José Guilherme Merquior: um liberal na Era de Aquarius
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Sobre este e-book
Seu tom assertivo, aliado a uma petulância estilística altiva e destemida, ocupava muitas páginas no lendário "Caderno B" do Jornal do Brasil. Não deixava críticas sem resposta, e suas polêmicas com outros intelectuais, psicanalistas e artistas eram comentadas nas areias do píer da praia de Ipanema, antigo point da classe média da zona sul carioca.
Pensador inquieto, cronista sagaz, crítico severo e impetuoso, enquanto vivo impunha sua voz, influindo e pautando o debate cultural. Morto, permanece silenciado, excomungado pelos grafocratas das corporações acadêmicas e midiáticas.
Suas ideias, seus textos, o que ele diz sobre o quê e sobre quem, e sua repercussão nacional e internacional são janelas apontando o largo horizonte de sua produção, compondo a silhueta de seu intelecto: ausência de preconceito ideológico, certeza de que não existem livros malditos, o ceticismo organizado, a dúvida permanente, e a busca incessante, não pela verdade, mas pelo conhecimento.
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José Guilherme Merquior - Sonia Carvalho
1. INTRODUÇÃO
"Venho a vós na certeza de que o diálogo, mesmo na eventual divergência, é a via régia do conhecer e da paixão que me anima: a paixão de compreender. O prêmio da vida acadêmica não é a discordância sem discórdia? [...]. Não desdenhastes minhas primeiras respostas; aceitai agora meus projetos de enigma, que vos ofereço pelo que são: meras migalhas da perene, silenciosa conversa da humanidade consigo mesma."¹
O presente perfil intelectual do liberal José Guilherme Merquior se faz através das análises e depoimentos de seus pares, também intelectuais, no arco temporal centrado na segunda metade do século XX, com ênfase no período entre o final dos anos 1950 até o mês de janeiro de 1991, data de sua morte. Nesse lastro temporal, Merquior dá rosto, forma e conteúdo ao homme des lettres, integrante de uma elite cultural que pauta debates, difunde ideias e influencia a cultura em suas diversas plataformas de atuação, dentre elas, livros, jornais, revistas, universidades. Sua obra entrelaça um vasto universo de conhecimento – crítica e teoria literária, estética, filosofia, sociologia, economia, com articulações entre o político e o cultural – em amplo e múltiplo diálogo com incontáveis vozes de uma extensa galeria de poetas, filósofos, escritores, antropólogos, linguistas e críticos, não só do passado remoto e do pretérito recente, como também com seus contemporâneos.
Sem perder a dimensão do todo em que se inscreve como parte, entende-se que descrever as condições espaço-temporais nas quais transitavam Merquior e seus pares, verificar as características do contexto socioeconômico/político daquela época, na qual os diversos atores sociais produziam e interagiam, bem como a situação político-institucional em que inscreveram sua produção intelectual, conduz à compreensão do palco em que ocorreram a discussão e a crítica literária e cultural dos anos 1960 ao início dos 1990 no século passado, contribuindo para desvelar o contexto mais amplo em que se dá a produção do conhecimento como um processo inserido na história. Conforme afirma o historiador francês Fustel de Coulanges, em A cidade antiga:
A história não estuda somente os fatos materiais e as instituições; o seu verdadeiro objeto de estudo é a alma humana; a história deve propor-se ao conhecimento daquilo em que essa alma acreditou, pensou e sentiu nas diversas idades da vida do gênero humano.²
Ao versar sobre um intelectual, interagindo com outros intelectuais, nos níveis literário, cultural, político e ideológico, em determinado espaço e tempo, faz-se necessário visualizar e entender o mosaico geopolítico – as forças da cultura política, externa e interna – que lhes servia de cenário, informando e dirigindo as atividades político-culturais de sua época. Perseguindo um mínimo consenso, necessário ao diálogo e à cognição eficientes, necessário se faz situar o background geopolítico e conceitual de inserção e abrangência deste livro.
O processo de comunicação pressupõe um acordo entre emissor e receptor para partilha de signos e significações, sob pena de frustrar o diálogo. A conversação reclama, como condição mesma de seu existir, certa convergência de olhar: o que estou vendo é a mesma coisa que você está vendo, ainda que discordemos quanto a sua origem, constituição ou finalidade? Chamamos essa coisa pelo mesmo nome ou estaremos recorrendo a um único nome para designar coisas distintas? Quando atuando imersa num background saturado de conceitos garantidos pelo senso comum, por vezes confusos e equivocados, ou polissêmicos, corre-se o risco de trilhar explanações lineares, construídas com argumentação aparentemente encadeada, porém, de cunho ambíguo, incongruente. E o risco de sua irrelevância cresce exponencialmente.
Na área cultural, a terminologia flutua ao sabor dos empréstimos ocasionais arrebanhados junto a diferentes disciplinas, como sociologia, economia, história, psicologia e antropologia. Essa polissemia discursiva, eventualmente, pode até apresentar consequências produtivas. Todavia, quase sempre, produz ambivalências e ambiguidades semânticas levando a impasses ou a perplexidades e equívocos. O professor Teixeira Coelho, pesquisador e coordenador do Observatório de Políticas Culturais, na apresentação que faz do Dicionário Crítico de Política Cultural³ confirma que a massa teórica que, na tarefa de mapeamento circula pelas diferentes vias culturais, vias líquidas, quase etéreas, não deve estar solidamente amarrada a um cais. Pelo contrário, melhor é que gire ao largo. Porém, afirma, não à deriva! Certa ancoragem é condição necessária para coibir o vaguear que dispersa e desfigura os objetivos últimos.
Ao se falar em cultura, por exemplo, de que exatamente se está falando? As discordâncias – e as hesitações – proliferam. Todavia, se por vezes é possível encontrar aqui e ali a definição pacífica de um termo, na maior parte das vezes faz-se necessário reconstruir a ideia por trás dele, resgatando-a mediante uma ação quase detetivesca, visando facilitar o entendimento dos fatos e fenômenos tratados.
A ambiência epistemológica busca identificar traços constitutivos e relações possíveis entre os sujeitos e suas epistemologias. E assim, termos como ideologia
, cultura
e intelectual
reclamaram não uma definição pronta e acabada, mas uma breve descrição das ideias que subjazem em alguns de seus usos, para o fim de balizamento dos sentidos que lhes foram conferidos pelos diversos autores aqui citados. Assim, indispensável é compreender as diversas acepções contidas nos termos ideologia, cultura e intelectual, com suas nuances e níveis de complexidade.
Na parte específica versando os intelectuais, são apresentados, genericamente, os tipos sociais identitários através dos quais sedimentam suas crenças e valores, conferindo sentido à sua atuação e construindo seus laços com a sociedade. Para fazê-lo, percorreram-se três universos bibliográficos: primeiro, da literatura que trata genericamente do tema – textos versando a história dos intelectuais; após, uma literatura imediatamente conexa – textos de pensadores políticos; e, finalmente, um círculo mais restrito – textos versando disputas e polêmicas entre intelectuais. Nomes como Jacques Le Goff, Vladimir Ilyich Ulyanov (conhecido pelo pseudônimo de Lenin), Antonio Gramsci e Norberto Bobbio apresentam seu entendimento acerca dos tipos de intelectual, observados pelo modo como agem e interagem nas diversas plataformas em que atuam. Como salienta Jean-François Sirinelli, citando Jacques Julliard as ideias não passeiam nuas pela rua; elas são levadas por homens que pertencem eles próprios a conjuntos sociais
. Segue complementando: E a exploração desse campo se fará pela reinserção dessas ideias no seu ambiente social e cultural, e por sua recolocação em situação num contexto histórico
.⁴
Mais à frente busca-se retraçar o entorno sócio/econômico/cultural de Merquior, com o objetivo de identificar o manancial de suas ideias, valores e crenças, através das pegadas e vestígios indicados por aqueles que com ele mais de perto conviveram. Procura-se resgatar suas circunstâncias pessoais originais, coletando dados e fatos que possam sinalizar os traços particulares, os caracteres que vão se aglutinando e, como setas, prematuramente passam a indicar a forma mentis desse intelectual: as pequenas idiossincrasias que particularizam e rascunham as sendas e veredas percorridas por seu intelecto, as tendências que começam a plasmar os afetos que animaram seu espírito, sua anima, sua alma, ou seja lá qual for a palavra com que se queira nomear a energia que fecunda e fertiliza os corpos humanos viventes. Para isso, foram selecionados alguns textos, privilegiando-se aqueles em que o protagonismo é centrado no próprio Merquior, buscando as constantes, as invariáveis.
Assim, sobrevoa-se a forma e algumas ideias que constituíram sua produção intelectual a partir da passagem da crítica literária para a crítica cultural e política, registrando seus grandes campos de atuação, especialmente versando temas específicos, constantes em alguns de seus textos. No terreno arenoso e movediço das análises interpretativas, ausente a pretensão de conter a multifacetada obra merquioriana em protocolos teóricos, pretendeu-se tão apenas sublinhar algumas características de seu estilo e expor algumas de suas ideias.
Por opção da Autora, os textos críticos, fortuna publicada, privilegiam, na sua maioria, pensadores assumidamente declarados e/ou reconhecidos, como posicionados na chamada esquerda
do espectro político-ideológico.
A fim de prestigiar a tradição merquioriana de constante diálogo, na bibliografia de fundo foram trazidas análises e reflexões elaboradas por pensadores ainda hoje atuantes. Dentre esses, Terry Eagleton nos livros A ideia de Cultura, Depois da Teoria e A morte de Deus na cultura. Tanto Merquior quanto Eagleton, além de historicistas, desenvolveram seus temas a partir da releitura de elementos da filosofia hegeliana, e exercitam, cada qual transitando em seu peculiar campo ideacional, um olhar agudo e crítico acerca da Cultura, elaborando análises contestatórias que repercutem no cenário intelectual das discussões atuais.
Ao pensador inglês somam-se outros intelectuais de diferentes origens, nacionalidades e visões político-ideológicas, identificados com a modernidade. De Norberto Bobbio, um dos quadros mais lúcidos do Partido Socialista Italiano (PSI), avocam-se os livros As ideologias e o poder em crise e O intelectual e o poder, trazendo para o debate a sua coragem de confrontar o senso comum. Sua extrema racionalidade, aliada à prática da dúvida metódica, fez com que Bobbio tenha formulado questões que, ainda hoje, intrigam a todos que sobreviveram à queda do Muro de Berlim.
Boaventura de Sousa Santos, em Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes contribui com o que chama de pensamento abissal das epistemologias
modernas no ocidente, apontando que, assim como as culturas, as epistemologias também foram hierarquizadas e/ou suprimidas com o processo de colonização. Colonização que, no período da Guerra Fria, se expandiu e alcançou vários países ocidentais.
Sem pretender ser exaustivo ou mesmo detalhista, trata-se, tão apenas, de uma visão panorâmica de questões que, ao fim, ajudaram a delinear uma silhueta, um semblante intelectual, nos limites aqui propostos, fazendo emergir, mais um contorno do que um perfil do liberal José Guilherme Merquior. Acredita-se que as lembranças aqui recolhidas apontem as sendas e veredas percorridas pelo intelecto de José Guilherme Merquior, indiquem os mananciais de suas metáforas e metonímias, evidenciando como o performático crítico literário e cultural construiu a interdisciplinaridade de sua obra, nela refletindo acerca de questões culturais, estéticas, políticas e econômicas.
Em verdade, situado na interseção entre a memória do passado, a herança cultural e a narrativa do moderno, na mística da longue durèe, e repetindo a locução de José Guilherme Merquior que epigrafa a presente Introdução, o trabalho recolheu algumas migalhas da perene conversa do homem com todos os homens, da humanidade com ela mesma.
1 José Guilherme Merquior, discurso de posse na Academia Brasileira de Letras – 11 mar. 1983.
2 COULANGES, 1981, p. 97.
3 COELHO, 1997, p. 8/15.
4 SIRINELLI, 1996, p. 258.
2. DOS REFERENCIAIS
Supor, ou fingir, que essas coisas são simples não é ser claro – é apenas ser simplista, o que é muito diferente.⁵
Inicia-se pelos referenciais contextuais e conceituais colhidos nas obras de pensadores que se debruçaram sobre os fatos que marcaram o contexto geopolítico da segunda metade do século XX, bem como sobre as ideias que subjazem aos principais conceitos aqui utilizados: a ideologia, a cultura e o intelectual. Suas descrições de conjuntura, definições conceituais, caracterizações de tipos identitários e conclusões, mais do que hipóteses possíveis, exibem o selo não só da probabilidade como, mais importante e confiável, da verossimilhança, eis que alicerçadas em pesquisas e documentos por eles analisados, e não contraditados em seu expresso conteúdo por outros pensadores da mesma estatura intelectual. Ou seja, com o mesmo valor de testemunho comprovado por conhecimento, experiência, e reconhecimento social e histórico.
2.1. AMBIÊNCIA GEOPOLÍTICA
2.1.1. CONTEXTO EXTERNO: GUERRA FRIA/PODER QUENTE
[...] já que nenhum conhecimento verdadeiramente crítico nasce apenas da contemplação – do ânimo dos homens deste tempo e de sua não pequena miséria.⁶
No século XX as duas grandes guerras mudaram a face do mundo ocidental. Ao término do segundo conflito mundial, a chamada Guerra Fria constituiu um novo Tratado de Tordesilhas e o mundo restou dividido em dois polos de influência. Aqui é utilizado o livro Era dos Extremos – o Breve Século XX: 1914 – 1991, de 1994, de Eric Hobsbawm, historiador que discorre detalhadamente sobre o início da Primeira Guerra Mundial em 1914 até a queda da União Soviética, em 1991, como também o livro Paz e guerra entre as nações, de 2002, e os ensaios reunidos sob o título Democracia e totalitarismo, do mesmo ano e autor, o filósofo e sociólogo francês Raymon Aron. Foi Aron quem cunhou a expressão Guerra Fria
para o período histórico que sucedeu a Segunda Guerra Mundial. E, no mesmo período, a célebre frase: Guerra improvável, paz impossível
.
Recorreu-se também ao livro Guerra Fria, de 2012, de Robert J. McMahon, autor norte-americano, historiador de Relações Exteriores que, sem os maniqueísmos de praxe, traz uma perspectiva fora do eixo europeu acerca do conflito. McMahon declara que a imensa destruição ocasionada pela segunda guerra, além de deixar em ruínas grande parte da Europa e da Ásia, destroçou a antiga ordem. O sistema internacional eurocêntrico que havia dominado as relações mundiais nos quinhentos anos anteriores desapareceu e, em seu lugar, surgiram dois gigantes militares, duas superpotências, cada um tentando construir uma nova ordem mundial afinada com seus próprios valores e necessidades. Conforme McMahon, em termos estruturais amplos, as raízes da Guerra Fria estavam na interseção entre um mundo prostrado por um conflito global devastador e as receitas conflitantes que Washington e Moscou procuravam impor a esse mundo.⁷
Em suma, foram as aspirações, as necessidades, as histórias, as instituições de governo e as ideologias divergentes dos Estados Unidos e da União Soviética que transformaram as tensões inevitáveis no confronto épico de quatro décadas a que chamamos de Guerra Fria.⁸ Documentos obtidos após o fim da Guerra Fria, tanto dos arquivos do regime comunista como também dos Estados Unidos, até então inéditos, têm sido expostos contestando as noções de expansionismo
russo ou norte-americano. O que as grandes potências fizeram foi determinar suas esferas de influência
, buscando novas áreas de influência geopolítica no globo.⁹
Ausente aqui a pretensão de realizar uma análise de cunho histórico stricto sensu, intenta-se apenas sublinhar os principais movimentos empreendidos pelas duas potências militares naquele período, fartamente documentados