Ernest Hemingway - Morte Ao Entardecer
Ernest Hemingway - Morte Ao Entardecer
Ernest Hemingway - Morte Ao Entardecer
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Do mesmo autor:
Adeus às armas
A quinta-coluna
As ilhas da corrente
Contos (obra completa)
Contos — Vol. 1
Contos — Vol. 2
Contos — Vol. 3
Do outro lado do rio, entre as árvores
Morte ao entardecer
O jardim do Éden
O sol também se levanta
O velho e o mar
O verão perigoso
Paris é uma festa
Por quem os sinos dobram
Ter e não ter
Verdade ao amanhecer
Como chegamos a Paris e outras narrativas
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
H428m
Hemingway, Ernest, 1899-1961
Morte ao entardecer [recurso eletrônico] / Ernest Hemingway ;
tradução Irinêo Baptista Netto. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Bertrand
Brasil, 2024.
recurso digital
Tradução de: Death in the afternoon
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5838-234-8 (recurso eletrônico)
1. Touradas - Espanha.. 2. Livros eletrônicos. I. Netto, Irinêo
Baptista. II. Título.
24-87697
CDD: 791.82
CDU: 791.862
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Um glossário explicativo de certas frases, palavras e termos usados nas
touradas
Reações de alguns poucos inpíduos à típica tourada espanhola
Uma breve avaliação do norte-americano Sidney Franklin como
matador
Datas comuns de touradas na Espanha, na França, no México e nas
Américas Central e do Sul
Nota bibliográfica
MORTE AO ENTARDECER
1
1. Ao ler este texto, Mr. Shipman me informa que Uncas, após ter fracassado nas corridas, passou a
ser usado como um cavalo de passeio por Mr. Victor Emanuel. Essa notícia não me comove de
forma alguma.
2
Se for a uma corrida em Madri primeiro, você pode descer até a arena e
dar uma volta antes da luta.2 Os portões dos currais e do patio de caballos
ficam abertos, e no pátio você vê uma linha de cavalos próximo do muro e
os picadores montados nos cavalos que usaram para chegar até a arena.
Esses cavalos foram levados por figuras simiescas de blusa vermelha que
são os funcionários da arena até as hospedarias da cidade onde ficam os
picadores, de modo que o picador, de camisa branca, gravata preta com
grandes laçadas e pontas caídas, jaqueta de brocado, faixa larga, chapéu de
copa arredondada com o pompom na lateral e calças de couro grossas que
cobrem a armadura de aço que protege a perna direita, possa montar e
cavalgar pelas ruas em meio ao tráfego da carretera de Aragon, até chegar
à arena; o funcionário cavalga às vezes no mesmo cavalo sentado atrás da
sela, às vezes em outro cavalo que ele levou junto; esses poucos cavaleiros
em meio à profusão de carruagens, carroças, táxis e automóveis servem
para fazer propaganda das touradas, cansar os cavalos que estão montando
e poupar o matador de ter que fazer espaço para o picador em sua
carruagem ou em seu automóvel. A melhor maneira de ir até a arena é
usando o ônibus puxado por cavalos que sai da Puerta del Sol. Você pode
sentar na parte de cima e ver o movimento das pessoas a caminho da arena
e, se prestar atenção na multidão de veículos, vai ver passar um automóvel
cheio de toureiros em trajes de tourada. Você só vai conseguir ver as
cabeças com os chapéus pretos, os brocados dourados ou prateados
cobrindo os ombros e os rostos. Se, num carro, há vários homens de
jaqueta prateada ou escura e apenas um com jaqueta dourada e, enquanto
os outros talvez estejam rindo, fumando e fazendo piada, o de jaqueta
dourada estiver impassível, ele é o matador e os outros são sua cuadrilla. O
percurso até a arena é a pior parte do dia para o matador. Pela manhã, a
luta está longe de acontecer. Depois do almoço, ela ainda está longe e, até
o automóvel ou a carruagem aparecer para pegar o toureiro, existe uma
preocupação com a roupa. Mas, uma vez no carro ou na carruagem, a luta
está muito próxima e não há nada que ele possa fazer ao longo desse
trajeto amontoado até a arena. Ele é amontoado porque a parte de cima
da jaqueta de um toureiro é grossa e pesada nos ombros e o matador e
seus banderilleros se amontoam uns com os outros, agora que estão no
automóvel, quando estão usando os trajes de tourada. Alguns riem e
acenam para os amigos durante o percurso, mas quase todos parecem
distantes e indiferentes. O matador, por lidar com a morte todos os dias,
fica muito indiferente, e a medida de sua indiferença é com certeza a
medida de sua imaginação e sempre nos dias de tourada e na parte final da
temporada, existe algo de indiferente no íntimo desses homens que se
torna quase aparente. Esse algo tem a ver com a morte e não se pode
enfrentá-la todos os dias sabendo que existe o risco de ela levar a melhor e
não carregar marcas evidentes disso. Todos que vivem essa situação
carregam marcas. Os banderilleros e os picadores são diferentes. O perigo
que enfrentam é relativo. Eles obedecem a ordens; têm uma
responsabilidade menor; e não matam. Eles não sofrem muita pressão
antes de uma luta. Porém, se você quiser ver o que é apreensão, veja o que
acontece com um picador despreocupado e feliz depois que ele visita os
currais, ou vê a distribuição dos touros, e se dá conta do quão grandes e
poderosos são os touros. Se eu soubesse desenhar, faria uma ilustração
mostrando uma mesa no bar durante a feria com os banderilleros sentados
ao redor dela antes do almoço lendo os jornais, um engraxate trabalhando,
um garçom servindo mesas e dois picadores entrando em cena, um deles é
um sujeito grande com a pele morena e sobrancelhas pretas que está
sempre animado e fazendo piada, o outro é um sujeito magro de cabelo
grisalho, nariz adunco, um homenzinho elegante, ambos são a
personificação do desânimo e da depressão.
“Qué tal?”, pergunta um dos banderilleros.
“Son grandes”, diz o picador.
“Grandes?”
“Muy grandes!”
Não precisa dizer mais nada. Os banderilleros sabem exatamente o que o
picador têm em mente. Talvez o matador seja capaz de assassinar o touro
grande, se ele engolir o orgulho e ignorar a honra, como se fosse um
touro pequeno. As veias do pescoço ficam no mesmo lugar e são igual-
mente fáceis de alcançar com a ponta da espada. O fato de o touro ser
grande não aumenta as chances de um banderillero ser atingido por ele.
Mas não há nada que o picador possa fazer para se proteger. Depois de
uma certa idade e com um certo peso, quando um touro acerta o cavalo
significa que o cavalo vai sair do chão e depois cair com o picador por
baixo, talvez o picador seja arremessado contra a barrera e fique preso
debaixo do cavalo, ou se ele corajosamente se inclinar para a frente,
colocar seu peso na vara e tentar atingir o touro durante o choque,
significa que ele pode cair entre o touro e o cavalo, e quando o cavalo se
afastar, ele tem de ficar deitado na areia, com o touro procurando por ele,
até que o matador possa atrair o touro para longe dali. Se os touros são
grandes de verdade, cada vez que eles acertarem o cavalo, o picador vai
cair, e ele sabe disso, e a apreensão que sente quando os touros “são
grandes” é maior até do que a do matador, a não ser que este seja um
covarde. Há sempre algo que um matador pode fazer se ele mantiver a
calma. Ele pode suar frio, mas não importa o quão difícil seja um touro, há
sempre uma maneira de lutar contra ele. O picador não tem nenhum
recurso. O que ele pode fazer é recusar a tradicional propina do
fornecedor de cavalos para ficar com uma montaria menor do que o
recomendado, insistir em ter um cavalo bom e forte, alto o suficiente para
que possa olhar o touro de cima, tentar espetar o animal de primeira e
torcer pelo melhor.
Quando você vê os matadores na entrada do patio de caballos, o pior da
apreensão já passou. A multidão ao redor deles acabou com aquela solidão
do percurso ao lado de pessoas que o conhecem bem demais, e a multidão
devolve a eles a firmeza moral. Quase todos os toureiros são corajosos.
Poucos não são. Isso parece improvável, pois nenhum homem sem
coragem seria capaz de entrar na arena com um touro, mas, em alguns
casos específicos, a habilidade natural e o treinamento desde cedo, feito
com novilhos que não chegam a ser perigosos, transformaram homens
sem nenhuma coragem natural em toureiros. Existem só uns três que são
assim. Vou falar sobre cada um deles posteriormente, e eles estão entre os
fenômenos mais interessantes da arena, mas o toureiro tradicional é um
homem muito corajoso, e o menor grau de coragem tem a ver com a habi-
lidade de ignorar temporariamente possíveis consequências. Um grau
maior de coragem, que acompanha a euforia, é a habilidade de não dar a
mínima para possíveis consequências; não apenas ignorá-las, mas desprezá-
las. Quase todos os toureiros são corajosos e, no entanto, quase todos os
toureiros sentem medo em algum momento antes de a luta começar.
A multidão começa a dispersar no patio de caballos, os toureiros fazem
fila, os três matadores lado a lado, os banderilleros e picadores atrás deles.
A multidão esvazia a arena. Você vai para o seu lugar e, se estiver na
barrera, compra uma almofada do vendedor que está logo abaixo, senta
nela, e com os joelhos encostados na madeira, olha para a entrada do pátio
de onde você acabou de sair, no outro lado da arena, e vê os três
matadores, o sol brilhando no ouro dos trajes, de pé na entrada, os outros
toureiros a pé ou a cavalo, formando um grupo atrás deles. Então você
percebe as pessoas ao seu redor olhando para cima deles, na direção de um
camarote. É o presidente. Ele se senta e acena com um lenço. Se ele for
pontual, a multidão aplaude; se ele chegar atrasado, há uma tempestade de
assobios e vaias. Uma trombeta soa no pátio e dois homens a cavalo
atravessam a arena, um costume da época de Felipe II.
Chamados de aguacils, ou meirinhos a cavalo, são eles que transmitem
todas as ordens do presidente, que representa a autoridade constituinte.
Eles galopam pela arena, tiram o chapéu numa saudação, fazem uma
reverência para o presidente e, devidamente autorizados, retornam para os
seus lugares. A música começa e da entrada do pátio dos cavalos vem a
procissão de toureiros; é o paseo ou desfile. Os três matadores, se houver
seis touros, ou quatro, se houver oito, caminham lado a lado, cada um
com a capa enrolada no braço esquerdo e o braço direito livre; eles andam
a passos largos e relaxados, os braços soltos e os queixos erguidos, os olhos
fixos no camarote do presidente. Em fila atrás de cada matador, vêm a
cuadrilla de banderilleros e picadores em ordem de senioridade. Assim eles
entram na arena formando uma coluna de três ou quatro. Quando os
matadores chegam diante do camarote do presidente, eles fazem uma
reverência e tiram o chapéu preto ou montera — a reverência é breve ou
demorada, dependendo do tempo de trabalho e do grau de cinismo de
cada toureiro. No começo de carreira, todos são tão apegados aos rituais
quanto um coroinha numa missa solene e alguns nunca perdem isso.
Outros são tão cínicos como donos de boates. Os devotos morrem com
mais frequência. Os cínicos são companhias melhores. Mas o melhor de
todos é o cínico quando ele ainda é devoto; ou depois; tendo sido devoto e
se tornado cínico, eles se tornam devotos mais uma vez por meio do
cinismo. Juan Belmonte é um exemplo desse estágio derradeiro.
Depois da reverência ao presidente, eles colocam o chapéu de novo,
arrumando-o com cuidado, e vão até a barrera. A procissão se desfaz à
medida que os matadores tiram a capa decorada, dourada e pesada de
brocado que usaram no desfile e a entregam para amigos ou admiradores
para que sejam penduradas no muro que protege as primeiras fileiras, ou,
às vezes, eles fazem o responsável pelas espadas levar a capa para alguém,
de praxe, uma cantora, uma dançarina, um médico charlatão, um aviador,
um ator de cinema, um político, ou alguém famoso que tenha aparecido
no jornal do dia e que por acaso esteja num camarote. Matadores muito
jovens ou muito cínicos mandam a capa para empresários do ramo de
touradas que vieram de outras cidades para Madri, ou para críticos de
touradas. Os melhores mandam a capa para os amigos. É melhor não ser
aquele que recebe a capa. É uma gentileza se o toureiro tem um bom dia e
corre tudo bem na arena, mas se for um dia ruim, é muita
responsabilidade. Ter uma ligação óbvia com um toureiro que, por causa
de azar, de um touro ruim, de um acidente que lhe roube a confiança, ou
de nervosismo por estar de volta à arena em más condições físicas depois
de levar uma chifrada, envergonha a si mesmo e deixa o público tão
indignado que talvez tenha de ser protegido pela polícia ao sair da arena de
cabeça baixa sob um bombardeio de almofadas de couro, acaba gerando
um constrangimento na hora em que o homem das espadas vem buscar a
capa desviando das almofadas. Ou talvez, antecipando o desastre, o
homem das espadas venha buscar a capa antes do último touro, de modo
que você pode ver a capa, recebida de modo tão honroso, ser colocada nos
ombros do toureiro humilhado e levada rapidamente para fora da arena,
as almofadas voando, alguns dos espectadores mais violentos sendo
levados pela polícia porque tentaram perseguir o matador. Os
banderilleros também entregam a capa para amigos exibirem na barrera,
mas essas capas, que parecem majestosas apenas de um olhar a distância,
quase sempre são finas, desgastadas pelo uso e feitas do mesmo material
despojado usado no forro de casacos no mundo inteiro, e, como os
banderilleros não levam muito a sério a outorga desse favor, a honra é
apenas simbólica. Enquanto as capas do desfile são repartidas e devolvidas,
as capas da luta são retiradas da barrera, e os funcionários da arena alisam
a areia que ficou marcada pela procissão dos picadores a cavalo, pelas
mulas arreadas que retiram os touros e cavalos mortos da arena e pelos
cascos dos cavalos dos aguacils. Nesse ínterim, os dois matadores (infere-se
que se trata de uma tourada com seis touros) que não estão na vez se
retiram com suas cuadrillas e ficam no callejon ou corredor que fica entre
as cercas vermelhas das barreras e a primeira fileira de lugares. O matador
cujo touro está prestes a entrar na arena escolhe uma das capas pesadas de
percal. Elas costumam ser rosa por fora e amarelas por dentro, com uma
gola larga e reforçada, e ampla e grande o suficiente de modo que, se o
matador colocar a capa sobre os ombros, a barra fica na altura dos joelhos
ou um pouco abaixo e ele consegue envolver o corpo todo com ela. O
matador da vez se coloca atrás de um dos pequenos abrigos de madeira
que ficam próximos da barrera, largos o suficiente para proteger dois
homens e estreitos o suficiente para escapar do touro, o aguacil cavalga até
a área onde fica o camarote do presidente para pedir a chave da porta
vermelha do toril onde o touro aguarda. O presidente joga a chave e o
aguacil tenta pegá-la com o
chapéu. Se ele consegue, o público aplaude. Se não, o público assobia. Mas
nada disso é sério. Se a chave cai no chão, um funcionário da arena a pega
e entrega na mão do aguacil, que atravessa a arena a cavalo e passa a chave
para o homem responsável por abrir a porta do toril, depois volta,
cumprimenta o presidente e sai da arena, enquanto os funcionários alisam
as marcas deixadas pelo cavalo na areia. Ao fim desse processo, as únicas
pessoas na arena são o matador atrás do pequeno abrigo ou burladero e
dois banderilleros em extremos opostos da arena, colados na cerca. O
silêncio é total, e todo mundo fica de olho na porta vermelha de madeira.
O presidente faz um sinal com o lenço, soa a trombeta e Gabriel, um
homem velho e grande, de cabelo branco e muito sério, usando o que
parece ser uma versão cômica do traje de toureiro (comprada para ele com
a ajuda do público), destranca a porta do toril e faz força para abri-la,
correndo de costas até revelar o corredor baixo que se vê bem com a porta
escancarada.
2. Por determinação do governo, você não pode mais passear na arena. Mas ainda é possível visitar
o patio de caballos e outras dependências.
7
É claro que se você por acaso fosse a uma tourada e não visse nenhum dos
matadores decadentes, toda essa explicação sobre a decadência das
touradas seria desnecessária. Mas se na sua primeira tourada, em vez de se
deparar com um homem que represente a ideia que você tem de um
matador, seja ela qual for, você encontrasse um homenzinho gordo, fraco,
de cílios longos e com pulsos delicados, que tenha ao mesmo tempo
habilidade com touros e pavor deles, você vai querer uma explicação. Essa
é a aparência de Chicuelo hoje, dez anos depois de surgir como um
fenômeno. Ele ainda tem contratos porque as pessoas têm esperança de
que o touro, o touro perfeito que ele espera encontrar, saia do toril, e ele
tenha desempenho lindo e puro, como um Belmonte melhorado com seu
repertório de passes interligados. Você pode ver Chicuelo vinte vezes ao
longo de uma temporada e não presenciar nenhuma performance
satisfatória, mas quando ele é bom, ele é magnífico.
Dos outros que, apesar de não serem consistentes, eram dominantes
porque tinham nome ou porque geravam expectativas, no período logo
após Joselito e Belmonte, Marcial Lalanda se tornou um toureiro capaz,
confiável, habilidoso, magistral e sincero. Ele sabe lutar com todo e
qualquer tipo de touro, e faz um trabalho hábil e sincero, não importa o
touro. Ele tem confiança e segurança. Ele amadureceu ao longo de nove
anos de experiência, que lhe deram confiança e quando ele desenvolveu
amor pelo ofício, e não medo. Como um toureiro completo e técnico, ele
é o melhor da Espanha.
Valência II continua o mesmo do início de carreira no que diz respeito às
habilidades e limitações, embora tenha engordado e se tornado prudente,
e seu rosto está deformando por causa de um ferimento que foi mal
costurado no canto de um dos olhos e lhe roubando a coragem. Ele faz
um trabalho bonito com a capa, sabe alguns truques com a muleta, mas
são apenas truques e ele se defende demais com eles. Valência II dá tudo
de si em Madri quando encontra coragem para isso e, nas províncias, ele é
extremamente cínico. Ele está praticamente acabado como matador.
Existem dois matadores sobre os quais não falei nada porque eles não
fazem parte da decadência das touradas e representam casos isolados. Eles
seriam os mesmos em qualquer época. Esses dois são Nicanor Villalta e
Niño de la Palma. Mas antes preciso explicar o porquê de toda essa
conversa sobre alguns indivíduos. Minha senhora, indivíduos são
interessantes, mas não todos. Porém, nesse caso eles são porque, devido à
decadência, a tourada se tornou muito uma questão de talento individual.
Alguém vê uma tourada. Você pergunta quais eram os matadores. Se a
pessoa se lembrar dos nomes, você sabe exatamente o tipo de tourada de
que ela está falando. Pois, hoje, os matadores só sabem fazer uma coisa ou
outra. Eles se tornaram tão especialistas quanto médicos. Antigamente,
quando você ia ao médico, ele resolvia o problema, ou tentava resolver o
problema, não importava o que você tinha. Da mesma forma,
antigamente, quando você ia a uma tourada, os matadores eram
matadores; eles passavam por um treinamento, estudavam touradas e seus
desempenhos eram influenciados pelas habilidades e pela coragem que
tinham com a capa, a muleta e as banderillas, e eles matavam os touros.
Não faz sentido detalhar o grau de especialização dos médicos nem falar
dos aspectos mais revoltantes e ridículos desse fato porque, cedo ou tarde,
todo mundo tem de lidar com ele, mas quem vai às touradas não sabe que
o mal da especialização se espalhou entre os toureiros de modo que
existem matadores que só são bons com a capa e péssimos em todo o
resto. As pessoas talvez não vejam de perto o trabalho com a capa, já que
tudo é estranho e novo para elas, e podem pensar que o desempenho
daquele matador em particular é representativo das touradas e pode julgá-
las, as touradas, a partir dessa referência, quando ela não passa de uma
paródia das mais tristes sobre como um touro deve ser enfrentado.
Hoje as touradas precisam de um toureiro completo que seja ao mesmo
tempo um artista para salvá-la dos especialistas; os toureiros que sabem
fazer apenas uma coisa, e que são excelentes nisso, mas que precisam de
um touro específico, quase feito sob medida, para que possam exibir o
melhor da sua arte ou, às vezes, o mínimo que seja da sua arte. As
touradas precisam de um deus que afaste todos os semideuses. Mas
esperar por
um messias é um negócio de longo prazo e você tem de lidar com vários
falsos messias pelo caminho. Não existe nenhum registro na Bíblia dos
falsos messias que vieram antes do Nosso Senhor, mas a história dos
últimos dez anos das touradas não falou de outra coisa.
Caso você veja algum desses falsos messias em ação, é importante que
saiba sobre a existência deles. Não dá para ter certeza de que você viu uma
tourada sem saber se os touros eram touros de verdade e se os matadores
eram toureiros de verdade.
Você pode, por exemplo, ver Nicanor Villalta. Se o visse em Madri, você
poderia achar que ele é esplêndido e veria uma tourada muito boa porque,
em Madri, ele mantém os pés juntos quando usa a capa e a muleta, e assim
evita ser grotesco, e, em Madri, ele sempre mata com muita valentia.
Villalta é um caso estranho. Ele tem o pescoço três vezes mais longo do
que o pescoço de um homem comum. Ele tem um metro e oitenta, para
início de conversa, e esse um metro e oitenta é quase todo de pernas e
pescoço.
Não dá para comparar com o pescoço de uma girafa porque o pescoço
da girafa parece algo natural. É como se o pescoço de Villalta se esticasse
diante dos olhos do público. Ele parece esticar como se fosse feito de
borracha e nunca volta à posição original. Seria maravilhoso se voltasse.
Um homem com um pescoço desses, se ele mantém os pés juntos, parece
bem normal; se mantém os pés juntos, curva o corpo para trás e inclina
aquele pescoço na direção do touro, ele produz um efeito que, apesar de
não ser estético, também não é de todo grotesco, mas uma vez que ele
estique bem as pernas e abra os braços, não há bravura capaz de salvá-lo
do ridículo. Numa noite em San Sebastian, enquanto andávamos ao longo
da concha, Villalta falou sobre o pescoço usando o dialeto aragonês que
lembra a fala de uma criança, disse o quanto odiava o pescoço e como
tinha de sempre se concentrar, nunca baixar a guarda, para evitar ser
grotesco. Ele inventou um modo de usar a muleta que lembra um
giroscópio, capaz de dar um ar natural aos seus passes antinaturais, com os
pés bem juntos, a muleta gigantesca na mão direita (ela era tão grande
como a roupa de cama de um hotel respeitável), esticada com a ajuda da
espada, ele gira devagar acompanhando o touro. Ninguém realiza passes
tão próximo do touro, ninguém fica tão próximo do touro e ninguém gira
como ele, o mestre dos giros. Ele não é bom com a capa porque seus
movimentos são rápidos demais, ele é muito afoito, e na hora de matar ele
mostra determinação e sabe sustentar a espada com o corpo, mas com
frequência ele, em vez de baixar a mão esquerda e fazer o touro
acompanhá-la, expondo aquela região vital entre os ombros do animal, ele
cega o touro com a enorme muleta vermelha e usa sua altura para
ultrapassar os chifres e fincar a espada. Porém, às vezes, ele mata de modo
muito correto, respeitando todas as regras. Ultimamente, ele tem sido
consistente e matado de um jeito quase clássico. Tudo que ele faz, ele faz
com bravura e do seu jeito, mas tudo o que Nicanor Villalta faz também
não pode ser considerado tourada. Todavia vale a pena vê-lo ao menos
uma vez em Madri, onde ele dá tudo de si, e se o touro permite que ele
fique com os pés juntos e apenas um entre seis animais é assim, você terá
chance de ver algo muito estranho, muito emocionante e muito, graças a
Deus e à enorme coragem necessária, singular.
Se você vir Niño de la Palma, vai presenciar covardia da forma menos
atraente que há; com um traseiro gordo, senilidade precoce e calvície
prematura de tanto usar fixadores no cabelo. De todos os jovens toureiros
que surgiram depois da primeira aposentadoria de Belmonte, ele foi o que
mais alimentou falsas esperanças e se revelou uma grande decepção. Ele
começou a tourear em Málaga e tinha lutado apenas vinte e uma vezes
dentro de uma arena, em contraste com a educação de oito a dez anos pela
qual passavam os toureiros de antigamente, antes de se tornar um toureiro
completo. Houve dois grandes toureiros que se tornaram matadores
completos quando tinham apenas dezesseis anos de idade, Costillares e
Joselito, e porque eles passavam a impressão de ter pegado um atalho no
processo de aprendizado, muitos garotos se tornaram matadores de
maneira prematura e desastrosa. Niño de la Palma foi um bom exemplo
disso. Os únicos casos em que os atalhos faziam sentido eram os de
garotos que tinham sido toureiros desde pequenos e que vinham de
famílias de toureiros, então tiveram chance de compensar a falta de
estudos com os ensinamentos do pai ou de um parente, e também com a
prática. Mesmo assim, eles só conseguiam ser bem-sucedidos quando
eram gênios extraordinários. Digo gênios extraordinários porque todo
matador é um gênio. Você aprende a ser um matador completo tanto
quanto você pode aprender a ser um jogador de beisebol importante, um
cantor de ópera, ou um bom boxeador profissional. Você pode aprender a
jogar beisebol, a boxear, a cantar, mas é preciso ter um certo grau de
genialidade para ganhar a vida com o beisebol, o boxe ou a ópera. Nas
touradas, essa genialidade, que é um pré-requisito, torna-se ainda mais
complicada porque requer coragem física de sofrer ferimentos e encarar a
morte, ainda mais depois de ter sido ferido uma primeira vez. Cayetano
Ordóñez, conhecido como Niño de la Palma, encarou sua primeira
temporada como matador na primavera depois de ter apresentado belas
performances como novillero em Sevilha e Málaga, e algumas imperfeitas
em Madri, e era visto como o messias que salvaria as touradas.
Certa vez, num livro, tentei descrever sua aparência e algumas de suas
lutas. Eu estava presente no dia da sua primeira apresentação como
matador em Madri e, no mesmo ano, eu o tinha visto fazer, numa
competição em Valência contra Belmonte, que tinha voltado da
aposentadoria, duas faenas tão lindas e maravilhosas que consigo lembrar
delas em detalhes ainda hoje. Ele tinha uma sinceridade e uma pureza de
estilo com a capa, e não matava de um jeito ruim, mas também não era
muito bom, a não ser quando tinha sorte. Ele tinha matado diversas vezes
recibiendo, recebendo o touro na espada do jeito antigo e fazia lindos
movimentos com a muleta. Gregorio Corrochano, o crítico de touradas do
A.B.C., um jornal influente em Madri, disse: “Es de Ronda y se llama
Cayetano”. Ele é de Ronda, o berço das touradas, e se chama Cayetano,
nome de um grande toureiro; o primeiro nome de Cayetano Sanz, o maior
dos mestres de antigamente. A frase percorreu a Espanha inteira. Numa
tradução livre, seria o mesmo que dizer de um grande golfista que surgisse
no futuro que ele é de Atlanta e se chama Bobby Jones. Cayetano Ordóñez
tinha a aparência de um toureiro, a atitude de um toureiro e, ao longo de
uma temporada, ele foi um toureiro. Eu o vi em quase todas as suas lutas e
o vi em todas as suas melhores lutas. No fim da temporada, ele foi grave e
dolorosamente ferido na coxa, bem perto da artéria femoral.
Esse foi o seu fim. No ano seguinte, ele assinou o maior número de
contratos que um matador já viu graças a um esplêndido primeiro ano, e
seu desempenho na arena foi uma série de desastres. Ele mal conseguia
olhar para um touro. Era penoso de ver o medo que sentia quando entrava
na arena para matar o touro, e passou a temporada inteira assassinando
touros do jeito que oferecia menos perigo para ele, escapando da linha de
ataque do animal e fincando a espada no pescoço para atingir os pulmões,
ou em qualquer lugar que pudesse alcançar sem ficar muito perto dos
chifres. Foi a temporada mais vergonhosa de um matador até então. O
problema foi o ferimento causado pelos chifres, o seu primeiro ferimento
de verdade, que acabou com sua bravura. E ele nunca mais a recuperou.
Ele tinha muita imaginação. Várias vezes, nos anos seguintes, ele teve a
coragem de dar boas performances em Madri e ainda conseguir contratos
a partir da publicidade que recebia na imprensa. Os jornais de Madri são
distribuídos e lidos na Espanha inteira e o triunfo de um toureiro na capital
percorre toda a Península, enquanto um triunfo nas províncias não vai
além da cidade vizinha e não é levado a sério em Madri porque os
empresários dos toureiros sempre anunciam os triunfos por telegrama e
telefone, seja do lugar que for nas províncias, mesmo que o toureiro tenha
sido quase linchado por um público indignado. Mas essas performances
corajosas eram os atos de bravura de um covarde.
Agora, os atos de bravura de um covarde são muito valiosos em
romances psicológicos e são extremamente valiosos para o homem que os
executa, mas eles não são valiosos para o público que, uma temporada
depois da outra, paga para ver um toureiro. O que eles fazem é dar ao
toureiro um valor aparente que ele não tem. Às vezes, ao ir à igreja usando
trajes de tourada antes da luta, suando debaixo dos braços, para rezar e
pedir que o touro embiste, e que faça isso de maneira direta seguindo a
trajetória da capa; ó Virgem Maria, dai-me um bom touro que embiste,
dai-me esse touro, Virgem Maria, e que eu possa encostar nesse touro hoje
em Madri num dia sem vento; ao prometer alguma coisa de valor ou uma
romaria, ao rezar pedindo sorte, morrendo de medo, para que talvez à
tarde esse touro entre na arena e o matador fique exaurido com o esforço
de manter a aparência de bravura, simulando de vez em quando a alegria
de uma grande faena; o toureiro covarde, num esforço de exibir a coragem
que não tem, anula sua imaginação e tem uma performance esplêndida e
brilhante. Basta uma dessas por ano em Madri, na primavera, para ele
conseguir os contratos que permitem que siga lutando, mas na verdade
essa performance não tem importância nenhuma. Você tem sorte se
presenciar uma dessas, mas você pode voltar outras vinte vezes e nunca
mais ver outra performance parecida.
Pensando nisso tudo, ou você adota o ponto de vista do toureiro ou o
ponto de vista do público. A questão da morte é o que deixa tudo um
pouco confuso. A tourada é a única arte em que o artista corre risco de
vida e o grau de genialidade da performance está relacionado à honra do
lutador. Na Espanha, a honra é algo muito importante. Chamada de
pundonor, que significa honra, probidade, coragem, respeito próprio e
honra, tudo numa palavra só. O orgulho é a característica mais forte do
povo e é uma questão de pundonor não demonstrar covardia. Uma vez
demonstrada, verdadeira e inegavelmente, o lutador perde a honra e passa
a fazer apresentações meramente cínicas, sem muito esforço, criando
perigo para si mesmo só como uma forma de tirar vantagem financeira, a
fim de assinar contratos no futuro. Não se espera que um toureiro seja
sempre bom, apenas que dê o melhor de si. Ele é perdoado por um
trabalho ruim se o touro for muito difícil, ele deve ter dias de folga, mas
todos esperam que ele dê o melhor de si com o touro que lhe foi dado.
Mas quando a honra já não está mais em jogo, você já não sabe mais se ele
dará tudo de si ou se fará qualquer coisa que valha a pena, além de
cumprir suas obrigações e matar o touro da maneira mais segura,
monótona e desonesta que puder. Ao perder sua honra, ele continua
vivendo em função dos contratos, odiando o público diante do qual se
apresenta, dizendo para si mesmo que as pessoas não podem dar um pio
nem zombar de alguém que encara a morte enquanto elas ocupam
cadeiras confortáveis e seguras, dizendo para si mesmo que pode sempre
fazer um trabalho incrível se quiser, e que o público espere. Então, um ano
depois, ele descobre que não consegue mais fazer um bom trabalho,
mesmo quando tem um bom touro e faz um esforço enorme de coragem
e, no ano seguinte, ele se aposenta. Porque um espanhol precisa ter honra
e, quando ele deixa de ter honra, quando perde a capacidade de pensar que
para ser bom basta acreditar, é quando ele se aposenta e recupera a honra
a partir dessa decisão. Esse negócio de honra não é uma fantasia que estou
tentando empurrar para você, do mesmo jeito que os escritores da
Península têm teorias sobre o seu povo. Juro que é verdade. Honra para
um espanhol, não importa o quão desonesto ele seja, é uma coisa tão real
quanto a água, o vinho, ou o azeite de oliva. Existe honra entre o
batedores de carteira e honra entre as prostitutas. O que muda é a
referência.
A honra de um toureiro é tão necessária para uma tourada quanto
touros bons, e isso funciona assim porque existe meia dúzia de toureiros,
alguns deles muito talentosos, sem honra nenhuma; isso acontece quando
o toureiro é explorado no início da carreira e como consequência ele fica
cínico, ou às vezes fica covarde para sempre por causa de ferimentos, o que
é diferente da perda temporária de coragem que sempre ocorre depois que
o toureiro é chifrado, e isso pode render touradas muito ruins, sem
considerar os toureiros que são fracos ou sem treinamento suficiente.
Além disso, a senhora tem mais alguma dúvida? Quer que explique mais
alguma coisa?
Senhorinha: Percebi que quando um dos cavalos foi atingido pelo touro,
saiu uma serragem de dentro dele. Como o senhor explica isso?
Minha senhora, a serragem foi colocada dentro do cavalo por um
bondoso veterinário a fim de preencher o vazio deixado pela perda de
alguns órgãos.
Senhorinha: Muita obrigada. O senhor me explicou tudo que eu precisava
saber. Mas com certeza o cavalo não duraria muito com aquela serragem
dentro dele, certo?
Minha senhora, é apenas uma solução temporária, e bastante
controversa.
Senhorinha: E no entanto ela me pareceu muito limpa, como se a
serragem fosse algo bom e agradável.
Minha senhora, não existe serragem mais agradável do que aquela usada
nos cavalos das arenas de Madri.
Senhorinha: Fico feliz em saber disso. Quem é aquele cavalheiro fumando
charuto e o que são aquelas coisas que ele está comendo?
Minha senhora, aquele é Dominguin, um promotor de touradas bem-
sucedido. Ele foi matador e hoje é empresário de Domingo Ortega, e ele
está comendo camarões.
Senhorinha: Vamos pedir uns camarões também, se não for muito difícil,
só para experimentar. Ele tem o rosto de um homem bom.
É, ele tem, mas nunca empreste dinheiro para ele. Os camarões daqui
são muito bons, mas do outro lado da rua eles são maiores, e são
chamados de lagostins. Garçom, três porções de gambas.
Senhorinha: Como é que o senhor chamou os camarões?
Gambas.
Senhorinha: Em italiano, essa palavra quer dizer membro, se não me
engano.
Autor: Se a senhora quiser, podemos ir a um restaurante italiano perto
daqui.
Senhorinha: Ele é frequentado pelos toureiros?
Autor: Nunca, minha senhora. Lá só se veem políticos ambiciosos.
Senhorinha: Então vamos jantar em outro lugar. Onde os matadores
comem?
Autor: Eles comem em pensões muito simples.
Senhorinha: O senhor conhece alguma dessas pensões?
Autor: Conheço, sim.
Senhorinha: Eu gostaria de conhecer melhor.
Autor: As pensões?
Senhorinha: Não, senhor. Os toureiros.
Autor: Minha senhora, muitos deles vivem doentes.
Senhorinha: O senhor me conte que doenças são essas e eu digo o que
penso. Eles têm caxumba?
Autor: Não, senhora. Poucos deles sofreram de caxumba.
Senhorinha: Eu tive caxumba, então isso não me assusta. Mas essas
doenças de que o senhor fala, elas são estranhas e diferentes como os trajes
que eles usam?
Autor: Não, elas são bem comuns. Podemos falar delas outra hora.
Senhorinha: Mas me conte uma coisa antes de ir embora; esse Maera foi o
toureiro mais corajoso que o senhor já viu?
Autor: Sim, senhora, ele foi. Porque, entre os toureiros corajosos de
nascença, ele era o mais inteligente. É mais fácil ser um idiota corajoso do
que ser extremamente inteligente e ainda assim totalmente corajoso.
Ninguém negaria que Marcial Lalanda é corajoso, mas sua coragem está
toda ligada à inteligência, e ela foi adquirida. Ignacio Sánchez Mejías, que
se casou com a irmã de Joselito e era um banderillero excelente, apesar de
ter um estilo violento, era muito corajoso, mas ele usava sua coragem da
mesma forma que um pedreiro usa uma trolha. É como se estivesse o
tempo todo mostrando os pelos do peito para o público ou as
características de suas partes íntimas. Não é assim que a bravura funciona
nas touradas. Deveria ser uma qualidade cuja existência permita ao
toureiro executar todas as ações que quiser sem nenhuma apreensão. Não
é algo que você deva esfregar na cara do público.
Senhorinha: Comigo isso nunca aconteceu.
Autor: Vai acontecer no dia em que a senhora vir uma tourada com
Sánchez Mejías.
Senhorinha: Quando posso ver uma tourada com ele?
Autor: No momento, ele está aposentado, mas se ficar sem dinheiro, a
senhora terá chance de vê-lo numa tourada.
Senhorinha: Parece que o senhor não gosta dele.
Autor: Embora eu respeite sua bravura, sua habilidade com os bastões e
sua insolência, não gosto dele como matador, nem como banderillero,
nem como pessoa. Por isso dedico pouco espaço para ele neste livro.
Senhorinha: O senhor é preconceituoso?
Autor: É difícil a senhora encontrar um homem que seja mais
preconceituoso do que eu e que seja também capaz de ter a cabeça mais
aberta do que a minha. Mas talvez eu seja assim porque a parte
preconceituosa da minha mente, aquela que orienta as minhas ações, seja
influenciada pela experiência e não afete a parte completamente aberta,
que continua existindo para fazer observações e avaliações.
Senhorinha: Não faço ideia.
Autor: Minha senhora, eu também não faço ideia e é bem possível que a
gente esteja falando merda.
Senhorinha: Esse é um termo que eu não costumava usar na minha
juventude.
Autor: Minha senhora, agora usamos esse termo para descrever algo
infundado numa conversa qualquer, ou, na verdade, para se referir a
qualquer conversa que se volte demais para o metafísico.
Senhorinha: Preciso aprender a usar esses termos direito.
10
Existem três atos no confronto com cada touro e, em espanhol, eles são
chamados de los tres tercios de la lidia, ou os três terços do combate. O
primeiro ato, em que os touros atacam os picadores, é a suerte de varas,
ou o teste das lanças. Suerte é uma palavra importante em espanhol. Ela
significa, de acordo com o dicionário: Suerte, sf., acaso, oportunidade,
destino, fortuna, sorte, casualidade; coincidência, contingência,
eventualidade, acidente, imprevisto, sina, fado, achado; espécie, condição,
nível, categoria, êxito; percalço, revés, transtorno, e pedaço de terra
separado por um marco divisório. Então a tradução como teste ou
manobra é bem arbitrária, como deve ser toda tradução do espanhol.
A ação dos picadores na arena e o trabalho dos matadores responsáveis
por protegê-los com as capas quando eles descem dos cavalos compõem o
primeiro ato da tourada. Quando sopram as cornetas e o presidente faz
um sinal indicando o fim desse ato, os picadores saem da arena e começa o
segundo ato. Depois do primeiro ato, não fica nenhum cavalo na arena, a
não ser os cavalos mortos cobertos com lona. O primeiro ato é o das
capas, dos picadores e dos cavalos. Ele representa a melhor oportunidade
que o touro tem de mostrar se é corajoso ou covarde.
O segundo ato é das banderillas. Os bastões com quase um metro de
comprimento, setenta centímetros para ser exato, e uma ponta de aço que
lembra um arpão e tem quatro centímetros de comprimento. Elas devem
ser inseridas, duas de cada vez, no músculo da corcova que fica no alto do
pescoço do touro, no instante em que o touro avança sobre o homem que
as segura. Elas servem para diminuir a velocidade do touro e para ajustar a
postura da cabeça, algo que começa a ser feito pelos picadores assim que o
ataque do animal fica mais lento, porém mais confiante e certeiro. Em
geral, são usados quatro pares de banderillas. Cravadas pelos banderilleros
ou pelos peones, elas devem ser inseridas com rapidez e na posição certa.
Se o próprio matador fizer o serviço, ele pode optar por uma preparação
antes, em geral acompanhada de música. Essa é a parte mais pitoresca da
tourada e a parte favorita de muitos espectadores que veem uma tourada
pela primeira vez. A missão dos banderilleros não é só cansar os músculos
do pescoço do touro para que ele ataque com a cabeça mais baixa, mas
também, ao colocar os bastões de um lado ou de outro, corrigir a
tendência que o animal tem de atacar usando só um dos chifres. O ato
inteiro das banderillas não deve demorar mais do que cinco minutos. Se
demorar muito, o touro fica alterado e a luta perde o ritmo, e se o touro
for instável ou perigoso, ele acaba tendo muitas chances de ver e atacar
homens sem nenhum recurso para distrair o animal, e assim desenvolve a
tendência de perseguir os homens atrás dos panos, de perseguir a cuadrilla,
como os espanhóis a chamam, quando o matador entra na arena para o
último ato com a espada e a muleta.
O presidente encerra o ato depois de três ou no máximo quatro pares de
banderillas serem cravados e o terceiro e último ato é o sacrifício. Ele é
formado por três partes. Primeiro, os brindis ou saudações do presidente,
seguida da dedicatória da morte do touro, feita pelo matador para o
presidente ou para outra pessoa, depois disso o matador começa os
trabalhos com a muleta. Ela é um tecido de sarja escarlate dobrado sobre
um bastão com ponta afiada numa extremidade e um punho na outra.
A ponta atravessa o tecido que é preso no punho com um parafuso ma-
nual, assim o pano pende com pregas ao longo do bastão. Muleta significa,
literalmente, bengala, mas na tourada ela se refere ao bastão envolvido
pelo pano escarlate com o qual o matador deve dominar o touro, prepará-
lo para o sacrifício e, por fim, com o bastão na mão esquerda, para baixar a
cabeça do touro e mantê-la abaixada enquanto ele mata o animal com um
golpe de espada entre as escápulas.
Esses são os três atos na tragédia da tourada, e é o primeiro ato, o do
cavalo, que dá o tom para os outros dois, é na verdade o que torna todo o
resto possível. É no primeiro ato que o touro entra na arena em posse de
todas as suas capacidades: confiante, feroz, arrogante e rápido. Todas as
suas conquistas ficam no primeiro ato. No fim do primeiro ato, ele parece
ter vencido. Ele botou para fora os homens a cavalo e agora está sozinho
na arena. No segundo ato, ele é totalmente surpreendido por um homem
desarmado e é punido muito cruelmente com as banderillas, assim a
confiança e o ódio cego do animal dão lugar a uma raiva concentrada num
único objeto. No terceiro ato, ele é enfrentado por um homem que deve,
sozinho, dominar o touro com um pedaço de pano pendurado num
bastão, e matá-lo pela frente, atacando por cima do chifre direito do touro
para matá-lo com uma espada fincada no meio do arco entre as escápulas.
Nas minhas primeiras touradas, a única parte que me incomodava era a
das banderillas. Elas pareciam causar uma mudança cruel e enorme no
touro. Ele se torna um animal muito diferente atingido pelas banderillas e
eu lamentava a perda da liberdade e da impetuosidade que ele tinha ao
entrar na arena; essas características ficam bem evidentes quando ele
encara os picadores. Com as banderillas, ele já era. Elas o condenam. O
primeiro ato é o julgamento, o segundo ato é a condenação e o terceiro é a
execução. Mais tarde, ao aprender que o touro se torna muito mais
perigoso quando fica na defensiva, que, depois de ficar mais controlado e
lento por causa das banderillas, ele usa os chifres do mesmo modo que um
caçador mira num pássaro específico dentro de um bando em vez de atirar
a esmo e não acertar nenhum, e quando fiquei sabendo, por fim, o que era
possível fazer com o touro do ponto de vista artístico quando ele fica mais
lento, porém ainda com coragem e força, minha admiração pelo touro só
aumentou, mas senti tanta simpatia por ele quanto sentiria pela tela de um
quadro ou pelo mármore de uma escultura ou pela neve seca que é
cortada pelos esquis.
Não sei de nenhuma escultura moderna, à exceção das obras de
Brancusi, que seja de alguma forma equivalente à escultura da tourada
moderna. Mas ela é uma arte impermanente como o canto e a dança, uma
das que Leonardo sugeriu que os homens evitassem, e quando o artista sai
de cena, a arte existe apenas na memória daqueles que a viram e ela morre
com eles. Olhar para fotografias, ler descrições ou tentar lembrar do que
viu com muita frequência pode corromper a memória do fato. Se a
tourada fosse permanente, poderia ser uma das grandes artes, mas ela não
é e assim deixa de existir com quem a executa, diferente das grandes artes
que não podem ser julgadas até que o desimportante corpo putrefato de
quem quer que seja o responsável pela arte esteja muito bem enterrado. A
tourada é uma arte que lida com a morte e a morte encerra sua existência.
Mas nunca está perdida de verdade, você diz, porque em todas as artes as
descobertas e os incrementos evidentes são levados adiante por alguém;
então nada se perde, na verdade, a não ser o próprio homem. Sim, e na
hipótese de que todas as pinturas desaparecessem com o pintor no
momento da sua morte, seria reconfortante saber que as descobertas feitas
por Cézanne, por exemplo, não estariam perdidas porque seriam usadas
pelos seus imitadores? Reconfortante coisa nenhuma.
Vamos supor que a obra de um pintor desapareça com ele e que os livros
de um escritor sejam automaticamente destruídos quando ele morre e
passassem a existir somente na memória dos leitores. É isso que acontece
com a tourada. A arte, o método, os incrementos, as descobertas
permanecem; mas a pessoa que tornou tudo isso possível, que era a pedra
de toque, a origem, desaparece e, até que surja outra pessoa tão
importante quanto, as coisas, ao serem imitadas, logo são distorcidas,
prolongadas, encurtadas, enfraquecidas até perderem a referência original.
Toda arte é feita por uma pessoa. A pessoa é só o que você tem e todas as
escolas servem apenas para classificar seus integrantes como fracassados. A
pessoa, quando é uma grande artista, usa tudo que se sabe ou foi
descoberto sobre sua arte até aquele ponto, sendo capaz de selecionar o
que lhe interessa de forma tão rápida que é como se tivesse nascido já com
o conhecimento, como se absorvesse instantaneamente o que alguém
comum levaria uma vida inteira para conhecer, e então a grande artista vai
além do que foi feito ou daquilo que se sabe e cria algo próprio. Mas às
vezes há um longo intervalo entre um grande artista e outro, e aqueles
que conheceram os grandes do passado raramente reconhecem os novos
quando surgem. Eles querem o antigo, tudo do jeito como era antes,
como eles se lembram. Porém, os outros, os contemporâneos,
reconhecem os novos grandes artistas quando surgem por causa da
habilidade que têm de aprender muito rápido, e por fim até aqueles que
lembram dos grandes do passado também os reconhecem. Eles são
perdoados por não os terem reconhecido de primeira porque, no período
de espera, veem tantos artistas falsos e se tornam tão cuidadosos que não
confiam mais em seus instintos; confiam apenas na memória. E a
memória, claro, nunca é verdadeira.
Assim que surge um grande toureiro, você pode perdê-lo fácilmente por
causa de uma doença; muito mais fácil do que por morte. Dos dois únicos
grandes toureiros que surgiram desde que Belmonte se aposentou,
nenhum deles teve uma carreira completa. A tuberculose acabou com um
deles e a sífilis afetou o outro. Essas são as duas doenças ocupacionais do
matador. Ele começa a corrida debaixo do sol quente, tão quente que
mesmo as pessoas com pouco dinheiro gastam três vezes mais num
ingresso apenas para se sentar na sombra. Ele usa uma jaqueta pesada de
brocado dourado que o faz transpirar no sol feito um boxeador pulando
corda num treinamento. Nesse sol, suando em bicas, sem nenhuma chance
de tomar uma ducha ou de esfregar álcool para fechar os poros, o matador,
à medida que o sol se põe e a sombra do anfiteatro alcança a areia, fica de
pé parecendo imóvel, mas pronto para fazer sua parte, enquanto os
colegas matam seus últimos touros. Com frequência, no fim do verão e no
início do outono, em cidades que ficam nos planaltos mais altos da
Espanha, o frio obriga você a usar um sobretudo no fim de uma tourada
que tinha começado sob um sol tão forte que, se estivesse com a cabeça
descoberta, você corria o risco de sofrer uma insolação. A Espanha é um
país de montanhas e boa parte é africana e no outono e no fim do verão,
depois do pôr do sol, o frio chega rápido e mortal para qualquer um que
esteja exposto a ele, molhado de suor, incapaz de se enxugar. Um
boxeador faz de tudo para evitar um resfriado quando está transpirando,
enquanto um toureiro não pode fazer nada. Isso basta para explicar o
número de toureiros que sofrem de tuberculose mesmo sem a fadiga das
viagens noturnas, da poeira e das touradas diárias durante a temporada de
ferias em agosto e setembro.
Sífilis é outra coisa. Boxeadores, toureiros e soldados contraem sífilis
pelas mesmas razões que os levam a escolher suas profissões. No boxe, as
mudanças mais repentinas na forma física de um atleta, a maioria dos
casos chamados de demência pugilística e o ato de “andar nos calcanhares”
são resultados da sífilis. Você não pode citar nomes num livro porque é
difamatório, mas qualquer um na profissão pode dar uma dúzia de
exemplos recentes. Há sempre casos recentes. A sífilis foi a doença das
Cruzadas na Idade Média. Os cruzados teriam sido responsáveis pela
chegada dela à Europa e é uma doença de pessoas que levam uma vida
sem regras e não se importam com consequências. É um destino certo
para aqueles com vidas sexuais impróprias, que preferem se arriscar em
vez de se prevenir, e é um fim previsível, ou melhor, uma fase da vida de
todos os fornicadores que seguem nessa carreira por tempo suficiente.
Alguns anos atrás, tive a oportunidade de observar a evolução de alguns
libertinos que eram referências de moral na universidade e, depois de
caírem no mundo, descobriram os prazeres da imoralidade que, como
adeptos de Yale numa terra estranha, eles nunca tinham experimentado
até então e, ao se entregarem a esses prazeres, sentiram como se tivessem
descoberto, ou até mesmo inventado, as relações sexuais. Eles acreditavam
que se tratava de uma grande novidade que tinham acabado de descobrir e
eram prazerosamente promíscuos até ficarem doentes pela primeira vez,
com uma doença que eles também acreditavam ter descoberto e
inventado. É claro que eles não tinham como saber dessa coisa terrível,
assim como não poderiam ter sofrido suas consequências, caso contrário
jamais permitiriam que isso acontecesse, e com isso eles se tornam mais
uma vez, por um tempo, os defensores e praticantes da vida mais íntegra
que existe ou, no mínimo, limitam suas atividades a um círculo social mais
restrito. Houve várias mudanças nos costumes morais e muitos que
estavam destinados a dar aulas na escola dominical se tornaram notáveis
pervertidos. Assim como os toureiros que são arruinados ao sofrer sua
primeira chifrada, eles não têm nenhuma vocação para pervertidos, mas é
um teste ver e ouvir o que eles fazem e dizem quando descobrem o que
Guy de Maupassant classificou como uma das doenças da adolescência, e
que, a propósito, para justificar seu ponto de vista, foi a razão da sua
morte. Eles dizem, “Ele brinca com cicatrizes que nunca sentiram a dor de
uma ferida”. Mas ele brinca muito bem com cicatrizes que estão cobertas
de feridas, ou ao menos é o que os homens costumavam fazer, embora os
brincalhões de hoje façam mais graça com qualquer coisa que acontece a
qualquer um que não seja ele mesmo, e no momento que sofrem qualquer
coisa, eles reclamam, “Você não está entendendo. Isso é muito sério!”, e se
tornam grandes moralistas ou desistem de tudo apelando para algo tão
banal quanto um suicídio. Talvez as doenças venéreas tenham de existir
assim como os touros têm de ter chifres, para manter as coisas em seus
devidos lugares, senão todos seriam Casanovas e matadores. Mas eu daria
tudo para que as doenças venéreas desaparecessem da Espanha, por causa
do mal que elas fazem aos matadores. Mesmo que elas não existissem na
Espanha, ainda poderiam ser contraídas em outros países, ou os homens
sairiam numa cruzada e voltariam doentes de algum lugar.
Você não pode esperar de um matador que tenha assumido riscos para
triunfar à tarde que ele não assuma riscos também à noite e “mas cornadas
dan las mujeres”. Três coisas ajudam os jovens a evitar relações
promíscuas: crença religiosa, timidez e medo de doenças venéreas. A
última é com frequência a base dos apelos feitos pela YMCA. e por outras
instituições que defendem uma vida regrada. Contra esses apelos, o que
pesa para um toureiro é a tradição que manda um toureiro ter muitas
amantes, suas predisposições, o fato de que sempre haverá mulheres atrás
dele, algumas interessadas nele, outras interessadas no dinheiro dele e
muitas interessadas nas duas coisas, e sua relutância em encarar as doenças
venéreas como um perigo. Mas, diz a senhorinha, existem muitos
toureiros que contraem essas doenças?
Minha senhora, eles contraem essas doenças assim como todos os
homens que se envolvem com mulheres pensando só na mulher e não na
sua saúde.
Senhorinha: Mas por que eles não pensam na saúde?
Minha senhora, essa é uma pergunta difícil de responder. Na verdade,
um homem que tem seus desejos satisfeitos não pensa. Mesmo quando
uma mulher é uma prostituta, se ela for uma boa prostituta, um homem
não vai pensar na sua saúde na hora nem depois.
Senhorinha: E essas doenças são todas de mulheres profissionais?
Não, senhora. Com frequência, elas são contraídas de amigas, ou de
amigas de amigas, e de qualquer mulher com quem você possa dormir
aqui, lá ou em qualquer lugar.
Senhorinha: Como deve ser arriscada a vida de um homem.
Ela é, minha senhora, realmente, e apenas uns poucos sobrevivem. É um
caminho difícil que termina sempre no túmulo.
Senhorinha: Não seria melhor se esses homens se casassem e dormissem
apenas com suas esposas?
Para suas almas, sim, e também para os seus corpos. Mas, como
toureiros, depois que se casam, muitos ficam arruinados porque amam
suas esposas de verdade.
Senhorinha: E as esposas? O que elas pensam?
Quem nunca foi uma esposa de toureiro não pode falar por elas. Se o
marido não tem nenhum contrato, ele não consegue ganhar a vida. Mas, a
cada contrato, ele corre o risco de morrer e nenhum homem pode entrar
na arena e dizer com certeza que vai sair dela vivo. Não é como ser esposa
de um soldado, pois um soldado ganha a vida mesmo quando não há
guerra; e o marinheiro tem o barco para se proteger; e mesmo o boxeador
não encara a morte. É uma situação única e, se eu tivesse uma filha, não
desejaria isso para ela.
Senhorinha: O senhor tem uma filha?
Não, senhora.
Senhorinha: É uma preocupação a menos. Mas gostaria que os toureiros
não pegassem essas doenças.
Ah, minha senhora, não é possível encontrar um homem que seja
homem e não carregue marcas de desventuras passadas. Ou ele sofreu de
alguma coisa, ou quebrou isso, ou contraiu aquilo, mas um homem
sobrevive a muitas coisas e conheço um campeão de golfe que nunca
jogou tão bem como quando estava com gonorreia.
Senhorinha: Então não há remédio que resolva?
Minha senhora, não há remédio para tudo nessa vida. A não ser a morte,
que é um remédio soberano para todos os infortúnios, e o melhor a fazer
agora é parar de conversar e começar a comer. Não vai demorar para os
cientistas descobrirem a cura para essas doenças antigas e viveremos para
ver o fim de todas as moralidades. Mas, até lá, prefiro comer um leitão no
restaurante do Botin a ficar pensando nas desgraças vividas por meus
amigos.
Senhorinha: Então vamos comer. Amanhã poderemos conversar mais
sobre as touradas.
11
O touro bravo está para o bovino domesticado assim como o lobo está
para o cachorro. Um bovino domesticado pode ser mal-humorado e
violento assim como um cachorro pode ser mau e perigoso, mas ele nunca
terá a velocidade, a quantidade de músculos e tendões, e a constituição
física peculiar do touro bravo, da mesma forma que um cachorro não tem
o mesmo físico de um lobo, nem a astúcia, nem a largura da mandíbula.
Os touros usados na arena são animais selvagens. Eles são criados a partir
de uma linhagem que descende diretamente dos touros selvagens que
percorriam a Península e são criados em fazendas com milhares de
hectares de extensão onde vivem soltos. Até entrarem numa arena, os
touros têm pouquíssimo contato com homens.
As características físicas do touro bravo são o couro grosso e muito forte
com uma pelagem brilhante, a cabeça pequena e a testa larga; a força e o
formato dos chifres, curvados para a frente; pescoço curto e grosso com
uma corcova grande que se enrijece quando o touro está bravo; ombros
largos, cascos muito pequenos e um rabo fino e comprido. A fêmea do
touro bravo não é tão forte como o macho; tem uma cabeça menor;
chifres mais curtos e mais finos; pescoço mais alongado, uma papada mais
discreta debaixo da mandíbula; o peito não é tão largo e o úbere não é
visível. Já vi algumas vezes essas vacas na arena de lutas amadoras em
Pamplona, atacando feito touros, arremessando longe os toureiros
amadores, e os visitantes se referem a elas como se fossem machos, pois
não há nenhuma característica evidente de sua condição de fêmeas e elas
não dão nenhum sinal de feminilidade. É na fêmea do touro bravo que
você consegue enxergar melhor a diferença entre o animal selvagem e o
domesticado.
Uma das coisas que mais se ouve dizer a respeito das touradas é a
afirmação de que uma vaca é muito mais perigosa ao atacar do que o
touro, porque o touro fecha os olhos enquanto a vaca mantém os olhos
abertos. Não sei de onde veio essa história, mas ela não é verdade. As
fêmeas usadas em lutas amadoras quase sempre atacam o homem em vez
da capa, viram na direção do homem em vez de seguir em linha reta, e
com frequência escolhem um homem ou um garoto específico e o
perseguem no meio de uma multidão de cinquenta pessoas, mas não
fazem por causa de uma suposta inteligência superior das fêmeas, como
Virginia Woolf poderia supor, mas porque as vacas, como não devem
entrar na arena em lutas normais e como não existe nenhuma objeção
para que aprendam tudo sobre todas as fases da tourada, são usadas
exclusivamente para que os toureiros possam treinar a capa e a muleta.
Tanto um touro quanto uma vaca, depois de alguns passes de capa ou de
muleta, aprendem o movimento, lembram dele e, se for um touro,
consequentemente se torna inútil para uma tourada oficial em que tudo
depende do fato de ser o primeiro encontro do touro com um homem a
pé. Se o touro não está familiarizado com a capa e a muleta e ataca em
linha reta, o homem consegue controlar o perigo trabalhando o mais
próximo possível do touro e terá condições de tentar uma série de passes à
sua escolha e organizá-los numa sequência que faça sentido em vez de
apelar para os passes como uma forma de se defender. Se o touro já lutou
antes, ele vai mirar o homem, vai retalhar o pano tentando acertar o
homem e vai controlar todo o perigo sozinho, fazendo o homem recuar e
colocando-o numa posição defensiva, tornando impossível qualquer
sequência de passes e acabando com o brilho da luta.
A tourada se desenvolveu e se organizou de tal forma que o touro, com
tempo limitado na arena e sem nunca ter visto um homem desprovido de
montaria, aprende a desconfiar de todos os artifícios que usam contra ele
justamente no ápice do perigo que enfrenta, no momento do sacrifício. O
touro aprende tudo tão rápido na arena que, se a tourada for arrastada,
mal executada ou estendida por mais dez minutos, ele se torna quase
impossível de matar pelos meios previstos nas regras do espetáculo. É por
isso que os toureiros praticam e treinam com as fêmeas do touro e, dizem
os toureiros, elas se tornam tão espertas depois de algumas sessões que são
capazes de falar grego e latim. Depois de educadas, elas vão para as arenas
lutar contra amadores; às vezes com os chifres nus, às vezes com as pontas
cobertas por uma bola de couro, elas entram na arena rápido e são tão
ágeis como um cervo para praticar com os amadores e suas capas e com
todo tipo de aspirante a toureiro nas capeas; para arremessar, rasgar,
chifrar, perseguir e apavorar esses amadores até que, quando as vacas se
cansam, deixam que os bois entrem na arena e levem as vacas para
descansar nos currais até a próxima apresentação. As vacas bravas, ou
vaquillas, parecem gostar dessas apresentações. Elas não são aguilhoadas,
nenhuma divisa é colocada nos seus ombros, elas não precisam ser
provocadas para atacar e parecem gostar de atacar e arremessar homens
tanto quanto um galo de briga gosta de brigar. Enquanto elas não sofrem
nenhuma punição, a bravura dos touros é julgada pela maneira como eles
se comportam quando punidos.
As manobras necessárias para uma tourada são possíveis graças ao
instinto de manada que permite conduzir touros em grupos de seis ou
mais, ao passo que um touro, destacado da manada, ataca instantânea e
repetidamente qualquer coisa, homem, cavalo ou objeto, ou veículo que se
mova, até que seja morto; e com o uso de bois treinados ou cabestros para
conduzir e arrebanhar touros bravos da mesma forma que elefantes
selvagens são pegos e arrebanhados por elefantes que foram domados. É
uma das coisas mais interessantes da tourada ver os bois trabalharem nas
operações de carregar, separar e conduzir os touros para jaulas de
transporte, e em todas as operações relacionadas à criação, ao transporte e
ao descarregamento de touros bravos.
Antigamente, quando eles ainda não eram transportados em jaulas por
meio de ferrovias ou, agora, com a construção de boas estradas na
Espanha, por meio de caminhões, uma maneira excelente e muito menos
desgastante, os touros eram conduzidos pelas estradas espanholas, com os
touros bravos cercados de bois e a manada protegida por homens a cavalo
carregando lanças para proteção, muito parecidas com as que os picadores
usam, erguendo uma nuvem de poeira à medida que avançavam e fazendo
os habitantes dos vilarejos correrem para suas casas para fechar e trancar
as portas, e olhar pelas janelas para as costas largas e empoeiradas, os
chifres grandes, os olhos rápidos e os focinhos úmidos, os cabestros com
sinos, e as jaquetas curtas, rostos marrons e chapéus cinza de aba larga e
copa alta dos homens que conduzem a manada pelas ruas. Quando os
touros estão juntos, no meio do rebanho, eles ficam em silêncio porque a
sensação do conjunto passa confiança e o instinto de manada faz com que
sigam o líder. Os touros ainda são conduzidos dessa forma nas províncias
sem acesso a ferrovias e há o risco de um deles desmandar ou se desgarrar
do rebanho. Num ano em que estávamos na Espanha, isso aconteceu na
frente da última casa de um pequeno vilarejo nos arredores de Valência. O
touro tropeçou e caiu de joelhos e, quando ele conseguiu se levantar, os
outros já estavam à frente. A primeira coisa que ele viu foi um homem de
pé na
soleira de uma porta aberta. Ele atacou na mesma hora, arrancou o
homem da porta e o girou sobre a cabeça. Ele não viu mais ninguém e
avançou para dentro da casa. No quarto, encontrou uma mulher sentada
numa cadeira de balanço. Ela era velha e não tinha ouvido nenhum
barulho. O touro destruiu a cadeira e matou a mulher. O homem que
tinha sido arrancado da porta voltou para dentro de casa com uma
espingarda para proteger sua esposa, que já estava morta num canto do
quarto. Ele disparou à queima-roupa contra o touro, mas só atingiu o
ombro do animal. O touro atacou e matou o homem, viu um espelho e
atacou, atacou e destruiu um armário alto e antigo, e depois saiu da casa.
Ele desceu um trecho da estrada, encontrou um cavalo puxando uma
carroça, atacou e matou o cavalo e virou a carroça. O condutor ficou
dentro dela. A essa altura, os responsáveis pelo rebanho voltavam pela
estrada, os cavalos erguendo uma nuvem de poeira. Eles trouxeram dois
bois e, assim que os bois se posicionaram cada qual num lado do touro, o
touro se acalmou, baixou a cabeça e trotou, entre os dois bois, na direção
do rebanho.
Na Espanha, touros atacam automóveis e até sobem em trilhos para
enfrentar trens, sem recuar ou sair dos trilhos mesmo depois que o trem já
parou, e quando o trem por fim avança depois de soar o apito muitas
vezes, eles atacam a locomotiva com uma violência cega. Um touro bravo
que seja corajoso de verdade não tem medo de absolutamente nada e, em
diversas cidades da Espanha, durante exibições especiais e brutais, um
touro atacou um elefante repetidas vezes; outros mataram leões e tigres,
atacando despreocupadamente, como se estivessem indo atrás dos
picadores. Um verdadeiro touro bravo não teme coisa nenhuma e, na
minha opinião, é o melhor de todos os animais para se ver em ação ou em
repouso. Numa disputa de velocidade, o touro bravo é mais rápido do que
o cavalo numa distância
de vinte metros, embora o cavalo vença o touro numa distância de
quarenta e cinco metros. O touro consegue girar o corpo quase como se
fosse um gato, ele consegue girar muito mais rápido do que um pônei e,
aos quatro anos, tem força suficiente no pescoço e nos ombros para
levantar um cavalo com um cavaleiro e arremessá-los por sobre o seu
lombo. Muitas vezes vi um touro atacar as tábuas de madeira das barreras,
com três centímetros de espessura, usando os chifres, ou melhor, o chifre,
pois ele usa ou um ou outro, e deixar as tábuas em pedaços, e o museu da
arena em Valência exibe um pesado estribo de ferro com um furo de dez
centímetros de profundidade, resultado da chifrada de um dos touros
criados na fazenda de Don Esteban Hernández. O estribo está em
exposição não porque é uma peça única depois de ter sido perfurada por
um chifre de touro, mas porque, na ocasião, o picador saiu
miraculosamente sem nenhum arranhão do ataque.
Existe um livro, que está fora de catálogo na Espanha, chamado Toros
Celebres, que narra os feitos e as mortes de touros célebres, seguindo a
ordem alfabética dos nomes escolhidos pelos criadores, em trezentas e
vinte e duas páginas. Você pode ler sobre Hechicero, o feiticeiro, da
fazenda de Concha y Sierra, um touro cinza que lutou em Cádiz em 1844
e mandou para o hospital todos os picadores de todos os matadores da
luta, foram pelo menos sete homens, além de ter matado sete cavalos.
Víbora, da fazenda de Don José Bueno, um touro preto que lutou em Vista
Alegra, no dia 9 de agosto de 1908, e que, ao entrar na arena, saltou a
barrera e chifrou o carpinteiro Luis Gonzales, fazendo um ferimento
enorme na coxa direita. O toureiro tentou matar Víbora, não conseguiu e
o touro foi levado de volta para o curral. Esse não é o tipo de coisa que
costuma ser lembrada, a não ser talvez pelo carpinteiro, e Víbora fez parte
do livro mais pelo inusitado do ataque, e pela influência que ele teria sobre
possíveis compradores do livro, e
menos por qualquer motivo duradouro. Se houvesse algum registro do
que teria acontecido com o matador chamado Jaqueta, cujo único feito re-
gistrado na história é esse, antes de não conseguir matar Víbora, talvez o
touro fosse lembrado por algo mais do que a chifrada banal no carpinteiro.
Eu mesmo vi dois carpinteiros serem chifrados e nunca escrevi uma linha
sobre isso.
O touro Zaragoza, criado pela fazenda Lesireas, ao ser levado para a
arena de Moetia, em Portugal, no dia 2 de outubro de 1898, escapou da
jaula, perseguiu e feriu muitas pessoas. Ele perseguiu um menino que
correu para dentro da prefeitura e o touro, indo atrás do menino, subiu as
escadas até o primeiro andar e, de acordo com o livro, causou uma
destruição imensa. É bem provável mesmo.
Comisario, da fazenda de Don Victoriano Ripamilan, um touro
vermelho com olhos de perdiz e chifres enormes, foi o terceiro touro a
lutar em Barcelona, no dia 14 de abril de 1895. Ele saltou a barrera, chegou
às tribunas e, abrindo caminho pelo público, diz o livro, causou estragos e
confusão. O guarda civil Isidro Silva cravou seu sabre no touro e o cabo da
guarda civil Ubaldo Vigueres atirou no touro com sua carabina, a bala
atravessou os músculos do pescoço do touro e se alojou no lado esquerdo
do peito do funcionário da arena Juan Recaseus, que morreu no local. Por
fim, Comisario foi laçado e morto com golpes de punhal.
Nenhum desses eventos faz parte do domínio da tourada pura e simples,
a não ser o primeiro, assim como também não faz parte o episódio de
Huron, um touro da fazenda de Don Antonio Lopez Plata, que lutou
contra um tigre-de-bengala no dia 24 de julho de 1904, na Plaza de San
Sebastin. Eles lutaram numa jaula de aço e o touro derrotou o tigre, mas
acabou destruindo a jaula num de seus ataques e os dois animais saíram
para a arena, no meio do público. A polícia, tentando acabar com o tigre
moribundo e com o touro completamente vivo, disparou várias salvas de
tiros que “causaram ferimentos graves em vários espectadores”. Devo
dizer que, a partir da história dos diversos encontros entre touros e outros
animais, o melhor a fazer é evitar esses espetáculos, ou então vê-los de um
camarote bem alto.
O touro Oficial, da fazenda dos irmãos Arribas, lutou em Cádiz no dia 5
de outubro de 1884, conseguiu chifrar um banderillero, saltou a barrera e
chifrou o picador Chato três vezes, chifrou um guarda civil, quebrou a
perna e três costelas de um guarda municipal, e o braço de um vigia
noturno. Ele seria o animal perfeito para soltar na frente da prefeitura
quando a polícia está batendo em manifestantes. Se ele não tivesse sido
morto, poderia ter dado origem a uma linhagem de touros com aversão a
policiais, o que daria ao populacho a vantagem que eles perderam nas lutas
de rua desde o fim das ruas de pedra. A uma distância pequena, uma pedra
é mais eficaz do que um porrete ou uma espada. O fim das ruas de pedra
foi mais eficaz para impedir a derrocada de governos do que
metralhadoras, bombas de gás lacrimogêneo e pistolas automáticas.
Porque é nos confrontos em que o governo não quer matar os cidadãos,
mas dar pauladas, passar por cima e controlá-los que um governo perde a
autoridade. Qualquer governo que recorra ao uso de metralhadoras contra
os cidadãos vai cair automaticamente. Porretes e cassetetes servem para a
manutenção dos regimes, e não as metralhadoras ou as baionetas, e
enquanto houvesse ruas de pedra, as multidões estariam sempre armadas
para enfrentar a polícia.
O tipo de touro que é lembrado pelos aficionados das touradas e não
pelas multidões que tomam pauladas é Hechicero, cujas façanhas ocorrem
na arena contra toureiros treinados que podem puni-lo. É a diferença entre
brigas de rua, que são infinitamente mais emocionantes, formidáveis e
úteis, mas que não têm lugar aqui, e a conquista de um campeonato de
boxe. Qualquer touro fugitivo pode matar pessoas e destruir propriedades
sem ser punido por isso, mas quando um touro causa alvoroço e confusão
nas tribunas, nesse caso as pessoas enfrentam um perigo muito menor do
que o toureiro no momento do sacrifício, porque um touro, quando está
confuso e no meio de uma multidão, ataca cegamente e não mira os
chifres em ninguém. Um touro que salta pela barrera, a menos que faça
isso enquanto persegue um homem, não é um touro corajoso. Ele é um
touro covarde que está, simplesmente, tentando escapar da arena. O touro
corajoso de verdade aceita a luta, responde a cada convite para lutar, não
luta porque se sente encurralado, ele luta porque quer e essa bravura é
medida, e só pode ser medida, pelo número de vezes que ele, livre e
voluntariamente, sem bater as patas no chão, sem fazer ameaças ou blefar,
aceita combater o picador e, quando a ponta de aço da lança perfura os
músculos do pescoço e do ombro, também pela forma como o touro
resiste ao metal e continua a avançar mesmo sendo castigado de verdade
até derrubar o homem e o cavalo. Um touro corajoso é aquele que, sem
hesitar e sem deixar seu espaço na arena, vai atacar os picadores quatro
vezes, sem se importar com os castigos que recebe, e cada vez vai investir
contra a ponta de aço até que o cavalo e o cavaleiro recuem.
É unicamente pela conduta contra o picador que a bravura de um touro
pode ser julgada e reconhecida, e a bravura do touro está na raiz da
tourada espanhola. A bravura de um touro corajoso de verdade é algo
inacreditável e sobrenatural. Essa bravura não tem a ver só com a
violência, a ferocidade e a coragem causada pelo pânico de um animal
encurralado. Embora o touro seja um animal combativo e sua linhagem
tenha se mantido pura eliminando toda a covardia, quando está em
repouso, ele se torna um dos animais mais quietos e tranquilos. Não são os
touros mais difíceis de lidar que fazem as melhores lutas. Os melhores
touros bravos têm uma característica, chamada de nobreza pelos
espanhóis, que é a parte mais extraordinária das touradas. O touro é um
animal selvagem, seu maior prazer é a luta e ele jamais vai recusar uma
chance de lutar; e no entanto os melhores touros bravos com frequência
reconhecem e sabem quem é o mayoral, ou o vaqueiro responsável por
eles na fazenda e na viagem até a arena, e não se importam de receber
agrados e tapinhas dele. Já vi um touro que, no curral, deixou o vaqueiro
agradar o seu focinho, escová-lo como se fosse um cavalo e até montar no
seu lombo, e depois o touro entrou na arena sem nenhum preparo
preliminar ou aguilhões, atacou os picadores várias vezes, matou cinco
cavalos, fez de tudo para matar os banderilleros e o matador, e foi, na
arena, tão feroz como uma cobra e tão corajoso como uma leoa.
É claro que nem todos os touros são nobres e, para cada um que vira
amigo do mayoral, existem cinquenta que atacam mesmo quando ele está
trazendo comida e por qualquer motivo faz os touros pensarem que estão
sendo desafiados. Nenhum desses touros é nobre. Quando os touros têm
dois anos de idade, os criadores fazem um teste de bravura e os animais
são confrontados por um picador a cavalo num curral fechado ou numa
área aberta da fazenda. No ano anterior, para serem marcados, eles
tiveram de ser derrubados no chão por homens a cavalo equipados com
bastões longos sem ponta, e quando, aos dois anos de idade, eles são
testados contra as lanças com ponta de aço dos picadores, eles já têm
nome e número, e o criador registra as manifestações de coragem dadas
pelos touros. Aqueles que não são corajosos, se o criador for criterioso, são
vendidos como carne. Os outros são registrados de acordo com a bravura
que demonstram para que o criador possa dosar a qualidade dos touros
quando vender uma corrida de seis touros para uma arena qualquer.
A marcação dos touros ocorre da mesma forma como é feita nas
fazendas de gado no oeste dos Estados Unidos, a não ser pelas precauções
necessárias ao separar o bezerro da mãe, a necessidade de não ferir os
chifres nem os olhos e as complicações decorrentes da marcação. Os ferros
de marcação são aquecidos numa grande fogueira e consistem em um
ferro com a marca do criador do touro, que normalmente é uma
combinação de letras ou um escudo, e dez ferros com os números 0, 1, 2,
3, 4, 5, 6, 7, 8, 9. Os ferros de marcação têm um cabo de madeira e as
pontas que ficam no fogo são aquecidas até ficarem vermelhas. Os
bezerros ficam num curral, o fogo e os ferros ficam em outro; e os dois são
conectados por uma porta de vaivém e, quando a porta está aberta, os
vaqueiros conduzem um de cada vez para o curral de marcação, onde são
derrubados e segurados. São necessários quatro ou cinco homens para
segurar um novilho de touro bravo e eles precisam ter cuidado para não
ferir os chifres que estão nascendo, porque um touro com os chifres
danificados jamais será aceito numa tourada oficial e o criador deve então
vendê-lo para uma novillada ou para uma tourada irregular, perdendo algo
como dois terços do provável valor do animal. Além disso, eles devem ter
muito cuidado com os olhos, porque uma haste de palha no olho pode
gerar um defeito de visão que torna o touro inapropriado para a arena.
Quando eles são marcados, um homem segura a cabeça e os outros
seguram as pernas, o corpo e o rabo. A cabeça do novilho é colocada sobre
um saco de palha para protegê-la o máximo possível, as pernas são
amarradas e o rabo é colocado entre as pernas. A marca principal é
colocada do lado direito do traseiro e os números vão ao longo do flanco.
Tanto os machos quanto as fêmeas são numerados. Depois que as marcas
foram colocadas, as orelhas são cortadas ou grampeadas com o símbolo da
fazenda e os pelos na ponta do rabo dos machos são cortados com tesoura
para que cresçam mais longos e sedosos. Depois disso, os homens soltam o
novilho, que levanta furioso, ataca tudo e qualquer coisa que vê até sair
pela porta do curral de marcação. O herradero ou dia de marcação é a
atividade mais barulhenta, confusa e suja das touradas. Quando um
espanhol quer descrever a confusão extrema de uma tourada ruim, ele a
compara com um herradero.
O verdadeiro teste de bravura, a parte dele que acontece dentro de um
curral fechado, é a mais silenciosa das atividades. Touros são testados
quando eles têm dois anos de idade. Com um ano, eles são muito novos e
ainda não têm força suficiente para suportar o teste, e aos três anos eles
são fortes demais, perigosos demais e têm uma boa memória. Eles são
testados em um curral fechado, redondo ou quadrado, munido de
burladeros, ou abrigos de madeira para que os homens com capas possam
se proteger. Esses são toureiros profissionais, ou amadores que foram
convidados para o teste, em troca da oportunidade de praticar com as
fêmeas, e nos treinos com os novilhos eles pegam um de cada vez.
O curral inteiro tem cerca de 27 metros de largura, ou a metade do
tamanho de uma arena grande, os touros de dois anos ficam num curral
adjacente e entram no curral de teste um por vez. Quando eles entram na
arena, um picador, que usa calças de couro e jaqueta curta de vaqueiro,
espera por eles, segurando uma lança de quase quatro metros e com uma
ponta triangular de metal um pouco menor do que aquela usada na luta de
verdade. Ele posiciona o cavalo com as costas viradas para o portão por
onde passou o jovem touro e espera em silêncio. Ninguém abre a boca no
curral e o picador não faz nada para provocar o touro, pois a parte mais
importante do teste é a disposição com que o touro ataca sem ser
provocado ou irritado.
Quando o jovem touro ataca, todo mundo presta atenção em seu estilo;
se ele ataca de uma certa distância, sem bater as patas no chão antes ou
sem nenhum brado preliminar; quando ele avança na direção do cavalo, se
mantém as patas para trás e se impulsiona com força total, se continua
avançando contra o homem e o animal depois que o aço perfurou seu
músculo, usando toda a força das pernas traseiras e de parte das costas; ou
se ele coloca as patas na frente e usa o pescoço para tentar se livrar do
bastão, virando-se rápido e desistindo de atacar quando é castigado. Se ele
não ataca de maneira nenhuma, se o proprietário for criterioso, o touro é
certificado para castração e para o mercado de carne. Se esse for o
veredito, o proprietário diz “buey”, ou boi, em vez de dizer “toro”, que
significa que o touro foi aprovado para lutar numa arena.
Se o touro derruba o cavalo e o homem, e às vezes eles conseguem fazer
isso mesmo com apenas dois anos de idade, os toureiros precisam tirá-los
do curral usando suas capas, mas normalmente não é permitido que os
touros vejam as capas de jeito algum. Nos casos em que eles atacaram o
picador uma vez, ou no máximo duas, e não é possível avaliar o estilo e a
bravura no primeiro ataque, o portão é aberto e os touros podem sair do
curral com liberdade. A forma como aceitam essa liberdade, se mostram
interesse ou relutância, correndo para fora ou parando no portão e
olhando para trás, dispostos a atacar mais uma vez, são indicações valiosas
de como eles vão agir na arena.
A maioria dos criadores não gosta de deixar os touros atacarem mais de
uma vez. Eles pensam que existe um número limitado de lanças que um
touro suporta ao longo da vida. Se ele leva duas ou três durante um teste,
são três a menos que vai suportar na arena, então eles preferem acreditar
na linhagem dos touros e fazem os testes de verdade naqueles que devem
ser usados para reprodução. Eles acreditam que qualquer touro adequado
pode ser um touro excepcional ou uma fêmea muito corajosa, e eles
chamam de “toro” qualquer touro de dois anos com chifres e corpo
perfeitos sem fazer nenhum teste de bravura.
Às vezes, vacas que serão usadas para reprodução são autorizadas a
atacar o picador durante um teste algo como doze ou quinze vezes e
sofrem passes de capa e de muleta feitos pelos toureiros para testar a
qualidade de seu ataque e sua aptidão para seguir o pano. É crucial que as
vacas sejam corajosas e lidem bem com o pano, pois essas são qualidades
que serão herdadas por seus descendentes. Elas devem ser fortes e
robustas, com uma boa estrutura física. Por outro lado, se elas têm chifres
com defeitos, isso não importa, porque não se trata de uma característica
que costuma ser herdada. Uma propensão para chifres curtos pode ser
herdada e produtores preocupados em criar touros que tenham uma boa
aceitação entre os toureiros, de modo que eles escolham os touros criados
por esse produtor quando tiverem chance de especificar num contrato os
animais contra os quais desejam lutar, com frequência tentam diminuir o
comprimento dos chifres ao mínimo permitido pelos representantes do
governo e preferem os chifres voltados para baixo, que ficam numa altura
entre o chão e os joelhos do matador durante um ataque do touro com a
cabeça baixa, em vez de chifres voltados para cima que passam a uma
altura mais perigosa sempre que o touro enfrenta o matador.
Touros para reprodução são testados com o máximo de rigor. Depois de
terem sido usados na reprodução por alguns anos, quando eles são
mandados para a arena, quase sempre é possível reconhecê-los. Eles
parecem saber tudo sobre os picadores. Com frequência, eles atacam
corajosamente, além de serem capazes de usar os chifres para arrancar a
lança da mão do homem, e já vi um touro ignorar completamente o
cavalo e a lança para atingir o homem e arrancá-lo da sela. Se eles foram
testados também com capas e muletas, geralmente se tornam
absolutamente impossíveis de matar, e um toureiro que tenha assinado um
contrato para matar dois “touros novos” tem todo o direito de recusar
esses touros ou de matar esses animais instruídos da melhor maneira que
conseguir. Por lei, todo touro que tenha entrado numa arena deve ser
morto imediatamente após sair dela para evitar que seja usado mais de
uma vez. Mas essa lei nem sempre é respeitada nas províncias e é sempre
desrespeitada nas capeas, ou lutas amadoras, que foram proibidas por lei
há bastante tempo. Um touro que tenha sido testado rigorosamente não
tem as habilidades desses animais criminosos, mas fica óbvio que lutou
antes e qualquer espectador inteligente é capaz de perceber a diferença. No
teste de touros, é importante não confundir a força do touro jovem com
sua bravura. Num único ataque, se a lança escapar, um touro pode ser
forte o suficiente para derrubar o cavaleiro e o cavalo, fazendo um bom
espetáculo disso; por outro lado, se a lança ficar firme, o touro pode ser
contido pelo castigo, deixar de insistir e, por fim, desviar a cabeça. Touros
são testados em currais em Castela, uma região nos arredores de
Salamanca, Navarra e Estremadura, mas na Andaluzia eles são testados em
áreas abertas.
Os que defendem o teste em áreas abertas dizem que a verdadeira
bravura de um touro só pode ser manifestada dessa forma, pois no curral
ele se sente encurralado, e qualquer animal encurralado vai lutar. No
entanto, nos testes em áreas abertas, os touros são perseguidos e
derrubados pelas lanças longas usadas pelos cavaleiros, ou provocados de
alguma forma para atacar o picador, enquanto no curral eles não são
provocados de maneira nenhuma; então os dois jeitos mais ou menos se
equivalem; o teste em área aberta, com uma multidão de convidados a
cavalo, é mais pitoresco, e o método do curral se aproxima mais das
condições reais do touro na arena.
Para alguém que ama touradas, todas as atividades que envolvem a
criação de um touro são fascinantes e, nos testes, você desfruta de comida,
bebida e boas companhias, de situações engraçadas na exibição amadora
que a aristocracia faz com a capa, da surpreendente exibição com a capa
feita por engraxates que sonham em ser toureiros e de dias longos com um
ar fresco de outono, de poeira, couro e cavalos limpos, e de touros grandes
que, a uma distância razoável, parecem enormes no meio do campo,
calmos, confiantes e pesados, e senhores da paisagem.
Touros bravos são criados nas províncias de Navarra, Burgos, Palência,
Logroño, Zaragoza, Valladolid, Zamora, Segóvia, Salamanca, Madri,
Toledo, Albacete, Estremadura e Andaluzia, mas as principais são
Andaluzia, Castela e Salamanca. Os maiores e melhores touros vêm da
Andaluzia e de Castela, e aqueles que são feitos sob medida para os
toureiros vêm de Salamanca. Navarra ainda cria muitos touros, mas de
espécie, tipo e bravura que se deterioraram bastante nos últimos vinte
anos.
Todos os touros bravos podem ser a grosso modo divididos em duas
categorias: aqueles que são concebidos, criados e cultivados para toureiros,
e aqueles que são criados para agradar seus criadores. Salamanca ocupa
um desses extremos e Andaluzia ocupa o outro.
Mas, você diz, tem muito pouco diálogo neste livro. Por que isso? Num
livro escrito por este cidadão, nós queremos que as pessoas conversem;
essa é a única coisa que ele sabe fazer e que agora se recusa a fazer. O
sujeito não é nenhum filósofo, nenhum sábio, não entende de animais,
bebe demais e não usa pontuação direito, e agora largou mão de escrever
diálogos. Alguém tem de dar um jeito nele. Ele só fala de touros. Meu
caro, talvez você tenha razão. Vamos providenciar um pouquinho de
diálogo.
O que a senhora gostaria de perguntar? Existe mais alguma coisa que
queira saber sobre os touros?
Sim, senhor.
O que a senhora gostaria de saber? Eu responderei a todas as suas
perguntas.
É uma coisa difícil de perguntar, senhor.
Não se preocupe com isso; pode ser sincera comigo; como a senhora
seria com um médico, ou com outra mulher. Não tenha receio de
perguntar o que a senhora realmente gostaria de saber.
Eu gostaria de saber sobre a vida amorosa deles.
Pois a senhora veio ao lugar certo.
Então me conte.
Minha senhora, eu vou contar. É um bom assunto. Tem uma
combinação de apelo popular, um pouco de sexo, um mundo de
informações úteis e é um tema ótimo para uma conversa. Minha senhora,
a vida amorosa deles é formidável.
Eu já imaginava, mas o senhor poderia fornecer alguns números?
É para já. Os bezerrinhos nascem nos meses de inverno.
Não era dos bezerrinhos que eu estava falando.
Mas a senhora precisa ter paciência. Tudo isso tem a ver com os
bezerrinhos e, por isso, preciso começar falando deles. Os bezerrinhos
nascem nos três meses de inverno e, usando os dedos para contar os nove
meses no sentido inverso, como alguém casado que calculou nove meses
nos dedos várias vezes, você descobre que, se os bezerros nascem em
dezembro, janeiro e fevereiro, os touros foram levados até as vacas nos
meses de abril, maio e junho, que é, de fato, quando eles costumam ser
levados. Uma boa fazenda tem algo entre duzentas e quatrocentas vacas e
quatro touros reprodutores. Esses touros têm entre três e cinco anos de
idade ou mais. Quando um touro é deixado pela primeira vez com as
vacas, ninguém sabe muito bem como ele vai agir, mas se houvesse um
agente de apostas presente, ele diria que são grandes as chances de o touro
se animar com suas companhias. Mas às vezes um touro não dá a mínima
para as vacas, nem as vacas para o touro, e eles brigam selvagemente
trocando chifradas que podem ser ouvidas a quilômetros de distância. Às
vezes, um touro nessa situação pode mudar de atitude em relação a uma
das vacas, mas é raro. Ou o touro percorre o pasto em silêncio em meio às
vacas para depois trocá-las pela companhia de outros touros que,
destinados para a arena, jamais são deixados com as vacas. Porém, o
resultado mais comum é aquele com as maiores chances descrito pelo
agente de apostas, e um touro consegue reproduzir com mais de
cinquenta vacas, mas se houver vacas demais, eventualmente ele fica fraco
e acaba impotente. Eram esses detalhes que a senhora queria saber ou
estou sendo muito ousado?
Não é o que parece. O senhor lista os fatos com uma sinceridade cristã, e
é tudo muito esclarecedor.
Para mim, é uma satisfação, mas me deixe falar sobre um acontecimento
curioso. O touro é um animal poligâmico, mas às vezes surge um que se
revela monogâmico. Há casos em que as atenções de um touro se
concentram numa das cinquenta vacas que estão no pasto, de tal forma
que ele não dá a mínima para as outras vacas e fica só com a sua, e não há
nada que faça a vaca sair de perto dele. Quando isso acontece, eles tiram a
vaca do meio do rebanho, e, se mesmo assim o touro não assume sua
poligamia, ele é enviado para o grupo de touros de arena.
Que história mais triste essa que o senhor contou.
Minha senhora, todas as histórias, se continuarem por tempo suficiente,
terminam em morte, e nenhum contador de histórias que seja bom no que
faz vai esconder isso da senhora. Isso é particularmente verdade nas
histórias de monogamia, pois o homem que é monogâmico, apesar de
viver uma vida feliz na maior parte do tempo, morre da maneira mais
solitária que existe. Não existe um homem que seja mais solitário na
morte, a não ser o suicida, do que o homem que viveu muitos anos ao
lado de uma boa esposa e depois ficou viúvo dela. Se duas pessoas se
amam, o fim nunca será feliz.
Não sei o que o senhor quer dizer com amor. Da maneira como o
senhor fala, não parece algo bom.
Minha senhora, essa é uma palavra antiga e cada um que faz uso dela
acaba usando até ela não significar mais nada. É uma palavra tão cheia de
sentido quanto uma bexiga é cheia de ar, e as duas se esvaziam rápido. Ela
pode ser perfurada como uma bexiga é perfurada, remendada e enchida
mais uma vez, e se a pessoa nunca experimentou o amor, a palavra não
existe para ela. Todas as pessoas falam dele, mas aquelas que
experimentaram o amor ficam marcadas por ele e eu não gostaria de
continuar falando disso porque amor é o tema de conversa mais ridículo
que existe e somente os tolos ficam falando dele. Prefiro pegar varíola a
me apaixonar por outra mulher enquanto tenho uma mulher que amo.
O que isso tem a ver com os touros?
Nada, minha senhora, nada mesmo, estou só fazendo valer o seu
dinheiro.
Acho o assunto interessante. De que forma uma pessoa fica marcada por
essa coisa ou foi só uma maneira de dizer?
Todos aqueles que experimentam o amor, depois que ele acaba, ficam
marcados por uma sensação de finitude. Digo isso como um naturalista e
não como um romântico.
Isso não me parece agradável.
E não é para ser, minha senhora. É só para fazer valer o seu dinheiro.
Mas, com frequência, o senhor é muito agradável.
Minha senhora, com um pouco de sorte, posso ser agradável mais vezes.
12
O ideal para o toureiro, o que ele sempre espera que saia do toril e entre
na arena, é um touro que ataque numa linha reta perfeita e que faça a
volta sozinho ao fim de cada investida e ataque de novo numa linha reta
perfeita; um touro que ataque em linha reta como se ele estivesse andando
sobre trilhos. Ele espera sempre por esse touro, mas um animal assim
surge uma vez a cada trinta ou quarenta. Os toureiros chamam esses
touros de vaivém, de ida e volta, ou cariles, ou touros sobre trilhos, e
aqueles toureiros que nunca aprenderam a dominar um touro difícil e que
não sabem corrigir os defeitos do animal simplesmente se defendem na
maioria dos casos e esperam pelos touros que atacam em linha reta para
tentar qualquer coisa mais ousada. Esses toureiros são aqueles que nunca
aprenderam a lutar contra touros, que encurtaram o período de
aprendizado porque foram promovidos a matadores depois de uma tarde
extraordinária em Madri, ou de uma série nas províncias, com touros que
atacavam a favor deles. Esses toureiros conhecem a arte, têm
personalidade, quando não a perdem por causa do medo, mas não
dominam o métier e, como a coragem depende da confiança, eles ficam
assustados com frequência simplesmente porque não conhecem sua
profissão direito. Eles não são covardes por natureza, ou jamais teriam se
tornado toureiros, mas eles se tornam covardes por ter de enfrentar touros
difíceis sem ter o conhecimento, a experiência e o treinamento necessários
para lutar com eles, e uma vez que, de cada dez touros que enfrentam, não
chega a ter um que eles considerem ideal para lutar, na maioria das vezes
que aparecem na arena, o trabalho deles será monótono, defensivo,
ignorante, covarde e insatisfatório. Se aparecer um animal que seja como
eles querem, você vai achar esses toureiros maravilhosos, excelentes,
corajosos, criativos e, às vezes, quase inacreditáveis na proximidade e na
tranquilidade com que enfrentam o touro. Mas se, dia após dia, eles
parecerem incapazes de ter um desempenho competente com qualquer
touro que ofereça alguma dificuldade, você vai sentir falta dos bons e
velhos tempos em que havia toureiros diligentemente treinados e desejar
que os artistas e os fenômenos se explodam.
O maior problema da técnica moderna das touradas é ser perfeita
demais. Ela é desempenhada tão próximo do touro, muito lentamente e
completamente sem defesa ou movimento por parte do matador que só
pode ser executada com um touro feito sob medida. Sendo assim, para que
possa ser desempenhada com regularidade e consistência, existem apenas
duas maneiras possíveis. Primeiro, ela pode ser desempenhada por grandes
gênios como Joselito e Belmonte, que conseguem dominar os touros com
técnica, usam seus reflexos excepcionais para se defender e aplicar seus
talentos sempre que possível, ou ela só pode ser desempenhada com o
toureiro à espera do touro perfeito ou com acesso a touros feitos sob
medida. Os toureiros modernos, com exceção de talvez três, ou aguardam
pelo touro perfeito ou fazem o melhor que podem, recusando raças
difíceis ou pedindo touros sob medida.
Lembro de uma corrida de touros da raça Villar em Pamplona, em 1923.
Eles eram touros ideais, os mais corajosos que já vi, rápidos, ferozes, mas
atacavam o tempo todo; eles nunca ficavam na defensiva. Eles eram
grandes, mas não a ponto de serem pesados demais, e eles tinham belos
chifres. A fazenda Villar criava touros esplêndidos, mas os toureiros não
queriam saber deles. Os touros eram um pouquinho esplêndidos demais.
A linhagem foi vendida para outro homem, que se deu o trabalho de
diminuir essas qualidades o suficiente para que os toureiros tivessem
interesse neles. Vi o primeiro resultado disso em 1927. Os touros tinham a
aparência da raça Villar, mas eram menores, tinham chifres mais curtos e
ainda eram bem corajosos. Um ano depois, eles ficaram ainda menores,
com chifres mais curtos e não tão corajosos. No ano passado, eles estavam
um pouquinho menores, com os chifres iguais e sem nenhuma coragem.
Uma esplêndida linhagem original de touros bravos foi arruinada e
liquidada ao se cultivar defeitos, ou fraquezas, para tornar a raça popular
entre os toureiros, a fim de rivalizar com os touros feitos sob medida de
Salamanca.
Depois de frequentar as touradas por um tempo, quando você entende o
potencial delas, e quando elas enfim passam a ter algum valor para você, é
quando se torna necessário assumir uma posição em relação às touradas.
Ou você defende os touros de verdade, a tourada como um todo, e torce
para que surjam bons toureiros que saibam lutar, como por exemplo
Marcial Lalanda, ou torce para que surja um grande toureiro capaz de
quebrar as regras como Belmonte, ou então você aceita as condições
atuais da fiesta, conhece os toureiros e entende o ponto de vista deles; na
vida, há sempre boas desculpas, que são válidas, para cada fracasso; e você
se coloca no lugar do toureiro, tolera os absurdos que eles cometeram
com certos touros, e espera até que eles tenham o touro feito sob medida.
Uma vez que faça isso, você se torna tão culpado quanto qualquer outra
pessoa que vive para destruir as touradas, e você tem mais culpa porque
está financiando essa destruição. Certo, mas o que você pode fazer? Largar
mão das touradas? Você pode, mas corre o risco de machucar o nariz ao
empiná-lo desse jeito. Desde que você tenha algum prazer com a fiesta,
você tem o direito de ir às touradas. Você pode protestar, pode falar, pode
convencer os outros de como eles são idiotas, mas essas coisas são todas
um tanto inúteis de se fazer, embora protestos sejam necessários e úteis na
arena. Mas existe uma coisa que você pode fazer e é saber diferenciar o
que é ruim e o que é bom, dar valor ao que é novo, mas não deixar nada
confundir os seus padrões. Você pode continuar indo às touradas mesmo
quando elas são ruins; mas nunca aplauda o que não é bom. Você deve,
como espectador, mostrar que valoriza o trabalho bom e valioso que é
fundamental para as touradas, mas que não é brilhante. Você deve
valorizar o trabalho bem-feito e o sacrifício correto de um touro que é
impossível de explorar com brilhantismo. Um toureiro não vai ser melhor
do que o seu público por muito tempo. Se o público prefere ver truques
em vez de uma apresentação de verdade, ele vai ver truques. Se surgir um
bom toureiro de verdade, que se mantenha honesto e sincero, que não
recorra a artimanhas ou mistificações, é preciso haver um número
significativo de espectadores que valorize o que ele faz. Se isso soa como
um evento de Devoção Cristã, me deixe dizer que acredito piamente no
arremesso de coisas como almofadas de pesos variados, pedaços de pão,
laranjas, vegetais, pequenos animais mortos de todo tipo incluindo peixes
e, se for preciso, garrafas, desde que não sejam arremessadas contra a
cabeça dos toureiros, e sou a favor de um incêndio ocasional na arena, caso
não se obtenha nenhum efeito com um protesto correto e decente.
Um dos principais males das touradas na Espanha não é o veneno de
críticos que conseguem fazer a fama de um toureiro, ao menos
temporariamente, nos jornais diários de Madri, mas sim o fato de o ponto
de vista desses críticos ser o mesmo do matador, porque eles vivem
basicamente do dinheiro que recebem dos matadores. Em Madri eles não
conseguem distorcer tanto um relato favorecendo o trabalho de um
homem na arena como eles fazem quando mandam despachos de Madri
para as províncias ou quando editam o relato de um correspondente que
está na província, porque o público que lê o relato da luta de Madri, ao
menos uma parte significativa dele, também viu a luta. Mesmo com toda a
sua influência, com todas as suas interpretações, com todas as suas críticas
aos touros e aos toureiros, eles são influenciados pelo ponto de vista do
matador; o matador que mandou o responsável pelas espadas entregar um
envelope contendo cem ou duzentas pesetas, ou mais, e um cartão. O
responsável pelas espadas entrega esses envelopes para os críticos de cada
um dos jornais de Madri e o valor varia de acordo com a importância que
tem o jornal e o crítico. Mesmo os mais honestos e os melhores críticos
recebem um envelope, e não se espera deles que transformem os desastres
de um matador em triunfos, ou que distorçam os relatos a favor dos
toureiros. É apenas um agrado que os matadores fazem a eles. Lembre
que este é um país de honra. Porém, como uma boa parte do seu sustento
vem dos matadores, no fundo, os críticos adotam o ponto de vista deles. É
também uma perspectiva fácil de adotar e ela é também suficiente, pois é o
matador que arrisca a vida, e não o espectador. Mas o espectador precisa
impor as regras, respeitar as referências, evitar abusos e pagar pelas lutas
para que a tourada profissional e os matadores possam existir.
O touro é o que determina se uma fiesta será boa ou ruim. Se o público,
na figura do espectador que paga para ver a tourada, exige bons touros,
touros grandes para tornar a luta uma luta séria, touros entre quatro e
cinco anos de idade para que sejam grandes e fortes o suficiente para
suportar as três fases da luta; não necessariamente touros enormes, touros
gordos ou touros com chifres gigantes, mas animais bons e adultos; assim
os criadores terão de manter os animais no pasto pelo tempo apropriado
antes de vendê-los, e os toureiros terão de aceitar os touros como eles são
e aprender a lutar contra eles. Algumas lutas podem ser bem ruins de ver
no período em que toureiros despreparados estiverem sendo eliminados à
medida que falharem com esses animais, mas, no fim, será pelo bem da
fiesta. O touro é o principal elemento da fiesta e são os touros que os
toureiros muito bem pagos estão sempre tentando sabotar, exigindo
touros menores, mais jovens e com chifres mais curtos. Apenas os
melhores toureiros conseguem impor suas condições. Os toureiros
malsucedidos e os aprendizes precisam aceitar os touros grandes que as
estrelas recusam. É isso que explica o aumento constante no número de
mortos entre os matadores. E quem morre mais são os de talento
medíocre, os iniciantes e os que fracassaram como artistas. Eles são
mortos porque eles tentam, e o público exige que eles tentem, lutar contra
os touros usando as técnicas que os astros das touradas usam. Mas eles são
forçados a executar essas técnicas, se quiserem se sustentar com a tourada,
nos touros recusados pelos astros, ou com os que nunca são oferecidos
para eles porque quase com certeza seriam recusados por serem muito
perigosos e por inviabilizarem uma apresentação brilhante. Isso explica as
chifradas constantes e o desaparecimento de muitos novilleros
promissores, algo que no fim vai produzir toureiros ótimos, se o período
de aprendizado tiver a duração apropriada e se o aprendiz tiver um bom
dinheiro. Um jovem toureiro que tenha aprendido a lutar com animais
jovens e que tenha sido cuidadosamente protegido e só tenha lutado com
touros jovens em toda a sua carreira vai se dar muito mal com touros
grandes. É a mesma diferença entre atirar num alvo e atirar num jogo que
envolva perigo ou num inimigo que também está atirando em você. Mas
um aprendiz que tenha aprendido a lutar contra animais jovens, que tenha
desenvolvido um estilo bom e próprio, e que depois disso aperfeiçoe sua
técnica e aprenda a lutar com touros passando pelo inferno que é enfrentar
os animais enormes, rejeitados, às vezes defeituosos, e extremamente
perigosos que fazem parte das novilladas, isso quando ele não é protegido
por um desses empresários da arena de Madri, vai ter a educação perfeita
para um toureiro se o seu entusiasmo e a sua coragem não forem
arrancados a chifradas.
Manuel Mejías, conhecido como Bienvenida, um toureiro das antigas
que treinou os três filhos usando animais jovens, fazendo deles toureiros
em miniatura, habilidosos e completos; como crianças extraordinárias
trabalhando apenas com bezerros, os dois garotos mais velhos lotavam as
praças de touros da Cidade do México, do sul da França e da América do
Sul, durante o tempo em que foram proibidos de lutar na Espanha por
uma lei que regra as performances de crianças; ele lançou o filho mais
velho, Manolo, como um matador profissional aos dezesseis anos; ele foi
de uma criança que lutava contra animais de dois anos para um matador
profissional, pulando a etapa infernal de ser um novillero. O pai acreditava,
e com razão, que se o filho se apresentasse como matador, não teria de
encarar os touros grandes e perigosos que enfrentaria como novillero; que
ele faria mais dinheiro como um matador profissional, e que se fosse para
ele perder a paixão e a coragem trabalhando com touros adultos, o melhor
seria lidar com isso sendo muito bem pago.
No primeiro ano, o garoto foi um fiasco. A transição entre touros jovens
e touros adultos; a diferença na velocidade do ataque; a responsabilidade;
em resumo, o perigo constante de morte acabou com seu estilo e com sua
elegância de menino. Ele deixava claro que estava resolvendo problemas e
que estava impressionado demais com a responsabilidade que tinha para
fazer uma boa apresentação com os touros. Mas, no segundo ano,
amparado por uma boa educação técnica em touradas, um treinamento
que começou quando tinha quatro anos de idade, um conhecimento
integral de como executar todas as suertes de uma tourada, ele solucionou
o problema dos touros adultos e triunfou em Madri em três eventos
sucessivos, triunfou nas províncias sempre que passava por elas, com
touros de todas as raças, tamanhos e idades. Ele não demonstrava medo
algum dos touros por causa do tamanho do animal, ele sabia como
corrigir os defeitos de um touro e como dominá-los e ele enfrentava os
maiores touros, executava o trabalho com maestria, coisa que os astros
decadentes das touradas só eram capazes de fazer, ou de tentar fazer, com
touros que fossem menores e tivessem menos força, menos idade e chifres
menores. Havia uma coisa que ele não tentava, matar do jeito certo: mas
ele fazia todo o restante direito. Ele foi o badalado messias de 1930, mas
falta uma coisa para que ele possa ser julgado como toureiro: seu primeiro
ferimento grave causado pelos chifres de um touro. Todos os matadores
são chifrados violenta e dolorosamente, quase fatalmente, mais cedo ou
mais tarde em suas carreiras, e até que um matador sofra seu primeiro
ferimento grave, não é possível dizer qual será sua relevância para a
posteridade. Porque mesmo que ele permaneça corajoso, é preciso ver
como os seus reflexos serão afetados. Um homem pode ser tão corajoso
como um touro para enfrentar qualquer perigo e, ainda assim, por causa
do nervosismo, ser incapaz de enfrentar o perigo com frieza. Quando um
toureiro não consegue manter a calma e afastar o perigo assim que a luta
começa, ele se torna incapaz de encarar o touro com calma e passa a
controlar o nervosismo, então esse toureiro chegou ao fim. É triste de ver
um toureiro controlando o nervosismo. O público não quer isso. Ele paga
para ver a tragédia do touro, não a do homem. Joselito sofreu apenas três
chifradas graves e matou mil e quinhentos e cinquenta e sete touros, mas
na quarta vez que foi chifrado, ele foi morto. Belmonte sofria ferimentos
várias vezes ao longo de uma temporada e nenhum desses ferimentos
alterava sua coragem, sua paixão pelas touradas, nem seus reflexos. Espero
que o jovem Bienvenida nunca seja chifrado, mas se ele tiver sido depois da
publicação deste livro e não se importar com o ferimento, então será hora
de falar sobre o legado de Joselito. Pessoalmente, acredito que ele jamais
será o herdeiro de Joselito. Ele tem um estilo bem acabado e uma
facilidade para executar tudo menos o sacrifício, ainda assim, ao vê-lo em
ação, fico com a impressão de estar num teatro. Muito do que ele faz tem
a ver com artifícios, mas são os artifícios mais sutis que existem e são bem
agradáveis de se ver; eles deixam tudo mais leve e divertido. Mas fico
receoso de que o primeiro ferimento grande acabe com a leveza e deixe os
artifícios mais visíveis. Bienvenida, o pai, ficou tão abatido quanto Niño de
la Palma depois de sofrer seu primeiro ferimento, mas na criação de
toureiros talvez a lógica seja a mesma dos touros e a coragem venha da
mãe, enquanto a classe venha do pai. É bem antipático prever uma futura
perda de coragem, mas na última vez que vi o badalado Bienvenida, seu
sorriso estava muito forçado, e tudo que posso dizer agora é que não
acredito nesse messias em particular.
Em 1930, Manolo Bienvenida era o redentor das touradas, mas surgiu
outro em 1931: Domingo Lopez Ortega. Os críticos de Barcelona, que foi
onde se gastou mais dinheiro com seu lançamento, escreveram que Ortega
começava onde Belmonte havia parado; que ele era o melhor de Belmonte
e de Joselito juntos, e que nunca houve ninguém como Ortega em toda a
história das touradas, nenhum homem que tivesse as qualidades de artista,
dominador e assassino. Ortega não impressiona tanto quanto os seus
elogios. Ele tem trinta e dois anos e já se apresenta nos vilarejos de
Castela, sobretudo naqueles próximos de Toledo, faz tempo. Ele vem de
uma cidadezinha com menos de quinhentos habitantes, que fica na região
seca entre Toledo e Aranjuez, chamada Borox, e seu apelido era o Caipira
de Borox. No outono de 1930, ele teve um bom desempenho numa arena
de quinta categoria em Madri, chamada Tetuan de las Vitorias, que tinha
Domingo Gonzales como diretor e promotor, mais conhecido como
Dominguin, um ex-matador. Dominguin levou Ortega para Barcelona e
alugou a arena da cidade depois do fim da temporada para realizar uma
luta com Ortega e um toureiro mexicano chamado Carnicerito de Mexico.
Combatendo touros jovens, ambos tiveram dias bons e lotaram a arena de
Barcelona três vezes sucessivas. Com uma fama habilidosamente
construída por Dominguin durante os meses de inverno, lançando mão de
elaboradas campanhas de imprensa e burburinhos, Ortega estreou em
Barcelona como matador profissional na abertura da temporada de 1931.
Cheguei à Espanha pouco depois da revolução e descobri que, nas mesas
de cafés, ele era tão comentado como os temas políticos. Ele ainda não
tinha lutado em Madri, mas todas as noites os jornais madrilenhos
publicavam notícias sobre seus triunfos nas províncias. Dominguin estava
gastando muito dinheiro em publicidade e Ortega estava cortando orelhas
e rabos em todos os jornais vespertinos. O mais perto que ele chegou de
lutar em Madri foi em Toledo, e encontrei bons aficionados que viram o
desempenho dele e não concordaram com o
que foi publicado a respeito. Todos concordavam que havia certos detalhes
que eram bem exacutados, mas os aficionados mais inteligentes diziam
que não estavam convencidos de seu talento. No dia 30 de maio, eu e
Sidney Franklin, que tinha acabado de chegar a Madri depois de uma
campanha mexicana, fomos para Aranjuez ver o grande fenômeno. Ele foi
péssimo. Marcial Lalanda fez ele de bobo, assim como Vicente Barrera.
Naquele dia, Ortega demonstrou frieza e habilidade para manusear a
capa bem e devagar, sem erguê-la muito, com o touro se mantendo
imponente. Ele mostrou habilidade para alterar a trajetória natural do
touro e fazer o animal se dobrar com um passe de duas mãos com a
muleta que foi muito eficiente como castigo e ele fez um bom passe
usando apenas a mão direita. Usando a espada, ele matou rápido e foi
esperto ao preparar o sacrifício com grande estilo, para depois romper
com a atitude arrogante do preparo e matar sem floreios. De resto, ele era
ignorante, esquisito, desajeitado, não sabia usar a mão esquerda, era
presunçoso e vaidoso. Era muito óbvio que ele tinha lido e acreditado em
tudo que escreveram sobre ele nos jornais.
No que diz respeito à aparência, tinha um físico bom, maduro, mas com
juntas grossas, e parecia feliz consigo mesmo, como se fosse um ator
famoso. Sidney, que sabia ser capaz de fazer uma tourada muito melhor,
reclamou muito de Ortega na volta para casa. Eu queria julgá-lo de
maneira imparcial, sabendo que não se pode avaliar um toureiro a partir
de uma única performance, então prestei atenção nas qualidades e nos
defeitos que ele tinha e mantive minha cabeça aberta.
À noite, quando chegamos ao hotel, os jornais falavam sobre mais um
triunfo de Ortega. Na verdade, fomos vaiados e zombados na última
tourada, mas lemos no Heraldo de Madrid que ele tinha cortado as orelhas
do touro depois de um grande triunfo e saiu da arena carregado nos
ombros da multidão.
Depois, eu o vi em Madri numa apresentação oficial como matador
profissional. Seu desempenho foi idêntico ao de Aranjuez, fora o dom de
matar rápido, que ele tinha perdido. Ele lutou outras duas vezes em Madri
sem mostrar nada que justificasse a propaganda que recebia e, além disso,
ele começou a ter episódios de covardia. Em Pamplona, ele se apresentou
tão mal que chegou a ser revoltante. Ele estava recebendo vinte e três mil
pesetas por luta e tudo o que fazia era absolutamente ignorante, de baixo
nível e vulgar.
Juanito Quintana, um dos maiores aficionados do norte da Espanha,
escreveu para mim enquanto eu estava em Madri falando sobre Ortega,
contando que todos estavam felizes de ter conseguido levá-lo para
Pamplona e sobre o preço que o empresário dele estava cobrando por isso.
Ele estava muito ansioso para vê-lo, e meu relato sobre os desempenhos
tristes do toureiro em Madri e nos arredores pareceu deprimi-lo apenas
por um momento. Depois da primeira vez, ele ficou decepcionado; mas
depois de três vezes, Juanito não aguentava mais ouvir falar de Ortega.
No verão, vi Ortega várias vezes e ele foi bom em apenas uma delas,
mesmo para os seus padrões. Isso aconteceu em Toledo com touros
escolhidos a dedo, que eram tão pequenos e inofensivos que não dava para
levar em conta nada do que ele fazia. Mesmo quando ele se sai bem, ele
não consegue se movimentar direito e lhe falta tranquilidade. O melhor
passe que ele consegue fazer é com duas mãos, usado para encurtar a
trajetória do touro e fazê-lo dobrar o corpo, mas como esse é o melhor
passe que ele faz, é só o que ele faz todas as vezes com todos os touros que
enfrenta, independente de se o touro precisa ser castigado dessa forma ou
não, e consequentemente estraga o animal até o fim da tourada. Ele faz
muito bem um passe com a muleta usando a mão direita, inclinando o
corpo na direção do touro, mas ele não dá continuidade com outros passes
e é incapaz de fazer passes eficazes com a mão esquerda. Ele é muito bom
girando entre os chifres do touro, uma manobra ridícula, e abusa das
vulgaridades que substituem as manobras perigosas da tourada sempre
que nota que o público é ignorante a ponto de aceitá-las. Ele tem muita
coragem, força e saúde, e amigos em quem confio me dizem que ele foi
bom de verdade em Valência, e se ele fosse mais jovem e menos
convencido, sem dúvida se tornaria um matador excelente, bastava
aprender a usar a mão esquerda; ele pode, assim como Robert
Fitzsimmons, romper com todos os padrões de idade e ainda ser um
toureiro, mas ele não tem nada de messias. Eu não queria dedicar tanto
espaço assim para ele, mas como Ortega teve milhares de colunas de
publicidade paga nos jornais, algumas delas muito habilidosas, sei que se
estivesse fora da Espanha e acompanhando as touradas apenas pelos
jornais, ele provavelmente pareceria ser mais importante do que é.
Um toureiro herdou as qualidades de Joselito e perdeu tudo por causa de
uma doença venérea. Outro morreu da outra doença ocupacional
relacionada às touradas, e um terceiro se revelou um covarde no primeiro
ferimento causado por uma chifrada a testar sua coragem. Dos dois novos
messias, Ortega não me convence, nem Bienvenida, mas desejo toda a
sorte para Bienvenida. Ele é um garoto bem treinado, simpático e sem
vaidade, e está enfrentando uma fase ruim.
Senhorinha: O senhor sempre deseja sorte para as pessoas e fala sobre os
erros que elas cometeram, e me parece que suas críticas são muito
maldosas. Meu jovem, como é que o senhor, apesar de não ser um
toureiro, fala tanto de touradas e escreve longamente sobre elas? Por que
não assumiu essa profissão se o senhor gosta tanto dela e a conhece tão
bem?
Minha senhora, experimentei as fases mais simples da tourada, mas não
tive o menor sucesso. Eu era velho demais, pesado demais e desajeitado
demais. Além disso, meu tipo físico não é adequado porque sou pesado em
vez de ser flexível e, dentro da arena, eu não seria nada mais do que um
alvo ou do que um saco de pancadas para o touro.
Senhorinha: O senhor chegou a se machucar? Como é que o senhor ainda
está vivo?
Minha senhora, a ponta dos chifres estava protegida ou cega, caso
contrário eu teria sido rasgado como um cesto de palha.
Senhorinha: Então o senhor lutou contra touros com chifres protegidos.
Achei que o senhor era melhor do que isso.
Dizer que lutei é um exagero, minha senhora. Não cheguei a lutar, fui
mais arremessado por eles de um lado para o outro.
Senhorinha: O senhor teve alguma experiência com touros de chifres
desprotegidos? Chegou a se machucar com eles?
Entrei na arena com touros assim e não me machuquei muito, só saí
com algumas escoriações por causa da minha falta de jeito. Eu era atingido
pelo focinho do touro e agarrava nos chifres igual àquelas imagens que
remetem à Idade da Pedra, e com o mesmo desespero. Isso fez os
espectadores rirem muito.
Senhorinha: E o que o touro fez nessa situação?
Fosse ele forte o suficiente, ele me arremessava longe. Senão, eu era
arrastado por um trecho, com o touro tentando me chifrar o tempo todo,
até que os outros amadores agarravam o rabo dele.
Senhorinha: Houve testemunhas dessas histórias que o senhor está
contando? Ou é tudo invenção de escritor?
Existem milhares de testemunhas, embora muitas possam ter morrido
desde então com lacerações no diafragma ou em outras partes internas do
corpo, causadas por um excesso de gargalhadas.
Senhorinha: Foi por causa disso que o senhor desistiu de seguir a profissão
de toureiro?
Tomei minha decisão depois de considerar a minha incompetência física,
o conselho bem-vindo de amigos e o fato de que se tornou cada vez mais
difícil, à medida que fiquei mais velho, entrar feliz na arena, a não ser
quando tomava três ou quatro doses de absinto, que, apesar de inflamar
minha coragem, distorcia um pouco os meus reflexos.
Senhorinha: Então posso considerar que o senhor abandonou as praças de
touros também como amador?
Minha senhora, nenhuma decisão é irrevogável, mas à medida que
envelheço, sinto que devo me dedicar mais e mais à literatura. Minhas
fontes me dizem que, graças ao bom trabalho de Mr. William Faulkner,
agora os editores publicam qualquer coisa em vez de insistir para você
eliminar as partes boas do seu trabalho, e não vejo a hora de escrever sobre
os dias da minha juventude que passei nos melhores prostíbulos do país
em meio às pessoas mais geniais que conheci. Estou guardando essas
lembranças para escrever sobre elas na minha velhice, quando terei
condições de examiná-las de maneira mais clara, com a ajuda da distância.
Senhorinha: Esse Mr. Faulkner falou bem desses lugares?
Esplendidamente, minha senhora. Mr. Faulkner escreve sobre eles com
admiração. Dos escritores que li nos últimos anos, ele é o que melhor
escreve sobre eles.
Senhorinha: Preciso comprar os livros dele.
Minha senhora, com Faulkner, não tem erro. Além disso, ele é prolífico.
A senhora compra os livros que existem e os novos não param de sair.
Senhorinha: Se eles forem bons como o senhor diz, nunca serão demais.
A senhora tirou as palavras da minha boca.
15
Para quem está vendo uma fiesta pela primeira vez, nada chama mais
atenção do que a parte com as banderillas. O olhar de uma pessoa que não
está acostumada com as touradas não consegue acompanhar o trabalho
com a capa; há o choque de ver o cavalo ser atingido pelo touro e não
importa o efeito que isso tenha sobre o espectador, ele vai ficar olhando
para o cavalo e perder o quite feito pelo matador. O trabalho com a muleta
é um pouco confuso; o espectador não sabe quais passes são difíceis de
fazer e, como tudo é novo, seu olhar não consegue distinguir um
movimento do outro. Ele vê a muleta como algo pitoresco e o sacrifício
pode ser tão repentino que, a menos que o espectador tenha um olhar
treinado, ele não vai conseguir distinguir uma coisa da outra e ver o que
acontece de verdade. E também, quase sempre, o sacrifício é tão sem estilo
e sem honra, com o matador fazendo o menor esforço possível a fim de
diminuir a importância do momento, que o espectador não faz ideia da
emoção e do espetáculo que é um touro sacrificado da maneira correta.
Mas a parte das banderillas ele consegue ver nitidamente, ele acompanha
todos os detalhes com facilidade e quase invariavelmente, quando o
trabalho é bem-feito, ele gosta.
Na parte das banderillas, o espectador vê um homem carregando dois
bastões finos com a ponta farpada; é o primeiro homem que vai na direção
do touro sem uma capa nas mãos. O homem atrai a atenção do touro —
estou descrevendo a maneira mais simples de fincar banderillas —, corre
na direção do touro ao mesmo tempo que o animal ataca e, quando
homem e touro ficam próximos, e o touro baixa a cabeça para chifrar, o
homem junta os pés, ergue os braços bem alto e crava os bastões no
pescoço do touro.
É mais ou menos isso que o espectador consegue ver.
“Por que o touro não consegue acertá-lo?”, pode perguntar alguém que
está vendo sua primeira tourada, ou mesmo depois de ver várias touradas.
A resposta é que o touro não consegue se virar num espaço menor do que
o próprio corpo. Sendo assim, quando o touro ataca, uma vez que o
homem desvie dos chifres, o homem estará seguro. Ele pode desviar dos
chifres adotando uma rota que faça um ângulo com a rota do touro,
determinando o momento do embate quando junta os pés e o touro baixa
a cabeça, fincando os bastões e girando o corpo para desviar dos chifres.
Essa manobra é chamada de poder a poder, ou de força a força. O homem
começa numa posição de modo que possa fazer um quarto de círculo ao
desviar do ataque do touro, fincando os bastões al cuarteo, o modo mais
comum, ou ele pode ficar parado e esperar que o touro ataque, a melhor
maneira de cravar, e quando o touro está prestes a atingir o homem e
começa a baixar a cabeça para chifrar, o homem ergue o pé direito e
inclina o corpo para a esquerda, fazendo o touro seguir seu movimento, e
depois retoma a posição, baixando o pé direito e cravando os bastões. Esse
movimento é chamado de fincar as banderillas al cambio. Ele pode ser
executado tanto para a direita quanto para a esquerda. Da maneira como
descrevi, o touro passaria pela esquerda.
Existe uma variação desse movimento chamada de al quiebro, na qual o
homem, em vez de levantar qualquer um dos pés enganando o touro com
o movimento do corpo, deixa os pés imóveis; mas nunca vi alguém fazer
esse movimento. Vi muitas banderillas serem cravadas da forma que os
críticos chamam de al quiebro, mas nunca vi um homem fazer isso sem
levantar um dos pés.
Em todas essas formas de cravar as banderillas, existem dois homens
munidos de capa em partes diferentes da arena, em geral é um matador no
centro e outro, um matador ou banderillero, atrás do touro para que,
quando o homem que cravou as banderillas e escapou dos chifres do
touro, usando a técnica de sua escolha, o touro, quando se vire para
persegui-lo, veja uma capa antes de fazer a volta e perseguir o homem.
Existe um lugar específico na arena onde dois ou três homens com capas
se ocupam em todas as técnicas de se cravar as banderillas. As formas que
descrevi, o cuarteo ou quarto de círculo, da força a força e suas variações,
em ambos os casos tanto o homem quanto o touro estão correndo, e o
cambio e suas variações, em que o homem fica parado e espera pela
investida do touro, são as maneiras mais comuns de cravar as banderillas,
em que o homem procura desempenhar seu papel com excelência. Elas
são as maneiras mais usadas pelo matador quando ele mesmo assume a
responsabilidade de cravar as banderillas, e o resultado depende da
elegância, da pureza, da escolha e do domínio que o homem demonstra ao
cravar as banderillas corretamente. Elas devem ser cravadas acima dos
ombros, atrás do pescoço do touro, as duas devem ser colocadas ao
mesmo tempo, não muito longe uma da outra, e elas não devem ser
colocadas num lugar que possa atrapalhar o golpe com a espada.
Banderillas não devem nunca ser colocadas nos ferimentos feitos pelos
picadores. Uma banderilla colocada corretamente perfura somente o
couro e o peso do bastão faz com que ela fique pendurada no flanco do
touro. Se a banderilla for fundo, ela fica espetada e inviabiliza
completamente um trabalho brilhante com a muleta, e em vez de um
pequeno furo sem maiores consequências, ela causa um ferimento que
machuca e mexe com o touro, tornando-o imprevisível e difícil de lidar.
Nenhuma manobra na tourada tem o objetivo de causar dor ao touro. Se
houver dor, ela é imprevista e não proposital. O objetivo de todas as
manobras, além de oferecer um espetáculo brilhante, é cansar o touro e
torná-lo mais lento para o sacrifício. Acredito que a parte da tourada que
causa mais dor e sofrimento ao touro, de forma um tanto inútil, é a das
banderillas. No entanto, é a parte da luta que causa menos repugnância a
espectadores norte-americanos e britânicos. Acredito que seja porque é a
parte mais fácil de acompanhar e de entender. Se a tourada inteira fosse
tão fácil de acompanhar, valorizar e entender como é a parte das
banderillas, a atitude de todo mundo fora da Espanha em relação às
touradas seria diferente. Ao longo da minha vida, vi que a reação dos
jornais norte-americanos e das revistas populares mudou muito em
relação às touradas pela forma como ela passou a ser apresentada
exatamente como é, ou passou a ser objeto de tentativas honestas por
parte da ficção; e isso antes de o filho de um policial do Brooklyn se tornar
um matador popular e competente.
Além das três formas que descrevi de se colocar as banderillas, existem
pelo menos outras dez; algumas se tornaram obsoletas, como aquela em
que o homem responsável pelas banderillas provoca o touro com uma
cadeira na mão, para esperar sentado pelo ataque do touro, levantando da
cadeira para atrair o touro para o lado com uma finta, cravando as
banderillas e depois voltando a se sentar na cadeira. Isso quase não existe
mais, assim como várias outras formas de cravar as banderillas que foram
inventadas por certos toureiros e que raramente são bem executadas, a
não ser pelos próprios inventores, e que caíram em desuso.
Num touro que assuma uma querencia perto da barrera, não é possível
cravar banderillas usando o método do quarto de círculo ou de meio
círculo para escapar do ataque do touro, cravando os bastões no momento
em que a trajetória do homem se cruza com a do touro, sendo que após
desviar do chifre do touro, o homem ficaria entre o touro e a barreira, e
em touros assim, as banderillas devem ser cravadas com um golpe
enviesado, ou al sesgo. Nessa manobra, se o touro estiver perto da barrera,
um homem deve se posicionar com uma capa para atrair a atenção do
touro até que o homem com as banderillas faça uma trajetória oblíqua a
partir da barrera, crave as banderillas ao passar diante do touro sem parar,
da melhor maneira que puder. Com frequência, ele tem de saltar a barrera
se o touro vem na sua direção. Existe um homem munido de capa numa
posição mais distante na arena que tenta provocar o touro enquanto ele se
vira, mas como os touros que exigem essa manobra são quase sempre
aqueles mais suscetíveis a perseguir o homem em vez da isca, é comum
que o homem com a capa seja, por comparação, inútil.
Touros que não atacam, ou que, ao atacar, miram no homem, ou
aqueles que não enxergam direito, recebem as banderillas num
movimento chamado de media volta, ou meia-volta. Nesse método, o
banderillero se aproxima do touro por trás, chama a atenção dele e,
enquanto o animal se vira e baixa a cabeça para atacar o homem que está
em movimento, o homem crava as banderillas.
Esse é apenas um método emergencial de cravar as banderillas, pois ele
desrespeita o princípio da tourada segundo o qual o homem deve, ao
executar qualquer manobra com o touro, se aproximar dele pela frente.
Outra forma de cravar as banderillas que ainda existe é a chamada de
relance; que é quando o touro ainda está correndo e cabeceando depois de
ter recebido o primeiro par de banderillas, o homem aproveita essa corrida
do touro, que é diferente de um ataque que tenha sido provocado
deliberadamente, para fazer um movimento de um quarto de círculo ou
de meia-volta para cravar outro par.
É normal que o matador assuma as banderillas quando ele achar que o
touro tem potencial para uma performance brilhante. Em outros tempos,
um matador só assumia as banderillas se o público pedisse. Agora, as
banderillas fazem parte do repertório rotineiro de todos os matadores que
tenham o físico adequado e que tenham aprendido a cravar as banderillas
direito. Apenas na preparação do touro, às vezes atraindo-o ao correr de
costas fazendo zigue-zagues, essas mudanças repentinas de direção sendo a
defesa de um homem a pé contra um touro, dando a impressão de que
está brincando com o animal enquanto o coloca no lugar onde quer,
depois provocando-o com arrogância, com passos firmes e devagar na
direção do touro e então, quando o touro ataca, ele espera pelo touro ou
corre na direção dele, um matador tem a oportunidade de exibir sua
personalidade e seu estilo em todos os movimentos nesse terço da luta.
Um banderillero, no entanto, mesmo quando é mais habilidoso do que seu
mestre, segue apenas uma ordem, fora a orientação sobre em que parte do
animal inserir o bastão, e essa ordem é cravar rápido e corretamente para
entregar o touro rápido e na melhor forma possível para o seu mestre, o
matador, para o último e derradeiro ato. A maioria dos banderilleros é boa
em cravar os bastões por um lado ou por outro. É muito raro existir um
homem capaz de cravar bem as banderillas por ambos os lados. Por esse
motivo, um matador tem sempre um banderillero que é bom pela direita e
outro que é bom pela esquerda.
O melhor banderillero que já vi foi Manuel Garcia Maera. Ele, com
Joselito e Rodolfo Gaona, o mexicano, eram os melhores da era moderna.
Uma coisa peculiar é a qualidade impressionante dos toureiros mexicanos
com as banderillas. Nos últimos anos, em toda temporada, surgem de três
a seis mexicanos desconhecidos que atuam como ajudantes de toureiro e
todos eles são tão bons quanto ou até melhores do que os banderilleros
mais talentosos da Espanha. Eles têm um estilo no preparo e na execução,
e têm algo de dramático, porque assumem riscos inacreditáveis, que são a
marca e a característica da tourada mexicana, além da frieza que
demonstram em todo o resto do trabalho.
Rodolfo Gaona foi um dos melhores toureiros que já existiu. Ele cresceu
sob o regime de Don Porfírio Diaz e trabalhou na Espanha somente nos
anos em que as lutas foram suspensas enquanto o México passava por uma
revolução. Ele mudou seu estilo logo no início, influenciado por Joselito e
Belmonte, e competiu com eles quase de igual para igual na temporada de
1915; de igual para igual em 1916, mas depois disso um ferimento de uma
chifrada e um casamento infeliz acabaram com sua carreira na Espanha. O
seu desempenho foi ficando cada vez pior como toureiro, enquanto
Joselito e Belmonte foram se aperfeiçoando. O ritmo, que ele já não
acompanhava por não ser tão jovem quanto eles, o novo estilo e a perda de
ânimo causada pelas dificuldades em casa foram demais para ele, que
voltou para o México, onde era dominante entre os toureiros e serviu de
modelo para toda a safra atual de elegantes toureiros mexicanos. A
maioria dos toureiros espanhóis nunca viu Joselito nem Belmonte, viu
somente os seus imitadores, mas todos os mexicanos viram Gaona. No
México, ele era também mestre de Sidney Franklin e o estilo de Franklin
com a capa, que confundia e maravilhava os espanhóis quando ele surgiu,
foi elaborado e influenciado por Gaona. Hoje, num período sem guerra
civil, o México produz uma quantidade grande de toureiros que podem se
tornar grandes se souberem aprender com os touros. As artes nunca
florescem em tempos de guerra, mas com a paz no México, a arte das
touradas está florescendo muito mais no México do que na Espanha. A
dificuldade é a diferença no tamanho, no temperamento e na coragem dos
touros espanhóis com os quais os jovens mexicanos que vêm para a
Espanha não estão acostumados e por isso são, com frequência e depois de
um trabalho brilhante, pegos e chifrados não por um defeito em suas
técnicas, mas simplesmente porque eles estão trabalhando com animais
mais nervosos, poderosos e difíceis de avaliar do que aqueles que existem
no seu país. Não se pode ter um grande toureiro sem que ele seja chifrado
cedo ou tarde, mas se ele for chifrado cedo demais, repetidas vezes e
quando ainda é jovem demais, ele jamais será o toureiro que poderia ter
sido se os touros tivessem demonstrado respeito por ele.
Quando você avalia a colocação de um par de banderillas, deve prestar
atenção na altura que o homem consegue erguer os braços quando ele
crava os bastões, pois quanto mais alto elevar os braços, mais ele vai
permitir que o touro se aproxime do seu corpo. Perceba também quantos
círculos ou cuarteos ele usa para se desviar do ataque do touro, quanto
mais cuarteos usar, mais segurança ele tem. Em um par de banderillas bem
colocado, o homem junta os pés e ergue as mãos, e nos cambios e nos
chamados quiebros, você deve ver como ele espera pelo touro e deixa que
o animal se aproxime antes de mudar a posição dos pés. O mérito das
banderillas colocadas próximo das barreras depende totalmente do quanto
a manobra precisa ou não das capas agitadas atrás das barreras para atrair
a atenção do touro. Quando o homem trabalha no centro da arena, ao se
aproximar do touro, ele conta com dois homens munidos de capas
posicionados a uma certa distância, um de cada lado; o papel desses
homens é atrair a atenção do touro caso ele persiga o toureiro depois de
receber os bastões. Na colocação das banderillas próximo das barreras,
talvez seja necessário agitar uma capa depois que as banderillas foram
colocadas, para proteger o homem se ele estiver numa posição
complicada. Mas uma capa agitada no instante da colocação dos bastões é
apenas um artifício.
Entre os matadores em atividade, os que têm o melhor desempenho
com as banderillas são Manolo Mejías (“Bienvenida”), Jesus Solorzano, José
González (“Carnicerito de Mexico”), Fermín Espinosa (“Armillita II”) e
Heriberto Garcia. Antonio Márquez, Félix Rodríguez e Marcial Lalanda
fazem trabalhos muito interessantes com as banderillas. Às vezes, Lalanda
coloca pares excelentes, mas com frequência faz um quarto de círculo
grande demais para desviar da cabeça do touro. Márquez tem dificuldade
para dominar e posicionar o touro e, quando coloca as banderillas próximo
das barreras, o touro quase sempre é levado a investir contra as tábuas e
isso o deixa desconfiado da barrera e, no instante em que crava o par de
banderillas, há sempre um peón agitando uma capa atrás da barrera para
distrair o touro enquanto Márquez escapa. Félix Rodríguez é um
banderillero esplêndido, mas tem estado doente e não tem mais a força
física necessária para executar bem a função. Quando está na sua melhor
forma, ele é perfeito.
Fausto Barajas, Julián Saiz (“Saleri II”) e Juan Espinosa (“Armillita”) eram
banderilleros excelentes, mas estão em decadência. Talvez Saleri tenha se
aposentado até a publicação deste livro. Ignacio Sánchez Mejías era um
banderillero muito bom, que também se aposentou como matador, mas
ele tinha um estilo pesado e deselegante.
Existe meia dúzia de jovens mexicanos que são tão bons quanto qualquer
um desses matadores e que, até a publicação deste livro, podem estar
mortos, arruinados ou famosos.
Dos banderilleros trabalhando como peones sob as ordens de um
matador, os melhores com os bastões são Luis “Magritas” Suárez, Joachin
“Mella” Manzanares, Antonio Duarte, Rafael “Rafaellillo” Valera, Mariano
Carrato, Antonio “Bombita IV” Garcia, e, com a capa, Manuel “Rerre”
Aguilar e Bonifacio “Boni” Perea, o peón de confiança, ou banderillero
particular, de Bienvenida. O melhor peón com a capa que já vi foi Enrique
“Blanquet” Berenguet. Os melhores banderilleros são, muitas vezes,
homens que tentaram ser matadores, fracassaram no uso da espada e
acabaram se resignando a um trabalho assalariado numa cuadrilla. É
comum que eles saibam mais sobre os touros do que os próprios
matadores e é comum que tenham mais personalidade e estilo, mas eles
estão numa posição servil e precisam ter cuidado para não chamar mais
atenção do que o chefe. O único homem que, de fato, ganha dinheiro nas
touradas é o matador. Isso faz sentido porque ele assume o maior risco,
mas bons picadores, que recebem apenas duzentos e cinquenta pesetas,
são ridiculamente mal pagos em comparação ao matador, que recebe dez
mil pesetas ou mais. Se não forem bons no que fazem, eles definitivamente
representam um risco para o matador e recebem mais do que valem, mas
do modo como as coisas são, por melhores que sejam na sua profissão,
comparados aos matadores, eles nunca deixarão de ser trabalhadores
pagos com diárias. Existe uma demanda alta pelos melhores banderilleros
e picadores, e meia dúzia de cada deve atuar em até oitenta lutas numa
temporada, mas existem muitos profissionais bons e capazes que quase
não conseguem se sustentar. Eles são sindicalizados e os matadores devem
pagar para eles um salário mínimo; esse valor varia de acordo com a
posição do matador no ranking; existem três categorias divididas de
acordo com o valor que os banderilleros recebem por luta, mas existem
muito mais banderilleros do que oportunidades de lutar, e um matador
consegue contratá-los pelo valor que quiser, se ele for bem mesquinho,
fazendo-os assinar um recibo de um determinado valor em dinheiro e
descontando o valor do recibo na hora de fazer o pagamento. Apesar de
ser uma profissão muito mal paga, esses homens persistem, vivendo
abaixo da linha da pobreza, iludidos que ganham a vida trabalhando com
os touros e do orgulho de serem toureiros.
Por vezes, os banderilleros são magros, morenos, jovens, corajosos,
habilidosos e confiantes; muito mais homens do que o matador, do tipo
capaz de dormir com a mulher do chefe, levando o que parece ser uma
boa vida ao menos para eles; aproveitando a vida; outras vezes, eles são
respeitáveis pais de família que entendem de touros, gordos porém ágeis,
pequenos empresários que trabalham no ramo de touros; outras vezes,
eles são durões, pouco inteligentes, mas capazes e corajosos, com carreiras
tão longas quanto a de um jogador de beisebol, desde que suas pernas
aguentem; outros podem ser corajosos, mas não ter a menor habilidade,
trabalhando duro para ganhar a vida, ou eles podem ser velhos e
inteligentes, mas sem pernas, procurados pelos jovens toureiros pela
autoridade que têm na arena e pela habilidade de posicionar os touros
corretamente.
Blanquet era um homem muito pequeno, muito sério e honesto, com
um nariz romano e um rosto meio acinzentado, dono da maior
inteligência que já vi no quesito touradas e com um trabalho de capa que
parecia mágico ao corrigir as falhas de um touro. Ele era o peón particular
de Joselito, Granero e Litri. Todos eles foram mortos por touros e, nos três
casos, sua capa, sempre providencial quando necessária, não serviu para
nada no dia em que eles morreram. O próprio Blanquet morreu de um
ataque cardíaco ao entrar num quarto de hotel depois de ter saído da
arena, antes de tirar as roupas para tomar um banho.
Dos banderilleros em atividade, o que tem mais estilo com os bastões é,
possivelmente, Magritas. No trabalho com a capa, ninguém tem o estilo
que Blanquet tinha. Ele manuseava a capa usando apenas uma das mãos
com o mesmo tipo de delicadeza de Rafael El Gallo, mas com a modéstia
habilidosa de um peón. Foi ao ver a curiosidade e as ações de Blanquet,
quando nada em particular parecia estar acontecendo, que aprendi sobre a
importância dos detalhes invisíveis de uma tourada.
Você quer ver uma conversa? Sobre o quê? Algo a ver com pinturas? Algo
para agradar Mr. Huxley? Algo que faça o livro valer a pena? Tudo bem,
este é o fim de um capítulo, podemos dar um jeito. Bom, quando Julius
Meier-Graefe, o crítico alemão, veio à Espanha, ele queria ver obras de
Goya e de Velázquez em busca de êxtases sobre os quais pudesse escrever
depois, mas ele gostava mais de El Greco; ele não estava contente por
gostar mais de El Greco; ele não podia gostar de mais ninguém, então
escreveu um livro para provar como Goya e Velázquez eram pintores
pobres, e para exaltar El Greco, e o critério que ele usou para julgar os
pintores foi suas respectivas pinturas da crucificação de Nosso Senhor.
A essa altura, seria difícil fazer alguma coisa mais estúpida do que isso
porque, dos três, apenas El Greco acreditava em Nosso Senhor ou
demonstrava qualquer interesse em sua crucificação. Você só pode julgar
um pintor pela forma como ele pinta as coisas em que acredita ou as coisas
com que se importa e também as coisas que odeia; e julgar Velázquez, que
valorizava as indumentárias e acreditava na importância da pintura como
pintura, pelo retrato de um homem quase nu em uma cruz que já tinha
sido pintado, Velázquez deve ter pensado, muito satisfatoriamente na
mesma posição outras vezes, e por quem Velázquez não tinha interesse
nenhum, não é inteligente.
Goya era como Stendhal; a imagem de um padre bastava para lançar
essas duas figuras anticlericais num furor criativo. A crucificação, de Goya,
é uma oleografia de madeira cinicamente romântica que poderia servir de
cartaz para um anúncio de crucificações no estilo dos cartazes das
touradas. A crucificação de seis Cristos cuidadosamente selecionados vai
ocorrer a partir das cinco da tarde no Monumental Golgotha, de Madri,
com a autorização do governo. Crucificadores reconhecidos e
credenciados vão realizar o trabalho, cada um deles acompanhado por sua
cuadrilla munida de pregos, martelos, cruz, pás etc.
El Greco gostava de pintar quadros religiosos porque, evidentemente, ele
era religioso e porque sua arte incomparável, na época, não era limitada a
reproduzir de maneira precisa os rostos de fidalgos que sentavam para os
retratos, e ele poderia ir tão longe quanto quisesse nesse outro mundo e,
consciente ou inconscientemente, pintar santos, apóstolos, Cristos e
Virgens com os rostos andróginos e com as formas que animavam sua
imaginação.
Certa vez, em Paris, eu estava conversando com uma garota que escrevia
uma versão ficcional da vida de El Greco e eu perguntei para ela: “Você
falou que El Greco era um maricón?”
“Não”, ela disse. “Por que eu faria isso?”
“Você chegou a ver os quadros que ele pintou?”
“Sim, claro.”
“Você chegou a ver em alguma parte exemplos mais clássicos do que
aqueles que ele pintou? Você acha que foi acidente ou aqueles cidadãos
todos são mesmo homossexuais? O único santo que sei que é
universalmente representado dessa forma é San Sebastián. El Greco pintou
todos eles da mesma maneira. É só você ver os quadros. Não precisa
acreditar em mim.”
“Não tinha pensado nisso.”
“Pois então pense”, eu disse, “se você está escrevendo sobre a vida dele.”
“Tarde demais”, ela disse. “O livro está pronto.”
Para Velázquez, o que importava era a pintura, as indumentárias, os
cachorros, os anões e a pintura de novo. Goya não valorizava as
indumentárias, mas valorizava os tons de preto e cinza, a poeira e a luz, os
lugares elevados em meio às planícies, a região ao redor de Madri, o
movimento, os seus próprios cojones, a pintura, a gravura, e tudo aquilo
que ele tinha visto, sentido, tocado, manuseado, cheirado, desfrutado,
bebido, cavalgado, sofrido, cuspido, acariciado, suspeitado, observado,
amado, odiado, cobiçado, temido, detestado, admirado, abominado e
destruído. Naturalmente, nenhum pintor jamais conseguiu pintar tudo
isso, mas ele tentou. El Greco valorizava a cidade de Toledo, a sua
localização e a sua construção, algumas pessoas que moravam nela, o azul,
o cinza, o verde e o amarelo, o vermelho, o espírito santo, a comunhão e a
fraternidade de santos, a pintura, a vida após a morte e a morte após a
vida, e os homossexuais. Se é verdade que ele era um deles, ele devia ser
redimido pela sua tribo, pelo exibicionismo afetado de uma tia velha, pela
arrogância moral de um Gide, que lembrava a de uma solteirona
enrugada; pela preguiça e pela libertinagem afetada de um Wilde, que
traiu uma geração; pela humanidade sentimental de um Whitman e de
toda a aristocracia que foi triturada. Viva El Greco, el rey de los maricones.
18
Se este livro fosse um livro de verdade, ele teria tudo. O Prado, com a
aparência de universidade americana e os aspersores que molham a grama
cedo numa manhã ensolarada de verão em Madri; as montanhas nuas e
esbranquiçadas que ficam de frente para Carabanchel; os dias passados
num trem, no mês de agosto, com as cortinas fechadas para bloquear o sol
e o vento fazendo a cortina se mexer; a palha que levanta voo do chão
duro de debulha e bate contra o vagão; o cheiro dos cereais e os moinhos
de vento. O livro teria a mudança que ocorre na paisagem quando você
deixa para trás o verde de Alsasua; teria Burgos do outro lado da planície e
o queijo que se come mais tarde no quarto; teria o jovem que embarcou
no trem carregando amostras de vinho em jarros cobertos de vime; era
sua primeira viagem a Madri e ele compartilhou os jarros com entusiasmo
e todo mundo ficou bêbado, incluindo os dois guardas civis que estavam a
bordo, e perdi as passagens e os dois guardas civis acabaram nos ajudando
(eles nos acompanharam para fora do trem como se fôssemos prisioneiros
porque não tínhamos as passagens e depois se despediram como se nada
tivesse acontecido assim que embarcamos num táxi); Hadley carregava
uma orelha de touro embrulhada num lenço, a orelha era dura e seca e os
pelos todos tinham caído e o homem que tinha cortado a orelha também
viu seus cabelos caírem e hoje ele tenta disfarçar fazendo uns fios
compridos cruzarem o topo da cabeça; ele era vaidoso. Ele era bem
vaidoso.
O livro deixaria clara a mudança que ocorre na paisagem quando você
desce as montanhas e chega a Valência no entardecer, num trem em que
você faz a gentileza de carregar um galo para uma mulher que quer levá-lo
para a irmã; e deveria mostrar a arena de madeira em Alciras, onde eles
arrastam os cavalos mortos para fora, largam no campo e você precisa
passar por eles ao ir embora; e deveria ter o barulho das ruas de Madri
depois da meia-noite; a feria que atravessa a noite, no mês de junho; e as
caminhadas de domingo de volta para casa depois de sair da arena; ou com
Rafael no táxi. Que tal? Malo, hombre, malo; dando de ombros, ou com
Roberto, Don Roberto, Don Ernesto, sempre tão educado, tão gentil e um
bom amigo. E também a casa onde Rafael vivia, antes que a opção de virar
republicano se tornasse respeitável, com a cabeça empalhada do touro que
havia matado Gitanillo, um grande jarro de azeite, sempre muitos
presentes e refeições de primeira.
O livro teria o cheiro da pólvora queimada e a fumaça e o clarão e o
barulho da traca que explode percorrendo as folhas verdes das árvores e
deveria ter o sabor da horchata, uma horchata bem gelada, e as ruas
recém-lavadas sob o sol, e os melões e as gotas geladas ao redor de um
jarro de cerveja; as cegonhas sobre as casas em El Barco de Ávila e fazendo
manobras no céu, e a cor vermelha da arena que lembra argila; e a dança
ao som de flautas e tambores, à noite, com luzes que escapam por entre as
folhas verdes e o retrato de Garilbaldi emoldurado pelas folhas. Para que
ficasse completo, o livro deveria ter o sorriso forçado de Lagartijo; o
sorriso foi sincero um dia, e os matadores malsucedidos nadando com
prostitutas baratas em Manzanares, ao longo da estrada de El Pardo; quem
não tem cão, caça com gato, dizia Luis; e os jogos de bola na grama perto
do rio, onde o lindo marquês aparecia de carro com seu boxeador, onde a
gente fazia paellas; e caminhava para casa no escuro com os carros que
passavam voando pela estrada; e as luzes elétricas que passavam por entre
as folhas verdes e o orvalho que fazia a poeira assentar, na friagem da
noite; e a sidra em Bombilla e a estrada para Pontevedra que parte de
Santiago de Compostella com uma curva acentuada na altura dos
pinheiros e as amoras à beira da estrada; e Algabeño, o maior impostor de
todos os tempos; e Maera no quarto do Hotel Quintana trocando de roupa
com o padre naquela vez que
todo mundo encheu a cara, mas ninguém passou mal. Houve uma vez
que foi bem assim, mas este livro não pode ter tudo.
Reviver tudo isso; arremessar gafanhotos para as trutas no rio Tambre,
da ponte, no meio da tarde; ver o rosto sério e bronzeado de Félix Merino
no velho Aguilar; ver o corajoso e estranho Pedro Montes, de olhos
opacos, ter de se vestir fora de casa porque tinha prometido à mãe que
pararia de lutar depois que Mariano, seu irmão, morreu em Tetuan; e Litri,
como um coelhinho, piscando os olhos nervosamente ao encarar o touro;
ele tinha as pernas bem tortas e era corajoso e os três foram mortos e
nunca mais se falou deles na cervejaria que ficava debaixo do Palace, na
sombra, que Litri frequentava com o pai e que acabou sendo comprada
pela Citroën; e também não se fala sobre como eles carregaram Pedro
Carreño, morto, pelas ruas com tochas acesas até a igreja onde o
colocaram nu sobre o altar.
Este livro não fala de Francisco Gómez, o Aldeano, que trabalhou em
Ohio numa usina siderúrgica e voltou para casa a fim de se tornar matador
e hoje carrega marcas e cicatrizes que só não são piores que as de Freg,
com um olho tão torto que as lágrimas correm pelo nariz. Não fala de
Gavira, que morreu na hora ao sofrer uma chifrada igual à que matou El
Espartero. E também não fala da noite em Zaragoza, sobre a ponte,
observando o rio Ebro, e do paraquedista no dia seguinte e dos charutos
de Rafael; nem da competição de valetes no velho teatro chique e dos
belos casais de garotos e garotas; nem de quando mataram o Noy de Sucre
em Barcelona, nem nada desse lugar; nem qualquer coisa sobre Navarra;
nem sobre como León é uma cidade miserável; nem sobre ficar com um
músculo estirado num hotel onde bate sol em Palencia, quando fazia calor
e você ainda não sabia o que era calor porque nunca tinha estado lá; nem
da estrada entre Requena e Madri, onde os carros afundam na poeira; nem
de quando fazia 49ºC na sombra em Aragão e o carro, que não tinha nada
de errado, precisava ser abastecido de água a cada vinte quilômetros
rodados numa superfície plana.
Se este livro fosse mais completo, ele falaria da última noite da feria,
quando Maera brigou com Alfredo Davi no Café Kutz; ele mostraria os
engraxates. Meu Deus, seria impossível falar de todos os engraxates; e de
todas as garotas bonitas que vi passar; e das putas; e de como nós éramos
naquela época. Pamplona mudou muito; eles construíram prédios por
toda a planície até chegar bem perto do planalto; agora não se veem as
montanhas. Eles colocaram abaixo o antigo Gayarre e estragaram a praça
para abrir uma via ampla que dá acesso à arena e, nos bons tempos, o tio
bêbado de Chicuelo subia no andar de cima do restaurante para ver o povo
dançar na praça; Chicuelo ficava sozinho no quarto enquanto a cuadrilla
estava no bar ou espalhada pela cidade. Escrevi sobre isso no conto Falta de
entusiasmo, mas ele não ficou muito bom, com exceção da cena em que a
multidão arremessa gatos mortos contra o trem e, em seguida, Chicuelo
aparece numa cabine do trem, sozinho; capaz de dar conta de tudo
sozinho.
O livro, se falasse da Espanha, deveria falar do garoto magro de dois
metros e meio de altura que fazia propaganda para o espetáculo El
Empastre antes de ele chegar à cidade, e naquela noite, na feria de ganado,
as putas não teriam nada para fazer com o anão, ele era do tamanho
normal a não ser pelas pernas, que tinham vinte centímetros de
comprimento, e ele disse, “Sou um homem como qualquer outro”, e a
puta disse, “Não é não, e é aí que mora o problema”. Você não acreditaria
na quantidade de anões e aleijados que aparecem em todas as ferias da
Espanha.
Pela manhã, nós tomávamos café lá e depois nadávamos no Irati em
Aoiz, na água transparente cuja temperatura variava de acordo com a
profundidade, fresca, fria, gelada e congelada, e ficávamos à sombra das
árvores na margem quando o sol ficava muito quente e o vento soprando
nos trigais inclinados com a montanha do outro lado do rio. Havia um
velho castelo no início do vale por onde o rio passava entre duas pedras; e
nós deitamos nus na grama baixa sob o sol e depois à sombra. O vinho em
Aoiz não era bom e por isso levamos um dos nossos, e o presunto também
não era bom, e na vez seguinte nós compramos comida no Hotel
Quintana. Quintana era o mais aficionado de todos e nosso amigo mais fiel
na Espanha, e dono de um bom hotel que vivia lotado. Que tal Juanito?
Que tal, hombre, que tal?
E por que o livro não teria a cavalaria atravessando o rio a vau, com a
sombra das árvores nos cavalos, se trata-se da Espanha, e por que não
falaria deles marchando para fora da escola de metralhadoras e cruzando o
terreno de calcário, muito pequenos a essa distância, e das montanhas
mais ao longe, vistas da janela do Quintanilla. Ou de acordar pela manhã,
com as ruas vazias no domingo, e ouvir o grito a distância e depois os
disparos. Isso acontece com frequência se você vive o bastante e viaja
muito.
E se você cavalga e sua memória é boa, você ainda pode cavalgar pela
floresta de Irati com árvores que parecem mais desenhos num livro para
crianças. Eles cortaram essas árvores. Eles transportaram troncos rio
abaixo e eles mataram os peixes, ou eles bombardearam e envenenaram os
peixes, como fizeram em Galícia; os resultados são os mesmos; no fim,
não é muito diferente de casa, a não ser pelos arbustos amarelos nas
pradarias e pela chuva fina. Há nuvens vindas do mar que passam pelas
montanhas, mas quando o vento sopra a partir do sul, Navarra fica tomada
pela cor do trigo, com exceção das áreas planas onde ele não cresce, mas
sobre as montanhas e ao redor de estradas com árvores e de muitas
cidadezinhas com sinos, quadras de pelota, cheiro de esterco de ovelhas e
praças com cavalos dormindo em pé.
Se você conseguisse descrever a chama das velas sob o sol; o brilho do
metal nas baionetas recém-lubrificadas, o amarelo no cinto de couro
envernizado daqueles que defendem o Senhor; ou a caçada em duplas por
entre os sobreiros das montanhas atrás daqueles que caíram na armadilha
em Deva (foi um caminho longo e difícil para os que saíram do Café de la
Rotonde para serem estrangulados numa sala fria por ordem do Estado,
tendo apenas o consolo da religião, absolvidos uma vez e presos até que o
capitão-general de Burgos revertesse a sentença da corte), e na mesma
cidade onde Loyola sofreu o ferimento que o fez pensar na vida, o mais
corajoso de todos que foram traídos naquele ano mergulhou do balcão da
corte, de cabeça, porque tinha jurado que eles não o matariam (sua mãe
quis que ele prometesse não acabar com a própria vida porque ela prezava
sua alma, mas ele mergulhou com precisão, mesmo com as mãos atadas,
enquanto os outros que estavam com ele rezavam); se eu pudesse
descrevê-lo; descrever um bispo; descrever Cándido Tiebas e Torón;
descrever nuvens que se movem rápido fazendo sombra sobre os trigais e
os cavalos pequenos que caminham com cuidado; o cheiro do azeite de
oliva; a sensação do couro; os calçados com sola de corda; as voltas de uma
trança de alho; os vasos de cerâmica; os alforjes nos ombros; os odres de
vinho; os pedaços de madeira que tinham a forma de forquilhas (as pontas
eram parte do galho); os cheiros da manhã; as noites frias nas montanhas e
os longos dias de calor no verão, sempre com árvores e com sombras sob
as árvores, assim você teria uma ideia de Navarra. Mas não neste livro.
Ele deveria ter Astorga, Lugo, Orense, Soria, Tarragona e Calatayud, os
bosques de castanheiras nas montanhas altas, as regiões verdes e os rios, a
poeira vermelha, a sombra pequena à beira dos rios secos e as montanhas
brancas de calcário; os passeios agradáveis sob as palmeiras na cidade velha
que fica no rochedo à beira-mar, com um clima fresco na brisa da tarde;
com mosquitos à noite, mas pela manhã com a água limpa e a areia
branca; para depois admirar o crepúsculo na casa de Miró; as videiras a
perder de vista, delimitadas por sebes e pela estrada; a ferrovia e o mar
com a praia de seixos e a grama alta de papiro. Havia recipientes de
cerâmica com quatro metros de altura para safras diferentes de vinho,
colocados lado a lado dentro de um quarto escuro; havia uma torre na casa
onde se subia à tarde para ver as videiras, as cidadezinhas e as montanhas,
e para ouvir e escutar como tudo era quieto. Na frente do celeiro, uma
mulher segurava um pato cuja garganta tinha sido cortada e ela o agradava
com delicadeza enquanto uma menina segurava uma taça para pegar o
sangue que seria usado no molho. O pato parecia muito contente e
quando elas o colocaram no chão (o sangue todo na taça), ele se mexeu
um pouco e descobriu que estava morto. Depois, nós o comemos,
recheado e assado; e comemos muitos outros pratos, bebendo o vinho
daquele ano e o do ano anterior e o do ótimo ano que tinha sido quatro
anos antes, e de outros anos que não guardei enquanto um ventilador para
espantar moscas girava no sentido horário sem parar e nós conversávamos
em francês. Todos nós éramos melhores em espanhol.
Aqui está Montroig, que se pronuncia Montroich, um dos muitos lugares
da Espanha, e também as ruas de Santiago num dia de chuva; a vista da
cidade no alto das colinas quando você volta para casa pelos planaltos; e
todas as carroças carregadas que percorrem trilhas de chão batido e que,
ao longo da estrada para Grau, deveriam ir até a arena temporária feita de
madeira em Noya, com o cheiro de madeira recém-cortada; Chiquito com
seu rosto delicado, um grande artista, fino muy fino, pero frio. Valência II,
com o olho que costuraram errado que deixa à mostra a parte interna da
pálpebra, já não pode mais ser arrogante. E também o garoto que errou o
touro completamente ao tentar matá-lo e errou de novo numa segunda
tentativa. Se conseguisse ficar acordado para ver as fiestas noturnas, veria
como elas são divertidas.
Em Madri, depois de ter perdido duas disputas, um toureiro cômico
esfaqueou Rodalito na barriga porque não suportava a ideia de perder mais
uma vez. Agüero comendo com toda a família na sala de jantar; todos eles
parecendo a mesma pessoa com idades diferentes. Ele tinha a aparência de
um interbases ou de um quarterback, mas não de um matador. Cagancho
em seu quarto, comendo com a mão porque não sabia usar o garfo. Ele
não conseguia aprender e quando passou a ganhar dinheiro, evitava comer
em público. Ortega noivou com a Miss Espanha, o mais feio com a mais
bonita, e quem era o mais espirituoso? Desperdicios, na Gaceta del Norte, era
o mais espirituoso; o texto mais espirituoso que li na vida.
E na casa de Sidney, alguns apareciam pedindo trabalho como toureiro,
outros pediam dinheiro emprestado, outros pediam uma camisa velha,
outros pediam um terno completo; eram todos toureiros, todos
conhecidos nos restaurantes da vida, todos muito educados, todos sem
sorte; as muletas dobradas e empilhadas; as capas dobradas; as espadas no
estojo de couro; tudo guardado no armário; os bastões da muleta na
gaveta de baixo, os trajes no baú enrolados num tecido para proteger o
brocado; meu uísque num jarro de cerâmica; Mercedes, traga os copos; ela
diz que ele teve febre a noite inteira e que só saiu de casa uma hora atrás.
Então ele volta. Como você está? Ótimo. Ela disse que você teve febre.
Mas me sinto ótimo agora. Doutor, que tal comermos aqui? Ela pode
preparar alguma coisa e fazer uma salada. Mercedes, ó Mercedes.
E você podia atravessar a cidade a pé para ir ao café onde dizem que você
se informa sobre quem deve dinheiro para quem e quem enganou quem e
por que ele mandou o outro para aquele lugar e quem teve filho com
quem e quem casou com quem antes e depois do que e quanto tempo
levou para isso e aquilo e o que o médico disse. Quem ficou feliz porque os
touros estavam atrasados, entregues somente no dia da luta, com as pernas
fracas, bastavam dois passes e, bum, era o fim, ele disse, e depois choveu e
a luta teve que ser adiada por uma semana e foi aí que ele ficou doente.
Quem se recusava a lutar com quem e quando e por que e é sério isso dela,
claro que é, sua besta, você não sabia que era sério? De maneira nenhuma
e é isso aí mesmo, de qualquer maneira, ela os engole vivos, e informações
importantes como essas você fica sabendo nos cafés. Nos cafés, os garotos
estão sempre certos; nos cafés, todos são corajosos; nos cafés, onde os
pires são empilhados e os drinques são anotados a lápis no tampo de
mármore das mesas, em meio aos restos das temporadas perdidas, há uma
sensação boa porque ninguém precisa provar nada para ninguém e todo
mundo é incrível por volta das oito da noite, se alguém puder pagar a
conta no fim.
O que mais o livro deveria ter sobre um país que você ama muito? Rafael
diz que as coisas mudaram muito e ele não vai mais para Pamplona. Acho
que La Libertad está ficando parecido com Le Temps. Ele não é mais o
jornal em que você podia publicar uma notificação e sabia que o batedor
de carteiras leria, agora que os republicanos se tornaram respeitáveis e que
Pamplona mudou, claro, mas não tanto quanto nós que estamos velhos.
Eu achava que, se fosse só para tomar um drinque, a cidade seria a mesma
de sempre. Sei que as coisas mudaram e não me importo. As coisas
mudaram para mim também. Deixe que tudo mude. Nosso fim vai chegar
antes que as coisas mudem demais e, se não houver nenhum dilúvio,
depois do nosso fim, ainda vai chover no norte durante o verão e os falcões
vão fazer ninhos na Catedral de Santiago e em La Granja, onde nós
praticamos com a capa nas longas trilhas de cascalho por entre as sombras,
não faz diferença nenhuma se as fontes da cidade funcionam ou não. Nós
nunca mais vamos voltar de Toledo no escuro, beber Fundador para o tirar
o pó da garganta, nem vai haver aquela semana em que aconteceu aquilo à
noite naquela feria em Madri. Vimos tudo passar e vamos ver tudo passar
mais uma vez. O mais importante é continuar e dar conta do trabalho e
ver e ouvir e aprender e entender; e escrever quando você tiver alguma
coisa para dizer; e não antes disso; e também não muito tempo depois.
Não se preocupe com os outros, se puder, procure ver o mundo como um
todo e de maneira clara. Então faça sua parte, ela vai dizer algo sobre o
todo se for feita com sinceridade. Trabalhe e aprenda como fazer isso.
Não. Este livro não é um livro de verdade, mas havia algumas coisas que
precisavam ser ditas. Havia algumas coisas práticas que precisavam ser
ditas.
UM GLOSSÁRIO EXPLICATIVO DE CERTAS FRASES, PALAVRAS E
TERMOS USADOS NAS TOURADAS
A
Abanico: aberto como um leque.
Abano: touro que entra na arena de um jeito covarde, que se recusa a
atacar, mas que pode melhorar ao ser castigado.
Abierto de cuerna: de chifres grandes.
Abrir-el-toro: atrair o touro para o centro da arena e para longe da barrera.
Aburrimiento: tédio, a sensação predominante numa tourada ruim. Pode
ser um pouco atenuada por uma cerveja gelada. A não ser que a cerveja
esteja gelada demais, aí o aburrimiento aumenta.
Acero: aço. Palavra comum para se referir à espada.
Acometida: ataque do touro.
Acornear: chifrar.
Acosar: etapa do teste dos touros jovens na fazenda. O vaqueiro tira o
touro jovem ou novilho do rebanho, persegue o animal até que ele se
sinta acossado e ataque.
Acoson: quando o toureiro é seguido de perto pelo touro.
Acostarse: tendência do touro de se aproximar do toureiro por um lado ou
por outro no momento do ataque. Se o touro tende para um lado, o
toureiro deve ceder espaço para ele nesse lado ou será chifrado.
Achuchón: quando o touro tromba com o homem durante um passe.
Adentro: parte da arena entre o touro e a barreira.
Adorno: qualquer floreio inútil executado pelo toureiro para enaltecer seu
domínio sobre o touro. Ele pode ser de bom gosto ou de mau gosto, e
vai de se ajoelhar de costas para o animal até pendurar o chapéu de um
espectador no chifre do touro. O pior adorno que vi na vida foi de
Antonio Marquez, que mordeu o chifre do touro. O melhor foi de Rafael
El Gallo, que cravou quatro pares de banderillas no touro e depois, de
maneira muito delicada, nas pausas que fazia para se refrescar enquanto
trabalhava com a muleta, extraiu as banderillas uma de cada vez.
Afición: amor pelas touradas. A palavra se refere também ao público de
uma arena, mas é usado nesse sentido genérico para se referir à parte
mais inteligente do público.
Aficionado: alguém que entende de touradas de maneira geral e também
específica, e que ainda se importa com elas.
Afueros: parte da arena entre o touro e o centro da arena.
Aguantar: método de matar o touro com a espada e a muleta usado
quando o touro ataca inesperadamente enquanto o matador está de lado
enrolando a muleta. Nesse caso, o matador espera por ele sem sair do
lugar, executa um passe segurando a muleta bem baixo com a mão
esquerda enquanto crava a espada com a mão direita. Nove em dez
sacrifícios que vi com essa manobra foram malfeitos porque o matador
não esperou o touro se aproximar o suficiente para cravar a espada
direito e acabou fincando a espada no pescoço, algo que o homem faz
quase sem risco nenhum.
Agujas: agulhas, outra palavra usada para se referir aos chifres do touro.
Ela também se refere às costelas que ficam no alto, entre as escápulas.
Ahondar el estoque: empurrar ainda mais a espada para dentro depois que
ela já foi cravada. Os homens responsáveis pelas espadas geralmente
tentam isso quando o touro está próximo da barrera e o matador não
consegue matar o touro. Às vezes, a manobra é executada pelos
banderilleros, que arremessam uma capa sobre a espada e puxam a capa
para baixo.
Ahormar la cabeza: arrumar a cabeça do touro na posição certa para o
sacrifício. O matador deve usar a muleta para fazer isso. Ele faz o animal
baixar a cabeça com passes mais próximos do chão e o faz erguer a
cabeça com passes altos, mas às vezes os passes altos podem fazer baixar
uma cabeça que está alta demais, pois obriga o touro a esticar tanto o
pescoço que ele acaba se cansando. Se o matador não consegue fazer o
touro erguer a cabeça, um banderillero geralmente consegue fazer isso
com alguns movimentos da capa. Se o matador vai ter que fazer ajustes
maiores ou menores, depende da forma como os picadores trataram o
animal e de como as banderillas foram colocadas.
Aire: vento; o pior inimigo de um toureiro. Capas e muletas são molhadas
e sujas de areia para que se tornem mais fáceis de controlar no vento.
Elas não podem ser mais pesadas do que já são naturalmente, caso
contrário acabariam com o pulso do toureiro e, se houver vento demais,
o homem não consegue controlar o pano. A capa ou a muleta podem ser
sopradas de repente, deixando o homem exposto ao touro. Em toda luta
há uma parte da arena onde o vento é mais fraco e o toureiro deve usar
esse lugar para fazer o trabalho mais complicado com a capa e a muleta,
se for possível lidar com o touro nesse local.
Al Alimón: passe muito bobo feito com dois homens, em que cada um
deles segura uma ponta da capa e o touro passa por baixo do pano entre
eles. Esse passe não é perigoso e você só vai vê-lo na França, ou num
lugar onde o público seja muito ingênuo.
Alegrar al Toro: atrair a atenção do touro quando ele fica lento.
Alegria: significa leveza na tourada; um estilo sevilhano pitoresco e
elegante, criado em resposta à maneira trágica e clássica da escola de
Ronda.
Alguacil: meirinho a cavalo sob as ordens do presidente que cavalga à
frente dos toureiros na entrada, ou paseo, usando um traje do reinado de
Filipe II, recebe a chave do toril das mãos do presidente e, durante a
tourada, transmite as ordens do presidente aos envolvidos na tourada.
Essas ordens costumam ser dadas por um tubo acústico que conecta o
camarote do presidente com o corredor entre a arena e os assentos do
público. O mais comum é ter dois aguacils em cada tourada.
Alternativa: investidura oficial de um aprendiz de matador ou de um
matador de novillos como matador profissional de touros. Nela, o
matador veterano abre mão do direito de matar o primeiro touro e faz
isso apresentando a muleta e a espada para o toureiro, que assume a
alternativa de matar o touro pela primeira vez ao lado de matadores
profissionais. A cerimônia ocorre quando soa o trompete para a morte
do primeiro touro. O homem que está assumindo a função de matador
entra na arena com uma capa dobrada sobre o braço para encontrar o
veterano que lhe dá a espada e a muleta, e recebe a capa. Eles trocam um
aperto de mãos e o novo matador mata o primeiro touro. No segundo
touro, ele devolve a espada e a muleta para seu padrinho, que, por sua
vez, mata o segundo touro. Depois disso, eles se alternam da maneira
mais tradicional, o quarto touro é morto pelo veterano, o quinto, pelo
segundo mais experiente, e o estreante mata o último touro. Uma vez
que ele assuma a alternativa na Espanha, seu ranking como matador
profissional passa a valer em todas as arenas da Península, com exceção
de Madri. Depois de receber a alternativa numa província, ele precisa
repetir a cerimônia em sua primeira apresentação em Madri. As
alternativas dadas no México ou na América do Sul não são reconhecidas
na Espanha até que sejam confirmadas nas províncias ou em Madri.
Alto: pase por alto é um passe em que o touro passa por baixo da muleta.
Alto (en todo lo): golpe de espada ou estocada no ponto certo, no alto,
entre as escápulas do touro.
Ambos: os dois, as duas; ambas manos, ambas as mãos.
Amor propio: amour propre, amor-próprio, algo raro entre os toureiros
modernos, sobretudo depois de sua primeira temporada de sucesso ou
quando eles têm cinquenta ou sessenta contratos a cumprir.
Anda: vai! Com frequência, as pessoas gritam isso para os picadores que
hesitam em se aproximar do touro.
Andanada: assentos baratos que ficam no alto da arena, no lado
ensolarado, na mesma altura dos camarotes que estão no lado que pega
sombra.
Anillo: praça de touros. E também o anel na base do chifre que revela a
idade do touro. O primeiro anel representa três anos. Depois disso, cada
anel representa mais um ano.
Anojo: touro jovem.
Apartado: separação dos touros que ocorre geralmente ao meio-dia que
antecede a luta, quando os animais são classificados e colocados nos
currais na ordem em que devem entrar na arena.
Aplomado: estado em que o touro fica pesado feito chumbo, mais para o
fim da luta.
Apoderado: empresário ou agente do toureiro. Diferente dos empresários
de boxeadores, ele quase nunca ganha mais do que cinco por cento para
cada luta que consegue agendar para o matador.
Apodo: apelido de um toureiro profissional.
Aprovechar: tirar vantagem de, se beneficiar de um bom touro. A pior
coisa que um matador pode fazer é não aproveitar ao máximo um touro
que seja nobre e fácil, e que permita um desempenho brilhante. Ele vai
enfrentar muito mais touros difíceis do que fáceis e, se ele não
aprovechar os touros bons para dar o máximo de si, a multidão será
muito mais crítica do que se tivesse uma apresentação fraca com um
touro difícil.
Apurado: touro que fica desgastado e sem energia por causa de uma luta
mal executada.
Arena: a areia do chão da praça de touros.
Arenero: funcionário da praça de touros que alisa a areia depois que cada
touro é morto e retirado da arena.
Armarse: quando o matador enrola a muleta e posiciona a espada na altura
dos olhos, alinhando o rosto, o braço e a lâmina, na preparação para o
sacrifício.
Arrancada: outra palavra usada para falar do ataque do touro.
Arrastre: ato de arrastar os cavalos mortos e o corpo do touro morto,
executado por um trio de mulas ou de cavalos, depois que cada touro é
sacrificado. Os cavalos são tirados primeiro. Se o touro foi
excepcionalmente corajoso, a multidão o aplaude bastante. Às vezes, é
dada uma volta na arena com o corpo do touro antes de ele ser retirado.
Arreglar los pies: fazer o touro alinhar as patas antes do sacrifício. Se uma
pata está mais à frente do que a outra, as escápulas ficam desalinhadas,
fechando a abertura por onde a espada deve passar, ou a diminuindo
bastante.
Arrimar: ficar bem próximo do touro. Se os matadores arriman al toro, a
tourada será boa. O tédio surge quando os toureiros trabalham distantes
dos chifres do touro.
Asiento: assento.
Astas: baionetas, outro sinônimo para os chifres.
Astifino: touro com chifres pontudos e afiados.
Astillado: touro com as extremidades de um chifre ou de ambos os chifres
lascadas, geralmente por ter investido contra a jaula ou contra o curral,
no momento em que chega à arena. Chifres assim causam os piores
ferimentos.
Atrás: para trás; de costas.
Atravesada: de maneira transversal; quando a espada entra enviesada e
acaba despontando pelo flanco do touro. Um golpe como esse, a não ser
que o touro tenha se deslocado durante o ataque, indica que o homem
não se aproximou do touro em linha reta no momento do sacrifício.
Atronar: golpe com a puntilla, ou punhal, entre as vértebras cervicais,
dado por trás quando o touro está no chão mortalmente ferido, e que
corta a medula espinhal e mata o touro instantaneamente. Esse coup de
grâce é dado pelo puntillero, um dos banderilleros, que segura uma lona
no braço direito para proteger as roupas do sangue ao se aproximar do
touro. Quando o touro está de pé e esse mesmo golpe é dado pela frente
e executado pelo matador, armado com uma espada específica de ponta
reta ou com uma puntilla, ele é chamado de descabello.
Avíos de matar: ferramentas de matar, isto é, a espada e a muleta.
Aviso: sinal dado por uma corneta, autorizado pelo presidente, para o
matador cujo touro ainda está vivo depois de dez minutos de manobras
com a espada e a muleta. O segundo aviso é dado três minutos depois do
primeiro e o terceiro e último aviso é dado dois minutos depois do
segundo. No terceiro aviso, o matador é obrigado a se retirar e os bois,
que estão a postos desde o primeiro aviso, entram na arena para
conduzir o touro para fora. Existe um relógio enorme em todas as
arenas mais importantes para que os espectadores possam controlar o
tempo que o matador leva para executar o trabalho.
Ayudada: passe em que a ponta da espada fica espetada na muleta para
esticar o tecido; nesse caso, diz-se que a muleta está sendo ajudada pela
espada.
Ayuntamiento: prefeitura ou câmara municipal nas cidadezinhas
espanholas. Um camarote é reservado para o ayuntamiento nas arenas
espanholas.
B
Bajo: baixo, baixa. Uma lança baixa que é colocada na lateral do pescoço,
perto das escápulas. Um golpe da espada no lado direito em qualquer
lugar abaixo da parte mais alta das escápulas e na parte posterior do
pescoço também é chamado de bajo.
Bajonazo: golpe deliberado da espada no pescoço ou na parte inferior do
ombro por um matador que procura matar o touro sem correr riscos.
Em um bajonazo, o matador procura cortar as artérias ou veias do
pescoço, ou atingir os pulmões com a espada. Com um golpe desses, ele
assassina o touro sem se posicionar na frente do animal e longe dos
chifres.
Banderilla: bastão redondo de setenta centímetros de comprimento,
envolvido por papel colorido e com uma ponta de arpão feita de metal,
cravado em pares na cernelha do touro, no segundo ato da tourada; a
ponta do arpão é o que fura a pele do touro. As banderillas devem ser
colocadas bem no alto da cernelha, perto uma da outra.
Banderillas cortas: banderillhas pequenas de apenas vinte e cinco
centímetros de comprimento. É raro ver alguém as usando.
Banderillas de fuego: banderillas com fogos de artifício ao longo do bastão,
usadas em touros que não atacam os picadores, para que a explosão da
pólvora faça o touro se mexer, cabecear e cansar os músculos do
pescoço, que é o objetivo do picador ao confrontar o touro.
Banderillas de lujas: banderillas muito enfeitadas, usadas em apresentações
beneficentes. Desajeitadas e difíceis de cravar por causa do peso.
Banderillero: toureiro responsável por cravar as banderillas que recebe
ordens do matador, é pago por ele e ajuda na lida com o touro usando a
capa. Cada matador emprega quatro banderilleros, que às vezes são
chamados de peones. No passado, eles eram chamados de chulos, mas
esse termo não é mais usado. Banderilleros fazem de 150 a 250 pesetas
por luta. Eles se revezam na colocação das banderillas, dois deles
colocam num touro e os outros dois colocam no touro seguinte. Em
viagens, as despesas dos banderilleros, à exceção do vinho, do café e do
tabaco, são pagas pelo matador, que, por sua vez, é pago pelo promotor
do evento.
Barbas; El Barbas: gíria dos toureiros para se referir aos touros adultos, que
aos quatro anos e meio de idade chegam a pesar trezentos e vinte quilos
de carne, sem contar chifres, cabeça, cascos e couro; sabem usar os
chifres e fazem os toureiros merecerem o dinheiro que recebem.
Barrenar: empurrar a espada, algo que o matador faz depois de ter se
aproximado do touro para matá-lo e quando está escapando dos chifres
ao longo do flanco do animal. Uma vez que se desvie dos chifres, ele
pode empurrar a espada sem perigo.
Barrera: cerca vermelha de madeira ao redor da área central da arena onde
ocorre a luta contra o touro. A primeira fileira de assentos também é
chamada de barreras.
Basto: sem elegância, arte e agilidade; pesado.
Batacazo: queda grave do picador.
Becerrada: apresentação beneficente de amadores ou aprendizes de
toureiro em que são usados touros jovens demais para serem perigosos.
Becerro: bezerro.
Bicho: bicho ou inseto. Uma gíria para se referir ao touro.
Billetes: ingressos para a tourada. NO HAY BILLETES: um aviso na janela da
bilheteria indicando que os ingressos esgotaram, o sonho de todo
promotor de eventos. Mas o garçom no café quase sempre consegue um
ingresso se você estiver disposto a pagar o preço dos cambistas.
Bisco: touro com um chifre mais baixo do que o outro.
Blando: touro que não suporta ser castigado.
Blandos: carne sem osso. Quando a espada penetra com facilidade numa
estocada, e no lugar certo, sem acertar um osso, dizem que ela foi nos
blandos.
Bota: odre individual de vinho, chamado de gourd pelos ingleses. Os odres
são arremessados para dentro da arena por espectadores exaltados no
norte da Espanha como uma ovação para o toureiro que está dando a
volta pela arena. O toureiro triunfante deve dar um gole no vinho e
arremessar o odre de volta. Os toureiros detestam esse costume porque,
se o vinho espirrar, pode manchar a caríssima camisa cheia de babados
que eles usam.
Botella: garrafa; elas são arremessadas dentro da arena por selvagens,
bêbados e espectadores exaltados como sinal de reprovação.
Botellazo: golpe dado com a garrafa na cabeça; é possível evitá-lo, basta
manter distância dos bêbados.
Boyante: touro fácil de lidar que acompanha bem os movimentos do pano
e que ataca de maneira direta e franca.
Bravo; Toros Bravos: touros corajosos e selvagens.
Bravucón: touro que blefa e que não é corajoso de verdade.
Brazuelo: parte superior das pernas dianteiras. O touro pode ficar manco e
incapaz de continuar na luta se os picadores atingirem os tendões do
brazuelo.
Brega: sequência de tarefas que deve ser executada com cada touro ao
longo de uma luta, incluindo o sacrifício.
Brindis: brinde oficial ou dedicatória do touro para o presidente ou para
qualquer outra pessoa, feita pelo toureiro antes de executar o sacrifício.
O brinde ao presidente é obrigatório no primeiro touro que cada
toureiro mata numa tourada. Depois de brindar ao presidente, ele pode
dedicar o touro a qualquer alta autoridade governamental presente na
arena, a qualquer espectador renomado, ou a um amigo. Quando o
matador dedica o touro ou faz um brinde a alguém, ele arremessa o
chapéu ao concluir a fala e a pessoa homenageada fica com o chapéu até
o touro ser morto. Depois que o touro é morto, o matador volta para
pegar o chapéu, que é arremessado na arena com o cartão do homem
que estava com ele, ou com algum presente dentro dele nos casos em
que o homem veio preparado para ser homenageado. Pelas regras da
etiqueta, o presente é obrigatório, a menos que a dedicatória seja entre
amigos que compartilham a mesma profissão.
Brío: genialidade e vivacidade.
Bronca: protesto barulhento em sinal de reprovação.
Bronco: touro selvagem, nervoso, imprevisível e difícil.
Buey: bezerro ou boi, ou um touro que é pesado e que age como um boi.
Bulto: fardo; o homem em vez do pano. Um touro que mira o fardo não
presta atenção na capa nem na muleta, mesmo quando são muito bem
manuseadas, e prefere em vez disso atacar o homem. Um touro que faz
isso quase sempre teve a chance de lutar antes como um bezerro na
fazenda ou numa arena de província onde não foi morto, o que
desrespeita as regras.
Burladero: abrigo feito de tábuas de madeira, próximo do curral ou da
barrera, usado por toureiros e vaqueiros caso sejam perseguidos pelo
touro.
Burriciegos: touros com problemas de visão. Eles podem ser míopes,
hipermetropes ou ter a visão turva. É possível fazer uma boa luta contra
um touro hipermetrope se o matador não tiver medo de chegar bem
perto do touro e o acompanhar de modo que o animal não perca o pano
de vista ao se virar depois de um ataque. Touros míopes são muito
perigosos porque eles atacam de repente e muito rápido, de uma
distância incomum, e avançam contra o maior objeto que atrair sua
atenção. E é quase impossível ter uma boa luta com touros de visão
turva, causada quase sempre pelo embaçamento dos olhos ao longo da
luta nos casos em que o touro está acima do peso e o dia está quente, ou
quando o touro se suja com as vísceras do cavalo depois de dar uma
chifrada.
C
Caballero em Plaza: toureiro espanhol ou português montando um cavalo
puro-sangue treinado que, com a ajuda de homens a pé que manuseiam
capas para posicionar o touro, crava as banderillas usando uma das mãos
de cada vez ou ambas ao mesmo tempo e mata o touro usando um
dardo sem apear do cavalo. Esses cavaleiros também são chamados de
rejoneadores devido ao rejón, ou dardo que eles usam. Esse dardo é
muito afiado, fino, com ponta semelhante à de um punhal, e fica
posicionado na extremidade de uma lança que foi parcialmente cortada
de modo que ela quebre no momento em que o dardo é inserido no
touro, assim o dardo afunda mais à medida que o touro cabeceia, e ele
morre de um golpe que com frequência parece insignificante. A
habilidade que o toureiro precisa ter com o cavalo é enorme e as
manobras são complicadas e difíceis, mas depois de ver uma tourada
como essa algumas vezes, fica a impressão de que ela não tem o mesmo
apelo da tourada tradicional pois o homem não corre perigo nenhum. É
o cavalo que assume os riscos, não o cavaleiro; como o cavalo está em
movimento toda vez que se aproxima do touro, qualquer ferimento que
ele sofra será devido à falta de bom senso ou de habilidade do cavaleiro,
e não será o
tipo de ferimento que derruba o cavalo no chão e expõe o cavaleiro. O
touro também é ferido e se exaure rápido por causa dos ferimentos
profundos causados pelo dardo, que costumam atingir a área proibida do
pescoço. Além disso, como o cavalo, depois dos primeiros dez metros,
pode sempre ser mais rápido que o touro, a tourada se torna uma
perseguição em que um animal com uma velocidade superior foge de
outro menos rápido, com o animal que persegue sendo apunhalado por
um toureiro a cavalo. Isso é o oposto do que diz a teoria das touradas a
pé, em que o toureiro deve manter sua posição durante o ataque do
touro e enganar o animal com o movimento do pano que tem nas mãos.
Na tourada a cavalo, o homem usa o cavalo como isca para provocar o
ataque do touro, geralmente aproximando-se do touro por trás, mas a
isca está sempre em movimento e, quanto mais vejo esse tipo de
tourada, mais me parece monótono. As habilidades exibidas no controle
do cavalo são sempre admiráveis e o grau de treinamento dos cavalos é
incrível, mas o negócio todo parece mais um espetáculo de circo do que
uma tourada de verdade.
Caballo: cavalo. Os cavalos dos picadores também são chamados de pencos
ou, mais literalmente, rocinantes, e mais uma variedade de nomes
pejorativos como pangaré, pileca, pilungo etc.
Cabestros: bois treinados para ajudar com os touros. Quanto mais velho e
experiente for um boi desses, mais valioso e útil ele será.
Cabeza: cabeça.
Cabeza a rabo: passe em que o touro passa todo o corpo por baixo da
muleta, da cabeça até o rabo.
Cabezada: golpe com a cabeça.
Cachete: outro termo para o sacrifício do touro com a puntilla, quando o
animal já não está mais em pé.
Cachetero: aquele que dá o coup de grâce com a puntilla.
Caída: queda do picador quando seu cavalo é derrubado pelo touro.
Também é chamado de caída o golpe com a espada que atinge uma
parte mais baixa do que devia no pescoço do animal, sem a intenção de
ser um bajonazo.
Calle: rua; os piores toureiros, em geral, são aqueles que são sempre vistos
nas ruas. Na Espanha, se alguém está sempre na rua é porque não tem
nenhum lugar melhor para ir e, se tiver, então não é bem-vindo.
Callejón: corredor entre o muro de madeira, ou barrera, que cerca a arena
e a primeira fileira de assentos.
Cambio: mudança. Um passe com a capa ou a muleta em que o toureiro,
depois de atrair o ataque do touro com o pano, muda a direção do
animal com um movimento do pano, de modo que o animal que
passaria por um dos lados do homem acaba passando pelo outro. A
muleta também pode ser mudada de uma das mãos para a outra durante
um cambio, fazendo o touro dobrar o próprio corpo e parar no lugar. Às
vezes, o homem muda a muleta de uma das mãos para a outra que está
posicionada nas costas. Isso é só um enfeite e não faz diferença para o
touro. Nas banderillas, o cambio é uma finta feita com o corpo para
mudar a direção do touro; ela foi descrita em detalhes neste livro.
Camelo: falso; um toureiro que usa de artimanhas para dar a impressão de
que trabalha perto do touro quando, na verdade, ele nunca assume
nenhum risco.
Campo: o interior. Faenas del campo são todas as operações no processo
de criar, rotular, testar, conduzir, selecionar, enjaular e transportar os
touros desde as fazendas.
Capa ou capote: capa usada nas touradas. Com o mesmo formato das
capas mais comuns que são usadas no inverno da Espanha, elas
geralmente são feitas de seda crua de um lado e de percal do outro,
pesadas, duras e reforçadas na gola, com cor de cereja na parte externa e
amarela na parte interna. Uma boa capa de tourada custa 250 pesetas.
Elas são pesadas e, na parte de baixo, pequenas rolhas de cortiça são
costuradas no tecido da capa que os matadores usam. Elas servem para
que o matador levante as extremidades da capa e segure com apenas
uma das mãos enquanto agita a capa com as duas mãos.
Caparacón: proteção semelhante a um colchão que cobre o peito e a
barriga do cavalo usado pelo picador.
Capea: tourada informal em praças de cidadezinhas com amadores e
aspirantes a toureiro. E também uma paródia da tourada oficial que
ocorre em partes da França ou em locais onde o sacrifício do touro é
proibido; nesse tipo de tourada, não há picadores e o sacrifício do touro
é simulado.
Capilla: capela na praça de touros usada pelos toureiros para rezar antes de
entrar na arena.
Capote de brega: capa da tourada como descrita num verbete anterior.
Capote de paseo: capa luxuosa que o toureiro usa ao entrar na arena. Ela é
carregada de brocados de ouro ou prata e custa algo entre 1.500 e 25.000
pesetas.
Cargar la suerte: primeiro movimento dos braços feito pelo matador
quando o touro se aproxima do pano em que ele afasta o pano do touro
a fim de distanciá-lo de si.
Carpintero: carpinteiro da praça de touros que fica no callejón pronto para
arrumar qualquer dano à barrera ou aos portões da arena.
Carril: rodeira, sulco ou trilho de trem; um carril nas touradas é um touro
que ataca em linha reta, como se escorregasse por uma canaleta ou
deslizasse sobre trilhos, permitindo que o matador exiba o máximo de
seu brilhantismo.
Cartel: programação de uma tourada. Também pode significar o tamanho
da fama que um toureiro tem numa determinada localidade. Por
exemplo, você pergunta para um amigo que trabalha no ramo: “Qual é o
seu cartel em Málaga?”. “Maravilhoso; em Málaga, ninguém tem mais
cartel do que eu. Meu cartel é imensurável.” Vale registrar que, na sua
última aparição em Málaga, ele pode ter sido expulso da cidade por
espectadores frustrados e furiosos.
Carteles: cartazes que anunciam as touradas.
Castigaderas: lanças longas usadas na condução e na separação dos touros
por várias passarelas e corredores dos currais para fazê-los ocupar suas
baias antes da luta.
Castoreno ou castor: chapéu largo com pompom na lateral usado pelo
picador.
Cazar: matar o touro de maneira traiçoeira e enganosa com a espada, sem
que o homem se aproxime de fato do animal.
Ceñido: próximo do touro.
Ceñirse: aproximar-se. Usado para se referir aos touros que passam tão
perto do toureiro quanto o toureiro permitir, aproximando-se mais a
cada ataque. Em relação ao homem, diz-se ciñe quando ele trabalha
muito próximo do animal.
Cerca: perto; como na frase: perto dos chifres.
Cerrar: fechar. Cerrar el toro: trazer o touro para perto da barrera; o
oposto de abrir. O toureiro fica encerrado en tablas quando ele provoca o
ataque do touro próximo da barrera de modo que o touro o impede de
escapar por um lado e a barrera o impede de escapar pelo outro.
Cerveza: cerveja; a cerveja de barril é boa em qualquer parte de Madri,
mas a melhor é encontrada na Cervecería Alvarez, na calle Victoria. A
cerveja de barril é servida em copos de meio litro que são chamados de
dobles ou em copos de um quarto de litro chamados de cañas, cañitas ou
medias. As cervejarias de Madri foram fundadas por alemães e as
cervejas são as melhores do continente, depois das alemãs e das tchecas.
A melhor cerveja de garrafa de Madri é a Aguilar. Nas províncias, boas
cervejas são fabricadas em Santander, a Cruz Blanca, e em San Sebastián.
Na segunda cidade, a melhor cerveja que bebi foi no Café de Madrid, no
Café de la Marina e no Café Kutz. Em Valência, a melhor cerveja de
barril que bebi na vida foi no Hotel Valência, onde ela é servida
trincando de tão gelada e em grandes jarras de vidro. A co-
mida nesse hotel, que tem quartos muito modestos, é excelente. Em
Pamplona, a melhor cerveja fica no Café Kutz e no Café Iruña. Eu não
recomendaria beber cerveja em outros cafés. Bebi cervejas de barril
excelentes em Palência, Vigo e La Coruña, mas nunca encontrei uma
boa cerveja de barril em nenhuma cidade pequena da Espanha.
Cerviguillo: parte alta do pescoço do touro onde a corcova de músculos
forma o chamado morillo, uma espécie de escudo do pescoço.
Chato: de nariz arrebitado.
Chico: pequeno; também significa jovem. Os irmãos mais novos dos
toureiros geralmente são chamados pelo nome da família, ou pelo nome
profissional, seguido de Chico: Armillita Chico, Amorós Chico etc.
Chicuelinas: passe com a capa inventado por Manuel “Chicuelo” Jiménez.
O homem apresenta a capa para o touro e, quando o touro ataca e sofre
o passe, o homem, enquanto o touro faz a volta, dá uma pirueta fazendo
a capa enrolar no próprio corpo. Ao fim da pirueta, ele está de frente
para o touro pronto para o próximo passe.
Chiquero: baia fechada onde o touro espera para entrar na arena.
Choto: bezerro que ainda é amamentado; termo depreciativo para
descrever touros pequenos demais e novos demais.
Citar: provocar o touro para que ele ataque.
Clarines: trombetas que, sob as ordens do presidente, dão o sinal para
anunciar as trocas ao longo da luta.
Claro: touro simples e fácil de lidar.
Cobarde: touro ou toureiro covarde.
Cobrar: el mano de cobrar é a mão direita.
Cogida: arremesso que o homem sofre ao ser chifrado pelo touro;
significa, literalmente, o ato de pegar; se o touro pega, ele arremessa.
Cojo: manco; um touro que esteja mancando na arena deve ser retirado.
Os espectadores começam a gritar “Cojo!” assim que percebem a
manqueira.
Cojones: testículos; dizem que um toureiro corajoso tem um belo par
desses. Num toureiro covarde, dizem que eles não existem. Os testículos
do touro são chamados de criadillas e, preparados em qualquer uma das
formas que usam para fazer um pão doce, eles são uma iguaria. Durante
o sacrifício do quinto touro, às vezes as criadillas do primeiro touro são
servidas no camarote real. Nos seus discursos, Primo de Rivera gostava
tanto de fazer referência às virtudes masculinas que diziam que ele tinha
comido criadillas demais e elas acabaram afetando seu cérebro.
Cola: rabo do touro; geralmente chamado de rabo. Cola pode se referir
também à fila em frente à bilheteria.
Colada: instante em que o toureiro percebe que sua posição é
insustentável, seja por administrar mal o pano ou porque o touro não
presta nenhuma atenção nele, ou ignora o pano para atacar o homem;
nesse caso o homem deve fazer de tudo para se salvar do ataque.
Coleando: agarrar o rabo do touro e torcê-lo na direção da cabeça do
animal. Isso provoca uma dor enorme no touro e com frequência
machuca sua coluna. Essa manobra só é permitida quando o touro está
chifrando ou tentando chifrar um homem caído no chão.
Coleta: rabicho enrolado, curto e bem amarrado que o toureiro usa na
parte de trás da cabeça para fixar a mona, uma espécie de botão preto,
liso e oco, coberto de seda, com o dobro do tamanho de uma moeda de
um dólar, cuja função é segurar o chapéu. Antigamente, todos os
toureiros usavam grampos para prender e esconder o chumaço de
cabelo quando não estavam na arena. Agora, eles descobriram que
podem fixar uma mona e uma coleta ao mesmo tempo com um colchete
na parte de trás da cabeça quando se arrumam para lutar. Hoje, você só
vê o rabicho, que já foi uma marca importante dos toureiros, nas cabeças
dos jovens aspirantes a toureiro nas províncias.
Colocar: um homem está bien colocado quando ele se posiciona
corretamente na arena em todos os atos da tourada. É uma expressão
usada também para se referir à colocação da espada, da lança e das
banderillas no touro. Um toureiro também está bien colocado quando
ele finalmente é reconhecido na profissão.
Compuesto: composto; manter a postura reta enquanto o touro ataca.
Confianza: confiança; peón de confianza: banderillero particular que
representa e pode até aconselhar o matador.
Confiar: tornar-se confiante na lida com o touro.
Conocedor: profissional que supervisiona os touros bravos na propriedade
de um criador.
Consentirse: ficar muito próximo do touro com o corpo ou com o pano
para forçar um ataque e, em seguida, continuar próximo e sustentar o
ataque do touro.
Contrabarrera: segunda fileira de assentos na praça de touros.
Contratas: contratos assinados pelos toureiros.
Contratista de Caballos: fornecedor de cavalos; responsável por entregar os
cavalos usados numa luta em troca de um preço fixo.
Cornada: ferimento causado por um chifre; um ferimento de verdade,
diferente de um varetazo, ou arranhão. Uma cornada de caballo é uma
cornada enorme, o tipo de ferimento que o touro causa no peito de um
cavalo.
Cornalón: touro com os chifres excepcionalmente grandes.
Corniabierto: de chifres excepcionalmente largos.
Corniavacado: de chifres de vaca. Touro que tem os chifres são virados
para cima e para trás.
Corniveleto: chifres altos e retos.
Corral: recinto adjacente à arena onde os touros são mantidos
imediatamente antes de serem enfrentados. Eles recebem comida, sal e
água.
Correr: termo usado para se referir à corrida que o touro dá ao ser
provocado pelo banderillero assim que entra na arena.
Corrida ou Corrida de Toros: tourada espanhola.
Corrida de Novillos Toros: luta em que são usados touros jovens ou
grandes com algum tipo de defeito.
Corta: estocada em que um pouco mais do que a metade da espada
penetra no corpo do touro.
Cortar: toureiros geralmente sofrem pequenos cortes nas mãos causados
pela espada, quando manuseiam a espada e a muleta. Cortar la oreja:
cortar a orelha do touro. Cortar la coleta: cortar o rabicho ou se
aposentar.
Cortar terreno: dizem que o touro corta terreno quando, depois que o
toureiro provocou um ataque e vai na direção do touro, mas na diagonal,
para colocar as banderillas, por exemplo, no ponto em que as duas
trajetórias se encontram, o touro muda de direção numa tentativa de
chifrar o homem; ganhar terreno correndo na diagonal.
Corto; vestido corto: usar a jaqueta curta dos pastores andaluzes.
Antigamente, o termo se referia a toureiros que usavam seus trajes fora
da arena.
Crecer: aumentar; touro cuja coragem aumenta ao ser castigado.
Cruz: ponto de interseção entre a linha no alto das escápulas do touro e a
coluna vertebral. Lugar onde a espada deve ser cravada se o matador
realizar um sacrifício perfeito. Cruz se refere também ao cruzamento do
braço que segura a espada com o braço que segura a muleta no
momento em que o matador se aproxima do touro para matar. O
toureiro cruza bem quando a mão esquerda move o pano devagar e mais
próximo do chão, de dentro para fora, movimento que acentua a cruz
formada com o outro braço e que assim controla bem o touro enquanto
crava a espada. Fernando Gómez, pai de Los Gallos, teria sido o primeiro
a dizer que o toureiro que não cruza dessa forma se torna
imediatamente amaldiçoado. Outro ditado afirma que a primeira vez
que você não cruzar será sua primeira viagem ao hospital.
Cuadrar: enquadrar o touro para o sacrifício; patas dianteiras e traseiras
alinhadas, e cabeça nem muito alta nem muito baixa. Nas banderillas:
momento em que o touro baixa a cabeça para chifrar e o homem junta
os pés, com as mãos unidas, e crava os bastões no touro.
Cuadrilla: trupe de toureiros sob as ordens de um matador, incluindo
picadores e banderilleros, um dos quais atua como puntillero.
Cuarteo: forma mais comum de cravar as banderillas, descrita neste livro;
uma finta com o corpo ou uma esquiva usada para não se aproximar do
touro em linha reta na hora de matar.
Cuidado: cuidado!, quando é uma exclamação. Termo descritivo usado
para se referir a um touro que adquiriu conhecimento ao longo da luta e
se tornou perigoso.
Cuidando la línea: defendendo a linha; quando o toureiro cuida para que
seus movimentos sejam esteticamente elegantes enquanto lida com o
touro.
Cumbre: ápice; torero cumbre: o melhor toureiro possível; faena cumbre:
um trabalho com a muleta absolutamente superior.
Cuna: posição diante da cabeça do touro, entre os chifres, que serve como
refúgio temporário para um toureiro que se encontra numa situação
desesperadamente perigosa.
D
Defenderse: defender; um touro se defende quando ele se recusa a atacar,
mas presta atenção em tudo e chifra qualquer coisa que se aproxime.
Dehesa: terra para pasto.
Déjalo: não mexa com ele! Não o incomode. Gritado pelo toureiro para os
peones quando eles conseguem posicionar o touro ou quando o matador
não quer que mexam com o touro para que ele não se canse ainda mais
com as capas.
Delantal: passe com a capa inventado por Chicuelo em que a capa é
balançada na frente do homem, esvoaçando como se fosse um avental
numa mulher grávida ao vento.
Delantera de tendido: terceira fileira de assentos na arena, atrás da contra-
barrera e da barrera. Delantera de grada: primeira fileira de assentos na
galeria.
Delantero: par de banderillas colocadas num ponto bem posterior ao lugar
onde deveriam ser cravadas.
Derecho: direito; mano derecha: mão direita.
Derramar la vista: olhar disperso; touro que fixa rápido o olhar em vários
objetos diferentes antes de subitamente definir um e atacar.
Derrame: hemorragia, geralmente visível na boca; se o sangue é claro ou
espumoso, isso sempre é um sinal de que a espada foi mal colocada e
atingiu os pulmões. Um touro pode sangrar pela boca quando a espada é
cravada corretamente, mas é muito raro.
Derribar: derrubar; na perseguição a um touro jovem que está na fazenda,
um homem a cavalo armado com uma lança longa espeta a ponta da
lança perto da base do rabo do touro, que perde o equilíbrio e cai no
chão.
Derrote: golpe alto que o touro dá com os chifres.
Desarmar: o matador é desarmado ao perder a muleta quando o chifre
enrosca no pano e o touro o arremessa longe ou quando o touro
deliberadamente dá cabeçadas altas no momento em que o homem se
aproxima para o sacrifício.
Desarrollador: onde a carne do touro é preparada para ser vendida depois
da luta.
Descabellar: fazer o descabello significa matar o touro pela frente, após ele
ter sido mortalmente ferido por uma estocada, cravando a ponta da
espada entre a base do crânio e a primeira vértebra, de modo que a
medula espinhal seja cortada. Esse é um coup de grâce executado pelo
matador enquanto o touro ainda está de pé. Se o touro estiver quase
morto e com a cabeça baixa, o golpe não será difícil, pois com a cabeça
perto do chão, o espaço entre a vértebra e o crânio fica aberto. No
entanto, muitos matadores que não se importam de correr o risco de se
aproximar do touro e desviar dos chifres mais uma vez, depois de ter
administrado uma primeira estocada, seja ela mortal ou não, tentam
executar o descabello num touro que não está de maneira nenhuma
moribundo e, como o animal precisa ser levado a baixar a cabeça e pode
cabecear para cima quando ver ou sentir a espada, o descabello se torna
então difícil e perigoso. É perigoso tanto para os espectadores quanto
para o matador, porque o touro, com uma cabeceada, consegue
arremessar a espada a dez metros de altura ou mais. Espadas que foram
arremessadas dessa forma por touros chegaram a matar espectadores em
arenas espanholas. Um visitante cubano em Biarritz morreu alguns anos
atrás na praça de touros em Bayonne, na França, ferido por uma espada
com que Antonio Márquez estava tentando fazer um descabello.
Márquez foi acusado de homicídio culposo, mas acabou sendo absolvido.
Em 1930, um espectador morreu atingido por uma espada arremessada
em Tolosa, na Espanha, e o matador que estava tentando executar o
descabello era Manolo Martínez. A espada, que atingiu o homem nas
costas, atravessou o corpo e foi removida com dificuldade por dois
homens; ambos ficaram com as mãos muito feridas pela lâmina. A
prática de tentar um descabello num touro que ainda está forte e que
precisaria de mais uma estocada para ser morto ou ferido mortalmente é
uma das piores e mais vergonhosas práticas da tourada moderna. A
maioria dos desastres mais escandalosos e vergonhosos protagonizados
por toureiros acometidos de uma covardia súbita, como Cagancho, Niño
de la Palma e Chicuelo, se deve ao fato de eles tentarem descabellar um
touro que estava em condições de se defender contra o golpe. Na
maneira correta de descabellar, a muleta é carregada mais perto do chão
para forçar o touro a baixar o focinho. O matador pode espetar o focinho
do touro com a ponta da muleta ou com a espada para forçá-lo a baixar o
focinho. Quando a ponta da espada usada no descabello, cuja lâmina tem
a ponta reta e não curvada para baixo como é mais comum, é cravada da
maneira certa, ela atinge e corta a medula espinhal e o touro cai tão
subitamente quanto uma luz que se apaga quando um interruptor é
acionado para desligar uma lâmpada.
Descansar: descanso é o intervalo entre o terceiro e o quarto touro, que
ocorre em algumas praças de touros enquanto a arena está sendo
molhada e alisada. Um homem também pode fazer um touro descansar
por um momento entre duas séries de passes com a muleta, se achar que
o touro está sem fôlego.
Descompuesto: que se descompôs por nervosismo.
Desconfiado: preocupado ou sem confiança.
Descordando: estocada ou golpe de espada que penetra por acidente entre
duas vértebras, corta a medula espinhal e derruba o touro
instantaneamente. Não deve ser confundido com o descabello ou com o
golpe da puntilla, que corta a medula espinhal deliberadamente.
Descubrirse: descobrir; em relação ao touro, significa que o animal baixa
bem a cabeça para deixar acessível o ponto em que a espada deve ser
cravada. Em relação ao homem, significa ficar exposto, sem a proteção
do pano quando está lidando com o touro.
Desgarradura: rasgo no corpo do touro feito por um picador
desqualificado ou desalmado.
Desigual: toureiro que não tem consistência em suas apresentações;
brilhante num dia e entediante no outro.
Despedida: apresentação de despedida de um toureiro; deve ser levada tão
a sério quanto a apresentação de despedida de um cantor. A verdadeira
última performance de um toureiro geralmente é um negócio triste, pois
o homem tem algumas limitações que o levam a se aposentar, ou ele se
aposenta para viver do dinheiro que ganhou e vai ter muito cuidado para
não se arriscar na última chance que os touros terão de acabar com ele.
Despedir: quando o homem com a capa ou a muleta manda o touro para
longe ao fim de um passe. A manobra de se afastar do touro executada
pelo picador ao fim de um ataque, quando o picador faz o cavalo se virar.
Despejo: momento em que o público deve desocupar a arena. Os
espectadores não têm mais permissão para desfilar na arena de Madri
antes do início da luta.
Desplante: qualquer gesto teatral executado por um toureiro.
Destronque: desgaste do touro causado por viradas repentinas da coluna
vertebral, quando o toureiro usa a capa ou a muleta para obrigar o
animal a fazer curvas em espaços muito pequenos.
Diestro: habilidoso; termo genérico para se referir ao matador.
Divisa: cores adotadas por um criador de touros usadas em um ferro com
o formato de um pequeno arpão e colocado no morillo do touro no
momento em que ele entra na arena.
División de Plaza: dividir a arena em duas partes, fazendo a barrera cortar
o círculo ao meio e exibir duas touradas ao mesmo tempo. É o tipo de
coisa que não se vê mais desde que as touradas foram formalizadas, a
não ser muito de vez em quando em lutas noturnas, para compensar a
falta de atrações, mais como uma curiosidade e uma relíquia de outros
tempos.
Doblar: virar; um touro que vira depois de atacar e volta a atacar;
Doblando con el: um toureiro que vira com o touro mantendo a capa ou
a muleta na frente do touro para manter a atenção de um animal que
tem a tendência de se dispersar depois de cada ataque.
Doctorado: gíria para se referir à alternativa; fazer o doutorado em
tauromaquia.
Dominio: habilidade de dominar o touro.
Duro: duro, rígido e resistente. Gíria para a estrutura óssea que a espada
pode atingir na hora do sacrifício; significa também a moeda de cinco
pesetas.
E
Embestir: atacar; embestir bien: seguir bem o pano; atacar com vigor e
determinação.
Embolado: touro, boi ou vaca cujos chifres foram cobertos com uma capa
de couro que é grossa nas extremidades para tornar a ponta cega.
Embroque: espaço entre os chifres do touro; estar entre os chifres do
touro.
Emmendar: corrigir ou melhorar a posição em que se enfrenta o touro;
mudar um lugar ou passe que não está funcionando por outro que é
mais bem-sucedido.
Empapar: centralizar bem a cabeça do touro no meio do pano da capa ou
da muleta ao receber um ataque, de modo que o animal não consegue
ver nada além das pregas do pano que se move à sua frente.
Emplazarse: quando o touro assume uma posição fixa no meio da arena e
se recusa a deixá-la.
Empresa: organização responsável por promover touradas numa
determinada arena.
Encajonamiento: quando os touros são colocados nos nichos ou nas jaulas
individuais para os levarmos até a arena.
Encierro: condução dos animais a pé, cercados por bois, de um curral para
o curral da arena. Em Pamplona, a corrida dos touros pelas ruas com a
multidão correndo à frente deles, do curral até o extremo da cidade, para
dentro da ou cruzando a arena, até o curral da praça de touros. Os
touros que devem ser enfrentados à tarde correm pelas ruas às sete da
manhã no mesmo dia da luta.
Encorvado: arcado; toureiro que segura o pano com o corpo inclinado
para a frente a fim de fazer o touro passar o mais longe possível. Quanto
mais reta for a postura do homem, mais perto o touro vai passar de seu
corpo.
Enfermeria: sala de operação que faz parte de todas as arenas.
Enganchar: pegar qualquer coisa com o chifre e arremessá-la para o alto.
Engaño: qualquer coisa que serve para enganar o touro ou o espectador.
No primeiro caso, a capa e a muleta; no segundo, as artimanhas que dão
uma ideia de perigo que não existe de verdade.
Entablerarse: quando o touro assume uma posição que ele se recusa a
deixar, próximo da barrera.
Entero: inteiro; touro que chega ao momento do sacrifício sem ter sido
abrandado e enfraquecido pelos embates com os picadores e os
banderilleros.
Entrar a matar: aproximar-se para matar.
Eral: touro com dois anos de idade.
Erguido: reto e determinado; toureiro que mantém sua postura ao lidar
com o touro.
Espada: usado também para se referir ao próprio matador.
Espalda: ombros ou costas do homem. Quando dizem que um homem
trabalha de costas é para se referir a um sodomita.
Estocada: golpe da espada ou estocada em que o matador se aproxima pela
frente para tentar cravar a espada no alto entre as escápulas do touro.
Estoque: a espada usada na tourada. Ela tem um punho de chumbo
revestido de camurça, uma proteção transversal a cinco centímetros do
punho e tanto o punho quanto a proteção são envoltos com uma flanela
vermelha. Ela não tem um punho cravado de joias, como afirma o livro
Virgin Spain. A lâmina tem cerca de setenta e cinco centímetros de
comprimento e a ponta curvada para baixo com o propósito de penetrar
melhor e de alcançar o ponto entre as costelas, vértebras, escápulas e
outras estruturas ósseas que possa encontrar pelo caminho. Nas espadas
modernas, uma, duas ou três ranhuras na parte de trás da lâmina têm a
função de permitir a entrada de ar no ferimento causado pela espada,
senão a lâmina da espada vira uma espécie de tampão para o ferimento
que causa. As melhores espadas são feitas em Valência, e os preços
variam de acordo com o número de ranhuras e com a qualidade do aço
usado. O equipamento tradicional de um matador é formado por quatro
espadas comuns para o sacrifício e uma espada de ponta reta com a
extremidade ligeiramente mais larga para o descabello. As lâminas de
todas as espadas, com exceção da que é usada no descabello, são
extremamente afiadas da ponta até a metade da lâmina. Elas são
guardadas em bainhas de couro macio e o conjunto inteiro fica num
estojo de couro com detalhes em relevo.
Estribo: estribo de metal usado pelo picador; e também a viga de madeira
a meio metro do chão que percorre toda a parte interna da barrera e que
ajuda os toureiros a saltar a cerca de madeira.
Extraño: movimento repentino para um lado ou para o outro, feito pelo
touro ou pelo homem.
F
Facultades: em relação ao homem, habilidades físicas ou qualidades; em
relação ao touro, preservar suas faculdades significa manter suas
capacidades intactas apesar dos castigos impostos ao animal.
Facultativo; Parte Facultativo: diagnóstico oficial enviado ao presidente a
respeito do ferimento ou dos ferimentos de um toureiro, fornecido pelo
cirurgião responsável pela enfermaria depois de ter operado ou tratado
do homem.
Faena: soma dos movimentos feitos pelo matador com a muleta no último
terço da tourada; significa também qualquer trabalho realizado com o
touro; faena de campo é qualquer etapa no processo de criação de
touros.
Faja: faixa usada na cintura como um cinto.
Falsa: falso, incorreto, enganoso. Salidas em falsa são tentativas de cravar
as banderillas em que o homem passa pela cabeça do touro sem cravar
os bastões, seja porque o touro não atacou, nesse caso a atitude do
homem foi correta, seja porque o homem cometeu um erro de cálculo.
Às vezes, elas são feitas com muita elegância para mostrar como o
matador avalia a distância entre ele e o touro.
Farol: passe com a capa que começa como uma veronica com as duas
mãos segurando o pano, mas quando o touro passa pelo homem, a capa
envolve a cabeça do homem e parte das costas à medida que ele gira
com o touro para acompanhar o movimento da capa.
Farpa: banderilla longa e pesada que os toureiros portugueses usam, a
cavalo, para cravar no touro.
Fenómeno: fenômeno, prodígio; era usado a princípio para designar um
jovem matador que tivesse realizado proezas na sua profissão, mas agora
é usado com sarcasmo para descrever um toureiro famoso muito mais
por causa da publicidade que recebe do que pela experiência e pelas
habilidades que tem.
Fiera: besta selvagem; gíria para se referir ao touro. Também usada como
gíria para se referir a uma mulher fácil, que outros chamariam de vadia.
Fiesta: período de festas ou chance de se divertir. Fiesta de los toros: a
tourada. Fiesta nacional: tourada; usada de maneira irônica por
escritores que são contra as corridas porque simbolizam o atraso da
Espanha em relação a outras nações europeias.
Fijar: cortar a trajetória do touro e fixá-lo num determinado lugar.
Filigranas: manobras extravagantes com o touro; refinamentos artísticos
ou qualquer passe ou manobra numa tourada.
Flaco; toro flaco: touro que é magro, flácido ou inconsistente. Que não
tem fi bra.
Flojo: fraco, mais ou menos, pouco convincente, sem ânimo.
Franco: touro nobre fácil de lidar.
Frenar: frear; touro que reduz a velocidade de repente enquanto passa pelo
homem porque quer parar e chifrar em vez de seguir a trajetória do
ataque; um dos touros mais difíceis de enfrentar porque ele vai para o
passe sem dar nenhuma indicação de que vai frear.
Frente par detrás: passe com a capa em que o homem vira de costas para o
touro, mas seu corpo está coberto pela capa, que está com um dos lados
estendido pelas duas mãos. Na verdade, é uma forma da veronica feita de
costas para o touro.
Fresco: calmamente, sem vergonha, cínico.
Fuera: sai fora! Fora daqui! Dá o fora daqui! O significado muda de acordo
com o grau de veemência com que a palavra é dita.
G
Gachis: garotas com vários parceiros sexuais; prostitutas.
Gacho: chifres que apontam para baixo.
Galleando: quando o homem, com a capa nas costas, como que vestido
com ela, olha por sobre o ombro na direção do touro e se move numa
série de zigue-zagues, fintas e desvios, levando o touro a acompanhar os
movimentos da parte baixa da capa.
Gallo: galo de briga; nome profissional da grande família Gómez de
toureiros ciganos.
Ganadería: fazenda onde os touros bravos são criados; todos os touros,
vacas, novilhos e bezerros de uma fazenda.
Ganadero: criador de touros bravos.
Ganar terreno: touro que força o homem a ceder terreno toda vez que
ataca.
Garrocha: sinônimo para a lança usada pelo picador; uma grande vara
usada para saltar por sobre os touros em touradas do passado.
Gente: pessoas; gente coletudo ou cidadãos de rabicho se refere aos
toureiros.
Ginete: cavaleiro, picador; buen ginete: bom cavaleiro.
Golletazo: golpe de espada na lateral do pescoço que perfura o pulmão e
causa a morte quase instantânea do touro, sufocado pelo sangue;
manobra para matar touros usada por toureiros apavorados demais para
se aproximar dos chifres; essa estocada só se justifica nos touros que já
receberam um ou dois golpes corretos da espada e que se defenderam
tão bem, evitando expor o lugar entre os ombros onde a espada deve ser
cravada, arrancando a muleta das mãos do toureiro quando ele se
aproximou e se recusando a atacar, que a única saída possível para o
homem é executar o golletazo.
Gótico; un niño gótico: na tourada, um garoto convencido e afetado,
como é afetada a arquitetura gótica.
Gracia: graça e elegância mesmo sob perigo; gracia gitana: elegância
cigana.
Grado: balcão ou assentos cobertos numa praça de touros, acima dos
assentos descobertos, ou tendidos, e dos camarotes, ou palcos.
Grotesca: grotesco; o oposto de gracioso.
Guardia: polícia municipal; que não é levada a sério nem por ela mesma.
Guardia Civil: polícia nacional, levada muito a sério; armada com sabres
e carabinas Mauser de 7 mm, elas são, ou eram, modelo de uma força
policial disciplinada e implacável.
H
Hachazo: golpe que o touro dá com os chifres.
Herida: ferimento.
Herradera: marcação de novilhos na fazenda.
Herradura: ferradura; cortar la herradura: cortar a ferradura, uma
estocada bem colocada, bem no alto, em que a lâmina, uma vez dentro
do touro, segue uma trajetória oblíqua para baixo, na direção do peito do
touro, cortando a pleura e causando morte imediata sem qualquer
hemorragia externa.
Hierro: ferro de marcar; marca de um criador de touros ou de um criador
de touros bravos.
Hombre: homem; como uma exclamação, expressa surpresa, prazer,
choque, reprovação ou alegria, de acordo com o tom usado. Muy
hombre: homem corajoso, isto é, que tem huevos, cojones etc.
Hondo: profundo; estocada honda: espada cravada até o punho.
Hueso: osso; como gíria, significa resistente.
Huevos: ovos; gíria para testículos, assim como outros dizem colhões.
Huir: fugir; vergonhoso tanto para touros quanto para homens.
Hule: lona; gíria para a mesa de operação.
Humillar: baixar a cabeça.
I
Ida: estocada em que a lâmina faz uma trajetória descendente acentuada
sem que ela seja perpendicular. Uma estocada como essa, embora seja
bem colocada, pode causar hemorragia pela boca nos casos em que a
lâmina atinge os pulmões.
Ida y vuelta; allez et retour: viagem de ida e volta; touro que faz a volta no
fim de um ataque para investir mais uma vez contra o toureiro em linha
reta. Perfeito para o toureiro que quer exibir seus talentos sem ter de
atrair o touro com a capa ou a muleta ao fim de cada investida.
Igualar: fazer o touro alinhar as patas dianteiras.
Inquieto: nervoso.
Izquierda: esquerda; mano izquierda: mão esquerda, chamada de zurda no
dialeto das arenas.
J
Jaca: cavalo, égua ou pônei; Jaca torera: uma égua tão bem treinada pelo
toureiro português Simão da Veiga que ele conseguia, montado nela,
cravar banderillas com as duas mãos sem encostar nas rédeas, com a
égua sendo guiada apenas pelas esporas e pela pressão dos joelhos.
Jalear: aplaudir.
Jaulones: nichos individuais ou jaulas em que os touros são transportados
da fazenda para a arena. A jaula é propriedade do criador, leva sua
marca, seu nome e seu endereço, e é devolvida ao fim da luta.
Jornalero: trabalhador; toureiro que mal consegue se sustentar
trabalhando na profissão.
Jugar: jogar; jugando con el toro: quando um ou mais matadores sem
capa, mas com as banderillas juntas numa das mãos, provocam o touro
numa série de ataques; correndo em zigue-zague ou vendo o quanto
podem se aproximar do touro sem provocar uma investida. Para fazer
isso de uma maneira interessante, é preciso ter muita elegância e saber
como o touro pensa.
Jurisdicción; momento em que o touro, durante um ataque, se aproxima
do homem e baixa a cabeça para chifrar. Tecnicamente é quando o touro
deixa seu território para entrar no território do toureiro, chegando ao
lugar onde o homem espera pelo animal com o pano.
K
Kilos: um quilo equivale a pouco mais de duas libras. Às vezes os touros
são pesados depois de serem mortos e antes de serem carneados, e
sempre são pesados depois de preparados como carne, com a pele
arrancada, cabeça e cascos separados, e todas as partes ruins da carne
descartadas. O touro que resta desse processo é chamado en canal e há
muitos anos a pesagem dos touros depois de carneados tem sido alvo de
críticas. Um touro bravo com quatro anos e meio de idade deve pesar
algo entre 295 e 340 quilos en canal, dependendo do tamanho e da raça
do animal; hoje, o peso mínimo oficial é 285 quilos. A pesagem da carne
ou en canal equivale a 52,5% do peso do animal vivo. Assim como, no
caso do dinheiro, apesar da moeda oficial ser a peseta e as pessoas nunca
falarem em pesetas para se referir a dinheiro numa conversa, mas sim em
reales, ou 25 centimos, um quarto de peseta, ou em duros, que equivale
a cinco pesetas; na pesagem de touros, quando as pessoas conversam,
elas falam em arrobas, uma unidade de peso que equivale a vinte e cinco
libras. Um touro tem seu peso calculado em arrobas de carne que ele vai
render depois de morto e carneado. Um touro de 26 arrobas vai render
pouco mais do que 291 quilos. Esse é o tamanho mínimo de um touro
para a arena para que assim o animal seja imponente o bastante para dar
emoção à corrida. O peso ideal para um touro bravo é de 26 a 30
arrobas, quando ele não foi engordado com cereais. Cada arroba entre 24
e 30 é crucial para definir a força, o tamanho e o poder destrutivo de um
touro, assim como ocorre nas categorias do boxe. Numa comparação,
podemos dizer que nos quesitos de força e de poder destrutivo, touros
com menos de 24 arrobas são pesos-moscas, pesos-galos e pesos-penas.
Touros de 24 a 25 arrobas são pesos-leves e meios-médios. Touros de 26
arrobas são pesos-médios e meios-pesados; de 27 a 30 arrobas são pesos-
pesados e, acima de 30 arrobas, chegam perto da categoria de Primo
Carnera. Uma cornada ou chifrada de um touro que pesa apenas 24
arrobas, se acertar o alvo, vai ser tão fatal quanto aquela dada por um
animal muito maior. É como um golpe de punhal sem muita força,
enquanto um touro de 30 arrobas dá o mesmo golpe com a força de um
bate-estaca. É um fato, no entanto, que um touro de 24 arrobas é
geralmente imaturo; com pouco mais de três anos de idade; e touros
dessa idade não sabem usar os chifres de maneira hábil, seja no ataque
ou na defesa. O touro ideal capaz de fazer frente ao toureiro, e assim
render uma corrida emocionante, deve ter pelo menos quatro anos e
meio de idade para ser maduro, e pesar, en canal, um mínimo de 25
arrobas. Quanto mais arrobas ele pesar além das 25, sem perder
velocidade e não simplesmente engordando mais, maior será a emoção e
maior será o mérito de qualquer trabalho realizado pelo homem na luta
com o animal. Para acompanhar as touradas com inteligência e ter uma
compreensão profunda de como funcionam, você precisa aprender a
pensar em arrobas assim como no boxe é preciso classificar os homens
nas muitas categorias oficiais de peso. Hoje, as touradas sofrem na mão
de criadores inescrupulosos que vendem touros jovens demais, leves
demais e imaturos demais, sem testar devidamente a coragem dos
animais, e dessa forma abusam da tolerância com que seus animais
subdimensionados são encarados, desde que sejam corajosos e capazes
de proporcionar uma corrida brilhante, ainda que desprovida de emoção.
L
Ladeada: para um lado; sobretudo em relação a uma estocada.
Lances: qualquer passe realizado com a capa.
Largas: passe que faz o touro se aproximar do homem, passar por ele e
depois se afastar, feito com a capa totalmente estendida e segurada pela
extremidade em apenas uma das mãos.
Lazar: laçar; usar o laço ou a corda do oeste norte-americano para apanhar
o gado, ou com o lazo amarrado a um peso numa das extremidades,
como é feito na América do Sul.
Levantado: primeira fase do touro ao entrar na arena, quando ele tenta
mandar todo mundo para fora do círculo sem concentrar o ataque em
ninguém.
Liar: enrolar, com um movimento do pulso esquerdo, o tecido da muleta
no bastão que dá suporta a ela, antes de perfilar o touro para executar o
sacrifício com a espada.
Librar: livrar; librar la acometida: escapar de um ataque do touro por meio
do trabalho com os pés ou por um passe improvisado com a muleta ou a
capa.
Libre de cacho: qualquer manobra realizada com o touro fora do alcance
dos chifres; pode ser a distância ou depois que os chifres passaram;
significa, literalmente, livre da possibilidade de ser pego.
Lidia: luta; toro de lidia: touro bravo. É também o nome do semanário
sobre touradas mais famoso e antigo que existe.
Lidiador: aquele que luta contra touros.
Ligereza: agilidade; uma das três qualidades necessárias para se tornar um
matador, de acordo com o grande Francisco Montés; as três são:
agilidade ou leveza dos pés, coragem e um conhecimento profundo do
ofício.
Llegar: chegar; descreve o momento em que o touro atinge o cavalo com
os chifres, apesar da lança do picador.
Lleno: arena cheia ou ingressos esgotados; todos os assentos da arena
ocupados.
M
Macheteo: cortar como se fosse com uma faca de bolo ou com uma
machete; macheteo por la cara é uma série de movimentos de um lado
para o outro com a muleta, com o homem recuando a pé se o touro
atacar, feitos para cansar os músculos no pescoço do touro e prepará-lo
para o sacrifício. É a forma mais simples e segura de cansar um touro
com a muleta e é usada pelos toureiros que não querem correr riscos ou
tentar qualquer manobra mais difícil.
Macho: másculo, masculino, superdotado de órgãos reprodutivos
masculinos; torero macho: toureiro cujo trabalho se baseia na coragem e
não numa técnica perfeita e no estilo, embora o estilo possa ser
desenvolvido.
Maestro: mestre em qualquer coisa; maneira pela qual os peones podem se
referir ao matador. Passou a ser usada de maneira sarcástica, sobretudo
em Madri. Você pode usar maestro para se dirigir a alguém mostrando
que não o respeita.
Maldito ou Maldita: xingamento usado para falar de um touro: “Maldita
seja a vaca que te pariu!.”
Maleante: patife ou trambiqueiro; o tipo de maleante mais comum numa
tourada é o batedor de carteiras ou carteirista. Esses cidadãos são
numerosos, extremamente habilidosos e tolerados no sentido de que a
polícia de Madri tem todos eles listados e, se você foi roubado e viu que
cara tinha o batedor de carteiras, a polícia pega centenas deles na rua ou
em casa e exibe todos eles para você. A melhor forma de evitá-los é
nunca andar de bonde nem de metrô, pois são os lugares onde o trabalho
deles é mais fácil. Eles têm uma qualidade positiva: eles não destroem
documentos pessoais nem passaportes, nem ficam com os documentos
guardados como outros bandidos; eles preferem pegar o dinheiro e
largar a carteira com os documentos numa caixa de correio numa
tabacaria ou numa dessas caixas de primeiros socorros embutidas na
linha do bonde. As carteiras podem ser recuperadas na agência geral dos
Correios. Pela minha experiência e pela de meus amigos como vítimas
dos batedores de carteiras na Espanha, devo dizer que esses senhores, na
sua área, combinam as mesmas qualidades que Montés listou como
sendo indispensáveis para um toureiro: leveza, coragem e um
conhecimento profundo de seu ofício.
Maleta: valise, literalmente; gíria para descrever um toureiro ruim ou
inferior.
Malo: ruim, imperfeito, defeituoso, doente, cruel, desagradável,
desprezível, péssimo, podre, sujo, fedido, nojento, desonesto, filho da
puta etc., dependendo das circunstâncias. Toro malo: touro com esses
atributos e outros defeitos inerentes, como a tendência de saltar por
sobre a barrera e atacar o público; escapar ao ver a capa etc.
Mamarracho: insulto lançado contra um touro insatisfatório; outros
diriam vagabundo, vadio, vaca ou bastardo.
Mancornar: jogar um novilho no chão segurando os chifres com as mãos e
usando o peso do corpo na manobra.
Mandar: comandar ou ordenar; numa tourada, significa fazer o touro
obedecer ao pano; dominar o touro com o pano.
Manejable: controlável; um touro com que é fácil de trabalhar.
Mano: mão; mano bajo: com a mão baixa; a maneira certa de manusear a
capa numa veronica. Manos se refere também às patas do touro.
Mansedumbre: touro que exibe passividade típica de um boi.
Manso: domesticado, tranquilo e manso; um touro que não tem o sangue
de um touro bravo é manso, assim como os bois chamados de cabestros
quando são treinados.
Manzanilla: vinho de xerez natural e levemente seco, que não teve seu teor
alcoólico artificialmente aumentado. Muito consumido na Andaluzia e
por todos os envolvidos numa tourada. É servido em chatos, ou copos
baixos, geralmente acompanhado de uma tapa, ou de uma pequena
porção de comida de qualquer tipo, com azeitonas ou anchovas,
sardinha, atum e pimenta-doce, ou uma fatia de presunto defumado. Um
chato melhora os ânimos, três ou quatro fazem você se sentir muito
bem, mas se você comer as tapas enquanto bebe, pode tomar doze
chatos sem ficar bêbado. Manzanilla também significa camomila, mas se
você se lembrar de pedir um chato de manzanilla, não há nenhuma
chance de receber chá de camomila.
Marear: ficar mareado; deixar o touro atordoado por fazê-lo girar de um
lado para o outro com o movimento da capa. Isso é feito com o objetivo
de fazer o animal cair de joelhos depois de ter sofrido uma estocada
imprecisa e é algo feio para quem vê e desonesto para quem executa.
Maricón: sodomita, boiola, afeminado, veado, bicha etc. Eles também têm
desses na Espanha, mas só sei de dois entre os quarenta e tantos
matadores. Isso não significa que os interessados em provar que
Leonardo da Vinci, Shakespeare etc. eram todos bichas não consigam
encontrar mais alguns entre os toureiros. Dos dois, um é quase
patologicamente muquirana, não tem muita coragem, mas é muito
habilidoso e delicado com a capa, uma espécie de decorador de
exteriores das touradas, e o outro tem fama de ser muito corajoso e
desajeitado, e de ser incapaz de economizar uma peseta. No meio
profissional, a palavra é usada como um termo para ofender,
ridicularizar ou insultar. Os espanhóis têm muitas, muitas histórias
engraçadas de maricón.
Mariposa: borboleta; série de passes com a capa sobre o ombro do homem
e o homem encarando o touro, recuando de costas lentamente em
zigue-zague, atraindo o touro primeiro com um lado da capa e depois
com o outro, supostamente imitando o voo de uma borboleta. Inventado
por Marcial Lalanda, esse quite exige que o toureiro conheça bem os
touros para poder executá-lo corretamente.
Mariscos: molusco consumido nos cafés enquanto se bebe cerveja antes ou
depois das touradas; entre os melhores estão o percebes, uma espécie de
craca com um pedúnculo apetitoso e um sabor muito delicado e
delicioso; lagostins, uns camarões grandes e carnudos do Mediterrâneo;
cigalas, uma integrante da família das lagostas com garras estreitas e o
corpo longo, rosa e branco, cujas garras e cauda você quebra com um
quebra-nozes ou um martelo; cangrejos del rio, lagostim ou lagosta de
água doce, preparados com sementes inteiras de pimenta-preta na cauda;
e gambas, ou camarões comuns servidos com casca que devem ser
chupados e comidos com as mãos. Percebes, encontrado ao longo da
costa do Atlântico, na Espanha, não é vendido em Madri entre os meses
de abril e setembro por causa do fim da temporada. Acompanhados de
cerveja ou de absinto, eles são muito gostosos; os pedúnculos da craca
têm um sabor mais delicado e atraente do que qualquer ostra, marisco
ou molusco que comi na vida.
Marronazo: quando o picador erra o touro no ataque e a ponta da lança
desliza pelo couro do touro sem machucá-lo.
Matadero: matadouro. Lugar onde se treina com a puntilla e a espada.
Matador: toureiro profissional que mata touros, enquanto um Mata Toros
é apenas um açougueiro de touros.
Mayoral: supervisor numa fazenda de touros; pode se referir também aos
vaqueros ou pastores que acompanham os touros enjaulados da fazenda
até a arena, dormindo com as jaulas nos caminhões de frete, cuidando
para que os touros recebam água e comida, e dando assistência no
momento de descarregar os touros e separá-los para a luta.
Media-estocada: estocada em que apenas metade da lâmina penetra o
touro. Se for cravada no lugar certo em um touro de tamanho médio, a
media-estocada consegue matar tão rápido quanto uma estocada que
crave a lâmina inteira no touro. Se o touro for muito grande, no entanto,
metade da lâmina pode não ser suficiente para alcançar a aorta ou outros
vasos sanguíneos grandes, que cortados levam à morte rápida.
Media-luna: lâmina com formato de foice fixada na ponta de uma lança
usada em touradas de antigamente para paralisar os touros que o
matador não conseguiu matar. Por um longo tempo depois de ter caído
em desuso, quando o touro que não foi morto na arena passou a ser
retirado por bois, a media-luna ainda era exibida para constranger o
matador e anunciar a entrada dos bois na arena. Hoje, ela não é mais
exibida.
Medias: meias longas como as que são usadas pelos toureiros.
Media veronica: um recorte, ou corte feito no ataque do touro, que
termina numa série de passes com a capa chamados de veronicas. Na
media veronica o homem segura a capa com as duas mãos, assim como
na veronica, e assim que o touro passa pelo homem, movendo-se da
esquerda para a direita, o homem traz a mão esquerda para perto do
quadril e recolhe a capa para perto do quadril com a mão direita,
diminuindo o movimento da veronica e usando metade da capa,
obrigando o touro a dobrar o corpo e fixando o animal no lugar para
que o homem possa se afastar dando as costas para o touro. Essa
manobra de fixar o animal num lugar é obtida com o movimento da
capa cortando a trajetória normal do touro, levando-o a fazer uma curva
num espaço menor do que o comprimento de seu corpo. Juan Belmonte
aperfeiçoou essa manobra com a capa e agora ela é o desfecho
obrigatório para qualquer série de veronicas. Os meios passes feitos pelo
matador segurando a capa com as duas mãos enquanto corria de costas
balançando a capa de um lado para o outro a fim de levar o touro de
uma parte da arena a outra eram chamados de medias veronicas, mas
hoje a verdadeira media-veronica é a que foi descrita anteriormente.
Media-vuelta: método de cravar as banderillas em touros que não atacam
bem, no qual o homem assume uma posição atrás do touro e corre na
direção da cabeça do animal, enquanto o touro vira a cabeça na direção
do homem. Touros impossíveis de matar pela frente também precisam
de um golpe da espada dado com uma media-vuelta.
Medios: parte central da arena, que é dividida em três territórios com o
propósito de se executar suertes diferentes com o touro; o centro ou
medios; o terço seguinte ou tercio; e a área mais próxima da barrera,
chamada de tablas.
Mejorar: melhorar; mejorando su estilo: melhorando seu estilo; mejorar al
terreno é quando o toureiro se encontra muito perto da barrera para
conseguir executar o passe que está preparando sem ser chifrado e, com
a ajuda da capa ou da muleta, ele pode mudar para uma posição melhor
ou mais segura.
Meter el pie: provocar o touro a atacar dobrando o joelho para a frente e
depois esticando a perna, com o corpo voltado para o touro, quando o
toureiro espera pelo touro para matá-lo da forma conhecida como
recibiendo.
Metisacas: colocar e tirar; estocadas em que o matador, por uma hesitação,
crava um pouco da espada e depois tira.
Mogón: touro com um chifre quebrado ou lascado, às vezes ficando com
uma protuberância arredondada; touros assim são usados nas novilladas.
Mojiganga: mascarada; no passado, os touros entravam na arena das
novilladas durante uma procissão ou um espetáculo. Esses eventos eram
chamados de mojigangas; os únicos sobreviventes desse costume são os
grupos que imitam a banda El Empastre, fundada por Rafael Dutrus, em
que um touro jovem é solto na arena enquanto a banda toca e o animal é
enfrentado e morto por alguns dos músicos, enquanto os outros
continuam tocando seus instrumentos.
Molinete: passe com a muleta em que o homem dá um giro completo
com o corpo, fazendo a muleta se enrolar nele. Causa um efeito enorme
quando é executada entre os chifres do touro ou ao lado deles, nesse caso
o touro também gira o corpo tentando seguir a ponta do tecido.
Mona: botão coberto de seda na base do rabicho usado pelo toureiro.
Monerias: tourada fuleira; extravagâncias imaturas realizadas no confronto
com o touro.
Monosabios: funcionários da praça de touros que usam camisas vermelhas
e auxiliam os picadores quando eles caem, ajudam os picadores a voltar
para o cavalo, conduzem os cavalos na direção do touro, matam os
cavalos que foram feridos, retiram as selas, cobrem os corpos com lona
etc. Eles passaram a ser chamados de monosabios quando uma trupe de
macacos artistas usando uniformes vermelhos se apresentou em Madri
em 1847, logo após a administração da praça de touros adotar as camisas
vermelhas para os funcionários.
Morillo: a corcova de músculos no alto do pescoço de um touro bravo que
se enrijece quando fica irritado. É onde o picador deve fincar a lança e
onde os banderillos devem cravar os bastões na parte superior dessa
corcova, perto dos ombros.
Morucho: touro mestiço que às vezes é bravo, violento e perigoso, mas
sem as características de tipo ou de casta de um puro-sangue. Em várias
partes da Espanha, touros que têm um pouco do sangue de uma raça
selvagem são criados por fazendeiros que não fazem parte de nenhuma
das associações dos criadores de touros bravos puros-sangues, e esses
touros mestiços são vendidos para serem usados em novilladas, nas
arenas pequenas e nas capeas. O fato de serem mestiços fica evidente na
grossura do rabo, no tamanho dos chifres e dos cascos, e na ausência da
corcova; de resto eles têm a aparência de verdadeiros touros bravos.
Movido: movimentado; toreo movido: trabalhar demais com os pés
enquanto enfrenta o touro.
Mozo de estoques: funcionário particular e responsável pelas espadas a
serviço do matador. Na arena, ele prepara as muletas e entrega as
espadas para o toureiro ao longo da luta, limpando as espadas usadas
com uma esponja e secando as lâminas antes de guardá-las. No
momento do sacrifício ele deve seguir o matador no corredor atrás da
barrera sempre a postos para entregar uma nova espada ou a muleta por
sobre a barrera, caso o toureiro precise. Quando está ventando muito,
ele umedece as capas e a muleta com uma moringa de água que carrega
consigo e também atende as exigências pessoais do matador. Fora da
arena, antes da luta, ele pega os envelopes com o cartão do matador e
uma certa quantia de dinheiro para os vários críticos de touradas, ajuda o
matador a se vestir e cuida para que todo o equipamento seja
transportado até a arena. Depois da luta, ele cuida dos telefonemas —
mensagens enviadas via companhia telefônica, escritas e entregues como
os telegramas são entregues nos Estados Unidos — ou das raras
mensagens verbais enviadas à família do matador, aos amigos, à
imprensa e a qualquer clube de entusiastas das touradas que possa ser
organizado em homenagem ao matador.
Mucha: muita; de muchas piernas: bom das pernas; com pernas muito
fortes; muchas arrobas: muito pesado. De mucho cuidado: muito
suspeito; isto é, um touro muito difícil de enfrentar.
Muchacho: garoto; jovem.
Muerte: morte; lugar onde a espada deveria entrar para matar o touro
corretamente. Toureiros dizem que o touro revela a muerte quando ele
baixa bem a cabeça. Pase de la muerte: passe com a muleta citado neste
livro.
Muleta: pano de sarja ou de flanela escarlate com forma de coração
dobrada e pendurada num bastão de madeira que tem uma ponta afiada
de metal na extremidade mais fina do bastão e um punho estriado na
extremidade mais grossa; a ponta afiada atravessa o tecido que está
dobrado numa extremidade e, na outra, o tecido é fixado ao punho com
um parafuso manual que ajuda a manter o pano sobre o bastão. A
muleta é usada para defender o homem; para cansar o touro e ajustar a
posição de sua cabeça e de seus pés; para desempenhar uma série de
passes de valor estético maior ou menor; e para ajudar o homem na hora
do sacrifício.
Muletazo: passe realizado com a muleta.
Multa: multa aplicada ao toureiro, ao criador de touros ou ao diretor da
arena e calculada pelo dirigente responsável pela corrida ou pelo
governador. Multas aplicadas ao toureiro são uma farsa pois todo
contrato firmado com um matador tem uma cláusula que determina que
toda multa aplicada contra o toureiro deve ser paga pelos promotores.
Essa cláusula tem mais de trinta e cinco anos e foi inserida pela primeira
vez para evitar que os promotores contratassem toureiros por valores
aleatórios e depois recebessem uma multa do presidente sobre a
diferença entre o valor que o toureiro cobrou para lutar e o valor que o
promotor estava disposto a pagar. Atualmente, com a sindicalização de
matadores, picadores e banderilleros, eles podem realizar um boicote
contra qualquer arena cujo promotor tenha deixado de pagar suas
dívidas e manter o boicote até que a dívida seja paga, inviabilizando até
as lutas realizadas por outros promotores até que as exigências sejam
atendidas, e não há nenhuma necessidade de manter a cláusula sobre as
multas para proteger os toureiros. Sua única consequência hoje é
permitir que lutadores inescrupulosos saibam que qualquer multa que
recebam, mesmo que seja justa, aplicada por trabalho insatisfatório ou
desonesto, não vai ser paga com dinheiro do próprio bolso. Esse é um
dos abusos que deveriam ser corrigidos na próxima vez que um governo
elaborar um novo decreto para a regulamentação da tourada.
N
Nalgas: nádegas, ou traseiro; alvo de muitos ferimentos por chifradas
causados pela decisão do matador de dar as costas para o touro sem ter
fixado o animal corretamente no lugar para evitar um ataque. Traseiros
proeminentes destroem a linha formada pelo corpo que o toureiro
procura fazer ao combater o touro e impedem que seu estilo seja levado
a sério, por isso a tendência de ter essa região mais rechonchuda é uma
fonte de preocupação para os matadores na tourada moderna.
Natural: passe feito com a muleta na mão esquerda, próximo do chão no
qual o homem provoca o touro pela frente; com a perna direita voltada
para o touro, a muleta carregada pelo meio do bastão na mão esquerda,
braço esquerdo estendido e o pano na frente do homem, a muleta é
movimentada levemente na direção do touro para chamar atenção, esse
movimento é quase imperceptível para o espectador; quando o touro
ataca e alcança a muleta, o homem gira com o animal, mantendo o
braço totalmente estendido e movendo a muleta devagar na frente do
touro, fazendo o animal girar num quarto de círculo ao redor do
homem; essa virada é dada com a elevação do pulso ao fim do passe para
manter o touro no lugar para outro passe. Esse passe é descrito em
detalhes neste livro. É o passe fundamental da tourada, o mais simples, o
mais puro e o mais perigoso de se executar.
Navarra: província no norte da Espanha; nome de um passe com a capa,
que caiu em desuso, no qual o matador primeiro balança a capa como
numa veronica e, em seguida, com o touro prestes a sair da capa, o
homem dá um giro completo na direção oposta àquela em que estava
balançando a capa, e passa a mover a capa à frente e abaixo do focinho
do touro.
Nervio: energia e vigor do touro.
Niño: criança ou menino; recentemente, houve uma praga de niños como
nommes de guerre nas touradas. Seguindo o sucesso de El Niño de la
Palma, houve uns trezentos toureiros apelidados de Niño disso ou
daquilo, do Niño do Matadouro ao Niño de Sierra Nevada. Em outros
tempos, havia pares ou trios de crianças toureiras batizadas com o nome
da cidade de onde vinham, como os Niños Sevillanos; Niños Cordobeses
etc. No entanto, os toureiros que se graduaram nessas empreitadas
juvenis deixaram de ser chamados de Niños e passaram a ser chamados
de Gallito, Machaquito e assim por diante; tornando seus nomes
famosos e abandonando os apelidos infantis quando já não eram mais
crianças, embora eles tenham mantido um afetuoso diminutivo no nome
profissional.
Noble: touro que realiza ataques sinceros, que é corajoso, simples e fácil
de manipular.
No Hay Derecho: você não tem o direito; frase comum de protesto contra
qualquer violação das leis ou dos direitos do indivíduo.
Noticiero: comunicado; El Noticiero de Lunes é a folha oficial com notícias
do governo e um relatório curto das touradas de domingo publicado em
cidades espanholas na manhã de segunda-feira por causa da lei que
proíbe o trabalho no domingo, defendida pelos trabalhadores dos jornais
da Espanha muitos anos atrás.
Novedad: novidade; toureiro que chama atenção por ser novidade.
Novillada: hoje em dia, uma novillada é uma tourada em que os touros são
jovens demais ou velhos demais para uma tourada oficial, isto é, com
menos de quatro anos de idade ou com mais de cinco anos, ou com
problemas de visão ou com chifres imperfeitos; esses touros são
combatidos por toureiros que nunca tiveram título de matador ou que
renunciaram a ele. A novillada, ou corrida de novillos-toros, é igual a
uma tourada oficial em vários aspectos, menos na qualidade dos touros e
na inexperiência ou nas limitações dos toureiros. Em outros tempos, a
novillada se referia a qualquer forma de entretenimento com touros que
não fosse a corrida oficial, mas atualmente a novillada ocorre devido ao
desejo de oferecer uma tourada regular a preços mais acessíveis,
viabilizados por touros que custam menos e por homens que, dispostos a
fazer seu nome, ou devido ao fato de terem falhado como matadores
profissionais, são menos exigentes do que os matadores profissionais na
hora de negociar o pagamento. A temporada de novilladas em Madri vai
do início de março até a Páscoa e de julho até a metade de setembro. Nas
províncias, ela acompanha a temporada inteira de touradas, oferecida
por todas as cidadezinhas que não conseguem bancar uma corrida
oficial. O ingresso para uma novillada custa geralmente a metade do
valor do ingresso para uma corrida normal. Os touros enfrentados são
frequentemente maiores e mais perigosos do que aqueles usados nas
corridas de touros, pois os novilleros são forçados a aceitar os touros que
foram recusados pelas estrelas da profissão. É nas novilladas que morre a
maioria dos toureiros, uma vez que homens com pouca experiência
enfrentam touros extremamente perigosos em cidadezinhas onde as
arenas têm pouca estrutura médica e nenhum cirurgião hábil na técnica
especial de tratar ferimentos causados por chifres.
Novillero: matador de novillos-toros, os touros descritos no verbete
anterior. Ele pode ser um aspirante a toureiro que não conseguiu ganhar
a vida na classe de matadores profissionais e renunciou à alternativa em
nome de mais contratos. O máximo que um novillero consegue ganhar
em Madri são cinco mil pesetas por luta e ele pode, se for um debutante,
lutar por um valor bem mais baixo, de mil pesetas. No caso do valor
menor, se ele ainda tiver que pagar o aluguel do traje, remunerar os dois
picadores, os dois banderilleros e o responsável pelas espadas, e mandar
envelopes com cinquenta ou cem pesetas para os críticos na imprensa,
ele estará endividado ao fim da luta. Um novillero protegido pela
administração da praça de touros pode ter de lutar apenas com touros
jovens e ser muito bem-sucedido com esses animais, e falhar
completamente ao se tornar um matador profissional devido à diferença
de perigo, força e velocidade entre um touro jovem e um touro maduro.
Não se pode julgar um matador baseado no desempenho que tem com
touros jovens, mesmo que demonstre preparo e uma técnica perfeita,
pois ele pode não ter a fi bra necessária para enfrentar um touro de
verdade.
Novillo: touro usado nas novilladas.
Nuevo: novo; Nuevo en esta Plaza, usado depois do nome de um toureiro
num programa, significa que ele se apresenta pela primeira vez naquela
arena.
Nulidad: uma nulidade; matador que é um inconveniente e não uma
atração dentro de um programa.
O
Ojo: olho; um matador que deseja dar ao público a informação, falsa ou
verdadeira, de que o touro não enxerga direito como uma desculpa para
um desempenho medíocre, vai apontar para o próprio olho. Buen ojo:
olho bom ou bom senso.
Olivo: oliveira; tomar el olivo: correr para a oliveira, frase usada para
descrever a ação em que o matador é tomado por pânico ou quando, por
ter deixado o touro colocá-lo numa situação difícil, ele mergulha por
sobre a barrera para escapar. O matador não deve nunca correr de costas
para o touro; muito menos correr e se atirar atrás da barrera.
Orejar: orelha; quando o matador teve um desempenho excelente com o
touro, tanto com a muleta quanto com a espada, matando o animal com
eficácia depois de uma boa faena com a muleta, ou se o trabalho com a
muleta não foi brilhante, mas acabou sendo compensado por um
sacrifício estupendo, a multidão vai acenar com os lenços para pedir ao
presidente que conceda a orelha do touro como símbolo de honra ao
matador. Se o presidente concorda e acredita que o pedido se justifica,
ele acena com o próprio lenço e, em seguida, o banderillero pode cortar
a orelha e entregá-la ao matador. Na verdade, vários matadores que
ficam ansiosos para ter uma longa lista de orelhas, por causa da
publicidade que recebem quando isso acontece, deixam um banderillero
orientado a cortar uma orelha no primeiro aceno de qualquer lenço. Se o
público dá qualquer sinal de reivindicar a orelha, esse peón corta a orelha
fora e corre com ela até o matador, que a exibe, erguendo a orelha na
direção do presidente e sorrindo, e o presidente, diante de um fato
consumado, fica mais suscetível a concordar com a concessão da orelha e
então acena com o próprio lenço. Graças a essa forma de falsificar a
concessão da orelha, que já foi uma honra enorme e acabou sendo
banalizada, se um matador faz uma apresentação decente e tem sorte ao
matar o touro, ele provavelmente vai ganhar a orelha do animal. Esses
peones que são verdadeiros profissionais na hora de cortar orelhas do
touro criaram um costume ainda pior; se o presidente fizer mesmo o
sinal para cortar a orelha antes que o matador implore por ela, eles se
apressam em cortar as duas orelhas e o rabo, que eles correm a levar
para o matador com a desculpa de que estavam entusiasmados. Os
matadores, estou pensando especificamente em dois, um valenciano
convencido, baixinho, de nariz adunco e cabelo preto, e um poste
telefônico de Aragão, convencido, corajoso, ingênuo e de pescoço
comprido, dão uma volta pela arena segurando uma orelha numa das
mãos e a outra orelha mais o rabo coberto de esterco na outra mão, com
um sorriso afetado e acreditando que triunfaram numa apoteose
absoluta quando, na verdade, eles tiveram um desempenho apenas
honesto, mas tiveram habilidade para valorizar tudo que fizeram.
Originalmente, o ato de cortar a orelha significava que o touro se
tornava propriedade do matador, que poderia dispor da carne se
quisesse. Esse significado se perdeu há bastante tempo.
P
Padrear: procriar.
Padrino: padrinho ou responsável; nas touradas, o matador mais velho que
cede a espada e a muleta para um matador mais jovem que recebe a
alternativa pela primeira vez como matador numa corrida de touros
oficial.
Pala: pá, taco ou remo. Na tourada, a parte exterior lisa dos chifres; golpes
recebidos por um toureiro pela parte lisa dos chifres são chamados de
paletazos ou varetazos e com frequência são sérios, causam hemorragia
interna grave e outras lesões internas e por fora deixam apenas um
hematoma.
Palitroques: galho; outro nome para as banderillas.
Palmas: aplausos.
Palos: paus; gíria para as banderillas.
Pañuelo: lenço; um lenço branco exibido pelo presidente sinaliza o fim ou
o começo dos atos que envolvem as lanças dos picadores, os bastões dos
banderilleros e a espada do matador; um lenço verde indica que o touro
deve ser retirado da arena; um lenço vermelho indica que banderillas
explosivas devem ser usadas. O sinal de cada aviso para o matador, que
marca o tempo da tourada, é dado pelo presidente com um lenço
branco.
Par: par de banderillas.
Parado: abrandado ou parado sem estar exausto; a segunda fase enfrentada
pelo touro ao longo da luta e aquela em que o toureiro deve extrair o
máximo do animal. Torear parado é enfrentar o touro com um mínimo
de movimento dos pés. É a única forma de lutar contra um touro bravo
que merece ser aplaudida, sem as falhas de chifrar mais para um lado ou
mais para o outro.
Parar: ficar parado e observar calmamente o touro se aproximar; parar los
pies: manter os pés parados enquanto o touro ataca. São três os
principais mandamentos das touradas; parar: manter os pés imóveis;
templar: mover o pano lentamente; e mandar: dominar e controlar o
animal usando o pano.
Parear: cravar um par de banderillas.
Parón: termo moderno usado para designar um passe feito pelo toureiro
com a capa ou a muleta em que ele mantém os pés juntos e não faz
nenhum movimento do instante em que o touro começa a atacar até o
fim da execução do passe. Tais passes, em que o homem fica parado
como uma estátua, são manobras brilhantes que o toureiro pode incluir
em seu repertório, mas eles só podem ser executados com um touro que
se move numa linha reta perfeita ao atacar; senão o homem será
chifrado. Além disso, esses passes quebram um dos mandamentos das
touradas: o homem consegue parar e consegue templar, mas não
consegue mandar porque um toureiro com os pés juntos não consegue
balançar o pano longe o suficiente para manter o touro dominado pelas
pregas do tecido e, sendo assim, a menos que o touro seja tão perfeito
que ele faça a volta automaticamente para atacar de novo, o homem será
incapaz de controlá-lo com a muleta o suficiente para conseguir virá-lo
de modo a vincular uma série de passes. Com um touro ideal, no
entanto, os parones são muito emocionantes e impressionantes, e todo
toureiro deveria ser capaz de fazer essa manobra com o animal certo,
mas sem ignorar a verdadeira arte de dominar os touros, de fazê-los sair
da linha de ataque com um movimento do pano, enquanto espera por
um touro capaz de fazer sozinho uma faena inteira diante de um
homem que parece uma estátua. Os passes giratórios feitos por Villalta e
por seus imitadores, em que o homem gira na ponta dos pés e em
semicírculos com o touro, também são chamados de parones.
Pase: passe feito com a capa ou a muleta; movimento do pano para atrair
um ataque do animal em que os chifres passam ao lado do corpo do
homem.
Paseo: entrada dos toureiros na arena e a caminhada através dela.
Paso atrás: passo para trás que o matador dá depois de perfilar o touro
antes do sacrifício, com o objetivo de aumentar a distância do animal
enquanto dá a impressão de que está perfilando o touro de muito perto;
a distância dá também mais tempo para desviar quando o toureiro se
aproxima do touro para matar e o animal não mantém a cabeça baixada
com a muleta.
Paso de banderillas: quando o toureiro se aproxima do touro para matar
sem obedecer a uma linha reta, mas movendo-se como num quarto de
círculo para desviar dos chifres do touro, como faz um banderillero.
Aceitável nos casos em que não se consegue matar o touro de outro
jeito.
Pecho: peito; o pase de pecho é um passe feito com a muleta na mão
esquerda ao fim de um passe natural em que o touro, que virou o corpo
ao fim do passe natural, volta a atacar e o homem faz o animal passar
rente ao peito e o manda para longe com uma varrida da muleta.
O passe de peito deve ser o fim de uma série de naturales. É também um
grande mérito quando é usado pelo toureiro para se livrar de um ataque
inesperado ou de uma investida repentina do touro. Nesse caso, ele é
chamado de forzado de pecho, ou um passe forçado. Ele é chamado de
preparado quando é dado como um passe à parte, sem ser precedido por
um natural. O mesmo passe pode ser feito com a mão direita, mas nesse
caso não será um verdadeiro pase de pecho, uma vez que o verdadeiro
natural e o verdadeiro de pecho são feitos apenas com a mão esquerda.
Quando nenhum desses passes é feito com a mão direita, a espada, que
deve estar sempre na mão direita, estende o pano e faz com que ele
pareça muito maior, permitindo assim que o toureiro mantenha o touro
a uma distância maior e que mande o touro mais para longe depois de
cada ataque. O trabalho realizado com a muleta estendida pela espada na
mão direita é brilhante e louvável com frequência, mas não tem a
dificuldade, o perigo e a sinceridade do trabalho realizado com a muleta
na mão esquerda e a espada na direita.
Pelea: luta, a luta com o touro.
Peón: banderillero; toureiro que trabalha a pé sob as ordens do matador.
Pequeño: pequeno.
Perder el sitio: toureiro que, por doença, falta de confiança, covardia ou
nervosismo, perde seu estilo e até mesmo a noção de onde está e de
como as coisas devem ser feitas.
Perder terreño: perder terreno enquanto enfrenta o touro; ter de apelar
para o trabalho de pés em vez de controlar o touro com o pano; e
também perder terreno na profissão.
Perfilar: perfilar antes de matar com a espada na mão direita, com o
antebraço esticado ao longo do peito, muleta na mão esquerda, ombro
esquerdo voltado para o touro, os olhos seguindo a linha da espada.
Periódicos: jornais; os jornais de Madri que têm os relatos mais corretos e
desinteressantes das touradas em Madri e nas províncias são La Libertad
entre os diários e El Eco Taurino entre os jornais de tourada. La Fiesta
Brava, de Barcelona, apesar de seus relatos serem bem parciais, tem
artigos e reportagens excelentes.
Periodistas: aqueles que escrevem para os jornais; jornalistas.
Perros: cachorros usados antigamente, antes que fossem adotadas as
banderillas explosivas, para assustar um touro que não ataca o picador;
fazê-lo cabecear e cansar seus músculos do pescoço, substituindo assim
os efeitos das lanças.
Pesado: pesado; enfadonho; cansado.
Peso: peso.
Pesuña: pata do touro. Touros bravos sofrem com glosopeda ou febre
aftosa, que afeta as patas do animal e os cascos podem sofrer rachaduras
ou quebrar totalmente.
Peto: cobertura acolchoada que o cavalo do picador usa no peito, no
flanco direito e na barriga. Adotadas durante a parte final da ditadura de
Primo de Rivera, a partir da indicação da ex-rainha da Espanha, nascida
na Inglaterra.
Pica: a lança ou vara usada na tourada. É formada de uma haste de
madeira feita de freixo com um tamanho que varia de dois metros e
cinquenta e cinco centímetros a dois metros e setenta centímetros, e de
uma ponta de metal triangular de vinte e nove centímetros. Abaixo da
ponta de metal, a extremidade da haste é envolvida por um cordão e
equipada com uma guarda redonda de metal que evita que a haste
penetre mais do que cento e oito milímetros no touro. O modelo atual
da lança exige bastante dos touros e aqueles animais que atacam a valer,
e que insistem no ataque mesmo quando são castigados, quase não
conseguem suportar mais do que quatro lanças sem perder quase toda a
sua força. Isso é particularmente verdade desde que os picadores,
prejudicados pela proteção do cavalo, acabam cravando a lança muito
atrás do morillo, que é o lugar onde eles deveriam cravar a lança, e onde
os músculos da corcova conseguem suportar o castigo e, ao cravar a
lança numa região desprotegida da coluna, o picador pode ferir o touro
gravemente e comprometê-lo pelo resto da luta. Um ferimento causado
pela lança atual ao ser cravada fora do lugar certo e entre as costelas
pode atingir os pulmões ou, no mínimo, a pleura. Parte desse trabalho
ruim do picador é proposital e feito a pedido do matador, que espera que
o touro fique sem forças, o que não acontece porque o picador é tão
limitado pela proteção acolchoada do cavalo que ele precisa se esticar
para cravar a lança no touro, a uma distância que fica difícil acertar o
alvo, em vez de ser capaz de cravar a lança com cuidado onde e como ele
quiser. A razão para isso é que o picador espera que o touro se aproxime
o suficiente para que possa cravar a lança direito; o touro, não importa o
tamanho, vai atacar o muro acolchoado e derrubar o homem e o cavalo
com o impacto, antes que a lança possa ser inserida. Não existe nada para
o touro chifrar e erguer, e forçar os músculos do pescoço enquanto
ergue e recebe a lança. Por esse motivo, os picadores, quando um touro
se recusa a atacar mais de uma vez, frustrado com o colchão que protege
o cavalo, adotaram a manobra de virar o cavalo quando o touro se
afasta, de modo que o touro possa chifrar o cavalo no traseiro
desprotegido e cansar o pescoço com esse ataque. Como esses
ferimentos quase nunca são fatais e ficam pouco evidentes, a menos que
você procure por eles; você vai ver o mesmo cavalo voltar para a arena
outras vezes; o ferimento é costurado e limpo entre um touro e outro,
diferente da época em que não havia proteção e o touro tinha permissão
para atacar o cavalo, chifrá-lo e erguê-lo, de modo a cansar os músculos
do pescoço, mas o cavalo não sobrevivia. Agora, com a proteção, poucos
cavalos são mortos na arena, mas quase todos são feridos no quarto
traseiro ou entre as pernas, da maneira que foi descrita. A postura de
admitir a necessidade de se matar cavalos para haver uma tourada foi
substituída por uma atitude hipócrita de suposta proteção que causa aos
cavalos muito mais sofrimento, mas que, uma vez adotada, será mantida
para sempre porque permite que os fornecedores de cavalos
economizem dinheiro, permite que os promotores do evento
economizem dinheiro e permite que as autoridades pensem que
tornaram as touradas mais civilizadas. Tecnicamente, mas não
moralmente, a questão que deve ser lembrada é que desacelerar o touro
sem privá-lo de sua força ou de seu desejo de atacar, algo obtido quando
o touro é autorizado a atingir o alvo, fazer força com o pescoço para
erguer o cavalo, firmando bem as quatro patas, resistindo à lança cravada
em sua corcova ou em seu pescoço, para derrubar e matar o cavalo;
deixa o touro em condições ideais para avançar às próximas duas fases da
luta, e não se pode obter isso apenas com o picador castigando o touro
severamente de uma forma que vai feri-lo e fazê-lo perder força, sangue
e todo o impulso de atacar. É isso que acontece ao touro quando ele
recebe a lança nas escápulas, no meio da coluna, ou nas costelas; em vez
de avançar para as próximas duas etapas pronto para combater o
toureiro, se o touro sofrer o tipo de ferimento que a lança atual consegue
causar, ele fica acabado.
Picador: homem a cavalo que ataca o touro com a lança, sob as ordens do
matador. Recebe de cem a duzentas e cinquenta pesetas por luta, tem a
perna e o pé direitos protegidos por camurça, usa jaqueta curta, uma
camisa e uma gravata como todos os outros toureiros, e um chapéu
largo de copa baixa com um pompom na lateral. É raro os picadores
serem chifrados pelo touro, pois os matadores têm obrigação de protegê-
los com a capa quando eles caem perto do touro. Se eles caem longe do
touro, eles são protegidos pelo cavalo. Com frequência, os picadores
quebram braços, mandíbulas, pernas e costelas, e fraturam o crânio
raramente. Poucos são mortos na arena, em comparação com os
matadores, mas muitos ficam com sequelas de concussões na cabeça. De
todas as profissões mal pagas da vida civil, acredito que o trabalho do
picador é o mais difícil e o que está mais exposto ao perigo e à morte,
que é evitada, felizmente, pela capa do matador na maioria das vezes.
Picar arriba: cravar a lança no alto do morillo do touro.
Picar atrás: cravar a lança bem atrás do morillo.
Picar corta: cravar a lança segurando a haste pelo cabo de madeira bem
próximo da ponta de metal. Essa manobra expõe mais o homem, pois
ele pode cair para a frente entre o cavalo e o touro, mas torna seu ataque
com a lança muito mais certeiro.
Picar delante: cravar a lança muito à frente do pescoço.
Piernas: pernas; tiene muchas piernas, tanto para o homem quanto para o
touro, significa ter pernas muito fortes.
Pinchazo: perfurada; um pinchazo é uma estocada que penetrou muito
pouco no touro. Pinchar en el duro é fincar um pouco da espada e
atingir um osso. Um pinchazo em que o matador consegue cravar bem a
espada, no lugar certo, mas atinge um osso, não é um demérito, pois o
fato de a ponta da espada atingir ou não uma costela, ou uma vértebra, é
uma questão de sorte. Se o homem se aproximou em linha reta e
acertou o lugar da espada, ele deve ser aplaudido apesar de ter atingido
um osso com a espada. Por outro lado, matadores covardes fazem uma
série de pinchazos sem nunca acompanhar a espada e cravá-la até o
punho, evitando qualquer risco de se aproximar dos chifres, na esperança
de fazer o touro sangrar com essas estocadas para depois matá-lo com
um descabello. O mérito ou demérito de um pinchazo deve ser julgado
pela forma como o homem se aproxima do touro e por suas intenções
evidentes.
Pisar: pisar; pisar terreno del toro: trabalhar tão perto do touro que você
invade o território dele.
Pisotear: quando o touro ataca um homem caído no chão e o pisoteia
enquanto tenta chifrá-lo.
Pitillo: cigarro.
Pitón: ponta do chifre do touro; ou, às vezes, o chifre inteiro. Passes de
pitón a pitón são movimentos bruscos com a muleta, de um chifre ao
outro, para cansar os músculos no pescoço do touro. Os dois chifres são
pitones.
Pitos: assobios; sinal de reprovação. Às vezes, quando está na arena um
matador que todo mundo sabe que é covarde, ou que está numa fase
ruim da carreira, ou que seja impopular numa cidade específica, os
espectadores vão à arena munidos de apitos de cachorro ou apitos de
polícia, para poder fazer mais barulho. Um desses espectadores armados
com apito, sentado logo atrás de você, pode ensurdecê-lo
temporariamente. Não há o que fazer, a não ser enfiar os dedos nas
orelhas. Esses apitos são comuns em Valência, onde ensurdecer alguém é
considerado uma piada divertidíssima.
Plaza: espaço público; Plaza de toros: praça de touros.
Poder a poder: força à força; método de cravar as banderillas descrito neste
livro.
Pollo: frango; e também um jovem novo na cidade. Toureiro jovem que
gosta de posar como alguém experiente.
Polvo: poeira; erguida pelo vento na arena e assentada com a aspersão de
água. Quando o vento levanta poeira na arena, os espectadores gritam
“Água! Água!” até que o carrinho de aspersão seja acionado ou até que
alguém use uma mangueira.
Pomo: botão do punho da espada.
Prueba: teste, avaliação ou prova; Prueba de caballos é a prova dos cavalos
dos picadores. Prueba é também o nome de uma das touradas realizadas
todo ano em Pamplona, em que quatro touros locais eram usados, e a
luta oferecida a preços populares funcionava como um teste das raças
locais. Hoje, é uma luta em que seis matadores assumem juntos o
sacrifício de um touro.
Punta de Capote: ponta da capa; fazer o touro correr atrás da capa, que é
segurada por uma extremidade de modo que ela se estenda com todo o
seu comprimento; forma correta de enfrentar os touros quando eles
entram na arena.
Puntazo: pequeno ferimento de chifre, enquanto uma cornada é um
ferimento grande.
Puntilla: punhal usado para matar o touro ou o cavalo depois que o animal
foi mortalmente ferido.
Puntillero: homem que mata o touro ou o cavalo com a puntilla.
Puro: charuto cubano; puros são consumidos pela maioria das pessoas
envolvidas com as touradas que têm condições de comprá-los.
Puta: puta, meretriz, rameira, mundana, cadela ou prostituta; hijo de puta:
filho de qualquer uma das citadas no início da frase; insulto comum que
as pessoas gritam para o matador, equivalente ao nosso filho da puta. Em
espanhol, eles insultam com mais veemência quando desejam o mal de
parentes em vez de agredir a pessoa mais diretamente.
Puya: outro nome para a lança; pode se referir também à ponta triangular
de metal.
Puyazo: lança cravada no touro.
Q
Quedar: permanecer ou ficar no lugar; Quedar sin toro: para um toureiro,
ficar sem um inimigo porque o touro teve sua força e sua disposição
destruídas por um ferimento ou por uma série de ferimentos causados
pelo picador.
Qué lástima!: que pena! Expressão usada quando você ouve que um amigo
foi chifrado de maneira grave, ou que contraiu uma doença venérea, ou
que casou com uma puta, ou que algo aconteceu com sua esposa ou seus
filhos, ou quando um touro bom entra na arena para lutar contra um
toureiro ruim, ou quando um touro ruim entra na arena para lutar
contra um toureiro bom.
Querencia: parte da arena onde o touro gosta de ficar; onde ele se sente
em casa.
Querer: desejar; no quiere: na tourada, significa que o matador não quer
tentar nada, satisfeito de seguir com a tarde da maneira mais tranquila
possível; quando se refere a um touro, significa que o animal não quer
atacar o cavalo ou o pano.
Qué se vaya!: significa algo como suma daqui e nunca mais me apareça.
Gritado para os toureiros.
Quiebro: qualquer inclinação do corpo, especialmente do quadril para um
lado ou para o outro a fim de evitar os chifres do touro; qualquer
movimento de desvio ou de esquiva executado pelo corpo quando
próximo do touro para evitar ser atingido pelo animal.
Quiebro de muleta: inclinar e balançar a muleta com o pulso esquerdo
baixado num movimento para a direita a fim de guiar o touro para longe
do homem na manobra de cravar a espada; é porque a mão esquerda
guia e afasta o touro, e a direita crava a espada, que os toureiros dizem
que você mata o touro mais com a mão esquerda do que com a direita.
Quinto; no hay quinto malo: o quinto não pode ser ruim; crença antiga de
que o quinto touro sempre será bom. Surgida provavelmente na época
em que os criadores de touros decidiam a ordem em que os touros
deveriam ser enfrentados; antes de serem sorteados pelos matadores por
lote como são hoje; como os criadores conheciam bem os animais, eles
sempre deixavam o melhor na quinta posição. Hoje em dia, o quinto
pode ser tão ruim quanto qualquer outro.
Quite: de quitar — afastar; é a manobra de afastar o touro de qualquer um
que esteja em perigo por causa dele. O termo se refere especialmente à
manobra de afastar o touro do cavalo e do homem depois do ataque aos
picadores, feita pelos matadores com capas numa espécie de
revezamento; cada um deles atrai o touro para si depois de um ataque. O
matador que deve matar o touro faz o primeiro quite e os outros seguem
a ordem: eles se aproximam com a capa, atraem o touro para longe do
homem e do cavalo caídos, e colocam o touro em posição para o
próximo picador. O quite mudou, de modo que, hoje, uma série de
manobras com a capa é obrigatória depois que o matador atrai o touro
com um quite; supostamente, eles competem para ver quem consegue
chegar mais perto e ser mais criativo ao passar o touro. Quites feitos para
afastar o touro de um homem que está sendo chifrado ou que está caído
no chão com o touro em cima dele são um trabalho de equipe que
envolve todos os toureiros e é nesse momento que você pode avaliar sua
coragem, conhecimento dos touros e grau de altruísmo, pois um quite
nessas circunstâncias é extremamente perigoso e muito difícil de
executar, porque os homens precisam chegar tão perto do touro para
fazê-lo deixar o objeto que está tentando chifrar que, ao recuar, atraindo
o ataque do touro com a capa, eles se tornam alvos fáceis.
R
Rabioso: feroz; um matador fica rabioso quando ele se coloca,
mentalmente, num furor de coragem que contrasta com a coragem fria
e consistente de um homem verdadeiramente corajoso; um toureiro que
é friamente corajoso só vai ficar rabioso quando ele se irritar com as
provocações da multidão ou com as trombadas e arremessos do touro.
Rabo: rabo do touro.
Racha: ímpeto de sorte; mala racha: onda de má sorte; toureiro que
sorteia uma série de touros fracos; sucessão de touradas ruins.
Ración: uma porção; no café, você pede una ración de camarões, percebes
ou de qualquer outra coisa. Una ración de marisco geralmente tem cem
gramas, um pouco menos do que um quarto de libra. É por esse motivo
que você pode receber dois camarões enormes numa vez e, na outra,
quatro camarões menores e pagar o mesmo valor pelos dois pratos, uma
vez que eles são vendidos por peso.
Rebolera: passe com a capa em que ela é segurada por uma extremidade e
balançada de forma a desenhar um círculo ao redor do homem.
Rebotado: levar uma trombada da cabeça do touro depois de cravar a
espada; levar um tranco ou um empurrão sem cair no chão.
Rebrincar: dar um salto para o lado; às vezes, é o que o touro faz quando a
capa é apresentada a ele pela primeira vez.
Recargar: touro que volta a atacar mesmo sendo castigado pela lança do
picador.
Receloso: touro que reluta em atacar, mas não por ter sido desgastado
pelos castigos da luta, e sim por temperamento; mas que, se for
provocado repetidas vezes, vai atacar.
Recibir: matar o touro pela frente, com a espada a postos, esperando pelo
ataque do animal e sem mover os pés, uma vez que o ataque do touro
comece; com a muleta baixada na mão esquerda e a espada na mão
direita, o antebraço direito cruza o peito e aponta para o touro e, à
medida que ele se aproxima, e segue a muleta, crava a espada com a mão
direita e faz o animal se afastar com a muleta na mão esquerda, como
num pase de pecho, sem mover os pés até que a espada tenha sido
cravada. A maneira mais difícil, perigosa e emocionante de se matar
touros, raramente vista nos tempos modernos. Vi ser executada por
inteiro três vezes em quase trezentas touradas.
Recoger: chifrar de novo; no caso do touro, pegar alguma coisa no chão e
arremessar no ar; ou depois de arremessar um homem para cima, pegá-
lo com o outro chifre.
Recorte: qualquer passe com a capa em que ela é arrancada da frente do
touro ou virada de repente; um movimento rápido feito pelo homem
que interrompe o ataque do animal; manobra que faz o touro dobrar o
corpo de maneira brusca, torcendo as pernas e a coluna.
Recursos: um toureiro de muitos recursos é aquele que tem truques na
manga e que sabe como lidar com as dificuldades à medida que elas vão
surgindo.
Redondel: sinônimo para a arena onde o touro é combatido.
Redondo; en redondo: sucessão de passes, como os naturais, em que o
homem e o touro executam um círculo completo; qualquer passe que
tende a traçar um círculo.
Regalo: presente ou recordação que o toureiro recebe do espectador a
quem ele dedicou o touro. Usado de maneira sarcástica para se referir a
um touro difícil.
Reglamento: decretos do governo que regram as touradas na Espanha. A
ideia era publicar uma tradução dessa legislação como um apêndice
deste livro, mas como a normativa em vigor é da época de Primo de
Rivera, optou-se por esperar a publicação de um reglamento novo, que
deve ser incluído em futuras edições deste livro, se for o caso.
Regular: normal, comum ou medíocre, quando se refere ao trabalho de
um matador ou ao resultado de uma corrida.
Rehiletes: setas; sinônimo de banderillas.
Rehilitero: banderillero.
Rejón: dardo usado para matar touros por um toureiro a cavalo.
Rejoneador: homem a cavalo que tenta matar touros usando um rejón.
Relance; al relance: colocar mais um par de banderillas surpreendendo o
touro que ainda está atacando depois de ter recebido um par anterior de
banderillas.
Reloj: relógio; usados em todas as arenas, por determinação da lei, para
que os espectadores possam acompanhar o tempo gasto pelo matador
no momento do sacrifício.
Rematar: acabar; fazer o último passe de qualquer série de passes com a
capa; executar algum movimento capaz de criar um clímax emocional
ou estético. Em relação aos animais, quando um touro rematar en tablas,
ou acertar as tábuas, significa que o touro perseguiu um homem que
saltou a barrera, fazendo o animal investir os chifres contra a madeira.
Remojar: umedecer bem as capas e muletas para serem usadas em um dia
ventoso.
Remos: pernas dianteiras ou traseiras do touro ou do cavalo.
Rendido: cansado; dominado pelo homem.
Renovador: inovador, transformador da arte etc. Aparecem vários desses
nas touradas, quase um por ano, mas o único verdadeiro inovador das
touradas modernas foi Juan Belmonte.
Renunciar: abrir mão ou renunciar; um toureiro abre mão da alternativa
quando abandona a posição de um profissional matador de touros para
aceitar qualquer contrato que surja como novillero.
Reparado de vista: touro com problema de visão em um olho, mas não
totalmente cego. Problemas de visão são frequentemente causados por
um fragmento de palha ou outra sujeira qualquer que machuque o olho
do touro enquanto ele come.
Res: animal selvagem; qualquer cabeça de gado numa fazenda criadora de
touros bravos puros-sangues.
Resabio: crueldade; toro de resabio: touro cruel.
Retirada: aposentadoria; toureiros se aposentam às vezes quando eles têm
poucos contratos, ou quando estão muito apaixonados pelas esposas; e
voltam a lutar anos depois, no primeiro caso, porque esperam que a
novidade de seu retorno renda mais contratos e, no segundo caso,
porque precisam de dinheiro ou porque experimentaram uma
diminuição na intensidade da paixão pela esposa.
Revistas: revistas ou publicações; revistas de toros são periódicos sobre
touradas. Hoje, a maioria dessas publicações é feita de propagandas que
destacam fotografias e relatos floreados das performances de toureiros
que pagam uma certa quantia em dinheiro para os editores. Toureiros
que devem dinheiro porque deixaram de pagar por alguma propaganda
ou outros que se recusaram a aceitar propostas de propaganda,
geralmente na forma de pagamento para aparecer numa fotografia da
capa ou, numa opção mais barata, numa fotografia interna, sofrem
ataques mais ou menos difamatórios nas páginas mais baratas. Le Toril,
publicado em Toulouse, na França, é uma publicação imparcial sobre
touradas mantida por assinaturas e que não aceita propagandas nem
anúncios, sejam eles declarados ou escondidos nos textos. A sinceridade
e a imparcialidade da revista ao fazer críticas consistentes são limitadas
pelo número pequeno de corridas que seus editores conseguem ver a
cada ano, e pelo fato de que eles não acompanham a primeira e a
segunda temporada por assinatura em Madri e, dessa forma, encaram
cada tourada como um evento isolado e não como parte da campanha
ou da temporada de um toureiro. El Eco Taurino, publicado em Madri,
oferece os relatos mais completos e corretos das touradas na Espanha e
no México. La Fiesta Brava, de Barcelona, embora seja um semanário
feito de propagandas, tem fotografias excelentes, e um pouco de fatos e
notícias. Nenhuma das outras publicações é séria, embora algumas,
como Toreros y Toros, sejam jornais interessantes. El Clarín, de Valência,
tem se dado bem com fotografias excelentes, mas é apenas um folheto
de propaganda. Torerias é sempre interessante e é o mais indecente de
todos os folhetos chantagistas. Nos velhos tempos, La Lidia, Sol y Sombra
e, por um período curto, Zig-Zag foram boas revistas sobre as touradas
em que se podia ler sobre a história da tourada na época em que
circularam, embora pareça que nenhuma delas jamais tenha sido livre de
influências financeiras, evidentes de um jeito ou de outro, exercidas por
certos matadores.
Revistero: crítico ou resenhista de touradas.
Revolcón: arremessado pelo touro sem ser ferido, pelo fato de o chifre ter
enroscado na roupa, ou quando o toureiro é erguido pelo meio das
pernas ou por baixo do braço.
Revoltoso: touro que se vira rápido para atacar, rápido demais, depois que
o homem executou o passe com a capa ou a muleta.
Rodillas: joelhos.
Rodillazos: passes em que o toureiro está ajoelhado, com um ou com os
dois joelhos no chão. O mérito dessa manobra leva em conta a superfície
onde ela é realizada e se o matador se ajoelhou antes ou depois que os
chifres passaram por ele.
Rondeño; Escuela Rondeña: Escola de Ronda, ou o estilo de Ronda ao
tourear, discreto, de repertório limitado, simples, clássico e trágico, em
contraponto ao estilo de Sevilha, que é mais variado, festivo e gracioso.
Belmonte, por exemplo, embora tenha sido um inovador, na essência
fazia parte da Escuela Rondeña, apesar de ter nascido e crescido em
Sevilha. Joselito era um exemplo da chamada Escola de Sevilha. Assim
como ocorre nas artes ou na literatura, essa separação de pessoas em
escolas é artificial e arbitrária; nas touradas, mais do que em qualquer
outro lugar, o estilo é feito dos hábitos e das atitudes em relação à
tourada e das habilidades físicas. Se um toureiro tem um temperamento
muito sério, discreto em vez de alegre na arena e com um repertório
limitado devido à falta de imaginação, educação precária ou limitações
físicas que o impedem, por exemplo, de cravar as banderillas, ele é
classificado como alguém da Escola Rondeña, embora ele talvez não
tenha nenhum comprometimento com a maneira discreta de tourear
nem acredite que essa seja uma forma melhor de lutar do que a alegre.
Ele é espontaneamente discreto. Por outro lado, muitos toureiros que
não são nem um pouco alegres ou animados, quando estão na arena,
porque vieram de Sevilha e foram treinados lá, empregam todos os
truques sevilhanos com leveza e elegância, e um sorriso forçado no
rosto, e fazem floreios e gracejos quando na verdade estão tomados de
um medo paralisante. As escolas de Sevilha e de Ronda, como escolas de
visões opostas sobre as touradas, existiram de fato nos primórdios das
touradas profissionais, quando havia uma rivalidade enorme entre os
grandes matadores das duas cidades e entre seus discípulos no que se
referia à forma de lutar, mas agora rondeño significa ser discreto, trágico
e com um repertório limitado na praça de touros, e sevilhano significa
ser alegre, ou ter uma alegria aparente, com um estilo floreado e um
repertório variado.
Rozandole los alamares: quando os chifres do touro passam de raspão
pelos enfeites no traje do toureiro.
Rubios: em relação aos homens, loiros; em relação aos touros, é o lugar no
alto entre as escápulas onde a espada deve ser cravada. Rubias são as
mulheres loiras.
S
Sacar; arrancar; sacar el estoque: arrancar a espada para fazer o ferimento
sangrar mais livremente e levar o touro ao chão; ou simplesmente retirar
a espada por ter sido mal colocada. Geralmente, essa manobra é
realizada por um banderillero, que se aproxima do touro correndo por
trás e arremessa a capa por cima da espada de modo que o peso da capa
mexa com a espada e ela saia do touro. Se o touro estiver quase morto, o
próprio matador pode arrancar a espada com a mão ou com uma
banderilla, às vezes usando a mesma espada para executar um
descabello. Sacar el toro é trazer o touro para o centro da arena depois
que o animal assumiu uma posição perto da barrera.
Sacar el corcho: sacar a rolha de uma garrafa. Um sacacorchos é um saca-
rolhas. Nas touradas, é um estilo feio de trabalhar com a capa, em que o
pano é retorcido para provocar o touro de longe e com o propósito de
atrair o animal para uma série de veronicas.
Salida en hombros: para o matador, é ser carregado nos ombros da
multidão, um sinal de triunfo. Pode significar muito ou não significar
nada, a depender se o empresário do toureiro distribuiu ingressos
gratuitos com instruções ou se a homenagem é mesmo espontânea.
Salidas: saídas; nas touradas, a salida significa mandar o touro para longe
do toureiro usando o pano ao fim de um passe. A salida ao fim de cada
passe é o ponto em que o touro deve sair do território do homem nos
casos em que o touro passa por ele. As respectivas saídas do homem e do
touro depois do momento decisivo tanto na colocação das banderillas
quanto no sacrifício são chamadas de salidas.
Salir por piés: é correr com velocidade total para não ser chifrado depois
de qualquer tentativa de manobra com o touro.
Salsa torera: salsa significa tempero, mas salsa é também a qualidade
indefinível que um toureiro precisa ter para que seu trabalho não seja
monótono, ainda que seja perfeito.
Saltos: nos velhos tempos, eram os saltos dados sobre o touro que podiam
ser sem ajuda ou com a ajuda de uma vara. Os únicos saltos de hoje são
aqueles que os toureiros são forçados a dar sobre a barrera para escapar
do touro.
Sangre torera: sangue de toureiro, como quando o homem vem de uma
família de toureiros profissionais.
Sano: saudável; os touros devem passar pela avaliação de um veterinário e
estar saudáveis antes de uma luta. Fraqueza nos cascos causada pela febre
aftosa, ou glosopeda, não é fácil de detectar, pois ela geralmente vai
aparecer durante a luta.
Santo: um santo; el santo de espaldas: usado para se referir a um toureiro
que teve um dia difícil; o santo deu as costas para ele. Os toureiros têm
como santa padroeira a Virgem de sua vila, cidade ou distrito, mas a
Nossa Senhora da Soledade é a padroeira de todos os toureiros e é o
retrato dela que ilustra a capela da praça de touros em Madri.
Seco: seco, severo; torero seco é aquele que trabalha de forma brusca e
brutal, em vez de trabalhar de forma suave. Valor seco: coragem natural
e sem artifícios; golpe seco: é o golpe que o touro às vezes dá com a
cabeça para tentar se livrar da lança. É o tipo de golpe dado pelo touro
que, se atingir o cavalo ou o homem, causa os piores ferimentos
possíveis. Vino seco: um vinho que não é doce.
Sencillo: um touro que é direto nos ataques, nobre e fácil de controlar.
Sentido: compreensão; define um touro que quase não presta atenção no
pano e que prefere atacar o homem porque foi capaz de aprender rápido
ao longo da luta por meio das manobras inadequadas do homem que o
enfrenta com a capa e as banderillas. Se um toureiro corre e trabalha a
distância em vez de mostrar a habilidade de se posicionar tão perto que o
touro só pode se concentrar no pano, o animal, vendo o homem ao lado
do pano, aprende a distinguir um do outro muito rápido. É assim que
um homem pode tornar um touro difícil, por ter medo do animal,
trabalhar distante dele e não cravar rápido as banderillas, enquanto o
touro fica fácil e dominado por um homem que trabalha tão próximo
que o animal não enxerga nada além do pano, e que crava as banderillas
rápido, antes que o touro aprenda como chifrar o homem.
Señorito: jovem senhor; Señoritos: são os toureiros que assumem ares de
jovens da cidade ou, às vezes, de filhos de pais endinheirados que se
aventuram nas touradas.
Sesgo: enviesamento; al sesgo: maneira de cravar as banderillas explicada
neste livro.
Sevillano; escuela sevillana: a escola sevilhana ou o estilo de tourear de
Sevilha, alegre, variado e rebuscado, em contraste com a forma discreta,
limitada e clássica da escola de Ronda. Um sevilhano e uma moeda de
cinco pesetas cunhada no sul do país, com a mesma quantidade de prata
que a moeda comum do mesmo valor, mas que não é aceita no norte em
transações comerciais porque não é considerada legal para quitar certos
débitos. Não aceite nenhuma moeda de cinco pesetas com a cara do
finado rei quando criança e você não vai ter nenhum problema. Eles
podem dar outras moedas, se você pedir.
Silla: cadeira; antigamente, banderillas eram colocadas com o homem
sentado numa cadeira; ele esperava sentado pelo ataque do touro;
levantava quando o touro se aproximava; fintava para um lado a fim de
atrair o ataque do touro e desviava para o outro a fim de escapar do
ataque; então cravava os bastões e, depois que o touro já havia passado,
sentava de novo na cadeira.
Simulacro: simulação; touradas que ocorrem em lugares onde o sacrifício
do touro é proibido, como Portugal e França, e nas quais o ato de matar
o touro é simulado com o matador colocando uma roseta ou uma
banderilla em vez da espada usada numa tourada de verdade.
Sobaquillo: axila, lugar comum de ferimentos por chifrada causados
quando o homem, ao se aproximar do touro para matar, não consegue
fazer o touro baixar a cabeça com a muleta.
Sobreros: substitutos, touros na reserva, caso qualquer um daqueles
designados para a luta seja reprovado na arena pelo público.
Sobresaliente: quando dois matadores enfrentam juntos seis touros e um
novillero ou aspirante a matador entra com eles na arena, ele é o
sobresaliente ou substituto responsável por matar os touros caso os
toureiros sejam feridos e não consigam continuar na tourada. Um
sobresaliente geralmente recebe duzentas ou trezentas pesetas e deve
ajudar com a capa no trabalho rotineiro de cravar as banderillas. Ele
geralmente recebe permissão dos matadores para fazer um ou dois
quites mais para o fim da tourada.
Sol y sombra: sol e sombra; assentos da arena que estão no sol quando a
luta começa, mas que ficam na sombra à medida que a luta avança. O
preço desses assentos é maior do que os que ficam apenas na sombra e
menor do que os que ficam no sol, e representam uma economia
considerável para quem precisa controlar os gastos.
Sorteo: separação dos touros em lotes e sorteio dos lotes antes da luta para
determinar que touros serão mortos por quais matadores. Pode se referir
também ao sorteio da loteria espanhola.
Suertes: todas as manobras predeterminadas numa tourada; qualquer
movimento numa tourada que tenha regras para sua execução. Suerte,
no singular, também significa sorte.
Sustos: sustos, medos, sobressaltos.
T
Tablas: tábuas; a barrera que cerca a arena onde o touro é enfrentado.
Entablada se refere a um touro que assume uma posição perto da cerca e
que se recusa a deixá-la.
Tabloncillo: fileira de assentos ao ar livre mais alta da arena, logo abaixo
das galerias cobertas.
Tacones: saltos; tacones de goma: saltos de borracha; esses são vendidos
por ambulantes que abordam você no café, cortam o salto do sapato que
você está usando com uma espécie de ferramenta para cortar o couro
rápido e o obrigam a colocar um salto de borracha. Os saltos de
borracha que eles usam são vagabundos, da pior categoria. A desculpa
que eles dão quando você reclama que eles atacaram seus sapatos é que
eles achavam que você tinha pedido os saltos de borracha. É uma
extorsão. Se um dia um agressor de saltos de borracha atacar seus
sapatos sem que você tenha pedido claramente um par de saltos de
borracha, dê um chute na barriga do sujeito ou bem no queixo e procure
outra pessoa para arrumar os sapatos. Acredito que a lei estará a seu
favor, mas se você for preso, a multa não será muito mais cara do que os
saltos de borracha. Existe um catalão com uma cara sinistra que é um
estripador de saltos de sapato encontrado em todas as ferias e
identificável por uma cicatriz na bochecha direita. Essa cicatriz fui eu que
fiz, mas agora ele aprendeu a se esquivar e talvez você tenha dificuldade
de acertá-lo. O melhor a fazer quando você vir esse vendedor de saltos
sem-vergonha (um verdadeiro hijo de puta) se aproximando é tirar os
sapatos e colocar dentro da camisa. Se ele tentar colar saltos de borracha
nos seus pés descalços, pode acionar o consulado americano ou
britânico.
Tal: tal, similar, parecido etc. Qué tal? É só o que você precisa saber para
perguntar: Como vai? Tudo bem? Quais são as novidades? O que tem
feito da vida? Como andam as coisas, chefia? O que você acha? Quais são
as novas desde a última vez que te vi?. E se você acrescentar, depois de
Qué tal, as palavras la familia, você está perguntando sobre a família do
sujeito, uma gentileza necessária; la madre?, sua mãe; su señora, sua
esposa; el negocio, seu negócio (a resposta, geralmente, é fatal); los toros,
os touros (geralmente, muy malo); el movimiento, o movimento,
anarquista, revolucionário, católico ou monárquico (eles geralmente vão
mal); ou las cosas, que inclui tudo isso e muito mais. Las cosas geralmente
não estão tão ruins, porque quase sempre há um otimismo ligado ao
orgulho espanhol, não importa o quão detalhado e genérico seja o
pessimismo.
Taleguilla: bermudas do toureiro.
Tanteo: calcular; lances de tanteo são os primeiros passes feitos pelo
matador usando a capa sem que o homem se aproxime do touro com o
objetivo de ver como o touro ataca antes de arriscar um passe que faça o
touro passar bem próximo do homem.
Tapar: encobrir; tapando la cara con la muleta (encobrindo o rosto com a
muleta): é se aproximar para matar e, ao cobrir o rosto inteiro do touro
com o pano, cegar o animal e então passar por sobre os chifres para
cravar a espada; uma maneira de trapacear no sacrifício, muito usada por
toureiros altos cuja altura permite que eles usem esse truque com
facilidade (em vez de baixar a muleta, fazer o touro acompanhá-la e
balançá-la de modo a afastar o animal do homem).
Taparse: cobrir; é quando o touro, ao erguer a cabeça, cobre o lugar onde
a espada e as banderillas devem ser colocadas; ou quando ele levanta a
cabeça de modo a cobrir o lugar entre o pescoço e a vértebra onde o
matador deve descabellar. Um touro com reflexos rápidos, e que esteja
na defensiva, poderá erguer a cabeça dessa forma toda vez que sentir a
lâmina da espada, tornando impossível a manobra do matador.
Tapas: ou tampas; são chamadas dessa forma porque eram colocadas no
topo dos copos, como se fossem tampas, em vez de serem servidas em
pratinhos como ocorre hoje; são os aperitivos de salmão defumado,
atum e pimenta-doce, sardinhas, anchovas, presunto Sierra defumado,
salsicha, frutos do mar, amêndoas torradas, azeitonas recheadas de
anchovas, servidos gratuitamente com vinho Manzanilla ou vermute,
nos cafés, bares ou bodegas.
Tarascadas: corridas ou ataques repentinos do touro.
Tarde: tarde, atrasado; muy tarde: muito tarde.
Tardo: lento; toro tardo: touro que é lento para atacar.
Taurino: qualquer coisa relacionada à tourada.
Tauromachia: arte de lutar contra touros, a pé ou a cavalo. Os livros mais
famosos a tratar das regras das touradas à moda antiga são as
Tauromachias de José Delgado (Pepé Hillo), Francisco Montés e, mais
recentemente, Rafael Guerra (Guerrita). Alguém escreveu o livro de
Pepe Hillo e o de Guerrita por eles. Mas dizem que o de Montés foi
escrito por ele mesmo. Com certeza, é o mais claro e mais simples de
todos.
Tela: tecido ou material; más tela, num relato de tourada, quer dizer que o
touro recebeu outra dose de capas esvoaçantes; tela é usado sempre num
sentido depreciativo; largando tela: significa estender a capa demais;
estender o tecido para manter o homem o mais longe possível do touro;
estender o toldo.
Temoroso: touro covarde que balança a cabeça e recua de qualquer objeto,
às vezes dando um salto repentino e virando as costas, ou recuando
devagar enquanto cabeceia em vez de atacar.
Templador: pequeno recinto de madeira com quatro lados, erguido no
meio de algumas arenas da América do Sul, com entradas nos quatro
cantos, que oferece proteção extra para os toureiros.
Templar: movimentar a capa ou a muleta bem devagar, com suavidade e
calma, prolongando dessa forma a duração de um passe e o perigo que
ele representa, e dando um ritmo para a ação que envolve o homem, o
touro e a capa, ou o homem, o touro e a muleta.
Temple: lentidão, suavidade e ritmo no trabalho de um toureiro.
Temporada: temporada de uma tourada; na Espanha, da Páscoa até o dia
primeiro de novembro. No México, do dia primeiro de novembro até o
fim de fevereiro.
Tendido: fileiras de assentos ao ar livre numa praça de touros que começa
na altura da barrera e vai até as galerias cobertas, ou grada. Essas fileiras
de assentos são divididas em até dez seções, cada uma com uma entrada
própria, e numeradas como Tendido 1, Tendido 2 etc.
Tercio: terço; uma tourada é dividida em três partes, o tercio de varas, a
parte com as lanças; o tercio de banderillas; e o tercio del muerte, ou o
terço da morte. Na divisão do terreno da arena em si para o propósito da
luta, o tercio é o segundo terço da arena, se ela for dividida em três áreas
circulares. A parte mais próxima da barrera é chamada de tablas e o terço
central da arena é chamado de medios.
Terreno: território; no sentido técnico mais amplo, o território do touro é
considerado aquela área entre o ponto onde ele se encontra e o centro da
arena, o território do toureiro é a área entre o ponto onde ele se
encontra e a barrera. Espera-se que o touro, ao fim de um passe, vá para
o centro da arena e, onde ele tem mais espaço e liberdade. Isso nem
sempre ocorre, pois um touro cansado ou um touro covarde geralmente
vai para perto da barrera. Nesses casos, os territórios precisam ser
revertidos, o homem pega o território externo e deixa o interno para o
touro. A ideia é deixar livre para o touro aquela que é sua saída
espontânea ao fim de cada embate entre o homem e o touro ou ao fim
de qualquer série de passes. O território é também um terço da arena
escolhido pelo toureiro para executar qualquer manobra ou série de
passes, seja ele no centro do círculo, no meio ou mais próximo da
barrera. O território de um toureiro pode ser considerado também a
quantidade de terreno de que ele precisa para executar uma série de
passes bem-sucedidos. No sacrifício executado da maneira mais comum,
com o touro e o toureiro cada qual em seu território, o touro fica com o
flanco direito voltado para a barrera e o esquerdo virado para o centro
da arena, de modo que quando o matador se aproximar para matar o
touro, depois que o homem passa por ele, o touro segue para o meio da
arena e o homem vai na direção da cerca. No caso de touros que
mostraram que sua saída espontânea é na direção da cerca, e não na
direção do centro da arena, o matador vai reverter essa posição quando
se aproximar para matar e atacar o touro com os terrenos cambiados, ou
territórios trocados, posicionando o animal de modo que ele fique com o
flanco esquerdo voltado para a barrera e com o direito virado para o
centro da arena. Nessa posição, o homem se encaminha para o centro
depois de ter passado pelo touro e a saída espontânea do touro ficará
livre no sentido da cerca. A forma mais garantida de um toureiro ser
chifrado é quando ele não entende a lógica dos territórios ou a direção
das saídas espontâneas, ou os sentidos específicos de saída usados por um
determinado touro, e acaba ficando no caminho do touro ao fim de uma
suerte, em vez de deixar o touro seguir seu caminho preferido. Uma
querencia ou lugar especial pelo qual o touro tenha desenvolvido um
apreço é sempre sua saída espontânea ao fim de um passe.
Tiempo; estocadas a un tiempo: são aquelas em que o touro ataca no
mesmo instante em que o homem se aproxima para matar. Para serem
bem executadas, o matador precisa ter muito sangue-frio.
Tienta: teste de coragem realizado com os novilhos numa fazenda de
touros.
Tijerillas: tesouras; passe com a capa feito com os braços cruzados;
raramente visto, mas existe uma tendência atual de revivê-lo.
Tirones: passes com a muleta em que a extremidade de baixo balança
perto do focinho do touro e depois é retirada; a muleta balançando para
atrair a atenção do touro de um lugar para o outro dentro da arena.
Tomar: pegar; dizem que um touro pega a muleta quando ele ataca o pano
com gosto; dizem que um homem pega o touro de corto quando ele
provoca o ataque bem perto do animal, e de largo quando ele provoca a
distância.
Tonterias: absurdo; artifícios bobos feitos com o touro, como pendurar o
chapéu no chifre etc.
Toreador: a palavra torero afrancesada. Não é usada em espanhol, a não
ser para se referir às vezes a um toureiro francês.
Torear: enfrentar touros em um espaço fechado estando a pé ou a cavalo.
Toreo: a arte de enfrentar touros. Toreo de salón: praticar o trabalho com
a capa e a muleta para aprimorar forma e estilo, sem nenhum touro por
perto; parte fundamental no treinamento de um toureiro.
Torerazo: um grande toureiro.
Torerito: toureiro menos importante.
Torero: toureiro profissional. Matadores, banderilleros e picadores são
todos toureiros. Torera significa estar relacionada às touradas.
Torete: tourinho.
Toril: recinto de onde os touros saem para entrar na arena.
Toro: touro bravo. Todo es toro: é tudo touro; comentário sarcástico
usado por banderilleros que cravaram as banderillas em algum lugar
ridículo do animal. Los toros dan y los toros quitan: os touros dão e os
touros tiram; eles rendem dinheiro e podem acabar com sua vida.
Toro de paja: touro de palha; touro inofensivo; tão normal que não
representa nenhum perigo. Toro de lidia: touro bravo. Toro bravo: touro
corajoso. Toro de bandera: touro que é referência em coragem. Torazo:
touro enorme; torito: tourinho; Toro de fuego: touro de papier-mâché
em tamanho natural montado sobre rodas e carregado de fogos de
artifício, rebocado pelas ruas à noite para comemorar festas no norte da
Espanha; também chamado em basco de Zezenzuzko. Toro de
aguardiente: touro com uma corda amarrada nos chifres segurada por
um grupo de pessoas e que corre livre pelas ruas de um vilarejo para
divertir o populacho.
Traje de luces: traje de tourada.
Trampas: artimanhas, trapaças; formas de simular um perigo que não
existe.
Trapio: condição física geral de um touro bravo. Buen trapio: reunindo
todas as qualidades desejadas de tipo, condições físicas e tamanho em
touros bravos de raça.
Trapo: a muleta.
Trasera: estocada dada muito atrás.
Trastear: trabalhar com a muleta.
Trastos: ferramentas; nas touradas, a espada e a muleta.
Trinchera: trincheira; de trinchera: passe com a muleta quando é dado
pelo homem fora do alcance do touro; buscar o refúgio do pescoço,
ficando ao lado dos chifres quando o touro se vira.
Trucos: truques.
Tuerto: caolho; touros cegos de um olho usados nas novilladas. Acredita-se
que tuertos ou pessoas caolhas atraem má sorte. Touros caolhos não são
muito difíceis de enfrentar, mas é quase impossível ter uma tourada
brilhante com um desses.
Tumbos: quedas ou derrubadas; as quedas sofridas pelos picadores.
Turno: vez; por ordem de senioridade como a usada no trabalho dos
matadores; tudo é feito por vez nas touradas, para que elas sejam rápidas
e sem conflitos.
U
Último: o último; último tercio: o último terço da tourada, em que o
touro é morto com a espada e a muleta.
Uretritis: gonorreia; doença comum na Península. Existe um provérbio
espanhol que diz: “Más cornadas dan las mujeres: as mulheres chifram
mais do que os touros.”
Urinario: banheiro público.
Utrero: touro com três anos de idade. Utrera é uma vaca da mesma idade.
Muitos touros vendidos para serem usados em arenas espanholas são
pouco mais do que utreros. Touros em que o cruzamento de linhagens
diferentes não foi bem-sucedido costumam ser muito corajosos como
novilhos e utreros, mas perdem a coragem progressivamente depois que
chegam aos quatro anos de idade. Isso é ainda mais verdadeiro em
relação a touros criados na província de Salamanca. Por consequência,
seus criadores tentam vender utreros como touros, fazendo os animais
comerem cereais para atingir o peso necessário. São esses touros
vendidos para serem enfrentados antes de estarem maduros que acabam
com a emoção e com a seriedade das touradas e, ao eliminar da tourada
seu elemento mais fundamental, o touro, conseguem desacreditar as
touradas mais do que qualquer outra entidade.
V
Vaca: vaca.
Vacuna: relacionado ao gado.
Valiente: corajoso, bravo.
Valla: muro, ou cerca de madeira, ou barrera.
Valor: coragem, bravura, frieza. Primeira qualidade que um toureiro deve
ter.
Vaquero: cuidador ou pastor de touros bravos na fazenda; vaqueiro.
Vaquilla: vaquinha.
Vara: lança; lança usada na tourada.
Varetazo: golpe dado pela parte lisa do chifre do touro; qualquer golpe
dado com os chifres que não perfure o corpo. Pode ser uma contusão
grave com hemorragia interna ou só um arranhão.
Ver llegar: ver chegar; a habilidade de observar o touro se aproximar
durante o ataque sem hesitar e, calmamente, fazer os movimentos
necessários para executar a manobra que você tem em mente. Observar
calmamente o touro atacar é uma coisa fundamental e extremamente
difícil de executar numa tourada.
Vergüenza: vergonha; um sin vergüenza é um toureiro sem honra, sem
vergonha. Qué vergüenza! significa que vergonha ou que desgraça.
Veronica: passe com a capa que recebeu esse nome porque nele a capa é
segurada com as duas mãos da mesma forma como Santa Veronica
aparece nas pinturas religiosas segurando o lenço com que limpou o
rosto de Cristo. Não tem nada a ver com o homem limpando a face do
touro, como um escritor espanhol chegou a sugerir. Ao executar a
veronica, o matador se posiciona de frente ou de lado para o touro, com
a perna esquerda ligeiramente adiantada em relação ao corpo, e oferece
a capa que ele segura com as duas mãos, segurando as extremidades de
baixo da capa pelas rolhas costuradas nas pontas, amontoando o tecido
de modo a encher as mãos com o pano, com os dedos apontados para
baixo e os polegares para cima. Conforme o touro ataca, o homem
espera até que o animal baixe a cabeça para chifrar a capa, e nesse
instante move a capa à frente do touro com um movimento suave dos
braços, os braços baixados, fazendo a cabeça e o corpo do touro
passarem na altura de sua cintura. Ele faz o touro passar e se afastar com
a capa, girando de leve na ponta dos dedos ou na planta do pé ao fazer o
movimento e, no fim do passe, quando o touro faz a volta, o homem
está em posição para repetir o passe, dessa vez com a perna direita
ligeiramente adiantada, traçando a capa à frente do touro para que ele
passe na outra direção. Um homem pode trapacear na veronica ao dar
um passo para o lado durante o ataque do touro para se afastar dos
chifres e juntar os pés uma vez que os chifres terminem de passar por
ele, ou se inclinar ou dar um passo na direção do touro uma vez que os
chifres passarem por ele para dar a impressão de que executou o passe
com os chifres passando muito perto. Um matador que não finge fazer
uma veronica pode fazer o touro passar tão perto que os chifres chegam
a arrancar as rosetas douradas que enfeitam sua jaqueta. Matadores
também podem provocar o touro com os pés juntos e fazer uma série de
veronicas dessa forma, com pés tão imóveis que parecem pregados ao
chão. Isso só pode ser feito com um touro que faz a volta e ataca de novo
espontaneamente e numa linha reta perfeita. Os pés devem estar
ligeiramente separados ao fazer um touro passar mais de uma vez, se for
um touro que precisa ser incitado a acompanhar a capa para fazer a volta
no fim do passe. De qualquer forma, a virtude da veronica não tem a ver
com o fato de os pés estarem juntos ou separados, e sim com o quanto
eles permanecem imóveis do momento em que o ataque começa até
depois que o touro passa, e com a proximidade dos chifres em relação ao
corpo do homem. Quanto mais lento, suave e baixo for o movimento da
capa, melhor será a veronica.
Viaje: viagem; a direção tomada pelo ataque do touro ou pelo homem, ao
se aproximar do touro para cravar as banderillas ou para matar.
Viento ou aire: vento, o pior inimigo do toureiro.
Vientre: barriga; lugar comum para os ferimentos causados por chifrada
quando o homem é atacado no momento do sacrifício e não consegue
encolher a barriga ao passar por sobre os chifres, no movimento
necessário para uma boa estocada. Ferimentos na barriga e no peito são
os mais graves numa tourada, não apenas pelo ferimento, mas pelo
choque causado pela força do golpe dado com o chifre e com a cabeça. O
lugar mais comum para um ferimento de chifrada é a coxa, pois é o
ponto que o touro vai atingir primeiro ao atacar e levantar a cabeça para
chifrar.
Vino: vinho; vino corriente é vinho comum ou vinho de mesa; vino del
pais é o vinho local, sempre bom de pedir; vino Rioja é vinho da região
de Rioja, no norte da Espanha; tinto e branco. Os melhores são feitos por
Bodegas Bilbainos, Marqués de Murrieta e Marqués de Riscal. Rioja
Clarete e Rioja Alta são os mais leves e agradáveis entre os vinhos tintos.
Diamante é um bom vinho branco para acompanhar um peixe. Os
Valdepeñas são mais encorpados do que os Riojas, mas eles fazem um
branco e um rosé excelentes. Os vitivinicultores espanhóis produzem
Chablis e Burgundies que não são recomendáveis. O Clarete Valdepeñas
é um vinho muito bom. Os vinhos de mesa em Valência são muito bons,
os de Tarragona são melhores, mas não viajam bem. A Galícia tem bons
vinhos de mesa locais. Nas Astúrias, eles bebem cidra. Os vinhos locais
de Navarra são muito bons. Para todos aqueles que vêm à Espanha e só
conhecem o xerez, os vinhos tintos secos, leves e esplêndidos de Málaga
serão uma revelação. O vin ordinaire na Espanha é muito superior ao da
França porque nunca é manipulado nem adulterado, e custa só trinta por
cento mais caro. Acredito que seja, de longe, o melhor da Europa. E,
diferente da França, eles não produzem Grands Vins.
Vista: visão clara; de mucha vista: ter visão clara e conhecimento sobre
touradas.
Vividores: viventes; trapaceiros; aqueles parasitas que ganham a vida com
as touradas sem fazer nenhuma contribuição para elas. O trapaceiro
espanhol consegue ganhar a vida onde seu colega armênio ou grego mal
conseguiria existir; e onde o bom trapaceiro americano morreria de
fome, o trapaceiro espanhol ganha o suficiente para se aposentar.
Volapié: voar enquanto corre; método de matar touros inventado por
Joaquín Rodríguez (Costillares), na época em os americanos declararam
independência dos ingleses, para lidar com um touro que, por estar
cansado demais, não consegue atacar para que o toureiro possa matá-lo
recibiendo, a manobra em que o homem espera o ataque do touro para
cravar a espada. No volapié, o homem posiciona o touro com as quatro
patas alinhadas; perfila o touro a uma distância pequena, com a muleta
baixada; mira ao longo da lâmina, que funciona como o prolongamento
do antebraço que está cruzado no peito, e se aproxima do touro, o
ombro esquerdo projetado para a frente, cravando a espada com a mão
direita no meio dos ombros do touro; faz o touro se afastar usando a
muleta na mão esquerda, encolhe a barriga para evitar o chifre direito e
escapa do encontro pelo flanco do animal. Ainda que os matadores de
hoje raramente cheguem perto do touro no momento de cravar a
espada, e quase nunca segurem a espada no nível do peito, e mirem com
a lâmina de qualquer jeito, na altura do queixo ou acima do nariz, o
volapié, como foi descrito aqui e inventado por Costillares, ainda é o
método de matar touros na era moderna.
Volcar: virar ou tombar; volcando sobre el morillo: expressão usada para
se referir a um matador que avança para matar de maneira tão firme e
franca que quase cai em cima dos ombros do touro depois de cravar a
espada.
Voluntad: desejo ou boa vontade; dizem que um matador demonstrou
buena voluntad quando ele dá o melhor de si e, se o resultado for ruim, é
por causa de algum defeito do touro ou por incapacidade do homem e
não por falta de vontade.
Vuelta al ruedo: volta na arena feita pelo matador por insistência dos
espectadores para receber aplausos. Ele é acompanhado pelos
banderilleros que pegam e embolsam os charutos arremessados, e
arremessam de volta os chapéus ou outros artigos de vestuário atirados
na arena.
Z
Zapatillas: sapatilhas sem salto usadas pelos toureiros na arena.
REAÇÕES DE ALGUNS POUCOS INDIVÍDUOS À TÍPICA TOURADA
ESPANHOLA
As idades citadas são aquelas com que viram uma tourada pela
primeira vez.
P.H., 4 anos; norte-americano; homem. Levado pela babá a uma tourada
espanhola em Bordeaux, sem conhecimento nem permissão dos pais,
depois de ver o touro atacar os picadores, ele berrou: “Il faut pas faire
tomber le horsy!”. Pouco depois, ele berrou: “Assis! Assis! Je ne peux pas
voir le taureau!”. Quando os pais perguntaram o que tinha achado da
tourada, ele disse: “J’aime ça!”. Levado a uma tourada espanhola em
Bayonne três meses depois, ele pareceu muito interessado, mas não disse
nada durante a luta. Depois que terminou, ele disse: “Quand j’étais jeune,
la course de taureaux n’était pas comme ça”.
J.H., 9 anos; norte-americano; homem; formação: liceu francês; um ano
de pré-escola nos Estados Unidos. Fez equitação por dois anos e teve
permissão de ir às touradas com o pai como recompensa pelo desempenho
na escola e, como seu irmão mais novo viu uma luta sem que seus pais
soubessem e não sofreu efeitos colaterais, ele achava injusto que o filho
mais novo tivesse visto um espetáculo que ele só teria permissão de ver
quando completasse doze anos. Acompanhou a tourada com um interesse
enorme e sem falar nada. Quando as almofadas começaram a ser jogadas
contra um toureiro covarde, ele cochichou: “Papai, posso jogar a minha?”.
Achou que o sangue na perna do cavalo era tinta e perguntou se os cavalos
eram pintados assim para que o touro os atacasse. Ficou muito
impressionado com os touros, mas achou que o trabalho dos matadores
parecia fácil. Admirou a coragem vulgar de Saturio Torón. Disse que
Torón era seu preferido. Todos os outros ficaram com medo. Acreditou
piamente que nenhum toureiro, por mais esforçado que fosse, era muito
bom. Implicou com Villalta. Disse: “Odeio o Villalta!”, na primeira vez que
usou esse verbo para falar de um ser humano. Questionado por que, disse:
“Odeio a cara dele e o jeito como ele se mexe.” Declarou que, na sua
opinião, não existia nenhum toureiro melhor do que seu amigo Sidney e
que ele não queria mais ver nenhuma tourada que não tivesse Sidney na
arena. Disse que não gostava de ver os cavalos serem feridos, mas se
divertiu ao ver um episódio engraçado envolvendo cavalos. Ao descobrir
que os matadores também morriam, decidiu que preferia trabalhar como
guia em Wyoming ou com armadilhas para caçar animais. Quem sabe
trabalhar como guia no verão e com armadilhas no inverno.
X.Y., 27 anos; norte-americano; homem; ensino superior completo;
quando menino, andava a cavalo na fazenda. Levou uma garrafa de bolso
com conhaque na sua primeira tourada — tomou vários goles na arena —,
quando o touro atacou o picador e atingiu o cavalo, X.Y. deu um berro
repentino e recuperou o fôlego — e tomou um gole de conhaque —, e
repetiu isso em cada encontro do touro com o cavalo. Parecia estar à
procura de fortes emoções. Duvidou do meu entusiasmo pelas touradas.
Disse que era só para eu manter a farsa. Ele não se entusiasmava e
afirmava que ninguém poderia se entusiasmar. Ainda acha que o interesse
pelas touradas é uma mentira. Não se interessa por nenhum tipo de
esporte. Não se interessa por jogos de azar. Ele se diverte e se ocupa com
bebidas, vida noturna e fofocas. Escreve. Viaja.
Cap. D.S., 26 anos; soldado; britânico; descendente de irlandeses e
ingleses; formação: escolas públicas e Sandhurst; foi para Mons em 1914
como oficial de infantaria; ferido em 27 de agosto de 1914; histórico
brilhante como oficial de infantaria entre 1914 e 1918. Caça com cães e
pratica corrida de obstáculos para cavalos. Como diversão, gosta de caçar,
esquiar e escalar; é culto e inteligente, e aprecia a literatura e a arte
modernas. Não tem interesse por jogos nem apostas. Sofreu de maneira
sincera e profunda ao ver o que aconteceu com os cavalos em sua primeira
tourada — disse que foi a coisa mais horrível que já tinha visto. Continuou
a frequentar as touradas, segundo ele, para entender a mentalidade das
pessoas que toleram uma coisa dessas. Ao fim de sua sexta tourada, ele
entendeu tão bem que se envolveu numa discussão em que defendeu a
conduta de um matador, John Anllo, o Nacional II, durante a luta em que
um espectador o insultou. Participou de lutas amadoras realizadas pela
manhã nas arenas. Escreveu dois artigos sobre touradas, um deles foi uma
apologia, publicados por um jornal do exército.
Srta. A.B., 28 anos; norte-americana; não é amazona; formação: ensino
médio completo; estudou para se tornar cantora de ópera; não se interessa
por esportes nem por jogos de azar. Não aposta. Foi a uma tourada e ficou
ligeiramente horrorizada. Não gostou do que viu. Nunca mais foi.
Srta. E.R., 30 anos; norte-americana; formação: superior completo; sabe
cavalgar e tinha um pônei quando criança; musicista; autor favorito: Henry
James; esporte favorito: tênis; nunca tinha visto uma luta de boxe nem
uma tourada até se casar. Gostava de boas lutas de boxe valendo dinheiro.
Não queria que ela visse os cavalos sofrerem na tourada, mas acreditava
que ela poderia gostar do resto da corrida. Fiz ela desviar o olhar quando o
touro atacou o cavalo. Avisei quando não olhar. Não queria que ela ficasse
chocada ou horrorizada. Descobri que ela não ficou chocada nem
horrorizada pelos cavalos e que encarou a situação toda como parte da
tourada, de que ela gostou imensamente logo de primeira, e da qual se
tornou grande adepta e admiradora. Desenvolveu um olhar infalível para
avaliar um matador em questões de classe, honestidade e capacidade assim
que botava os olhos num toureiro. Certa vez, ficou muito impressionada
com um determinado matador. Com certeza, o matador ficou muito
impressionado com ela. Teve a sorte de estar distante das touradas quando
o matador enfrentou sua derrocada moral.
Srta. S.T., 30 anos; inglesa; formação: escola particular e convento; sabe
cavalgar; ninfomaníaca alcoólica. Chegou a pintar por um tempo. Gastava
dinheiro rápido demais para conseguir apostar em qualquer coisa —
apostou algumas vezes com dinheiro emprestado. Amava beber mais do
que experimentar emoções fortes — muito impressionada com a morte
dos cavalos, mas tão animada com os toureiros e com as emoções de
maneira geral que passou a frequentar as arenas. Depois das touradas,
bebia até apagar qualquer lembrança delas.
W.G., 27 anos; norte-americano; homem; formação: superior completo;
excelente jogador de beisebol; um ótimo desportista, muito inteligente e
tinha boas noções de estética; único contato com cavalos foi em fazendas;
recentemente, se recuperou de uma depressão que veio depois de um
colapso nervoso; ficou chocado e horrorizado com os cavalos. Não
conseguiu acompanhar a tourada. Fez um julgamento moral de tudo.
Sofreu de maneira sincera e verdadeira com a dor que presenciou na luta.
Odiou os picadores. Achou que eles eram moralmente responsáveis.
Depois de ir embora da Espanha, o horror diminuiu e ele se lembrou de
partes da luta que considerava boas, mas ele tinha uma antipatia real e
sincera pelas touradas.
R.S., 28 anos; norte-americano; homem; escritor de sucesso sem bens
próprios; formação: superior completo; gostou muito das touradas;
gostava da música feita por compositores da moda, mas não era músico;
não admirava nenhuma arte além da música; não era cavaleiro; não se
incomodou nem um pouco com os cavalos; participava de touradas
amadoras pela manhã e sabia como conquistar o público; viveu em
Pamplona por dois anos. Parecia gostar imensamente das touradas, mas
deixou de acompanhá-las depois de casado, embora diga com frequência
que gostaria de voltar a vê-las. Talvez volte um dia. Parecia genuinamente
interessado nelas, mas agora não tem mais tempo para nada que não
envolva ganhar dinheiro e cultivar contatos. Tem interesse genuíno em
golfe. Quase não aposta em jogos de azar, mas faz algumas apostas em
questões que envolvem fatos, opinião, lealdade etc.
P.M., 28 anos; norte-americana; formação: convento e superior
completo; não toca nenhum instrumento musical; não aprecia música; é
inteligente e gosta de artes e de literatura; costumava andar a cavalo e teve
um pônei quando criança. Viu sua primeira tourada em Madri, na qual três
homens foram chifrados. Não gostou do que viu e saiu da arena antes da
tourada terminar. Viu outra um pouco melhor na segunda vez e gostou.
Não se incomodou nada com os cavalos. Passou a entender de touradas e a
apreciá-las mais do que qualquer outro espetáculo. Tem frequentado as
touradas regularmente. Não se interessa por boxe nem por futebol
americano, mas gosta de ciclismo. Gosta de pescar e de atirar. Não gosta
de jogos de azar.
V.R., 25 anos; norte-americana; formação: convento e superior completo;
amazona talentosa; gostou tremendamente das touradas logo de início;
não se incomodou nada com os cavalos; desde sua primeira vez, vai às
touradas sempre que tem chance. Gosta bastante de boxe, gosta de
corridas de cavalos, não se interessa por ciclismo e gosta de apostar em
jogos de azar.
A.U., 32 anos; norte-americano; formação: superior completo; poeta; de
uma sensibilidade enorme; atleta versátil; gosta de música, artes e
literatura; andava a cavalo no exército, mas não é um cavaleiro. Não se
interessa por jogos de azar, ficou profundamente abalado ao ver os touros
investirem contra os cavalos em sua primeira tourada, mas isso não afetou
sua diversão. Gostava imensamente do trabalho do matador quando ele
era bom e vaiava prontamente com o resto da multidão quando não era.
Desde aquele outono, vive num lugar onde não tem acesso às touradas.
S.A., Romancista de fama internacional que escreve em iídiche. Teve
sorte de ver touradas excelentes em sua primeira viagem a Madri e
afirmou que não havia emoção comparável em intensidade, a não ser por
sua primeira relação sexual.
Sra. M.W., 40 anos; norte-americana; formação: escolas privadas; não
tem aptidão para esportes; já andou a cavalo; tem um gosto apurado para
a música, a pintura, a escrita; é generosa, inteligente, fiel, sedutora; uma
excelente mãe. Preferiu não ver os cavalos — desviou o olhar — e gostou
do restante da tourada, mas não fez questão de ver muitas mais. Gosta
muito de se divertir e sabe muito bem como fazer isso.
W.A., 29 anos; norte-americano; homem; jornalista de sucesso;
formação: superior completo; não sabe andar a cavalo; muito civilizado e
tem muito gosto por comer e beber; é culto e experiente; ficou frustrado
com sua primeira tourada, mas não se incomodou com os cavalos; na
verdade, gostou dela, mas acabou ficando entediado com o resto da luta;
depois acabou demonstrando um grande interesse em touradas e trouxe a
esposa para a Espanha, mas ela não gostou das lutas e, no ano seguinte,
W.A. deixou de acompanhá-las. Ele não tinha sorte e as touradas que via
eram quase sempre ruins, ele acompanhou o boxe por um tempo, mas não
frequenta mais as lutas. Aposta um pouco em jogos de azar, ama comida,
bebida e conversa boa. Extremamente inteligente.
Nessas poucas reações, tentei ser completamente fiel às primeiras
impressões e às impressões definitivas que esses indivíduos tiveram sobre
as touradas. A única conclusão que consigo tirar dessas reações é que
algumas pessoas vão gostar das touradas e outras não vão gostar. Como se
trata de uma desconhecida, não pude contar a história de uma inglesa de
uns trinta e cinco anos que vi numa tourada em San Sebastián,
acompanhada do marido, que ficou tão abalada com os cavalos sendo
atacados pelo touro que ela gritava e chorava como se fossem seus cavalos
ou os próprios filhos na arena. Ela foi embora chorando, mas disse para o
marido ficar. Ela não quis chamar atenção, mas a cena foi horrível demais
para ela. Era uma mulher bonita e parecia ser simpática, e fiquei com pena
dela. Também não descrevi as reações de uma garota espanhola que foi a
uma tourada em La Coruña com quem parecia ser seu marido ou noivo.
Ela chorou muito e sofreu em toda a corrida, mas permaneceu na arena.
Falando com toda franqueza, essas foram as duas únicas mulheres que vi
chorar em mais de trezentas touradas. Deve-se levar em conta, claro, que
nessas lutas eu só conseguia observar meus vizinhos mais próximos.
UMA BREVE AVALIAÇÃO DO NORTE-AMERICANO SIDNEY FRANKLIN
COMO MATADOR
JANEIRO
Touradas todos os domingos na Cidade do México; em Lima, no Peru; e
em Caracas, na Venezuela.
No dia 1º janeiro há sempre uma tourada em San Luis de Potosí, no
México.
Há touradas de vez em quando, aos domingos, nas cidades de Tampico,
Vera Cruz, Torreón, Puebla, León, Zacatecas, Ciudad Juarez e Monterey.
Em Casablanca, no Marrocos, uma ou mais touradas ocorrem nos
domingos de janeiro.
Valência, Maracay e Maracaibo, na Venezuela, realizam touradas de vez
em quando aos domingos.
Cartagena das Índias, na Colômbia, também costuma ter touradas em
janeiro.
FEVEREIRO
Touradas acontecem todos os domingos na Cidade do México, em Lima
e em Caracas, e eventualmente uma tourada beneficente num dia de
semana, na Cidade do México.
Aos domingos, há touradas oficiais ou novilladas em San Luis de Potosí,
Ciudade Juarez, Puebla, Torreón, Monterey, Aguas Calientes, Tampico,
León e Zacatecas, no México, e touradas em Bogotá, Baranquilla e no
Panamá, na América Central.
Se o tempo ajudar, as novilladas começam aos domingos em Madri e
Barcelona, e em Valência.
MARÇO
Há touradas todos os domingos na Cidade do México e em Caracas
(Venezuela). De tempos em tempos, ocorrem touradas em Málaga,
Barcelona e Valência, e há sempre uma tourada em Castellón de la Plana
para as Fiestas de la Magdalena, que você pode procurar em qualquer
calendário religioso e vai achar.
As novilladas geralmente ocorrem, se o tempo ajudar, todos os
domingos em Madri, Barcelona, Valência, Zaragoza, e num domingo ou
outro em Bilbao.
ABRIL
Há touradas no domingo de Páscoa em Madri, Barcelona, Sevilha,
Zaragoza, Málaga, Múrcia e Granada.
Na segunda-feira depois da Páscoa, começam as primeiras touradas dos
pacotes por assinatura em Madri.
A feria em Sevilha começa uma semana depois da Páscoa e tem três
touradas em dias sucessivos.
Dia 25, feria em Lorca.
Dia 29, feria em Jerez de la Frontera.
Há touradas todo domingo depois da Páscoa em Madri, Barcelona e
Valência, e novilladas aos domingos em Zaragoza, Bilbao e geralmente nas
arenas menores de Vista Alegre e Tetuán de las Victorias, em Madri. Se
você for a qualquer uma das duas, tenha cuidado com os batedores de
carteiras.
MAIO
Se a Páscoa for mais cedo e o Corpus Christi cair em maio, há touradas
nessa data em Madri, Sevilha, Granada, Málaga, Toledo e Bilbao,
possivelmente também em Zaragoza.