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CliniCAPS, Vol 4, nº 10 (2010) – Artigos

Uma "brecha" na fantasia: o traço de perversão

A "hole" in the phantasy.

Celso Rennó Lima


Formado em Medicina pela UFMG em 1971.
Título de Especialista em Psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria.
Psicanalista Membro da Associação Mundial e Psicanálie
Ex Diretor da Escola Brasileira de Psicanálise
Ex Membro da Conselho da Associação Mundial de Psicanálise.
Docente do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de MG.
Endereço postal
Av. do Contorno, 4.747, sala 909. CEP: 30.921-110.
Email: [email protected]

Resumo: Trata-se de um trabalho de pesquisa no texto freudiano em alemão sobre a


palavra traço. Pode-se constatar que existem três palavras diferentes (Zeichen, Spur e
Zug) que são traduzidas para as línguas latinas e inglés por uma só, perdendo-se com isto
as importantes difetrenças conceituais. A partir desta constatação pode-se estabelecer
um novo aporte teórico à clínica das perversões a partir do traço de perversão.
Palavras-chave: Fantasia, Inconsciente, Traço, Perversão

Abstract :This text is a work of research in the freudian text in germany of the word trace.
It coulf be verified that there are three diferent words (Zeichen, Spur e Zug) thar can only
be translated for one word to the latin and english languages. With this, important
conceptual diferences are lost. This finding made possible the construction of a new
teoretical approach to the clinic of perversions taking into consideretion the trace of
perversion.
Key-words: Phantasy, Unconscious, Trace, Perveversion
CliniCAPS, Vol 4, nº 10 (2010) – Artigos

A clínica

Quando João me procurou pela primeira vez, deixou bem claro porque o fazia:
«Quero dar um jeito para evitar que minha mulher me deixe». Logo em seguida ele
esclareceu do que se tratava: «Minha ejaculação precoce e minha compulsão para
me masturbar em situações estranhas estão me prejudicando».
João tinha, à época desta primeira entrevista, mais de quarenta anos de idade, uma
posição sócio-econômica boa e uma família. No entanto, mais uma vez, tudo isto
estava sendo ameaçado pelo seu comportamento "incontrolável".
À medida que as entrevistas foram se sucedendo e a história de João foi
sendo construída, alguns pontos puderam ser destacados: nascido de família
pobre, foi filho caçula de uma prole não muito numerosa. Desde cedo sofreu muito
com as brutalidades de seu pai, nos raros momentos em que este estava presente
em casa. Isto fez com que se "achegasse" muito à mãe, com quem sempre manteve
uma relação muito próxima. Talvez por isso tinha muita raiva quando percebia as
"saídas" de sua mãe para encontros amorosos.
Data desta época o relato feito por sua mãe, nos raros momentos em que
demonstrava alguma ternura por seu pai: «Quando o conheci ele estava lindo, todo
vestido de branco, parado, olhando fixamente para uma imagem de Nossa
Senhora» (talvez seja importante assinalar aqui que João tem uma profissão que lhe
exige andar vestido de branco todo o tempo).
A vida sexual de João começou muito cedo e de forma intensa. De suas
lembranças, a que mais o incomoda, e que custou um bom tempo até que pudesse
ser relatada, dizia respeito aos momentos em que aguardava sua mãe trocar de
roupa para observá-la, através de uma brecha na cortina que separava os cômodos
da casa. Observando-a, João se masturbava.
Desde então João aderiu à prática sistemática da masturbação, sempre
procurando uma brecha (ele denominou esta prática de "brechar") para olhar
alguma mulher e, no espaço de tempo entre ela ir e vir, passando pelo seu campo
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de visão, ele "tinha" que atingir o orgasmo. Isto, conforme sua própria
interpretação, era a razão de sua ejaculação precoce.
Com o passar do tempo, esta prática foi se acentuando até começar a
acontecer em lugares públicos (ônibus, praia, local de trabalho) sempre sob a égide
de um impulso incontrolável. Diga-se de passagem que, apesar de João dizer que
«sempre tomava cuidado para não ser visto», foi expulso de seu trabalho por duas
vezes, por ter sido «apanhado em flagrante». Inclusive, recentemente, sua mulher o
havia "visto" se exibindo para a empregada doméstica e por isso estava com receio
de perdê-la.
Apesar destes fatos da clínica de João, aqui descritos, não serem suficientes
para que possamos definir um diagnóstico, posso dizer-lhes que se trata de um
sujeito histérico com traços de perversão bem definidos e que se sustentam no par
"olhar - ser olhado".
O objetivo agora será tratarmos, pontualmente, destes "impulsos" que
escapam ao "controle" e que demonstram uma incapacidade do sujeito de se
interpor, enquanto efeito, a esta vontade de gozo. Em outras palavras,
incapacidade de fazer existir um tempo para compreender entre o instante de olhar
e o momento de concluir.
Mas, o que se passa com esta estrutura que vai possibilitar esta "brecha"?

Traço de perversão

Uma questão, mais do que outras, se me apresenta neste ponto: o que é


traço? Optei por começar com uma pesquisa: como e em que contextos Freud
utiliza a palavra traço em sua obra? Trabalhando então com o texto original, em
alemão, e cotejando-o com as traduções em inglês e português, pude observar que
em alemão existem pelo menos três versões para a palavra traço: Zeichen, Zug e
Spur. E, como não podia deixar de acontecer, cada uma delas nos remete a recortes
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conceituais diferentes que, infelizmente, se perdem quando da tradução por uma


única palavra em outras línguas.
Com o intuito de dar uma sequência ao trabalho, escolhi algumas passagens
da obra de Freud onde encontramos cada uma destas palavras. Penso que são
passagens representativas e que poderão clarear suas respectivas conceituações.
Encontramos a palavra Zeichen (traço, sinal, distintivo, insígnia, indício)
principalmente no "Projeto para uma psicologia científica", "Carta 52 da
correspondência a Fliess" e "Interpretação dos sonhos". Tomemos como exemplo a
"Carta 52" e vejamos como Freud se dirige a Fliess: «[...] Você sabe, eu trabalho com
a suposição de que nosso mecanismo psíquico aparece através de camada sobre
camada: o material presente na forma de traços de memória (Erinnerungsspuren)
sofre de tempos em tempos um rearranjo, uma transcrição após novas relações. O
essencialmente novo em minha teoria é a afirmação de que a memória se apresenta
não de uma forma, mas de várias formas, em diferentes maneiras de traços
(indícios: Zeichen)[...]»1.
Mais adiante, na mesma "Carta 52", quando está a definir o que seja cada
uma das "camadas", Freud vai nos dizer que uma delas é a WZ
(Wahrnehmungszeichen) - traços de percepção - e que consiste no «primeiro registro
da percepção[...]»2. Sem muito me alongar em citações, posso dizer-lhes que em
todas as outras ocasiões, por mim analisadas, em que surge a palavra Zeichen, ela
vem sempre com o sentido de indicações, insígnias, ou seja, ligada à percepção.
Posso inclusive associá-la à palavra Vorstellung (apresentação), tão comum nos
escritos freudianos posteriores.
Quanto à palavra Zug (traço, sulco, puxada, puxão), vamos encontrá-la
principalmente em duas passagens:

1
FREUD S., "Carta 52", Obras Completas, Edição Standard Brasileira, vol. I, Rio de Janeiro, Imago, 1969, p. 254; Aus
den Anfängen der Psychoanalysis, London, Imago Publishing - CO, LTD, 1950, p. 185; Standard Edition of the Complete
Psychological Works, vol. I, London, The Hogarth Press, 1973, p. 233.
2
FREUD S., ibid.
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1. No texto "Uma criança é batida", primeiro parágrafo da segunda parte:


«Uma fantasia deste tipo, proveniente talvez de causas acidentais na infância e
mantida para o propósito de satisfação auto-erótica pode, à luz de nosso
conhecimento presente, somente ser vista como um traço primário (primaren Zug)
de perversão»3.
2. Em "Psicologia das massas e análise do eu", parte VII - A identificação.
Esta citação foi a mesma utilizada por Lacan em seu seminário "A identificação",
para trabalhar o conceito de traço unário: «Deve também nos surpreender que em
ambos os casos a identificação seja parcial e extremamente limitada (höscht
beschränkte), tomando emprestado apenas um traço único (einzigen Zug) da pessoa
que é seu objeto»4.
Talvez possamos encontrar outras passagens em que Freud utilize a palavra
Zug; a mim, no entanto, não foi possível localizá-las nos textos que trabalhei.
Portanto penso que posso dizer-lhes que o conceito de Zug está fundamentalmente
associado aos conceitos de primário e unário. Para dar um passo a mais posso
dizer-lhes, também, que o einziger Zug tem como consequência lógica a Bejahung
primordial.
Enfim, examinemos a palavra Spur (traço, vestígio, pista, rastro). Esta,
talvez, seja a palavra alemã, para traço, que Freud mais utiliza ao longo de sua
obra. Dois textos, no entanto, são de capital importância para apreendermos o
conceito de Spur em Freud: "Carta 52" e "Notas sobre o bloco mágico". Na "Carta
52", por exemplo, quando Freud nos descreve a camada W (Wahrnehmung) ele é
bastante claro ao dizer que se trata de neurônios nos quais "nenhum traço" (kein
Spur) do que acontece permanece5. Só vamos ver surgir os traços (Spuren) quando

3
FREUD S., "Uma criança é espancada", Obras Completas, op. cit. vol. XVII, p. 228; Studienausgaben, vol. VII,
Frankfurt, Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, p. 233; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol.
XVII, p. 181.
4
FREUD S., "Psicologia das massas e análise do eu", Obras Completas, op. cit. vol. XVII, p. 135; Studienausgaben, op.
cit. vol. IX, pág. 100; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. XVII, p. 107.
5
Vide nota 1
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do segundo registro (UB - Unbewusst): «[...] traços do Inconsciente (UB Spuren) são
algo equivalentes a lembranças conceituais (Begriffserinnerungen)[...]»6.
Posso lembrar-lhes, neste ponto, que estes UB Spuren são o que Freud vai
chamar, mais tarde, de Vorstellungsreprasentanz que é, como nos diz Lacan «o
significante que é recalcado, pois não há outro sentido a dar nesses textos a esta
palavra»7.
No entanto, é no texto "Notas sobre o bloco mágico" que Freud vai trabalhar
exaustivamente o conceito de Spur que estará sempre ligado ao conceito de
memória (Erinnerung) e permanência (Dauer).
A partir do que lhes trouxe até aqui, uma hipótese surge: mais do que
simples diferenças de traduções ou de grafia, cada uma destas palavras utilizadas
por Freud apontam um recorte conceitual preciso e nos ajudam a pensar, não só os
vários "tempos" do sujeito, como também questões clínicas como "traços de
perversão".
Na "Carta 52", nosso ponto de partida, Freud nos fornece o seguinte
esquema:

W ------ WZ ------ UB ------ VB ------ Bews


I II III

«W (Wahrnehmung) - São neurônios nos quais a percepção começa, aos quais


a consciência se liga. Neles, nenhum traço (kein Spur) do que acontece,
permanece[...]».
«WZ (Wahrnehmungszeichen) é o primeiro registro (Niederschrift) da
percepção. Sua conscientização é totalmente incapaz de se fazer (der Bewusstsein
ganz unfahig) e são organizados de acordo com associações por simultaneidade (ach
Gleichzeitigkeitsassoziation gefüt)».

6
Vide nota 1.
7
LACAN J., "Sur la théorie du symbolisme d'Ernest Jones", Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 714.
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«UB (Unbewusst) - É o segundo registro (Niederschrift); é ordenado conforme


algo assim como relacionamento causal. Os traços (Spuren) de UB são equivalentes
a algo assim como lembranças conceituais (Begriffserinnerung) e, da mesma forma,
inacessíveis à consciência».
«VB (Vorbewusst) - é a terceira transcrição (Umschrift), ligada à representação
de palavra (Wortvorstellung), e é aquilo que se refere ao nosso eu oficial»8.
No desenvolvimento que Freud faz do esquema da "Carta 52", ele utiliza de
maneira bastante clara os conceitos Zeichen e Spur. Será possível, neste ponto,
introduzir no esquema da "Carta 52" o conceito de Zug a partir do que conhecemos
da obra posterior de Freud e dos desenvolvimentos lacanianos?
Com toda a ousadia que me é permitida numa situação como esta, eu introduzo o
conceito Zug, mais especificamente, einziger Zug, entre as camadas WZ e UB:

W ------ WZ ------ einziger Zug ------ UB ------ VB ------ Bews

Com o desejo de substanciar teoricamente o que acabo de propor, lanço mão


do esquema R, assim como Lacan o desenvolve no seu texto "Questão preliminar a
todo tratamento possível da psicose"9.

Esquema R10

8
Vide nota 1.
9
LACAN J., "D'une question preliminaire à tout traitement possible de la psychose", op. cit. p. 553.
10
Lacan,,J. Questão Preliminar a Todo Tratamento Possível da Psicose, in Escrito.
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O esquema R é um desdobramento do esquema L, primeiramente


desenhado no seminário sobre "A carta roubada". Ele é dividido em três partes:
1. O triângulo imaginário.
2. A faixa do real (leia-se realidade), faixa esta que, uma vez extraído o
objeto a, vai sofrer uma meia torção, transformando-se em uma banda de Moebius
para nos dizer do sujeito e do pouco-de-realidade.
3. O triângulo do simbólico.
Em cada um dos seus vértices Lacan vai instalar uma letra, designando cada
uma, o grande A no caminho do sujeito. Estas letras também nos auxiliam a
matemizar as três posições do analista na direção da cura. São elas: M - no instante
de olhar, a mãe enquanto das Ding; I - no tempo para compreender, o ideal do eu
enquanto matriz simbólica e, enfim, em P - o momento de concluir pelo Nome-do-
Pai enquanto representante da lei. No que diz respeito ao caminho do sujeito,
posso localizar a privação do sujeito no real em M, onde vai faltar um objeto
simbólico no real; a frustração na posição I, onde falta um objeto real no imaginário
especular; e finalmente a castração em P, instalando-se definitivamente a falta no
simbólico de um objeto imaginário.
Neste ponto uma articulação entre o esquema freudiano e o lacaniano me
parece possível: M corresponderia às camadas W e WZ, estas camadas iniciais do
aparelho psíquico freudiano da "Carta 52". Este momento onde existem apenas e
tão somente percepções, ou seja, nem sujeito nem objeto a serem percebidos.
Existem apenas percepções que, num certo momento vão se constituir em traços,
insígnias, formando o que Freud denominou no "Projeto para uma psicologia
científica" de "o complexo do semelhante" (Der Nebenmensch Komplex).
O importante aqui fica por conta do fato de que não se distingue ainda a
qual destes traços de percepção vai se ligar todo o processo de identificação que irá
se constituir no nome próprio, a partir do qual o sujeito advirá para nomear todas
as coisas que vão fazer existir o pouco-de-realidade de seu mundo ficcional.
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Entre as camadas WZ e UB, no esquema freudiano, e entre M e I, no


esquema lacaniano, faço incidir a presença inaugurante do traço unário que «é
aquilo que apaga A Coisa», como nos diz um autor anônimo em Scilicet n° 2/3,
«ele aí apaga tudo, exceto este um que ela foi, e jamais será substituída; Lacan dá
esta fórmula: Wo es war, da durch das eins werde ich - aí onde era (A Coisa), aí pelo
um advirei eu, e é o traço unário que faz aparecer o sujeito como aquele que conta.
Mas o primeiro passo do sujeito não pode ser articulado a não ser como a
introdução do nada como tal, no sentido do Nihil Negativum de Kant, objeto vazio
sem conceito (Leere Gegenstand Ohne Begriff)[...]»11.
Este é o começo do sujeito: uma vez instalado o traço unário, não vemos
aparecer, como se pensa por aí, um «isto-bom que é incluido no eu e um isto-mau
que é expulso do eu, mas parece que estamos antes autorizados a pensar que não
há dois "istos", mas sim um e que o sujeito incorpora, e o que se encontra é que,
neste momento, algo se perde (dechoit) desta incorporação[...]»12.
Assim com o traço unário instala-se o que Freud denominou de segundo
registro, uma vez que o ordenamento aqui já se faz em função de um
relacionamento causal, produzindo lembranças conceituais. É o momento em que
um «eu ideal é a imagem que se fixa desde o ponto em que o sujeito se detém como
ideal do eu [...] Na captura que experimenta de sua natureza imaginária, mascara
sua duplicidade, a saber, que a consciência em que se assegura de uma existência
inegável não é em absoluto imanente, mas sim transcendente posto que se apóia no
traço unário»13. Ou seja, é no Outro que ele vai existir, na medida em que,
dependente fundamentalmente de seu amor, «quer dizer, pelo desejo de seu
desejo, se identifica com o objeto imaginado desse desejo enquanto que a mãe
mesma o simboliza no falo»14.

11
Scilicet, n° 2/3, Paris, Seuil, 1970, p. 124.
12
Intervenção de A. Didier-Weil no seminário de Lacan, em 05/05/79.
13
LACAN J., "Subversion du sujet et dialectique du désir dans l'inconscient freudien", op. cit. p. 809.
14
LACAN J., "D'une question preliminaire à tout traitement possible de la psychose", op. cit. p. 554.
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Passagem fundamental acontece neste ponto quando, de acordo com o


esquema da "Carta 52", a terceira transcrição é possível, ligando lembranças
conceituais (Begriffserinnerungen) a representações de palavras (Wortvorstellungen).
É o momento de instalação da lei, quando vai-se colocar em relevo a duplicidade
que a imagem do eu ideal tentava mascarar. Com isto precipita-se o ideal do eu
como herdeiro deste momento que se resolve na separação. Em outras palavras, é a
entrada do significante fálico que vem ordenar, estabelecer uma seqüência e um
tempo de espera para o que só visava o imediato do gozo sem limites.
E assim, num só-depois, poderemos observar a evolução que os esquemas
apontam em sua dimensão cronológica. É a série que, começando no universo
perceptivo das imagens ideográficas (Zeichen) vê eleger-se um traço unário
(einziger Zug), um «traço distintivo, traço exatamente tanto mais distintivo quanto
mais está apagado tudo que o distingue, salvo ser um traço, acentuado o fato de
que quanto mais parecido, mais funciona, não digo como signo, mas sim suporte
da diferença[...]»15que, ao constituir-se em letra, vai tornar-se o que sustenta
materialmente o significante enquanto traço de memória (Erinnerungsspur).
Sendo, portanto, recortes conceituais precisos, quando falamos em "traços de
perversão", de qual "traço" se trata: Zeichen, Zug ou Spur?
Freud, no texto "O problema econômico do masoquismo" nos diz: «A
castração, ou seu substituto, a cegueira, deixam, com freqüência, um traço negativo
(negative Spur) nas fantasias (masoquistas), pois nenhum dano deve ocorrer
precisamente aos genitais ou aos olhos»16. Seria possível interpretar esta frase de
Freud, no que diz respeito ao traço negativo, como um traço que, uma vez
instalado, foi negativado? (Ou, quem sabe, desmentido?)
Encontro em outro texto de Freud subsídio para tentar responder esta questão. É
na "Carta 52", esta inesgotável fonte teórica: «Uma falha na tradução, isto é o que se

15
LACAN J., "A identificação", seminário inédito, aula de 13/12/61.
16
FREUD S., "O prolema econômico do masoquismo", Obras Completas, op. cit. vol. XIX, p. 203; Studienausgaben, op.
cit. vol. III, p. 346; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. XIX, p. 162.
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chama, clinicamente, recalque [...]. Dentro de uma mesma fase psíquica e entre os
registros da mesma espécie, forma-se uma defesa normal devida à produção de
desprazer. Já a defesa patológica somente ocorre contra um traço de memória
(Erinnerungsspur) de uma fase anterior que não foi traduzido»17.
Partindo daí, penso poder dizer que um traço negativo é exatamente um
traço que, tendo chegado a se constituir em mais um na cadeia, "regride" ao que
passa a ser um traço (Zug) que, assim, adquire a função da qual não sofreu
tradução, ou seja, passa a não se submeter à ação ordenadora do significante falo,
exigindo, portanto, a ação de mecanismos de defesa patológicos. «Uma fantasia
deste tipo (perversa), proveniente talvez de causas acidentais na infância e mantida
para o propósito de satisfação auto-erótica pode, à luz de nosso conhecimento
presente, somente ser vista como um traço primário (primären Zug) de pervers-
ão»18.
Coloco-lhes então minha proposta: localizar a ação da Verleugnung, este
mecanismo de defesa patológico que tenta dar conta do que não sofreu tradução
entre as camadas WZ e UB no esquema modificado da "Carta 52" ou, no esquema
lacaniano, entre o I e o P (esquema R). Agindo neste ponto, a Verleugnung
(desmentido) negativa a ação legislativa do significante falo, deixando sobreviver,
sem tradução um traço primário (primären Zug) que se faz o único, neste momento,
a ditar as leis: é a vontade de gozo que surge na brecha aberta da tela protetora da
fantasia fundamental. É a marca estrutural que diferencia um traço de perversão
de um acting-out, que se caracteriza por ser um signo cênico transitório em seu
endereçamento a um outro que não está. Se diferencia também dos traços da
fantasia, estes significantes, que surgem no percurso de uma análise, a partir dos
quais pode-se, eventualmente, construir-se a fantasia fundamental.

Conclusão

17
FREUD S., "Carta 52", Obras Completas, op. cit. vol. I, p. 256; Aus den Anfangen der Psychoanalysis, op. cit. p. 187;
Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. I, p. 235.
18
Vide nota 3.
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Todo este percurso teórico, motivado pela clínica de João, assim como os
resultados apresentados ao longo de um trabalho de mais ou menos três anos,
possibilita a seguinte conclusão:
O relato que a mãe de João lhe fez do momento em que conheceu seu pai,
assim como a "brecha" na cortina, propiciando a visão do corpo nu, favoreceram à
fixação de uma imagem que, no a posteriori, desencadeou uma prática
masturbatória que se sustentou como "satisfação auto-erótica", uma pulsão que se
antecipou à maturação e desmentiu a ação fálica. A falta de um pai real foi, talvez,
o fator preponderante desta fixação.
Durante todo o tratamento analítico, objetivou-se a construção de um significante
que pudesse fazer as vezes do que não pôde ser traduzido e que permaneceu como
traço. Desta forma a brecha que se instalou na tela protetora da fantasia pode ser,
de alguma maneira reparada e, hoje, João pôde colocar um tempo para compre-
ender, um tempo de espera, um intervalo entre o instante de olhar e o momento de
concluir.

Referências Bibliográficas

FREUD S., "Carta 52", Obras Completas, Edição Standard Brasileira, vol. I, Rio de Janeiro, Imago, 1969, p.
254; Aus den Anfängen der Psychoanalysis, London, Imago Publishing - CO, LTD, 1950, p. 185; Standard
Edition of the Complete Psychological Works, vol. I, London, The Hogarth Press, 1973, p. 233.
FREUD S., "Carta 52", Obras Completas, op. cit. vol. I, p. 256; Aus den Anfangen der Psychoanalysis, op.
cit. p. 187; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. I, p. 235.
FREUD S., "O prolema econômico do masoquismo", Obras Completas, op. cit. vol. XIX, p. 203;
Studienausgaben, op. cit. vol. III, p. 346; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol.
XIX, p. 162.
FREUD S., "Psicologia das massas e análise do eu", Obras Completas, op. cit. vol. XVII, p. 135;
Studienausgaben, op. cit. vol. IX, pág. 100; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit.
vol. XVII, p. 107.
CliniCAPS, Vol 4, nº 10 (2010) – Artigos

FREUD S., "Uma criança é espancada", Obras Completas, op. cit. vol. XVII, p. 228; Studienausgaben,
vol. VII, Frankfurt, Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, p. 233; Standard Edition of the Complete
Psychological Works, op. cit. vol. XVII, p. 181.
LACAN J., "A identificação", seminário inédito, aula de 13/12/61.
LACAN J., "D'une question preliminaire à tout traitement possible de la psychose", op. cit. p. 553.
LACAN J., "D'une question preliminaire à tout traitement possible de la psychose", op. cit. p. 554.
LACAN J., "Subversion du sujet et dialectique du désir dans l'inconscient freudien", op. cit. p. 809.
LACAN J., "Sur la théorie du symbolisme d'Ernest Jones", Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 714.

Recebido em Junho de 2010


Aceito em Agosto de 2010

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