardo na vida de MARO DE 2003 13

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Emma; mas tambm no, porque o remdio habitual para esse estado de coisas o adultrio ou mesmo os dois adultrios da senhora Bovary no remedia propriamente nada: com Rodolphe e Lon ela reencontra exatamente "os mesmos aborrecimentos do casamento", as mesmas horas "que voltam regularmente" e em que mais uma vez nada ocorre de extraordinrio. Esperase a "aventura" e se reencontra a gravidade do cotidiano. A guinada que se opera em Flaubert fica ainda mais visvel em contraste com um outro romance de adultrio, Fanny (1858), de Ernest Feydeau, que poca associado a Madame Bovary, mas no seno o seu exato oposto: xtases e desesperos, suspeitas infames e revelaes celestiais tudo narrado em tons implacavelmente hiperblicos. Nada mais distante da neutralidade cinzenta de Madame Bovary, com seus clichs baratos, suas frases graves e sem graa, seu ternel imparfait (Proust)... O imperfeito: o tempo que no promete surpresas, o tempo do mundo notrio, da repetio, dos enchimentos, do pano de fundo mas de um pano de fundo que agora se tornou mais importante que o primeiro plano13. Poucos anos depois, na Educao sentimental, nem o 1848 consegue sacudir a inrcia das coisas: o que com efeito inesquecvel no romance no o "fato inaudito" da revoluo, mas o seu oposto: o refluir das guas, o retorno dos velhos lugares-comuns, dos egosmos mesquinhos, das fantasias sem fora e sem alcance... O pano de fundo que engole o primeiro plano. O captulo seguinte se passa na Inglaterra, em 1872, numa cidade de provncia que parece dominada pela segunda lei da termodinmica: "imperceptvel arrefecimento" dos entusiasmos juvenis, escreve George Eliot, que conduz inexoravelmente "gente nivelada pela mdia e pronta a ser empacotada por atacado" Middlemarch (1872), cap. XV. Aqui Eliot est falando de Lydgate, o jovem mdico que lhe sugeriu a idia genial de narrar uma vida completamente arruinada pelas coisas de somenos: "um sucumbir sem alegria aos pequenos estmulos circunstanciais, que uma histria de perdio bem mais comum que aquele imponente pacto inquebrantvel" (cap. LXXIX). Tristeza: Lydgate j no sabe nem vender a prpria alma, como em Goethe ou Balzac; ele a pe a perder distrado entre aqueles mil "pequenos estmulos" que no so nada para ele e que, muito pelo contrrio, esto decidindo sua vida14. Era um jovem inslito, esse Lydgate, e depois de alguns anos em Middlemarch tambm ele "nivelado pela mdia". No aconteceu nada de extraordinrio, diria Auerbach; no entanto, j aconteceu tudo. Por fim, Os Buddenbrook (1901), de Thomas Mann, em que o recurso ao leitmotiv oferece uma verso extraordinariamente elegante quase um destilado da vida cotidiana do sculo XIX. As expresses exaltadas e sempre iguais de Tony, os gestos irnicos e um tanto desdenhosos de Tom, as palavras judiciosas e prosaicas dos tantos comprimrios, a dor de dente do pequeno Hanno... nos Buddenbrook todos esses enchimentos se desfazem at das suas modestas tarefas narrativas e se tornam, simplesmente, estilo. Aqui tudo passa e morre (como em O anel dos nibelungos, de Wagner), mas

(13) "Os romances de Flaubert, como cm geral a literatura narrativa do realismo e do naturalismo, distinguem-se precisamente por uma predominncia evidente do imparfait na parte narrada. [...] o pano de fundo se torna o mais importante, e o primeiro plano, menos importante" l-se assim em Weinrich, Harald. Tempus. Le funzioni dei tempi nel texto. Bolonha, 1978, pp. 134 e 136. Mais adiante Weinrich acrescenta que os tempos verbais tpicos do pano de fundo, e portanto tambm do enchimento ("o imparfait de rupture em francs e os tempos terminados em -ing da lngua inglesa"), difundem-se exatamente no perodo 1800-50 (p. 189).

(14) "Os pontos intermedirios, as mediaes tudo isso que Middlemarch chama de 'mediums' ('hostis', 'mesquinhos', 'atrapalhados', 'opacos e sufocantes') no so meros preenchimentos, postos ali para matar o tempo, mas desviam o curso das coisas do objetivo preestabelecido [...], e a vida [de Lydgate] determinada justamente pela repetio das suas desatenes" (Miller, D. A. Narrative and its discontents. Princeton, 1981, p. 142).

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as frases que compem os leitmotivs permanecem e tornam inesquecvel o que vai desaparecendo, assim como naquele outro esplndido leitmotiv que o lbum de famlia dos Buddenbrook, com seu "respeito quase religioso pelos fatos" e o "realce pleno de reverncia dedicado aos acontecimentos mais modestos". Palavras que exprimem perfeio a solicitude com que o Oitocentos burgus voltou-se para a vida de todos os dias, e que convida a algumas reflexes ulteriores.

Racionalizao

Que virada rpida! Por volta de 1800 o enchimento ainda uma raridade, e cem anos depois est por toda parte (os Goncourt, Zola, Maupassant, James...). Vocs acreditavam ter lido Meister ou Middlemarch, mas no, leram enormes coletneas de enchimentos que de resto foram a nica inveno narrativa verdadeira do sculo XIX. E quando uma novidade to prosaica e modesta consegue difundir-se por toda parte, deve haver algo na cultura circunstante que se encontra em profunda sintonia com ela. Se os enchimentos se multiplicam, os leitores europeus devem sentir prazer em llos, e os romancistas em oper-los. Mas de onde vem esse prazer? Livro estranho esse Buddenbrook, escreve a Mann uma leitora inteligente: no acontece nada e no entanto no me aborreo absolutamente. De fato, estranho. Como que o cotidiano se tornou interessante? Para compreend-lo, preciso fazer um pouco de reverse engineering, de engenharia s avessas: s avessas, no sentido de que o objeto j est dado e no se trata de projet-lo, mas de proceder de frente para trs, desde o modo como est feito at a sua razo de ser. Sabemos como feito o enchimento; muito bem, agora se trata de compreender o seu porqu: que necessidade simblica se pe a satisfazer. E na passagem do "como" ao "porqu" o horizonte se altera: o "como" ns o encontramos na teoria narrativa, nos romances, na literatura; j o "porqu" se encontra do lado de fora da literatura: na histria social, e mais exatamente na histria da moderna vida privada. A comear justamente da Holanda de Vermeer, onde comea a tomar forma o mundo privado que ainda est conosco: casas mais cmodas e iluminadas, em que as portas se multiplicam, os aposentos se diferenciam e um deles se torna precisamente o lugar da vida cotidiana: a sala de estaro "soggiorno", "locale adibito al ricevimento degli ospiti, alla conversazione" (dicionrio Battaglia); a "drawing room", que na verdade a "with-drawing room", o aposento onde a classe mdia se aparta da criadagem e usufrui aquele bem novo que o "tempo livre"15. A sala de Vermeer e do romance: de Goethe, Austen, Balzac, Eliot, Mann... Um espao sempre disponvel, sempre pronto a dar incio a uma histria. Essa histria, porm, entrecortada pela crescente regularidade da vida privada. As personagens de Vermeer so asseadas, zelosas; lavaram paredes e pisos, janelas e toalhas e vestidos; aprenderam a ler e a escrever,

(15) As condies mencionadas por Jrgen Kocka "para que a cultura burguesa possa se realizar" parecem sadas de um quadro de Vermeer: "uma renda constante e bem acima do mnimo de subsistncia [...], certa liberdade para a me e os filhos de um trabalho manual precoce e sufocante, de modo que lhes seja possvel conservar e reproduzir aquela cultura; decerto tambm algum distanciamento burgus do trabalho manual; e sobretudo, tempo livre" ("Borghesia e societ borghese nel XIX secolo. Sviluppi europei e peculiarit tedesche". In: Kocka, Jrgen (org.). Borghesie europee dell'Ottocento. Pdua, 1989, p. 23).

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O SCULO SRIO a entender os mapas, a tocar alade e cravo... Tm muito tempo livre, verdade, mas no fazem dele um uso to srio que paream estar sempre trabalhando. Lukcs, em A alma e as formas:

A vida dominada pelo que se repete sistematicamente, regularmente, pelo que deve forosamente repetir-se, pelo que deve ser feito sem considerao pelo prazer ou desprazer. Em outras palavras: o domnio da ordem sobre os estados de esprito, do durvel sobre o momentneo, do trabalho tranqilo sobre a genialidade alimentada de sensaes16.

(16) Lukcs, Georg. "La borghesia e l'art pour l'art". In: L'anima ele forme. Milo, 1963, p. 124.

O domnio da ordem sobre os estados de esprito. Sombras weberianas. Com a Reforma, l-se na tica protestante, o controle sobre os comportamentos cotidianos se torna mais atento e severo:

A ascese crist [...] quase dominara eclesiasticamente o mundo; mas, de um modo geral, deixara vida cotidiana profana o seu carter naturalmente desabusado. Agora ela vinha ao mercado da vida, fechava atrs de si as portas do claustro e comeava a impregnar de sua metodizao a vida cotidiana profana17.

(17) Weber, Max. L'etica protestante e lo spirito del capitalismo. Florena, 1972, p. 258.

Toma forma assim a urdidura secreta daquilo que Mann chamava "o meio milnio burgus". So os "ritmos ocultos" analisados por Zerubavel: aquelas atividades regulares, repetidas, que "interferem nos desejos espontneos do indivduo" e "enrijecem" a vida 18 (como no terrificante rito burgus da aula de piano); "a inclinao tpica a um modo de vida racional e metdico" mencionada por Kocka19; so os "bons lucros" descritos por Barrington Moore: "pequenos mas estveis, que se obtm com uma ateno laboriosa ao particular"20; "a domesticao do acaso" (Ian Hacking) produzida pela estatstica do sculo XIX, ou a rpida e reveladora difuso de palavras (e de aes) como "normalizar" e "estandardizar". "Por que o enchimento se firmou?", eu me perguntava mais acima. Por isto: ele oferecia aquela espcie de prazer narrativo compatvel com a nova regularidade da vida burguesa. O enchimento faz do romance uma "paixo calma", como no genial oxmoro com que Hirschmann define o interesse econmico moderno. Ele um sintoma e um aspecto da "racionalizao" (Weber) da existncia moderna: um processo que se inicia nas esferas da economia e da administrao mas depois as transpe e invade os mbitos do tempo livre e da vida privada, do divertimento e do sentimento (poucos fazem caso disso, mas o ltimo livro de Economia e sociedade dedicado racionalizao... da linguagem musical). Em suma, o enchimento uma tentativa de racionalizar o romance e desencantar o universo narrativo: poucas surpresas, ainda menos aventuras e nada de milagres.

(18) Zerubavel, Eviatar. Ritmi nascosti. Orari e calendari nella Vita sociale. Bolonha, 1985, pp. 81 e 26. (19) Kocka, op. cit., p. 19. (20) Moore Jr., Barrington. Aspetti morali dello sviluppo econmico. Turim, 1999, p. 69.

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Vm mente aquelas pginas da tica protestante em que Weber contrape o capitalismo "de aventura" desprovido de controles e de escrpulos ticos, carismtico, que confia descaradamente na sorte, essa figura que parece viver no mundo romanesco e que, assim como o gnero romanesco, se encontra praticamente em todas as pocas e lugares ao ethos sbrio, constante, contido, srio do capitalismo racional-burocrtico (que por sua vez, como o novel, uma inveno europia recente). Com efeito, esse exatamente o mundo do romance burgus, mas no por seus contedos, no porque se fale de comerciantes, industriais e companhia bela (destes, ao contrrio, se fala muito pouco): que por meio do enchimento a lgica da racionalizao atua sobre a forma mesma do romance, o seu ritmo narrativo. E no seu pice esse processo parece estender-se at a cultura de massa. Penso na "lgica" de Holmes ou em Verne: A volta ao mundo em oitenta dias sobrenomeado "o romance do moto perptuo", mas moto prescrito seria mais exato, com aquela sua idia de uma pontualidade planetria, de um heri que cr nos horrios dos navios e trens como um monge beneditino no seu horarium, aquela primeira gaiola de ao da vida cotidiana... Mas um romance no apenas uma histria, um concatenar-se de aes pequenas e grandes. A histria posta em palavras; torna-se estilo. E ento, o que acontece?

George Eliot descreve

Middlemarch, captulo XX. Dorothea est em Roma, no seu quarto, e chora "indefesa", explica Eliot, diante dessa "incompreensvel Roma":

Runas e baslicas, palcios e colossos imersos num presente srdido, onde tudo o que era vivo e pulsante parecia se afundar na profunda degenerao de uma superstio divorciada da reverncia; a desbotada mas ainda intensa vida titnica a perscrutar e relutar nas muralhas e arcos; as longas perspectivas de brancas formas cujos olhos marmreos pareciam reter a luz montona de um mundo estranho: toda aquela vasta runa, sensorial e espiritual, de ideais ambiciosos, confusamente misturada aos sinais vivos do esquecimento e da degradao, de incio a abalou como uma descarga eltrica, e depois se imps a ela com aquela aflio peculiar de uma profuso de idias tumultuadas que bloqueia o fluxo das emoes.

Dezenas de polisslabos acumulados uns sobre os outros para formar o sujeito do perodo, e aquele minsculo "a" como seu nico objeto. O desequilbrio entre Roma e Dorothea no poderia ser mais bem expresso; e talvez no pudesse ser expresso absolutamente sem aquele trao inconfun-

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dvel do estilo eliotiano que a sua preciso. As runas e as baslicas esto "imersas" em um presente "srdido", onde tudo o que est vivo (melhor: "vivo e pulsante") se afunda (melhor: "parece se afundar") em uma degenerao "profunda", ligada a uma "superstio" ora "divorciada da reverncia". Cada termo ponderado, qualificado, precisado. Nosso mundo se tornou "infinitamente maior e por toda parte mais rico de ddivas e perigos que o mundo dos gregos", escreve Lukcs na Teoria do romance21, e essa infatigvel nomeao do detalhe constitui seu estilo. A prosa. Escrita. A prosa como trabalho, e mais exatamente trabalho de anlise. Hegel:

(21) Lukcs, Georg. Teoria del romanzo. Roma, 1972, p. 41.

Podemos propor como lei da representao prosaica a exatido, de um lado, e a distinta determinao e a clara inteligibilidade, de outro, ao passo que o metafrico e o figurativo so em geral relativamente privados de clareza e exatido22.

(22) Hegel, Georg W. F. Estetica. Turim, 1967, p. 1.124.

Trata-se de um outro nvel semntico de "srio": aquele que "s'applique fortement son objet" (Littr); "profondamente concentrato su quello che sta facendo " (Battaglia) e logo revemos a mulher de azul, com aquelas suas feies de George Eliot jovem. Srio como serious, mais do que como earnest, porque aqui o que importa no a tica em si e por si (a recusa da pleasure-seeking, do Spass e assim por diante), mas sobretudo a tica profissional: a tica do especialista (como o narrador de Middlemarch, especialista na linguagem), daquele que se pe inteira e escrupulosamente a servio do trabalho a cumprir. E no apenas um dever exterior, a "distinta determinao e clara inteligibilidade", que emerge da pgina de Middlemarch: meio sculo depois, na famosa conferncia sobre a "Cincia como vocao", Weber explicar esplendidamente que a moderna "vocao para a cincia" (e para a literatura) est ligada especializao de forma to profunda "que o destino da prpria alma depende justamente da exatido daquela conjetura"23. O destino da prpria alma! E pensamos no mot juste de Flaubert, naturalmente, bem como na diagnose desse estilo por Thibaudet: "no um dom gratuito e fulminante, mas o produto de uma disciplina a que ele chega um pouco tarde"24. No um dom, mas uma disciplina: eis o romance do sculo XIX. E no s o romance. Thomas Mann, Doutor Fausto (1947), cap. XXV:

(23) Weber, Max. "La scienza come professione". In: Il lavoro intellettuale come professione. Turim, 1948, pp. 16 e 13. (24) Thibaudet, Albert. Gustave Flaubert. Paris, 1935, p. 204.

Toma, por exemplo, a "idia", como vocs denominam aquilo, [...] a idia coisa de trs ou quatro compassos; no ? Nada mais. Todo o resto elaborao, trabalho de p-de-boi. No achas? Muito bem, mas ns, como experientes conhecedores das belas-letras, constatamos que essa idia no nova, que se aproxima muito de alguma passagem de Rimsky-Korsakov ou de Brahms. Que fazer? A gente modifica simplesmente a idia. Mas uma idia modificada... hum... ser que ela ainda

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FRANCO MORETTI uma idia? D uma olhada nos cadernos de esboos de Beethoven! L, nenhuma concepo temtica permanece intacta, tal como Deus a forneceu. alterada e acrescenta-se na margem: Meilleur. Nesse meilleur por enquanto nada entusistico expressam-se falta de confiana na inspirao divina e pouca reverncia a ela25.

(25) Na traduo ao portugus de Herbet Caro.

"Meilleur". Eliot deve ter-se dito sempre essa palavra. Relemos aquela pgina de Middlemarch e nos perguntamos: mas valeu a pena?"... e depois se imps a ela com aquela aflio que no seno uma profuso de idias confusas que bloqueia o fluxo das emoes": mas quem ser capaz de seguir de fato de compreender essas frases sem se perder no labirinto da preciso? A riqueza da prosa romanesca, escrevia Lukcs, custa a perda da totalidade. verdade. Mas Eliot segue em frente, acrescentando incisos, subordinadas, qualificaes... Por qu? O que toma a preciso mais importante do que o sentido?

O princpio de realidade

Uma pgina clebre do primeiro livro do Meister:

Que vantagens no proporcionam ao comerciante as partidas dobradas! uma das mais belas invenes do esprito humano, e todo bom pai de famlia deveria introduzi-las em sua prpria casa [...]. A ordem e a clareza acentuam o gosto pela economia e pelo lucro. Um mau administrador sente-se muito vontade s escuras; no lhe apetece calcular de boa vontade as somas que deve. Um bom patro, ao contrrio [...], no se amedronta sequer com uma desgraa que venha a tomlo desagradavelmente de surpresa, pois logo descobrir quais lucros poder lanar no outro prato da balana (cap. X).

(26) Davidoff, Leonore e Hall, Catherine. Family fortunes. Men and women of the English middle class, 1780-1850. Londres, 1987, p. 384.

Uma das mais belas invenes do esprito humano... Por razes econmicas, naturalmente, mas tambm, e sobretudo, por razes morais: as partidas dobradas obrigam a olhar de frente os fatos: todos os fatos, inclusive os desagradveis. O princpio de realidade. Com a sua crescente dependncia do mercado, escrevem Davidoff e Hall, as classes mdias devem aprender a ter sob os olhos as entradas e sadas; e comeam assim a manter a sua contabilidade nos novos accounting books impressos pelas editoras a preos baixos que por sua vez tambm imprimem sua marca no resto da existncia, como no caso daquela Mary Young que, entre 1818 e 1844, a par das contas domsticas, mantm igualmente "uma espcie de partidas dobradas da prpria vida pblica e privada"26. Em suma, um pouco como Robinson, que discrimina em

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colunas os "bens" e os "males" de sua condio de nufrago; ou como o lbum de famlia dos Buddenbrook, com seu "respeito quase religioso pelos fatos". Terceiro aspecto da seriedade: a ernste Lebensfhrung, a conduta de vida slida e responsvel, que para Mann a pedra angular do mundo burgus. A questo aqui no tanto de gravidade tica ou de concentrao profissional do especialista, mas de uma sorte de honestidade comercial extensiva a todo o resto da existncia: seriedade como confiabilidade, mtodo, "ordem e clareza", realismo. Justamente no sentido do princpio de realidade, em que o acerto de contas com a realidade se torna, da necessidade que , um "princpio", um valor. A conteno dos prprios desejos imediatos j no mera represso: cultura, estilo. Leia-se esta cena do Robinson, com sua tpica alternncia de desejos (em negrito), dificuldades (sublinhadas) e solues (em itlico):

Da primeira vez que sa, descobri imediatamente que na ilha havia cabras, o que me encheu de alegria; mas com um desafortunado porm, vale dizer, que eram to ariscas, astutas e ligeiras, que chegar perto delas era a coisa mais difcil do mundo. Mas no desanimei com isso, sem duvidar de que poderia de quando em quando matar alguma, como em pouco aconteceu, pois, depois de descobrir que locais percorriam, comecei a tocai-las do seguinte modo: observei que, se me avistavam nos vales, mesmo que estivessem grimpadas nas rochas, fugiam de mim como se estivessem assustadssimas: mas se pastavam no vale, e eu andava por cima, no davam por mim, donde conclu que, devido posio dos olhos, sua vista era dirigida para baixo [...]. Da primeira vez que disparei contra esses animais, matei uma fmea que era seguida por um cabritinho, o que me comoveu profundamente; mas quando a cabra tombou, o cabritinho permaneceu imvel perto dela at que eu cheguei e a apanhei, e no s isso: quando carreguei a cabra em meus ombros, o cabritinho me seguiu at o meu refgio; quando a coloquei no cho, tomei o cabritinho nos braos e o pus para dentro da paliada, na esperana de domestic-lo; mas ele no queria comer, de modo que fui obrigado a mat-lo e com-lo.

Um "mas" depois de outro (em ingls so sete, mais um "mesmo que", em uma dzia de linhas). "A vontade, a vontade tenaz, inflexvel, indomvel, a suprema qualidade britnica", diz um artigo da metade do sculo sugestivamente intitulado "Do srio e do romanesco na vida inglesa e americana"27, e essa pgina transbordante de oraes adversativas que no entanto no impedem Robinson de alcanar seu objetivo confere-lhe plena razo. Tudo aqui examinado sine ira et studio, como diz a mxima de Tcito com que Weber gostava de resumir o processo de racionalizao: sem ira, sem parcialidade, como se Robinson no fosse tocado diretamente por tudo isso; cada problema decomposto em elementos distintos (o ngulo

(27) "Du srieux et du romanesque dans la vie anglaise et amricaine". Revue des Deux Mondes, 15 de setembro de 1858, p. 451.

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(28) Weber, Max. Economia e societ. Turim, 1999, vol. IV, pp. 76 e 101.

visual das cabras, a posio de Robinson em relao a elas) e tratado por conseguinte. O desejo frustrado no explode em fria irracional; o desejo consumado no se esvai em preguia satisfeita. A cada vez recomea-se do princpio: um enchimento sucede a outro, at que o objetivo seja atingido. Dividir ordenadamente o fluxo confuso da vida, precisar bem os elementos, concatenar com mtodo os meios aos fins em suma, racionalizar a existncia o primeiro passo para domin-la. O estilo analtico revela aqui a sua origem pragmtica, a meio caminho entre a natureza de Bacon (que se comanda obedecendo-lhe) e a burocracia de Weber, com sua "excluso do amor e do dio, de todos os elementos afetivos puramente pessoais, em geral irracionais e incalculveis". E pensamos de novo em Flaubert a quem de resto a "impessoalidade 'objetiva'" do burocrata weberiano ("to mais perfeito quanto mais se 'desumaniza'") no seria de modo algum desagradvel28.

As estradas se dividem: narrar ou descrever?

Impessoalidade "objetiva": eis um belo modo de resumir a essncia do estilo analtico que "objetivo", entre aspas (como tambm, mais tarde, a "seriedade 'objetiva'" de Mimesis), no porque os seus muitos detalhes possam abolir a diferena entre a representao e o seu objeto (isso nunca ser possvel, sejam quantos forem os detalhes), mas porque a sua presena macia empurra a personalidade do escritor para as margens do quadro. Enfim, no tanto a objetividade que aumenta; a subjetividade que diminui. Hans Robert Jauss:

(29) Jauss, Hans Robert. "Storia dell'arte e storia generale". In: Storia della letteratura come provocazione. Turim, 1999, pp. 238-239, grifo meu.

A ento nascente historiografia do sculo XIX [...] seguia o princpio de que o historiador deve esconder a prpria presena, de modo que a histria se narre por si mesma. A potica aqui implcita no outra seno a do romance histrico [...]. Contudo, essa nova potica da narrao histrica ainda no se caracteriza por aquela explorao material e por aquela revitalizao potico-anedtica do passado com que os romances de Walter Scott sabiam satisfazer a curiosidade histrica infinitamente melhor que a historiografia precedente. Que o romance scottiano pudesse incitar a historiografia cientfica a uma representao individualizante do passado, coisa de que a historiografia precedente no era capaz, justamente isso dependia de um princpio formal. O que nos romances de Scott tanto impressionou Augustin Thierry, Barante e outros historiadores da dcada de 1820 foi [o fato de que] o narrador do romance histrico fica inteiramente no fundo da cena29.

O narrador que fica no fundo da cena... Tomemos Castle Rackrent, o romance (quase) histrico de Maria Edgeworth publicado em 1800 (e que MARO DE 2003 21

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Scott, no "General preface" de 1829 aos Waverley novels, apresenta como o modelo de seu prprio trabalho). Castle Rackrent inteiramente narrado por um velho criado e factotum irlands, Thady Quirk, graas ao qual Edgeworth pode lanar uma ponte entre o ontem dos fatos narrados e o hoje da narrao, e tambm entre o alhures da vicissitude irlandesa e o aqui do pblico ingls. Thady um tipo vivaz, um pouco abjeto, um pouco dplice, que confere densidade narrativa; mas exatamente por isso ele no tem de fato a inteno de "esconder a prpria presena, de modo que a histria se narre por si mesma". Leiam-se estas duas descries, a primeira tirada de Castle Rackrent e a segunda de Kenilworth (1821), de Scott:

Fui o primeiro a ver a esposa, porque mal se abriu a porta da carruagem, e bem no momento em que ela apoiava o p sobre o degrau, aproximei o archote do seu rosto a fim de ilumin-lo, ao que ela fechou os olhos, mas consegui ver muito bem todo o resto, e tive um grande choque, porque luz era pouco melhor do que uma negra africana, e parecia coxa... O astrlogo era um homem de baixa estatura e parecia bem entrado em anos, pois sua barba era longa e branca e caa ao longo do seu colete negro at a faixa de seda. Os cabelos eram da mesma cor venervel, mas as sobrancelhas eram escuras, como os olhos negros, argutos e penetrantes que elas dominavam, e tal peculiaridade conferia algo de selvagem e singular fisionomia do velho. As mas do rosto ainda eram frescas e rosadas, e os olhos de que falamos, pela argcia e crueldade, faziam pensar nos de um rato.

Escolhi propositadamente dois trechos com o mesmo objeto um villain judeu, com todos os automatismos simblicos que tal figura comporta em tempos de anti-semitismo difuso , cujas diferenas no podem, portanto, ter origem temtica. Mas l esto as diferenas. Em Edgeworth, Thady se mistura fisicamente cena ("Fui o primeiro a ver... aproximei o archote... consegui ver muito bem...") e nela projeta as prprias reaes emotivas ("tive um grande choque... era pouco melhor do que uma negra africana"): o que sobretudo a passagem comunica so exatamente suas reaes pessoais. Em Scott, a personalidade do narrador "objetivada" nos detalhes interiores da cena: a barba especificada por dois adjetivos emotivamente neutros, seu comprimento mensurado sobre vestes comuns, das quais se diz a cor, o tecido... certo que aqui e ali ainda se percebe algum arroubo emotivo ("fisionomia selvagem", "os olhos faziam pensar nos de um rato"), mas, feitas as contas e ainda que o villain de Scott seja muito mais sinistro que o de Edgeworth , em Kenilivorth o decisivo a apresentao analtica da personagem, e no a sua avaliao tica; a definio interna da cena, no as reaes de quem est de fora.

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(30) Eis um exemplo, bonito demais para ser arruinado com uma traduo: "Away, away, ye varlets! I weened it was an iddle frolic! uncase in an instant; and off with these lozel knackeries!".

O historiador se pe de parte a fim de que a histria se narre por si mesma... Agora se compreende melhor o que Jauss tem em mente. Mas h um detalhe a mais: o estilo analtico-impessoal emerge no tanto na histria, mas nas descries. Vejamos. No Prefcio de 1829, pouco depois de mencionar Edgeworth, Scott fala de um outro proto-romance histrico, Queenhoo-Hall, de Joseph Strutt, publicado postumamente, em 1808, com uma "rpida concluso" escrita pelo mesmo Scott, a pedido do editor. Queenhoo-Hall foi um fiasco total, que Scott debita linguagem "excessivamente arcaica" de Strutt (propondo-se, de sua parte, a usar uma prosa "mais ligeira e mais apropriada compreenso geral"). Ora, bem verdade que de quando em quando o ingls de Strutt causa espanto 30 , mas a coisa no sempre assim, e no basta para explicar o insucesso. No caso, a maada mesmo o modo como Strutt descreve o passado. Eis como apresenta a casa que d ttulo ao romance:

Os Boteler eram uma famlia de renome em Hertfordshire. Lorde Edward Boteler, como j se disse, usufrua o favor do soberano, e tinha na corte um cargo importante. Queenhoo-Hall, a augusta casa da famlia, encontrava-se a cerca de quatro milhas da cidadezinha de Hertford; era um edifcio espaoso, e dele hoje ainda restam inmeros traos. Lorde Edward casou-se quando ainda era muito jovem...

"Um edifcio espaoso": final da descrio. Trs palavras. Scott gastaria pelo menos meia pgina, mas Strutt se detm o mais cedo que pode. E no s ele. Em The loyalists, de Jane West, romance de 1812 sobre a poca de Cromwell, a primeira descrio aparece depois de 334 pginas:

Os lugares que atravessaram na sua viagem a Londres ofereciam um amplo panorama das desventuras e delitos que acompanham as guerras civis. Em muitos lugares os campos no apresentavam traos de cultivo; em outros, a colheita fora antecipada ou deliberadamente destruda para subtra-la ao inimigo [...]. Os raros camponeses [...] no tinham o semblante alegre da laboriosidade satisfeita, mas traziam no rosto a dor e nas roupas a misria [...]. Os artesos desocupados apinhavam as estradas [...], demonstrando, com a magra ferocidade dos rostos e o esqulido desleixo das roupas, que da pobreza sem remdio emergem paixes violentas como a raiva, o ressentimento, a vingana e a revolta.

Os campos, o semblante dos camponeses, as roupas dos artesos... nada disso realmente descrito. Serve apenas para evocar as abstraes
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morais (laboriosidade, ferocidade, dor, insubmisso...) que so, no fundo, as verdadeiras "personagens" do romance e que, com efeito, logo metem mos obra (ao passo que a descrio seguinte acontece da a 250 pginas, e dura exatamente trs linhas). Descrever significa deter o curso dos acontecimentos risca: necessrio parar de narrar , e para Strutt e West evidente que um romance que renuncie a narrar um puro e simples contra-senso. mais ou menos o que acontece quando Edgeworth, em Belinda, evita os enchimentos: quando se escreve para contar o inaudito, no faz nenhum sentido retardar a narrativa com cenas da vida cotidiana e menos ainda det-la com descries graves e obstinadas. Todavia... Todavia, aquele que opta pelas descries torna-se um fenmeno internacional, mil vezes traduzido e reimpresso, mesmo sculos depois; j Strutt e West permanecem encastelados na British Library, a tomar p. Por qu? O que h por trs desse desejo de solidez e gravidade dos leitores europeus?

Realismus

A resposta, mais do que em Scott, ns a encontramos em Balzac. Mas intil analisar a descrio na Comdia Humana, Auerbach j o fez, e no h como fazer melhor. Portanto, Balzac

no s colocou os homens, dos quais narra a sorte com seriedade, na sua moldura histrica e social exatamente circunscrita, mas ainda entendeu essa ligao como necessria: para ele, cada espao se transmuda em uma atmosfera moral e sensvel, da qual se embebem a paisagem, a casa, os mveis, as alfaias, as roupas, os corpos, os caracteres, o comportamento, o sentir, o agir e a sorte dos homens31...

(31) Auerbach, Mimesis, loc. cit., p. 243.

O vnculo entre seres humanos e coisas concebido como uma necessidade: na Senhora Vauquer, em O pai Goriot, "mal se esboa uma separao entre o vesturio e o corpo, e no se pem limites entre a caracterstica fsica e o significado moral"32. Ora, essa inseparabilidade da pessoa e da coisa tambm tpica daquela grande ideologia poltica da primeira metade do sculo XIX que foi o pensamento conservador. Em Adam Mller, escreve Mannheim, as coisas so "prolongamentos dos membros do corpo", h uma "fuso de pessoa e coisas" (parece que lemos Auerbach sobre O pai Goriot); "a 'verdadeira propriedade' antiga estava ligada ao proprietrio de modo totalmente diverso daquela moderna", acrescenta de sua parte Justus Mser no ensaio Sobre a verdadeira propriedade. "Havia em suma uma relao exata, vital, recproca entre determinada propriedade e determinado proprietrio"33.
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(32) Ibidem, pp. 241-242.

(33) Mannheim, Karl. Conservatorismo. Nascita e sviluppo del pensiero conservatore. Roma/Bari, 1989, pp. 108-109, grifos meus.

FRANCO MORETTI

(34) Auerbach, Mimesis, loc. cit., p. 253, grifo meu. (35) Mannheim, op. cit., p. 118, grifo meu.

Mas em que se apia essa fuso de pessoa e coisas? Muito provavelmente, naquele outro pilar do paradigma conservador que a subordinao epistemolgica, mais que tica do presente ao passado. Ao se fundir com "paisagem, casa, mveis, alfaias", as personagens da Comdia Humana enredam-se nos decnios (ou mesmo nos sculos) passados: no toa, as maiores descries de Balzac geralmente dizem respeito a ancios, cuja vida no mais suscetvel de mudanas. Balzac "concebe o presente como histria, como resultado da histria", escreve o mesmo Auerbach: "as suas personagens e as suas atmosferas, por mais atuais que sejam, sempre so apresentadas como fenmenos derivados de acontecimentos e de foras histricas"34. E Mannheim: "o progressista vive o presente como incio do futuro, ao passo que para o conservador o presente a ltima fase alcanada pelo passado"35. Em ambos os casos h o mesmo impulso regressivo, a mesma espacializao da experincia histrica, na qual o presente aparece como a ponta do iceberg do passado: um qu de visvel, slido concreto, como quer uma outra palavra de ordem do pensamento conservador (e da retrica "realista"). Falei amide, nestas pginas, do carter analtico, impessoal e tambm, de certa forma, "imparcial" (Scott) do estilo descritivo do sculo XIX. Mas se os contedos das diversas descries podem ser efetivamente mais ou menos neutros, a forma da descrio, ao contrrio, persegue um projeto que nada tem de neutro e que particularmente tpico do ethos da Restaurao: deter a histria. Esta "pesa" a tal ponto sobre o presente e faz dele to nitidamente um apndice do passado que se torna difcil imaginar alguma alternativa. Hans Blumenberg:

(36) Blumenberg, Hans. Die Legitimitt der Neuzeit. Frankfurt, 1997, p. 52.

As "expectativas imediatas" negam qualquer durao [...], arrebatam o indivduo dos interesses histricos de seu povo e lhe impem a prpria salvao pessoal como preocupao imediata e crucial. Uma vez que esse o "o momento extremo ", pode-se at mesmo impor a quem quer que seja certas exigncias dele que contrastem com toda atitude realista [Realismus] em relao ao mundo, e que teriam o oposto do valor de sobrevivncia se o mundo viesse a perdurar36.

Exigncias irrealistas: se o mundo devesse perdurar... aqui que toma impulso (e fora) o realismo das descries do sculo XIX. O "momento extremo" da Revoluo e, depois, de Napoleo, com as suas expectativas imediatas de mudana radical, havia posto em dvida a "solidez" da sociedade europia; mas a Restaurao derrubou o veredicto: as aceleraes da histria so fenmenos efmeros, de superfcie; a realidade com que devemos de fato medir-nos a que perdura, que deita suas razes no passado e que s o realismo "denso" da descrio romanesca est em condies de apreender.

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Realismo como princpio de realidade, dizia eu a propsito de Defoe e Goethe; ou como Realpolitik, pode-se acrescentar, depois dos grandes conservadores Scott e Balzac. A poltica que "no opera no mbito de um futuro indefinido, mas face a face com aquilo que ", escreveu Ludwig August von Rochau, que cunhou o termo nos anos seguintes derrota da Revoluo de 1848 (isto , mais ou menos quando na Frana se comea a falar de ralisme artstico); o "realismo da estabilidade", acrescenta com amargura um annimo comentador liberal37. No que Balzac esteja todo aqui, naturalmente: h ainda aquele Balzac da narrao irrefrevel que faz lembrar a "fria do dissipar" hegeliana, ou a pgina do Manifesto sobre "o incessante abalo de todas as condies sociais, a incerteza e o movimento eternos da sociedade burguesa". Mas ao lado do Balzac de Marx h o de Auerbach, e essa mescla de narrao burguesa e descrio conservadora nos faz ver uma verdade importante sobre o romance do sculo XIX (e talvez sobre a literatura em geral): ele d o melhor de si ao forjar um compromisso entre sistemas ideolgicos diversos38. Um compromisso que, no caso, se assemelha quase a uma diviso do trabalho: cada tcnica mantm certa independncia, captura uma parcela distinta da realidade circunstante e transmite sua mensagem ideolgica especfica. Surge da uma estrutura compsita, que distribui as ndoles da classe dominante europia em nveis distintos do texto, conseguindo fazer que se correspondam: ao capitalismo o plano da narrativa, com o ritmo regular do seu novo presente; ao conservadorismo poltico as pausas descritivas, em que so mais fortes o peso e a visibilidade do passado. O burgus e o conservador. Tal o encontro decisivo para a forma do romance realista, de Goethe a Austen, Balzac, Flaubert, Mann (e Thackeray, os Goncourt, James... e Weber, naturalmente). A esse pequeno milagre de equilbrio, o estilo indireto livre deu o toque final.

(37) Sobre von Rochau e os Grundstze der Realpolitik [Princpios da Realpolitik], cf. Brunner, Otto, Conze, Werner e Koselleck, Reinhart (orgs.). Geschichtliche Grundbegriffe. Stuttgart, 1982, vol. IV, pp. 359ss; a citao annima encontra-se em Plumpe, Gerhard (org.). Theorie des brgerlichen Realismus. Stuttgart, 1985, p. 45.

(38) Sobre a literatura como formao de compromisso, o estudo clssico o de Francesco Orlando: Per una teoria freudiana della letteratura. Turim, 1973.

As estradas se dividem: poltica, estilo

Revista de Filologia Romnica, 1887. Em um longo artigo sobre gramtica francesa, Adolf Tobler observa, quase de passagem, que a presena do imperfeito nas frases interrogativas muitas vezes est ligada a "uma peculiar mistura de discurso indireto e direto, que assume daquele os tempos verbais e os pronomes e deste o tom e a ordem da frase"39. A "mistura" ainda no tem nome (e mais tarde ter nomes demais), mas o essencial foi dito: o estilo indireto livre um ponto de encontro entre discurso direto e indireto, entre personagem e narrador, entre diegesis e mimesis. Um exemplo tirado de Emma (1816), de Austen, que um dos primeiros romances a fazer uso constante desse expediente: Os cabelos foram frisados, a criada foi dispensada, e Emma sentou-se para refletir e se compadecer. Era mesmo uma desgraa! Tudo aquilo que ansiara fora pelos ares! Tudo aquilo que jamais teria
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(39) Tobler, Adolf. "Vermischte Beitrge zur franzsischen Grammatik". Zeitschrift fr romanische Philologie, 1887, p. 437.

FRANCO MORETTI desejado acontecera! E que golpe para Harriet! Aquilo era o pior de tudo (cap. XVI).

"Emma sentou-se para refletir e se compadecer. Era realmente uma desgraa!" O tom e a ordem da frase aqui grifados so os de Emma, do discurso direto. "Emma sentou-se para refletir e se compadecer. Era realmente uma desgraa!" Os tempos verbais e os pronomes, por sua vez, so os do narrador, do discurso indireto. E estranho: sentimo-nos imediatamente mais prximos de Emma (porque se rarefaz o filtro do narrador) e tambm mais distantes (Emma narra a si mesma, e assim se afasta). realmente uma mistura curiosa o indireto livre, e com um igualmente curioso vaivm no decorrer do tempo: freqente na Idade Mdia mas raro no Renascimento; presente em toda parte nas Fbulas de La Fontaine mas pouco comum no sculo XVIII; e no XIX, quando se torna uma espcie de quintessncia estilstica do romance europeu, as coisas so tudo, menos lineares. Na Inglaterra, por exemplo, por volta de 1800 o indireto livre paira claramente no ar, e o encontramos aqui e ali em muitos textos; no entanto, Austen a nica a fazer bom uso dele e a desenvolver todas as suas potencialidades expressivas. Por qu? O que h naquele pargrafo de Emma que repugna a Opie e Edgeworth, Hofland e Charlton e que funciona to bem em Austen? Procuremos uma resposta no interior da prpria tcnica. Em geral, o indireto livre no comparece ao acaso, mas em pontos especficos do texto, isto , prximo das grandes reviravoltas da narrativa: momentos de dvida, temor, excitao e sobretudo (como naquele trecho de Emma) nostalgia40. Nesses momentos crticos h por assim dizer um excedente de intensidade que permite "saltar" da histria ao discurso, vencendo a distncia que estruturalmente enorme entre a voz da personagem e a do narrador. Mas esses momentos so tambm ideais para o exato oposto do indireto livre, ou seja, para extrair a moral dos acontecimentos mediante digresses sobre as desastrosas conseqncias de uma conduta errada. Ao se acercar desses desdobramentos, ento, quem escreve se depara com uma bifurcao: pode realar a superioridade do narrador sobre a personagem com um trecho didtico ou exprimir a sua tendncia igualdade por meio do indireto livre. Uma coisa ou outra. E o que est em jogo aqui no apenas uma questo de estilo: so dois modos opostos de entender a literatura. No primeiro caso prevalece uma concepo didtica, segundo a qual um romance acima de tudo um meio para transmitir uma mensagem tica unvoca e explcita (e de regra muito severa). No segundo caso, a mensagem torna-se implcita e por vezes quase inadvertida. Ora, as contemporneas de Austen costumam ter uma idia justamente didtica da literatura: chegando quela bifurcao, escolhem (quase) sempre realar a misso tica do narrador e devem, para tanto, renunciar ao indireto livre. No que no saibam us-lo: no querem us-lo, porque esse estilo contradiz sua vocao essencial. Um exemplo de 1802: The wife and MARO DE 2003 27

(40) "Quando ocorrem as mudanas de papel [entre narrador e personagem]? De regra (...) os escritores reproduzem idias e reflexes do seu heri, submetido a padecimentos procedentes de sua situao incerta, oscilante" (Herczeg, Giulio. Lo stile indiretto libero in italiano. Florena, 1963, pp. 65-66 e 87). "Nos romances de George Eliot", escreve por sua vez Roy Pascal (The dual voice. Manchester, 1977, p. 78), "a atitude da personagem em situao de tenso e de crise tende quase sempre a ser apresentada por meio do estilo indireto
livre".

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the mistress, de Mary Charlton. Lady Melville, viva h dois meses, reflete sobre sua prpria situao:

Um segundo casamento, de fato, seria possvel mas o que afinal lhe proporcionaria um segundo casamento? [...] Renovaria as correntes de que h pouco se libertara, para torn-la uma escrava em vida, ou talvez, depois de alguns anos de uma servido que se adaptaria mal altivez de seu esprito, tom-la novamente a viva sem recursos de um imbecil, cuja famlia veria nela uma estranha a sustentar, um fardo...

At aqui, tudo flui: o tom e a ordem frasais do discurso direto; os tempos verbais e os pronomes do discurso indireto. Em seguida, Charlton conclui:

No lhe passava pela cabea que essas queixas fossem comuns maioria das mulheres de sua classe, e at s de condio muito superior e inferior. No! a sua indignao provinha da idia de que o seu fosse um caso de todo particular!

Duas exclamaes em seguida, aquele "No!" posto em extraordinrio relevo tipogrfico, a repentina averso a Lady Melville (que uma pgina depois torna-se "vaidosa, ambiciosa e desnaturada"). Que transtorno! Talvez Charlton sentisse o incmodo de parecer indistinguvel de Lady Melville; talvez no suportasse a idia de uma "conscincia representada sem a mediao de um ponto de vista sentencioso"41. E se alguma leitora acabasse pensando que Lady Melville tinha razo a propsito do casamento? Isso nunca! Assim, Charlton afasta-se de chofre de sua herona: antes que sua prpria voz se misture dela, eleva uma para condenar a outra e "desliga" o indireto livre. A pureza ideolgica leva a melhor sobre a flexibilidade estilstica. compreensvel. Mas, e Austen? Como que ela sabe renunciar s penadas didticas, deixando ento fermentar o indireto livre das poucas frases de Northanger Abbey at as longas passagens de Orgulho e preconceito, Mansfield Park ou Emma? O que torna Austen to mais flexvel que suas rivais? Vejamos antes de mais nada "como" Austen age, e depois discutiremos o "porqu". Um outro exemplo, desta feita de Orgulho e preconceito: o momento em que o casamento entre Darcy e Elizabeth parece definitivamente ir por gua abaixo.

(41) Banfield, Ann. Unspeakable sentences. Narration and representation in the language of fiction. Boston, 1982, p. 97.

Agora comeava a perceber que ele era exatamente o tipo de homem que, por disposio de esprito e dons naturais, teria sido conveniente para ela. A inteligncia e o carter dele, ainda que diversos dos seus,
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teriam correspondido a todos os seus desejos. Era uma unio que teria sido vantajosa para ambos; a graa e a vivacidade dela teriam adoado o esprito e melhorado as maneiras dele, enquanto ela receberia um benefcio ainda maior em virtude da capacidade de julgamento dele, da sua cultura e experincia do mundo (cap. L).

guisa de comentrio, as palavras com que Roy Pascal expe as teses de Bally sobre o indireto livre:

(42) Pascal, op. cit., pp. 9-10.

L onde o estilo indireto simples tende a obliterar o idioma pessoal caracterstico do falante, o estilo indireto livre conserva alguns de seus elementos a forma da frase, as perguntas e as exclamaes, o tom, o lxico individual , assim como o ponto de vista subjetivo da personagem42.

Preservar o tom individual e o ponto de vista subjetivo, em vez de obliter-los. Pascal est falando de estilstica, mas as palavras que usa evocam uma outra coisa, bem diversa: refiro-me ao modo com que o processo de socializao moderno evita anular as peculiaridades individuais (tentao perene de todo didatismo) e limita-se a dilu-las, tornando-as compatveis com a sintaxe suprapessoal das relaes sociais. Reaparece aqui a figura do compromisso, evocada na seo precedente. Por um lado, o capitalismo moderno de fato necessita de energias subjetivas um pouco alm da mdia; quer a originalidade e o esprito empreendedor de uma Elizabeth Bennet, por assim dizer (pelo menos da classe mdia para cima). Por outro, a racionalizao das relaes sociais exige o nivelamento, a "impessoalidade" e a abstrao to bem representados pela voz narrativa de Austen. Bem, o estilo indireto livre a tcnica ideal para dar forma a esse compromisso: deixa um espao livre voz individual (e um espao varivel, conforme as personagens e as circunstncias: exatamente como sucede s pessoas de carne e osso no curso de sua socializao) mas ao mesmo tempo mistura e subordina a expresso individual ao tom abstrato e suprapessoal do narrador. E parece quase emergir uma terceira voz, uma voz intermediria e quase neutra justamente como naquela pgina de Orgulho e preconceito, em que difcil desembaraar as emoes de Elizabeth do bom senso de Austen, to profundamente se acham intricados. "A inteligncia e o carter dele, ainda que diversos dos seus, teriam correspondido a todos os seus desejos"... Quem fala aqui? Elizabeth? Austen? Talvez nem uma nem outra, mas a voz do contrato social firmado, a voz do indivduo socializado. O compromisso foi firmadoe, mais uma vez, sob o signo da seriedade: sem os dramas ou as burlas das narraes didticas. Um pouco de ironia, um pouco de melancolia, e vamos em frente.

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Falar de compromisso no significa porm falar de equilbrio: afinal de contas, o resultado daquela passagem que Elizabeth aceita ver a si mesma "Agora comeava a perceber..." com os olhos do narrador. Observa-se de fora, como se fosse uma terceira pessoa (uma terceira pessoa: aqui a gramtica do indireto livre faz sentir o seu peso simblico), e d razo a Austen. O indireto livre um estilo tolerante, mas tambm sempre o estilo da socializao-, no da individualidade. O tom emotivo permanece aquele de Elizabeth, subjetivo, de discurso direto, mas um tom que se inclina ao valor mais alto que a inteligncia "objetiva" (isto , socialmente aceita) das coisas. "A Herona que Erra", como a chama Marilyn Butler, aprendeu a se corrigir:

O enredo dos romances antijacobinos conduz a um momento decisivo no qual a personagem obrigada a reconhecer seus prprios erros e aprende a tomar o seu lugar no mundo como ele [...]. Esse momento de autoconscincia e de auto-submisso, seguido pela inteno de se fazer guiar doravante pela razo, o ponto culminante de muitos romances antijacobinos43.

Austen entre os contra-revolucionrios? Sim e no. Sim, porque o armamento ideolgico dos antijacobinos o auto-engano, a presuno individual de que se dever fazer autocrtica, a vitria final do mundo "como ele " tambm tem presena marcante em Austen. Mas nela h algo que a faz diferente dos outros: no os valores que so os mesmos , mas a avaliao das relaes de fora. Austen, vale dizer, sim uma conservadora, mas uma conservadora otimista, vontade no presente: convicta de que ele deve ser defendido, certo, mas tambm de que no corre absolutamente aquele perigo imediato temido por muitos (e que produz aquela intransigncia didtica44 to fatal ao indireto livre). Austen no est amedrontada. Talvez seja apenas pela sorte de comear a escrever dez anos depois das outras, quando o pavor Revoluo j havia passado. Seja como for, o seu senso de realidade lhe sugere que no horizonte no h anarquia poltica nem desagregao das relaes sociais, mas apenas um compromisso entre os vrios componentes da classe dominante (entre Darcy e Elizabeth, digamos), como a Gr-Bretanha j vira tantos desde o final do sculo XVII. E com esse compromisso condiz muito bem a "curiosa mistura" tambm ela um compromisso do indireto livre, em que a "verdade" do Ancien Rgime prevalece sobre os sentimentos da nova poca, deixando-os todavia livres para se manifestar. Uma conservadora otimista. Como Goethe, Scott, Balzac: todos conservadores, mas tambm todos capazes daquele "vivo prazer pelo que existe" que Butler reconhece em Austen. O jogo est ganho; no h mais necessidade de rufos didticos, nem h o que temer se o indireto livre deixa narrativa certa margem de ambigidade. A Realpolitik deixa livre o caminho nova tcnica, a qual, por certo, confere a Austen um flego esttico e histrico que

(43) Butler, Marilyn. Jane Austen and the war of ideas. Oxford, 1987, pp. 107 e 166. Como se v, a estrutura narrativa de base do romance antijacobino muito semelhante que Hegel, na Esttica, atribui ao romance tout court.

(44) Na histria do romance ingls, escreve ainda Butler (op. cit., p. 97), "nunca houve obras to inflexivelmente didticas como os romances conservadores da gerao posterior a 1790".

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falta s suas rivais. Torna-a, como se diz, muito mais ousada mas a ousadia depende mais do cinismo poltico que da mestria estilstica.

O estilo frouxo: Flaubert e o indireto livre

Observamos os primeiros passos do indireto livre. Vejamos agora um exemplo plenamente maduro: Emma Bovary ao espelho, aps seu primeiro adultrio:

Ao se ver no espelho, admirou-se de seu aspecto. Nunca tivera os olhos to grandes, to negros e to profundos. Um qu de sutil, difuso por toda a sua pessoa, transformava-a. Repetia a si mesma-. "Tenho um amante! Um amante!", deleitando-se com a idia como se uma nova puberdade lhe sobreviesse. Agora, finalmente, teria as alegrias do amor, a febre de felicidade de que perdera a esperana. Estava penetrando em algo de maravilhoso em que tudo era paixo, xtase, delrio, uma imensido azulada a circundava, os pncaros do sentimento cintilavam sob o seu pensamento, e a vida cotidiana mostrava-se ao longe, mais embaixo, na sombra, nos intervalos daquelas alturas (parte II, cap. IX).

(45) "E assim, depois dessa primeira culpa, depois dessa primeira falta, ela leva a efeito uma glorificao do adultrio, ela entoa o cntico do adultrio, a sua poesia, as suas volpias. Eis, senhores, o que para mim bem mais perigoso, bem mais imoral do que a prpria falta!" (apud Flaubert, Gustave. Oeuvres, org. por Albert Thibaudet e Ren Dumesnil. Paris, 1951, vol. I, p. 623). (46) Jauss, Hans Robert. Perch Ia storia della letteratura? Npoles, 1969, pp. 105-106. (47) Apud Flaubert, Oeuvres, loc. cit., p. 632. (48) Um exemplo entre outros: "Multas vezes, e quase continuamente, ouvimos em Stendhal e Balzac o que o escritor pensa das suas personagens. [...] Tudo isso falta completamente em Flaubert. A sua opinio sobre fatos e pessoas nunca expressa [...]. Ouvimos, verdade, o escritor falar, mas sem que exprima opinies ou comentrios" (Auerbach, Mimesis, loc. cit., pp. 259-260).

Em fevereiro de 1857, no seu requisitrio contra Madame Bovary, o procurador Ernest Pinard dedicou palavras particularmente speras a essa passagem "bem mais imoral do que a prpria falta"45. Compreende-se: naquela pgina o indireto livre viola de modo inequvoco "o velho hbito de incluir juzos morais unvocos e autnticos sobre as personagens" 46 . Com efeito, insiste Pinard:

Haver no romance algum que possa condenar essa mulher? No, ningum. Essa a concluso. No h no livro uma s personagem que a possa condenar. Se houver uma nica personagem virtuosa, ou ao menos um princpio abstrato um s com base no qual o adultrio seja condenado, ento estou errado47.

Longe de estar errado, um sculo e meio de crtica no fez seno lhe dar razo48; Madame Bovary a consumao lgica daquele processo que subtraiu a literatura europia s suas antigas funes didticas: o narrador que tudo sabe e tudo julga sai de cena, substitudo justamente por doses macias de estilo indireto livre. At aqui esto todos mais ou menos de acordo, mas quanto s conseqncias histrico-culturais desse fato o acordo cessa e o
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O SCULO SRIO campo se divide em dois. Para alguns, o indireto livre um tipo de ruptura poltica que pe o romance europeu em conflito com a cultura dominante; para Jauss, por exemplo, ele "obriga o leitor [...] a uma intrigante incerteza de juzo [...] e revolve um problema de moral pblica [como julgar o adultrio] que j parecia resolvido"49. Pinard, em suma, compreendeu muito bem o que estava em jogo no tribunal de Rouen: Flaubert ameaava a ordem constituda. Sorte nossa que Pinard tenha perdido e Flaubert, vencido. A outra posio v as coisas de modo oposto. O indireto livre uma espcie de panptico tornado estilo, um dispositivo foucaultiano que dissimula e dissemina por toda parte a master-voice do narrador, que permite "limitar, cancelar, aprovar ou subsumir todas as outras vozes a que se concede a palavra"50. Nessa outra perspectiva, a diferena entre Pinard e Flaubert no aquela entre represso e crtica, mas entre uma forma obsoleta e um pouco estpida de controle social e uma outra mais flexvel e eficaz. Dois tipos de poder simblico: duas formas da mesma coisa, em suma. Se essas fossem as duas nicas posies possveis, creio que escolheria a segunda; no fundo, minha interpretao do indireto livre em Austen no est muito longe disso. Mas o caso Flaubert me parece diferente, mais extremo. As frases de Madame Bovary, por exemplo, as palavras de Emma que tanto enfurecem o procurador Pinard... so realmente de Emma? No, naturalmente: so as dos romances sentimentais que ela leu quando moa, aos quais sucumbiu. So lugares-comuns, mitos coletivos ("no amor tudo paixo, xtase e delrio"), so o signo do social que est dentro dela, e no de sua individualidade. Quem fala? perguntei-me mais acima a propsito de Austen: a personagem ou o narrador? Talvez nem um nem o outro, mas a "terceira voz" do contrato social. Bem, aquilo que em Austen ainda estava latente, em Flaubert tornou-se realidade: personagem e narrador perdem as suas vozes distintas e so suplantados um pouco em toda parte pelo tom abstrato e sempre igual da ideologia corrente. O timbre emotivo, o lxico, a forma da frase todos os elementos aos quais a crtica recorre para separar o lado subjetivo e o objetivo do indireto livre agora amalgamaram-se na voz nica, deveras impessoal e objetiva, da ide reue. Mas se isso verdadeiro, ento preocupar-se com a master-voice do narrador de fato suprfluo: antes de Flaubert, a doxa j cuidara de regular "limitar, cancelar e subsumir" o esprito de Emma. E assim o problema se inverte. Em uma sociedade j de todo homognea, como para Flaubert a Frana da segunda metade do sculo XIX, o estilo indireto livre se mostra assustadoramente inerme diante da ideologia dominante: a sua "seriedade objetiva" o paralisa e impede de reagir; j que a voz do narrador se misturou das personagens (e portanto, por seu intermdio, da cultura corrente), no h como voltar atrs. A mistura entrpica: irreversvel fim das diferenas, como na gente "nivelada pela mdia" de Eliot. A socializao cultural se operou a fundo: das tantas vozes que havia, restou apenas "um nvel intelectual mdio, em torno do qual oscilam as inteligncias individuais de cada um dos burgueses" 51 . o terror de Bouvard e Pcuchet: no h bem como distinguir um romance sobre a estupidez de um romance estpido.

(49) Jauss, Perch Ia storia della letteratura?, loc. cit., p. 107. A tese de Jauss retomada por Dominick La Capra (Madame Bovary on trial. Nova York, 1982, p. 18), que escreve com entusiasmo sobre o "crime ideolgico" cometido por Flaubert, e por Dorrit Cohn {The distnction of fiction. Princeton, 1999, pp. 170ss). (50) Miller, D. A. Tbe novel and the police. Berkeley, 1988, p. 25.

(51) Descharmes, Ren. Autour de Bouvard et Pcuchet. Paris, 1921, p. 65.

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FRANCO MORETTI

Recebido para publicao em 14 de fevereiro de 2003. Franco Moretti professor do Departamento de Ingls e Literatura Comparada da Universidade Stanford, onde tambm dirige o Centro para o Estudo do Romance. Publicou nesta revista "Conjeturas sobre a literatura mundial" (n 58).

Novos Estudos CEBRAP N. 65, maro 2003 pp. 3-33

Assim termina o sculo srio do romance europeu. Essa forma "weberiana", em que o tempo se regulariza, as coisas se tornam graves, a personalidade se oculta e a lngua se nivela. Essa forma que nasce metade burguesa e metade conservadora e que no mais se livra dessa dupla hipoteca, a que deve, igualmente tanto de sua inteligncia histrica. Essa forma sria, e um pouco triste, que com tanto empenho busca mudar o imaginrio da Europa e torn-lo, como se diz, menos romanesco. Teve xito? No decurso do sculo XIX a coisa deve ter parecido possvel, talvez at ao alcance da mo. verdade que a conquista das massas pelo romance "romanesco" (aquilo que em ingls se chama romance, em oposio a novel) jamais foi arranhada por gente como Austen, Flaubert ou Eliot; mas tambm verdade que o estilo srio (estilo de vida, no s literrio) conquistava cada vez mais seguidores mesmo fora da "burguesia culta", que era seu lar. Mas depois, no sculo XX, quase tudo mudou, e de chofre. Poltica e economia se desembaraaram sem saudade dos velhos hbitos burgueses; a indstria cultural cultivou os excessos do sentimento, mais que o comedimento; a grande arte do incio do sculo odiou o realismo com absoluto fervor, e depois o realismo "mgico" providenciou o reencantamento da experincia da modernidade. Cercado por todos os lados, e provavelmente cansado de si, o estilo srio rendeu-se e saiu de cena. Ao nos despedirmos dele, recordemos como foram estreitos os seus limites. Uma vida toda de trabalho, sempre. Poucos sorrisos, poucas surpresas. Mas recordemos tambm que a seriedade burguesa representou a descoberta entre amarga e orgulhosa de que nada nos regalado, jamais; e que s uma ateno intensa e constante pode dar forma ao mundo. Disso, em nosso tempo frouxo e injusto, talvez seja lcito sentir certa nostalgia.

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