Ernest Hemingway - Morte Ao Entardecer

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Do mesmo autor:
Adeus às armas
A quinta-coluna
As ilhas da corrente
Contos (obra completa)
Contos — Vol. 1
Contos — Vol. 2
Contos — Vol. 3
Do outro lado do rio, entre as árvores
Morte ao entardecer
O jardim do Éden
O sol também se levanta
O velho e o mar
O verão perigoso
Paris é uma festa
Por quem os sinos dobram
Ter e não ter
Verdade ao amanhecer
Como chegamos a Paris e outras narrativas
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

H428m
Hemingway, Ernest, 1899-1961
Morte ao entardecer [recurso eletrônico] / Ernest Hemingway ;
tradução Irinêo Baptista Netto. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Bertrand
Brasil, 2024.
recurso digital
Tradução de: Death in the afternoon
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5838-234-8 (recurso eletrônico)
1. Touradas - Espanha.. 2. Livros eletrônicos. I. Netto, Irinêo
Baptista. II. Título.
24-87697
CDD: 791.82
CDU: 791.862

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

Copyright © Charles Scribner’s Sons, 1932


Copyright © Hemingway Foreign Rights Trust

Texto revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990.

Todos os direitos reservados.


Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer
meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

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Para Pauline
SUMÁRIO

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Um glossário explicativo de certas frases, palavras e termos usados nas
touradas
Reações de alguns poucos inpíduos à típica tourada espanhola
Uma breve avaliação do norte-americano Sidney Franklin como
matador
Datas comuns de touradas na Espanha, na França, no México e nas
Américas Central e do Sul
Nota bibliográfica
MORTE AO ENTARDECER
1

Na minha primeira tourada, achei que ficaria chocado e talvez revoltado


ao ver o que me contaram que aconteceria com os cavalos. Tudo o que ti-
nha lido sobre a praça de touros insistia nesse argumento; a maioria que
escrevia sobre o assunto condenava a tourada como um negócio estúpido
e brutal, mas mesmo quem falava bem dela como uma demonstração de
habilidade e uma forma de espetáculo criticava o uso de cavalos e
lamentava a coisa toda. A morte dos cavalos na arena era considerada
indefensável. Penso que moralmente, do ponto de vista moderno, isto é,
do ponto de vista cristão, a tourada em si seja indefensável; sem dúvida, há
muita crueldade, sempre há perigo, seja ele previsto ou imprevisto, e
sempre há sacrifício, e não vou tentar defendê-la agora, apenas contar
honestamente o que eu penso de verdade sobre ela. Para fazer isso, devo
ser completamente sincero, ou tentar ser, e, se quem ler isto se revoltar e
achar que foi escrito por alguém sem a sua — a de quem lê — sutileza de
sentimentos, só me resta alegar que isso pode ser verdade. Mas, seja quem
for que leia isto, só pode fazer um julgamento desses se ele, ou ela, tiver
visto as coisas descritas aqui e sinceramente reconhecer quais seriam suas
reações a elas.
Certa vez, numa conversa sobre touradas, me lembro de que Gertrude
Stein falou de sua admiração por Joselito e me mostrou algumas
fotografias dele na arena e de si mesma com Alice Toklas sentadas na
primeira fileira das barreras de madeira na praça de touros em Valência,
com Joselito e o irmão El Gallo logo abaixo, e eu tinha acabado de chegar
do Oriente Próximo, onde os gregos quebravam as pernas de seus cavalos
e os arrastavam e jogavam na água rasa quando abandonavam a cidade de
Smyrna, e me lembro de dizer que não gostava das touradas por causa dos
pobres cavalos. Na época, eu estava tentando escrever e achei que a maior
dificuldade, além de saber de verdade o que você realmente sentia, e não o
que deveria sentir, ou o que tinha sido educado para sentir, era colocar no
papel o que acontecia de fato, era escrever sobre as coisas concretas que
produziam a emoção que você sentia. Ao escrever para um jornal, você
conta o que aconteceu e, com alguns artifícios, comunica a emoção com a
ajuda de um senso de oportunidade que dá uma certa emoção a qualquer
relato de algo que aconteceu num determinado dia; mas a coisa real, a
sucessão de movimentos e fatos que produziram a emoção, e que
continuaria válida por um ano, ou por dez anos, ou, se você tivesse sorte,
para sempre, e, se a expressasse de forma pura o suficiente, estava muito
além de mim e eu estava me esforçando muito para tentar alcançá-la. O
único lugar onde se podia ver a vida e a morte, isto é, ver a morte violenta,
agora que as guerras tinham terminado, era na praça de touros, e eu
queria muito ir para a Espanha, onde poderia estudá-la. Eu estava tentando
aprender a escrever, começando com as coisas mais simples, e uma das
coisas mais simples de todas e a mais fundamental é a morte violenta. Ela
não tem nenhuma das complicações da morte por doença, ou da chamada
morte natural, ou da morte de um amigo ou de alguém que você amou ou
odiou, mas essa morte é, no entanto, um dos assuntos sobre os quais um
homem talvez escreva. Eu tinha lido muitos livros em que o autor só
produziu um borrão ao tentar falar da morte, e conclui que isso se devia
ao fato de o autor nunca tê-la visto com clareza ou, no momento em que a
viu, ter fechado os olhos física ou mentalmente, como um indivíduo faria
se visse uma criança prestes a ser atingida por um trem, mas estivesse fora
de alcance ou sem a possibilidade de ser ajudada. Num caso assim,
suponho que ele talvez tivesse justificativa em fechar os olhos, pois o
simples fato de a criança estar prestes a ser atingida pelo trem era tudo o
que ele poderia expressar, o impacto em si seria um anticlímax, de modo
que o momento anterior ao impacto seria o mais longe que ele poderia ir.
Mas no caso de uma execução por um pelotão de fuzilamento, ou de um
enforcamento, isso não é verdade, e para que essas coisas muito simples se
tornassem tão definitivas quanto, digamos, em Los Desastres de la Guerra,
de Goya, era preciso evitar isso de fechar os olhos. Eu tinha visto certas
coisas, certas coisas simples das quais eu me lembrava, porém, ao
presenciá-las ou, em outros casos, ao ter de escrever sobre elas pouco
depois e, consequentemente, ao entender o que era preciso para fazer o
registro imediato, compreendi que nunca consegui estudá-las como um
homem consegue, por exemplo, estudar a morte do seu pai ou o
enforcamento de alguém que, digamos, ele não conhecia e sobre o qual
não teria de escrever pouco depois para a primeira edição de um jornal
vespertino.
Então fui à Espanha com o intuito de ver as touradas e para tentar
escrever sobre elas por conta própria. Achei que seriam simples e bárbaras
e cruéis, e que eu não gostaria delas, mas que veria certas ações concretas
que me dariam uma noção do embate entre a vida e a morte que
ajudariam no meu trabalho. Encontrei a ação concreta; mas a tourada
estava longe de ser simples, e eu gostei tanto daquilo que ficou complicado
demais para as ferramentas de escrita que eu tinha até então e, exceto
quatro esboços muito curtos, não consegui escrever nada sobre a tourada
por cinco anos — e eu gostaria de ter esperado dez. Entretanto, se eu
tivesse esperado tempo suficiente, talvez nunca tivesse escrito nada, já que
você, quando começa mesmo a aprender algo sobre alguma coisa, tem a
tendência de não querer escrever sobre essa coisa, e sim de continuar
aprendendo sobre ela para sempre, até o fim dos tempos, a não ser que seu
ego infle muito, o que, é claro, explica a existência de muitos livros, e você
consiga dizer: agora sei tudo sobre esse assunto e vou escrever sobre ele. É
óbvio que não digo isso hoje; a cada ano sei que há mais para aprender,
mas sei algumas coisas que podem ser interessantes neste momento, e
talvez fique longe das touradas por bastante tempo, então poderia muito
bem escrever sobre o que sei delas agora. Também pode ser bom ter um
livro sobre touradas, e um livro sério sobre um assunto tão amoral deve
ter algum valor.
No que diz respeito às questões morais, só sei que algo moral faz você se
sentir bem e que algo imoral faz você se sentir mal, e a julgar por esses
critérios, com os quais não concordo, a tourada é muito moral para mim
porque me sinto bem enquanto ela está acontecendo e ela me faz pensar
sobre a vida e a morte, e sobre mortalidade e imortalidade, e depois que
ela acaba, me sinto muito triste, mas muito bem. Além disso, não me
preocupo com os cavalos; não em princípio, mas na verdade não me
preocupo mesmo com eles. Fiquei muito surpreso com isso, pois não
consigo ver um cavalo na rua e não sentir o impulso de ajudá-lo, e já
estiquei os baixeiros, soltei os arreios e me esquivei dos cascos muitas
vezes e farei isso tudo de novo se encontrar cavalos nas ruas da cidade com
o tempo úmido e frio, mas na arena não sinto nenhum horror ou
repugnância pelo que acontece com eles. Tenho levado muitas pessoas,
tanto homens quanto mulheres, a touradas e tenho visto suas reações à
morte e ao sofrimento dos cavalos na arena, e suas reações são bastante
imprevisíveis. As mulheres que eu sabia que iriam gostar das touradas, mas
não do sofrimento dos cavalos, não foram afetadas pelo sofrimento; quero
dizer, não foram afetadas mesmo, ou seja, algo que elas criticavam e que
esperavam que as horrorizasse e revoltasse não as horrorizou nem as
revoltou nem um pouco. Outras pessoas, tanto homens quanto mulheres,
foram tão afetadas que passaram mal fisicamente. Mais tarde vou entrar
em detalhes sobre como algumas dessas pessoas reagiram, mas me deixe
dizer agora que não havia diferença, nem uma linha de separação, usando
qualquer critério de cultura ou de experiência, entre as pessoas que foram
afetadas e as que não foram afetadas.
De observar, eu diria que as pessoas talvez estejam divididas em dois
grupos básicos: aqueles que, para usar o jargão da psicologia, se
identificam com os animais, ou seja, que se colocam no lugar dos animais;
e aqueles que se identificam com os seres humanos. Acredito, com base
em experiência e observação, que as pessoas que se identificam com os
animais, ou seja, aquelas que se dedicam de modo quase profissional a
amar cães e outros animais, são mais capazes de cometer crueldade com
os seres humanos do que aquelas que não se identificam facilmente com
os animais. Parece que houve uma ruptura profunda entre as pessoas com
base nisso, embora as pessoas que não se identificam com os animais
possam, mesmo não gostando dos animais em geral, nutrir grande afeto
por um animal específico, um cão, um gato ou um cavalo, por exemplo.
Mas elas vão respaldar esse afeto em alguma qualidade ou em alguma
ligação com esse animal específico e não no fato de que ele é um animal e,
portanto, digno de amor. No meu caso, senti um profundo afeto por três
gatos diferentes, quatro cães, de que me lembro, e apenas dois cavalos; isto
é, cavalos que eu tinha, montava ou conduzia. Quanto aos cavalos que
observei nas corridas e nos quais apostei, minha admiração por eles foi
profunda e, quando apostei dinheiro neles, sinti algo próximo de afeição
por vários desses animais; eu me lembro bem de Man of War,
Exterminator, sinceramente acho que tive afeição por ele, Epinard, Kzar,
Heros XII, Master Bob, e um cavalo mestiço que disputava corridas de
obstáculos assim como os dois últimos, chamado Uncas. Eu tinha uma
admiração muito, muito grande por todos esses animais, mas não sei
quanto do meu afeto se devia aos valores que apostava neles. Quando
Uncas venceu uma clássica corrida de obstáculos em Auteuil, senti um
afeto profundo porque eu tinha colocado meu dinheiro nele e as apostas
pagavam dez para um. Mas se você me perguntasse o que acabou
acontecendo com o nobre animal tão querido por mim, a ponto de quase
chorar ao falar dele com Evan Shipman1, eu responderia que não sei. O
que eu sei é que não amo cães como cães, cavalos como cavalos, nem
gatos como gatos.
A questão de por que a morte do cavalo na arena não é comovente, quer
dizer, não é comovente para algumas pessoas, é complicada; mas a razão
fundamental pode ser que a morte do cavalo tende a ser cômica, enquanto
a do touro é trágica. Na tragédia da tourada, o cavalo é o personagem
cômico. Isso pode ser chocante, mas é verdade. Portanto, quanto pior for o
cavalo, desde que seja suficientemente alto e sólido para que o picador
possa realizar sua missão com a lança, ou vara, mais ele será um elemento
cômico. Você deveria ficar horrorizado e enojado com esses arremedos de
cavalos e com o que acontece com eles, mas como não há garantia de que
você vai ficar, a menos que decida ficar, não importa o que você sente. É
como se eles não fossem cavalos; de certa forma, eles lembram pássaros
estranhos, como os marabus ou os jaburus, e quando são levantados pela
força dos músculos do pescoço e dos ombros do touro, ficando com as
pernas penduradas no ar, os cascos suspensos, o pescoço inclinado, quando
aqueles corpos cansados são erguidos pelos chifres, os cavalos não são
cômicos; mas também não são trágicos. A tragédia está toda centrada no
touro e no homem. O trágico clímax da carreira do cavalo ocorre num
momento anterior fora da arena, quando ele é comprado pelo criador de
cavalos para ser usado na praça de touros. A extremidade da arena, de
alguma forma, parece adequada à estrutura do cavalo, e quando a lona
está esticada sobre o animal, sobre as pernas longas e o pescoço, a cabeça
fica com um formato estranho e a lona que cobre o corpo desenha uma
espécie de asa, e ele se parece demais com um pássaro. Ele lembra um
pouco um pelicano morto. Um pelicano vivo é uma ave interessante,
divertida e simpática, mas se você mexer com ele, vai pegar piolhos; mas
um pelicano morto parece muito bobo.
Este texto não está sendo escrito como uma apologia às touradas e sim
como uma tentativa de apresentar a tourada na íntegra, e para isso é
preciso admitir uma série de coisas que um apologista, defendendo um
ponto de vista, ignoraria ou evitaria. O que há de cômico na história desses
cavalos não é a morte deles; a morte não é cômica, ela dá uma dignidade
temporária mesmo aos personagens mais cômicos, embora essa dignidade
deixe de existir uma vez que a morte tenha ocorrido; cômicos são os
acidentes estranhos e burlescos que acontecem com as vísceras dos
cavalos. Pelos nossos critérios, com certeza não há nada de cômico em ver
um animal eviscerado, mas se esse animal, em vez de fazer algo trágico e
cheio de dignidade, galopa com uma pose rígida e antiquada em torno de
uma arena arrastando as próprias vísceras, o fato é tão cômico quanto
seria se os irmãos Fratellini fizessem um espetáculo burlesco em que as
vísceras são feitas de bandagens, salsichas e outras coisas. Se um é cômico,
o outro também é; o humor vem do mesmo princípio. Já vi isso acontecer,
pessoas correndo, cavalos eviscerados, dignidades sendo destruídas uma
atrás da outra num rastro de sangue e tripas, criando um perfeito burlesco
trágico. Vi esses cavalos, vamos chamá-los de destripados, que é uma
palavra terrível, serem muito engraçados numa determinada situação. Esse
é o tipo de coisa que você não deve admitir, mas é porque tais coisas não
têm sido admitidas que a tourada jamais ganhou uma explicação.
Esses acidentes com as vísceras, à medida que escrevo isto, não fazem
mais parte da tourada espanhola, pois o governo de Primo de Rivera
decidiu proteger os abdomes dos cavalos com uma espécie de colcha
estofada projetada “para evitar aquelas cenas horríveis que são
repugnantes para estrangeiros e turistas”. Os protetores previnem essas
cenas e diminuem muito o número de cavalos mortos na arena, mas não
diminuem a dor sofrida pelos cavalos de forma alguma; os protetores
tiram grande parte da bravura do touro, vou tratar disso num capítulo
posterior, e são o primeiro passo para acabar com as touradas. A tourada é
uma instituição espanhola; ela não existe por causa de estrangeiros e
turistas, mas sempre existiu apesar deles e qualquer tentativa de modificá-
la para garantir sua aceitação, inalcançável, é uma tentativa de acabar com
ela para sempre.
Esse trecho fala sobre a reação de uma pessoa aos cavalos na arena, não
se trata de um desejo do autor de escrever sobre si mesmo e sobre as
próprias reações, considerando todas elas importantes e satisfatórias por
serem suas reações, mas sim de estabelecer o fato de que as reações foram
imediatas e inesperadas. Não fiquei indiferente ao destino dos cavalos por
causa da insensibilidade que ocorre quando se vê a mesma coisa diversas
vezes, de modo que as emoções sejam eliminadas. Não era uma questão
de as emoções serem eliminadas graças à familiaridade. O que sinto pelos
cavalos em termos afetivos foi o que senti na primeira vez que vi uma
tourada. Pode-se argumentar que me tornei insensível por ter observado a
guerra, ou por causa do jornalismo, mas isso não explicaria outras pessoas
que nunca viram a guerra nem, precisamente, o horror físico de qualquer
natureza, ou que nunca trabalharam, digamos, num jornal matinal, tendo
exatamente as mesmas reações.
Acredito que a tragédia da tourada é tão bem orquestrada e tão
disciplinada pelo ritual que uma pessoa assimilando a tragédia inteira não
consegue separar o pequeno elemento tragicômico do cavalo e se
emocionar com ele. Se elas têm uma intuição sobre o significado da coisa
toda e sobre como ela acaba, mesmo quando não sabem nada a respeito
dela; se sentem que essa coisa que não entendem está acontecendo, a
questão dos cavalos nada mais é do que um incidente. Se elas não
assimilarem a tragédia inteira, naturalmente vão reagir de forma emotiva
ao incidente mais pitoresco. Naturalmente, também, se forem ligadas a
questões humanitárias ou de direitos dos animais, não vão compreender a
tragédia, mas apenas reagir em termos humanitários ou de direitos dos
animais, e, obviamente, o mais agredido na arena é o cavalo. Se as pessoas
se identificarem de verdade com os animais, sofrerão horrores, talvez mais
do que o cavalo, pois um homem ferido sabe que a dor do ferimento só
começa por volta de meia hora após ele ter sido machucado e não há uma
relação proporcional entre a dor e o aspecto horrível do ferimento; a dor
de um ferimento no abdome não vem na hora e sim mais tarde, causada
por gases e pelo início da peritonite; no entanto, um ligamento puxado ou
um osso quebrado doem de uma vez e terrivelmente; mas essas coisas não
são conhecidas ou são ignoradas pela pessoa que se identificou com o
animal, e ela sofrerá genuína e terrivelmente, vendo apenas esse aspecto da
tourada; enquanto, ao ver um cavalo mancar numa prova de obstáculos,
ela não sofrerá nada e considerará isso simplesmente lamentável.
O aficionado ou amante da tourada pode ser, de modo geral,
considerado alguém que compreende a tragédia e o ritual do duelo de
modo a não dar importância para questões menores, a não ser na forma
como se relacionam com o todo. Ou você compreende isso ou não
compreende, assim como, sem implicar em qualquer comparação, você
tem ou não tem ouvido para a música. Sem ouvido para a música, a
impressão inicial de um ouvinte num concerto sinfônico pode estar ligada
aos contrabaixistas, assim como o espectador da tourada pode se lembrar
apenas da óbvia brutalidade de um picador. Os movimentos de um
contrabaixista são grotescos e os sons produzidos, se ouvidos sozinhos,
com frequência são desprovidos de sentido. Se o ouvinte de um concerto
sinfônico fosse um humanitário, como ele poderia ser caso estivesse numa
tourada, ele provavelmente encontraria espaço para realizar o bom
trabalho de melhorar os salários e as condições de vida dos contrabaixistas
em orquestras sinfônicas, assim como para fazer algo a respeito dos pobres
cavalos. Entretanto, sendo, vamos supor, um homem culto e sabendo que
as orquestras sinfônicas são fundamentalmente boas, e que devem ser
aceitas em sua totalidade, ele provavelmente não teria nenhuma reação
diante delas que não fosse de prazer e aprovação. Ele não pensa no
contrabaixo como algo separado da orquestra ou como algo sendo tocado
por um ser humano.
Como acontece em todas as artes, o prazer aumenta com o
conhecimento da arte, porém as pessoas sabem se gostam ou não de
tourada já na primeira vez, se forem de mente aberta e só sentirem as
coisas que realmente sentem e não as coisas que supostamente devem
sentir. Elas podem não dar a mínima para touradas, não faz diferença se os
duelos são bons ou ruins, e qualquer argumento perderá o sentido diante
da óbvia injustiça moral da tourada, assim como as pessoas poderiam se
recusar a beber um vinho de que elas seriam capazes de gostar só porque
acreditam que não seria correto bebê-lo.
A comparação com o vinho não é tão forçada quanto parece. O vinho é
uma das coisas mais civilizadas do mundo e uma coisa natural que foi
aperfeiçoada ao extremo, e apreciar um vinho talvez seja um dos melhores
prazeres sensoriais que podem ser adquiridos com o dinheiro. Pode-se
aprender sobre vinhos e desenvolver o paladar com grande prazer durante
a vida inteira, e à medida que o paladar se desenvolve, você desenvolve
também o gosto pelo vinho e o prazer que sente com ele aumenta apesar
de os rins ficarem fracos, do dedão do pé doer e das articulações dos dedos
endurecerem, até que por fim, justo quando você mais ama o vinho, você
fica totalmente proibido de bebê-lo. Assim como o olho, que de início é
apenas um bom instrumento saudável, mesmo que não seja mais tão forte
e esteja debilitado e cansado por causa de excessos, ele é capaz de
transmitir um prazer cada vez maior ao cérebro graças ao conhecimento e
à capacidade de ver que foram adquiridos. Nosso corpo inteiro se desgasta
de um jeito ou de outro e nós morremos, e eu prefiro ter um paladar que
me permita desfrutar plenamente de um Chateaux Margaux ou de um
Haut Brion, ainda que os excessos cometidos na aquisição desse paladar
tenham gerado um fígado que não me permita beber Richebourg, Corton
ou Chambertin, a ter as entranhas de ferro que tinha na infância, quando
todos os vinhos tintos me eram amargos, exceto o vinho do Porto, e beber
era o processo de entornar qualquer coisa para se sentir desinibido. O
importante, claro, é evitar ter de abrir mão do vinho por completo, assim
como no caso do olho é evitar ficar cego. Mas parece haver um bocado de
sorte em todas essas coisas e nenhum homem pode evitar a morte, mesmo
com um esforço genuíno, nem dizer qual a utilidade que qualquer parte
do seu corpo terá até que chegue a sua vez.
Parece que isso não tem nada a ver com touradas, mas a questão é que
uma pessoa com cada vez mais conhecimento e educação sensorial pode
extrair um prazer infinito do vinho, assim como o prazer de um homem
na tourada também pode crescer e se tornar uma das suas maiores paixões
menores; no entanto, uma pessoa bebendo, não provando ou saboreando,
mas bebendo um vinho pela primeira vez saberá, apesar de não se importar
de saborear ou de ser capaz de saborear, se ela gosta do efeito ou não e se
o vinho faz bem para ela ou não. No vinho, de início, a maioria das pessoas
prefere vindimas doces, Sauternes, Graves, Barsac, e espumantes como os
champanhes não muito secos e os espumantes da Borgonha por causa de
sua qualidade pitoresca, enquanto, mais tarde, elas trocariam todos esses
vinhos por um leve, íntegro e bom Grand Crus de Médoc, embora ele
possa estar numa garrafa simples sem rótulo, cheia de pó ou de teias de
aranha, sem nada pitoresco, apenas com sua humildade e delicadeza, e o
corpo leve do vinho na língua, refrescante na boca e quente uma vez que
você engole. O mesmo acontece nas touradas; os iniciantes gostam do que
há de pitoresco no paseo, nas cores, nas cenas, do que há de pitoresco num
farol e num molinete, do toureiro colocando a mão no focinho do touro,
acariciando os chifres, e de todas essas coisas inúteis e românticas das quais
os espectadores gostam. Eles ficam contentes de ver os cavalos protegidos
se isso os poupa de cenas desconfortáveis e aplaudem todos esses
movimentos. Por fim, quando ganham experiência e aprendem a
reconhecer certos valores, eles querem algo honesto e emoção de verdade,
não a ilusão de emoção, e sempre o classicismo e a pureza da execução de
todas as suertes, e assim como na mudança de gosto pelos vinhos,
preferem ver os cavalos sem nenhuma proteção, para que todas as feridas
possam ser vistas e a morte seja dada em vez de sofrida ou causada por
algo elaborado para permitir que os cavalos sofram enquanto o público é
poupado do seu sofrimento. Mas, assim como no caso do vinho, você
saberá, quando experimentar pela primeira vez, se você gosta ou não,
dependendo do efeito que isso terá sobre você. A tourada tem meios de
agradar a todos os gostos e, se você não gosta dela, se não gosta de nada
nela, nem do todo, nem dos detalhes, então ela não é para você. Claro que
seria bom para aqueles que gostam delas se aqueles que desgostam não
sentissem a necessidade de declarar guerra contra a tourada ou de gastar
dinheiro para tentar acabar com ela, já que a tourada os ofende ou não
lhes agrada, mas isso é esperar demais, e qualquer coisa capaz de despertar
paixões favoráveis com certeza despertará também paixões contrárias.
São grandes as chances de que o primeiro contato de alguém com uma
tourada não seja bom do ponto de vista artístico; para que isso aconteça, é
preciso haver toureiros bons e touros bons; toureiros figurantes e touros
ruins não rendem touradas interessantes, pois o toureiro que tem a
capacidade de fazer coisas extraordinárias com o touro, que é capaz de
produzir o mais intenso grau de emoção no público, não vai duelar com
um touro incapaz de atacar; portanto, se o touro for ruim, o embate é
apenas cruel e não corajoso; se o touro for capaz de investir contra o
toureiro, se for dedicado e imprevisível em seus ataques, é melhor que seja
combatido por um toureiro que conheça sua profissão, que tenha
integridade e experiência, em vez de habilidade artística. Toureiros bons
serão competentes ao lutar com um animal difícil, e devido ao perigo extra
do touro e à habilidade e à coragem necessárias para superar esse perigo, e
para ser capaz de matar o touro com algum grau de dignidade, a tourada
se torna interessante mesmo para alguém que nunca tenha visto uma.
Entretanto, se um toureiro assim, habilidoso, inteligente, corajoso e
competente, mas sem nenhum talento ou grande inspiração, recebe na
arena um touro corajoso de verdade, que ataca em linha reta, que
responde às ordens do toureiro, que se torna mais corajoso sob pressão, e
tem aquela qualidade técnica que os espanhóis chamam de “nobreza”, e o
toureiro só tem bravura e uma habilidade nítida na preparação para matar
e no ato de matar o touro, e nada da habilidade dos pulsos ou da noção
estética que, diante de um touro que ataca em linha reta, são responsáveis
pela beleza escultural da tourada moderna; então o toureiro falha
completamente, ele tem um desempenho verdadeiro e banal, e cai no
ranking lucrativo das touradas, enquanto, na multidão, homens que
ganham talvez menos de mil pesetas por ano dirão, e estarão sendo
sinceros: “Eu daria cem pesetas para ver Cagancho com aquele touro.”
Cagancho é um cigano sujeito a ataques de covardia, totalmente
desprovido de integridade, que viola todas as regras, escritas e não escritas,
de conduta de um matador, mas que, quando recebe um touro em que
confia, e muito raramente ele tem confiança em touros, faz coisas que
todos os toureiros fazem de uma maneira que nunca foram feitas antes e,
às vezes, com o corpo ereto e absolutamente imóvel, feito uma árvore,
com a arrogância e a graça que os ciganos têm e que fazem todos os
outros parecerem imitações de arrogância e graça, movimenta a capa
inflada como a bujarrona de um iate diante do focinho do touro de forma
tão lenta que a arte da tourada, que só não é uma das grandes artes porque
é impermanente, se torna na lentidão arrogante de suas veronicas, ao
longo do que parecem ser minutos, permanente. Esse é o pior tipo de
escrita floreada, mas é necessário tentar recriar a sensação da tourada, e
para alguém que nunca a viu, uma simples frase do método não recria a
sensação. Qualquer um que tenha visto touradas pode pular os floreios e
ler os fatos, que são muito mais difíceis de isolar e relatar. O fato é que, às
vezes, o cigano Cagancho pode, com os pulsos maravilhosos que tem,
realizar os movimentos habituais das touradas tão lentamente que se
tornam, para as antigas touradas, algo como o filme em câmera lenta é
para o filme em velocidade normal. É como se um mergulhador
conseguisse controlar sua velocidade no ar e prolongasse um salto
ornamental, que na prática é um movimento brusco, embora o
mergulhador pareça flutuar em fotografias, para fazer dele um longo voo
planado como os mergulhos e saltos que às vezes damos em sonhos.
Outro toureiro que tem ou teve essa habilidade com os pulsos é Juan
Belmonte e Enrique Torres e Felix Rodriguez têm esporadicamente com a
capa.
O espectador que vai a uma tourada pela primeira vez não pode esperar
ver a combinação do touro ideal com o toureiro ideal porque esse tipo de
touro aparece não mais do que vinte vezes ao longo de uma temporada
em toda a Espanha, e seria errado o espectador ver um touro desses na
primeira vez. Visualmente, ele ficaria confuso com as muitas coisas que
não conseguiria absorver, e algo que ele poderia nunca mais ver na vida
não significaria nada mais do que uma performance regular. Se há alguma
chance de ele gostar das touradas, a melhor tourada para ver primeiro é
uma tourada média, dois touros corajosos de um total de seis, com quatro
que não se destacam para contrabalançar o desempenho dos dois
excelentes, três toureiros, não muito bem pagos, para que qualquer coisa
extraordinária que eles façam pareça difícil em vez de fácil, um assento não
muito perto da arena para que ele veja o espetáculo como um todo em vez
de vê-lo dividido o tempo todo, se estiver sentado muito perto, entre o
touro e o cavalo, o homem e o touro, o touro e o homem — e um dia
quente e ensolarado. O sol é muito importante. A teoria, a prática e o
espetáculo da tourada foram criados levando-se em conta a presença do sol
e, quando ele não brilha, perde-se mais de um terço da tourada. Os
espanhóis dizem: “El sol es el mejor torero”. O sol é o melhor toureiro e,
sem o sol, o melhor toureiro não está lá. Ele é como um homem sem
sombra.

1. Ao ler este texto, Mr. Shipman me informa que Uncas, após ter fracassado nas corridas, passou a
ser usado como um cavalo de passeio por Mr. Victor Emanuel. Essa notícia não me comove de
forma alguma.
2

A tourada não é um esporte no sentido anglo-saxão do termo, isto é, não é


uma disputa justa nem uma tentativa de disputa justa entre um touro e
um homem. Ela é mais propriamente uma tragédia, a morte do touro, e
envolve um touro e um homem, e na qual o homem enfrenta o perigo,
mas o animal encara a morte certa. O grau de perigo enfrentado pelo
homem pode aumentar de acordo com a vontade do toureiro, na medida
em que se aproxima dos chifres do touro. De acordo com as regras da
tourada numa arena fechada, formuladas por anos de experiência, regras
que, se forem conhecidas e respeitadas, permitem que um homem realize
certas manobras com um touro sem ser atingido pelos chifres; o toureiro,
à medida que diminui a distância em relação ao chifres do touro, depende
cada vez mais dos próprios reflexos e da avaliação que faz dessa distância
para se proteger. Esse risco de ser chifrado, que o homem cria
voluntariamente, pode virar uma certeza de ser chifrado e arremessado
pelo touro se o homem, por ignorância, lentidão, inércia, loucura cega ou
tontura momentânea, quebrar qualquer um dessas regras fundamentais
para a execução de várias suertes. Cada manobra feita pelo homem dentro
da arena é chamada de “suerte”. É o termo mais fácil de usar e também o
mais curto. Ele significa ato, mas a palavra ato tem uma conotação mais
ligada ao teatro que torna o seu emprego confuso.
Pessoas que veem uma tourada pela primeira vez dizem: “Mas os touros
são muito burros. Eles sempre atacam a capa em vez de atacar o homem.”
O touro só ataca o percal da capa ou a sarja vermelha da muleta se o
homem obriga o animal a fazê-lo, então é o homem que faz o touro ver o
pano. Portanto, para começar a ver touradas de verdade, um espectador
deve frequentar as novilladas ou as lutas de aprendizes. Nessas, os touros
nem sempre atacam os panos porque os toureiros estão aprendendo as
regras da tourada diante dos olhos do público e eles nem sempre se
lembram delas ou enfrentam terreno desconhecido e não sabem como
manter o touro interessado pela isca e desinteressado pelo homem. Uma
coisa é saber as regras em princípio e outra é se lembrar delas no
momento em que se fazem necessárias ao enfrentar um animal que está
tentando matar você, e o espectador que quer ver homens sendo
arremessados e chifrados, em vez de apreciar a maneira com que os touros
são dominados, deve ir a uma novillada antes de ver uma corrida de touros
ou uma tourada completa. Se esse espectador quiser conhecer a técnica, o
melhor a fazer, de qualquer forma, é ver uma novillada, pois o emprego do
conhecimento que chamamos pelo nome bastardo de técnica é sempre
mais evidente na imperfeição. Em uma novillada, talvez o espectador veja
os erros dos toureiros, e os castigos que acompanham esses erros. Ele
também vai aprender algo sobre o treinamento ou a falta de treinamento
dos homens, e os efeitos que isso tem sobre a coragem.
Uma vez, em Madri, lembro que fomos a uma novillada em pleno verão,
num domingo muito quente em que todo mundo com condições de sair
da cidade viajou para as praias do norte ou para as montanhas, e a tourada
não deveria começar antes das seis da tarde, para ver seis touros de Tovar
serem mortos por três aspirantes a matador que, desde então,
abandonaram suas carreiras. Nos sentamos na primeira fileira atrás da
barrera de madeira e quando o primeiro touro surgiu ficou claro que,
diante desse touro, Domingo Hernandorena, um basco desajeitado,
baixinho, com tornozelos grossos e um rosto pálido que parecia nervoso e
mal alimentado, usando um terno alugado e chinfrim, bancaria um idiota
ou seria chifrado. Hernandorena não conseguia controlar o nervosismo.
Ele queria ficar parado e enfrentar o touro movendo devagar a capa com
os braços, mas quando ele tentava ficar parado durante a investida do
touro, seus pés davam pequenos pulos nervosos. Era óbvio que os pés não
estavam sob seu controle e o esforço de posar como uma estátua,
enquanto os pés se mexiam de maneira nervosa afastando-o do perigo,
divertia o público. Era divertido porque as pessoas sabiam que fariam o
mesmo se estivessem enfrentando um par de chifres e, como sempre, elas
ficavam ofendidas de ver alguém na arena, sendo pago para isso, revelar os
defeitos que deveriam impedir qualquer pessoa de ganhar um bom
dinheiro com touradas. Cada qual na sua vez, os outros dois matadores
foram bem extravagantes no uso da capa e com isso os pulinhos nervosos
de Hernandorena ficaram ainda mais feios depois da performance deles.
Fazia mais de um ano que ele não enfrentava um touro na arena e ele se
mostrou completamente incapaz de controlar o nervosismo. Quando as
banderillas foram cravadas e chegou a hora de pegar o pano vermelho e a
espada, preparar o touro para a morte e sacrificá-lo, o público que tinha
aplaudido ironicamente a cada movimento nervoso que ele tinha feito
sabia que alguma coisa muito engraçada estava para acontecer. Logo
abaixo de onde estávamos sentados, ao pegar a muleta e a espada, e
enxaguar a boca com água, dava para ver os músculos de suas bochechas
se contraindo. O touro estava encostado na barrera observando o toureiro.
Hernandorena não podia contar com suas pernas para andar a passos
lerdos na direção do touro. Ele sabia que havia só um jeito de ele ficar na
arena. Ele correu por dez metros na direção do touro e caiu de joelhos na
areia. Nessa posição, ele não seria ridicularizado. Ele estendeu o pano
vermelho usando a espada e sacudiu o corpo para a frente, ainda de
joelhos, na direção do touro. O touro ficou olhando o homem e o
triângulo de tecido vermelho, tinha as orelhas levantadas, os olhos fixos, e
Hernandorena avançou mais um metro e balançou o pano. O touro
levantou o rabo, baixou a cabeça e atacou, e ao colher o homem,
Hernandorena foi para o alto com tudo e girou no ar como se fosse um
fardo, esperneando, e em seguida caiu no chão. O touro procurou por ele,
mas acabou encontrando uma capa sendo sacudida por outro toureiro, e
atacou, e Hernandorena ficou de pé, tinha areia no rosto pálido e
procurava sua espada e seu pano. Enquanto ele se levantava, pude ver a
pesada seda cinza e suja de seu calção alugado clara e profundamente
aberta, de modo a mostrar o osso da coxa do quadril até quase o joelho.
Ele também viu e pareceu muito surpreso e colocou a mão em cima
enquanto pessoas saltavam a barrera e corriam na sua direção para
carregá-lo até a enfermaria. O erro técnico que ele havia cometido foi não
manter o pano vermelho da muleta entre ele e o touro até o ataque; e no
momento da tutela, como dizem, quando o touro baixa a cabeça e alcança
o pano, ele não levou a capa para trás, estendida pelo bastão de madeira e
pela espada, longe o suficiente para que o touro continuasse distante do
seu corpo. Foi um simples erro técnico.
Naquela noite, no café, ninguém lamentou o ocorrido. Ele era
ignorante, ele era indigno e era um novato. Por que insistiu em ser um
toureiro? Por que ele tinha ficado de joelhos? Porque era um covarde,
disseram. Ficar de joelhos é algo que covardes fazem. Se ele era um
covarde, por que insistiu em ser toureiro? Não havia simpatia alguma por
alguém de nervosismo incontrolável porque ele estava sendo pago para
executar uma tarefa em público. Era preferível que fosse chifrado a que
fugisse do touro. Ser chifrado era honroso; ele teria inspirado simpatia se
tivesse sido atacado num de seus incontroláveis recuos saltitantes, que
eram ridicularizados, mas todo mundo sabia que se deviam à falta de
treino, em vez de ficar de joelhos. Porque o mais difícil de fazer quando
você está apavorado com o touro é controlar os pés e deixar o touro se
aproximar, e todas as tentativas de controlar os pés eram dignas, muito
embora eles debochassem delas porque pareciam ridículas. Mas quando
ele ficou de joelhos sem dominar a técnica de enfrentar o touro naquela
posição; a técnica dominada por Marcial Lalanda, o mais hábil de todos os
toureiros vivos, que sozinho torna essa posição digna; assim
Hernandorena admitiu seu nervosismo. Demonstrar nervosismo não era
motivo de vergonha, mas admitir o nervosismo era. Quando, sem dominar
a técnica e desse modo admitindo a incapacidade de controlar os pés, o
matador ficou de joelhos diante do touro, o público teve tanta simpatia por
ele quanto teria por um suicida.
Para mim, por não ser um toureiro e ter bastante interesse por suicidas,
era mais um problema de como a coisa toda tinha sido representada e, ao
acordar no meio da noite, tentei resgatar uma memória que me escapava,
a memória do que eu tinha visto de verdade e, por fim, consegui me
lembrar. Quando ele se levantou, com o rosto pálido e sujo e a seda do
calção rasgada da cintura até o joelho, lembrei-me da sujeira no calção
alugado, da sujeira na roupa de baixo rasgada, e do osso branco, limpo,
limpo, insuportavelmente limpo que eu tinha visto, e era isso que
importava.
Nas novilladas também, além do estudo da técnica, e das consequências
ligadas à falta dela, você tem uma chance de aprender sobre o modo de
lutar com os touros problemáticos, pois touros que não podem ser usados
numa tourada oficial por causa de algum problema óbvio são mortos nas
lutas com aprendizes. Quase todos os touros apresentam problemas ao
longo de uma luta e esses problemas devem ser corrigidos pelo toureiro;
porém, na novillada, defeitos como os de visão, por exemplo, ficam óbvios
logo no início e a maneira de corrigi-los, ou as consequências de não
serem corrigidos, ficam aparentes.
A tourada oficial é uma tragédia, não um esporte, e nela a morte do
touro é certa. Se o toureiro não consegue matá-lo e, no fim dos quinze
minutos previstos para a preparação e o sacrifício, o touro é levado vivo
para fora da arena por boieiros, o que desonra o matador, o animal deve,
segundo a lei, ser morto no curral. A chance de um matador de touros, ou
de um toureiro oficialmente contratado, ser morto na arena é de uma em
cem, a não ser que ele seja inexperiente, ignorante, novato ou velho
demais e sem agilidade. Mas o matador, se domina sua profissão, pode
aumentar os riscos de morrer tanto quanto quiser. Ele deve, no entanto,
aumentar esses riscos dentro das regras criadas para sua proteção. Em outras
palavras, ele leva crédito por fazer algo que sabe fazer de uma maneira que
seja bem perigosa, mas geometricamente possível. Ele não leva crédito ao
correr riscos por causa de ignorância, por desconsideração às regras
fundamentais, por lentidão mental ou física, por pura estupidez.
O matador deve dominar os touros por meio do conhecimento e da
ciência. Quanto mais essa dominação for executada com graça, mais
bonita ela será de se ver. Força não faz diferença a não ser no momento
exato de matar. Certa vez, alguém perguntou a Rafael “El Gallo” Gómez,
de quase cinquenta anos, cigano, irmão de José “Gallito” Gómez, e o
último membro vivo da grande família de toureiros ciganos com esse
nome, que exercício físico ele, El Gallo, fazia a fim de manter a força para
tourear.
“Força”, disse El Gallo. “Cara, força não tem nada a ver com isso. O
touro pesa meia tonelada. Eu devia fazer exercício para ser forte como ele?
Deixe a força para o touro.”
Se os touros tivessem chance de aprender assim como os toureiros têm,
e se os touros que não são mortos dentro dos quinze minutos previstos
não fossem mortos depois nos currais e tivessem chance de lutar de novo,
eles matariam todos os toureiros, se os toureiros lutassem com eles
seguindo as regras. A tourada diz respeito ao primeiro encontro entre um
animal selvagem e um homem sem montaria. Esta é a premissa
fundamental da tourada moderna: a de que o touro nunca esteve numa
arena antes. Nos primórdios das touradas, era permitido ao touro voltar à
arena e lutar de novo, e tantos homens morreram na arena que, em 20 de
novembro de 1567, o papa Pio V publicou um decreto papal
excomungando todos os príncipes cristãos que dessem permissão para
touradas em seus países e negando um enterro cristão a qualquer pessoa
morta na praça de touros. A Igreja só decidiu tolerar as touradas, que
seguiram constantes na Espanha apesar do decreto, quando ficou acordado
que os touros deviam aparecer somente uma vez na arena.
Você poderia pensar então que a tourada seria um esporte de verdade, e
não apenas um espetáculo trágico, se os touros tivessem chance de
retornar à arena. Vi touros terem essa chance, numa transgressão da lei,
em vilarejos com arenas improvisadas, feitas em praças públicas com as
entradas bloqueadas por carroças empilhadas, nas chamadas capeas ilegais,
ou touradas provincianas com touros de segunda mão. Os toureiros
aspirantes, sem nenhum apoio financeiro, ganham experiência nas capeas.
É um esporte, um esporte primitivo e selvagem, e na maior parte do
tempo um esporte verdadeiramente amador. Acredito, no entanto, que
como implica num risco de morrer, a tourada jamais faria sucesso entre os
desportistas amadores dos Estados Unidos e da Inglaterra. Nós, ao
participar de jogos, não temos fascínio pela morte, pela sua iminência e
nem pela capacidade de evitá-la. Nós nos fascinamos pela vitória e
substituímos a capacidade de evitar a morte pela capacidade de evitar a
derrota. É de um simbolismo muito bom, mas é preciso ter cojones para
ser um desportista quando a morte faz parte do jogo. O touro raramente é
morto nas capeas. Isso deve atrair os desportistas que são amantes dos
animais. O vilarejo quase sempre é muito pobre para conseguir pagar pelo
abate do touro e nenhum dos toureiros aspirantes tem dinheiro suficiente
para comprar uma espada, caso contrário eles não estariam se educando
nas capeas. Quem consegue bancar esse tipo de oportunidade são os
desportistas endinheirados, que podem pagar pelo touro e também
comprar uma espada.
No entanto, graças aos mecanismos que regem o desenvolvimento
mental de um touro, o desempenho de um touro de segunda mão deixa a
desejar. Depois de atacar uma ou duas vezes, ele fica parado e só ataca de
novo se tiver certeza de que vai atingir o homem ou o garoto que está
balançando a capa. Quando há uma plateia e o touro avança na direção
dela, o animal escolhe um homem no meio do público e o persegue —
independente de como o homem se esquive, corra ou rodopie — até
conseguir chifrá-lo. Se a ponta dos chifres do touro estiver desgastada, a
perseguição e a chifrada são divertidas de ver por um tempo. Ninguém é
obrigado a enfrentar o touro a menos que queira, muito embora dos
vários que querem poucos entram na arena para mostrar sua coragem. É
muito emocionante para quem está na praça de touros, é o que define um
verdadeiro esporte amador, quando ele é mais divertido para o
participante do que para o público (assim que ele se torna divertido o
suficiente para que a venda de ingressos ao público se torne lucrativa, é
plantada a semente do esporte profissional), e o menor sinal de
compostura e frieza atrai aplausos instantâneos do público. Mas se os
chifres do touro estiverem afiados, o espetáculo passa a ser perturbador.
Os homens e os garotos improvisam capas com sacos, blusas e capas
velhas, exatamente como fazem nas situações em que os chifres foram
desbastados, a única diferença é que, com os chifres inteiros, quando o
touro arremessa os toureiros para cima, eles correm o risco de sair da
arena com ferimentos que nenhum cirurgião local consegue consertar.
Um dos touros favoritos das capeas na província de Valência matou
dezesseis homens e garotos, e feriu gravemente mais de sessenta ao longo
de cinco anos de carreira. As pessoas que participam dessas capeas às vezes
o fazem como aspirantes a profissional, para ter acesso a uma experiência
gratuita com touros, mas na maioria das vezes o fazem como amadores,
apenas por esporte, pela emoção do momento, e é uma emoção enorme; e
pelo prazer retrospectivo, de ter desprezado a morte num dia quente na
praça de sua própria cidade. Muitos participam por orgulho, a fim de
demonstrar coragem. Muitos descobrem que não são nada corajosos, mas
ao menos eles entram na arena. Não existe absolutamente nada a ganhar a
não ser uma satisfação íntima de ter estado numa arena com um touro;
por si só, uma experiência que marca para sempre a memória de qualquer
um que tenha passado por ela. É uma sensação estranha a de ver um
animal avançar na sua direção com o propósito de matá-lo, os olhos fixos
em você, e vê-lo baixar os chifres com que pretende matá-lo. A sensação
faz com que sempre haja homens dispostos a participar das capeas pelo
prazer
de ter feito algumas manobras com um touro de verdade e pelo orgulho
de ter experimentado essa sensação, embora o prazer momentâneo talvez
não seja tão grande. Às vezes o touro é abatido, se o vilarejo tiver o
dinheiro necessário para isso, ou se o povo ficar fora de controle; com todo
mundo avançando sobre o touro com facas, punhais, facas de açougueiro e
pedras; um homem talvez esteja entre os chifres, sendo balançado para
cima e para baixo, talvez outro voe pelos ares, vários com certeza agarram
o rabo, uma multidão disposta a cortar, esfaquear e golpear o touro,
atacando e ferindo o animal até ele cambalear e cair. O sacrifício
conduzido por um grupo de amadores é muito bárbaro e confuso, apesar
de ser um negócio impressionante e muito distante do ritual presente
numa tourada formal.
O touro que matou dezesseis e feriu sessenta foi morto de uma forma
muito curiosa. Uma de suas vítimas tinha sido um menino cigano com
cerca de quatorze anos. O irmão e a irmã do menino esperaram por uma
chance de assassinar o touro depois da capea, quando ele estivesse
enjaulado. Era algo difícil pois, sendo um touro valorizado demais por seu
desempenho, ele era muito bem cuidado. Os irmãos seguiram o touro por
dois anos, não tentavam nada, só apareciam quando o touro era usado.
Quando as capeas foram mais uma vez extintas, elas são extintas vezes
seguidas por ordem do governo, o dono do touro decidiu mandá-lo para o
matadouro em Valência, afinal o touro já estava mesmo ficando velho. Os
dois ciganos apareceram no matadouro e o jovem pediu permissão para
matar o touro porque o touro tinha matado seu irmão. Deram permissão
e ele começou arrancando os olhos do touro enquanto ele ainda estava na
jaula, e depois cuspiu cuidadosamente nas cavidades que ficaram; assim
que matou o touro com um punhal, cortando a medula espinhal entre as
vértebras do pescoço, algo que executou com dificuldade, ele pediu
permissão para cortar os testículos do touro, e quando deram permissão
ele e a irmã fizeram uma pequena fogueira no fim da rua de terra do
matadouro e assaram o par de glândulas em espetos e, quando elas
ficaram no ponto, eles comeram as duas. Depois deram as costas para o
matadouro e foram embora do vilarejo caminhando pela estrada.
3

Hoje, na tourada formal ou na corrida de toros, há normalmente seis


touros que são mortos por três homens diferentes. Cada homem mata dois
touros. Por lei, cada touro deve ter de quatro a cinco anos de idade,
nenhum defeito físico e um belo par de chifres pontiagudos. Antes da luta,
eles são inspecionados por um cirurgião veterinário municipal. O
veterinário deve vetar touros que estejam abaixo da idade estipulada, com
uma saúde que deixe a desejar ou com qualquer problema nos olhos, nos
chifres ou com qualquer doença aparente ou defeito físico visível, como
manqueira.
Os homens responsáveis por matar os touros são chamados de
matadores, e os touros são designados para cada um deles por sorteio.
Cada matador tem uma cuadrilla, ou equipe com cinco ou seis homens
pagos por ele e subordinados a ele. Desses homens, os três que trabalham
a pé e o ajudam com as capas e que, ao comando do toureiro, espetam as
banderillas, os bastões de madeira com um metro de comprimento e
pontas de arpão, são chamados de banderilleros ou peones. Os outros dois,
que entram na arena a cavalo, são chamados de picadores.
Ninguém é chamado de toreador na Espanha. Essa é uma palavra
obsoleta que era usada para se referir aos membros da nobreza que, numa
época anterior às touradas profissionais, matavam touros por diversão
montados em cavalos. Qualquer um que lute contra touros por dinheiro,
seja ele um matador, banderillero ou picador, é chamado de torero. Um
homem que mata touros com uma lança, montado num cavalo puro-
sangue, é chamado de rejoneador ou um caballero en plaza. Uma tourada
na Espanha é chamada de corrida de touros. Uma arena de touradas é
chamada de plaza de toros.
Na manhã anterior à tourada, os representantes de cada matador,
geralmente os banderilleros mais antigos e confiáveis, se encontram nos
currais da plaza de toros, onde todos os touros que lutarão naquela tarde
ficam alojados. Eles avaliam os touros, comparam tamanho, peso, altura,
comprimento dos chifres, grossura dos chifres, afiamento dos chifres e
analisam a pelagem. Esta última informação é um bom indicativo da
condição física e da possível bravura do animal. Não existe um sinal
garantido para se determinar a bravura, mas existem vários indicativos de
uma provável covardia. Os banderilleros mais confiantes questionam o
vaqueiro, ou vaquero, que conduziu os touros desde o rancho e que,
enquanto responsável pelos touros, é chamado de mayoral, sobre as
qualidades e o possível temperamento de cada touro. De comum acordo
entre os representantes, os touros devem ser divididos em três lotes de dois
touros cada, numa tentativa de ter um touro bom e um touro ruim, bom e
ruim do ponto de vista do toureiro, em cada lote. Para o toureiro, um
touro bom não é muito grande nem muito forte, não tem chifre muito
grande, não é muito alto e, acima de tudo, tem boa visão, tem uma boa
resposta a cores e a movimento, é destemido e determinado ao atacar. Um
touro ruim, para o toureiro, é um touro grande demais, velho demais,
forte demais, com chifres grandes demais; mas acima de tudo, um touro
ruim não responde a cor nem a movimento,
não demonstra coragem e não tem uma fúria constante, então o toureiro
não sabe dizer quando, como ou se o touro vai atacar. Os representantes,
geralmente homens baixinhos de boné, ainda com a barba por fazer, com
uma variedade enorme de sotaques, mas todos com o mesmo olhar
intenso, argumentam e discutem. Eles dizem que o número vinte tem
mais chifres que o quarenta e dois, mas o quarenta e dois pesa duas
arrobas (trinta quilos) a mais que o dezesseis. O quarenta e seis é tão
grande como uma catedral e, se você chama, ele para de comer e levanta a
cabeça, e o dezoito é ruano e talvez seja tão covarde quanto um boi. Os
lotes são montados depois de muita discussão e em três papéis de cigarro
escrevem os números de dois touros, que estão marcados no flanco de
cada animal, amassam os papéis em bolas e as colocam num boné. O
ruano que talvez seja covarde fez par com um touro preto de peso médio,
com chifres não tão grandes e pelagem brilhante. O quarenta e seis que é
do tamanho de uma catedral ficou com o dezesseis, que quase não passou
na avaliação dos veterinários e não tem nenhuma característica marcante,
mas é um arremedo de touro que ainda não desenvolveu seus músculos
por completo e não sabe muito bem como usar os chifres, coisa que todo
representante gostaria de conseguir para o seu toureiro. O número vinte
com os chifres grandes e pontiagudos foi compensado pelo quarenta e
dois, que é o segundo menor depois do dezesseis. O homem do boné
chacoalha os papéis e cada representante com a mão parda pega uma bola
de papel. Eles desenrolam o papel, leem, talvez deem uma última olhada
nos dois touros que sortearam e voltam ao hotel para encontrar o matador
e contar a ele o que vai ter de matar.
O matador decide em que ordem ele prefere enfrentar os touros. Ele
pode escolher o pior primeiro a fim de se reabilitar com o segundo, caso o
trabalho com o primeiro termine mal. Ou, se ele for o terceiro a entrar na
arena, talvez escolha pegar o melhor primeiro, pois sabe que terá de matar
o sexto e último touro e, caso comece a anoitecer e a multidão queira ir
embora, ninguém vai se incomodar se ele tentar terminar a luta rápido e
da forma mais fácil possível se o touro for difícil.
Os matadores matam os touros numa sequência que respeita a
senioridade; a data que vale é a da apresentação de cada um deles como
matador de touros na Plaza de Madrid. Se algum matador for chifrado e
não puder voltar da enfermaria, seus touros são mortos pelo matador com
mais experiência entre aqueles que continuaram na arena, como costume.
Então, os touros são divididos entre os matadores que restaram.
Em geral, a tourada começa às cinco, ou às cinco e meia da tarde. No dia
da luta, ao meio-dia e meia, acontece o apartado. É quando colocam os
touros nos currais com a ajuda de cabrestos e, por meio de portas
corrediças, passarelas e alçapões, separam e prendem os animais em
cercados individuais ou chiqueiros, onde eles ficam e descansam até
entrarem na arena para lutar na ordem predeterminada. Touros não são
privados de água nem de comida antes da luta, ao contrário do que dizem
vários guias da Espanha, assim como não são presos em currais escuros
por vários dias. Eles ficam nos chiqueros com uma iluminação fraca por no
máximo quatro horas antes da tourada começar. Eles não recebem comida
depois que saem dos currais assim como um boxeador não comeria
imediatamente antes de uma luta, mas o motivo para eles ficarem num
cercadinho pouco iluminado tem a ver com levá-los rapidamente à arena,
e mantê-los relaxados antes da luta.
Via de regra, apenas os matadores, seus amigos e representantes, os
responsáveis pela arena, as autoridades e pouquíssimos espectadores têm
acesso ao apartado. E geralmente é a primeira vez que o matador vê o
touro que ele vai matar naquele mesmo dia. O número de espectadores é
propositalmente baixo porque os ingressos custam cinco pesetas cada. A
administração da arena faz questão de ter poucas pessoas para evitar que a
atenção dos touros seja atraída pelo público, que quer ver ação e por isso
fica provocando os touros, que às vezes acabam atacando uns aos outros,
as portas e as paredes da arena. Se eles atacam enquanto estão nos currais,
correm o risco de machucar os chifres ou de chifrar uns aos outros, e a
administração teria de substituí-los ao custo de uns duzentos dólares por
cabeça. Muitos espectadores de touradas e aventureiros acreditam que são
capazes de se comunicar com os touros tão bem quanto ou até mesmo
melhor do que os toureiros. Protegidos pela cerca alta ou pela parede do
curral, eles tentam atrair a atenção do touro e dão gritos guturais de “ru!-
ru!-ru!” que vaqueiros e toureros usam para atrair a atenção do touro. Se o
touro no cercado ergue a cabeça imensa com os chifres enormes, sólidos
feito madeira e de pontas finas, e os músculos no pescoço e nos ombros,
pesados e amplos em repouso, incham numa grande couraça sob o brilho
preto da pelagem, e as narinas se alargam e ele levanta e balança os chifres
enquanto olha na direção do espectador, então o aventureiro foi bem-
sucedido. Se, de fato, o touro atacar batendo os chifres contra a madeira
ou se jogar a cabeça na direção de quem grita, é um triunfo. Para reduzir o
número destes e evitar os aventureiros bem-sucedidos, a administração
vende os ingressos por cinco pesetas com base na teoria de que qualquer
um com condições de pagar cinco pesetas para ver a organização dos
touros será digno o suficiente para não provocá-los antes das touradas.
Não há como eles terem certeza disso e, em alguns lugares do país onde
as touradas acontecem apenas uma vez por ano, você encontra homens no
apartado que pagam cinco pesetas só para ter uma chance melhor de
provocar os touros. Mas, em geral, as cinco pesetas diminuem as
provocações dos sóbrios. Os touros quase não prestam atenção nos
bêbados. Várias vezes, vi bêbados gritarem para os touros e nunca vi os
touros prestarem atenção. O clima de dignidade das cinco pesetas numa
cidade como Pamplona, onde um homem com cinco pesetas pode encher
a cara duas vezes e ainda fazer uma refeição na feira de cavalos, inspira um
silêncio quase religioso no apartado. Ninguém gasta cinco pesetas para ver
a organização dos touros a menos que seja muito rico e digno. Mas o clima
do apartado pode ser muito diferente em outros lugares. Nunca vi dois
iguais. Depois da organização, todo mundo vai para o café.
A tourada ocorre numa arena com chão de areia rodeada por uma cerca
vermelha de madeira com pouco mais de um metro e vinte de altura. Essa
cerca vermelha de madeira é chamada de barrera. Atrás dela há um
corredor estreito e circular que separa a barrera das primeiras fileiras do
anfiteatro. Esse corredor estreito é chamado de callejon. Nele ficam os
responsáveis pelas espadas com suas moringas de água, esponjas, pilhas de
muletas dobradas e pesadas bainhas de couro para as espadas, os
funcionários da arena, os vendedores de cerveja gelada e de gaseosas, de
frutas frescas em redes que boiam em baldes de metal cheios de água e
gelo, de doces em cestos rasos, de amêndoas salgadas e amendoins. A
polícia, os toureiros que não estão na arena, vários policiais à paisana
prontos para prender os amadores que invadirem a arena, os fotógrafos
também ficam ali, e, em assentos dentro do corredor, protegidos por
escudos de madeira, ficam os médicos, os carpinteiros que fazem a
manutenção da barrera e os representantes do governo. Em algumas
arenas, os fotógrafos têm permissão para circular no callejon; em outras,
eles devem trabalhar de seus assentos.
Os bancos na praça de touros são descobertos com exceção dos
camarotes ou palcos e da primeira galeria ou grada. A partir da galeria, os
assentos descem em fileiras circulares até a beira da arena. Essas fileiras
numeradas são chamadas de tendidos. As duas fileiras mais próximas da
arena e as fileiras na frente de todos os assentos são chamadas de barreras
e contra-barreras. A terceira fileira é conhecida como delanteras de
tendidos ou a primeira fileira dos tendidos. Por questões de numeração, a
arena é repartida em seções, da mesma forma como você repartiria uma
torta, e essas seções são numeradas como tendidos 1, 2, 3 e assim por
diante até 11 ou 12, dependendo do tamanho da arena.
Se você vai a uma tourada pela primeira vez, o melhor lugar para se
sentar depende de como você estiver se sentindo no dia. De um camarote
ou da primeira fileira da galeria, a percepção de sons e de odores, e a
percepção do perigo, são minimizadas ou quase nulas, mas você vê a luta
mais como um espetáculo e, se for uma boa luta, são grandes as chances
de você desfrutar mais dela. Se for uma tourada ruim, isto é, se não for
uma boa performance artística, quanto mais perto da arena você estiver,
melhor, porque assim, sem poder apreciar o evento como um todo, você
tem chance de aprender e prestar atenção aos detalhes, aos motivos e aos
métodos. Os camarotes e a galeria são para pessoas que não querem ver as
coisas de perto por medo de se sentirem incomodadas, para pessoas que
querem ver a tourada como um espetáculo ou como um desfile, e para
conhecedores que conseguem ver detalhes mesmo a distância e que
preferem ficar numa área mais alta para ver tudo que acontece em toda a
arena de modo que consigam avaliar o evento como um todo.
A barrera é o melhor lugar se você quiser ver e ouvir o que acontece e
ficar tão perto do touro que você vai ter o mesmo ponto de vista do
toureiro. Da barrera, a ação é tão próxima e tão detalhada que mesmo
uma tourada que pareça monótona vista dos camarotes ou da galeria fica
interessante. É das barreras que você vê o perigo e desenvolve gosto por
ele. Além disso, nada bloqueia sua visão da arena. Os únicos lugares onde
não há pessoas entre você e a arena, além da primeira fileira na galeria e da
primeira fileira nos camarotes, são as sobrepuertas. Esses são os assentos
que ficam sobre as entradas por onde o público acessa as várias seções da
arena. Elas ficam numa altura mais ou menos no meio do anfiteatro e
delas você tem uma boa visão da arena e uma boa perspectiva, e você não
está tão distante como nos camarotes ou na galeria. Elas custam a metade
do valor de um assento nas barreras ou na primeira fileira da galeria ou
dos camarotes e são lugares muito bons.
As paredes no lado esquerdo da estrutura da praça de touros bloqueiam
o sol e os assentos que ficam protegidos do sol quando a luta começa são
chamados de lugares da sombra. Assentos que ficam no sol quando a luta
começa, mas que ficarão na sombra à medida que a tarde avançar, são
chamados de sol y sombra. O preço dos assentos varia de acordo com o
quão convenientes eles são e se ficam na sombra ou não. Os assentos mais
baratos são os mais altos, no extremo ensolarado da arena onde nunca tem
sombra. Eles são os andanadas del sol e, num dia quente, perto da
cobertura, eles chegam a temperaturas inacreditáveis numa cidade como
Valência onde faz 40ºC na sombra, mas os melhores assentos del sol valem
a pena num dia nublado ou no frio.
Em sua primeira tourada, se estiver sozinho, sem ninguém para orientá-
lo, pegue um lugar na delantera de grada ou na sobrepuerta. Se não der,
você sempre vai conseguir um assento num camarote. São os lugares mais
caros e os mais distantes da arena, mas eles oferecem uma visão
panorâmica da luta. Se você está acompanhado por alguém que entende
de touradas e quer saber como elas funcionam, e tem estômago para
encarar os detalhes, as barreras são a melhor opção, seguidas das contra-
barreras e das sobrepuertas.
Se você é uma mulher que gostaria de ver uma tourada mas tem medo
de ficar profundamente afetada por ela, evite se sentar em qualquer lugar
antes da galeria. Você vai gostar de ver a luta num assento de lá, vai
parecer um espetáculo e você não vai se preocupar. Caso sente perto,
poderá ver com detalhes que talvez estraguem a experiência toda. Se você
tem bastante dinheiro e quer ver uma tourada sem efetivamente ver uma
tourada, e planeja sair depois do primeiro touro, pouco importa que esteja
gostando ou não, compre um lugar na barrera, porque assim alguém que
nunca teve dinheiro suficiente para comprar um lugar na barrera pode dar
uma corridinha e ocupar seu assento valioso depois que você for embora
levando consigo as suas opiniões preconcebidas.
É assim que funcionava em San Sebastian. Devido à venda de ingressos
por cambistas e à confiança da administração da arena na curiosidade dos
ricos que vinham de Biarritz e da Costa Basca, os assentos nas barreras,
quando você tentava comprá-los, custavam cem pesetas ou mais cada um.
Um homem poderia sobreviver por uma semana com esse dinheiro numa
pensão de toureiros em Madri, ir ao museu do Prado quatro vezes por
semana, comprar bons lugares no sol para duas touradas, comprar os
jornais depois da luta, beber cerveja e comer camarão na Pasaje Alvarez,
perto da Calle de Vitoria, e ainda sobrar uns trocados para engraxar os
sapatos. No entanto, ao comprar qualquer assento próximo das barreras
em San Sebastian, você pode ter certeza de que terá acesso a um lugar de
cem pesetas quando cidadãos bem alimentados, vindos de Yale ou
Harvard, bronzeados e fúteis, de chapéu-panamá e calçados esportivos,
que se sentem moralmente obrigados a sair da arena depois do primeiro
touro, se levantam para ir embora. Vi muitos desses irem embora
enquanto suas mulheres queriam ficar. Eles podiam ir à tourada, mas
tinham de se encontrar no cassino depois da morte do primeiro touro. Se
não fossem embora e gostassem da tourada, havia algo errado com eles.
Talvez fossem diferentes. Nunca havia nada errado com eles. Eles sempre
iam embora. Ao menos até as touradas se tornarem respeitáveis. Em mil
novecentos e trinta e um, não vi ninguém sair da arena, e agora é como se
os bons tempos das barreras gratuitas em San Sebastian tivessem acabado.
4

A melhor tourada de se ver numa primeira vez seria uma novillada, e o


melhor lugar para se ver uma novillada é Madri. As novilladas tipicamen-
te começam no meio de março e todo domingo acontece uma e
geralmente outra às quintas-feiras até a Páscoa, quando começam as
touradas ou corridas de touros mais importantes. Depois da Páscoa, em
Madri, começa a primeira temporada com sete touradas. Assinaturas com
ingressos para todas as sete touradas são vendidas e, ano após ano, os
melhores lugares são sempre vendidos nessas assinaturas. O melhor lugar
é na barrera, bem no meio da sombra, na altura em que o toureiro
pendura as capas sobre a barrera vermelha de madeira. É lá que eles ficam
quando não estão na arena; para onde o touro é levado quando os
toureiros encerram o trabalho com as muletas; é para onde os toureiros
vão depois de matar o touro. Um assento nessa área, no que diz respeito
ao que você vê e ouve, é equivalente a estar no corner de um boxeador
durante uma luta ou a se sentar no banco de reservas de um jogo de
beisebol ou de futebol americano.
Você não vai conseguir comprar nenhum desses lugares na primeira ou
na segunda temporada por assinatura ou abono em Madri, mas você pode
conseguir comprá-los para as novilladas que ocorrem antes, no meio ou
depois da temporada de touradas, aos domingos e, tipicamente, às quintas-
feiras. Quando comprar um assento nas barreras, pergunte onde as capas
são penduradas. “Adonde se pone los capotes?” e peça um lugar que seja o
mais próximo possível delas. Nas províncias, o bilheteiro pode mentir para
você e vender o pior lugar que tiver, mas porque você é estrangeiro e
parece saber do que está falando e parece estar interessado de verdade em
assistir a uma boa luta, ele talvez te venda o melhor lugar que tiver. No
meu caso, os bilheteiros mentiram mais na Galícia, onde a verdade é algo
raro em qualquer transação comercial, e foram mais honestos em Madri e,
sobretudo, em Valência. Em quase toda a Espanha, você encontra as
assinaturas ou abonos e as re-ventas. As re-ventas são os vendedores que
compram da administração da arena todos ou a maioria dos ingressos que
não foram vendidos nos pacotes por assinatura e comercializam esses
ingressos cobrando uma taxa de vinte por cento sobre o valor original. As
arenas favorecem esses vendedores às vezes porque, apesar de comprarem
os ingressos com desconto, eles garantem que os lugares sejam vendidos.
Se sobram ingressos para a luta, o prejuízo é da re-venta, e não da arena —
embora a arena lide com prejuízos de um jeito ou de outro. Como você
raramente estará presente no momento em que começarem a ser vendidas
as assinaturas ou abonos para uma luta ou para uma série de lutas, a
menos que esteja vivendo na região, e como os compradores mais antigos
têm o direito de renovar suas assinaturas antes de as outras serem
colocadas à venda, e como as assinaturas são vendidas duas ou três
semanas antes das lutas em lugares que talvez sejam difíceis de achar e que
funcionam, digamos, das quatro às cinco da tarde, é provável que você
tenha de comprar seus ingressos com a re-venta.
Se você estiver na região e decidir que vai a uma tourada, compre os
ingressos o quanto antes. É provável que os jornais de Madri não deem
nada sobre as touradas antes de elas acontecerem, a não ser por um
pequeno anúncio da Plaza de Toros de Madrid na coluna de espetáculos.
Os jornais espanhóis não falam das touradas com antecedência, a não ser
nas províncias. Mas por toda a Espanha elas são divulgadas em grandes
cartazes coloridos que informam o número de touros que serão mortos, o
nome dos homens responsáveis pelos sacrifícios, o criador que está
fornecendo os animais, as cuadrillas e o local e a hora da luta. Em geral, há
também uma lista com o preço dos ingressos. Se você for comprar
ingressos com a re-venta, lembre de acrescentar a comissão de vinte por
cento.
Se você quiser ver uma tourada na Espanha, será fácil encontrar alguma
aos domingos em Madri, de meados de março até meados de novembro,
se o tempo permitir. No inverno, as touradas são raras na Espanha, a não
ser em pouquíssimas ocasiões em Barcelona e, às vezes, em Málaga ou
Valência. A primeira tourada oficial de cada ano ocorre em Castellón de la
Plana, no fim de fevereiro ou no início de março, durante a fiesta de
Magdalena, e a última do ano costuma ser em Valência, Gerona ou
Ondara, no começo de novembro, mas se o tempo estiver ruim, essas lutas
de novembro não acontecem. A Cidade do México tem lutas aos domingos
entre os meses de outubro e abril. As novilladas ocorrem na primavera e
no verão. As datas das touradas em outras regiões do México variam. Os
dias em que ocorrem touradas em outras cidades da Espanha que não
sejam Madri variam, mas em geral, à exceção de Barcelona, onde elas
ocorrem com uma frequência semelhante à de Madri, as datas coincidem
com as festas religiosas nacionais e com a época das feiras locais ou ferias
que começam tipicamente no dia do santo padroeiro de cada cidade. Num
anexo deste livro, listo as datas das principais ferias, ao menos daquelas que
têm data fixa e nas quais ocorrem touradas, na Espanha, no México e na
América Central e na América do Sul. É fácil, mais fácil do que você possa
pensar, numa viagem de duas ou três semanas pela Espanha, perder a
oportunidade de ver touradas, mas qualquer pessoa com esse anexo vai
conseguir ver uma tourada se estiver em qualquer um desses lugares em
qualquer uma dessas datas fixas, se não chover. Depois da primeira
tourada, você vai saber se quer ver outras mais.
Fora as novilladas e as duas temporadas por assinatura em Madri, o
melhor lugar para ver uma série de touradas nos primeiros dias da
primavera é na feria em Sevilha, onde há pelo menos quatro lutas em dias
sucessivos. Essa feria começa depois da Páscoa. Se você estiver em Sevilha
para a Páscoa, pergunte para qualquer pessoa quando a feria começa ou
você pode encontrar as datas nos grandes cartazes que anunciam as lutas.
Se estiver em Madri antes da Páscoa, vá a qualquer um dos cafés nos
arredores da Puerta del Sol ou ao primeiro café na Plaza de Canalejas, à
direita, vindo pela Calle de San Jeronimo, no caminho da Puerta del Sol
para o Prado, e você vai encontrar um cartaz na parede anunciando a feria
de Sevilha. Nesse mesmo café, no verão, você sempre vai encontrar os
cartazes ou cartelas anunciando as ferias de Pamplona, Valência, Bilbao,
Salamanca, Valladolid, Cuenca, Málaga, Múrcia e várias outras.
No domingo de Páscoa, sempre acontecem touradas em Madri, Sevilha,
Barcelona, Múrcia e Zaragoza, e novilladas em Granada, Bilbao, Valladolid
e em vários outros lugares. Há também uma tourada em Madri na
segunda-feira depois da Páscoa. Todo ano, no dia 29 de abril, há uma feria
e uma tourada em Xerez de la Frontera. Esse é um lugar excelente para
visitar com ou sem as touradas e é a cidade do xerez e de todas as bebidas
É
destiladas a partir da uva. É possível conhecer as caves de Xerez e provar
vários tipos de vinhos e conhaques, mas não é bom fazer isso no mesmo
dia em que você planeja ver a corrida. Existem duas touradas em Bilbao
que ocorrem
num dos três primeiros dias de maio, a depender de qual desses dias cai
num domingo. São boas touradas para ir se você estiver, digamos, em
Biarritz ou St. Jean de Luz para a Páscoa. Há uma estrada boa que vai até
Bilbao saindo de qualquer lugar ao longo da Costa Basca. Bilbao é uma
cidade mineradora, rica e feia, onde o clima é tão quente quanto em St.
Louis, seja St. Louis no Missouri ou St. Louis no Senegal, e onde as pessoas
amam touros e odeiam toureiros. Quando gostam de um toureiro em
Bilbao, elas compram touros cada vez maiores para enfrentá-lo até que,
por fim, ocorre um desastre, seja ele moral ou físico. Então o entusiasta de
touradas em Bilbao diz: “Está vendo? Eles são todos iguais: covardes e
impostores. É só encontrar um touro grande que eles amarelam.” Se você
quer saber como os touros grandes surgem, o tanto de chifre que eles
conseguem carregar na cabeça, como eles conseguem olhar por cima da
barrera e dar a impressão de que podem alcançar o público, o quão
corajoso um público pode ser e como um toureiro pode ficar
completamente aterrorizado, vá a Bilbao. Eles não têm touros tão grandes
em maio quanto os da feria com sete corridas que começa no meio de
agosto, mas em maio não é tão quente em Bilbao como em agosto. Se
você não se incomoda com o calor, um calor intenso e úmido, de minas de
chumbo e zinco, e quer ver touros grandes e maravilhosos, a feria de
agosto em Bilbao é o seu lugar. Córdoba tem a única outra feria de maio,
onde ocorrem pelo menos duas touradas e suas datas variam, mas sempre
ocorre uma tourada no dia 16 na Talavera de la Reina; uma no dia 20 em
Ronda; e uma no dia 30 em Aranjuez.
Existem duas estradas que levam de Madri para Sevilha. Uma passa por
Aranjuez, Valdapeñas e Córdoba, e é chamada de autoestrada da
Andaluzia; e a outra passa por Talavera de la Reina, Trujillo e Mérida, e é
chamada de estrada da Extremadura. Se você estiver em Madri em maio e
viajar para o sul, consegue ver a luta em Talavera de la Reina no dia 16, se
for pela estrada da Extremadura. É uma boa estrada, lisinha e tranquila, e
Talavera é um lugar bom se o tempo estiver limpo e os touros, quase
sempre fornecidos por um criador local, a viúva Ortega, são
moderadamente grandes, ferozes, difíceis e perigosos. Foi lá que José
Gómez Ortega, chamado de Gallito ou Joselito, talvez o maior toureiro de
todos os tempos, morreu no dia 16 de maio de 1920. Os touros da viúva
Ortega são famosos por causa desse acidente e, como não rendem lutas
fantásticas e são grandes e perigosos, hoje eles geralmente são mortos sem
qualquer dignidade.
Aranjuez fica a apenas quarenta e sete quilômetros de Madri numa
estrada tão lisa quanto uma mesa de bilhar. É um oásis de árvores altas,
jardins exuberantes e um rio que corre rápido por uma planície marrom
pontuada por montanhas. Existem avenidas de árvores como as que
aparecem nos quadros de Velázquez e, no dia 30 de maio, você pode viajar
de carro se tiver dinheiro ou, se não tiver, viajar de ônibus (há um ônibus
que sai da Calle Victoria na altura da Pasaje Alvarez) ou comprar uma
passagem de trem na terceira classe, de ida e volta, com preço mais
acessível e deixar para trás o sol quente de um território deserto e
desprotegido para, de repente, na sombra de árvores, encontrar garotas
com os braços bronzeados carregando cestas de morangos frescos,
empilhadas no chão frio, limpo e uniforme, morangos que você não
consegue segurar por inteiro na mão de tão grandes, úmidos e frescos,
protegidos por folhas verdes em cestas de vime. As meninas e as mulheres
mais velhas vendem morangos e também aspargos maravilhosos, com os
caules da grossura de um polegar, para a multidão que desembarca do
trem vindo de Madri e Toledo e para as pessoas que chegam à cidade de
carro ou ônibus. Você pode comer em barraquinhas que grelham bifes e
assam frangos sobre brasa de carvão e servem vinho Valdapeñas à vontade
por cinco pesetas. Você pode deitar na sombra ou caminhar e conhecer o
lugar fazendo hora até as touradas. Você consegue mais informações sobre
os pontos turísticos no guia Baedeker. A praça de touros fica no fim de
uma rua de terra, ampla e quente, que vai do calor do sol até a sombra
fresca do bosque da cidade, e os aleijados profissionais, as figuras que
inspiram horror e pena, e que acompanham as ferias da Espanha, se
enfileiram nessa rua, balançando cotos, expondo feridas, exibindo
monstruosidades e segurando chapéus, com a boca quando eles não têm
mais nada com que segurar o chapéu, de modo que você anda por um
corredor de terra entre duas fileiras de horrores até chegar à arena. A
cidade lembra Velázquez numa ponta e Goya na outra, onde fica a arena.
É
A arena em si é anterior a Goya. É uma linda construção no estilo antigo
da praça de touros em Ronda, e você pode ocupar um lugar nas barreras e
beber vinho e comer morangos na sombra, de costas para a arena, e ver os
camarotes serem ocupados e ver as garotas de Toledo e da região de
Castela decorarem a frente dos camarotes com xales, sentadas se abanando
com leques, sorrindo e conversando com aquela confusão consciente e
agradável das lindezas amadoras sob avaliação. Essa avaliação das garotas é
uma grande parte das touradas para o expectador. Se você é míope, pode
usar óculos de ópera ou binóculos. Eles são encarados como um elogio a
mais. O ideal é não ignorar nenhum camarote. O uso de um bom par de
lentes é uma vantagem. Ele vai destruir alguns dos maiores e mais
surpreendentes encantos de mulheres que chegam cobertas por mantillas
de renda branca, todas penteadas e maquiadas e enfeitadas, que nos
binóculos revelam os dentes de ouro e a pele enfarinhada que você talvez
tenha visto na noite passada em outras circunstâncias, e que está na
tourada para fazer propaganda de seu estabelecimento; mas em outros
camarotes você talvez note uma garota bonita que não tinha percebido
sem os binóculos. É muito fácil para quem viaja pela Espanha, depois de
ver o rosto gordo e enfarinhado das dançarinas de flamenco e das moças
robustas dos bordéis, achar que toda essa história da beleza das mulheres
espanholas é absurda. A prostituição é uma profissão que não paga muito
bem na Espanha e as prostitutas espanholas trabalham muito para manter
o visual. Não procure por mulheres bonitas no palco, nos bordéis nem nas
casas de flamenco. Você deve procurar por elas à tarde, no horário do
paseo, quando é possível ocupar uma cadeira num café ou na rua e ver
todas as meninas da cidade passeando bem na sua frente ao longo de uma
hora, enquanto sobem o quarteirão, dão meia-volta e descem, três ou
quatro lado a lado; ou você procura atentamente com binóculos, nos
camarotes da praça de touros. Não é educado mirar os binóculos em
qualquer pessoa que não esteja nos camarotes, assim como não é educado
usá-los quando se está no centro da arena, nos locais onde o público tem
permissão para circular pelo palco de areia e interagir antes da luta e
diante das moças bonitas. Usar binóculos no centro da arena é a atitude de
um voyeur, um observador no pior sentido da palavra; é alguém que
prefere observar em vez de agir. Mas usar os binóculos nas barreras para
olhar os camarotes é permitido, e é um elogio, e uma forma de
comunicação e quase que uma apresentação. Não existe forma melhor de
começar uma conversa do que a admiração sincera e educada, e não existe
forma melhor de comunicar admiração a uma certa distância, nem forma
melhor de perceber qualquer reação, do que com um belo par de
binóculos. Mesmo que você nunca olhe para as garotas, os binóculos são
bons para ver a morte do último touro se estiver anoitecendo e se o touro
estiver sendo morto do outro lado da arena.
Aranjuez seria um bom lugar para ver sua primeira tourada. Seria um
bom lugar se você fosse ver apenas uma tourada, muito melhor do que
Madri, pois tem todo o colorido e o pitoresco que você procura quando
ainda está na fase de apreciar a tourada como um espetáculo. Depois, o
que você vai querer de uma tourada, fora bons matadores e bons touros, é
um bom público, e um bom público não é aquele que vai a uma única
fiesta de toros em que todo mundo bebe e se diverte, e as mulheres se
vestem a caráter, e também não é o público bêbado, festeiro e que corre
dos touros em Pamplona, e também não é o público patriótico que
reverencia touradas em Valência. Um bom público é o de Madri, mas não
nos dias das lutas beneficentes com decorações elaboradas, grandes
espetáculos e ingressos caros, mas o público sério dos abonos que conhece
as touradas, os touros e toureiros, que sabe diferenciar o que presta do que
não presta, discernir os legítimos dos fingidos, e para quem o toureiro
deve dar o máximo de si. O pitoresco funciona quando você é jovem, ou
quando você está um pouco bêbado e tudo fica parecendo de verdade, ou
se você for ingênuo, ou se você estiver com uma garota que nunca viu
uma tourada, ou para ver uma vez na temporada, ou para quem gosta.
Mas se você quiser aprender de verdade sobre touradas, ou se elas se
tornarem algo importante para você, mais cedo ou mais tarde você terá de
ir para Madri.
Uma cidade que seria melhor do que Aranjuez para ver sua primeira
tourada, se você fosse ver apenas uma, é a cidade de Ronda. Esse é o lugar
ideal se você for à Espanha numa lua de mel ou numa escapada a dois. A
cidade inteira até o fim da linha do horizonte é um ambiente romântico, e
existe um hotel lá que é tão confortável, tão bem administrado e onde
você come tão bem e sempre há uma brisa refrescante à noite que, com o
ambiente romântico e o conforto moderno, se uma lua de mel ou uma
escapada a dois não for um sucesso em Ronda, melhor ir embora para
Paris e cada um viver sua vida. Ronda tem tudo que se deseja de uma
viagem desse tipo. Lá tem paisagens românticas que podem ser vistas, se
for o caso, sem sair do hotel, belos passeios a pé, vinho de qualidade,
frutos do mar, um bom hotel, quase mais nada para fazer, dois pintores
que moram lá e vendem aquarelas que funcionam como boas lembranças
da ocasião; e de verdade, apesar disso tudo, é um lugar ótimo. Ele fica num
planalto cercado de montanhas e o planalto é cortado por um desfiladeiro
que divide as duas cidades e termina num penhasco que dá para um rio e
para a planície onde se pode ver as nuvens de poeira das carroças puxadas
por mulas ao longo da estrada. As pessoas que colonizaram o lugar
quando os mouros foram expulsos da região vieram de Córdoba e do
norte da Andaluzia, e a feria e a tourada que começam no dia 20 de maio
comemoram a conquista da cidade por Fernando e Isabel. Ronda foi um
dos berços da tourada moderna. Foi onde nasceu Pedro Romero, um dos
primeiros e mais importantes toureiros profissionais e, em tempos
recentes, de Niño de la Palma, que dava sinais de grandeza, mas, depois de
ter sido gravemente ferido por um touro, acabou desenvolvendo uma
covardia que só não era maior que sua habilidade de evitar todo e qualquer
risco na arena. A praça de touros em Ronda foi construída no fim do
século XVIII e é feita de madeira. Ela fica perto de um penhasco e, após a
tourada, depois que a pele dos touros é arrancada e a carne é preparada
para ser vendida, eles jogam os cavalos mortos do penhasco, e as aves de
rapina que sobrevoaram a cidade e a arena durante o dia inteiro voam para
se alimentar nas rochas da planície sob a cidade.
Existe mais uma feria com uma série de touradas que às vezes acontece
em maio, embora a data não seja fixa, e ela pode ser adiada até junho, e ela
fica em Córdoba. Córdoba tem uma boa feria para uma cidade do interior,
e maio é o melhor mês para se visitar a cidade por causa do calor associado
ao verão. As três cidades mais quentes da Espanha, onde o calor chega
para valer, são Bilbao, Córdoba e Sevilha. E por mais quentes não me
refiro apenas a meros graus de temperatura; eu me refiro a um calor
pesado e sufocante que é quase impossível dormir à noite, as noites são
mais quentes do que os dias e não há para onde escapar, um calor do
Senegal; quando está quente demais para se sentar num café, a não ser nas
primeiras horas da manhã; quente demais para fazer qualquer coisa depois
do almoço que não seja ficar deitado na cama, trancado no quarto com as
cortinas fechadas, esperando a tourada começar.
Às vezes, Valência tem a temperatura mais alta e é de fato mais quente
quando o vento sopra da África, mas lá você sempre pode pegar um
ônibus ou o bonde até o porto de Gray e nadar na praia à noite ou, quando
está quente demais para nadar, boiar quase sem nenhum esforço e ficar na
água ligeiramente mais fria e observar as luzes e as sombras dos barcos,
das fileiras de barracas que servem comida e das cabines ao longo da praia.
E também em Valência, quando está quente demais, você pode fazer uma
refeição na praia por uma peseta ou duas pesetas num dos pavilhões onde
servem camarão e cerveja, e uma paella de arroz, tomate, pimentas
adocicadas, açafrão e bons frutos do mar, escargôs, lagostins, peixes
pequenos, enguias pequenininhas, preparado tudo junto num montículo
com cor de açafrão. Para acompanhar, você pode pedir uma garrafa do
vinho local por duas pesetas e as crianças correm pela praia com as pernas
de fora e o pavilhão tem um telhado feito de palha, que deixa a areia fria
debaixo dos seus pés, os pescadores no mar sentados em seus carcomidos
barcos feluccas que você pode ver, se vier nadar na manhã seguinte, sendo
rebocados pela praia por uma junta de seis bois. Na praia, três dessas
barracas de comida se chamam Granero, inspiradas no maior toureiro de
Valência, que morreu numa arena em Madri, em 1922. Manuel Granero,
depois de fechar o ano de 1921 com 94 lutas, morreu endividado depois de
gastar o meio milhão de pesetas que ganhou com publicidade,
propaganda, jornalistas e aproveitadores. Ele tinha vinte anos quando foi
morto por um touro Veragua que o ergueu uma vez, depois o arremessou
contra a madeira na base das barreras e ficou em cima dele até quebrar o
crânio como se fosse um vaso de flor. Ele era um garoto bem-apessoado
que tinha estudado violino até os quatorze anos, estudado touradas até os
dezessete e lutado contra touros até os vinte. As pessoas em Valência o
adoram e ele morreu antes de o público se virar contra ele. Agora, existe
uma casa de massas batizada em sua homenagem e outras três barracas
rivais chamadas Granero em partes diferentes da praia. Depois dele, o
outro toureiro que eles adoram em Valência era chamado de Chaves, e ele
tinha o cabelo penteado com vaselina, um rosto largo, queixo duplo e uma
barriga enorme que ele projetava na direção do touro assim que desviava
dos chifres para dar a impressão de grande perigo. Os valencianos, esse
povo que adora toureiros — toureiros valencianos —, em vez de desfrutar
das touradas, ficavam loucos por Chaves. Assim como tinha uma barriga e
uma arrogância enormes, ele tinha um par de nádegas gigantescas que
ficavam aparentes toda vez que ele puxava o estômago para dentro, assim
como ficavam aparentes todas as coisas que ele fazia em grande estilo. Nós
tínhamos de ver todas as suas apresentações ao longo da feria inteira. Nós
o vimos cinco vezes, se não me engano, e uma vez bastaria a qualquer um
que não seja um conterrâneo de Chaves. Porém, na última luta, enquanto
ele tentava estocar um touro Miura enorme em algum lugar, em qualquer
lugar, do pescoço, o Miura esticou o pescoço o suficiente para colher
Chaves pela axila e o deixou pendurado um pouco, e depois a barriga
enorme de Chaves girou ao redor do chifre. Levou um tempo até que
superasse a dor e a lesão dos músculos do braço, e agora ele é tão
cuidadoso que desistiu de projetar a barriga na direção do touro depois de
desviar dos chifres. O público em Valência se voltou contra ele também, e
hoje a cidade tem dois novos toureiros como ídolos, e na única vez que vi
Chaves no ano passado, ele não me pareceu tão bem alimentado como era
antes e de pé na sombra ele começou a suar na mesma hora
que viu o touro. Mas ele tem um consolo. Em Grau, a cidade onde nasceu
e que serve de porto para Valência, o público também se voltou contra ele,
mas deram seu nome a um monumento público. É um monumento de
ferro na esquina da rua onde o bonde vira para chegar à praia. Nos
Estados Unidos, esse monumento é conhecido como banheiro público, e
na parede circular de ferro está escrito, com tinta branca, El Urinario
Chaves.
5

O problema de ir à Espanha para ver touradas na primavera é a chuva.


Pode chover em qualquer lugar aonde você for, sobretudo em maio e
junho, e é por isso que prefiro os meses de verão. Também chove no
verão, às vezes, mas nunca vi nevar na Espanha em julho e agosto, embora
tenha nevado em agosto de 1929 em alguns resorts nas montanhas de
Aragon e uma vez em Madri no dia 15 de maio, e fez tanto frio que
cancelaram as touradas. Lembro de ter viajado à Espanha naquele ano
pensando que a primavera estava próxima e, ao longo do dia inteiro,
viajamos de trem por regiões tão vazias e inóspitas quanto as terras baldias
em novembro. O país estava irreconhecível e quando desci do trem à noite
em Madri a neve caía do lado de fora da estação. Como estava sem casaco,
ficava deitado no meu quarto escrevendo ou no bar mais próximo bebendo
café com conhaque Domecq. Estava frio demais para sair e ficou assim por
três dias, e depois disso veio o adorável clima da primavera. Madri é uma
cidade de montanha com um clima de montanha. Ela tem aquele céu
espanhol sem nuvens que faz o céu italiano parecer sentimental e tem um
ar que dá gosto de respirar. Lá os extremos de calor e de frio passam
rápido. Uma vez, numa noite de julho em que não conseguia dormir, vi
mendigos na rua queimando jornais, agachados ao redor do fogo para se
aquecer. Duas noites depois, estava tão quente que só deu para dormir
quando a temperatura caiu pouco antes de amanhecer.
Madrileños amam o clima da cidade e se orgulham dessas variações.
Nenhuma outra cidade grande tem esse tipo de mudança brusca. No bar,
quando perguntam como você passou a noite e você reclama que estava
quente demais para dormir até pouco antes de amanhecer, eles dizem que
essa é a hora certa de dormir. Sempre esfria um pouco antes de
amanhecer, na hora em que um homem deve ir para a cama. Você pode
contar com isso, não importa o calor que faça ao longo da noite. É um
clima muito bom para quem não liga para as variações. Em noites
quentes, você pode ir a Bombilla para relaxar e beber cidra e dançar e,
quando você para de dançar, sempre sente aquele ar frio vindo das
plantações de árvores frondosas onde a neblina se forma perto de um
riozinho. Nas noites frias, você pode beber xerez e ir para a cama. Em
Madri, ir para a cama à noite é uma coisa um pouco estranha de se fazer.
Seus amigos vão ficar desconfortáveis com isso por bastante tempo.
Ninguém vai para a cama em Madri antes de acabar a noite. Encontros
com amigos são marcados para depois da meia-noite no bar. Em nenhuma
outra cidade onde tenha vivido, com exceção de Constantinopla no
período da ocupação dos Aliados, a ideia de ir para a cama dormir é tão
ignorada. Isso pode ter algo a ver com a teoria de ficar acordado até o
friozinho que antecede o amanhecer, mas ela não funciona para
Constantinopla, porque a gente sempre aproveitava esse período mais frio
para passear ao longo do Bósforo e ver o sol nascer. Ver o sol nascer é uma
coisa boa. Quando menino, pescando ou caçando, ou durante a guerra,
com frequência dava para ver o sol nascer; então, depois da guerra, não
me lembro de ver o nascer do sol até chegar a Constantinopla. Lá, ver o
sol nascer era a coisa mais comum de se fazer. Era como se fosse algum
tipo de teste, depois de fazer não importa o que você estivesse fazendo, ir
até o Bósforo e ver o sol nascer. Assim tudo terminava com um saudável
evento ao ar livre. Mas, uma vez longe dessas coisas, você acaba se
esquecendo delas. Em Kansas City, durante a convenção republicana de
1928, eu estava indo de carro até a casa dos meus primos no interior, num
horário que parecia ser tarde da noite, quando vi o clarão de um fogo
enorme. Era igual à noite em que incêndios atingiram os currais e, mesmo
sabendo que não poderia fazer muita coisa para ajudar, senti que deveria ir
até lá. Dirigi na direção do fogo. Quando o carro chegou no topo de uma
colina, consegui ver o que era. Era o nascer do sol.
O clima na Espanha fica ideal para o turismo e para ver as touradas no
mês de setembro, pois também é a época com o maior número de
touradas. A única desvantagem desse mês é que as touradas não são muito
boas. Os touros dão as melhores performances em maio e junho, e
continuam bons em julho e agosto, mas em setembro os pastos secam
devido ao calor e os touros emagrecem e ficam num estado lamentável, a
menos que sejam alimentados com cereais, o que deixa os touros gordos e
com a pelagem lustrosa, e eles ficam muito violentos por alguns minutos,
mas tão fora de forma como um boxeador que tivesse se alimentado só de
batatas e cerveja. Também em setembro, os toureiros lutam quase todos
os dias e têm muitos contratos para cumprir e, com a perspectiva de fazer
muito dinheiro num período curto de tempo, se não estiverem lesionados,
eles preferem se arriscar o mínimo possível. Isso nem sempre é o caso e, se
existe uma rivalidade entre dois toureiros, eles vão dar tudo de si, mas
quase sempre as lutas decepcionam por causa de touros fracos e em más
condições e por causa de toureiros que foram feridos e voltaram mesmo
com problemas físicos para não perder seus contratos ou por toureiros
cansados com o desgaste de uma temporada intensa. Setembro pode ser
um mês esplêndido se houver toureiros novos que acabaram de começar
nesse ramo e dão tudo de si na primeira temporada para se tornarem
conhecidos e conseguirem contratos para o ano seguinte. Se você quiser, e
tiver um carro que seja rápido o bastante, você consegue ver uma tourada
por dia durante todo o mês de setembro em lugares diferentes da Espanha.
Garanto que você vai ficar destruído só de viajar para ver as touradas, sem
ter de lutar nelas, e assim você vai ter uma ideia do desgaste físico que um
toureiro enfrenta ao viajar pelo interior, indo de um lugar a outro à
medida que o fim da temporada se aproxima.
É óbvio que não existe uma lei que os obrigue a lutar com tanta
frequência. Eles lutam por dinheiro e, se ficam cansados, desgastados e
incapazes de dar o melhor de si ao tentar honrar tantos contratos, pior
para o espectador, que gastou dinheiro para vê-los. Mas quando você
também está viajando, ficando nos mesmos hotéis, vendo as touradas
pelos olhos dos toureiros e não pelos olhos do espectador que pagou caro
para talvez ver o toureiro apenas uma vez no ano, fica difícil não entender
o lado do toureiro no que diz respeito aos seus compromissos. Na verdade,
de qualquer ponto de vista, o toureiro não tem o direito de assinar um
contrato que o obrigue a sair imediatamente após o fim de uma luta, pegar
um carro, com as capas e as muletas guardadas em cestos que precisam ser
amarrados com cordas no compartimento de bagagem, as espadas e as
malas empilhadas na parte da frente e a cuadrilla inteira espremida no
carro que não é pequeno, um farol enorme na frente, para uma viagem de
mais ou menos oitocentos quilômetros, sem parar a noite inteira, e
enfrentando toda a poeira e o calor da estrada para chegar à cidade onde
ele precisa lutar na tarde do dia seguinte, quase sem tempo de sacudir a
poeira, tomar um banho e fazer a barba antes de se arrumar para a
corrida. Na arena, talvez o toureiro pareça velho e cansado, e você entende
porque sabe o percurso que ele acabou de fazer, porque você também
acabou de fazer essa viagem e sabe que, com uma boa noite de sono, ele
vai melhorar, mas o espectador que gastou dinheiro para vê-lo naquele dia
não perdoa, mesmo que entenda ou não. Ele acha que se trata de uma
ambição insaciável por dinheiro, e se o toureiro não consegue tirar
proveito de um bom touro e tem um desempenho que deixa a desejar, o
espectador sente que foi enganado — e ele foi.
Existe mais um motivo para ver sua primeira e sua última tourada em
Madri, porque as touradas da primavera não ocorrem durante a
temporada de ferias e os toureiros estão na sua melhor forma física; eles
procuram ter desempenhos que gerem contratos para as muitas ferias e, a
menos que tenham passado o inverno no México e estejam sentindo o
cansaço e o desgaste de uma temporada dupla, sem mencionar as falhas
que adquirem ao lutar com os touros mexicanos, que são menores e mais
fáceis, eles devem estar com as melhores condições físicas possíveis. Ainda
assim, Madri é um lugar estranho. Não acho que seja possível gostar da
cidade à primeira visita. Não tem nada a ver com o que se espera de uma
cidade espanhola. É moderna em vez de pitoresca, não se veem as fantasias
nem os chapéus de Córdoba, a não ser na cabeça de impostores, não se
veem as castanholas nem aqueles nojentos vinhos falsos vendidos por
ciganos em Granada. Não existe nenhum lugar que exiba as cores locais
para os turistas que visitam a cidade. No entanto, à medida que você
conhece Madri, descobre que ela é a mais espanhola de todas as cidades, a
melhor para se viver, a que tem as melhores pessoas, o melhor clima não
importa o mês do ano e, embora as outras cidades grandes da Espanha
representem bem as províncias onde ficam, sendo andaluzas, catalãs,
bascas, aragonesas ou de outra forma provincianas, é em Madri que você
compreende a essência da Espanha. A essência, quando é, de fato, a
essência, pode estar numa simples garrafa de vidro, e você não precisa de
rótulos extravagantes, e não precisa também de nenhuma roupa típica;
não importa o tipo de construção que eles ergam, embora a construção
em si possa parecer um prédio de Buenos Aires, quando você olha para ela
contra aquele céu, você sabe que é Madri. Mesmo que ela tivesse apenas o
Prado, valeria a pena passar um mês nela a cada primavera, se você tiver
dinheiro para passar um mês em qualquer capital europeia. Mas quando se
tem o Prado e a temporada de touradas ao mesmo tempo, com El Escorial
a menos de duas horas ao norte e Toledo ao sul, uma boa estrada para
Ávila e uma boa estrada para Segóvia, que fica bem perto de La Granja,
você se sente muito mal, mesmo deixando de lado todas as questões sobre
imortalidade, de saber que você vai morrer e nunca mais ver Madri.
O Prado é muito característico de Madri. Por fora, ele é tão pitoresco
quanto uma escola americana de ensino médio. Os quadros são
organizados de maneira muito simples e acessível, são muito bem
iluminados e não há nenhuma intenção, a não ser pelas meninas de
Velázquez, de teatralizar ou destacar as obras-primas, de modo que o
turista usando os guias azul ou vermelho para saber quais são os quadros
mais famosos pode ficar meio decepcionado. No ar seco das montanhas, as
cores continuam maravilhosas, e os quadros ficam pendurados de maneira
tão simples e acessível que os turistas se sentem ludibriados. Vi como eles
ficam confusos. Esses quadros não devem ser importantes, as cores estão
muito vívidas e eles estão muito acessíveis. Esses quadros estão
pendurados como se estivessem numa galeria de arte moderna, onde eles
ficam expostos de um jeito que destaca suas qualidades e estimula as
vendas. Não faz sentido, o turista pensa. Deve ser um truque. Eles pagam
para entrar em galerias italianas onde não encontram nenhum quadro que
vale a pena ou, quando encontram, não conseguem enxergar o quadro
muito bem. Só assim eles acham que estão vendo grandes obras de arte.
Os quadros devem ter molduras enormes e precisam de tecido vermelho
ou de iluminação ruim para atestar sua importância. É como se, depois de
descobrir algumas coisas só de ler literatura pornográfica, o turista
quisesse ser apresentado a uma mulher atraente sem roupa e sem
adereços, sem nada para cobrir seu corpo e que não falasse nada, e que
apenas estivesse deitada na mais simples das camas. Ele talvez quisesse um
livro para ajudá-lo ou talvez precisasse de dicas e sugestões. Isso deve
explicar o motivo de haver tantos livros sobre a Espanha. Para cada pessoa
que gosta da Espanha, há uma dúzia de outras que preferem livros sobre a
Espanha. A França é mais popular do que os livros sobre a França.
Em geral, os maiores livros sobre a Espanha são escritos por alemães que
fazem uma visita intensiva e nunca mais voltam. Devo admitir que, caso
você precise escrever livros sobre a Espanha, talvez seja um bom método
fazer isso o mais rápido possível depois de uma primeira visita, pois várias
visitas podem só confundir as primeiras impressões e atrapalhar na hora
de tirar conclusões. Além disso, os livros feitos de uma visita mostram
muito mais certeza sobre tudo e certamente vão ser mais populares. Livros
como os de Richard Ford nunca tiveram o alcance de obras como Espanha
Virgem e seu misticismo de araque. Certa vez, o autor desse livro publicou
um texto numa revista literária que já não existe mais, chamada S4N,
explicando seu método de escrita. Qualquer historiador das letras que
queira explicar certos fenômenos da nossa literatura pode procurar nos
arquivos dessa revista. Se minha cópia não estivesse em Paris, eu poderia
citar o trecho na íntegra, mas a essência do que ele disse é que deitava na
cama nu e Deus ditava coisas para ele escrever, que ele “tinha contato com
tudo que há de mais profundo e inacessível”. Ele estava, graças ao contato
com Deus, “em toda parte e em todo momento”. Os itálicos são dele ou talvez
sejam de Deus. O texto não especificava. Deus ditou e ele escreveu. O
resultado foi esse inevitável misticismo de um homem que escreve tão mal
que parece incapaz de formular uma frase clara, porque prefere complicar
o texto com qualquer tipo de jargão pseudocientífico que esteja na moda.
Deus ditou para ele algumas coisas incríveis sobre a Espanha, durante a
curta temporada que o homem passou se preparando para escrever sobre a
alma do país, mas é tudo nonsense. A coisa toda, fazendo uma contribuição
tardia para o campo da pseudociência, é o que chamo de escrita eréctil.
Todos sabem, ou não, você é quem sabe, que, devido a uma possível
dissimulação, árvores, por exemplo, têm outra aparência para um homem
que esteja nesse estado formidável do que para um que não esteja. Todos
os objetos têm outra aparência. Eles são um pouco maiores, mais
misteriosos e vagamente distorcidos. Faça o teste. Agora, nos Estados
Unidos, surgiu ou tinha surgido uma escola de escritores (essa é uma
dedução do velho dr. Hemingstein, o grande psiquiatra) que,
aparentemente, usava essa dissimulação para dar uma aura mística a todos
os objetos, distorcendo a visão por meio da intumescência não aliviada.
Parece que essa escola está deixando de existir, ou já deixou de existir, e foi
um experimento voluntário interessante enquanto durou, e repleto de
imagens fálicas desenhadas no estilo de cartões sentimentais, mas que teria
significado mais se a visão desses escritores tivesse sido um pouco mais
interessante e elaborada em vez de ter sido, digamos, tão dissimulada.
Fico pensando como seria o livro Espanha Virgem se ele tivesse sido
escrito depois de uma boa dose daquele remédio supremo que faz um
homem enxergar as coisas com clareza. Talvez ele tenha sido. Talvez nós,
colegas de pseudociência, estejamos errados. Mas para aqueles analíticos
olhos vienenses que tudo observam, coroados pelas sobrancelhas
desgrenhadas do dr. Hemingstein, um investigador excepcional, todos os
sinais mostram que, se o cérebro tivesse sido suficientemente iluminado
por algumas doses do remédio supremo, o livro não existiria.
Mais uma coisa. Se um homem escreve de maneira clara, qualquer um
percebe se ele for um farsante. Se ele mistifica para evitar uma afirmação
direta, o que é muito diferente de quebrar as chamadas regras de sintaxe
ou de gramática para gerar um efeito que não pode ser obtido de outra
forma, fica mais difícil descobrir a farsa e outros escritores afligidos pelas
mesmas deficiências vão elogiar o colega em nome de interesses próprios.
O verdadeiro misticismo não deve ser confundido com a incompetência
para escrever, que tem a ver com mistificar aquilo que não é mistério
nenhum e é na verdade apenas a necessidade de enganar para encobrir a
falta de conhecimento ou a incapacidade de afirmar algo com clareza.
Misticismo tem a ver com mistério, e existem muitos mistérios por aí, mas
a incompetência não é um deles; assim como não é mistério o jornalismo
empolado transformado em literatura pela atribuição de características
épicas que são falsas. E uma última coisa: todos os escritores ruins amam
uma história épica.
6

Se for a uma corrida em Madri primeiro, você pode descer até a arena e
dar uma volta antes da luta.2 Os portões dos currais e do patio de caballos
ficam abertos, e no pátio você vê uma linha de cavalos próximo do muro e
os picadores montados nos cavalos que usaram para chegar até a arena.
Esses cavalos foram levados por figuras simiescas de blusa vermelha que
são os funcionários da arena até as hospedarias da cidade onde ficam os
picadores, de modo que o picador, de camisa branca, gravata preta com
grandes laçadas e pontas caídas, jaqueta de brocado, faixa larga, chapéu de
copa arredondada com o pompom na lateral e calças de couro grossas que
cobrem a armadura de aço que protege a perna direita, possa montar e
cavalgar pelas ruas em meio ao tráfego da carretera de Aragon, até chegar
à arena; o funcionário cavalga às vezes no mesmo cavalo sentado atrás da
sela, às vezes em outro cavalo que ele levou junto; esses poucos cavaleiros
em meio à profusão de carruagens, carroças, táxis e automóveis servem
para fazer propaganda das touradas, cansar os cavalos que estão montando
e poupar o matador de ter que fazer espaço para o picador em sua
carruagem ou em seu automóvel. A melhor maneira de ir até a arena é
usando o ônibus puxado por cavalos que sai da Puerta del Sol. Você pode
sentar na parte de cima e ver o movimento das pessoas a caminho da arena
e, se prestar atenção na multidão de veículos, vai ver passar um automóvel
cheio de toureiros em trajes de tourada. Você só vai conseguir ver as
cabeças com os chapéus pretos, os brocados dourados ou prateados
cobrindo os ombros e os rostos. Se, num carro, há vários homens de
jaqueta prateada ou escura e apenas um com jaqueta dourada e, enquanto
os outros talvez estejam rindo, fumando e fazendo piada, o de jaqueta
dourada estiver impassível, ele é o matador e os outros são sua cuadrilla. O
percurso até a arena é a pior parte do dia para o matador. Pela manhã, a
luta está longe de acontecer. Depois do almoço, ela ainda está longe e, até
o automóvel ou a carruagem aparecer para pegar o toureiro, existe uma
preocupação com a roupa. Mas, uma vez no carro ou na carruagem, a luta
está muito próxima e não há nada que ele possa fazer ao longo desse
trajeto amontoado até a arena. Ele é amontoado porque a parte de cima
da jaqueta de um toureiro é grossa e pesada nos ombros e o matador e
seus banderilleros se amontoam uns com os outros, agora que estão no
automóvel, quando estão usando os trajes de tourada. Alguns riem e
acenam para os amigos durante o percurso, mas quase todos parecem
distantes e indiferentes. O matador, por lidar com a morte todos os dias,
fica muito indiferente, e a medida de sua indiferença é com certeza a
medida de sua imaginação e sempre nos dias de tourada e na parte final da
temporada, existe algo de indiferente no íntimo desses homens que se
torna quase aparente. Esse algo tem a ver com a morte e não se pode
enfrentá-la todos os dias sabendo que existe o risco de ela levar a melhor e
não carregar marcas evidentes disso. Todos que vivem essa situação
carregam marcas. Os banderilleros e os picadores são diferentes. O perigo
que enfrentam é relativo. Eles obedecem a ordens; têm uma
responsabilidade menor; e não matam. Eles não sofrem muita pressão
antes de uma luta. Porém, se você quiser ver o que é apreensão, veja o que
acontece com um picador despreocupado e feliz depois que ele visita os
currais, ou vê a distribuição dos touros, e se dá conta do quão grandes e
poderosos são os touros. Se eu soubesse desenhar, faria uma ilustração
mostrando uma mesa no bar durante a feria com os banderilleros sentados
ao redor dela antes do almoço lendo os jornais, um engraxate trabalhando,
um garçom servindo mesas e dois picadores entrando em cena, um deles é
um sujeito grande com a pele morena e sobrancelhas pretas que está
sempre animado e fazendo piada, o outro é um sujeito magro de cabelo
grisalho, nariz adunco, um homenzinho elegante, ambos são a
personificação do desânimo e da depressão.
“Qué tal?”, pergunta um dos banderilleros.
“Son grandes”, diz o picador.
“Grandes?”
“Muy grandes!”
Não precisa dizer mais nada. Os banderilleros sabem exatamente o que o
picador têm em mente. Talvez o matador seja capaz de assassinar o touro
grande, se ele engolir o orgulho e ignorar a honra, como se fosse um
touro pequeno. As veias do pescoço ficam no mesmo lugar e são igual-
mente fáceis de alcançar com a ponta da espada. O fato de o touro ser
grande não aumenta as chances de um banderillero ser atingido por ele.
Mas não há nada que o picador possa fazer para se proteger. Depois de
uma certa idade e com um certo peso, quando um touro acerta o cavalo
significa que o cavalo vai sair do chão e depois cair com o picador por
baixo, talvez o picador seja arremessado contra a barrera e fique preso
debaixo do cavalo, ou se ele corajosamente se inclinar para a frente,
colocar seu peso na vara e tentar atingir o touro durante o choque,
significa que ele pode cair entre o touro e o cavalo, e quando o cavalo se
afastar, ele tem de ficar deitado na areia, com o touro procurando por ele,
até que o matador possa atrair o touro para longe dali. Se os touros são
grandes de verdade, cada vez que eles acertarem o cavalo, o picador vai
cair, e ele sabe disso, e a apreensão que sente quando os touros “são
grandes” é maior até do que a do matador, a não ser que este seja um
covarde. Há sempre algo que um matador pode fazer se ele mantiver a
calma. Ele pode suar frio, mas não importa o quão difícil seja um touro, há
sempre uma maneira de lutar contra ele. O picador não tem nenhum
recurso. O que ele pode fazer é recusar a tradicional propina do
fornecedor de cavalos para ficar com uma montaria menor do que o
recomendado, insistir em ter um cavalo bom e forte, alto o suficiente para
que possa olhar o touro de cima, tentar espetar o animal de primeira e
torcer pelo melhor.
Quando você vê os matadores na entrada do patio de caballos, o pior da
apreensão já passou. A multidão ao redor deles acabou com aquela solidão
do percurso ao lado de pessoas que o conhecem bem demais, e a multidão
devolve a eles a firmeza moral. Quase todos os toureiros são corajosos.
Poucos não são. Isso parece improvável, pois nenhum homem sem
coragem seria capaz de entrar na arena com um touro, mas, em alguns
casos específicos, a habilidade natural e o treinamento desde cedo, feito
com novilhos que não chegam a ser perigosos, transformaram homens
sem nenhuma coragem natural em toureiros. Existem só uns três que são
assim. Vou falar sobre cada um deles posteriormente, e eles estão entre os
fenômenos mais interessantes da arena, mas o toureiro tradicional é um
homem muito corajoso, e o menor grau de coragem tem a ver com a habi-­
lidade de ignorar temporariamente possíveis consequências. Um grau
maior de coragem, que acompanha a euforia, é a habilidade de não dar a
mínima para possíveis consequências; não apenas ignorá-las, mas desprezá-
las. Quase todos os toureiros são corajosos e, no entanto, quase todos os
toureiros sentem medo em algum momento antes de a luta começar.
A multidão começa a dispersar no patio de caballos, os toureiros fazem
fila, os três matadores lado a lado, os banderilleros e picadores atrás deles.
A multidão esvazia a arena. Você vai para o seu lugar e, se estiver na
barrera, compra uma almofada do vendedor que está logo abaixo, senta
nela, e com os joelhos encostados na madeira, olha para a entrada do pátio
de onde você acabou de sair, no outro lado da arena, e vê os três
matadores, o sol brilhando no ouro dos trajes, de pé na entrada, os outros
toureiros a pé ou a cavalo, formando um grupo atrás deles. Então você
percebe as pessoas ao seu redor olhando para cima deles, na direção de um
camarote. É o presidente. Ele se senta e acena com um lenço. Se ele for
pontual, a multidão aplaude; se ele chegar atrasado, há uma tempestade de
assobios e vaias. Uma trombeta soa no pátio e dois homens a cavalo
atravessam a arena, um costume da época de Felipe II.
Chamados de aguacils, ou meirinhos a cavalo, são eles que transmitem
todas as ordens do presidente, que representa a autoridade constituinte.
Eles galopam pela arena, tiram o chapéu numa saudação, fazem uma
reverência para o presidente e, devidamente autorizados, retornam para os
seus lugares. A música começa e da entrada do pátio dos cavalos vem a
procissão de toureiros; é o paseo ou desfile. Os três matadores, se houver
seis touros, ou quatro, se houver oito, caminham lado a lado, cada um
com a capa enrolada no braço esquerdo e o braço direito livre; eles andam
a passos largos e relaxados, os braços soltos e os queixos erguidos, os olhos
fixos no camarote do presidente. Em fila atrás de cada matador, vêm a
cuadrilla de banderilleros e picadores em ordem de senioridade. Assim eles
entram na arena formando uma coluna de três ou quatro. Quando os
matadores chegam diante do camarote do presidente, eles fazem uma
reverência e tiram o chapéu preto ou montera — a reverência é breve ou
demorada, dependendo do tempo de trabalho e do grau de cinismo de
cada toureiro. No começo de carreira, todos são tão apegados aos rituais
quanto um coroinha numa missa solene e alguns nunca perdem isso.
Outros são tão cínicos como donos de boates. Os devotos morrem com
mais frequência. Os cínicos são companhias melhores. Mas o melhor de
todos é o cínico quando ele ainda é devoto; ou depois; tendo sido devoto e
se tornado cínico, eles se tornam devotos mais uma vez por meio do
cinismo. Juan Belmonte é um exemplo desse estágio derradeiro.
Depois da reverência ao presidente, eles colocam o chapéu de novo,
arrumando-o com cuidado, e vão até a barrera. A procissão se desfaz à
medida que os matadores tiram a capa decorada, dourada e pesada de
brocado que usaram no desfile e a entregam para amigos ou admiradores
para que sejam penduradas no muro que protege as primeiras fileiras, ou,
às vezes, eles fazem o responsável pelas espadas levar a capa para alguém,
de praxe, uma cantora, uma dançarina, um médico charlatão, um aviador,
um ator de cinema, um político, ou alguém famoso que tenha aparecido
no jornal do dia e que por acaso esteja num camarote. Matadores muito
jovens ou muito cínicos mandam a capa para empresários do ramo de
touradas que vieram de outras cidades para Madri, ou para críticos de
touradas. Os melhores mandam a capa para os amigos. É melhor não ser
aquele que recebe a capa. É uma gentileza se o toureiro tem um bom dia e
corre tudo bem na arena, mas se for um dia ruim, é muita
responsabilidade. Ter uma ligação óbvia com um toureiro que, por causa
de azar, de um touro ruim, de um acidente que lhe roube a confiança, ou
de nervosismo por estar de volta à arena em más condições físicas depois
de levar uma chifrada, envergonha a si mesmo e deixa o público tão
indignado que talvez tenha de ser protegido pela polícia ao sair da arena de
cabeça baixa sob um bombardeio de almofadas de couro, acaba gerando
um constrangimento na hora em que o homem das espadas vem buscar a
capa desviando das almofadas. Ou talvez, antecipando o desastre, o
homem das espadas venha buscar a capa antes do último touro, de modo
que você pode ver a capa, recebida de modo tão honroso, ser colocada nos
ombros do toureiro humilhado e levada rapidamente para fora da arena,
as almofadas voando, alguns dos espectadores mais violentos sendo
levados pela polícia porque tentaram perseguir o matador. Os
banderilleros também entregam a capa para amigos exibirem na barrera,
mas essas capas, que parecem majestosas apenas de um olhar a distância,
quase sempre são finas, desgastadas pelo uso e feitas do mesmo material
despojado usado no forro de casacos no mundo inteiro, e, como os
banderilleros não levam muito a sério a outorga desse favor, a honra é
apenas simbólica. Enquanto as capas do desfile são repartidas e devolvidas,
as capas da luta são retiradas da barrera, e os funcionários da arena alisam
a areia que ficou marcada pela procissão dos picadores a cavalo, pelas
mulas arreadas que retiram os touros e cavalos mortos da arena e pelos
cascos dos cavalos dos aguacils. Nesse ínterim, os dois matadores (infere-se
que se trata de uma tourada com seis touros) que não estão na vez se
retiram com suas cuadrillas e ficam no callejon ou corredor que fica entre
as cercas vermelhas das barreras e a primeira fileira de lugares. O matador
cujo touro está prestes a entrar na arena escolhe uma das capas pesadas de
percal. Elas costumam ser rosa por fora e amarelas por dentro, com uma
gola larga e reforçada, e ampla e grande o suficiente de modo que, se o
matador colocar a capa sobre os ombros, a barra fica na altura dos joelhos
ou um pouco abaixo e ele consegue envolver o corpo todo com ela. O
matador da vez se coloca atrás de um dos pequenos abrigos de madeira
que ficam próximos da barrera, largos o suficiente para proteger dois
homens e estreitos o suficiente para escapar do touro, o aguacil cavalga até
a área onde fica o camarote do presidente para pedir a chave da porta
vermelha do toril onde o touro aguarda. O presidente joga a chave e o
aguacil tenta pegá-la com o
chapéu. Se ele consegue, o público aplaude. Se não, o público assobia. Mas
nada disso é sério. Se a chave cai no chão, um funcionário da arena a pega
e entrega na mão do aguacil, que atravessa a arena a cavalo e passa a chave
para o homem responsável por abrir a porta do toril, depois volta,
cumprimenta o presidente e sai da arena, enquanto os funcionários alisam
as marcas deixadas pelo cavalo na areia. Ao fim desse processo, as únicas
pessoas na arena são o matador atrás do pequeno abrigo ou burladero e
dois banderilleros em extremos opostos da arena, colados na cerca. O
silêncio é total, e todo mundo fica de olho na porta vermelha de madeira.
O presidente faz um sinal com o lenço, soa a trombeta e Gabriel, um
homem velho e grande, de cabelo branco e muito sério, usando o que
parece ser uma versão cômica do traje de toureiro (comprada para ele com
a ajuda do público), destranca a porta do toril e faz força para abri-la,
correndo de costas até revelar o corredor baixo que se vê bem com a porta
escancarada.
2. Por determinação do governo, você não pode mais passear na arena. Mas ainda é possível visitar
o patio de caballos e outras dependências.
7

Neste ponto, é necessário que você veja uma tourada. Se eu fosse


descrever uma, não seria aquela que você veria, pois os toureiros e os
touros mudam, e se eu fosse explicar as variações possíveis ao longo do
texto, o capítulo seria interminável. Existem dois tipos de guias: os que
devem ser lidos antes e os que devem ser lidos depois, e aqueles que devem
ser lidos depois do fato estão fadados a serem, em alguma medida,
incompreensíveis antes dele; se o fato tiver bastante importância por si só.
Isso vale para qualquer livro sobre esquiar nas montanhas, relações
sexuais, caçar pássaros ou qualquer outra coisa que seja impossível de
transpor para o papel, ou ao menos impossível de abarcar por completo no
papel, pois se trata sempre de uma experiência individual, e a certa altura
do guia você precisa dizer não continue lendo a menos que tenha
esquiado, tido uma relação sexual, caçado codorna ou assistido a uma
tourada para que saiba do que estamos falando. Então a partir de agora
vamos supor que você tenha ido a uma tourada.
Você foi a uma tourada? Que tal?
Achei revoltante. Foi insuportável.
Sendo assim, você vai ganhar uma dispensa honrosa, mas sem
reembolso.
O que você achou? Achei péssimo. Como assim, péssimo? Péssimo. Foi
péssimo, terrível, horrível. Certo. Você também será dispensado com
honras.
Qual foi a sua opinião? Quase morri de tédio. Certo. Suma da minha
frente.
Ninguém gostou da tourada? Ninguém gostou nem um pouquinho da
tourada? Nenhuma resposta. O senhor gostou? Não. A senhora gostou?
Definitivamente, não.
Uma senhorinha no fundo da sala: Do que ele está falando? O que aquele
jovem está perguntando?
Alguém próximo dela: Ele está perguntando se alguém gostou da tourada.
Senhorinha: Ah, achei que ele estava perguntando se alguém queria lutar
numa tourada.
A senhora gostou da tourada?
Senhorinha: Gostei demais.
Do que a senhora gostou?
Senhorinha: Gostei de ver os touros atacarem os cavalos.
Por que a senhora gostou disso?
Senhorinha: Acho que eu senti um pouco de aconchego.
Pois fique sabendo que a senhora é um mistério. E o pessoal aqui não é
muito simpático. Vamos até o Café Fornos porque lá a gente pode
conversar mais à vontade.
Senhorinha: Pode ser em qualquer lugar que o senhor quiser, desde que
seja limpo e agradável.
A senhora pode ter certeza de que não existe um lugar mais agradável do
que esse em toda a Península.
Senhorinha: Vamos encontrar algum toureiro nesse lugar?
Minha senhora, toureiro é o que não falta nesse lugar.
Senhorinha: Então vamos lá.
Fornos é um café frequentado apenas por pessoas que têm alguma
relação com as touradas e por prostitutas. O lugar é enfumaçado, com
garçons apressados de um lado para o outro, tomado pelo barulho de
taças, e você tem acesso àquela privacidade barulhenta de um café
movimentado. Podemos falar sobre a tourada, se for de seu desejo, e a
senhora pode ficar olhando os toureiros. Existem toureiros para todos os
gostos em todas as mesas, e todas as outras pessoas do café ganham a vida
com touradas, de um jeito ou de outro. É raro um tubarão com mais do
que quatro rêmoras, ou peixes com ventosa, que pegam carona com ele,
mas um toureiro, quando faz dinheiro, tem dezenas. A senhorinha não faz
questão de falar sobre a tourada. Ela gostou; agora, ela está olhando para
os toureiros e me diz que nunca conversa sobre as coisas de que gosta,
mesmo com as amigas mais íntimas. Acabamos falando sobre a tourada
porque havia algumas coisas que você ainda não tinha entendido.
Quando o touro entrou na arena, a senhora percebeu que um dos
banderilleros passou correndo pelo touro arrastando uma capa e que o
touro foi atrás da capa tentando alcançá-la com um dos chifres? Eles
sempre passam correndo desse jeito, no começo da luta, para descobrir
qual é o chifre que o touro prefere. O matador, atrás do abrigo, observa o
touro perseguir a capa e nota se ele acompanha o zigue-zague da capa
tanto com o chifre direito quanto com o chifre esquerdo, para conferir se o
touro enxerga bem dos dois olhos e o chifre que ele melhor usa. O
matador também percebe se o touro corre em linha reta ou se tem a
tendência de cortar caminho e mirar o homem enquanto ataca. O homem
que corre na direção do touro segurando a capa com as duas mãos para na
frente dele e espera que o touro ataque e, com os braços, move a capa bem
devagar diante dos chifres do touro, faz os chifres passarem bem perto do
corpo com um gesto lento da capa, parece manter o animal concentrado
nas pregas da capa, fazendo o touro passar perto dele toda vez que o
animal volta a atacar; repetindo isso mais quatro vezes e depois
encerrando com um rodopio da capa que deixa o homem de costas para o
touro e, ao interromper o ataque do touro bruscamente, o animal fica
parado no lugar; esse homem era o matador, e os passes lentos que ele fez
se chamam veronicas, e o meio passe no fim, media-veronica. Esses passes
foram pensados para que o matador pudesse mostrar suas habilidades e
sua arte com a capa, seu domínio do touro e também para fazer o touro
parar num determinado lugar antes da entrada dos cavalos. Ele se chama
veronica por causa da Santa Verônica, que limpou o rosto do Nosso
Senhor com um pedaço de pano e é chamado assim porque a santa sempre
é representada segurando o pano por duas pontas na mesma posição que o
toureiro segura a capa no começo da veronica. A media-veronica que faz o
touro parar num determinado lugar é um recorte. Um recorte designa
qualquer passe com a capa que, por obrigar o touro a fazer uma curva sem
que tenha espaço para isso, leva o animal a parar bruscamente, ou controla
o ímpeto do animal por interromper a sua trajetória fazendo-o dobrar o
próprio corpo.
Os banderilleros nunca devem segurar a capa com as duas mãos quando
o touro entra na arena. Se eles usam apenas uma das mãos, a capa vai
arrastar, e, ao virá-la, no fim do movimento, o touro vai se virar devagar e
não de maneira brusca e repentina. E isso acontece porque a virada da
capa longa dá ao touro uma indicação do movimento que ele deve fazer e
ele consegue um objeto para seguir. Segurando a capa com as duas mãos,
o banderillero pode arrancá-la da frente do touro de repente e o animal
estaca, faz uma curva acentuada e torce a coluna, perde o embalo e o
equilíbrio, não por ter sido esgotado, mas por ter sido desequilibrado, e
fica assim até o fim da luta. Somente o matador pode segurar a capa com
as duas mãos na parte inicial da luta. A rigor, os banderilleros, também
chamados de peones, nunca devem segurar a capa com as duas mãos, a
não ser quando precisam provocar um touro que se recusa a sair do lugar.
Mas do modo como a tourada evoluiu, ou decaiu, com a ênfase dada mais
na execução dos vários passes e não no efeito que eles têm, agora os
banderilleros fazem a maior parte do trabalho que antes era feito pelo
matador de preparar o touro para o sacrifício; os matadores mais
ignorantes ou menos qualificados, cuja única habilidade é o talento
artístico ou estético, quando o touro apresenta qualquer dificuldade, por
menor que seja, eles deixam que o animal seja dominado, desgastado e
preparado pelos movimentos hábeis e devastadores de um banderillero
experiente, que faz tudo menos matar o touro.
Parece besteira falar de quase matar um touro bravo usando uma capa. É
claro que você não consegue matar o touro, mas consegue acabar com a
coluna dele, torcer as pernas e lesar o animal e, ao abusar de sua coragem,
forçando o animal a atacar repetidas vezes, sempre fazendo recortes
ferozes, você acaba cansando, lesando e despojando o touro do seu ímpeto
e de uma grande parte de suas energias. Falam de matar uma truta com
uma vara de pesca. É o esforço feito pela truta que acaba com ela. Um
bagre se aproxima da lateral do barco com a força e a disposição intactas.
Com frequência, um tarpão, uma truta ou um salmão morrem lutando
contra uma vara de pesca se você os mantiver fisgados por tempo
suficiente.
É por isso que os banderilleros foram proibidos de manusear a capa com
as duas mãos. Era o matador que tinha de fazer toda a preparação
necessária antes de matar o touro. Os picadores servem para tornar o
touro mais lento, para mudar seu ritmo, para fazê-lo baixar a cabeça.
Antes, os banderilleros deviam correr até o touro, fincar rápido as
banderillas e com cuidado para que elas não caíssem, e não fazer nada que
pudesse afetar a energia do touro, de modo que o animal chegasse intacto
para o matador, que deveria, com a muleta, corrigir qualquer coisa errada
com as banderillas, deixar o animal em posição para o sacrifício e matá-lo
de frente, fazendo-o baixar a cabeça com a sarja vermelha da muleta para
matá-lo, fincando a espada bem no ângulo formado pelas duas escápulas.
À medida que a corrida evoluiu e decaiu, a ênfase dada à maneira como
o touro é morto diminuiu, embora antes fosse o propósito da coisa toda, e
aumentou a importância do trabalho com a capa, as banderillas e a
muleta. A capa, as banderillas e a muleta se tornaram um fim em si
mesmas em vez de um meio para um fim, e a tourada ganhou com isso,
mas também perdeu.
Nos velhos tempos, os touros eram maiores do que são hoje; mais
violentos, imprevisíveis, pesados e velhos. Eles não eram criados num
tamanho menor só para agradar os toureiros e eles lutavam com quatro
anos e meio ou cinco anos, e não com três anos e meio ou quatro anos e
meio. Matadores passavam por um aprendizado como banderilleros e
como novilleros que durava de seis a doze anos antes de se tornarem
oficialmente um matador. Eram homens experientes, que conheciam
muito bem os touros, e que enfrentavam touros que estavam no ápice das
condições físicas e da força, que sabiam como usar os chifres e que tinham
uma noção das dificuldades e do perigo. O desfecho de uma tourada era o
golpe final da espada, o encontro entre o homem e o animal, o que os
espanhóis chamam de hora da verdade, e todos os movimentos ao longo
da luta serviam para preparar o touro para esse golpe final. Com touros
assim não era preciso fabricar emoção fazendo o animal passar o mais
perto possível do homem, deliberadamente. As capas eram usadas para
fazer o touro correr e para proteger os picadores, e os passes que eram
feitos com elas, pelos nossos padrões, eram emocionantes por causa do
tamanho, da força, do peso e da agressividade do animal; e pelo perigo que
o matador corria ao fazer os passes e não pela forma como fazia ou pela
lentidão com que executava os movimentos. Era emocionante ver o
homem executar passes com
um touro como esse, e que um homem fosse capaz de estar na arena com
um animal desses e fosse capaz de dominar esse animal era algo
emocionante por si só, não era nada deliberado como é agora, quando
tentam passar as pontas dos chifres o mais matematicamente próximo do
corpo quanto possível sem mexer os pés. É a decadência do touro
moderno que tornou possível a tourada moderna. É uma arte decadente
sob qualquer ponto de vista e, como a maioria das coisas decadentes, ela
chega ao ápice quando atinge o ponto mais baixo, que é o momento
presente.
É impossível, dia após dia, lutar contra touros que são touros de verdade,
enormes, fortes, ferozes e rápidos, que sabem usar os chifres e que já
sejam crescidos, com a técnica que foi desenvolvida, a começar por Juan
Belmonte, nas touradas modernas. É muito perigoso. Belmonte inventou a
técnica. Ele era um gênio, que sabia como quebrar as regras das touradas e
sabia torear, essa é a palavra para descrever todas as ações de um homem
com um touro, uma vez que todo mundo sabia ser impossível torear.
Assim que Belmonte conseguiu a proeza, todos os toureiros tinham de
conseguir, ou tentar, pois não há caminho de volta no que diz respeito a
sensações. Joselito, que era forte (Belmonte era fraco), saudável (Belmonte
era frágil), que tinha um corpo de atleta, uma graça de cigano e um
conhecimento intuitivo sobre touros que nunca foi superado por nenhum
outro toureiro; Joselito, para quem tudo numa tourada era fácil, que vivia
para a tourada e parecia ter sido feito e treinado para se tornar um grande
toureiro, teve de aprender o método de trabalho de Belmonte. Joselito, o
herdeiro de todos os grandes toureiros, talvez o maior toureiro que já
existiu, teve de aprender a torear como Belmonte. O que Belmonte fazia
tinha a ver com sua baixa estatura, sua falta de força e suas pernas frágeis.
Ele não aceitava nenhuma regra sem antes tentar quebrá-la, e ele era um
gênio e um grande artista. A forma como Belmonte trabalhava não era
nada herdado nem desenvolvido; era uma revolução. Joselito aprendeu
como fazer e, ao longo dos anos de competição, quando ambos faziam
cerca de cem corridas por ano, ele dizia: “Dizem que ele, Belmonte, fica
mais perto do touro. Da forma como ele faz, é como se ficasse. Mas isso
não é verdade. Eu trabalho mais perto. Mas de uma forma mais natural,
então não parece tão próximo.”
De qualquer forma, o estilo decadente, impossível, quase depravado de
Belmonte encontrou terreno fértil na genialidade intuitiva e saudável de
Joselito e, na disputa com Juan Belmonte, as touradas tiveram uma época
de ouro por sete anos, embora estivessem no processo de ser destruídas.
Eles passaram a criar touros menores, com chifres menores; eles
passaram a criar touros que fossem mais mansos porque Joselito e
Belmonte conseguiam desempenhos melhores com esses touros menores,
mais fáceis. Eles se davam bem com qualquer touro que entrasse na arena;
eles não eram ruins com nenhum deles, mas, com os touros menores e
mais fáceis, era certeza de que conseguiriam fazer as coisas maravilhosas
que o público queria ver. Os touros maiores eram fáceis para Joselito e
difíceis para Belmonte. Todos os touros eram fáceis para Joselito e ele
tinha de criar as próprias dificuldades. A disputa entre os dois terminou
quando Joselito foi morto na arena no dia 16 de maio de 1920. Belmonte
continuou por mais um ano e depois se aposentou, e as touradas ficaram
com esse novo método decadente, uma técnica quase impossível de ser
aplicada, os touros menores e, no que diz respeito aos toureiros, restaram
apenas os ruins, os fortes e resistentes que não chegaram a aprender o
novo método não eram mais queridos, e uma porção de toureiros novos,
decadentes, fracos e tristes, que dominavam o método mas não tinham
nenhum conhecimento sobre touros, nenhuma educação, nada da
coragem e da genialidade de Joselito, e nada do belo mistério doentio de
Belmonte.
Senhorinha: Não achei nada decadente ou ruim no espetáculo que vimos
hoje.
Eu também não, minha senhora, porque os matadores eram Nicanor
Villalta, o corajoso poste telefônico de Aragon; Luis Fuentes Bejarano, um
trabalhador digno e nobre, o orgulho do sindicato dos trabalhadores; e
Diego Mazquiarán, conhecido como Fortuna, o corajoso açougueiro
de Bilbao.
Senhorinha: Todos eles me parecem sujeitos dignos e viris. O que o
senhor quer dizer com decadência?
Minha senhora, eles são viris, embora a voz de Villalta seja um
pouquinho aguda às vezes, e a decadência de que falo não se aplica a eles,
mas tem a ver com a decadência da arte como um todo causada pela
valorização de certos aspectos.
Senhorinha: O senhor é um homem difícil de entender.
Minha senhora, vou explicar isso depois, mas de fato decadência é uma
palavra difícil, porque se tornou um termo muito usado por críticos ao
falar sobre qualquer coisa que não conseguem entender, ou que seja
diferente dos conceitos morais vigentes.
Senhorinha: Para mim, a palavra quer dizer que existe alguma coisa
podre, como falar que os tribunais são podres.
Minha senhora, as nossas palavras ficaram um pouco gastas porque são
usadas de qualquer jeito, mas o significado inerente a elas continua
valendo.
Senhorinha: Faça-me o favor, essa discussão toda sobre palavras não me
interessa. O propósito aqui não é falar sobre os touros e sobre aqueles que
lutam contra eles?
Se a senhora quiser, mas para o escritor é só começar a falar sobre
palavras e ele vai longe, e a senhora vai acabar desejando que ele fosse
mais habilidoso ao usá-las e menos prolixo ao falar sobre sua importância.
Senhorinha: Sendo assim, o senhor poderia parar com isso?
A senhora já ouviu falar do falecido Raymond Radiguet?
Senhorinha: Acho que não.
Ele foi um jovem escritor francês que sabia usar outras coisas além da
caneta, se é que a senhora me entende.
Senhorinha: Outras coisas?
É, podemos dizer que sim.
Senhorinha: Você quer dizer que ele…
Quando o falecido Radiguet era vivo, ele com frequência se cansava do
meio literário cheio de gente delicada, encantadora e magoada por onde
circulava Jean Cocteau, seu protetor, e passava as noites num hotel perto
dos Jardins de Luxemburgo com uma de duas irmãs que na época estava
trabalhando como modelo no bairro. Seu protetor ficava muito abalado e
criticava essa atitude como decadente e dizia, de maneira implacável, mas
também com um certo orgulho do falecido Radiguet, “Bebé est vicieuse — il
aime les femmes”. Para a senhora ver, precisamos ter cuidado ao usar o
termo decadência porque ele pode não significar a mesma coisa para todo
mundo.
Senhorinha: Ele me incomodou logo de cara.
Então voltemos a falar de touradas.
Senhorinha: Com prazer. Mas afinal, o que aconteceu com o falecido
Radiguet?
Ele contraiu febre tifoide depois de nadar no rio Sena e morreu.
Senhorinha: Coitado.
É, coitado mesmo.
8

Os anos depois da morte de Joselito e da aposentadoria de Belmonte


foram péssimos para as touradas. Eles foram tão dominantes na arte das
touradas que, sem esquecer que se trata de uma arte impermanente e por
isso inferior, eles foram como Velázquez e Goya, ou como Cervantes e
Lope de Vega na literatura, embora eu nunca tenha gostado de Lope, mas
ele tem a reputação necessária para essa comparação e, quando os dois
deixaram as touradas, foi como se, na literatura inglesa, Shakespeare
tivesse morrido de repente, e Marlowe, se aposentado; e o espaço deles,
tivesse sido ocupado por Ronald Firbank, que escrevia muito bem sobre os
temas que escrevia, mas era, vamos dizer, um estudioso. Manuel Granero,
de Valência, era o toureiro mais promissor para o público aficionado. Ele
era um dos três garotos que, com proteção e dinheiro garantidos, virou
um toureiro por meio da melhor instrução e dos melhores recursos
mecânicos; praticando com bezerros nas fazendas de touros nos arredores
de Salamanca. Granero não tinha sangue de toureiro correndo nas veias, e
seu núcleo familiar queria que ele virasse um violinista, mas ele tinha um
tio ambicioso e um talento natural para touradas, além de ser muito
corajoso, e ele era o melhor dos três. Os outros dois eram Manuel
Jiménez, conhecido como Chicuelo, e Juan Luis de la Rosa. Quando
crianças, eles eram como toureiros em miniatura muito bem treinados e
os três tinham um estilo belmontiano, uma execução bela em tudo o que
faziam e os três eram chamados de fenômeno. Granero era o melhor, o
mais saudável e o mais corajoso, e ele morreu em Madri no mês de maio
logo após a morte de Joselito.
Chicuelo era filho de um matador de mesmo nome que morrera anos
antes de tuberculose. Ele foi criado, treinado, lançado e administrado
como matador pelo tio, Zocato, que tinha sido um banderillero da velha
guarda, era um bom homem de negócios e bebia bastante. Chicuelo era
baixinho, gordo e nada saudável, não tinha queixo, sua pele tinha um
aspecto ruim, as mãos eram pequenas e os cílios eram tão grandes como
os de uma garota. Treinado em Sevilha e também em outros ranchos nos
arredores de Salamanca, ele era uma miniatura perfeita de toureiro e era,
de verdade, um toureiro tão autêntico como uma estátua de porcelana.
Depois da morte de Joselito e Granero, e da aposentadoria de Belmonte, a
tourada se agarrou no que tinha. A tourada tinha Juan Luis de la Rosa, que
se parecia com Chicuelo em tudo, só não tinha o mesmo tio nem a mesma
criação. Alguém que não era da família investiu o dinheiro necessário para
sua educação e ele se tornou mais um produto feito com perfeição. A
tourada tinha Marcial Lalanda, que conhecia bem os touros porque tinha
crescido no meio deles — era filho do supervisor do rancho de criação
mantido pelo duque de Veragua, e era considerado o sucessor de Joselito.
Tudo que ele tinha como legado era o conhecimento dos touros e um jeito
específico de andar enquanto indicava os touros para os banderilleros. Eu
o via bastante naquela época e ele era sempre um toureiro técnico,
indiferente e não era forte. Era como se ele não tivesse prazer nenhum
com a tourada, não tirava dela nenhuma alegria, e parecia ter um medo
muito controlado, mas que o deixava triste. Ele era um toureiro triste e
indiferente, embora tivesse muitas habilidades técnicas e fosse muito
inteligente, e para cada vez que tinha um bom desempenho na arena, ele
era medíocre e desinteressante em outras dez. Ele, Chicuelo e La Rosa
lutavam como se a tourada fosse um castigo, e não uma escolha. Acho que
nenhum deles conseguiu superar completamente a morte de Joselito e
Granero. Marcial estava na arena quando Granero foi morto e sofreu
acusações injustas de não ter se esforçado para tirar o touro de cima de
Granero a tempo. E se sentia muito amargurado com isso.
A tourada tinha também os irmãos Anllos, de Aragon, e os dois eram
chamados de Nacional. Um deles, o mais velho, Ricardo, de estatura
mediana e corpo largo, era um monumento de honestidade e coragem
que tinha azar e um estilo comum, mas clássico. O outro, Juan, chamado
de Nacional II, era alto, com uma boca fina e um olhar de soslaio. Ele era
desajeitado, anguloso, muito corajoso e tinha um estilo de lutar que era a
coisa mais feia do mundo.
Havia Victoriano Roger, o Valência II, filho de um banderillero. Nascido
em Madri e treinado pelo pai, ele também tinha um irmão mais velho que
não conseguiu ser matador. Um garoto da mesma safra de Chicuelo e
companhia, ele manuseava uma capa lindamente, era arrogante, briguento
e tão corajoso quanto o touro quando lutava em Madri, mas em qualquer
outro lugar ele ficava nervoso e achava que os desastres vividos nas
províncias não afetavam sua honra, desde que continuasse triunfando em
Madri. Essa ligação com Madri era marca de um toureiro que ganhava a
vida exercendo sua profissão, mas que nunca chegou a dominá-la.
Com Julián Sainz, o Saleri II, um toureiro muito completo e um
banderillero esplêndido que chegou a competir com Joselito numa
temporada, mas que tinha se tornado a personificação da cautela e da
segurança acima de tudo; Diego Mazquiarán, o Fortuna, era corajoso,
estúpido e um grande matador, mas das antigas; e Luis Freg, um mexicano
baixinho de pele marrom, com cabelo indiano e quase quarenta anos,
pesado, com pernas que pareciam carvalhos antigos por causa dos
músculos protuberantes e cheias de cicatrizes deixadas por touros que
puniram sua lentidão, sua falta de jeito e sua coragem banal com a espada;
com mais alguns veteranos e muitos outros fracassados, esses eram os
toureiros disponíveis naqueles primeiros anos depois que os dois grandes
saíram de cena.
Freg, Fortuna e o Nacional mais velho não agradavam o público porque
a nova forma de lutar tinha deixado seus estilos ultrapassados e não
existiam mais os touros grandes que, com um homem corajoso e
competente na arena, representavam tudo o que era necessário para uma
tourada. Chicuelo foi impecável até o dia em que foi atingido por um
touro. Desde então, virou um completo covarde sempre que o touro
impunha qualquer dificuldade e passou a ser bom umas duas vezes por
ano, demonstrando todo o seu repertório apenas quando encontrava um
touro sem más intenções que passava por ele sem se desviar, como se
estivesse percorrendo trilhos. Em meio à beleza das performances com
touros mecanicamente perfeitos pelos quais ele esperava o ano inteiro, e
ao ocasional trabalho bom, técnico e controlado com um touro difícil,
vieram algumas das exibições mais tristes de covardia e pouca-vergonha
que se podia ver. La Rosa foi chifrado uma vez e ficou assustado para
sempre, e logo saiu de circulação. Ele era muito talentoso como toureiro,
mas era ainda mais talentoso em se dar o devido respeito; ele ainda luta na
América do Sul e, por combinar seus dois talentos, leva uma vida boa.
Valência II começava todas as temporadas corajoso igual a um galo de
briga, trabalhando cada vez mais próximo do touro sempre que aparecia
em Madri, até que ficou fácil para o touro acertá-lo, arremessá-lo, feri-lo e
mandá-lo para o hospital; e depois que se recuperava, a coragem só
aparecia de novo no início da temporada seguinte.
Havia outros toureiros também. Um chamado Gitanillo, que, apesar do
nome, não era cigano mas tinha trabalhado na juventude como domador
de cavalos para uma família cigana, e era baixo, arrogante e corajoso de
verdade; pelo menos em Madri. Nas províncias, como todos os toureiros
de araque, ele se fiava na reputação construída em Madri. Ele era do tipo
que fazia de tudo, só faltava comer a carne crua do touro. Ele não tinha
habilidade nenhuma e lançava mão de artifícios, como quando o touro
estava cansado ou imóvel por um instante e ele dava as costas para o
animal a poucos centímetros dos chifres, depois se ajoelhava e sorria para
o público. Ele levava umas chifradas feias quase que toda temporada, até
que teve de se recuperar de um golpe terrível que atravessou seu peito,
destruiu um tanto do pulmão e da pleura e o deixou inválido para o resto
da vida.
Um médico em Soria acertou Juan Anllo, o Nacional II, na cabeça com
uma garrafa numa discussão durante uma tourada em que Nacional II,
que assistia à luta, estava defendendo a conduta do toureiro que estava
com um animal difícil na arena. A polícia prendeu o toureiro, mas não o
agressor, e Nacional II passou a noite na cadeia com a poeira vermelha de
Soria na roupa e no cabelo, morrendo com o crânio fraturado e um
coágulo de sangue no cérebro enquanto as pessoas da cadeia o tratavam
feito um bêbado, fazendo de tudo para que ele recuperasse a consciência.
Ele nunca a recuperou. Assim, nesse processo de decadência, a tourada
perdeu um dos poucos matadores verdadeiramente corajosos.
Um ano antes, outro havia morrido, um que parecia destinado a figurar
entre os melhores de todos os tempos. Ele era Manuel Garcia, o Maera.
Ele e Juan Belmonte eram carne e unha no barrio de Triana em Sevilha e,
quando Belmonte, que recebia por dia de trabalho e não tinha nenhum
benfeitor que pudesse pagar por uma escola de toureiros e prover o
dinheiro para que pudesse aprender a lutar praticando com bezerros, quis
praticar com a capa, ele e Maera, e às vezes Varelito, outro garoto da
região, atravessavam o rio a nado, com as capas e uma lanterna sobre um
pedaço de tronco, e encharcados e nus, escalavam a cerca do curral onde
ficavam os touros em Tablada e despertavam o maior touro que
encontravam. Enquanto Maera segurava a lanterna, Belmonte atraía o
touro com a capa. Quando Belmonte se tornou um matador, Maera, que
era alto, moreno, esguio, de olhos fundos, rosto cinza-azulado mesmo
quando tinha acabado de se barbear, arrogante, negligente e sisudo, foi
junto como banderillero. Ele era um grande banderillero e, nos anos com
Belmonte, participando de algo entre noventa e cem lutas numa
temporada, trabalhando com todos os tipos de touro, ele passou a
conhecer touros tão bem quanto todo mundo, inclusive Joselito. Belmonte
nunca fincou as banderillas porque não podia correr. Joselito quase sempre
fincava as banderillas nos touros que matava e, na competição, Belmonte
usou Maera como um antídoto contra Joselito. Maera sabia banderillear
tão bem quanto Joselito e Belmonte fazia Maera usar as piores e mais
estranhas roupas que um toureiro podia usar, a fim de dar a ele a aparência
de um peón; de conter sua personalidade e dar a entender que ele,
Belmonte, tinha um banderillero, um mero peón, que podia competir
como banderillero contra o grande matador Joselito. No último ano de
Belmonte, Maera pediu um aumento de salário. Ele recebia duzentas e
cinquenta pesetas por luta e estava pedindo trezentas. Belmonte, apesar de
estar ganhando dez mil por luta, não deu o aumento. “Se é assim, vou
virar matador e você vai ver uma coisa”, disse Maera. “Não seja bobo”,
disse Belmonte. “Não”, disse Maera, “eu é que vou fazer você de bobo.”
Primeiro como matador, Maera teve de superar vários defeitos e manias
de um peón, defeitos como o de se movimentar demais (um matador
nunca deve correr), e ele também não mostrava um estilo próprio ao usar
a capa. Ele era capaz e dominava a técnica, mas não sabia lidar com a
muleta e matava com dificuldade, por mais que bem. Porém, ele tinha um
conhecimento profundo sobre touros e uma coragem que era tão absoluta
e uma parte tão sólida do seu ser que tornava fácil as coisas que ele sabia
fazer; e ele sabia fazer de tudo. Além disso, ele era muito orgulhoso. Ele
era o homem mais orgulhoso que já vi na vida.
Em dois anos, ele superou todos os seus defeitos com a capa, aprendeu a
manusear a muleta com elegância; ele sempre foi um dos melhores, mais
comoventes e completos banderilleros da tourada; e se tornou um dos
melhores e mais gratificantes matadores que já vi. Ele era tão corajoso que
fazia passar vergonha todos os outros que não eram, e a tourada era tão
importante e tão esplêndida para ele que, em seu último ano, só o fato de
estar presente na arena gerou uma discussão sobre toureiros que não se
esforçavam nada, só pensavam em dinheiro e lutavam contra touros com
movimentos mecânicos; e com ele na arena, a tourada tinha dignidade e
paixão. Maera na plaza era certeza de uma boa tourada por pelo menos
dois touros, sem contar as vezes que ele intervinha na luta dos outros
quatro. Quando os touros não o atacavam, ele não reclamava desse fato
para o público, pedindo simpatia e tolerância; ele ia até o touro de um
jeito arrogante, destemido e dominador. Com ele era sempre emocionante
e, por fim, como ele improvisava seu estilo com frequência, era também
um artista. No último ano em que lutou, dava para ver que ele acabaria
morrendo. Ele logo se desgastava e era como se esperasse morrer antes de
chegar o fim do ano. Até lá, ele tinha muito o que fazer. Levou chifradas
feias em duas ocasiões, mas não deu a mínima. Eu o vi lutar num domingo
com um ferimento de quase quinze centímetros que ele tinha sofrido
embaixo do braço na quinta. Vi o ferimento, como estava antes e depois da
tourada, e ele não deu a mínima. Doía como doeria um ferimento de
quase quinze centímetros feito por um chifre de touro dois dias antes, mas
ele não deu a mínima. Ele agia como se não estivesse ferido. Ele não ficava
todo cuidadoso e não parecia preocupado em levantar o braço; ele
ignorava. Ele já estava muito além de qualquer dor. Nunca vi um homem
que parecesse tão pressionado pelo passar do tempo como ele me pareceu
naquela temporada.
Quando o vi de novo, ele tinha sido chifrado no pescoço, em Barcelona.
Ele levou oito pontos e, no dia seguinte, com um curativo, foi lutar. O seu
pescoço estava tenso, e ele, furioso. Ele estava furioso com a tensão que
não podia evitar e com o curativo que dava para ver acima do colarinho.
Um jovem matador que deve respeitar a etiqueta, que deve impor um
respeito que nem sempre inspira, jamais faz uma refeição com a sua
cuadrilla. Ele come sozinho, mantendo assim um distanciamento entre o
patrão e os criados que não conseguiria manter se ele se misturasse com
aqueles que trabalham para ele. Maera sempre fazia suas refeições com a
cuadrilla; todos comiam na mesma mesa; todos viajavam juntos e, em
ferias mais movimentadas, ficavam todos no mesmo quarto, e todos o
respeitavam como nunca vi um matador ser respeitado por uma cuadrilla.
Ele teve alguns problemas com os pulsos. Para um bom toureiro, os
pulsos são a parte mais importante do corpo. Assim como o dedo
indicador de um atirador é sensível e treinado para executar os graus mais
insignificantes de pressão a fim de assumir posição e disparar a arma; é
com os pulsos que um toureiro controla e executa com sutileza a arte da
capa e da muleta. Todos os movimentos que faz com a muleta dependem
dos pulsos e é com os pulsos que ele finca as banderillas, e é com os pulsos,
desta vez firmes, que ele segura a espada pelo cabo de chumbo revestido
de camurça e mata o touro. Numa ocasião, Maera, na hora do sacrifício,
ao cravar a espada enquanto o touro avançava inclinado e com força, os
ombros projetados dando suporte à espada, ele acertou uma vértebra com
a ponta da lâmina, entre as escápulas. Ele atacava e o touro atacava, e a
espada envergou até quase dobrar e escapou voando alto. Ao envergar, a
espada deslocou seu pulso. Ele pegou a espada do chão com a mão
esquerda e a levou até a barrera e, também com a mão esquerda, tirou
uma nova espada do estojo de couro que o responsável pelas espadas
ofereceu a ele.
“E o pulso?”, perguntou o responsável pelas espadas.
“Que se f*** o pulso”, disse Maera.
Ele foi na direção do touro, enquadrou o animal com dois passes da
muleta, posicionando e arrancando rápido o pano da frente do focinho
úmido, fazendo as patas dianteiras do touro levantarem para acompanhar
o movimento da muleta e depois aterrissarem na posição certa para o
sacrifício; segurando a espada e a muleta com a mão esquerda, ele
levantou a espada até a mão direita, escolheu um ponto e investiu contra o
animal. Mais uma vez, ele acertou o osso, insistiu, e a espada envergou,
escapou e caiu. Dessa vez, ele não pegou uma espada nova. Ele pegou a
espada do chão com a mão direita e, ao erguê-la, pude ver no rosto o suor
causado pela dor que sentia. Ele colocou o touro em posição com o pano
vermelho, escolheu um ponto, olhou bem para a lâmina e investiu contra
o animal. Ele investiu como se estivesse atacando um muro de pedras, seu
peso, sua altura e tudo o mais colocados na espada, e ela acertou o osso,
envergou, não muito dessa vez porque o pulso cedeu rápido, escapou e
caiu. Ele ergueu a espada com a mão direita e, como se o pulso não a
sustentasse, ele a largou. Então ergueu o pulso e bateu com ele no punho
esquerdo, pegou a espada com a mão esquerda, trocou de mão e era
possível ver o suor escorrendo pelo seu rosto. O segundo matador sugeriu
que fosse até a enfermaria, ele fez que não e xingou todo mundo.
“Não se metam”, disse ele, “e vão tomar no c*.”
Ele investiu mais duas vezes contra o touro e nas duas ele acertou o osso.
Em qualquer momento, ele poderia, sem perigo nem dor, fincar a espada
no pescoço do touro, enfiá-la até chegar ao pulmão ou cortar a jugular e
matá-lo sem nenhum problema. Mas, em nome da honra, ele deveria
matar o touro com a espada entre as escápulas, como um homem deve
fazer, por sobre os chifres, sustentando a espada com o corpo. E na sexta
vez que ele investiu dessa forma, a espada entrou. Ele sobreviveu ao
embate, o chifre passou raspando pela sua barriga e ele deu de ombros,
endireitou o corpo, era alto e tinha os olhos fundos, o rosto suado, os
cabelos caídos sobre a testa, e observou o touro enquanto o animal
balançava, perdia o equilíbrio e capotava. Ele extraiu a espada do touro
com a mão direita, suponho que como uma forma de punição, mas a
passou para a mão esquerda e, carregando-a com a ponta para baixo, foi
para a barrera. A raiva tinha passado. O pulso direito estava inchado e com
o dobro do tamanho. Ele estava com a cabeça em outro lugar. Não iria à
enfermaria para enfaixar o pulso.
Alguém perguntou sobre o pulso. Ele ergueu o braço direito e fez uma
careta de desdém.
“Cara, vai pra enfermaria”, disse um dos banderilleros. “Vai lá.” Maera
olhou bem para ele. Não estava pensando no pulso. Estava pensando no
touro.
“Era de concreto”, disse ele. “O maldito touro era de concreto.”
Enfim, no inverno, ele morreu em Sevilha com um tubo saindo de cada
pulmão, afogado numa pneumonia que veio terminar o serviço de uma
tuberculose. Enquanto delirava, ele foi para baixo da cama e lutou contra a
morte de lá, morrendo do jeito mais penoso que um homem pode morrer.
Naquele ano, achei que ele queria morrer na arena, mas ele não iria
trapacear e causar a própria morte. A senhora teria gostado dele. Era muy
hombre.
Senhorinha: Por que Belmonte não deu um aumento quando ele pediu?
Essa é uma coisa estranha da Espanha, minha senhora. De todas as coisas
relacionadas a dinheiro de que tenho conhecimento, a mais suja de todas é
a tourada. A classificação dos toureiros é feita baseada na quantidade de
dinheiro que eles recebem por luta. Porém, na Espanha, um homem acha
que quanto menos ele pagar para os seus subordinados, mais homem ele é
e, da mesma forma, quanto mais ele explorar os seus subordinados como
se fossem escravos, mais homem ele sente que é. Isso é particularmente
verdade em relação aos matadores, que vieram de posições mais baixas da
sociedade. Eles são afáveis, generosos, gentis e queridos por todos que
estão acima deles e são uns exploradores mesquinhos com aqueles que
trabalham para eles.
Senhorinha: E todos eles são assim?
Não. Por estarem cercados de parasitas, com certeza dá para entender
por que um matador fica amargurado ou preocupado em proteger seus
ganhos. Mas, de maneira geral, acho que não existe um homem que seja
mais mesquinho com dinheiro do que um matador com seus
subordinados.
Senhorinha: Então seu amigo Maera era mesquinho com dinheiro?
Não. Ele era generoso, bem-humorado, orgulhoso, amargurado, boca
suja e bom de copo. Ele não era pedante nem ganancioso. Ele amava
matar touros e a vida toda teve essa paixão e essa satisfação, embora os
últimos seis meses de vida tenham sido terríveis. Ele sabia que tinha
tuberculose e não se cuidava nada; como não tinha medo da morte,
preferia se esgotar, não como uma bravata, mas por escolha. Ele estava
treinando o irmão mais novo e acreditava que ele seria um grande
matador. O irmão mais novo, também com problema nos pulmões, se
revelou um covarde. Foi uma grande decepção para todos nós.
9

É claro que se você por acaso fosse a uma tourada e não visse nenhum dos
matadores decadentes, toda essa explicação sobre a decadência das
touradas seria desnecessária. Mas se na sua primeira tourada, em vez de se
deparar com um homem que represente a ideia que você tem de um
matador, seja ela qual for, você encontrasse um homenzinho gordo, fraco,
de cílios longos e com pulsos delicados, que tenha ao mesmo tempo
habilidade com touros e pavor deles, você vai querer uma explicação. Essa
é a aparência de Chicuelo hoje, dez anos depois de surgir como um
fenômeno. Ele ainda tem contratos porque as pessoas têm esperança de
que o touro, o touro perfeito que ele espera encontrar, saia do toril, e ele
tenha desempenho lindo e puro, como um Belmonte melhorado com seu
repertório de passes interligados. Você pode ver Chicuelo vinte vezes ao
longo de uma temporada e não presenciar nenhuma performance
satisfatória, mas quando ele é bom, ele é magnífico.
Dos outros que, apesar de não serem consistentes, eram dominantes
porque tinham nome ou porque geravam expectativas, no período logo
após Joselito e Belmonte, Marcial Lalanda se tornou um toureiro capaz,
confiável, habilidoso, magistral e sincero. Ele sabe lutar com todo e
qualquer tipo de touro, e faz um trabalho hábil e sincero, não importa o
touro. Ele tem confiança e segurança. Ele amadureceu ao longo de nove
anos de experiência, que lhe deram confiança e quando ele desenvolveu
amor pelo ofício, e não medo. Como um toureiro completo e técnico, ele
é o melhor da Espanha.
Valência II continua o mesmo do início de carreira no que diz respeito às
habilidades e limitações, embora tenha engordado e se tornado prudente,
e seu rosto está deformando por causa de um ferimento que foi mal
costurado no canto de um dos olhos e lhe roubando a coragem. Ele faz
um trabalho bonito com a capa, sabe alguns truques com a muleta, mas
são apenas truques e ele se defende demais com eles. Valência II dá tudo
de si em Madri quando encontra coragem para isso e, nas províncias, ele é
extremamente cínico. Ele está praticamente acabado como matador.
Existem dois matadores sobre os quais não falei nada porque eles não
fazem parte da decadência das touradas e representam casos isolados. Eles
seriam os mesmos em qualquer época. Esses dois são Nicanor Villalta e
Niño de la Palma. Mas antes preciso explicar o porquê de toda essa
conversa sobre alguns indivíduos. Minha senhora, indivíduos são
interessantes, mas não todos. Porém, nesse caso eles são porque, devido à
decadência, a tourada se tornou muito uma questão de talento individual.
Alguém vê uma tourada. Você pergunta quais eram os matadores. Se a
pessoa se lembrar dos nomes, você sabe exatamente o tipo de tourada de
que ela está falando. Pois, hoje, os matadores só sabem fazer uma coisa ou
outra. Eles se tornaram tão especialistas quanto médicos. Antigamente,
quando você ia ao médico, ele resolvia o problema, ou tentava resolver o
problema, não importava o que você tinha. Da mesma forma,
antigamente, quando você ia a uma tourada, os matadores eram
matadores; eles passavam por um treinamento, estudavam touradas e seus
desempenhos eram influenciados pelas habilidades e pela coragem que
tinham com a capa, a muleta e as banderillas, e eles matavam os touros.
Não faz sentido detalhar o grau de especialização dos médicos nem falar
dos aspectos mais revoltantes e ridículos desse fato porque, cedo ou tarde,
todo mundo tem de lidar com ele, mas quem vai às touradas não sabe que
o mal da especialização se espalhou entre os toureiros de modo que
existem matadores que só são bons com a capa e péssimos em todo o
resto. As pessoas talvez não vejam de perto o trabalho com a capa, já que
tudo é estranho e novo para elas, e podem pensar que o desempenho
daquele matador em particular é representativo das touradas e pode julgá-
las, as touradas, a partir dessa referência, quando ela não passa de uma
paródia das mais tristes sobre como um touro deve ser enfrentado.
Hoje as touradas precisam de um toureiro completo que seja ao mesmo
tempo um artista para salvá-la dos especialistas; os toureiros que sabem
fazer apenas uma coisa, e que são excelentes nisso, mas que precisam de
um touro específico, quase feito sob medida, para que possam exibir o
melhor da sua arte ou, às vezes, o mínimo que seja da sua arte. As
touradas precisam de um deus que afaste todos os semideuses. Mas
esperar por
um messias é um negócio de longo prazo e você tem de lidar com vários
falsos messias pelo caminho. Não existe nenhum registro na Bíblia dos
falsos messias que vieram antes do Nosso Senhor, mas a história dos
últimos dez anos das touradas não falou de outra coisa.
Caso você veja algum desses falsos messias em ação, é importante que
saiba sobre a existência deles. Não dá para ter certeza de que você viu uma
tourada sem saber se os touros eram touros de verdade e se os matadores
eram toureiros de verdade.
Você pode, por exemplo, ver Nicanor Villalta. Se o visse em Madri, você
poderia achar que ele é esplêndido e veria uma tourada muito boa porque,
em Madri, ele mantém os pés juntos quando usa a capa e a muleta, e assim
evita ser grotesco, e, em Madri, ele sempre mata com muita valentia.
Villalta é um caso estranho. Ele tem o pescoço três vezes mais longo do
que o pescoço de um homem comum. Ele tem um metro e oitenta, para
início de conversa, e esse um metro e oitenta é quase todo de pernas e
pescoço.
Não dá para comparar com o pescoço de uma girafa porque o pescoço
da girafa parece algo natural. É como se o pescoço de Villalta se esticasse
diante dos olhos do público. Ele parece esticar como se fosse feito de
borracha e nunca volta à posição original. Seria maravilhoso se voltasse.
Um homem com um pescoço desses, se ele mantém os pés juntos, parece
bem normal; se mantém os pés juntos, curva o corpo para trás e inclina
aquele pescoço na direção do touro, ele produz um efeito que, apesar de
não ser estético, também não é de todo grotesco, mas uma vez que ele
estique bem as pernas e abra os braços, não há bravura capaz de salvá-lo
do ridículo. Numa noite em San Sebastian, enquanto andávamos ao longo
da concha, Villalta falou sobre o pescoço usando o dialeto aragonês que
lembra a fala de uma criança, disse o quanto odiava o pescoço e como
tinha de sempre se concentrar, nunca baixar a guarda, para evitar ser
grotesco. Ele inventou um modo de usar a muleta que lembra um
giroscópio, capaz de dar um ar natural aos seus passes antinaturais, com os
pés bem juntos, a muleta gigantesca na mão direita (ela era tão grande
como a roupa de cama de um hotel respeitável), esticada com a ajuda da
espada, ele gira devagar acompanhando o touro. Ninguém realiza passes
tão próximo do touro, ninguém fica tão próximo do touro e ninguém gira
como ele, o mestre dos giros. Ele não é bom com a capa porque seus
movimentos são rápidos demais, ele é muito afoito, e na hora de matar ele
mostra determinação e sabe sustentar a espada com o corpo, mas com
frequência ele, em vez de baixar a mão esquerda e fazer o touro
acompanhá-la, expondo aquela região vital entre os ombros do animal, ele
cega o touro com a enorme muleta vermelha e usa sua altura para
ultrapassar os chifres e fincar a espada. Porém, às vezes, ele mata de modo
muito correto, respeitando todas as regras. Ultimamente, ele tem sido
consistente e matado de um jeito quase clássico. Tudo que ele faz, ele faz
com bravura e do seu jeito, mas tudo o que Nicanor Villalta faz também
não pode ser considerado tourada. Todavia vale a pena vê-lo ao menos
uma vez em Madri, onde ele dá tudo de si, e se o touro permite que ele
fique com os pés juntos e apenas um entre seis animais é assim, você terá
chance de ver algo muito estranho, muito emocionante e muito, graças a
Deus e à enorme coragem necessária, singular.
Se você vir Niño de la Palma, vai presenciar covardia da forma menos
atraente que há; com um traseiro gordo, senilidade precoce e calvície
prematura de tanto usar fixadores no cabelo. De todos os jovens toureiros
que surgiram depois da primeira aposentadoria de Belmonte, ele foi o que
mais alimentou falsas esperanças e se revelou uma grande decepção. Ele
começou a tourear em Málaga e tinha lutado apenas vinte e uma vezes
dentro de uma arena, em contraste com a educação de oito a dez anos pela
qual passavam os toureiros de antigamente, antes de se tornar um toureiro
completo. Houve dois grandes toureiros que se tornaram matadores
completos quando tinham apenas dezesseis anos de idade, Costillares e
Joselito, e porque eles passavam a impressão de ter pegado um atalho no
processo de aprendizado, muitos garotos se tornaram matadores de
maneira prematura e desastrosa. Niño de la Palma foi um bom exemplo
disso. Os únicos casos em que os atalhos faziam sentido eram os de
garotos que tinham sido toureiros desde pequenos e que vinham de
famílias de toureiros, então tiveram chance de compensar a falta de
estudos com os ensinamentos do pai ou de um parente, e também com a
prática. Mesmo assim, eles só conseguiam ser bem-sucedidos quando
eram gênios extraordinários. Digo gênios extraordinários porque todo
matador é um gênio. Você aprende a ser um matador completo tanto
quanto você pode aprender a ser um jogador de beisebol importante, um
cantor de ópera, ou um bom boxeador profissional. Você pode aprender a
jogar beisebol, a boxear, a cantar, mas é preciso ter um certo grau de
genialidade para ganhar a vida com o beisebol, o boxe ou a ópera. Nas
touradas, essa genialidade, que é um pré-requisito, torna-se ainda mais
complicada porque requer coragem física de sofrer ferimentos e encarar a
morte, ainda mais depois de ter sido ferido uma primeira vez. Cayetano
Ordóñez, conhecido como Niño de la Palma, encarou sua primeira
temporada como matador na primavera depois de ter apresentado belas
performances como novillero em Sevilha e Málaga, e algumas imperfeitas
em Madri, e era visto como o messias que salvaria as touradas.
Certa vez, num livro, tentei descrever sua aparência e algumas de suas
lutas. Eu estava presente no dia da sua primeira apresentação como
matador em Madri e, no mesmo ano, eu o tinha visto fazer, numa
competição em Valência contra Belmonte, que tinha voltado da
aposentadoria, duas faenas tão lindas e maravilhosas que consigo lembrar
delas em detalhes ainda hoje. Ele tinha uma sinceridade e uma pureza de
estilo com a capa, e não matava de um jeito ruim, mas também não era
muito bom, a não ser quando tinha sorte. Ele tinha matado diversas vezes
recibiendo, recebendo o touro na espada do jeito antigo e fazia lindos
movimentos com a muleta. Gregorio Corrochano, o crítico de touradas do
A.B.C., um jornal influente em Madri, disse: “Es de Ronda y se llama
Cayetano”. Ele é de Ronda, o berço das touradas, e se chama Cayetano,
nome de um grande toureiro; o primeiro nome de Cayetano Sanz, o maior
dos mestres de antigamente. A frase percorreu a Espanha inteira. Numa
tradução livre, seria o mesmo que dizer de um grande golfista que surgisse
no futuro que ele é de Atlanta e se chama Bobby Jones. Cayetano Ordóñez
tinha a aparência de um toureiro, a atitude de um toureiro e, ao longo de
uma temporada, ele foi um toureiro. Eu o vi em quase todas as suas lutas e
o vi em todas as suas melhores lutas. No fim da temporada, ele foi grave e
dolorosamente ferido na coxa, bem perto da artéria femoral.
Esse foi o seu fim. No ano seguinte, ele assinou o maior número de
contratos que um matador já viu graças a um esplêndido primeiro ano, e
seu desempenho na arena foi uma série de desastres. Ele mal conseguia
olhar para um touro. Era penoso de ver o medo que sentia quando entrava
na arena para matar o touro, e passou a temporada inteira assassinando
touros do jeito que oferecia menos perigo para ele, escapando da linha de
ataque do animal e fincando a espada no pescoço para atingir os pulmões,
ou em qualquer lugar que pudesse alcançar sem ficar muito perto dos
chifres. Foi a temporada mais vergonhosa de um matador até então. O
problema foi o ferimento causado pelos chifres, o seu primeiro ferimento
de verdade, que acabou com sua bravura. E ele nunca mais a recuperou.
Ele tinha muita imaginação. Várias vezes, nos anos seguintes, ele teve a
coragem de dar boas performances em Madri e ainda conseguir contratos
a partir da publicidade que recebia na imprensa. Os jornais de Madri são
distribuídos e lidos na Espanha inteira e o triunfo de um toureiro na capital
percorre toda a Península, enquanto um triunfo nas províncias não vai
além da cidade vizinha e não é levado a sério em Madri porque os
empresários dos toureiros sempre anunciam os triunfos por telegrama e
telefone, seja do lugar que for nas províncias, mesmo que o toureiro tenha
sido quase linchado por um público indignado. Mas essas performances
corajosas eram os atos de bravura de um covarde.
Agora, os atos de bravura de um covarde são muito valiosos em
romances psicológicos e são extremamente valiosos para o homem que os
executa, mas eles não são valiosos para o público que, uma temporada
depois da outra, paga para ver um toureiro. O que eles fazem é dar ao
toureiro um valor aparente que ele não tem. Às vezes, ao ir à igreja usando
trajes de tourada antes da luta, suando debaixo dos braços, para rezar e
pedir que o touro embiste, e que faça isso de maneira direta seguindo a
trajetória da capa; ó Virgem Maria, dai-me um bom touro que embiste,
dai-me esse touro, Virgem Maria, e que eu possa encostar nesse touro hoje
em Madri num dia sem vento; ao prometer alguma coisa de valor ou uma
romaria, ao rezar pedindo sorte, morrendo de medo, para que talvez à
tarde esse touro entre na arena e o matador fique exaurido com o esforço
de manter a aparência de bravura, simulando de vez em quando a alegria
de uma grande faena; o toureiro covarde, num esforço de exibir a coragem
que não tem, anula sua imaginação e tem uma performance esplêndida e
brilhante. Basta uma dessas por ano em Madri, na primavera, para ele
conseguir os contratos que permitem que siga lutando, mas na verdade
essa performance não tem importância nenhuma. Você tem sorte se
presenciar uma dessas, mas você pode voltar outras vinte vezes e nunca
mais ver outra performance parecida.
Pensando nisso tudo, ou você adota o ponto de vista do toureiro ou o
ponto de vista do público. A questão da morte é o que deixa tudo um
pouco confuso. A tourada é a única arte em que o artista corre risco de
vida e o grau de genialidade da performance está relacionado à honra do
lutador. Na Espanha, a honra é algo muito importante. Chamada de
pundonor, que significa honra, probidade, coragem, respeito próprio e
honra, tudo numa palavra só. O orgulho é a característica mais forte do
povo e é uma questão de pundonor não demonstrar covardia. Uma vez
demonstrada, verdadeira e inegavelmente, o lutador perde a honra e passa
a fazer apresentações meramente cínicas, sem muito esforço, criando
perigo para si mesmo só como uma forma de tirar vantagem financeira, a
fim de assinar contratos no futuro. Não se espera que um toureiro seja
sempre bom, apenas que dê o melhor de si. Ele é perdoado por um
trabalho ruim se o touro for muito difícil, ele deve ter dias de folga, mas
todos esperam que ele dê o melhor de si com o touro que lhe foi dado.
Mas quando a honra já não está mais em jogo, você já não sabe mais se ele
dará tudo de si ou se fará qualquer coisa que valha a pena, além de
cumprir suas obrigações e matar o touro da maneira mais segura,
monótona e desonesta que puder. Ao perder sua honra, ele continua
vivendo em função dos contratos, odiando o público diante do qual se
apresenta, dizendo para si mesmo que as pessoas não podem dar um pio
nem zombar de alguém que encara a morte enquanto elas ocupam
cadeiras confortáveis e seguras, dizendo para si mesmo que pode sempre
fazer um trabalho incrível se quiser, e que o público espere. Então, um ano
depois, ele descobre que não consegue mais fazer um bom trabalho,
mesmo quando tem um bom touro e faz um esforço enorme de coragem
e, no ano seguinte, ele se aposenta. Porque um espanhol precisa ter honra
e, quando ele deixa de ter honra, quando perde a capacidade de pensar que
para ser bom basta acreditar, é quando ele se aposenta e recupera a honra
a partir dessa decisão. Esse negócio de honra não é uma fantasia que estou
tentando empurrar para você, do mesmo jeito que os escritores da
Península têm teorias sobre o seu povo. Juro que é verdade. Honra para
um espanhol, não importa o quão desonesto ele seja, é uma coisa tão real
quanto a água, o vinho, ou o azeite de oliva. Existe honra entre o
batedores de carteira e honra entre as prostitutas. O que muda é a
referência.
A honra de um toureiro é tão necessária para uma tourada quanto
touros bons, e isso funciona assim porque existe meia dúzia de toureiros,
alguns deles muito talentosos, sem honra nenhuma; isso acontece quando
o toureiro é explorado no início da carreira e como consequência ele fica
cínico, ou às vezes fica covarde para sempre por causa de ferimentos, o que
é diferente da perda temporária de coragem que sempre ocorre depois que
o toureiro é chifrado, e isso pode render touradas muito ruins, sem
considerar os toureiros que são fracos ou sem treinamento suficiente.
Além disso, a senhora tem mais alguma dúvida? Quer que explique mais
alguma coisa?
Senhorinha: Percebi que quando um dos cavalos foi atingido pelo touro,
saiu uma serragem de dentro dele. Como o senhor explica isso?
Minha senhora, a serragem foi colocada dentro do cavalo por um
bondoso veterinário a fim de preencher o vazio deixado pela perda de
alguns órgãos.
Senhorinha: Muita obrigada. O senhor me explicou tudo que eu precisava
saber. Mas com certeza o cavalo não duraria muito com aquela serragem
dentro dele, certo?
Minha senhora, é apenas uma solução temporária, e bastante
controversa.
Senhorinha: E no entanto ela me pareceu muito limpa, como se a
serragem fosse algo bom e agradável.
Minha senhora, não existe serragem mais agradável do que aquela usada
nos cavalos das arenas de Madri.
Senhorinha: Fico feliz em saber disso. Quem é aquele cavalheiro fumando
charuto e o que são aquelas coisas que ele está comendo?
Minha senhora, aquele é Dominguin, um promotor de touradas bem-
sucedido. Ele foi matador e hoje é empresário de Domingo Ortega, e ele
está comendo camarões.
Senhorinha: Vamos pedir uns camarões também, se não for muito difícil,
só para experimentar. Ele tem o rosto de um homem bom.
É, ele tem, mas nunca empreste dinheiro para ele. Os camarões daqui
são muito bons, mas do outro lado da rua eles são maiores, e são
chamados de lagostins. Garçom, três porções de gambas.
Senhorinha: Como é que o senhor chamou os camarões?
Gambas.
Senhorinha: Em italiano, essa palavra quer dizer membro, se não me
engano.
Autor: Se a senhora quiser, podemos ir a um restaurante italiano perto
daqui.
Senhorinha: Ele é frequentado pelos toureiros?
Autor: Nunca, minha senhora. Lá só se veem políticos ambiciosos.
Senhorinha: Então vamos jantar em outro lugar. Onde os matadores
comem?
Autor: Eles comem em pensões muito simples.
Senhorinha: O senhor conhece alguma dessas pensões?
Autor: Conheço, sim.
Senhorinha: Eu gostaria de conhecer melhor.
Autor: As pensões?
Senhorinha: Não, senhor. Os toureiros.
Autor: Minha senhora, muitos deles vivem doentes.
Senhorinha: O senhor me conte que doenças são essas e eu digo o que
penso. Eles têm caxumba?
Autor: Não, senhora. Poucos deles sofreram de caxumba.
Senhorinha: Eu tive caxumba, então isso não me assusta. Mas essas
doenças de que o senhor fala, elas são estranhas e diferentes como os trajes
que eles usam?
Autor: Não, elas são bem comuns. Podemos falar delas outra hora.
Senhorinha: Mas me conte uma coisa antes de ir embora; esse Maera foi o
toureiro mais corajoso que o senhor já viu?
Autor: Sim, senhora, ele foi. Porque, entre os toureiros corajosos de
nascença, ele era o mais inteligente. É mais fácil ser um idiota corajoso do
que ser extremamente inteligente e ainda assim totalmente corajoso.
Ninguém negaria que Marcial Lalanda é corajoso, mas sua coragem está
toda ligada à inteligência, e ela foi adquirida. Ignacio Sánchez Mejías, que
se casou com a irmã de Joselito e era um banderillero excelente, apesar de
ter um estilo violento, era muito corajoso, mas ele usava sua coragem da
mesma forma que um pedreiro usa uma trolha. É como se estivesse o
tempo todo mostrando os pelos do peito para o público ou as
características de suas partes íntimas. Não é assim que a bravura funciona
nas touradas. Deveria ser uma qualidade cuja existência permita ao
toureiro executar todas as ações que quiser sem nenhuma apreensão. Não
é algo que você deva esfregar na cara do público.
Senhorinha: Comigo isso nunca aconteceu.
Autor: Vai acontecer no dia em que a senhora vir uma tourada com
Sánchez Mejías.
Senhorinha: Quando posso ver uma tourada com ele?
Autor: No momento, ele está aposentado, mas se ficar sem dinheiro, a
senhora terá chance de vê-lo numa tourada.
Senhorinha: Parece que o senhor não gosta dele.
Autor: Embora eu respeite sua bravura, sua habilidade com os bastões e
sua insolência, não gosto dele como matador, nem como banderillero,
nem como pessoa. Por isso dedico pouco espaço para ele neste livro.
Senhorinha: O senhor é preconceituoso?
Autor: É difícil a senhora encontrar um homem que seja mais
preconceituoso do que eu e que seja também capaz de ter a cabeça mais
aberta do que a minha. Mas talvez eu seja assim porque a parte
preconceituosa da minha mente, aquela que orienta as minhas ações, seja
influenciada pela experiência e não afete a parte completamente aberta,
que continua existindo para fazer observações e avaliações.
Senhorinha: Não faço ideia.
Autor: Minha senhora, eu também não faço ideia e é bem possível que a
gente esteja falando merda.
Senhorinha: Esse é um termo que eu não costumava usar na minha
juventude.
Autor: Minha senhora, agora usamos esse termo para descrever algo
infundado numa conversa qualquer, ou, na verdade, para se referir a
qualquer conversa que se volte demais para o metafísico.
Senhorinha: Preciso aprender a usar esses termos direito.
10

Existem três atos no confronto com cada touro e, em espanhol, eles são
chamados de los tres tercios de la lidia, ou os três terços do combate. O
primeiro ato, em que os touros atacam os picadores, é a suerte de varas,
ou o teste das lanças. Suerte é uma palavra importante em espanhol. Ela
significa, de acordo com o dicionário: Suerte, sf., acaso, oportunidade,
destino, fortuna, sorte, casualidade; coincidência, contingência,
eventualidade, acidente, imprevisto, sina, fado, achado; espécie, condição,
nível, categoria, êxito; percalço, revés, transtorno, e pedaço de terra
separado por um marco divisório. Então a tradução como teste ou
manobra é bem arbitrária, como deve ser toda tradução do espanhol.
A ação dos picadores na arena e o trabalho dos matadores responsáveis
por protegê-los com as capas quando eles descem dos cavalos compõem o
primeiro ato da tourada. Quando sopram as cornetas e o presidente faz
um sinal indicando o fim desse ato, os picadores saem da arena e começa o
segundo ato. Depois do primeiro ato, não fica nenhum cavalo na arena, a
não ser os cavalos mortos cobertos com lona. O primeiro ato é o das
capas, dos picadores e dos cavalos. Ele representa a melhor oportunidade
que o touro tem de mostrar se é corajoso ou covarde.
O segundo ato é das banderillas. Os bastões com quase um metro de
comprimento, setenta centímetros para ser exato, e uma ponta de aço que
lembra um arpão e tem quatro centímetros de comprimento. Elas devem
ser inseridas, duas de cada vez, no músculo da corcova que fica no alto do
pescoço do touro, no instante em que o touro avança sobre o homem que
as segura. Elas servem para diminuir a velocidade do touro e para ajustar a
postura da cabeça, algo que começa a ser feito pelos picadores assim que o
ataque do animal fica mais lento, porém mais confiante e certeiro. Em
geral, são usados quatro pares de banderillas. Cravadas pelos banderilleros
ou pelos peones, elas devem ser inseridas com rapidez e na posição certa.
Se o próprio matador fizer o serviço, ele pode optar por uma preparação
antes, em geral acompanhada de música. Essa é a parte mais pitoresca da
tourada e a parte favorita de muitos espectadores que veem uma tourada
pela primeira vez. A missão dos banderilleros não é só cansar os músculos
do pescoço do touro para que ele ataque com a cabeça mais baixa, mas
também, ao colocar os bastões de um lado ou de outro, corrigir a
tendência que o animal tem de atacar usando só um dos chifres. O ato
inteiro das banderillas não deve demorar mais do que cinco minutos. Se
demorar muito, o touro fica alterado e a luta perde o ritmo, e se o touro
for instável ou perigoso, ele acaba tendo muitas chances de ver e atacar
homens sem nenhum recurso para distrair o animal, e assim desenvolve a
tendência de perseguir os homens atrás dos panos, de perseguir a cuadrilla,
como os espanhóis a chamam, quando o matador entra na arena para o
último ato com a espada e a muleta.
O presidente encerra o ato depois de três ou no máximo quatro pares de
banderillas serem cravados e o terceiro e último ato é o sacrifício. Ele é
formado por três partes. Primeiro, os brindis ou saudações do presidente,
seguida da dedicatória da morte do touro, feita pelo matador para o
presidente ou para outra pessoa, depois disso o matador começa os
trabalhos com a muleta. Ela é um tecido de sarja escarlate dobrado sobre
um bastão com ponta afiada numa extremidade e um punho na outra.
A ponta atravessa o tecido que é preso no punho com um parafuso ma-
nual, assim o pano pende com pregas ao longo do bastão. Muleta significa,
literalmente, bengala, mas na tourada ela se refere ao bastão envolvido
pelo pano escarlate com o qual o matador deve dominar o touro, prepará-
lo para o sacrifício e, por fim, com o bastão na mão esquerda, para baixar a
cabeça do touro e mantê-la abaixada enquanto ele mata o animal com um
golpe de espada entre as escápulas.
Esses são os três atos na tragédia da tourada, e é o primeiro ato, o do
cavalo, que dá o tom para os outros dois, é na verdade o que torna todo o
resto possível. É no primeiro ato que o touro entra na arena em posse de
todas as suas capacidades: confiante, feroz, arrogante e rápido. Todas as
suas conquistas ficam no primeiro ato. No fim do primeiro ato, ele parece
ter vencido. Ele botou para fora os homens a cavalo e agora está sozinho
na arena. No segundo ato, ele é totalmente surpreendido por um homem
desarmado e é punido muito cruelmente com as banderillas, assim a
confiança e o ódio cego do animal dão lugar a uma raiva concentrada num
único objeto. No terceiro ato, ele é enfrentado por um homem que deve,
sozinho, dominar o touro com um pedaço de pano pendurado num
bastão, e matá-lo pela frente, atacando por cima do chifre direito do touro
para matá-lo com uma espada fincada no meio do arco entre as escápulas.
Nas minhas primeiras touradas, a única parte que me incomodava era a
das banderillas. Elas pareciam causar uma mudança cruel e enorme no
touro. Ele se torna um animal muito diferente atingido pelas banderillas e
eu lamentava a perda da liberdade e da impetuosidade que ele tinha ao
entrar na arena; essas características ficam bem evidentes quando ele
encara os picadores. Com as banderillas, ele já era. Elas o condenam. O
primeiro ato é o julgamento, o segundo ato é a condenação e o terceiro é a
execução. Mais tarde, ao aprender que o touro se torna muito mais
perigoso quando fica na defensiva, que, depois de ficar mais controlado e
lento por causa das banderillas, ele usa os chifres do mesmo modo que um
caçador mira num pássaro específico dentro de um bando em vez de atirar
a esmo e não acertar nenhum, e quando fiquei sabendo, por fim, o que era
possível fazer com o touro do ponto de vista artístico quando ele fica mais
lento, porém ainda com coragem e força, minha admiração pelo touro só
aumentou, mas senti tanta simpatia por ele quanto sentiria pela tela de um
quadro ou pelo mármore de uma escultura ou pela neve seca que é
cortada pelos esquis.
Não sei de nenhuma escultura moderna, à exceção das obras de
Brancusi, que seja de alguma forma equivalente à escultura da tourada
moderna. Mas ela é uma arte impermanente como o canto e a dança, uma
das que Leonardo sugeriu que os homens evitassem, e quando o artista sai
de cena, a arte existe apenas na memória daqueles que a viram e ela morre
com eles. Olhar para fotografias, ler descrições ou tentar lembrar do que
viu com muita frequência pode corromper a memória do fato. Se a
tourada fosse permanente, poderia ser uma das grandes artes, mas ela não
é e assim deixa de existir com quem a executa, diferente das grandes artes
que não podem ser julgadas até que o desimportante corpo putrefato de
quem quer que seja o responsável pela arte esteja muito bem enterrado. A
tourada é uma arte que lida com a morte e a morte encerra sua existência.
Mas nunca está perdida de verdade, você diz, porque em todas as artes as
descobertas e os incrementos evidentes são levados adiante por alguém;
então nada se perde, na verdade, a não ser o próprio homem. Sim, e na
hipótese de que todas as pinturas desaparecessem com o pintor no
momento da sua morte, seria reconfortante saber que as descobertas feitas
por Cézanne, por exemplo, não estariam perdidas porque seriam usadas
pelos seus imitadores? Reconfortante coisa nenhuma.
Vamos supor que a obra de um pintor desapareça com ele e que os livros
de um escritor sejam automaticamente destruídos quando ele morre e
passassem a existir somente na memória dos leitores. É isso que acontece
com a tourada. A arte, o método, os incrementos, as descobertas
permanecem; mas a pessoa que tornou tudo isso possível, que era a pedra
de toque, a origem, desaparece e, até que surja outra pessoa tão
importante quanto, as coisas, ao serem imitadas, logo são distorcidas,
prolongadas, encurtadas, enfraquecidas até perderem a referência original.
Toda arte é feita por uma pessoa. A pessoa é só o que você tem e todas as
escolas servem apenas para classificar seus integrantes como fracassados. A
pessoa, quando é uma grande artista, usa tudo que se sabe ou foi
descoberto sobre sua arte até aquele ponto, sendo capaz de selecionar o
que lhe interessa de forma tão rápida que é como se tivesse nascido já com
o conhecimento, como se absorvesse instantaneamente o que alguém
comum levaria uma vida inteira para conhecer, e então a grande artista vai
além do que foi feito ou daquilo que se sabe e cria algo próprio. Mas às
vezes há um longo intervalo entre um grande artista e outro, e aqueles
que conheceram os grandes do passado raramente reconhecem os novos
quando surgem. Eles querem o antigo, tudo do jeito como era antes,
como eles se lembram. Porém, os outros, os contemporâneos,
reconhecem os novos grandes artistas quando surgem por causa da
habilidade que têm de aprender muito rápido, e por fim até aqueles que
lembram dos grandes do passado também os reconhecem. Eles são
perdoados por não os terem reconhecido de primeira porque, no período
de espera, veem tantos artistas falsos e se tornam tão cuidadosos que não
confiam mais em seus instintos; confiam apenas na memória. E a
memória, claro, nunca é verdadeira.
Assim que surge um grande toureiro, você pode perdê-lo fácilmente por
causa de uma doença; muito mais fácil do que por morte. Dos dois únicos
grandes toureiros que surgiram desde que Belmonte se aposentou,
nenhum deles teve uma carreira completa. A tuberculose acabou com um
deles e a sífilis afetou o outro. Essas são as duas doenças ocupacionais do
matador. Ele começa a corrida debaixo do sol quente, tão quente que
mesmo as pessoas com pouco dinheiro gastam três vezes mais num
ingresso apenas para se sentar na sombra. Ele usa uma jaqueta pesada de
brocado dourado que o faz transpirar no sol feito um boxeador pulando
corda num treinamento. Nesse sol, suando em bicas, sem nenhuma chance
de tomar uma ducha ou de esfregar álcool para fechar os poros, o matador,
à medida que o sol se põe e a sombra do anfiteatro alcança a areia, fica de
pé parecendo imóvel, mas pronto para fazer sua parte, enquanto os
colegas matam seus últimos touros. Com frequência, no fim do verão e no
início do outono, em cidades que ficam nos planaltos mais altos da
Espanha, o frio obriga você a usar um sobretudo no fim de uma tourada
que tinha começado sob um sol tão forte que, se estivesse com a cabeça
descoberta, você corria o risco de sofrer uma insolação. A Espanha é um
país de montanhas e boa parte é africana e no outono e no fim do verão,
depois do pôr do sol, o frio chega rápido e mortal para qualquer um que
esteja exposto a ele, molhado de suor, incapaz de se enxugar. Um
boxeador faz de tudo para evitar um resfriado quando está transpirando,
enquanto um toureiro não pode fazer nada. Isso basta para explicar o
número de toureiros que sofrem de tuberculose mesmo sem a fadiga das
viagens noturnas, da poeira e das touradas diárias durante a temporada de
ferias em agosto e setembro.
Sífilis é outra coisa. Boxeadores, toureiros e soldados contraem sífilis
pelas mesmas razões que os levam a escolher suas profissões. No boxe, as
mudanças mais repentinas na forma física de um atleta, a maioria dos
casos chamados de demência pugilística e o ato de “andar nos calcanhares”
são resultados da sífilis. Você não pode citar nomes num livro porque é
difamatório, mas qualquer um na profissão pode dar uma dúzia de
exemplos recentes. Há sempre casos recentes. A sífilis foi a doença das
Cruzadas na Idade Média. Os cruzados teriam sido responsáveis pela
chegada dela à Europa e é uma doença de pessoas que levam uma vida
sem regras e não se importam com consequências. É um destino certo
para aqueles com vidas sexuais impróprias, que preferem se arriscar em
vez de se prevenir, e é um fim previsível, ou melhor, uma fase da vida de
todos os fornicadores que seguem nessa carreira por tempo suficiente.
Alguns anos atrás, tive a oportunidade de observar a evolução de alguns
libertinos que eram referências de moral na universidade e, depois de
caírem no mundo, descobriram os prazeres da imoralidade que, como
adeptos de Yale numa terra estranha, eles nunca tinham experimentado
até então e, ao se entregarem a esses prazeres, sentiram como se tivessem
descoberto, ou até mesmo inventado, as relações sexuais. Eles acreditavam
que se tratava de uma grande novidade que tinham acabado de descobrir e
eram prazerosamente promíscuos até ficarem doentes pela primeira vez,
com uma doença que eles também acreditavam ter descoberto e
inventado. É claro que eles não tinham como saber dessa coisa terrível,
assim como não poderiam ter sofrido suas consequências, caso contrário
jamais permitiriam que isso acontecesse, e com isso eles se tornam mais
uma vez, por um tempo, os defensores e praticantes da vida mais íntegra
que existe ou, no mínimo, limitam suas atividades a um círculo social mais
restrito. Houve várias mudanças nos costumes morais e muitos que
estavam destinados a dar aulas na escola dominical se tornaram notáveis
pervertidos. Assim como os toureiros que são arruinados ao sofrer sua
primeira chifrada, eles não têm nenhuma vocação para pervertidos, mas é
um teste ver e ouvir o que eles fazem e dizem quando descobrem o que
Guy de Maupassant classificou como uma das doenças da adolescência, e
que, a propósito, para justificar seu ponto de vista, foi a razão da sua
morte. Eles dizem, “Ele brinca com cicatrizes que nunca sentiram a dor de
uma ferida”. Mas ele brinca muito bem com cicatrizes que estão cobertas
de feridas, ou ao menos é o que os homens costumavam fazer, embora os
brincalhões de hoje façam mais graça com qualquer coisa que acontece a
qualquer um que não seja ele mesmo, e no momento que sofrem qualquer
coisa, eles reclamam, “Você não está entendendo. Isso é muito sério!”, e se
tornam grandes moralistas ou desistem de tudo apelando para algo tão
banal quanto um suicídio. Talvez as doenças venéreas tenham de existir
assim como os touros têm de ter chifres, para manter as coisas em seus
devidos lugares, senão todos seriam Casanovas e matadores. Mas eu daria
tudo para que as doenças venéreas desaparecessem da Espanha, por causa
do mal que elas fazem aos matadores. Mesmo que elas não existissem na
Espanha, ainda poderiam ser contraídas em outros países, ou os homens
sairiam numa cruzada e voltariam doentes de algum lugar.
Você não pode esperar de um matador que tenha assumido riscos para
triunfar à tarde que ele não assuma riscos também à noite e “mas cornadas
dan las mujeres”. Três coisas ajudam os jovens a evitar relações
promíscuas: crença religiosa, timidez e medo de doenças venéreas. A
última é com frequência a base dos apelos feitos pela YMCA. e por outras
instituições que defendem uma vida regrada. Contra esses apelos, o que
pesa para um toureiro é a tradição que manda um toureiro ter muitas
amantes, suas predisposições, o fato de que sempre haverá mulheres atrás
dele, algumas interessadas nele, outras interessadas no dinheiro dele e
muitas interessadas nas duas coisas, e sua relutância em encarar as doenças
venéreas como um perigo. Mas, diz a senhorinha, existem muitos
toureiros que contraem essas doenças?
Minha senhora, eles contraem essas doenças assim como todos os
homens que se envolvem com mulheres pensando só na mulher e não na
sua saúde.
Senhorinha: Mas por que eles não pensam na saúde?
Minha senhora, essa é uma pergunta difícil de responder. Na verdade,
um homem que tem seus desejos satisfeitos não pensa. Mesmo quando
uma mulher é uma prostituta, se ela for uma boa prostituta, um homem
não vai pensar na sua saúde na hora nem depois.
Senhorinha: E essas doenças são todas de mulheres profissionais?
Não, senhora. Com frequência, elas são contraídas de amigas, ou de
amigas de amigas, e de qualquer mulher com quem você possa dormir
aqui, lá ou em qualquer lugar.
Senhorinha: Como deve ser arriscada a vida de um homem.
Ela é, minha senhora, realmente, e apenas uns poucos sobrevivem. É um
caminho difícil que termina sempre no túmulo.
Senhorinha: Não seria melhor se esses homens se casassem e dormissem
apenas com suas esposas?
Para suas almas, sim, e também para os seus corpos. Mas, como
toureiros, depois que se casam, muitos ficam arruinados porque amam
suas esposas de verdade.
Senhorinha: E as esposas? O que elas pensam?
Quem nunca foi uma esposa de toureiro não pode falar por elas. Se o
marido não tem nenhum contrato, ele não consegue ganhar a vida. Mas, a
cada contrato, ele corre o risco de morrer e nenhum homem pode entrar
na arena e dizer com certeza que vai sair dela vivo. Não é como ser esposa
de um soldado, pois um soldado ganha a vida mesmo quando não há
guerra; e o marinheiro tem o barco para se proteger; e mesmo o boxeador
não encara a morte. É uma situação única e, se eu tivesse uma filha, não
desejaria isso para ela.
Senhorinha: O senhor tem uma filha?
Não, senhora.
Senhorinha: É uma preocupação a menos. Mas gostaria que os toureiros
não pegassem essas doenças.
Ah, minha senhora, não é possível encontrar um homem que seja
homem e não carregue marcas de desventuras passadas. Ou ele sofreu de
alguma coisa, ou quebrou isso, ou contraiu aquilo, mas um homem
sobrevive a muitas coisas e conheço um campeão de golfe que nunca
jogou tão bem como quando estava com gonorreia.
Senhorinha: Então não há remédio que resolva?
Minha senhora, não há remédio para tudo nessa vida. A não ser a morte,
que é um remédio soberano para todos os infortúnios, e o melhor a fazer
agora é parar de conversar e começar a comer. Não vai demorar para os
cientistas descobrirem a cura para essas doenças antigas e viveremos para
ver o fim de todas as moralidades. Mas, até lá, prefiro comer um leitão no
restaurante do Botin a ficar pensando nas desgraças vividas por meus
amigos.
Senhorinha: Então vamos comer. Amanhã poderemos conversar mais
sobre as touradas.
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O touro bravo está para o bovino domesticado assim como o lobo está
para o cachorro. Um bovino domesticado pode ser mal-humorado e
violento assim como um cachorro pode ser mau e perigoso, mas ele nunca
terá a velocidade, a quantidade de músculos e tendões, e a constituição
física peculiar do touro bravo, da mesma forma que um cachorro não tem
o mesmo físico de um lobo, nem a astúcia, nem a largura da mandíbula.
Os touros usados na arena são animais selvagens. Eles são criados a partir
de uma linhagem que descende diretamente dos touros selvagens que
percorriam a Península e são criados em fazendas com milhares de
hectares de extensão onde vivem soltos. Até entrarem numa arena, os
touros têm pouquíssimo contato com homens.
As características físicas do touro bravo são o couro grosso e muito forte
com uma pelagem brilhante, a cabeça pequena e a testa larga; a força e o
formato dos chifres, curvados para a frente; pescoço curto e grosso com
uma corcova grande que se enrijece quando o touro está bravo; ombros
largos, cascos muito pequenos e um rabo fino e comprido. A fêmea do
touro bravo não é tão forte como o macho; tem uma cabeça menor;
chifres mais curtos e mais finos; pescoço mais alongado, uma papada mais
discreta debaixo da mandíbula; o peito não é tão largo e o úbere não é
visível. Já vi algumas vezes essas vacas na arena de lutas amadoras em
Pamplona, atacando feito touros, arremessando longe os toureiros
amadores, e os visitantes se referem a elas como se fossem machos, pois
não há nenhuma característica evidente de sua condição de fêmeas e elas
não dão nenhum sinal de feminilidade. É na fêmea do touro bravo que
você consegue enxergar melhor a diferença entre o animal selvagem e o
domesticado.
Uma das coisas que mais se ouve dizer a respeito das touradas é a
afirmação de que uma vaca é muito mais perigosa ao atacar do que o
touro, porque o touro fecha os olhos enquanto a vaca mantém os olhos
abertos. Não sei de onde veio essa história, mas ela não é verdade. As
fêmeas usadas em lutas amadoras quase sempre atacam o homem em vez
da capa, viram na direção do homem em vez de seguir em linha reta, e
com frequência escolhem um homem ou um garoto específico e o
perseguem no meio de uma multidão de cinquenta pessoas, mas não
fazem por causa de uma suposta inteligência superior das fêmeas, como
Virginia Woolf poderia supor, mas porque as vacas, como não devem
entrar na arena em lutas normais e como não existe nenhuma objeção
para que aprendam tudo sobre todas as fases da tourada, são usadas
exclusivamente para que os toureiros possam treinar a capa e a muleta.
Tanto um touro quanto uma vaca, depois de alguns passes de capa ou de
muleta, aprendem o movimento, lembram dele e, se for um touro,
consequentemente se torna inútil para uma tourada oficial em que tudo
depende do fato de ser o primeiro encontro do touro com um homem a
pé. Se o touro não está familiarizado com a capa e a muleta e ataca em
linha reta, o homem consegue controlar o perigo trabalhando o mais
próximo possível do touro e terá condições de tentar uma série de passes à
sua escolha e organizá-los numa sequência que faça sentido em vez de
apelar para os passes como uma forma de se defender. Se o touro já lutou
antes, ele vai mirar o homem, vai retalhar o pano tentando acertar o
homem e vai controlar todo o perigo sozinho, fazendo o homem recuar e
colocando-o numa posição defensiva, tornando impossível qualquer
sequência de passes e acabando com o brilho da luta.
A tourada se desenvolveu e se organizou de tal forma que o touro, com
tempo limitado na arena e sem nunca ter visto um homem desprovido de
montaria, aprende a desconfiar de todos os artifícios que usam contra ele
justamente no ápice do perigo que enfrenta, no momento do sacrifício. O
touro aprende tudo tão rápido na arena que, se a tourada for arrastada,
mal executada ou estendida por mais dez minutos, ele se torna quase
impossível de matar pelos meios previstos nas regras do espetáculo. É por
isso que os toureiros praticam e treinam com as fêmeas do touro e, dizem
os toureiros, elas se tornam tão espertas depois de algumas sessões que são
capazes de falar grego e latim. Depois de educadas, elas vão para as arenas
lutar contra amadores; às vezes com os chifres nus, às vezes com as pontas
cobertas por uma bola de couro, elas entram na arena rápido e são tão
ágeis como um cervo para praticar com os amadores e suas capas e com
todo tipo de aspirante a toureiro nas capeas; para arremessar, rasgar,
chifrar, perseguir e apavorar esses amadores até que, quando as vacas se
cansam, deixam que os bois entrem na arena e levem as vacas para
descansar nos currais até a próxima apresentação. As vacas bravas, ou
vaquillas, parecem gostar dessas apresentações. Elas não são aguilhoadas,
nenhuma divisa é colocada nos seus ombros, elas não precisam ser
provocadas para atacar e parecem gostar de atacar e arremessar homens
tanto quanto um galo de briga gosta de brigar. Enquanto elas não sofrem
nenhuma punição, a bravura dos touros é julgada pela maneira como eles
se comportam quando punidos.
As manobras necessárias para uma tourada são possíveis graças ao
instinto de manada que permite conduzir touros em grupos de seis ou
mais, ao passo que um touro, destacado da manada, ataca instantânea e
repetidamente qualquer coisa, homem, cavalo ou objeto, ou veículo que se
mova, até que seja morto; e com o uso de bois treinados ou cabestros para
conduzir e arrebanhar touros bravos da mesma forma que elefantes
selvagens são pegos e arrebanhados por elefantes que foram domados. É
uma das coisas mais interessantes da tourada ver os bois trabalharem nas
operações de carregar, separar e conduzir os touros para jaulas de
transporte, e em todas as operações relacionadas à criação, ao transporte e
ao descarregamento de touros bravos.
Antigamente, quando eles ainda não eram transportados em jaulas por
meio de ferrovias ou, agora, com a construção de boas estradas na
Espanha, por meio de caminhões, uma maneira excelente e muito menos
desgastante, os touros eram conduzidos pelas estradas espanholas, com os
touros bravos cercados de bois e a manada protegida por homens a cavalo
carregando lanças para proteção, muito parecidas com as que os picadores
usam, erguendo uma nuvem de poeira à medida que avançavam e fazendo
os habitantes dos vilarejos correrem para suas casas para fechar e trancar
as portas, e olhar pelas janelas para as costas largas e empoeiradas, os
chifres grandes, os olhos rápidos e os focinhos úmidos, os cabestros com
sinos, e as jaquetas curtas, rostos marrons e chapéus cinza de aba larga e
copa alta dos homens que conduzem a manada pelas ruas. Quando os
touros estão juntos, no meio do rebanho, eles ficam em silêncio porque a
sensação do conjunto passa confiança e o instinto de manada faz com que
sigam o líder. Os touros ainda são conduzidos dessa forma nas províncias
sem acesso a ferrovias e há o risco de um deles desmandar ou se desgarrar
do rebanho. Num ano em que estávamos na Espanha, isso aconteceu na
frente da última casa de um pequeno vilarejo nos arredores de Valência. O
touro tropeçou e caiu de joelhos e, quando ele conseguiu se levantar, os
outros já estavam à frente. A primeira coisa que ele viu foi um homem de
pé na
soleira de uma porta aberta. Ele atacou na mesma hora, arrancou o
homem da porta e o girou sobre a cabeça. Ele não viu mais ninguém e
avançou para dentro da casa. No quarto, encontrou uma mulher sentada
numa cadeira de balanço. Ela era velha e não tinha ouvido nenhum
barulho. O touro destruiu a cadeira e matou a mulher. O homem que
tinha sido arrancado da porta voltou para dentro de casa com uma
espingarda para proteger sua esposa, que já estava morta num canto do
quarto. Ele disparou à queima-roupa contra o touro, mas só atingiu o
ombro do animal. O touro atacou e matou o homem, viu um espelho e
atacou, atacou e destruiu um armário alto e antigo, e depois saiu da casa.
Ele desceu um trecho da estrada, encontrou um cavalo puxando uma
carroça, atacou e matou o cavalo e virou a carroça. O condutor ficou
dentro dela. A essa altura, os responsáveis pelo rebanho voltavam pela
estrada, os cavalos erguendo uma nuvem de poeira. Eles trouxeram dois
bois e, assim que os bois se posicionaram cada qual num lado do touro, o
touro se acalmou, baixou a cabeça e trotou, entre os dois bois, na direção
do rebanho.
Na Espanha, touros atacam automóveis e até sobem em trilhos para
enfrentar trens, sem recuar ou sair dos trilhos mesmo depois que o trem já
parou, e quando o trem por fim avança depois de soar o apito muitas
vezes, eles atacam a locomotiva com uma violência cega. Um touro bravo
que seja corajoso de verdade não tem medo de absolutamente nada e, em
diversas cidades da Espanha, durante exibições especiais e brutais, um
touro atacou um elefante repetidas vezes; outros mataram leões e tigres,
atacando despreocupadamente, como se estivessem indo atrás dos
picadores. Um verdadeiro touro bravo não teme coisa nenhuma e, na
minha opinião, é o melhor de todos os animais para se ver em ação ou em
repouso. Numa disputa de velocidade, o touro bravo é mais rápido do que
o cavalo numa distância
de vinte metros, embora o cavalo vença o touro numa distância de
quarenta e cinco metros. O touro consegue girar o corpo quase como se
fosse um gato, ele consegue girar muito mais rápido do que um pônei e,
aos quatro anos, tem força suficiente no pescoço e nos ombros para
levantar um cavalo com um cavaleiro e arremessá-los por sobre o seu
lombo. Muitas vezes vi um touro atacar as tábuas de madeira das barreras,
com três centímetros de espessura, usando os chifres, ou melhor, o chifre,
pois ele usa ou um ou outro, e deixar as tábuas em pedaços, e o museu da
arena em Valência exibe um pesado estribo de ferro com um furo de dez
centímetros de profundidade, resultado da chifrada de um dos touros
criados na fazenda de Don Esteban Hernández. O estribo está em
exposição não porque é uma peça única depois de ter sido perfurada por
um chifre de touro, mas porque, na ocasião, o picador saiu
miraculosamente sem nenhum arranhão do ataque.
Existe um livro, que está fora de catálogo na Espanha, chamado Toros
Celebres, que narra os feitos e as mortes de touros célebres, seguindo a
ordem alfabética dos nomes escolhidos pelos criadores, em trezentas e
vinte e duas páginas. Você pode ler sobre Hechicero, o feiticeiro, da
fazenda de Concha y Sierra, um touro cinza que lutou em Cádiz em 1844
e mandou para o hospital todos os picadores de todos os matadores da
luta, foram pelo menos sete homens, além de ter matado sete cavalos.
Víbora, da fazenda de Don José Bueno, um touro preto que lutou em Vista
Alegra, no dia 9 de agosto de 1908, e que, ao entrar na arena, saltou a
barrera e chifrou o carpinteiro Luis Gonzales, fazendo um ferimento
enorme na coxa direita. O toureiro tentou matar Víbora, não conseguiu e
o touro foi levado de volta para o curral. Esse não é o tipo de coisa que
costuma ser lembrada, a não ser talvez pelo carpinteiro, e Víbora fez parte
do livro mais pelo inusitado do ataque, e pela influência que ele teria sobre
possíveis compradores do livro, e
menos por qualquer motivo duradouro. Se houvesse algum registro do
que teria acontecido com o matador chamado Jaqueta, cujo único feito re-
gistrado na história é esse, antes de não conseguir matar Víbora, talvez o
touro fosse lembrado por algo mais do que a chifrada banal no carpinteiro.
Eu mesmo vi dois carpinteiros serem chifrados e nunca escrevi uma linha
sobre isso.
O touro Zaragoza, criado pela fazenda Lesireas, ao ser levado para a
arena de Moetia, em Portugal, no dia 2 de outubro de 1898, escapou da
jaula, perseguiu e feriu muitas pessoas. Ele perseguiu um menino que
correu para dentro da prefeitura e o touro, indo atrás do menino, subiu as
escadas até o primeiro andar e, de acordo com o livro, causou uma
destruição imensa. É bem provável mesmo.
Comisario, da fazenda de Don Victoriano Ripamilan, um touro
vermelho com olhos de perdiz e chifres enormes, foi o terceiro touro a
lutar em Barcelona, no dia 14 de abril de 1895. Ele saltou a barrera, chegou
às tribunas e, abrindo caminho pelo público, diz o livro, causou estragos e
confusão. O guarda civil Isidro Silva cravou seu sabre no touro e o cabo da
guarda civil Ubaldo Vigueres atirou no touro com sua carabina, a bala
atravessou os músculos do pescoço do touro e se alojou no lado esquerdo
do peito do funcionário da arena Juan Recaseus, que morreu no local. Por
fim, Comisario foi laçado e morto com golpes de punhal.
Nenhum desses eventos faz parte do domínio da tourada pura e simples,
a não ser o primeiro, assim como também não faz parte o episódio de
Huron, um touro da fazenda de Don Antonio Lopez Plata, que lutou
contra um tigre-de-bengala no dia 24 de julho de 1904, na Plaza de San
Sebastin. Eles lutaram numa jaula de aço e o touro derrotou o tigre, mas
acabou destruindo a jaula num de seus ataques e os dois animais saíram
para a arena, no meio do público. A polícia, tentando acabar com o tigre
moribundo e com o touro completamente vivo, disparou várias salvas de
tiros que “causaram ferimentos graves em vários espectadores”. Devo
dizer que, a partir da história dos diversos encontros entre touros e outros
animais, o melhor a fazer é evitar esses espetáculos, ou então vê-los de um
camarote bem alto.
O touro Oficial, da fazenda dos irmãos Arribas, lutou em Cádiz no dia 5
de outubro de 1884, conseguiu chifrar um banderillero, saltou a barrera e
chifrou o picador Chato três vezes, chifrou um guarda civil, quebrou a
perna e três costelas de um guarda municipal, e o braço de um vigia
noturno. Ele seria o animal perfeito para soltar na frente da prefeitura
quando a polícia está batendo em manifestantes. Se ele não tivesse sido
morto, poderia ter dado origem a uma linhagem de touros com aversão a
policiais, o que daria ao populacho a vantagem que eles perderam nas lutas
de rua desde o fim das ruas de pedra. A uma distância pequena, uma pedra
é mais eficaz do que um porrete ou uma espada. O fim das ruas de pedra
foi mais eficaz para impedir a derrocada de governos do que
metralhadoras, bombas de gás lacrimogêneo e pistolas automáticas.
Porque é nos confrontos em que o governo não quer matar os cidadãos,
mas dar pauladas, passar por cima e controlá-los que um governo perde a
autoridade. Qualquer governo que recorra ao uso de metralhadoras contra
os cidadãos vai cair automaticamente. Porretes e cassetetes servem para a
manutenção dos regimes, e não as metralhadoras ou as baionetas, e
enquanto houvesse ruas de pedra, as multidões estariam sempre armadas
para enfrentar a polícia.
O tipo de touro que é lembrado pelos aficionados das touradas e não
pelas multidões que tomam pauladas é Hechicero, cujas façanhas ocorrem
na arena contra toureiros treinados que podem puni-lo. É a diferença entre
brigas de rua, que são infinitamente mais emocionantes, formidáveis e
úteis, mas que não têm lugar aqui, e a conquista de um campeonato de
boxe. Qualquer touro fugitivo pode matar pessoas e destruir propriedades
sem ser punido por isso, mas quando um touro causa alvoroço e confusão
nas tribunas, nesse caso as pessoas enfrentam um perigo muito menor do
que o toureiro no momento do sacrifício, porque um touro, quando está
confuso e no meio de uma multidão, ataca cegamente e não mira os
chifres em ninguém. Um touro que salta pela barrera, a menos que faça
isso enquanto persegue um homem, não é um touro corajoso. Ele é um
touro covarde que está, simplesmente, tentando escapar da arena. O touro
corajoso de verdade aceita a luta, responde a cada convite para lutar, não
luta porque se sente encurralado, ele luta porque quer e essa bravura é
medida, e só pode ser medida, pelo número de vezes que ele, livre e
voluntariamente, sem bater as patas no chão, sem fazer ameaças ou blefar,
aceita combater o picador e, quando a ponta de aço da lança perfura os
músculos do pescoço e do ombro, também pela forma como o touro
resiste ao metal e continua a avançar mesmo sendo castigado de verdade
até derrubar o homem e o cavalo. Um touro corajoso é aquele que, sem
hesitar e sem deixar seu espaço na arena, vai atacar os picadores quatro
vezes, sem se importar com os castigos que recebe, e cada vez vai investir
contra a ponta de aço até que o cavalo e o cavaleiro recuem.
É unicamente pela conduta contra o picador que a bravura de um touro
pode ser julgada e reconhecida, e a bravura do touro está na raiz da
tourada espanhola. A bravura de um touro corajoso de verdade é algo
inacreditável e sobrenatural. Essa bravura não tem a ver só com a
violência, a ferocidade e a coragem causada pelo pânico de um animal
encurralado. Embora o touro seja um animal combativo e sua linhagem
tenha se mantido pura eliminando toda a covardia, quando está em
repouso, ele se torna um dos animais mais quietos e tranquilos. Não são os
touros mais difíceis de lidar que fazem as melhores lutas. Os melhores
touros bravos têm uma característica, chamada de nobreza pelos
espanhóis, que é a parte mais extraordinária das touradas. O touro é um
animal selvagem, seu maior prazer é a luta e ele jamais vai recusar uma
chance de lutar; e no entanto os melhores touros bravos com frequência
reconhecem e sabem quem é o mayoral, ou o vaqueiro responsável por
eles na fazenda e na viagem até a arena, e não se importam de receber
agrados e tapinhas dele. Já vi um touro que, no curral, deixou o vaqueiro
agradar o seu focinho, escová-lo como se fosse um cavalo e até montar no
seu lombo, e depois o touro entrou na arena sem nenhum preparo
preliminar ou aguilhões, atacou os picadores várias vezes, matou cinco
cavalos, fez de tudo para matar os banderilleros e o matador, e foi, na
arena, tão feroz como uma cobra e tão corajoso como uma leoa.
É claro que nem todos os touros são nobres e, para cada um que vira
amigo do mayoral, existem cinquenta que atacam mesmo quando ele está
trazendo comida e por qualquer motivo faz os touros pensarem que estão
sendo desafiados. Nenhum desses touros é nobre. Quando os touros têm
dois anos de idade, os criadores fazem um teste de bravura e os animais
são confrontados por um picador a cavalo num curral fechado ou numa
área aberta da fazenda. No ano anterior, para serem marcados, eles
tiveram de ser derrubados no chão por homens a cavalo equipados com
bastões longos sem ponta, e quando, aos dois anos de idade, eles são
testados contra as lanças com ponta de aço dos picadores, eles já têm
nome e número, e o criador registra as manifestações de coragem dadas
pelos touros. Aqueles que não são corajosos, se o criador for criterioso, são
vendidos como carne. Os outros são registrados de acordo com a bravura
que demonstram para que o criador possa dosar a qualidade dos touros
quando vender uma corrida de seis touros para uma arena qualquer.
A marcação dos touros ocorre da mesma forma como é feita nas
fazendas de gado no oeste dos Estados Unidos, a não ser pelas precauções
necessárias ao separar o bezerro da mãe, a necessidade de não ferir os
chifres nem os olhos e as complicações decorrentes da marcação. Os ferros
de marcação são aquecidos numa grande fogueira e consistem em um
ferro com a marca do criador do touro, que normalmente é uma
combinação de letras ou um escudo, e dez ferros com os números 0, 1, 2,
3, 4, 5, 6, 7, 8, 9. Os ferros de marcação têm um cabo de madeira e as
pontas que ficam no fogo são aquecidas até ficarem vermelhas. Os
bezerros ficam num curral, o fogo e os ferros ficam em outro; e os dois são
conectados por uma porta de vaivém e, quando a porta está aberta, os
vaqueiros conduzem um de cada vez para o curral de marcação, onde são
derrubados e segurados. São necessários quatro ou cinco homens para
segurar um novilho de touro bravo e eles precisam ter cuidado para não
ferir os chifres que estão nascendo, porque um touro com os chifres
danificados jamais será aceito numa tourada oficial e o criador deve então
vendê-lo para uma novillada ou para uma tourada irregular, perdendo algo
como dois terços do provável valor do animal. Além disso, eles devem ter
muito cuidado com os olhos, porque uma haste de palha no olho pode
gerar um defeito de visão que torna o touro inapropriado para a arena.
Quando eles são marcados, um homem segura a cabeça e os outros
seguram as pernas, o corpo e o rabo. A cabeça do novilho é colocada sobre
um saco de palha para protegê-la o máximo possível, as pernas são
amarradas e o rabo é colocado entre as pernas. A marca principal é
colocada do lado direito do traseiro e os números vão ao longo do flanco.
Tanto os machos quanto as fêmeas são numerados. Depois que as marcas
foram colocadas, as orelhas são cortadas ou grampeadas com o símbolo da
fazenda e os pelos na ponta do rabo dos machos são cortados com tesoura
para que cresçam mais longos e sedosos. Depois disso, os homens soltam o
novilho, que levanta furioso, ataca tudo e qualquer coisa que vê até sair
pela porta do curral de marcação. O herradero ou dia de marcação é a
atividade mais barulhenta, confusa e suja das touradas. Quando um
espanhol quer descrever a confusão extrema de uma tourada ruim, ele a
compara com um herradero.
O verdadeiro teste de bravura, a parte dele que acontece dentro de um
curral fechado, é a mais silenciosa das atividades. Touros são testados
quando eles têm dois anos de idade. Com um ano, eles são muito novos e
ainda não têm força suficiente para suportar o teste, e aos três anos eles
são fortes demais, perigosos demais e têm uma boa memória. Eles são
testados em um curral fechado, redondo ou quadrado, munido de
burladeros, ou abrigos de madeira para que os homens com capas possam
se proteger. Esses são toureiros profissionais, ou amadores que foram
convidados para o teste, em troca da oportunidade de praticar com as
fêmeas, e nos treinos com os novilhos eles pegam um de cada vez.
O curral inteiro tem cerca de 27 metros de largura, ou a metade do
tamanho de uma arena grande, os touros de dois anos ficam num curral
adjacente e entram no curral de teste um por vez. Quando eles entram na
arena, um picador, que usa calças de couro e jaqueta curta de vaqueiro,
espera por eles, segurando uma lança de quase quatro metros e com uma
ponta triangular de metal um pouco menor do que aquela usada na luta de
verdade. Ele posiciona o cavalo com as costas viradas para o portão por
onde passou o jovem touro e espera em silêncio. Ninguém abre a boca no
curral e o picador não faz nada para provocar o touro, pois a parte mais
importante do teste é a disposição com que o touro ataca sem ser
provocado ou irritado.
Quando o jovem touro ataca, todo mundo presta atenção em seu estilo;
se ele ataca de uma certa distância, sem bater as patas no chão antes ou
sem nenhum brado preliminar; quando ele avança na direção do cavalo, se
mantém as patas para trás e se impulsiona com força total, se continua
avançando contra o homem e o animal depois que o aço perfurou seu
músculo, usando toda a força das pernas traseiras e de parte das costas; ou
se ele coloca as patas na frente e usa o pescoço para tentar se livrar do
bastão, virando-se rápido e desistindo de atacar quando é castigado. Se ele
não ataca de maneira nenhuma, se o proprietário for criterioso, o touro é
certificado para castração e para o mercado de carne. Se esse for o
veredito, o proprietário diz “buey”, ou boi, em vez de dizer “toro”, que
significa que o touro foi aprovado para lutar numa arena.
Se o touro derruba o cavalo e o homem, e às vezes eles conseguem fazer
isso mesmo com apenas dois anos de idade, os toureiros precisam tirá-los
do curral usando suas capas, mas normalmente não é permitido que os
touros vejam as capas de jeito algum. Nos casos em que eles atacaram o
picador uma vez, ou no máximo duas, e não é possível avaliar o estilo e a
bravura no primeiro ataque, o portão é aberto e os touros podem sair do
curral com liberdade. A forma como aceitam essa liberdade, se mostram
interesse ou relutância, correndo para fora ou parando no portão e
olhando para trás, dispostos a atacar mais uma vez, são indicações valiosas
de como eles vão agir na arena.
A maioria dos criadores não gosta de deixar os touros atacarem mais de
uma vez. Eles pensam que existe um número limitado de lanças que um
touro suporta ao longo da vida. Se ele leva duas ou três durante um teste,
são três a menos que vai suportar na arena, então eles preferem acreditar
na linhagem dos touros e fazem os testes de verdade naqueles que devem
ser usados para reprodução. Eles acreditam que qualquer touro adequado
pode ser um touro excepcional ou uma fêmea muito corajosa, e eles
chamam de “toro” qualquer touro de dois anos com chifres e corpo
perfeitos sem fazer nenhum teste de bravura.
Às vezes, vacas que serão usadas para reprodução são autorizadas a
atacar o picador durante um teste algo como doze ou quinze vezes e
sofrem passes de capa e de muleta feitos pelos toureiros para testar a
qualidade de seu ataque e sua aptidão para seguir o pano. É crucial que as
vacas sejam corajosas e lidem bem com o pano, pois essas são qualidades
que serão herdadas por seus descendentes. Elas devem ser fortes e
robustas, com uma boa estrutura física. Por outro lado, se elas têm chifres
com defeitos, isso não importa, porque não se trata de uma característica
que costuma ser herdada. Uma propensão para chifres curtos pode ser
herdada e produtores preocupados em criar touros que tenham uma boa
aceitação entre os toureiros, de modo que eles escolham os touros criados
por esse produtor quando tiverem chance de especificar num contrato os
animais contra os quais desejam lutar, com frequência tentam diminuir o
comprimento dos chifres ao mínimo permitido pelos representantes do
governo e preferem os chifres voltados para baixo, que ficam numa altura
entre o chão e os joelhos do matador durante um ataque do touro com a
cabeça baixa, em vez de chifres voltados para cima que passam a uma
altura mais perigosa sempre que o touro enfrenta o matador.
Touros para reprodução são testados com o máximo de rigor. Depois de
terem sido usados na reprodução por alguns anos, quando eles são
mandados para a arena, quase sempre é possível reconhecê-los. Eles
parecem saber tudo sobre os picadores. Com frequência, eles atacam
corajosamente, além de serem capazes de usar os chifres para arrancar a
lança da mão do homem, e já vi um touro ignorar completamente o
cavalo e a lança para atingir o homem e arrancá-lo da sela. Se eles foram
testados também com capas e muletas, geralmente se tornam
absolutamente impossíveis de matar, e um toureiro que tenha assinado um
contrato para matar dois “touros novos” tem todo o direito de recusar
esses touros ou de matar esses animais instruídos da melhor maneira que
conseguir. Por lei, todo touro que tenha entrado numa arena deve ser
morto imediatamente após sair dela para evitar que seja usado mais de
uma vez. Mas essa lei nem sempre é respeitada nas províncias e é sempre
desrespeitada nas capeas, ou lutas amadoras, que foram proibidas por lei
há bastante tempo. Um touro que tenha sido testado rigorosamente não
tem as habilidades desses animais criminosos, mas fica óbvio que lutou
antes e qualquer espectador inteligente é capaz de perceber a diferença. No
teste de touros, é importante não confundir a força do touro jovem com
sua bravura. Num único ataque, se a lança escapar, um touro pode ser
forte o suficiente para derrubar o cavaleiro e o cavalo, fazendo um bom
espetáculo disso; por outro lado, se a lança ficar firme, o touro pode ser
contido pelo castigo, deixar de insistir e, por fim, desviar a cabeça. Touros
são testados em currais em Castela, uma região nos arredores de
Salamanca, Navarra e Estremadura, mas na Andaluzia eles são testados em
áreas abertas.
Os que defendem o teste em áreas abertas dizem que a verdadeira
bravura de um touro só pode ser manifestada dessa forma, pois no curral
ele se sente encurralado, e qualquer animal encurralado vai lutar. No
entanto, nos testes em áreas abertas, os touros são perseguidos e
derrubados pelas lanças longas usadas pelos cavaleiros, ou provocados de
alguma forma para atacar o picador, enquanto no curral eles não são
provocados de maneira nenhuma; então os dois jeitos mais ou menos se
equivalem; o teste em área aberta, com uma multidão de convidados a
cavalo, é mais pitoresco, e o método do curral se aproxima mais das
condições reais do touro na arena.
Para alguém que ama touradas, todas as atividades que envolvem a
criação de um touro são fascinantes e, nos testes, você desfruta de comida,
bebida e boas companhias, de situações engraçadas na exibição amadora
que a aristocracia faz com a capa, da surpreendente exibição com a capa
feita por engraxates que sonham em ser toureiros e de dias longos com um
ar fresco de outono, de poeira, couro e cavalos limpos, e de touros grandes
que, a uma distância razoável, parecem enormes no meio do campo,
calmos, confiantes e pesados, e senhores da paisagem.
Touros bravos são criados nas províncias de Navarra, Burgos, Palência,
Logroño, Zaragoza, Valladolid, Zamora, Segóvia, Salamanca, Madri,
Toledo, Albacete, Estremadura e Andaluzia, mas as principais são
Andaluzia, Castela e Salamanca. Os maiores e melhores touros vêm da
Andaluzia e de Castela, e aqueles que são feitos sob medida para os
toureiros vêm de Salamanca. Navarra ainda cria muitos touros, mas de
espécie, tipo e bravura que se deterioraram bastante nos últimos vinte
anos.
Todos os touros bravos podem ser a grosso modo divididos em duas
categorias: aqueles que são concebidos, criados e cultivados para toureiros,
e aqueles que são criados para agradar seus criadores. Salamanca ocupa
um desses extremos e Andaluzia ocupa o outro.
Mas, você diz, tem muito pouco diálogo neste livro. Por que isso? Num
livro escrito por este cidadão, nós queremos que as pessoas conversem;
essa é a única coisa que ele sabe fazer e que agora se recusa a fazer. O
sujeito não é nenhum filósofo, nenhum sábio, não entende de animais,
bebe demais e não usa pontuação direito, e agora largou mão de escrever
diálogos. Alguém tem de dar um jeito nele. Ele só fala de touros. Meu
caro, talvez você tenha razão. Vamos providenciar um pouquinho de
diálogo.
O que a senhora gostaria de perguntar? Existe mais alguma coisa que
queira saber sobre os touros?
Sim, senhor.
O que a senhora gostaria de saber? Eu responderei a todas as suas
perguntas.
É uma coisa difícil de perguntar, senhor.
Não se preocupe com isso; pode ser sincera comigo; como a senhora
seria com um médico, ou com outra mulher. Não tenha receio de
perguntar o que a senhora realmente gostaria de saber.
Eu gostaria de saber sobre a vida amorosa deles.
Pois a senhora veio ao lugar certo.
Então me conte.
Minha senhora, eu vou contar. É um bom assunto. Tem uma
combinação de apelo popular, um pouco de sexo, um mundo de
informações úteis e é um tema ótimo para uma conversa. Minha senhora,
a vida amorosa deles é formidável.
Eu já imaginava, mas o senhor poderia fornecer alguns números?
É para já. Os bezerrinhos nascem nos meses de inverno.
Não era dos bezerrinhos que eu estava falando.
Mas a senhora precisa ter paciência. Tudo isso tem a ver com os
bezerrinhos e, por isso, preciso começar falando deles. Os bezerrinhos
nascem nos três meses de inverno e, usando os dedos para contar os nove
meses no sentido inverso, como alguém casado que calculou nove meses
nos dedos várias vezes, você descobre que, se os bezerros nascem em
dezembro, janeiro e fevereiro, os touros foram levados até as vacas nos
meses de abril, maio e junho, que é, de fato, quando eles costumam ser
levados. Uma boa fazenda tem algo entre duzentas e quatrocentas vacas e
quatro touros reprodutores. Esses touros têm entre três e cinco anos de
idade ou mais. Quando um touro é deixado pela primeira vez com as
vacas, ninguém sabe muito bem como ele vai agir, mas se houvesse um
agente de apostas presente, ele diria que são grandes as chances de o touro
se animar com suas companhias. Mas às vezes um touro não dá a mínima
para as vacas, nem as vacas para o touro, e eles brigam selvagemente
trocando chifradas que podem ser ouvidas a quilômetros de distância. Às
vezes, um touro nessa situação pode mudar de atitude em relação a uma
das vacas, mas é raro. Ou o touro percorre o pasto em silêncio em meio às
vacas para depois trocá-las pela companhia de outros touros que,
destinados para a arena, jamais são deixados com as vacas. Porém, o
resultado mais comum é aquele com as maiores chances descrito pelo
agente de apostas, e um touro consegue reproduzir com mais de
cinquenta vacas, mas se houver vacas demais, eventualmente ele fica fraco
e acaba impotente. Eram esses detalhes que a senhora queria saber ou
estou sendo muito ousado?
Não é o que parece. O senhor lista os fatos com uma sinceridade cristã, e
é tudo muito esclarecedor.
Para mim, é uma satisfação, mas me deixe falar sobre um acontecimento
curioso. O touro é um animal poligâmico, mas às vezes surge um que se
revela monogâmico. Há casos em que as atenções de um touro se
concentram numa das cinquenta vacas que estão no pasto, de tal forma
que ele não dá a mínima para as outras vacas e fica só com a sua, e não há
nada que faça a vaca sair de perto dele. Quando isso acontece, eles tiram a
vaca do meio do rebanho, e, se mesmo assim o touro não assume sua
poligamia, ele é enviado para o grupo de touros de arena.
Que história mais triste essa que o senhor contou.
Minha senhora, todas as histórias, se continuarem por tempo suficiente,
terminam em morte, e nenhum contador de histórias que seja bom no que
faz vai esconder isso da senhora. Isso é particularmente verdade nas
histórias de monogamia, pois o homem que é monogâmico, apesar de
viver uma vida feliz na maior parte do tempo, morre da maneira mais
solitária que existe. Não existe um homem que seja mais solitário na
morte, a não ser o suicida, do que o homem que viveu muitos anos ao
lado de uma boa esposa e depois ficou viúvo dela. Se duas pessoas se
amam, o fim nunca será feliz.
Não sei o que o senhor quer dizer com amor. Da maneira como o
senhor fala, não parece algo bom.
Minha senhora, essa é uma palavra antiga e cada um que faz uso dela
acaba usando até ela não significar mais nada. É uma palavra tão cheia de
sentido quanto uma bexiga é cheia de ar, e as duas se esvaziam rápido. Ela
pode ser perfurada como uma bexiga é perfurada, remendada e enchida
mais uma vez, e se a pessoa nunca experimentou o amor, a palavra não
existe para ela. Todas as pessoas falam dele, mas aquelas que
experimentaram o amor ficam marcadas por ele e eu não gostaria de
continuar falando disso porque amor é o tema de conversa mais ridículo
que existe e somente os tolos ficam falando dele. Prefiro pegar varíola a
me apaixonar por outra mulher enquanto tenho uma mulher que amo.
O que isso tem a ver com os touros?
Nada, minha senhora, nada mesmo, estou só fazendo valer o seu
dinheiro.
Acho o assunto interessante. De que forma uma pessoa fica marcada por
essa coisa ou foi só uma maneira de dizer?
Todos aqueles que experimentam o amor, depois que ele acaba, ficam
marcados por uma sensação de finitude. Digo isso como um naturalista e
não como um romântico.
Isso não me parece agradável.
E não é para ser, minha senhora. É só para fazer valer o seu dinheiro.
Mas, com frequência, o senhor é muito agradável.
Minha senhora, com um pouco de sorte, posso ser agradável mais vezes.
12

Ninguém é capaz de dizer, ao ver um touro bravo no curral, se esse touro


será corajoso na arena, apesar disso, normalmente, quanto mais quieto um
touro for, menos irritado e mais calmo ele parece, e maiores serão as
chances de ele ser corajoso. A razão disso é que, normalmente, quanto
mais corajoso ele for, mais confiante ele é e menos ele blefa. Todos os
supostos sinais externos de perigo que um touro dá, como bater a pata no
chão, ameaçar com os chifres ou mugir, são formas de blefar. São sinais
dados para indicar que o combate pode ser evitado, se possível. O touro
corajoso de verdade não dá sinais antes de atacar, a não ser por fixar os
olhos no inimigo e enrijecer o músculo da corcova, por um espasmo na
orelha e por erguer o rabo ao atacar. Um touro completamente corajoso,
se estiver em perfeitas condições físicas, jamais vai abrir a boca nem deixar
a língua de fora ao longo da luta inteira e, ao fim, com a espada cravada no
corpo, vai na direção do homem enquanto suas pernas permitirem com a
boca bem fechada para segurar o sangue.
O que constitui um touro corajoso é, primeiro, a linhagem da qual ele
descende, que é mantida pura por meio de testes rigorosos nas tientas e,
segundo, sua própria saúde e condição física. Elas não substituem uma
criação cuidadosa, mas a falta delas destrói a bravura natural herdada pelo
animal, torna seu corpo incapaz de responder a elas, ou faz a bravura se
extinguir como um fogo de palha, queimando tudo de uma vez e deixando
o touro oco e vazio. A saúde e as condições físicas são determinadas,
considerando que não houve doenças na fazenda, pelo pasto ou pela água.
São as diferenças de pasto e água em partes diferentes da Espanha,
causadas por variações climáticas, que mudam a composição do solo, e as
distâncias que o gado percorre entre o pasto e a fonte de água que dão
origem a tipos muito diferentes de touro. A Espanha é mais um continente
do que um país no que diz respeito ao clima, pois o clima e a vegetação do
norte, de Navarra, por exemplo, não têm nada em comum com os de
Valência ou da Andaluzia, e nenhum desses três, a não ser por parte de
Navarra, tem qualquer semelhança com o planalto de Castela. Assim os
touros criados nas regiões de Navarra, Andaluzia e Salamanca são muito
diferentes entre si, e isso não se deve ao fato de virem de linhagens
diferentes. Touros navarros são quase uma raça diferente, menores e quase
sempre de uma cor avermelhada, mas quando os criadores de Navarra
decidiram usar para reprodução touros e vacas de uma fazenda andaluza, e
levaram esses animais para Navarra, eles invariavelmente levaram também
os vícios dos touros do norte, nervosismo, indecisão no ataque e falta de
coragem, e perderam seu caráter original sem ganhar nada da velocidade,
da coragem e da elegância que definem as linhagens de Navarra. Os touros
em Navarra estão quase degenerados devido à endogamia da linhagem
navarra original, à venda de suas melhores vacas para a França, muitos
anos atrás, para serem usadas na Course Landaise, uma corrida de touros à
francesa, e à inabilidade das linhagens andaluza e castelhana de conservar
seu biótipo e bravura nos campos do norte apesar dos muitos
experimentos dispendiosos que foram feitos para desenvolver uma nova e
corajosa linhagem navarra. Os melhores touros bravos vêm da Andaluzia,
Colmenar, Salamanca e, excepcionalmente, de Portugal. Os touros mais
emblemáticos vêm da Andaluzia. As espécies andaluzas foram levadas para
Salamanca e desvirtuadas por terem seus tamanhos diminuídos e seus
chifres encurtados a fim de agradar os toureiros. Salamanca é uma
província ideal para a criação de touros. O pasto e a água são bons e os
touros da região são vendidos com menos de quatro anos de idade e, para
fazer os touros parecerem maiores e mais velhos, eles quase sempre são
alimentados por um tempo com cereais, o que faz os animais
desenvolverem um tamanho que é falso, cobre a musculatura natural com
gordura, dá a eles uma aparência de bem-estar que é falsa, faz os touros
perderem o fôlego e se cansarem mais rápido. Muitos touros de
Salamanca, se enfrentados com quatro anos e meio ou cinco anos, tendo
então o tamanho natural e não precisando de cereais para atingir o peso
exigido pelo governo, com um ano a mais no campo e a maturidade que
resulta disso, seriam os touros bravos ideais a não ser pela tendência que
eles têm de perder a determinação e a bravura quando passam dos quatro
anos. Às vezes, você vê uma corrida dessas em Madri, mas com a
publicidade que eles recebem de um lote esplêndido de touros e com a
conivência dos toureiros, os mesmos criadores que mandaram uma
corrida perfeita para a capital acabam vendendo quinze ou vinte corridas
nas províncias numa mesma temporada, todas feitas de touros abaixo com
a idade mínima, entupidos de cereais para que pareçam maiores do que
são, touros que representam o mínimo de perigo por serem inexperientes
no uso dos chifres e que, ao privar o espetáculo daquilo que faz parte de
sua essência, o verdadeiro touro bravo, contribuem de todas as formas
possíveis para a decadência das touradas.
O terceiro fator determinante para um touro, depois da criação e das
condições físicas, é a idade. Se qualquer um desses três fatores não for
respeitado, não é possível ter um touro bravo que seja completo. Um
touro não se torna adulto antes de completar quatro anos. É verdade que,
depois do terceiro ano, ele parece adulto, mas não é. A maturidade dá ao
touro força, resistência e, acima de tudo, conhecimento. O conhecimento
de um touro é formado, principalmente, da memória de experiências, ele
não se esquece de nada; e da noção e da habilidade que mostra ao usar os
chifres. As touradas existem por causa dos chifres e o touro ideal é aquele
com uma memória tão clara quanto possível de qualquer experiência de
tourada, de modo que ele aprenda tudo que precisa aprender na arena;
que se deixe dominar pelo toureiro se o homem fizer um bom trabalho e
que domine o toureiro se o trabalho do homem for ruim ou se ele for um
covarde; e para que esse touro represente o máximo de perigo possível e
seja capaz de testar o conhecimento do toureiro de como lutar
dignamente com um touro, ele precisa saber usar os chifres. Aos quatro
anos, o touro tem esse conhecimento, que ele adquiriu ao lutar no campo,
a única forma possível de adquiri-lo. Dois touros lutando é algo bonito de
se ver. Eles usam os chifres como um espadachim usa sua arma. Eles
atacam, bloqueiam, defendem, desviam e têm uma mira incrível. Quando
ambos sabem usar os chifres, o combate chega ao fim da mesma maneira
como normalmente termina uma luta entre dois boxeadores muito
habilidosos, com todos os golpes perigosos neutralizados, sem
derramamento de sangue e com respeito mútuo. Eles não precisam matar
um ao outro para chegar a uma decisão. O touro que perde é o primeiro a
interromper a luta e se afastar, reconhecendo a superioridade do outro. Vi
touros lutarem vezes seguidas por motivos pequenos que não consegui
decifrar; atacarem de frente, defenderem usando o chifre mestre, o
barulho dos chifres batendo um no outro, os golpes defendidos e
respondidos até que, de repente, um touro se vira e vai embora. No
entanto, uma vez nos currais, depois de uma luta em que um touro se
virou para ir embora, admitindo a derrota, o outro foi atrás e o atacou,
cravando o chifre no flanco do touro derrotado e derrubando-o no chão.
Antes que o touro derrubado pudesse se levantar, o outro estava em cima
dele, cravando o chifre com golpes violentos no pescoço e na cabeça; sem
parar. O touro derrotado conseguiu se levantar uma vez, se posicionou
para atacar de frente, mas na primeira troca de golpes, ele foi atingido no
olho e, depois de outro ataque do adversário, foi ao chão mais uma vez. O
touro o matou sem deixar que ele se levantasse uma segunda vez. Antes da
tourada, dois dias depois, esse mesmo touro matou outro nos currais, mas
quando ele entrou na arena, foi um dos melhores animais que já vi, tanto
para os toureiros quanto para o público. O conhecimento que ele tinha de
como usar os chifres foi adquirido da maneira certa. Ele não tinha vícios
com os chifres, ele simplesmente sabia usá-los, e o matador Félix
Rodríguez dominou o touro, fez um trabalho esplêndido com a capa e a
muleta, e o matou de maneira perfeita.
Um touro de três anos pode até saber usar os chifres, mas é uma exceção.
Ele ainda não tem experiência suficiente. Touros com mais de cinco anos
sabem usar bem demais seus armamentos. Eles têm tanta experiência e
são tão habilidosos com os chifres que colocam o toureiro numa posição
defensiva e impossibilitam qualquer manobra brilhante. Eles rendem lutas
interessantes, mas você precisa ter um conhecimento profundo de
touradas para apreciar o trabalho do matador. Quase todos os touros têm
um chifre de preferência e esse chifre é chamado de chifre mestre. Eles são
destros ou canhotos assim como pessoas são destras ou canhotas, mas não
existe uma predominância de touros destros. Tanto o chifre esquerdo
quanto o direito podem ser o chifre mestre. Você consegue ver qual dos
chifres é o mestre quando os banderilleros fazem o touro correr atrás da
capa no começo da tourada, mas existe outra maneira de descobrir.
Quando um touro que está prestes a atacar, ou quando está irritado,
ocorre um espasmo numa das orelhas e, às vezes, nas duas. A orelha em
que ocorre o espasmo geralmente fica no mesmo lado do chifre que ele
mais usa.
Varia bastante a maneira como os touros usam os chifres; alguns são
chamados de assassinos pela maneira como, ao enfrentar os picadores, eles
não investem com o chifre até terem certeza de que estão numa distância
favorável; e quando eles chegam perto, atacam as partes vulneráveis do
cavalo com a precisão de um punhal. É comum touros como esses terem
atacado vaqueiros ou matado um cavalo antes, quando ainda estavam no
campo, e eles se lembram de como fazer. Eles não atacam a distância nem
tentam derrubar o cavalo e o homem, mas, quando dão um jeito de
chegar bem perto do picador, investindo contra a lança, eles conseguem
encaixar um golpe com os chifres. Por esse motivo, o número de cavalos
mortos por um touro não é indicativo de sua bravura nem de sua força,
pois um touro com um chifre mortal vai matar cavalos, enquanto um
touro mais forte e mais corajoso talvez apenas derrube o cavalo e o
homem e, num ímpeto de violência, raramente mire com o chifre.
É quase certo que um touro que tenha chifrado um homem será capaz
de chifrar de novo. Muitos matadores que foram chifrados e mortos na
arena foram pegos e arremessados antes pelo mesmo touro que os matou.
É claro que as chifradas repetidas dentro de uma mesma tourada se devem
ao fato de o homem estar grogue, sem agilidade ou capacidade de julgar a
distância depois do primeiro golpe, mas também é verdade que um touro
que tenha descoberto o homem por trás do pano, ou que tenha sido alvo
de um par de banderillas, vai repetir o procedimento que usou para pegar
o toureiro. Ele vai dar um golpe súbito com a cabeça enquanto passa pelo
homem perseguindo a capa ou a muleta, ou vai frear no meio do ataque,
ou dar uma guinada para desviar do pano e acertar o homem com o chifre,
ou repetir qualquer ato que tenha funcionado para pegar o homem na
primeira vez. De maneira similar, existem certas linhagens de touros em
que a habilidade de aprender rápido na arena é bastante desenvolvida. Esse
tipo de touro deve ser enfrentado e sacrificado o mais rápido possível e o
homem deve se expor o mínimo possível, porque os animais aprendem
numa velocidade maior do que a progressão normal da luta e se tornam
exageradamente difíceis de combater e matar.
Um exemplo de touros assim são os de uma casta antiga de touros
bravos criados pelos filhos de Don Eduardo Miura, de Sevilha, embora os
filhos desse criador de touros extremamente criterioso tenham tentado
criar touros que fossem menos perigosos e mais adequados para os
toureiros ao fazer cruzamentos com touros da linhagem Vista Hermosa, a
mais nobre, corajosa e honesta de todas as linhagens, e foram bem-
sucedidos em entregar touros imponentes fisicamente, nos chifres e em
todas as outras características do antigo Miura assassino, mas sem a
ferocidade e a inteligência que fez dessa raça uma maldição para todos os
toureiros. Existe uma raça de touros que tem o sangue, a estatura, a força
e a agressividade do antigo Miura, e ela é criada em Portugal por Don José
Palha, e se você alguma vez for a uma luta com um desses animais, vai ver
um touro feroz, poderoso e perigoso. Dizem que a fazenda de Palha onde
os touros adultos pastam fica a doze quilômetros da água. Quem me
contou isso foi o primo de Palha, mas nunca fui confirmar essa
informação.
Assim como certas linhagens são de touros particularmente estúpidos e
corajosos, e outras são de touros inteligentes e corajosos, outras ainda têm
características diferentes, que podem ser muito específicas e mesmo assim
estar presentes na maioria dos touros dessa raça. Os touros criados pelo
duque de Veragua eram exemplos disso. No início do século e ao longo de
anos, eles estavam entre os mais corajosos, fortes, rápidos e bonitos touros
da Península. Mas, vinte anos depois, as características que pareciam sutis
se tornaram dominantes em toda a linhagem. Quando eles eram touros
quase perfeitos, uma de suas primeiras características era uma velocidade
enorme no primeiro terço da luta, que deixava o touro sem fôlego e lento
no fim. Outra característica era que, uma vez que um Veragua conseguisse
chifrar um homem ou um cavalo, ele não pararia de atacar até que
destruísse a vítima por completo; mas eles eram muito corajosos,
dispostos a atacar e seguiam bem a capa e a muleta. Em vinte anos, a
linhagem perdeu quase todas as qualidades originais a não ser a
velocidade, enquanto a tendência de se cansarem e adotarem uma postura
pesada à medida que a luta avança se tornou tão preponderante que um
touro Veragua ficava quase morto em pé depois do primeiro contato com
os picadores. A tendência de insistir num ataque se tornou muito
exacerbada, mas a velocidade, a força e a bravura eram mínimas. Dessa
forma, ótimas linhagens de touros acabam perdendo o valor para uma
luta, apesar dos cuidados e dos esforços do criador. Ele vai tentar cruzar
com outras linhagens, única solução possível, e isso às vezes funciona e
assim surge uma nova boa linhagem, mas com frequência a linhagem se
desintegra ainda mais rápido, perdendo todas as qualidades que tinha.
Um criador de touros inescrupuloso pode comprar os touros de uma boa
raça e lucrar com sua reputação de bravura e boas apresentações
vendendo como touro qualquer coisa que tenha chifres e não seja uma
vaca, destruindo assim o bom nome dessa raça em troca de uma certa
quantia de dinheiro em poucos anos. Ele não vai destruir a importância da
raça desde que o sangue se mantenha bom e os touros tenham pasto para
comer e água para beber, ambos de qualidade boa. Um criador
escrupuloso pode pegar os mesmos touros e fazer testes cuidadosos a fim
de vender para as lutas somente os touros que sejam corajosos,
recuperando a raça em pouco tempo. Mas quando afina o sangue
responsável pela reputação da raça, e defeitos que eram características
secundárias se tornam dominantes, então uma raça, a não ser por um ou
outro touro bom que seja produzido eventualmente, está acabada a menos
que seja recuperada com um perigoso cruzamento bem-sucedido.
Presenciei o derradeiro touro bom, a rápida decadência e o fim da raça
Veragua, e foi triste de ver. Por fim, o atual duque vendeu os touros e os
novos proprietários estão tentando recuperar a raça de novo.
Touros mestiços ou touros em que há um pouco do sangue do touro
bravo, chamados de moruchos em espanhol, são quase sempre corajosos
quando jovens, exibindo as melhores características da raça brava, mas à
medida que ficam adultos, perdem a bravura e a classe e se tornam
totalmente inadequados para a arena. Essa perda de bravura e classe na
idade adulta é uma característica de todos os touros em que a raça brava é
misturada com sangue comum e é a principal dificuldade enfrentada pelos
criadores de Salamanca. Lá, não é o resultado da criação mestiça, mas sim
uma característica que parece inerente a touros que foram criados e que
pastaram naquela região. Como consequência, se o criador em Salamanca
deseja vender seus touros no ápice da bravura, ele precisa vendê-los jovens.
Mais do que qualquer outra coisa, foram esses touros imaturos que
prejudicaram as touradas de todas as formas possíveis.
As raças que fornecem hoje os melhores touros que existem, de modo
direto ou por meio de vários cruzamentos, são as de Vasquez, Cabrera,
Vista Hermosa, Saavedra, Lesaca e Ibarra.
Hoje, os criadores que fornecem os melhores touros são os filhos de
Pablo Romero, de Sevilla; o conde de Santa Coloma, de Madri; o conde de
la Corte, de Badajoz; Dona Concepción de la Concha y Sierra, de Sevilha,
filha da famosa viúva de Concha y Sierra; Dona Carmen de Federico, de
Madri, atual proprietária da raça Murube; os filhos de Don Eduardo
Miura, de Sevilha; o marquês de Villamarta, de Sevilha; Don Argimiro
Perez Tabernero, Don Gracialano Perez Tabernero e Don Antonio Perez
Tabernero, todos de Salamanca; Don Francisco Sanchez de Coquilla, na
província de Salamanca; Don Florentino Sotomayor, de Córdoba; Don José
Pereira Palha, de Villafranca de Xifra, em Portugal; a viúva de Don Félix
Gómez, de Colmenar Viejo; Dona Enriqueta de la Cova, de Sevilha; Don
Félix Moreno Ardanuy, de Sevilha; o marquês de Albayda, de Madri; e Don
Julian Fernández Martínez, de Colmenar Viejo, que é proprietário da raça
de Don Vicente Martínez.
Não há uma linha de diálogo neste capítulo, minha senhora, ainda assim
chegamos ao fim. Sinto muito.
Pode ter certeza de que eu sinto mais.
A senhora gostaria do quê? Mais verdades fundamentais sobre as paixões
da raça? Uma diatribe contra doenças venéreas? Algumas ideias
inteligentes sobre a morte e a decomposição? Ou a senhora gostaria de
ouvir o autor falar sobre a experiência que teve na infância com um porco-
espinho nos condados de Emmett e Charlevoix, no estado do Michigan?
Por favor, prefiro que o senhor não fale mais de animais hoje.
E o que a senhora acha de um daqueles sermões sobre a vida e a morte
que fazem a alegria de qualquer autor?
Também não sei se isso me interessa. O senhor não teria alguma coisa
para me contar que fosse divertida e, apesar disso, instrutiva? Não estou
nos meus melhores dias.
Tenho a coisa perfeita para a senhora. Não é um texto sobre animais
selvagens nem touros. É escrito de maneira acessível, como se Whittier
tivesse criado um Snow-Bound para os nossos tempos, e no fim ele é
simplesmente cheio de diálogos.
Se tem diálogos, eu gostaria de ler.
Fique à vontade, o texto se chama:
Senhorinha: Não gostei do título.
Autor: Eu não disse que a senhora iria gostar. A senhora pode muito bem
não gostar de nada no texto. Mas aqui está:
UMA HISTÓRIA NATURAL DOS MORTOS

Minha impressão é de que a guerra tem sido ignorada como um campo


fértil para as observações de um naturalista. Temos relatos cativantes e
consistentes feitos pelo falecido W. H. Hudson sobre a fauna e a flora da
Patagônia; o reverendo Gilbert White escreveu de maneira muito
interessante sobre o Hoopoe em suas visitas ocasionais e nada triviais a
Selborne; e o bispo Stanley nos deu uma valiosa, porém popular, História
familiar dos pássaros. Será que não podemos fornecer ao leitor alguns fatos
interessantes e lógicos a respeito dos mortos? Espero que sim.
Quando aquele persistente viajante Mungo Park, a certa altura de sua
trajetória, estava quase perdendo os sentidos no vasto território selvagem
de um deserto africano, sozinho e nu, achando que seus dias estavam
contados e com a impressão de que não havia mais nada para fazer a não
ser deitar e morrer, ele reparou numa florzinha de beleza extraordinária.
“Embora a planta toda”, diz ele, “não fosse maior do que um dos meus
dedos, eu não conseguia contemplar a configuração delicada das raízes,
das folhas e dos brotos sem admiração. O Ser que plantou, regou e
aperfeiçoou uma coisa que parece ter tão pouca importância nessa parte
tenebrosa do mundo pode considerar irrelevante a situação e o sofrimento
de uma criatura feita à Sua imagem e semelhança? Certamente, não.
Reflexões como essa me impedem de entrar em desespero. Reagi e,
ignorando a fome e o cansaço, segui viagem certo de que a ajuda viria; e
não me decepcionei.”
Com disposição tanto para admirar quanto para imaginar, como diz o
bispo Stanley, não é possível estudar qualquer ramo da História Natural
sem reforçar a fé, o amor e a esperança de que nós também precisamos,
cada um de nós, para seguir nossa jornada no território selvagem da vida.
Portanto, vejamos que tipo de inspiração podemos ter com os mortos.
Numa guerra, normalmente os mortos são os machos da espécie
humana, embora isso não seja verdade com outros animais, e com
frequência entre os cavalos mortos vejo várias éguas. Outro aspecto
interessante da guerra é que somente nela o naturalista tem a
oportunidade de observar as mulas mortas. Em vinte anos de observação
na vida civil, nunca vi uma mula morta e comecei a me perguntar se esses
animais eram mesmo mortais. Em raras ocasiões, vi o que pareciam ser
mulas mortas e que, mais de perto, eram na verdade criaturas vivas que
pareciam mortas, mas estavam apenas em repouso. Porém, na guerra,
esses animais sucumbem da mesma maneira que os cavalos mais comuns e
menos resistentes.
Senhorinha: Mas você disse que o texto não era sobre animais.
Autor: Logo ele muda de assunto. Tenha paciência, sim? É muito difícil
escrever desse jeito.
A maior parte das mulas que encontrei mortas estava ao longo de
estradas montanhosas ou caídas na base de declives acentuados, onde elas
foram empurradas para liberar a estrada. A visão desses animais fazia
sentido nas montanhas, onde se está acostumado à sua presença e parecia
algo menos incongruente do que o ocorrido em Smyrna, onde os gregos
quebraram as pernas de todos os animais de carga e os empurraram do
cais para que se afogassem na água rasa. As mulas e os cavalos com as
pernas quebradas que se afogaram na água rasa pediam um quadro de
Goya. No entanto, ao pé da letra, não se pode dizer que pediam um
quadro de Goya porque existiu apenas um Goya, morto há bastante
tempo, e é extremamente improvável que esses animais, caso fossem
capazes de pedir qualquer coisa, pedissem uma representação pictórica do
seu sofrimento, mas, se eles fossem articulados, é mais provável que
pedissem para alguém acabar com seu sofrimento.
Senhorinha: O senhor escreveu sobre essas mulas antes.
Autor: Eu sei e sinto muito. Pare de me interromper. Não vou escrever
sobre elas de novo. Prometo.
No que diz respeito ao sexo dos mortos, é fato que a pessoa se acostuma
tanto a ver homens mortos na guerra que fica muito chocada quando vê
uma mulher morta. A primeira vez que vi uma inversão desses papéis foi
depois da explosão de uma fábrica de munição que ficava numa zona rural,
perto de Milão, na Itália. Fomos até o local do desastre em caminhões que
viajavam por uma estrada ladeada por valas repletas de vidas
microscópicas e por álamos que eu não conseguia enxergar direito por
causa das imensas nuvens de poeira criadas pelos caminhões. No local
onde ficava a fábrica de munição, alguns foram direcionados para
patrulhar os estoques enormes de munição que por algum motivo não
explodiram, enquanto outros foram colocados para apagar um fogo que
consumia a grama de um campo adjacente, com as tarefas concluídas,
recebemos a ordem de vasculhar os arredores em busca de corpos.
Encontramos uma boa quantidade deles e os carregamos para um
mortuário improvisado e, devo admitir que, sinceramente, foi um choque
descobrir que esses mortos eram mulheres ao invés de homens. Naquela
época, as mulheres ainda não tinham começado a usar o cabelo curto,
como fizeram depois por vários anos nos Estados Unidos e na Europa, e o
mais perturbador, talvez por ser mais incomum, foi encontrar cabelos
compridos e, mais perturbador ainda, dar por falta deles. Lembro que,
depois de uma busca exaustiva pelos corpos, começamos a recolher os
fragmentos dos corpos. Muitos foram tirados de uma cerca pesada de
arame farpado que protegia a fábrica e, dos pedaços de cerca que ainda
existiam, nós coletamos vários desses fragmentos que ilustravam muito
bem a potência dos explosivos. Encontramos muitos fragmentos a uma
distância considerável dos campos, que foram mais longe por serem mais
leves. Na volta para Milão, me lembro de um ou dois de nós discutindo o
ocorrido e concordando que aquilo parecia irreal e que o fato de não haver
feridos impediu que o desastre fosse ainda mais horroroso. Além disso, o
fato de tudo ter sido tão rápido e o trabalho de carregar e lidar com os
corpos ter se revelado não tão desagradável, dadas as circunstâncias,
contribuíram para que a situação tivesse pouco a ver com a experiência de
um campo de batalha. A viagem agradável, apesar da poeira, pelo belo
interior da Lombardia foi também uma compensação pela tarefa
desagradável e, na volta, ao falarmos sobre o que tínhamos visto, todos
concordamos que foi sorte o fogo que havia começado pouco antes de
chegarmos ter sido controlado rápido como foi e antes de atingir os
enormes estoques de munição que não tinham explodido. Concordamos
também que recolher os fragmentos foi um negócio extraordinário; é
incrível como o corpo humano explode em pedaços que não respeitam
nenhuma linha anatômica, mas que se divide de maneira tão aleatória
quanto a fragmentação de um artefato altamente explosivo.
Senhorinha: Isso não tem nada de divertido.
Autor: Então pare de ler. A senhora não é obrigada. Mas, por favor, não
me interrompa.
Para trabalhar com rigor, um naturalista pode delimitar suas observações
a um período específico, e vou usar primeiro o período após a ofensiva
austríaca em junho de 1918, na Itália, como exemplo de quando houve um
número enorme de mortos, forçando uma retirada e mais tarde um
avanço para recuperar a área perdida de modo que as posições depois da
batalha eram as mesmas de antes, a não ser pela presença dos mortos. Até
que o mortos sejam enterrados, a aparência deles muda um pouco a cada
dia. A cor em raças caucasianas vai do branco para o amarelo, depois para
um amarelo-esverdeado e para o preto. Se ficar exposta ao calor por muito
tempo, a carne fica com uma cor semelhante à do carvão ou do alcatrão,
sobretudo nas partes laceradas ou quebradas, e tem um brilho visível que
lembra o alcatrão. Os mortos ficam maiores a cada dia até que, às vezes, se
tornam grandes demais para o uniforme, inflando as roupas até o limite,
como se estivessem prestes a explodir. A circunferência de cada membro
pode aumentar de maneira inacreditável e o rosto fica tão inchado quanto
um balão. Outra coisa surpreendente, além dessa corpulência progressiva,
é a quantidade de papel espalhada ao redor dos mortos. O modo como são
encontrados, antes de se cogitar um enterro, é influenciado pelo lugar que
os bolsos ocupam no uniforme. No exército austríaco, os bolsos ficavam
na parte de trás das calças e os mortos, depois de um tempo, passaram a
cair com os rostos virados para o chão, os dois bolsos arrancados na altura
dos quadris e todos os papéis que estavam nos bolsos espalhados ao redor
deles na grama. O calor, as moscas, a posição dos corpos na grama e a
quantidade de papel espalhada pela grama são as imagens que ficam na
memória. Não é possível se lembrar do cheiro de um campo de batalha
num dia quente. Você consegue lembrar que havia um cheiro, mas não há
nada que se possa fazer para lembrar como ele era. É diferente do cheiro
de uma multidão, que pode surgir de repente quando você está num
bonde e, olhando para o lado, você vê o homem responsável pelo cheiro.
Porém, o outro cheiro é impossível de lembrar, como quando você está
apaixonada; você se lembra de coisas que aconteceram, mas não consegue
se lembrar da sensação.
Senhorinha: Gosto quando o senhor escreve sobre o amor.
Autor: Obrigado, minha senhora.
Muitos se perguntam o que o persistente viajante Mungo Park teria visto
no campo de batalha num dia quente para recuperar a confiança. Havia
sempre papoulas em meio ao trigo no fim de junho e em julho, e as
amoreiras estavam repletas de folhas e era possível ver as ondas de calor
emanando das barricas de armas onde o sol batia depois de atravessar a
peneira de folhas; a terra ganhava um tom amarelo vibrante ao redor dos
buracos onde ficavam as bombas de gás mostarda e era mais comum ver
casas destruídas do que uma que nunca tivesse sido bombardeada, mas
poucos viajantes respirariam profundamente aquele ar do começo do
verão e teriam pensamentos como os de Mungo Park sobre aqueles feitos
à Sua imagem e semelhança.
A primeira coisa que você aprendeu sobre os mortos era que, com
ferimentos graves, eles morriam como animais. Alguns morriam rápido de
um ferimento tão pequeno que parecia incapaz de matar um coelho. Eles
morriam de ferimentos pequenos como coelhos às vezes morrem com três
ou quatro bagos de chumbo que, aparentemente, são incapazes de
atravessar a pele. Outros morriam como gatos, com o crânio perfurado e
fragmentos de metal no cérebro, ficavam vivos por dois dias como gatos
que se escondem no caixote de carvão com uma bala no cérebro e não
morrem até que você corte fora a cabeça deles. Talvez gatos não morram,
dizem que eles têm nove vidas, eu não sei, mas muitos homens morrem
como animais, e não como homens. Eu nunca tinha visto uma morte
natural, como dizem, e culpava a guerra por isso e, assim como o
persistente viajante Mungo Park, eu sabia que havia algo mais, aquele algo
mais que sempre faz falta, até que vi uma morte natural.
A única morte natural que vi, sem contar aquelas causadas por perda de
sangue, que não são tão ruins, foi a morte causada pela gripe espanhola.
Nela, você morre afogado em muco, engasgando, e a forma como você
sabe que o paciente está morto é que, no fim, ele caga na cama. Então o
que quero ver agora é a morte de qualquer um que se autodenomine um
humanista porque um persistente viajante como eu ou como Mungo Park
segue vivendo e talvez viva para ver a morte efetiva de membros da facção
literária e assistir às suas dignas saídas de cena. Nas minhas reflexões
enquanto naturalista, me dei conta de que, apesar de o decoro ser uma
coisa excelente, às vezes é preciso ser indecoroso para dar continuidade à
raça, pois a posição indicada para a procriação é indecorosa, muito
indecorosa, e me dei conta de que talvez seja isto que defina essas pessoas,
ou que definia; elas eram crianças nascidas de um convívio cheio de pudor.
Mas não importa como eles começaram, espero ver o fim de alguns e
especular sobre o que os vermes vão achar de toda aquela esterilidade
preservada; com seus exóticos panfletos malsucedidos e todos os seus
desejos reprimidos.
Senhorinha: Essa é uma bela frase sobre desejo.
Autor: Eu sei. Ela veio de Andrew Marvell. Aprendi a fazer isso lendo T.
S. Eliot.
Senhorinha: Os Eliots eram velhos amigos da minha família. Eles tinham
uma madeireira, se não me engano.
Autor: Meu tio se casou com uma garota cujo pai tinha uma madeireira.
Senhorinha: Que interessante.
Ao passo que talvez seja legítimo lidar com esses autodenominados
cidadãos numa história natural dos mortos, muito embora essa designação
possa não significar nada quando este trabalho for publicado, contudo é
injusto para com os outros mortos, que não estavam mortos na juventude
que tinham escolhido, que não eram donos de revista, que com certeza
nunca chegaram a ler uma resenha, que foram vistos num dia quente com
um punhado de vermes no lugar onde antes ficava a boca. Nem sempre o
dia estava quente para os mortos, muitas vezes eles tomavam chuva e
eram lavados por ela, e a terra ficava macia quando eles eram enterrados
na chuva e, às vezes, chovia tanto que a terra virava lama e era levada
pelas águas e era preciso enterrá-los de novo. O mesmo acontecia durante
o inverno nas montanhas, você tinha de colocar os mortos na neve e,
quando a neve derretia na primavera, alguém tinha de enterrá-los
novamente. Eles tinham uns terrenos bonitos para enterrar os mortos nas
montanhas,
a guerra nas montanhas é a mais bonita de todas as guerras, e numa dessas
guerras, num lugar chamado Pocol, eles enterraram um general que levou
um tiro na cabeça, morto por um atirador. É nesse ponto que erram
aqueles escritores que escrevem livros como Generais morrem na cama,
porque esse general morreu numa trincheira cavada na neve, no alto das
montanhas, usando um chapéu de alpini com uma pena de águia e um
buraco na frente menor que a unha do dedo mindinho e um buraco atrás
do tamanho de um punho, que dava para colocar seu punho dentro, se
tivesse o punho pequeno, e você ficou com vontade de enfiar o punho pelo
buraco do chapéu, e havia muito sangue na neve. Ele era um general bom
demais, assim como o general von Behr, que comandou as tropas
alpenkorps bavárias na batalha de Caporetto e foi morto em seu veículo
corporativo pela retaguarda italiana enquanto ia para Udine à frente de
suas tropas, e os títulos de livros assim deveriam ser Generais geralmente
morrem na cama, se você se preocupa com um mínimo de exatidão.
Senhorinha: Quando é que a história começa?
Autor: Agora, minha senhora, neste exato momento. A senhora não
perde por esperar.
Nas montanhas, às vezes, a neve também encobria os mortos que
ficavam fora do posto de atendimento no lado da montanha protegido dos
bombardeios. Os mortos eram carregados até uma gruta que tinha sido
cavada na montanha antes que a terra congelasse. Nessa gruta estava um
homem que teve o crânio rachado como se fosse um vaso de flor, embora
os pedaços estivessem unidos pelas membranas e por um curativo bem-
feito que agora estava empapado e endurecido, com a estrutura do cérebro
atingida por um fragmento de metal que passou ali um dia, uma noite e
mais outro dia. Os homens com a maca pediram aos médicos para dar
uma olhada nele. Toda vez que chegavam com a maca, davam uma olhada
nele e, em outras vezes, eles o ouviam respirar. O médico tinha os olhos
vermelhos e os lábios inchados, quase fechados, por causa do gás
lacrimogêneo. Ele viu o homem duas vezes; uma à luz do dia, outra
usando uma lanterna. Isso também teria rendido uma gravura de Goya,
quero dizer, a visita com a lanterna. Depois de ver o homem pela segunda
vez, o médico acreditou nos homens da maca quando disseram que o
homem ainda estava vivo.
“O que vocês querem que eu faça?”, perguntou ele.
Não havia nada que eles quisessem do médico. Mas, depois de um
tempo, eles pediram permissão para carregar o homem até a área dos
feridos.
“Não. Não. Não!”, disse o médico, que estava ocupado. “Qual é o
problema? Vocês têm medo dele?”
“Nós não gostamos de saber que ele está vivo no meio dos mortos.”
“Não se preocupem. Se vocês tirarem o homem daqui, depois vão ter
que carregar o corpo de volta para cá.”
“Isso não seria um problema, capitão.”
“Não”, disse o médico. “Não. Vocês ouviram o que eu disse? Não.”
“Por que você não dá uma superdose de morfina para ele?”, perguntou o
oficial de artilharia que estava esperando para fazer um curativo no braço.
“Tenho coisa melhor para fazer com a morfina. Você ia gostar se eu
fizesse uma operação em você sem morfina? Você tem uma arma. Por que
não dá um tiro nele?”
“Ele já levou um tiro”, disse o oficial. “Se um dos médicos levasse um
tiro, você agiria diferente.”
“Quanta consideração”, disse o médico, gesticulando com um fórceps na
mão. “Quanta consideração. E os meus olhos?”, ele apontou o fórceps na
direção deles. “O que você tem a dizer sobre isso?”
“Gás lacrimogêneo. Que bom que foi só gás lacrimogêneo.”
“Porque você abandonou sua posição”, disse o médico. “Porque você
chegou correndo aqui usando gás lacrimogêneo para fazer todo mundo
evacuar. Você esfrega cebola nos próprios olhos.”
“Você está fora de si. Não entendo de onde vêm esses insultos. Você está
maluco.”
Os homens da maca chegaram.
“Capitão”, disse um deles.
“Saiam daqui!”, disse o médico.
Eles saíram.
“Vou dar um tiro no pobre coitado”, disse o oficial de artilharia. “Eu sou
humano. Não vou deixar o homem sofrer.”
“Dê um tiro nele, então”, disse o médico. “Dê um tiro. Assuma a
responsabilidade. Vou fazer um relatório. Homem ferido executado pelo
tenente de artilharia em posto de atendimento. Dê um tiro nele. Vai,
quero ver.”
“Você não é um ser humano.”
“Meu trabalho é cuidar dos feridos, não matá-los. Matar é com os
senhores da artilharia.”
“Então por que você não cuida dele?”
“Eu cuidei. Fiz tudo o que podia fazer por ele.”
“Por que você não manda o homem para a área dos feridos?”
“Quem é você para questionar o meu trabalho? Você é meu superior,
por acaso? Você está no comando deste posto de atendimento? Faça o
favor de me responder.”
O tenente de artilharia não disse nada. Os outros ao redor eram soldados
e não havia nenhum outro oficial presente.
“Responda”, disse o médico, segurando uma agulha com o fórceps.
“Quero uma resposta.”
“Vá se f***r”, disse o oficial de artilharia.
“Ah”, disse o médico. “Então é assim? Tudo bem. Tudo bem. Vamos
ver.”
O tenente de artilharia ficou de pé e foi andando na direção do médico.
“Vá se f***r”, disse ele. “Você. Sua mãe. Sua irmã…”
O médico arremessou o recipiente cheio de iodo no rosto do oficial de
artilharia. Ainda andando na direção do médico, sem enxergar direito, o
oficial se atrapalhou para sacar a arma. O médico se moveu rápido, chegou
por trás e derrubou o oficial no chão, deu vários chutes e pegou a arma
com as luvas de borracha. O tenente se sentou no chão usando a mão boa
para esfregar os olhos.
“Vou matar você!”, disse ele. “Vou matar você assim que conseguir
enxergar alguma coisa.”
“Quem manda aqui sou eu”, disse o médico. “Está tudo resolvido agora
que você sabe disso. Você não tem como me matar porque sua arma está
comigo. Sargento! Ajudante! Ajudante!”
“O ajudante está na área dos feridos”, disse o sargento.
“Limpe os olhos desse oficial com álcool e água. Ele está com iodo nos
olhos. Me traga a bacia para eu lavar as minhas mãos. Vou atender esse
oficial em seguida.”
“Você não vai encostar em mim.”
“Pode segurá-lo firme. Ele está delirando.”
Um dos homens da maca chegou.
“Capitão.”
“O que você quer?”
“O homem que está no meio dos mortos…”
“Suma daqui.”
“…está morto, capitão. Achei que o senhor gostaria de saber.”
“Está vendo, tenente? Algumas coisas não se discutem. Em tempo de
guerra, algumas coisas não se discutem.”
“Vá se f***r”, disse o tenente de artilharia. Ele ainda não conseguia
enxergar direito. “Você me deixou cego.”
“Isso não é nada”, disse o médico. “Seus olhos já voltam ao normal. Não
é nada. Algumas coisas não se discutem.”
“Ai! Ai! Ai!”, gritou o tenente, de uma hora para outra. “Você me deixou
cego! Você me deixou cego!”
“Pode segurá-lo firme”, disse o médico. “Ele está com muita dor. Segure
bem firme.”
Senhorinha: Mas acaba assim? Você tinha dito que era parecido com
Snow-Bound, de John Greenleaf Whittier.
Minha senhora, me enganei de novo. Nós almejamos tanta coisa e
acabamos sem nada.
Senhorinha: Fique sabendo que gosto do senhor cada vez menos.
Minha senhora, é sempre um erro conhecer um autor.
13

Tudo numa tourada depende da bravura do touro, de sua simplicidade e


de sua falta de experiência. Existem meios de se lutar contra touros
covardes, touros experientes e touros inteligentes, mas o princípio da
tourada, da tourada ideal, tem a ver com a bravura do touro e com um
cérebro livre de qualquer lembrança da arena. É difícil de lutar contra um
touro covarde porque ele, se receber qualquer forma de castigo, não vai
atacar os picadores mais de uma vez, e assim ele não se esforça e não
recebe nenhum castigo e, por consequência, o plano original da tourada
não pode ser seguido, pois o touro chega intacto e veloz ao último terço da
luta, quando ele deveria estar com o ritmo mais lento. Ninguém sabe com
certeza quando um touro covarde vai atacar. Ele vai se afastar do homem
com mais frequência do que investir contra ele, mas não é sempre que ele
age assim, e o espetáculo se torna inviável a menos que o matador tenha a
técnica e a coragem de chegar tão perto do touro que o animal se torna
confiante e segue os instintos em vez de ceder à covardia, e assim, quando
o toureiro consegue fazer o touro atacar algumas vezes, ele o domina e
quase o hipnotiza com a muleta.
O touro covarde subverte a ordem da luta porque ele desrespeita a regra
das três etapas pelas quais um touro deve passar ao longo do encontro
entre o touro e o homem; as três etapas que compõem a sequência da
corrida. Cada ato de uma tourada é tanto o resultado quanto a solução
para cada uma das etapas enfrentadas pelo touro, e quanto mais perto do
normal ele for, menos as circunstâncias terão de ser exageradas e mais
notável será a tourada.
As três fases enfrentadas pelo touro na luta são chamadas em espanhol
de levantado, parado e aplomado. Levantado, ou altivo, é quando o touro
entra na arena de cabeça erguida, ataca sem mirar em nada específico e,
em geral, confiante em sua força, tenta expulsar da arena todos os seus
É
adversários. É nessa hora que o touro é menos perigoso e o toureiro pode
tentar passes com a capa como quando se ajoelha no chão, provoca o
touro com a capa bem aberta na mão esquerda e, quando o touro se
aproxima da capa e baixa a cabeça para chifrá-la, vira a capa com a mão
esquerda em direção à mão direita sem mudar a posição da mão direita, de
modo que o touro, que teria passado à esquerda do homem ajoelhado,
acompanha a virada da capa e passa à direita. Esse passe é chamado de
cambio de rodillas e seria impossível, ou suicida, tentar esse passe quando
o touro aumenta a precisão de seus ataques depois dos castigos que recebe
e da desilusão crescente do animal com seu poder, que é quando ele vai de
levantado a parado.
Quando o touro está parado, sua velocidade diminui e ele mantém
distância. Nesse ponto, ele não ataca livre e selvagemente em qualquer
direção reagindo a qualquer movimento ou distúrbio; ele se sente
desiludido com seu poder de destruir ou expulsar da arena qualquer coisa
que pareça desafiá-lo, seu ardor inicial passou, ele reconhece o inimigo, ou
vê a isca que o inimigo coloca diante do corpo, e morde a isca, atacando de
maneira direta com o propósito de matar e destruir. Só que agora ele mira
com cuidado e ataca num arranque rápido. É comparável com a mudança
de um ataque de cavalaria, em que toda a confiança é depositada no
ímpeto e no choque, e na manutenção do choque, cujo efeito sobre o
indivíduo é imprevisível, para uma ação defensiva da infantaria em que
cada indivíduo dispara contra, supostamente, um objeto específico. É
quando o touro está parado, ou mais lento, e ainda com sua força e sua
vontade, que o toureiro consegue exibir a sua genialidade ao trabalhar
com o touro. Um toureiro pode arriscar e executar algumas suertes, uma
suerte nesse caso sendo qualquer ação deliberada do lutador e não uma
reação que ele tem ao se defender, com um touro que está mais lento, o
que seria impossível com um touro que ainda estivesse levantado, pois um
touro que ainda não tenha sido controlado por meio de castigos não vai
prestar a atenção necessária, estando ainda com toda a sua força e
determinação, ou dar o devido interesse e atacar de maneira consistente a
manobra do toureiro. É a diferença entre jogar cartas com um indivíduo
que, sem dar importância ao jogo e sem nenhum dinheiro apostado,
ignora as regras e torna o jogo impossível, e jogar com outro que conhece
as regras, porque ele as aprendeu na marra, perdendo partidas; e agora,
com todo seu dinheiro e sua vida em jogo, ele dá muita importância ao
jogo e às regras, se sente submetido a elas, e faz o melhor que pode com o
máximo de seriedade. Está a cargo do toureiro fazer o touro entrar no
jogo e impor as regras. O touro não quer jogar, quer apenas matar.
Aplomado é a terceira e última fase enfrentada pelo touro. Quando está
aplomado, ele já está pesado, ele está como chumbo; ele perdeu o fôlego e,
embora a força ainda esteja intacta, a velocidade já era. Ele não anda mais
de cabeça erguida; se provocado, vai atacar; mas quem for provocá-lo
precisa se aproximar cada vez mais. Porque, nesse estado, o touro não quer
atacar, a menos que tenha certeza de seu objetivo, pois ele já foi castigado,
algo que fica óbvio tanto para o touro quanto para o público, em tudo que
tentou até aquele momento; mas ele ainda é extremamente perigoso.
É quando está aplomado que o touro, geralmente, é morto; ainda mais
na tourada moderna. O grau de desgaste, desânimo e cansaço do touro
varia de acordo com o número de vezes que ele atacou e foi castigado
pelos picadores, o número de vezes que ele seguiu as capas, o quanto de
vigor perdeu por causa das banderillas e o efeito que o trabalho do
matador com a muleta teve sobre ele.
Todas as fases tiveram como objetivo prático alterar a forma como o
touro ataca usando a cabeça, a redução de sua velocidade e a correção de
qualquer tendência que o animal tenha de chifrar mais com um lado do
que com o outro. Se essas fases foram executadas de maneira adequada, o
touro chega à fase final da luta com os músculos cansados no enorme
pescoço e assim a cabeça não fica nem muito alta nem muito baixa, com a
velocidade reduzida pela metade em relação ao início da luta, com a
atenção fixada no objeto que é apresentado a ele, e com qualquer
tendência de chifrar mais com um lado do que com outro, mas
especialmente com o chifre direito, corrigida.
Essas são as três principais fases que o touro enfrenta ao longo de uma
luta; elas representam o processo natural de fadiga do touro, se a fadiga
tiver sido induzida da maneira correta. Se o touro não for enfrentado da
maneira correta, ele poderá chegar instável à hora do sacrifício
cabeceando, incapaz de se concentrar num ponto específico, puramente na
defensiva; seu espírito ofensivo, que é tão fundamental para uma boa
tourada, desperdiçado. Assim ele não demonstra disposição para atacar e
se torna completamente inadequado, prejudicando a apresentação do
toureiro. Ao longo da luta, ele pode ser arruinado por um picador que
crava a ponta da lança numa escápula ou mais atrás, no meio da coluna do
touro, e não nos músculos do pescoço, aleijando o touro ou ferindo sua
coluna; ele pode ser arruinado por um banderillero que prega as
banderillas num ferimento causado pelo picador tão fundo que os bastões
chegam a ficar espetados em vez de dependurados no flanco do touro
apenas com as pontas perfurando a pele, que é a maneira certa de colocá-
los; ou o touro pode ser aniquilado pela maneira como os banderilleros
usam as capas com ele, acabando com qualquer chance de uma boa luta.
Se eles fazem o touro se dobrar vezes seguidas, torcendo a espinha dorsal,
forçando os tendões e os músculos das pernas, às vezes apertando a bolsa
escrotal entre as pernas traseiras, eles podem acabar com sua força e com
boa parte de sua bravura, arruinando o animal com as viradas repentinas e
os giros, em vez de fazer o touro se cansar de maneira honesta com os
esforços que faz ao atacar em linha reta. Mas se o touro for enfrentado da
maneira correta, ele vai passar pelas três fases, mesmo que elas sofram
alterações por causa de sua força individual e do seu temperamento, e vai
chegar com a velocidade reduzida, porém intacto, ao último terço da luta,
quando o próprio matador deve usar a muleta para extenuar o touro até
certo ponto antes de sacrificá-lo.
A primeira razão para tornar o touro mais lento é para que se possa usar
a muleta da maneira correta, com o homem planejando e executando os
passes, e aumentando o perigo de acordo com sua vontade, assim ele pode
ir ao ataque em vez de meramente assumir uma posição defensiva contra
o touro e, em segundo lugar, é para que se possa matar o touro com a
espada da maneira correta. A única forma de tornar o touro mais lento
naturalmente, sem que ele perca a bravura e sem machucar a estrutura
muscular do animal, causada pelo mau uso da capa, é fazê-lo investir
contra os cavalos de modo que ele se desgaste ao atacar um objeto que
está ao seu alcance, assim ele acha que sua bravura é recompensada e não
vai se sentir constantemente ludibriado. Um touro que foi bem-sucedido
em atacar os cavalos, e que matou ou feriu um ou mesmo vários
oponentes, segue pelo resto da luta acreditando que seus ataques têm
resultado e que, se ele continuar atacando, vai conseguir chifrar alguma
coisa de novo. Um touro desses permite que o toureiro explore suas
habilidades artísticas assim como um organista consegue tocar um órgão
de tubos que é bombeado para ele. Um órgão de tubos, ou um calíope a
vapor; se as comparações estão se tornando muito específicas é porque,
acredito, esses são os únicos instrumentos que o músico, ao tocá-los, usa
uma força que já existe e simplesmente libera essa força como quiser em
vez de ele mesmo exercer uma força de graus diferentes para criar música.
Assim o órgão de tubos e o calíope a vapor são os únicos instrumentos que
permitem uma comparação entre o músico e o matador. Um touro que
não ataca é como um órgão de tubos que não é bombeado ou um calíope
sem vapor, e o desempenho que um toureiro pode ter com um touro
desses só pode ser comparado em quesitos como genialidade e lucidez
com aquele que seria dado por um organista que tivesse também que
bombear seu órgão de tubos ou por um tocador de calíope que ao mesmo
tempo tivesse que alimentar seu calíope.
Além das fases física e psíquica que todo touro experimenta na arena,
cada touro passa por alterações individuais do estado psíquico ao longo da
tourada. A coisa mais comum e, para mim, a mais interessante, que
acontece com o cérebro do touro é a formação de querencias. Uma
querencia é o lugar que o touro procura naturalmente na arena; é um
lugar de sua preferência. Uma querencia natural é bem marcada e
conhecida, mas uma querencia acidental é mais do que isso. É um lugar
que ao longo da luta o touro adota como lar. Esse lugar, em geral, não
surge rápido, mas se estabelece aos poucos no cérebro do animal à medida
que a tourada se desenrola. Nesse lugar, ele sente que está próximo do
muro e, na sua querencia, ele é incalculavelmente mais perigoso e quase
impossível de matar. Se um toureiro, em vez de tirar o touro da querencia,
tenta matá-lo dentro dela, é quase certo que será chifrado. O motivo disso
é que o touro, quando está na querencia, fica totalmente na defensiva, e
sua chifrada vira uma forma de defesa e não de ataque, uma forma de
contra-ataque e não uma investida, e a velocidade com que o touro
percebe a situação e reage é muito maior no contra-ataque do que no
ataque, pois ele percebe quando o ataque virá e se defende na mesma
hora. Quem ataca precisa dar abertura para o touro e é certo que o contra-
ataque virá tão rápido quanto o ataque, pois existe a abertura necessária,
enquanto o ataque precisa criar essa abertura. No boxe, Gene Tunney era
um exemplo de lutador que preferia contra-atacar; todos os boxeadores
que duraram mais e que foram castigados menos também preferiam
contra-atacar. O touro, quando está na querencia, contra-ataca o golpe da
espada com os chifres assim que percebe o golpe vindo na sua direção,
assim como o boxeador contra-ataca um soco, e muitos homens perderam
a vida, ou sofreram ferimentos graves, porque não atraíram o touro para
fora da querencia antes do sacrifício.
As querencias costumeiras de todos os touros são o portão no fim do
corredor de acesso à arena e o muro da barrera. O primeiro por ser
familiar para o touro; é o último lugar que ele tem guardado na memória;
e o segundo porque serve como algo que protege as costas do animal,
então ele se sente seguro. Essas são as querencias conhecidas e um
toureiro pode usá-las de várias formas. Ele sabe que o touro, no fim de um
passe ou de uma série de passes, provavelmente vai buscar a querencia e
com isso vai prestar pouca ou nenhuma atenção no que está pelo caminho.
Um toureiro pode, portanto, executar um passe ensaiado e escultural
quando o touro cruzar com ele a caminho de seu refúgio. Passes assim
podem ser geniais; o homem inabalável na sua posição, com os pés juntos,
como se não desse importância para o ataque do touro, deixando o touro
inteiro passar por ele sem nenhum movimento, por menor que seja, e sem
recuar, os chifres às vezes passam a milímetros de seu peito; mas para
quem conhece as touradas, esses passes não servem para nada, são apenas
artifícios. Eles só parecem perigosos porque na verdade o touro procura a
querencia e o homem apenas se posicionou perto da linha traçada pelo
animal. É o touro que controla a direção, a velocidade e o objetivo,
portanto, para o verdadeiro apreciador de touradas, essa manobra não tem
valor nenhum, pois na verdadeira tourada, não nessas touradas de circo, o
homem deve controlar o touro na hora do ataque; deve obrigar o animal a
fazer uma curva em vez de ir reto, deve controlar sua direção, e não
simplesmente tirar proveito dos ataques para fazer uma pose enquanto o
touro passa. Os espanhóis dizem que torear es parar, templar y mandar.
Isto é, na tourada de verdade o matador deve ficar parado, deve
determinar a velocidade do touro pelo movimento de seus pulsos e braços
enquanto segura o pano e deve controlar e direcionar o percurso do touro.
Qualquer outra forma de lutar, como fazer passes esculturais no meio da
trajetória natural do touro, não importa o quão brilhantes sejam, não é
tourear de verdade porque é o animal que está no controle, e não o
homem.
Uma querencia acidental que surge para o touro no meio de uma luta
pode ser, e com frequência é, o lugar onde ele foi bem-sucedido de alguma
forma; onde ele matou um cavalo, por exemplo. Essa é a querencia mais
comum de um touro bravo, embora outra querencia bem normal num dia
quente seja qualquer lugar da arena onde a areia tenha sido molhada e
refrescada, geralmente na boca da tubulação subterrânea onde fica a
mangueira que é usada durante o intervalo para assentar a poeira da
arena; é onde o touro sente que a areia está mais fria debaixo dos cascos. O
touro pode também adotar como querencia um lugar onde um cavalo
tenha sido morto numa luta anterior, onde ele consegue sentir o cheiro de
sangue; um lugar onde ele tenha atingido um toureiro, ou qualquer parte
da arena sem nenhum motivo aparente; apenas porque ele se sente em
casa. Você pode ver a ideia de querencia se estabelecendo no cérebro do
touro ao longo da luta. Primeiro, o touro vai para o lugar escolhido com
cautela, depois ele vai mais decidido e, por fim, a menos que o toureiro
tenha notado essa tendência no animal e tenha, deliberadamente, mantido
o touro longe do ponto escolhido, o touro vai para sua querencia sempre
que tiver chance, vai assumir seu lugar com as costas ou com o flanco
voltado para a barrera e vai se recusar a sair. É nesse momento que os
toureiros mais trabalham. O touro deve ser atraído para fora; mas ele está
completamente na defensiva e não vai responder à capa, e vai rasgá-la com
os chifres, se recusando completamente a atacar. A única forma de tirá-lo
da querencia é se aproximar muito, a ponto de o touro ter certeza absoluta
de que pode atingir o homem, e com movimentos curtos da capa,
largando o pano debaixo do focinho do touro, no chão, e dando pequenos
puxões, provocando o animal aos poucos, dentro da querencia. Não é nada
bonito de se ver, é apenas perigoso e, geralmente, os quinze minutos
previstos para o matador matar o touro estão correndo, ele está cada vez
mais irritado, os banderilleros estão se arriscando cada vez mais e o touro
está cada vez mais entrincheirado. Mas se por fim o matador diz,
impaciente, “Está certo, se ele quer morrer ali, que morra ali”, e prossegue
com o sacrifício, essa talvez seja a última coisa de que ele vai se lembrar
até aterrissar no chão com ou sem um ferimento por chifrada. Pois o touro
vai observar o homem à medida que ele se aproxima, não vai tomar
conhecimento da muleta nem da espada, e vai atingir o homem, todas as
vezes. Quando as capas e a muleta são inúteis para fazer o touro sair da
querencia, às vezes há uma tentativa com banderillas de fogo, cravadas no
seu traseiro a partir das barreras, para queimar em brasa até detonar uma
série de explosões com cheiro de pólvora negra e papelão queimado; mas
já vi um touro, com as banderillas explosivas dependuradas, se afastar não
mais do que seis metros da querencia, provocado pelo barulho, e voltar de
repente sem se importar com nenhuma outra tentativa de expulsá-lo dali.
Num caso como esse, o matador tem motivos para matar o touro sem se
colocar em risco. Ele pode começar de um lado do touro e fazer um
semicírculo em torno da cabeça do animal, apunhalando-o enquanto um
banderillero atrai a atenção do animal com a capa, ou ele pode matá-lo de
qualquer outra forma menos eficaz que, no caso de um touro bravo,
significa correr o risco de deixar o animal ser linchado pela multidão. O
melhor a fazer é matar rápido, e não bem, pois um touro que sabe usar os
chifres e que se recusa a sair da querencia é tão perigoso para um homem
quanto uma cascavel e inviabiliza a tourada. Mas o homem não deveria ter
permitido que o touro se apegasse à querencia dessa forma. Ele deveria ter
mantido o touro longe da querencia, atraído o animal para o meio da
arena e dado um fim à sensação de segurança proporcionada pelo muro, e
deveria ter feito isso muito antes do touro escolher uma posição definitiva
na arena. Uma vez, cerca de dez anos atrás, vi uma luta em que todos os
seis touros, um depois do outro, definiram suas querencias, se recusaram a
sair delas e morreram dentro delas. Foi numa corrida com touros da raça
Miura, em Pamplona. Eles eram enormes e eram touros ruanos, com
pernas compridas, altos, com ombros e pescoço enormes, e chifres
formidáveis. Eram os touros mais bonitos que já vi e cada um deles lutou
na defensiva a partir do momento em que entrou na arena. Você não podia
chamá-los de covardes porque eles defendiam sua vidas seriamente,
desesperadamente, sabiamente e violentamente, adotando uma querencia
pouco depois de entrarem na arena e se recusando a sair dela. A corrida
continuou até anoitecer e não houve nenhum momento bonito ou
criativo, foi uma tarde e um início de noite com touros se defendendo de
um homem e um homem tentando matar touros enfrentando riscos e
dificuldades enormes. Foi um evento tão brilhante quanto a batalha de
Passchendaele; com minhas desculpas por traçar uma comparação entre
um espetáculo comercial e uma batalha. Estavam presentes, pela primeira
vez numa tourada, algumas pessoas com que tive conversas profundas
sobre a genialidade, a arte e tudo o mais relacionado à tourada. Falei por
muito tempo, com minha eloquência estimulada por dois ou três absintos
no Café Kutz, e antes de eles irem embora, todos ficaram muito ansiosos
para ver uma tourada e, especificamente, essa tourada. Ninguém veio falar
comigo depois da luta e dois homens, incluindo um sujeito que eu estava
tentando impressionar, passaram muito mal. Gostei demais da tourada
porque aprendi mais sobre a mentalidade do touro que não é covarde, mas
que mesmo assim não ataca, algo raro em touradas, do que eu aprenderia
numa temporada inteira, mas na próxima vez que presenciar uma luta
como essa, espero estar sozinho. Também espero não admirar nem ser
amigo de nenhum dos toureiros envolvidos.
Fora o impacto ruim sobre o cansaço natural do touro causado pelo
abuso do trabalho com a capa, pelo erro ao cravar as banderillas e pelos
danos causados à coluna e às escápulas do touro por um bastão mal
inserido, de propósito ou por falta de habilidade, o touro pode ficar
imprestável pelo restante da luta se o picador que atua sob as ordens do
matador fizer um uso maldoso da lança. São três as principais formas de
prejudicar um touro e acabar com sua força. Submetê-lo demais à capa,
fazê-lo sangrar com um corte causado pelo bastão e feri-lo cravando uma
lança no meio das costas, acertando a espinha dorsal, ou mais para um dos
lados acertando o alto da escápula. Todas essas formas de acabar com um
touro são usadas deliberadamente pelos peões que atuam sob as ordens do
matador, com todos os touros que intimidam o matador. Ele pode ter
medo do touro porque o animal é muito grande, muito rápido ou muito
forte e, se estiver com medo, vai mandar os picadores e os banderilleros
atacarem o touro com tudo. Hoje em dia, a ordem é quase desnecessária, e
os picadores, por uma questão de disciplina, atacam todos os touros com
tudo, a menos que o matador se sinta confiante, queira preservar o animal
para que possa dar o máximo de si e assumir os créditos no fim, e diga
para os seus ajudantes, “Cuidado, não vamos desperdiçar esse touro”. Mas
geralmente os picadores e banderilleros já sabem antes da luta se devem
fazer de tudo para acabar com o touro e ignorar qualquer ordem contrária
dada pelo matador dentro da arena, uma ordem que, frequentemente, é
enfática e entremeada de palavrões, e serve só para animar o público.
Mas fora o estrago deliberado que pode ser causado fisicamente a um
touro, acabando com as chances de uma luta brilhante, com o único
objetivo de entregá-lo meio morto para o matador, um estrago
incalculável pode ser causado mentalmente a um touro por falta de
habilidade dos banderilleros. Quando eles enfrentam o touro com as
banderillas, seu trabalho é cravar os bastões o mais rápido possível, pois
qualquer demora causada por tentativas malsucedidas, oitenta em cem
tentativas malsucedidas têm a ver com covardia, acaba irritando o touro,
deixando-o nervoso e inseguro, quebrando o ritmo da luta e perdendo,
através da experiência que o touro adquire ao perseguir um homem a pé e
desarmado, a vantagem da falta de experiência que foi cuidadosamente
preservada no passado.
O homem que geralmente falha na tentativa de cravar as banderillas
quase sempre tem uns quarenta e poucos, cinquenta anos. Ele é mantido
na cuadrilla como o banderillero confidencial do matador. Ele está lá por
causa de seu conhecimento dos touros, de sua honestidade e de sua
sabedoria. Ele representa o matador na classificação e no sorteio dos
touros, e é seu conselheiro em todas as questões técnicas. Mas porque ele
já passou dos quarenta, suas pernas já não são as mesmas, ele não confia
mais nelas como um meio de se salvar caso o touro decida persegui-lo, e
assim, quando é a vez dele cravar o par de banderillas, se o touro for difícil,
o velho banderillero demonstra uma prudência exagerada que é
indistinguível da covardia. No trabalho malfeito com os bastões, ele destrói
o efeito gerado por sua habilidade e sabedoria com a capa, e as touradas
ganhariam muito se esses senhores sábios, velhos e paternais, porém
decrépitos, fossem proibidos de cravar banderillas e fizessem parte da
cuadrilla apenas pelo trabalho oportuno com as capas e pelo intelecto.
Cravar as banderillas é a parte da tourada que mais exige esforço físico
de um homem. Um ou dois pares podem ser cravados por um homem
que, por ter alguém que prepare o touro para ele enquanto fica esperando,
quase não consegue atravessar a arena correndo. Mas cravá-las com
eficácia, ir atrás do touro, preparar o animal e pregar os bastões
corretamente exigem boas pernas e um bom condicionamento físico. Por
outro lado, um homem pode ser matador e não cravar as banderillas, e
ainda assim lutar contra o touro de maneira correta usando a capa e a
muleta, e matar o animal minimamente bem mesmo que suas pernas
estejam estropiadas e tortas de tanto levar chifradas, e mesmo que ele não
consiga atravessar a arena correndo e que esteja, talvez, nos últimos
estágios de uma tuberculose. Pois um matador não deve correr nunca,
exceto quando crava as banderillas, e ele deve ser capaz de obrigar o touro
a fazer todo o trabalho, até mesmo no golpe da espada. Quando El Gallo
passou dos quarenta anos, alguém perguntou que tipo de exercício ele
fazia, e ele respondeu que fumava charutos cubanos.
“Hombre, exercício para quê? Força para quê? Deixe o exercício para o
touro, deixe a força para o touro! Agora, eu estou com quarenta anos, mas
os touros têm sempre 4 anos, e a metade deles, quase 5.”
Ele foi um grande toureiro e o primeiro a admitir que tinha medo. Antes
de El Gallo, era considerada uma tremenda vergonha admitir o medo, mas
quando El Gallo tinha medo, ele largava a muleta e a espada, e se atirava
atrás da cerca, de cabeça. Um matador não deve correr nunca, mas El
Gallo corria se o touro olhasse para ele de um jeito peculiar. Ele foi o
primeiro a se recusar a matar o touro, se o touro olhasse para ele de um
jeito específico, e quando levavam El Gallo para a cadeia, ele dizia que era
melhor assim, “todos nós, artistas, temos dias ruins. O público vai me
perdoar assim que eu tiver um dia bom”.
Ele fez mais apresentações de despedida do que Patti e agora, perto dos
cinquenta anos, ele ainda se apresenta. Sua primeira despedida oficial foi
em Sevilha. Ele estava muito emocionado e, quando chegou a hora de
dedicar o último touro que mataria como toureiro, ele quis dedicá-lo a seu
velho amigo, Señor Fulano. Ele tirou o chapéu e, com um brilho na careca
bronzeada, disse, “Para ti, Fulano, meu amigo de infância, meu maior
motivador, príncipe dos aficionados, dedico o último touro da minha vida
como toureiro”. Mas assim que ele terminou de falar, El Gallo reconheceu
mais um velho amigo no público, um compositor, e caminhou ao longo da
barrera até ficar de frente para o outro amigo, olhou para o alto com os
olhos marejados e disse, “Para ti, ó excelente amigo, tu que és uma das
glórias no olimpo da música espanhola, dedico o último touro que devo
matar na minha vida como toureiro”. Porém, ao se virar, ele viu Algabeno,
o pai, um dos melhores matadores da Andaluzia, sentado próximo da
barrera, e parou bem na frente dele e disse, “Para ti, velho camarada, que
sempre empunhaste a espada com bravura, que foste o melhor matador de
touros que conheci, dedico o derradeiro touro da minha vida de toureiro e
espero que meu trabalho faça jus à tua grandeza”. Ele se virou todo
imponente e foi na direção do touro, que estava parado encarando-o,
ollhou o touro com cuidado, e se virou para o irmão, Joselito: “Mate o
touro para mim, José. Mate o touro para mim. Não gosto do jeito como
esse touro está me olhando.”
A última vez que vi El Gallo foi em Valência, antes de ele ir para a
América do Sul. Ele parecia uma borboleta muito, muito velha. Aos
quarenta e três anos, ele tinha mais elegância, mais presença e era mais
distinto do qualquer outro toureiro que eu tenha visto, de qualquer idade.
Ele não era um tipo fotogênico. El Gallo jamais apareceu bonito numa
fotografia. Não tinha nada do encanto da juventude; era algo mais
duradouro, e ao vê-lo lutar contra um enorme touro cinza Concha y
Sierra, que ele controlou com a delicadeza de quem toca uma espineta,
você sabia que, se um touro fosse chifrá-lo e matá-lo em algum momento,
e você presenciasse esse momento, você deixaria de ver touradas para
sempre. Joselito morreu para provar que ninguém está seguro na arena e
porque ele estava engordando. Belmonte morreu porque flertava com a
tragédia e não podia culpar ninguém além de si mesmo. Todos os
novilleros que morrem são vítimas da economia, e os melhores amigos
que você faz nessa profissão morrem de doenças ocupacionais, o que é
compreensível e coerente, mas se Rafael El Gallo fosse morto na arena,
isso não seria irônico, não seria trágico, pois não haveria nenhuma
dignidade; El Gallo ficaria amedrontado demais para ser digno; ele nunca
admitiu o risco de morrer e ele nem sequer conseguiu ver o corpo de
Joselito na capela; a morte de El Gallo seria uma infelicidade e provaria
que a tourada é um equívoco, não moral, mas estético. El Gallo foi
importante para as touradas e foi importante para todos nós que o
admiramos; é possível que ele tenha corrompido as touradas, mas não
como Guerrita as corrompeu; certamente, ele é o avô do estilo moderno,
assim como Belmonte é o pai. Ele não é totalmente desonrado como
Cagancho, ele só não tinha muita coragem e era um pouco ingênuo; mas
que toureiro espetacular ele era e como, na verdade, demonstrava
segurança; os mergulhos para trás das barreras eram acessos de pânico em
momentos de perigo, nunca uma necessidade. El Gallo, em pânico, ainda
ficava mais perto do touro do que muitos toureiros com pose de
dominador em meio à tragédia da tourada, e a elegância e a excelência de
seu trabalho eram tão delicadas quanto aquela bela obra mexicana feita de
penas que está guardada no El Escorial. Você sabe que seria um pecado
grave bagunçar a disposição das penas no pescoço de um gavião se elas
nunca mais pudessem voltar ao arranjo original? Tão grave quanto o
pecado de matar El Gallo.
14

O ideal para o toureiro, o que ele sempre espera que saia do toril e entre
na arena, é um touro que ataque numa linha reta perfeita e que faça a
volta sozinho ao fim de cada investida e ataque de novo numa linha reta
perfeita; um touro que ataque em linha reta como se ele estivesse andando
sobre trilhos. Ele espera sempre por esse touro, mas um animal assim
surge uma vez a cada trinta ou quarenta. Os toureiros chamam esses
touros de vaivém, de ida e volta, ou cariles, ou touros sobre trilhos, e
aqueles toureiros que nunca aprenderam a dominar um touro difícil e que
não sabem corrigir os defeitos do animal simplesmente se defendem na
maioria dos casos e esperam pelos touros que atacam em linha reta para
tentar qualquer coisa mais ousada. Esses toureiros são aqueles que nunca
aprenderam a lutar contra touros, que encurtaram o período de
aprendizado porque foram promovidos a matadores depois de uma tarde
extraordinária em Madri, ou de uma série nas províncias, com touros que
atacavam a favor deles. Esses toureiros conhecem a arte, têm
personalidade, quando não a perdem por causa do medo, mas não
dominam o métier e, como a coragem depende da confiança, eles ficam
assustados com frequência simplesmente porque não conhecem sua
profissão direito. Eles não são covardes por natureza, ou jamais teriam se
tornado toureiros, mas eles se tornam covardes por ter de enfrentar touros
difíceis sem ter o conhecimento, a experiência e o treinamento necessários
para lutar com eles, e uma vez que, de cada dez touros que enfrentam, não
chega a ter um que eles considerem ideal para lutar, na maioria das vezes
que aparecem na arena, o trabalho deles será monótono, defensivo,
ignorante, covarde e insatisfatório. Se aparecer um animal que seja como
eles querem, você vai achar esses toureiros maravilhosos, excelentes,
corajosos, criativos e, às vezes, quase inacreditáveis na proximidade e na
tranquilidade com que enfrentam o touro. Mas se, dia após dia, eles
parecerem incapazes de ter um desempenho competente com qualquer
touro que ofereça alguma dificuldade, você vai sentir falta dos bons e
velhos tempos em que havia toureiros diligentemente treinados e desejar
que os artistas e os fenômenos se explodam.
O maior problema da técnica moderna das touradas é ser perfeita
demais. Ela é desempenhada tão próximo do touro, muito lentamente e
completamente sem defesa ou movimento por parte do matador que só
pode ser executada com um touro feito sob medida. Sendo assim, para que
possa ser desempenhada com regularidade e consistência, existem apenas
duas maneiras possíveis. Primeiro, ela pode ser desempenhada por grandes
gênios como Joselito e Belmonte, que conseguem dominar os touros com
técnica, usam seus reflexos excepcionais para se defender e aplicar seus
talentos sempre que possível, ou ela só pode ser desempenhada com o
toureiro à espera do touro perfeito ou com acesso a touros feitos sob
medida. Os toureiros modernos, com exceção de talvez três, ou aguardam
pelo touro perfeito ou fazem o melhor que podem, recusando raças
difíceis ou pedindo touros sob medida.
Lembro de uma corrida de touros da raça Villar em Pamplona, em 1923.
Eles eram touros ideais, os mais corajosos que já vi, rápidos, ferozes, mas
atacavam o tempo todo; eles nunca ficavam na defensiva. Eles eram
grandes, mas não a ponto de serem pesados demais, e eles tinham belos
chifres. A fazenda Villar criava touros esplêndidos, mas os toureiros não
queriam saber deles. Os touros eram um pouquinho esplêndidos demais.
A linhagem foi vendida para outro homem, que se deu o trabalho de
diminuir essas qualidades o suficiente para que os toureiros tivessem
interesse neles. Vi o primeiro resultado disso em 1927. Os touros tinham a
aparência da raça Villar, mas eram menores, tinham chifres mais curtos e
ainda eram bem corajosos. Um ano depois, eles ficaram ainda menores,
com chifres mais curtos e não tão corajosos. No ano passado, eles estavam
um pouquinho menores, com os chifres iguais e sem nenhuma coragem.
Uma esplêndida linhagem original de touros bravos foi arruinada e
liquidada ao se cultivar defeitos, ou fraquezas, para tornar a raça popular
entre os toureiros, a fim de rivalizar com os touros feitos sob medida de
Salamanca.
Depois de frequentar as touradas por um tempo, quando você entende o
potencial delas, e quando elas enfim passam a ter algum valor para você, é
quando se torna necessário assumir uma posição em relação às touradas.
Ou você defende os touros de verdade, a tourada como um todo, e torce
para que surjam bons toureiros que saibam lutar, como por exemplo
Marcial Lalanda, ou torce para que surja um grande toureiro capaz de
quebrar as regras como Belmonte, ou então você aceita as condições
atuais da fiesta, conhece os toureiros e entende o ponto de vista deles; na
vida, há sempre boas desculpas, que são válidas, para cada fracasso; e você
se coloca no lugar do toureiro, tolera os absurdos que eles cometeram
com certos touros, e espera até que eles tenham o touro feito sob medida.
Uma vez que faça isso, você se torna tão culpado quanto qualquer outra
pessoa que vive para destruir as touradas, e você tem mais culpa porque
está financiando essa destruição. Certo, mas o que você pode fazer? Largar
mão das touradas? Você pode, mas corre o risco de machucar o nariz ao
empiná-lo desse jeito. Desde que você tenha algum prazer com a fiesta,
você tem o direito de ir às touradas. Você pode protestar, pode falar, pode
convencer os outros de como eles são idiotas, mas essas coisas são todas
um tanto inúteis de se fazer, embora protestos sejam necessários e úteis na
arena. Mas existe uma coisa que você pode fazer e é saber diferenciar o
que é ruim e o que é bom, dar valor ao que é novo, mas não deixar nada
confundir os seus padrões. Você pode continuar indo às touradas mesmo
quando elas são ruins; mas nunca aplauda o que não é bom. Você deve,
como espectador, mostrar que valoriza o trabalho bom e valioso que é
fundamental para as touradas, mas que não é brilhante. Você deve
valorizar o trabalho bem-feito e o sacrifício correto de um touro que é
impossível de explorar com brilhantismo. Um toureiro não vai ser melhor
do que o seu público por muito tempo. Se o público prefere ver truques
em vez de uma apresentação de verdade, ele vai ver truques. Se surgir um
bom toureiro de verdade, que se mantenha honesto e sincero, que não
recorra a artimanhas ou mistificações, é preciso haver um número
significativo de espectadores que valorize o que ele faz. Se isso soa como
um evento de Devoção Cristã, me deixe dizer que acredito piamente no
arremesso de coisas como almofadas de pesos variados, pedaços de pão,
laranjas, vegetais, pequenos animais mortos de todo tipo incluindo peixes
e, se for preciso, garrafas, desde que não sejam arremessadas contra a
cabeça dos toureiros, e sou a favor de um incêndio ocasional na arena, caso
não se obtenha nenhum efeito com um protesto correto e decente.
Um dos principais males das touradas na Espanha não é o veneno de
críticos que conseguem fazer a fama de um toureiro, ao menos
temporariamente, nos jornais diários de Madri, mas sim o fato de o ponto
de vista desses críticos ser o mesmo do matador, porque eles vivem
basicamente do dinheiro que recebem dos matadores. Em Madri eles não
conseguem distorcer tanto um relato favorecendo o trabalho de um
homem na arena como eles fazem quando mandam despachos de Madri
para as províncias ou quando editam o relato de um correspondente que
está na província, porque o público que lê o relato da luta de Madri, ao
menos uma parte significativa dele, também viu a luta. Mesmo com toda a
sua influência, com todas as suas interpretações, com todas as suas críticas
aos touros e aos toureiros, eles são influenciados pelo ponto de vista do
matador; o matador que mandou o responsável pelas espadas entregar um
envelope contendo cem ou duzentas pesetas, ou mais, e um cartão. O
responsável pelas espadas entrega esses envelopes para os críticos de cada
um dos jornais de Madri e o valor varia de acordo com a importância que
tem o jornal e o crítico. Mesmo os mais honestos e os melhores críticos
recebem um envelope, e não se espera deles que transformem os desastres
de um matador em triunfos, ou que distorçam os relatos a favor dos
toureiros. É apenas um agrado que os matadores fazem a eles. Lembre
que este é um país de honra. Porém, como uma boa parte do seu sustento
vem dos matadores, no fundo, os críticos adotam o ponto de vista deles. É
também uma perspectiva fácil de adotar e ela é também suficiente, pois é o
matador que arrisca a vida, e não o espectador. Mas o espectador precisa
impor as regras, respeitar as referências, evitar abusos e pagar pelas lutas
para que a tourada profissional e os matadores possam existir.
O touro é o que determina se uma fiesta será boa ou ruim. Se o público,
na figura do espectador que paga para ver a tourada, exige bons touros,
touros grandes para tornar a luta uma luta séria, touros entre quatro e
cinco anos de idade para que sejam grandes e fortes o suficiente para
suportar as três fases da luta; não necessariamente touros enormes, touros
gordos ou touros com chifres gigantes, mas animais bons e adultos; assim
os criadores terão de manter os animais no pasto pelo tempo apropriado
antes de vendê-los, e os toureiros terão de aceitar os touros como eles são
e aprender a lutar contra eles. Algumas lutas podem ser bem ruins de ver
no período em que toureiros despreparados estiverem sendo eliminados à
medida que falharem com esses animais, mas, no fim, será pelo bem da
fiesta. O touro é o principal elemento da fiesta e são os touros que os
toureiros muito bem pagos estão sempre tentando sabotar, exigindo
touros menores, mais jovens e com chifres mais curtos. Apenas os
melhores toureiros conseguem impor suas condições. Os toureiros
malsucedidos e os aprendizes precisam aceitar os touros grandes que as
estrelas recusam. É isso que explica o aumento constante no número de
mortos entre os matadores. E quem morre mais são os de talento
medíocre, os iniciantes e os que fracassaram como artistas. Eles são
mortos porque eles tentam, e o público exige que eles tentem, lutar contra
os touros usando as técnicas que os astros das touradas usam. Mas eles são
forçados a executar essas técnicas, se quiserem se sustentar com a tourada,
nos touros recusados pelos astros, ou com os que nunca são oferecidos
para eles porque quase com certeza seriam recusados por serem muito
perigosos e por inviabilizarem uma apresentação brilhante. Isso explica as
chifradas constantes e o desaparecimento de muitos novilleros
promissores, algo que no fim vai produzir toureiros ótimos, se o período
de aprendizado tiver a duração apropriada e se o aprendiz tiver um bom
dinheiro. Um jovem toureiro que tenha aprendido a lutar com animais
jovens e que tenha sido cuidadosamente protegido e só tenha lutado com
touros jovens em toda a sua carreira vai se dar muito mal com touros
grandes. É a mesma diferença entre atirar num alvo e atirar num jogo que
envolva perigo ou num inimigo que também está atirando em você. Mas
um aprendiz que tenha aprendido a lutar contra animais jovens, que tenha
desenvolvido um estilo bom e próprio, e que depois disso aperfeiçoe sua
técnica e aprenda a lutar com touros passando pelo inferno que é enfrentar
os animais enormes, rejeitados, às vezes defeituosos, e extremamente
perigosos que fazem parte das novilladas, isso quando ele não é protegido
por um desses empresários da arena de Madri, vai ter a educação perfeita
para um toureiro se o seu entusiasmo e a sua coragem não forem
arrancados a chifradas.
Manuel Mejías, conhecido como Bienvenida, um toureiro das antigas
que treinou os três filhos usando animais jovens, fazendo deles toureiros
em miniatura, habilidosos e completos; como crianças extraordinárias
trabalhando apenas com bezerros, os dois garotos mais velhos lotavam as
praças de touros da Cidade do México, do sul da França e da América do
Sul, durante o tempo em que foram proibidos de lutar na Espanha por
uma lei que regra as performances de crianças; ele lançou o filho mais
velho, Manolo, como um matador profissional aos dezesseis anos; ele foi
de uma criança que lutava contra animais de dois anos para um matador
profissional, pulando a etapa infernal de ser um novillero. O pai acreditava,
e com razão, que se o filho se apresentasse como matador, não teria de
encarar os touros grandes e perigosos que enfrentaria como novillero; que
ele faria mais dinheiro como um matador profissional, e que se fosse para
ele perder a paixão e a coragem trabalhando com touros adultos, o melhor
seria lidar com isso sendo muito bem pago.
No primeiro ano, o garoto foi um fiasco. A transição entre touros jovens
e touros adultos; a diferença na velocidade do ataque; a responsabilidade;
em resumo, o perigo constante de morte acabou com seu estilo e com sua
elegância de menino. Ele deixava claro que estava resolvendo problemas e
que estava impressionado demais com a responsabilidade que tinha para
fazer uma boa apresentação com os touros. Mas, no segundo ano,
amparado por uma boa educação técnica em touradas, um treinamento
que começou quando tinha quatro anos de idade, um conhecimento
integral de como executar todas as suertes de uma tourada, ele solucionou
o problema dos touros adultos e triunfou em Madri em três eventos
sucessivos, triunfou nas províncias sempre que passava por elas, com
touros de todas as raças, tamanhos e idades. Ele não demonstrava medo
algum dos touros por causa do tamanho do animal, ele sabia como
corrigir os defeitos de um touro e como dominá-los e ele enfrentava os
maiores touros, executava o trabalho com maestria, coisa que os astros
decadentes das touradas só eram capazes de fazer, ou de tentar fazer, com
touros que fossem menores e tivessem menos força, menos idade e chifres
menores. Havia uma coisa que ele não tentava, matar do jeito certo: mas
ele fazia todo o restante direito. Ele foi o badalado messias de 1930, mas
falta uma coisa para que ele possa ser julgado como toureiro: seu primeiro
ferimento grave causado pelos chifres de um touro. Todos os matadores
são chifrados violenta e dolorosamente, quase fatalmente, mais cedo ou
mais tarde em suas carreiras, e até que um matador sofra seu primeiro
ferimento grave, não é possível dizer qual será sua relevância para a
posteridade. Porque mesmo que ele permaneça corajoso, é preciso ver
como os seus reflexos serão afetados. Um homem pode ser tão corajoso
como um touro para enfrentar qualquer perigo e, ainda assim, por causa
do nervosismo, ser incapaz de enfrentar o perigo com frieza. Quando um
toureiro não consegue manter a calma e afastar o perigo assim que a luta
começa, ele se torna incapaz de encarar o touro com calma e passa a
controlar o nervosismo, então esse toureiro chegou ao fim. É triste de ver
um toureiro controlando o nervosismo. O público não quer isso. Ele paga
para ver a tragédia do touro, não a do homem. Joselito sofreu apenas três
chifradas graves e matou mil e quinhentos e cinquenta e sete touros, mas
na quarta vez que foi chifrado, ele foi morto. Belmonte sofria ferimentos
várias vezes ao longo de uma temporada e nenhum desses ferimentos
alterava sua coragem, sua paixão pelas touradas, nem seus reflexos. Espero
que o jovem Bienvenida nunca seja chifrado, mas se ele tiver sido depois da
publicação deste livro e não se importar com o ferimento, então será hora
de falar sobre o legado de Joselito. Pessoalmente, acredito que ele jamais
será o herdeiro de Joselito. Ele tem um estilo bem acabado e uma
facilidade para executar tudo menos o sacrifício, ainda assim, ao vê-lo em
ação, fico com a impressão de estar num teatro. Muito do que ele faz tem
a ver com artifícios, mas são os artifícios mais sutis que existem e são bem
agradáveis de se ver; eles deixam tudo mais leve e divertido. Mas fico
receoso de que o primeiro ferimento grande acabe com a leveza e deixe os
artifícios mais visíveis. Bienvenida, o pai, ficou tão abatido quanto Niño de
la Palma depois de sofrer seu primeiro ferimento, mas na criação de
toureiros talvez a lógica seja a mesma dos touros e a coragem venha da
mãe, enquanto a classe venha do pai. É bem antipático prever uma futura
perda de coragem, mas na última vez que vi o badalado Bienvenida, seu
sorriso estava muito forçado, e tudo que posso dizer agora é que não
acredito nesse messias em particular.
Em 1930, Manolo Bienvenida era o redentor das touradas, mas surgiu
outro em 1931: Domingo Lopez Ortega. Os críticos de Barcelona, que foi
onde se gastou mais dinheiro com seu lançamento, escreveram que Ortega
começava onde Belmonte havia parado; que ele era o melhor de Belmonte
e de Joselito juntos, e que nunca houve ninguém como Ortega em toda a
história das touradas, nenhum homem que tivesse as qualidades de artista,
dominador e assassino. Ortega não impressiona tanto quanto os seus
elogios. Ele tem trinta e dois anos e já se apresenta nos vilarejos de
Castela, sobretudo naqueles próximos de Toledo, faz tempo. Ele vem de
uma cidadezinha com menos de quinhentos habitantes, que fica na região
seca entre Toledo e Aranjuez, chamada Borox, e seu apelido era o Caipira
de Borox. No outono de 1930, ele teve um bom desempenho numa arena
de quinta categoria em Madri, chamada Tetuan de las Vitorias, que tinha
Domingo Gonzales como diretor e promotor, mais conhecido como
Dominguin, um ex-matador. Dominguin levou Ortega para Barcelona e
alugou a arena da cidade depois do fim da temporada para realizar uma
luta com Ortega e um toureiro mexicano chamado Carnicerito de Mexico.
Combatendo touros jovens, ambos tiveram dias bons e lotaram a arena de
Barcelona três vezes sucessivas. Com uma fama habilidosamente
construída por Dominguin durante os meses de inverno, lançando mão de
elaboradas campanhas de imprensa e burburinhos, Ortega estreou em
Barcelona como matador profissional na abertura da temporada de 1931.
Cheguei à Espanha pouco depois da revolução e descobri que, nas mesas
de cafés, ele era tão comentado como os temas políticos. Ele ainda não
tinha lutado em Madri, mas todas as noites os jornais madrilenhos
publicavam notícias sobre seus triunfos nas províncias. Dominguin estava
gastando muito dinheiro em publicidade e Ortega estava cortando orelhas
e rabos em todos os jornais vespertinos. O mais perto que ele chegou de
lutar em Madri foi em Toledo, e encontrei bons aficionados que viram o
desempenho dele e não concordaram com o
que foi publicado a respeito. Todos concordavam que havia certos detalhes
que eram bem exacutados, mas os aficionados mais inteligentes diziam
que não estavam convencidos de seu talento. No dia 30 de maio, eu e
Sidney Franklin, que tinha acabado de chegar a Madri depois de uma
campanha mexicana, fomos para Aranjuez ver o grande fenômeno. Ele foi
péssimo. Marcial Lalanda fez ele de bobo, assim como Vicente Barrera.
Naquele dia, Ortega demonstrou frieza e habilidade para manusear a
capa bem e devagar, sem erguê-la muito, com o touro se mantendo
imponente. Ele mostrou habilidade para alterar a trajetória natural do
touro e fazer o animal se dobrar com um passe de duas mãos com a
muleta que foi muito eficiente como castigo e ele fez um bom passe
usando apenas a mão direita. Usando a espada, ele matou rápido e foi
esperto ao preparar o sacrifício com grande estilo, para depois romper
com a atitude arrogante do preparo e matar sem floreios. De resto, ele era
ignorante, esquisito, desajeitado, não sabia usar a mão esquerda, era
presunçoso e vaidoso. Era muito óbvio que ele tinha lido e acreditado em
tudo que escreveram sobre ele nos jornais.
No que diz respeito à aparência, tinha um físico bom, maduro, mas com
juntas grossas, e parecia feliz consigo mesmo, como se fosse um ator
famoso. Sidney, que sabia ser capaz de fazer uma tourada muito melhor,
reclamou muito de Ortega na volta para casa. Eu queria julgá-lo de
maneira imparcial, sabendo que não se pode avaliar um toureiro a partir
de uma única performance, então prestei atenção nas qualidades e nos
defeitos que ele tinha e mantive minha cabeça aberta.
À noite, quando chegamos ao hotel, os jornais falavam sobre mais um
triunfo de Ortega. Na verdade, fomos vaiados e zombados na última
tourada, mas lemos no Heraldo de Madrid que ele tinha cortado as orelhas
do touro depois de um grande triunfo e saiu da arena carregado nos
ombros da multidão.
Depois, eu o vi em Madri numa apresentação oficial como matador
profissional. Seu desempenho foi idêntico ao de Aranjuez, fora o dom de
matar rápido, que ele tinha perdido. Ele lutou outras duas vezes em Madri
sem mostrar nada que justificasse a propaganda que recebia e, além disso,
ele começou a ter episódios de covardia. Em Pamplona, ele se apresentou
tão mal que chegou a ser revoltante. Ele estava recebendo vinte e três mil
pesetas por luta e tudo o que fazia era absolutamente ignorante, de baixo
nível e vulgar.
Juanito Quintana, um dos maiores aficionados do norte da Espanha,
escreveu para mim enquanto eu estava em Madri falando sobre Ortega,
contando que todos estavam felizes de ter conseguido levá-lo para
Pamplona e sobre o preço que o empresário dele estava cobrando por isso.
Ele estava muito ansioso para vê-lo, e meu relato sobre os desempenhos
tristes do toureiro em Madri e nos arredores pareceu deprimi-lo apenas
por um momento. Depois da primeira vez, ele ficou decepcionado; mas
depois de três vezes, Juanito não aguentava mais ouvir falar de Ortega.
No verão, vi Ortega várias vezes e ele foi bom em apenas uma delas,
mesmo para os seus padrões. Isso aconteceu em Toledo com touros
escolhidos a dedo, que eram tão pequenos e inofensivos que não dava para
levar em conta nada do que ele fazia. Mesmo quando ele se sai bem, ele
não consegue se movimentar direito e lhe falta tranquilidade. O melhor
passe que ele consegue fazer é com duas mãos, usado para encurtar a
trajetória do touro e fazê-lo dobrar o corpo, mas como esse é o melhor
passe que ele faz, é só o que ele faz todas as vezes com todos os touros que
enfrenta, independente de se o touro precisa ser castigado dessa forma ou
não, e consequentemente estraga o animal até o fim da tourada. Ele faz
muito bem um passe com a muleta usando a mão direita, inclinando o
corpo na direção do touro, mas ele não dá continuidade com outros passes
e é incapaz de fazer passes eficazes com a mão esquerda. Ele é muito bom
girando entre os chifres do touro, uma manobra ridícula, e abusa das
vulgaridades que substituem as manobras perigosas da tourada sempre
que nota que o público é ignorante a ponto de aceitá-las. Ele tem muita
coragem, força e saúde, e amigos em quem confio me dizem que ele foi
bom de verdade em Valência, e se ele fosse mais jovem e menos
convencido, sem dúvida se tornaria um matador excelente, bastava
aprender a usar a mão esquerda; ele pode, assim como Robert
Fitzsimmons, romper com todos os padrões de idade e ainda ser um
toureiro, mas ele não tem nada de messias. Eu não queria dedicar tanto
espaço assim para ele, mas como Ortega teve milhares de colunas de
publicidade paga nos jornais, algumas delas muito habilidosas, sei que se
estivesse fora da Espanha e acompanhando as touradas apenas pelos
jornais, ele provavelmente pareceria ser mais importante do que é.
Um toureiro herdou as qualidades de Joselito e perdeu tudo por causa de
uma doença venérea. Outro morreu da outra doença ocupacional
relacionada às touradas, e um terceiro se revelou um covarde no primeiro
ferimento causado por uma chifrada a testar sua coragem. Dos dois novos
messias, Ortega não me convence, nem Bienvenida, mas desejo toda a
sorte para Bienvenida. Ele é um garoto bem treinado, simpático e sem
vaidade, e está enfrentando uma fase ruim.
Senhorinha: O senhor sempre deseja sorte para as pessoas e fala sobre os
erros que elas cometeram, e me parece que suas críticas são muito
maldosas. Meu jovem, como é que o senhor, apesar de não ser um
toureiro, fala tanto de touradas e escreve longamente sobre elas? Por que
não assumiu essa profissão se o senhor gosta tanto dela e a conhece tão
bem?
Minha senhora, experimentei as fases mais simples da tourada, mas não
tive o menor sucesso. Eu era velho demais, pesado demais e desajeitado
demais. Além disso, meu tipo físico não é adequado porque sou pesado em
vez de ser flexível e, dentro da arena, eu não seria nada mais do que um
alvo ou do que um saco de pancadas para o touro.
Senhorinha: O senhor chegou a se machucar? Como é que o senhor ainda
está vivo?
Minha senhora, a ponta dos chifres estava protegida ou cega, caso
contrário eu teria sido rasgado como um cesto de palha.
Senhorinha: Então o senhor lutou contra touros com chifres protegidos.
Achei que o senhor era melhor do que isso.
Dizer que lutei é um exagero, minha senhora. Não cheguei a lutar, fui
mais arremessado por eles de um lado para o outro.
Senhorinha: O senhor teve alguma experiência com touros de chifres
desprotegidos? Chegou a se machucar com eles?
Entrei na arena com touros assim e não me machuquei muito, só saí
com algumas escoriações por causa da minha falta de jeito. Eu era atingido
pelo focinho do touro e agarrava nos chifres igual àquelas imagens que
remetem à Idade da Pedra, e com o mesmo desespero. Isso fez os
espectadores rirem muito.
Senhorinha: E o que o touro fez nessa situação?
Fosse ele forte o suficiente, ele me arremessava longe. Senão, eu era
arrastado por um trecho, com o touro tentando me chifrar o tempo todo,
até que os outros amadores agarravam o rabo dele.
Senhorinha: Houve testemunhas dessas histórias que o senhor está
contando? Ou é tudo invenção de escritor?
Existem milhares de testemunhas, embora muitas possam ter morrido
desde então com lacerações no diafragma ou em outras partes internas do
corpo, causadas por um excesso de gargalhadas.
Senhorinha: Foi por causa disso que o senhor desistiu de seguir a profissão
de toureiro?
Tomei minha decisão depois de considerar a minha incompetência física,
o conselho bem-vindo de amigos e o fato de que se tornou cada vez mais
difícil, à medida que fiquei mais velho, entrar feliz na arena, a não ser
quando tomava três ou quatro doses de absinto, que, apesar de inflamar
minha coragem, distorcia um pouco os meus reflexos.
Senhorinha: Então posso considerar que o senhor abandonou as praças de
touros também como amador?
Minha senhora, nenhuma decisão é irrevogável, mas à medida que
envelheço, sinto que devo me dedicar mais e mais à literatura. Minhas
fontes me dizem que, graças ao bom trabalho de Mr. William Faulkner,
agora os editores publicam qualquer coisa em vez de insistir para você
eliminar as partes boas do seu trabalho, e não vejo a hora de escrever sobre
os dias da minha juventude que passei nos melhores prostíbulos do país
em meio às pessoas mais geniais que conheci. Estou guardando essas
lembranças para escrever sobre elas na minha velhice, quando terei
condições de examiná-las de maneira mais clara, com a ajuda da distância.
Senhorinha: Esse Mr. Faulkner falou bem desses lugares?
Esplendidamente, minha senhora. Mr. Faulkner escreve sobre eles com
admiração. Dos escritores que li nos últimos anos, ele é o que melhor
escreve sobre eles.
Senhorinha: Preciso comprar os livros dele.
Minha senhora, com Faulkner, não tem erro. Além disso, ele é prolífico.
A senhora compra os livros que existem e os novos não param de sair.
Senhorinha: Se eles forem bons como o senhor diz, nunca serão demais.
A senhora tirou as palavras da minha boca.
15

A princípio, a capa era um recurso na tourada para se defender do perigo


do animal. Depois, com a fiesta regularizada, ela passou a servir para fazer
o touro correr ao entrar na arena, para afastar o touro de um picador que
tivesse caído e para posicioná-lo diante do próximo picador a ser atacado
pelo touro, e também para colocá-lo em posição para as banderillas,
colocá-lo em posição para o matador e para distraí-lo quando qualquer
toureiro se encontra numa posição difícil. O objetivo e ponto culminante
da tourada era o golpe final com a espada, a hora da verdade, e a capa era
apenas um acessório usado para fazer o touro correr e que ajudava no
preparo desse desfecho.
Na tourada moderna, a capa se tornou cada vez mais importante e o seu
uso, cada vez mais perigoso, e a hora da verdade, ou o momento crucial, o
sacrifício, passou a ser um negócio bem complicado. O matador é um dos
responsáveis por afastar o touro do picador e de sua montaria, e por
proteger o homem e o cavalo depois do ataque do touro. Esse ato de atrair
o touro para o centro da arena e para longe do homem e do cavalo e, em
seguida, presumidamente, colocá-lo em posição para atacar o próximo
picador é chamado de quite, ou retirada. Os matadores ficam em fila à
esquerda do cavalo e do cavaleiro, e aquele que atraiu o touro para longe
do homem e do cavalo caídos vai para o fim da fila quando ele termina de
fazer o quite. O quite, que se pronuncia quí-te, deixou de ser um mero ato
de defesa para o picador, realizado da forma mais rápida, corajosa e
elegante possível, para se tornar uma obrigação do matador, que o
desempenha depois de ter executado passes com a capa no estilo de sua
preferência, geralmente lançando mão de veronicas, pelo menos quatro
vezes da forma mais próxima, tranquila e perigosa possível. Hoje, um
toureiro é julgado, e pago, muito mais pela habilidade de executar passes
tranquilos com a capa próximo do touro e com calma do que pela
habilidade com a espada. A importância e a demanda crescentes pela
elegância no trabalho com a capa e com a muleta começaram, ou
ganharam força, com Juan Belmonte; as principais mudanças ocorridas
com a tourada moderna são a expectativa e a exigência de que cada
matador execute passes com o touro, realizando uma performance
completa com a capa, nos quites; e a tolerância com o matador que é um
artista com a capa e a muleta, mas péssimo na hora do sacrifício.
Na verdade, o quite como é feito hoje se tornou quase tão decisivo
quanto o sacrifício costumava ser. O perigo é tão real, tão controlado e
calculado pelo homem, e tão visível, que qualquer simulação ou artifício
para acentuar o perigo fica evidente; nos quites modernos, os matadores
rivalizam uns com os outros para ver quem é mais criativo e quem tem
mais controle sobre o touro, quem faz os chifres passarem mais perto da
cintura, e mais lentamente, mantendo o touro dominado e reduzindo sua
velocidade ao fazer a capa varrer o chão com um movimento dos pulsos; a
massa ardente do touro passando pelo homem que olha para baixo, no
ponto em que os chifres do touro quase tocam, e às vezes tocam, suas
coxas, enquanto os ombros do touro tocam o seu peito, sem poder fazer
qualquer movimento para se defender do animal e sem nenhum recurso
para se defender da morte simbolizada pelos chifres, a não ser pelo
movimento lento dos braços e pelo cálculo que faz da distância; esses
passes são melhores do que qualquer trabalho com a capa que era feito no
passado e mais emocionantes do que tudo. É por isso que os toureiros
rezam para ter um touro que ataque em linha reta, para ter um animal que
permita a eles se aproximar dos chifres cada vez mais até que os chifres
realmente encostem no homem, e é o trabalho moderno com a capa,
extremamente bonito, extremamente perigoso e extremamente arrogante,
que manteve as touradas populares e cada vez mais prósperas numa época
em que a decadência era dominante e a capa era a única hora da verdade.
Hoje em dia os matadores são capazes de torear como nunca antes, os
bons pegaram a ideia que Belmonte teve de se posicionar perto do
território do touro, manter a capa baixa e usar só os braços, e a executam
até melhor do que o próprio Belmonte, melhor do que Belmonte se eles
tiverem o touro ideal. Não houve qualquer decadência na tourada no que
diz respeito ao uso da capa. Não houve um renascimento, mas sim uma
melhora generalizada, estável e constante.
Não vou descrever as muitas formas de se usar a capa, a gaonera, a
mariposa, o farol, ou as formas mais antigas, os cambios de rodillas, os
galleos, as serpertinas, com tantos detalhes como descrevi a veronica
porque, quando você nunca viu nenhuma delas antes, uma descrição em
palavras não é suficiente para fazer você identificá-las, diferente do que
acontece com uma fotografia. A fotografia evoluiu tanto que se tornou
irrisório tentar descrever alguma coisa que pode ser comunicada
instantaneamente, bem como estudada, numa imagem. Porém, a veronica
é a pedra de toque no trabalho com a capa. É quando você tem acesso ao
máximo de beleza, perigo e controle. É na veronica que o touro passa com
o corpo inteiro muito perto do homem, e a competência mais valorizada
das touradas está nessas manobras em que o touro passa muito perto do
homem. Quase todos os passes com a capa são variações pitorescas do
mesmo princípio ou são, em maior ou menor grau, artifícios. A única
exceção a essa regra é o quite da mariposa, ou da borboleta, inventado por
Marcial Lalanda. Isso, as fotografias deixam claro, tem mais a ver com os
fundamentos da muleta do que com os da capa. Essa manobra tem valor
quando é executada lentamente e quando as dobras da capa que lembram
as asas de uma borboleta se afastam do touro num movimento suave e não
num ímpeto, enquanto o toureiro recua devagar de um lado para o outro.
Quando é executada da maneira correta, cada movimento lento das asas
da capa é como um passe natural com a muleta e é perigoso igual. Nunca
vi ninguém executar esse movimento tão bem quanto Marcial Lalanda. Os
imitadores, em especial o narigudo, de pernas nervosas e tendões de aço
Vicente Barrera, de Valência, fazem a mariposa arrancando com tudo a
capa do focinho do touro. Existe uma razão para eles não fazerem o
movimento devagar. Se fizerem devagar, correm o risco de morrer.
Originalmente, os quites eram feitos de preferência por meio de largas.
Nessas manobras, a capa ficava totalmente estendida e uma das
extremidades era oferecida ao touro, atraindo a atenção do animal, que
seguia a capa estendida, dobrava o corpo e estacava com um movimento
feito pelo matador, que jogava a capa no ombro e ia embora. Esses
movimentos podiam ser executados com uma elegância enorme. Com
muitas variações possíveis. Largas podiam ser feitas com o homem
ajoelhado e a capa sendo balançada no ar num movimento de serpente,
fazendo assim as serpentinas e outras fantasias que Rafael El Gallo
realizava tão bem. Porém, em todas as largas, o princípio era o de fazer o
touro seguir a capa estendida, dobrar o corpo e estacar com um
movimento da extremidade da capa gerado pelo homem que segura a
extremidade oposta. A vantagem era fazer o corpo dobrar de uma
maneira menos brusca do que nos passes de capa feitos com as duas mãos
e assim manter o animal em condições melhores para atacar durante o ato
final.
Hoje, a quantidade de trabalho com a capa feita apenas pelos matadores
é, claro, muito destrutiva para o touro. Se o objetivo da luta continua
sendo, como era originalmente, preparar o touro da melhor maneira
possível para o sacrifício, o tanto que os matadores usam a capa com as
duas mãos é insustentável. Entretanto, como as touradas progrediram ou
decaíram de modo que agora o sacrifício representa apenas um terço da
luta em vez de ser o objetivo principal, e o trabalho com a capa e o
trabalho com a muleta são outros dois longos terços, os tipos de toureiros
acabaram mudando. É raro, extremamente raro, encontrar um matador
que seja bom no sacrifício do touro e também um grande artista com a
capa e a muleta. É tão raro quanto encontrar um bom boxeador que seja
também um pintor de categoria. Para ser um artista com a capa, para usá-
la da melhor maneira possível, é preciso ter um senso estético
incompatível com o papel de um grande matador. Um grande matador
tem de amar matar. Ele precisa de uma coragem extraordinária e
habilidade para executar duas ações muito diferentes usando as duas mãos
ao mesmo tempo, ações muito mais difíceis do que dar tapinhas na cabeça
com uma das mãos e esfregar a barriga com a outra, ele precisa ter um
senso de honra primitivo e dominante, pois existem muitas formas de
lograr o sacrifício do touro sem matá-lo de maneira humilde; mas acima
de tudo ele precisa matar com prazer. Para a maioria dos matadores que
são artistas, de Rafael El Gallo até Chicuelo, a obrigação de matar parece
quase triste. Eles não são matadores, e sim toureiros, manipuladores da
capa e da muleta com sensibilidade e muita habilidade. Eles não gostam de
matar, eles têm medo de matar e, de cada cem touradas, eles não matam
direito em noventa. As touradas ganharam muito com a arte que eles
desenvolveram e um desses grandes artistas, Juan Belmonte, aprendeu a
matar bem o suficiente. Embora nunca tenha se tornado um grande
matador, ele tinha um instinto natural de matador que pôde ser
desenvolvido e um orgulho tão grande de fazer tudo com perfeição que
por fim se tornou um matador seguro e aceitável depois de ser, por muito
tempo, inadequado. Mas Belmonte sempre teve um instinto animal e não
há nenhum instinto animal nos outros artistas que surgiram na mesma
época, e como eles não conseguem matar de maneira honesta, como eles
seriam expulsos das touradas se tivessem de sacrificar touros do modo
como deveriam ser sacrificados, o público passou a exigir o máximo deles
no trabalho com a capa e a muleta, sem se importar com a morte do touro
no fim, e assim a tourada se transformou.
A senhora deve estar achando todo este texto sobre as touradas
cansativo.
Senhorinha: Não, senhor. De maneira nenhuma, mas minha leitura
avança devagar.
Entendo. Uma explicação técnica não é uma leitura fácil. É como o
manual incompreensível que vem com qualquer brinquedo mecânico.
Senhorinha: Eu não diria que o seu livro não é tão ruim assim.
Obrigado pelo incentivo, mas existe alguma coisa que eu possa fazer
para a senhora não perder o interesse?
Senhorinha: Não vou perder o interesse. É só que às vezes eu fico
cansada.
E existe alguma coisa que eu possa fazer para agradar a senhora?
Senhorinha: O senhor já me agrada.
Obrigado, minha senhora, mas eu estava me referindo ao texto ou à
conversa.
Senhorinha: Bom, como nós paramos mais cedo hoje, por que o senhor
não me conta uma história?
Sobre o quê?
Senhorinha: Sobre qualquer coisa que o senhor queira me contar. Só não
quero mais histórias sobre os mortos. Estou um pouco cansada dos
mortos.
Ah, minha senhora, os mortos também estão cansados.
Senhorinha: Não mais do que eu, de tanto ouvir falar deles, e agora o
senhor já sabe. O senhor sabe alguma história como aquelas que Mr.
Faulkner escreve?
Sei algumas, mas se eu não contar as histórias direito, é possível que a
senhora não goste delas.
Senhorinha: Então conte direito.
Vou tentar. Vamos ver se consigo contar uma ou duas que não sejam
muito longas nem muito velhas. Que tipo de história a senhora quer ouvir
primeiro?
Senhorinha: O senhor sabe alguma história real com aquelas pessoas
azaradas?
Sei algumas, mas em geral elas não têm muito drama, assim como todas
as histórias que falam sobre pessoas anormais. Porque ninguém consegue
prever o que acontece com uma pessoa normal, enquanto todas as
histórias com pessoas anormais terminam do mesmo jeito.
Senhorinha: Ainda assim, eu gostaria de ouvir uma história dessas. Tenho
lido sobre umas pessoas azaradas e as tenho achado muito interessantes.
Tudo bem, vou contar uma história curta, mas se eu escrever direito, ela
pode ficar bem trágica. Na verdade, não vou escrevê-la, só vou contá-la de
um jeito rápido. Eu estava almoçando na Associação de Imprensa Anglo-
Americana em Paris e me sentei do lado do homem que me contou essa
história. Ele era um jornalista sem dinheiro, um ignorante, que virou meu
amigo, tagarelava sem parar e era chato, e morava num hotel caro demais
para o salário que recebia. Ele ainda tinha emprego porque as
circunstâncias que fariam dele um jornalista miserável ainda não tinham
surgido. No almoço, ele me contou que tinha dormido muito mal na noite
anterior por causa de uma algazarra que durou a noite inteira no quarto
ao lado do dele. Por volta das duas manhã, alguém bateu na porta e
implorou para que ele abrisse. O jornalista abriu a porta e um jovem de
cabelo escuro que tinha uns vinte anos, usando pijama e um roupão que
parecia novo, entrou no quarto chorando. No começo, ele estava
descontrolado demais para se explicar, só passou a impressão de que
alguma coisa terrível não tinha acontecido por pouco. Parece que esse
jovem tinha chegado com o amigo em Paris naquele mesmo dia de trem.
O amigo, que era um pouco mais velho, ele conhecia havia pouco tempo,
mas os dois se tornaram grandes amigos e ele tinha aceitado o convite do
amigo de viajar para o exterior. Esse amigo tinha bastante dinheiro e ele
não, e a amizade dos dois tinha sido boa e bonita até aquela noite. Para ele,
estava tudo acabado agora. Ele estava sem dinheiro, não veria a Europa, e
aqui ele começou a chorar de novo, mas ele não voltaria para aquele
quarto de jeito nenhum. Ele estava decidido. Preferia morrer a voltar para
o quarto. E ele se mataria de verdade. Foi quando outra pessoa bateu na
porta e era o amigo, um jovem americano de boa aparência que também
usava um roupão novo que parecia caro. O jornalista queria saber o que
estava acontecendo e o amigo disse que não era nada; que era só cansaço
da viagem. Ao ouvir isso, o primeiro jovem começou a chorar de novo e
disse que não voltaria para aquele quarto por nada nesse mundo. Preferia
morrer, disse ele. Preferia se matar. No entanto, ele voltou para o quarto,
finalmente, depois dos esforços do amigo mais velho de tranquilizá-lo e
depois que o jornalista serviu um conhaque com soda para cada um deles
e disse para os dois largarem mão daquilo e dormirem um pouco. O
jornalista ficou sem saber qual era o problema, disse ele, mas achou tudo
meio engraçado, e de qualquer forma ele voltou a dormir e pouco depois
acordou com o que parecia ser uma briga no quarto ao lado e alguém
dizendo, “Eu não sabia que era isso. Ah, eu não sabia que era isso! Eu não!
Não!”, seguido pelo que o jornalista descreveu como sendo um grito de
desespero. Ele esmurrou a parede e o barulho parou, mas dava para ouvir
um dos amigos chorando. Ele achou que devia ser o mesmo que estava
chorando antes.
“Precisa de ajuda?”, perguntou o jornalista. “Quer que eu chame
alguém? O que está acontecendo aí?”
A única resposta que ele teve foi o choro de um dos amigos. Então o
outro amigo disse, em alto e bom som, “Por favor, não se meta onde não é
chamado”.
O jornalista ficou irritado com isso e pensou em ligar para a recepção
para ver se os dois não seriam expulsos do hotel, e ele teria ligado se o
barulho não tivesse parado. Ele disse para eles pararem com aquilo, voltou
para a cama e ficou por isso mesmo. Ele não conseguiu dormir direito
porque o amigo ficou chorando por muito tempo até que, enfim, parou.
Na manhã seguinte, ele viu os dois no lado de fora do Café de la Paix,
conversando bem felizes e lendo a versão parisiense do New York Herald.
Um ou dois dias depois, o jornalista me mostrou quem eram os amigos,
eles estavam num táxi e, depois disso, vi os dois várias vezes sentados no
terraço do Café Les Deux Magots.
Senhorinha: A história acaba assim? Não ficou faltando o que, na minha
juventude, a gente chamava de final arrebatador?
Ah, minha senhora, faz anos que não escrevo uma história com um final
arrebatador. A senhora acha mesmo que faz falta um final arrebatador?
Senhorinha: Sinceramente, senhor, gosto de ser arrebatada.
Sendo assim, não vou negar à senhora um final arrebatador. Na última
vez que vi os dois, eles estavam sentados no terraço do Café Les Deux
Magots, usando roupas elegantes, alinhados como sempre, a não ser pelo
fato de que o mais jovem deles, aquele que preferia morrer a voltar para o
quarto, tinha pintado o cabelo com hena.
Senhorinha: Isso não é nada arrebatador.
Minha senhora, todo esse episódio não tem nada de arrebatador e não
faria sentido pesar a mão no final. A senhora gostaria de ouvir outra
história?
Senhorinha: Obrigada, mas acho que já basta de histórias por hoje.
16

Você lê sobre como, antigamente, os touros levavam trinta, quarenta,


cinquenta e até setenta estocadas dos picadores, enquanto hoje um touro
capaz de aguentar sete estocadas é considerado um animal incrível, e tem a
impressão de que as coisas eram muito diferentes naquela época e de que
os toureiros deviam ter sido homens exemplares, tão exemplares quanto
os jogadores de futebol americano no time do ensino médio eram para as
crianças do ensino básico. As coisas mudaram bastante e agora, em vez de
grandes atletas, as escolas só têm crianças jogando no time de futebol e, se
você for ao bar para bater um papo com alguém das antigas, o comentário
é de que hoje não existem bom toureiros; eles são só crianças sem
nenhuma honra, habilidade ou virtude, assim como as crianças que hoje
jogam futebol americano no time do ensino médio, que se tornou um
esporte medíocre, e que não têm nada dos atletas bons, maduros e
sofisticados, com seus uniformes característicos e cheiro avinagrado do
suor nos protetores de ombro, carregando os capacetes de couro, sujos de
lama, e andando com chuteiras de couro que deixavam marcas na terra à
medida que caminhavam na luz do fim da tarde, muito tempo atrás.
Naqueles tempos, havia sempre grandes atletas e os touros realmente
aguentavam muitas estocadas, como atestam os relatos contemporâneos,
mas as lanças eram diferentes. No passado distante, a lança tinha uma
ponta triangular muito pequena e era decorada e protegida de modo que
apenas a pontinha penetrava no touro. Os picadores encaravam o touro
com o cavalo em rota de colisão, fincavam a lança e, ao conseguir conter o
touro, viravam o cavalo para a esquerda, livrando-o do embate e
libertando o touro. Um touro, mesmo um touro moderno, poderia aceitar
um número grande dessas lanças, uma vez que o aço não perfurava muito
fundo, e era um enfrentamento por parte do picador e não um choque
deliberado ou uma punição.
Não há consenso entre os criadores de touros e os picadores em relação à
sua forma, uma vez que a forma determina a letalidade e a quantidade de
vezes que o touro pode investir contra ela sem ser arruinado, tanto no
aspecto físico quanto no de bravura.
A lança de hoje é nociva mesmo quando fincada do jeito certo. Ela é
especialmente nociva porque o picador não a introduz, ou não a crava,
como dizem, até que o touro se aproxime do cavalo. Então o touro precisa
fazer o esforço de erguer o cavalo ao mesmo tempo que o homem está
colocando seu peso na lança e fincando a ponta de aço no pescoço do
touro ou na cernelha. Se todos os picadores fossem habilidosos como
alguns poucos são, não haveria necessidade de deixar o touro se aproximar
do cavalo antes de cravar a lança. Mas a maioria dos picadores, numa
profissão mal paga que acaba sempre em concussão cerebral, quase não
consegue fincar a lança direito. Eles dependem de um lance de sorte e do
esforço que o touro precisa fazer para arremessar o cavalo e o cavaleiro até
cansar os músculos do pescoço e fazer o trabalho que um picador de
verdade consegue executar sem perder seu cavalo e sem ser derrubado da
sela. O uso de colchões de proteção nos cavalos tornou o trabalho dos
picadores muito mais difícil e perigoso. Sem o colchão, o touro consegue
cravar os chifres no cavalo e levantá-lo, ou, às vezes, satisfeito com o
estrago que está causando com os chifres, acaba sendo contido pela lança
do picador; com o colchão, ele dá uma chifrada que não penetra em nada
e acaba derrubando o cavalo e o cavaleiro. Os cavalos que não morrem na
arena podem ser usados outras vezes. Eles têm tanto medo e ficam tão
tomados pelo pânico ao sentir o cheiro dos touros que se tornam quase
impossíveis de controlar. Pelas novas regras do governo, os picadores
podem recusar cavalos assim, que devem ser marcados pelos fornecedores
para que não sejam mais usados na arena, porém, como os picadores são
mal pagos, essas regras também serão provavelmente burladas pelo
pagamento de propina, ou suborno, que se tornou uma parte importante
dos ganhos de um picador e que ele recebe dos fornecedores para montar
os animais que teria o direito e o dever de recusar, pelas regras do governo.
A propina é responsável por quase todas as barbaridades nas touradas. As
regras estipulam o físico, o tamanho e o vigor dos cavalos usados na praça
de touros, e se cavalos adequados fossem usados e os picadores fossem
bem treinados, os cavalos não precisariam morrer a não ser por acidente e
contra a vontade dos cavaleiros, como acontece, por exemplo, na corrida
de obstáculos para cavalos. Mas a aplicação dessas regras criadas para
proteger os picadores depende de cada picador, que é a parte interessada,
mas o picador é tão mal pago para correr perigo que, em troca de um
pequeno aumento no salário, ele se dispõe a usar cavalos que vão tornar
seu trabalho ainda mais difícil e perigoso. O responsável pelos cavalos deve
fornecer ou ter à disposição trinta e seis cavalos para cada luta. Ele recebe
um valor fixo, independente do que aconteça aos cavalos. O melhor para
ele é fornecer os animais mais baratos que conseguir e usar a menor
quantidade possível de animais.
Funciona assim: um dia antes da luta ou na manhã da luta, os picadores
chegam aos currais da arena para escolher e testar os cavalos que vão usar.
Uma peça de ferro fica fixada ao muro de pedras do curral a fim de marcar
a altura mínima medida pelo ombro que um cavalo deve ter para ser
aceito. Um picador prepara o cavalo com uma sela grande, monta, testa
para ver se o cavalo se incomoda com a embocadura, as esporas e o freio,
aí faz o cavalo dar meia-volta e cavalgar na direção do muro do curral e
crava a lança no muro para ver se o cavalo é saudável e forte. Então ele
apeia e diz para o fornecedor, “Eu não arriscaria a minha vida com esse
pangaré nem por mil dólares”.
“Qual é o problema com o cavalo?”, pergunta o fornecedor. “Não é fácil
achar um cavalo como esse.”
“Melhor seria não achar esse cavalo nunca”, diz o picador.
“Mas qual é o problema com ele? É um cavalo bonitinho.”
“Ele não responde direito”, diz o picador. “Não faz meia-volta. Além
disso, ele não tem altura.”
“Ele tem a altura certa. Olhe pra ele. A altura certinha.”
“Altura certa para o quê?”
“Altura certa para uma montaria.”
“Não para mim”, diz o picador, dando as costas para o cavalo.
“Você não vai achar um cavalo melhor do que esse.”
“Acredito nisso”, diz o picador.
“O que está te incomodando de verdade?”
“Ele está com mormo.”
“Que absurdo. Isso não é mormo. É só caspa.”
“Você tem que usar inseticida nele”, diz o picador. “Isso resolveria o
problema, matando o bicho.”
“O que está te incomodando de verdade?”
“Tenho uma esposa e três filhos. Eu não montaria esse cavalo nem por
mil dólares.”
“Seja sensato”, diz o fornecedor. Eles baixam a voz. Ele dá quinze pesetas
para o picador.
“Tudo bem”, diz o picador. “Pode separar o cavalo para mim.”
Horas depois, naquela mesma tarde, o picador monta o cavalo e, caso o
cavalo seja ferido, se você perceber que, em vez de matar o animal, o
funcionário da arena vestido de vermelho o conduz até o portão dos
cavalos, onde ele será remendado de modo que possa ser usado de novo
pelo fornecedor, pode ter certeza de que o funcionário da arena recebeu
ou vai receber uma propina para cada cavalo que conseguir tirar vivo da
arena, em vez de matá-los com misericórdia e humildade quando são
feridos.
Conheci alguns bons picadores, honestos, respeitáveis e corajosos, que
desempenhavam esse trabalho ruim, mas todos os fornecedores de cavalo
que conheci não valiam nada, embora alguns deles fossem bons sujeitos.
Os funcionários de arena também não valem nada. Eles são as únicas
pessoas que conheci nas touradas que foram embrutecidas pela luta e são
os únicos que desempenham um papel ativo sem correr nenhum perigo.
Eles são vários, mas há um pai e um filho em especial que eu gostaria de
fuzilar. Se um dia fosse permitido, por alguns dias, matar qualquer pessoa
que você quisesse, acredito que, antes de liquidar uns policiais, uns
políticos italianos, uns funcionários públicos, uns juízes de Massachusetts e
alguns colegas da minha juventude, eu usaria parte da minha munição
para dar cabo desses dois funcionários de arena. Não quero identificá-los
com mais detalhes porque, se um dia eu der um fim neles, este texto pode
servir como evidência de premeditação. Mas de todas as crueldades
nojentas que já vi, eles foram responsáveis pelas piores. O lugar onde se vê
violência gratuita com mais frequência é na polícia; e isso em todas as
polícias de todos os países que visitei, incluindo, e principalmente, o meu
próprio país. Com certeza, esses dois monosabios de Pamplona e San
Sebastián deviam ser policiais da pior espécie, mas eles fazem o melhor
que podem com as ferramentas que têm dentro da arena. Eles carregam
na cinta suas puntillas, que são facas de ponta larga usadas para sacrificar
um cavalo que esteja gravemente ferido, mas nunca vi nenhum dos dois
matar um cavalo que fosse capaz de ficar em pé para ser conduzido até os
currais. Não é só uma questão do dinheiro que eles poderiam ganhar
salvando cavalos que seriam empalhados vivos para que pudessem voltar à
arena, pois vi esses sujeitos se recusarem, até serem forçados pelo público,
a matar um cavalo que não conseguia ficar em pé e que não tinha a menor
chance de voltar para a arena, e eles fizeram isso pelo puro prazer de negar
um ato de misericórdia pelo máximo de tempo possível. A maior parte dos
funcionários de arena são uns pobres coitados que desempenham uma
função miserável por um salário baixo e que estão autorizados a
demonstrar piedade, se não houver compaixão. Se eles salvam um ou dois
cavalos que deveriam ser mortos, eles o fazem com um medo que é maior
do que qualquer prazer que possam sentir com isso, e ganham seu
dinheiro tão bem quanto, por exemplo, os homens que catam guimbas de
charuto. Mas esses dois de quem falei são gordos, bem alimentados e
arrogantes. Certa vez, consegui acertar uma almofada de couro grande e
pesada, de uma peseta e cinquenta cêntimos, na cabeça do mais jovem
durante uma cena repugnante que havia fugido do controle, numa praça
de touros no norte da Espanha, e, como nunca vou a uma arena sem uma
garrafa de manzanilla, espero ainda ser capaz de acertar a garrafa vazia em
um deles assim que a confusão ficar tão generalizada que uma garrafada
acaba passando despercebida pelas autoridades. Depois que alguém, no
contato com os administradores, deixa de acreditar nas leis como uma
forma de combater abusos, é quando a garrafa se torna um meio supremo
de ação. Se você não conseguir arremessar a garrafa, pode ao menos
tomar alguma coisa.
Agora, nas touradas, um bom golpe do picador não é aquele que, com
um movimento giratório, protege totalmente o cavalo. É assim que
deveria ser, mas é raro ver isso acontecer. O que se espera de um bom
picador agora é que ele seja capaz de cravar a lança do jeito certo,
inserindo a ponta no morillo, a corcova que fica no alto do pescoço do
touro entre os ombros, que ele tente conter o touro e que não torça nem
vire a lança para não fazer um ferimento profundo capaz de sangrar e
enfraquecer o touro, diminuindo o perigo para o matador.
Um golpe mau dado pelo picador é aquele que atinge qualquer lugar que
não seja o morillo, um que provoque ou aumente um ferimento profundo,
ou um em que o picador deixe o touro cravar os chifres no cavalo para só
então fincar, empurrar e torcer a lança que está dentro do touro, tentando
dar a impressão de que está protegendo o cavalo quando, na verdade, está
somente ferindo o touro sem nenhum propósito.
Se os picadores tivessem de usar seus próprios cavalos e fossem bem
pagos, eles protegeriam os animais e a parte da tourada que envolve os
cavalos seria uma das mais brilhantes e engenhosas, e não um mal
necessário. Da minha parte, se os cavalos têm de morrer, quanto pior o
cavalo for, melhor. Da parte dos picadores, considerando a forma como
eles trabalham com a lança hoje, um cavalo velho com patas grandes seria
muito mais útil do que um puro-sangue em boas condições. Para ser útil
numa arena, um cavalo precisa ser velho ou cansado. É para cansar os
cavalos e fornecer transporte para os picadores que os animais são usados
para ir da arena até a pensão dos picadores na cidade e voltar. Nas
províncias, os funcionários da arena passeiam com os cavalos pela manhã
só para cansá-los. O cavalo passou a desempenhar o papel de alvo para o
ataque do touro, cansando os músculos do pescoço do animal e servindo
de apoio ao homem que crava a lança também com o propósito de
extenuar esses músculos. O dever do picador é o de cansar o touro e evitar
ferimentos que possam enfraquecê-lo. O ferimento causado por uma lança
é um incidente, não um fim. Sempre que se tornar um fim, ele é
censurável.
Com esse objetivo, o melhor é usar os piores cavalos à disposição, que
são aqueles que já não servem para mais nada, mas que ainda têm pernas
fortes e podem ser controlados. Já presenciei puros-sangues serem mortos
no ápice da forma física em outros lugares que não uma arena e é sempre
triste e perturbador de se ver. A praça de touros é uma sentença de morte
para os cavalos, e quanto pior o cavalo for, melhor.
Como eu disse, se os picadores usassem seus próprios cavalos, isso
mudaria a lógica do espetáculo. Mas prefiro ver uma dúzia de cavalos
velhos e inúteis serem mortos com um propósito a ver um bom cavalo
morto por acidente.
E que fim levou a senhorinha? Ela já era. Enfim, nós a expulsamos do livro.
Foi tarde, você diz. Sim, talvez tenha demorado um pouco. E os cavalos?
Eles são o tema favorito das pessoas quando conversam sobre touradas.
Faltou falar alguma coisa sobre os cavalos? Não faltou nada, você diz. As
pessoas gostam de tudo, menos dos coitados dos cavalos. Devemos tentar
mudar o tom da conversa? Falar de coisas mais nobres?
Mr. Aldous Huxley, num ensaio intitulado “De testa pequena”, começa:
“Em [nome do livro escrito por este autor], Mr. Hemingway se arrisca a
nomear uma vez um grande mestre da pintura. Há uma frase expressiva e
verdadeiramente admirável [aqui Mr. Huxley faz um elogio], uma única
frase, nada mais que isso, sobre ‘A lamentação sobre o Cristo morto’, de
Mantegna; mas em seguida, chocado com a própria ousadia, o autor muda
de assunto rápido, muito rápido (tão rápido quanto Mrs. Gaskell mudaria
de assunto caso mencionasse, sem querer, o banheiro), e passa a falar, de
novo e envergonhadamente, sobre assuntos menores.
“Houve um tempo, mais ou menos recente, em que os estúpidos e os
incultos aspiravam passar uma imagem de inteligentes e cultos. As
aspirações deixaram de ser o que eram. Hoje não é incomum encontrar
pessoas inteligentes e cultas que se esforçam para parecerem estúpidas e
para esconderem o fato de que são educadas”, e continua; continua no
jeito educado do Mr. Huxley, que é sem dúvida um jeito extremamente
educado.
E agora, você diz? Mr. Huxley mandou ver no argumento. O que você
tem a dizer em sua defesa? Me permita responder honestamente. Ao ler
isso no livro do Mr. Huxley, peguei uma cópia da obra a que ele se refere,
revirei o livro e não consegui encontrar a citação que ele menciona. Deve
estar lá, mas não tive a paciência nem o interesse de achá-la, uma vez que o
livro estava concluído e não havia mais nada que pudesse fazer a respeito
disso. Parece muito o tipo de coisa que alguém tentaria eliminar na revisão
do manuscrito. Acredito que é mais do que uma questão de simular ou de
esconder o verniz de cultura. Ao escrever um romance, um autor deve
criar pessoas que têm vida; pessoas, não personagens. Um personagem é
uma caricatura. Se um autor consegue criar pessoas que têm vida, talvez
isso não signifique criar grandes personagens, mas é possível que o livro se
sustente como um todo; como uma entidade; como um romance. Se as
pessoas que o autor está criando são do tipo que fala sobre os grandes
mestres; sobre música; sobre pinturas modernas; sobre cartas; ou sobre
ciência, então elas devem falar desses assuntos no romance. Se as pessoas
são do tipo que não fala sobre esses assuntos e o autor força a mão para
que elas falem, ele é um falsificador, e se fala sobre esses assuntos para
mostrar que tem conhecimento, ele é um vaidoso. Não importa o quão
boa seja uma frase ou uma comparação, se ele não usa esses recursos
apenas quando são absolutamente necessários e insubstituíveis, ele estraga
o próprio trabalho por uma questão de ego. Prosa é arquitetura e não
decoração de interiores, e o barroco já acabou. Um escritor que coloca os
seus exercícios intelectuais, que valeriam pouco como ensaios, na fala de
personagens construídos artificialmente dentro de um romance talvez
esteja ganhando algum dinheiro, mas não está fazendo literatura. As
pessoas num romance, diferentes de personagens construídos com
habilidade, devem ser reflexos da experiência assimilada pelo escritor, do
seu conhecimento, da sua cabeça, do seu coração e de tudo que existe
nele. Se ele tiver sorte e for um escritor sério, e as pessoas saírem
completas, elas terão mais de uma dimensão e vão resistir ao tempo. Um
bom escritor deve ser capaz de escrever sobre quase qualquer coisa.
Naturalmente, ele não é. Um escritor bom o bastante parece ter nascido
com conhecimento. Mas ele não nasceu; ele só nasceu com a habilidade de
aprender mais rápido do que os outros homens e sem consciência disso, e
com uma inteligência capaz de aceitar ou de rejeitar o que é apresentado
como conhecimento. Existem algumas coisas que demoram para ser
aprendidas, e o tempo, que é a coisa mais valiosa que nós temos, é um
valor alto a se pagar pela aquisição de conhecimento. Elas podem ser as
coisas mais simples, mas porque um homem leva uma vida inteira para
aprendê-las, o pouco que cada um consegue descobrir de novo é muito
custoso e é o único legado que resta. Todo romance autêntico contribui
para o acervo de conhecimento disponível para o próximo escritor que
aparecer, mas o próximo escritor tem de dar em troca, sempre, um certo
percentual
de experiência para conseguir entender e assimilar o que estava disponível,
que é seu direito de nascença e também seu ponto de partida. Se um
escritor de prosa escreve sobre algo que conhece, pode querer omitir
certas coisas, e o leitor, se o escritor for autêntico, vai ter uma percepção
dessas coisas tão forte quanto teria se o escritor tivesse de fato escrito
sobre elas. A dignidade no movimento de um iceberg se deve ao fato de
apenas um oitavo dele estar acima da superfície da água. Um escritor que
omite coisas porque não sabe escrever sobre elas deixa lacunas no texto.
Um escritor que não compreende como escrever é um trabalho sério e que
fica ansioso para mostrar às pessoas como é culto, educado ou sofisticado
não passa de um papagaio. E lembre-se de uma coisa: um escritor sério
não deve ser confundido com um escritor solene. Um escritor sério pode
ser um falcão, uma águia ou até mesmo um papagaio, mas um escritor
solene é sempre uma maldita coruja.
17

Para quem está vendo uma fiesta pela primeira vez, nada chama mais
atenção do que a parte com as banderillas. O olhar de uma pessoa que não
está acostumada com as touradas não consegue acompanhar o trabalho
com a capa; há o choque de ver o cavalo ser atingido pelo touro e não
importa o efeito que isso tenha sobre o espectador, ele vai ficar olhando
para o cavalo e perder o quite feito pelo matador. O trabalho com a muleta
é um pouco confuso; o espectador não sabe quais passes são difíceis de
fazer e, como tudo é novo, seu olhar não consegue distinguir um
movimento do outro. Ele vê a muleta como algo pitoresco e o sacrifício
pode ser tão repentino que, a menos que o espectador tenha um olhar
treinado, ele não vai conseguir distinguir uma coisa da outra e ver o que
acontece de verdade. E também, quase sempre, o sacrifício é tão sem estilo
e sem honra, com o matador fazendo o menor esforço possível a fim de
diminuir a importância do momento, que o espectador não faz ideia da
emoção e do espetáculo que é um touro sacrificado da maneira correta.
Mas a parte das banderillas ele consegue ver nitidamente, ele acompanha
todos os detalhes com facilidade e quase invariavelmente, quando o
trabalho é bem-feito, ele gosta.
Na parte das banderillas, o espectador vê um homem carregando dois
bastões finos com a ponta farpada; é o primeiro homem que vai na direção
do touro sem uma capa nas mãos. O homem atrai a atenção do touro —
estou descrevendo a maneira mais simples de fincar banderillas —, corre
na direção do touro ao mesmo tempo que o animal ataca e, quando
homem e touro ficam próximos, e o touro baixa a cabeça para chifrar, o
homem junta os pés, ergue os braços bem alto e crava os bastões no
pescoço do touro.
É mais ou menos isso que o espectador consegue ver.
“Por que o touro não consegue acertá-lo?”, pode perguntar alguém que
está vendo sua primeira tourada, ou mesmo depois de ver várias touradas.
A resposta é que o touro não consegue se virar num espaço menor do que
o próprio corpo. Sendo assim, quando o touro ataca, uma vez que o
homem desvie dos chifres, o homem estará seguro. Ele pode desviar dos
chifres adotando uma rota que faça um ângulo com a rota do touro,
determinando o momento do embate quando junta os pés e o touro baixa
a cabeça, fincando os bastões e girando o corpo para desviar dos chifres.
Essa manobra é chamada de poder a poder, ou de força a força. O homem
começa numa posição de modo que possa fazer um quarto de círculo ao
desviar do ataque do touro, fincando os bastões al cuarteo, o modo mais
comum, ou ele pode ficar parado e esperar que o touro ataque, a melhor
maneira de cravar, e quando o touro está prestes a atingir o homem e
começa a baixar a cabeça para chifrar, o homem ergue o pé direito e
inclina o corpo para a esquerda, fazendo o touro seguir seu movimento, e
depois retoma a posição, baixando o pé direito e cravando os bastões. Esse
movimento é chamado de fincar as banderillas al cambio. Ele pode ser
executado tanto para a direita quanto para a esquerda. Da maneira como
descrevi, o touro passaria pela esquerda.
Existe uma variação desse movimento chamada de al quiebro, na qual o
homem, em vez de levantar qualquer um dos pés enganando o touro com
o movimento do corpo, deixa os pés imóveis; mas nunca vi alguém fazer
esse movimento. Vi muitas banderillas serem cravadas da forma que os
críticos chamam de al quiebro, mas nunca vi um homem fazer isso sem
levantar um dos pés.
Em todas essas formas de cravar as banderillas, existem dois homens
munidos de capa em partes diferentes da arena, em geral é um matador no
centro e outro, um matador ou banderillero, atrás do touro para que,
quando o homem que cravou as banderillas e escapou dos chifres do
touro, usando a técnica de sua escolha, o touro, quando se vire para
persegui-lo, veja uma capa antes de fazer a volta e perseguir o homem.
Existe um lugar específico na arena onde dois ou três homens com capas
se ocupam em todas as técnicas de se cravar as banderillas. As formas que
descrevi, o cuarteo ou quarto de círculo, da força a força e suas variações,
em ambos os casos tanto o homem quanto o touro estão correndo, e o
cambio e suas variações, em que o homem fica parado e espera pela
investida do touro, são as maneiras mais comuns de cravar as banderillas,
em que o homem procura desempenhar seu papel com excelência. Elas
são as maneiras mais usadas pelo matador quando ele mesmo assume a
responsabilidade de cravar as banderillas, e o resultado depende da
elegância, da pureza, da escolha e do domínio que o homem demonstra ao
cravar as banderillas corretamente. Elas devem ser cravadas acima dos
ombros, atrás do pescoço do touro, as duas devem ser colocadas ao
mesmo tempo, não muito longe uma da outra, e elas não devem ser
colocadas num lugar que possa atrapalhar o golpe com a espada.
Banderillas não devem nunca ser colocadas nos ferimentos feitos pelos
picadores. Uma banderilla colocada corretamente perfura somente o
couro e o peso do bastão faz com que ela fique pendurada no flanco do
touro. Se a banderilla for fundo, ela fica espetada e inviabiliza
completamente um trabalho brilhante com a muleta, e em vez de um
pequeno furo sem maiores consequências, ela causa um ferimento que
machuca e mexe com o touro, tornando-o imprevisível e difícil de lidar.
Nenhuma manobra na tourada tem o objetivo de causar dor ao touro. Se
houver dor, ela é imprevista e não proposital. O objetivo de todas as
manobras, além de oferecer um espetáculo brilhante, é cansar o touro e
torná-lo mais lento para o sacrifício. Acredito que a parte da tourada que
causa mais dor e sofrimento ao touro, de forma um tanto inútil, é a das
banderillas. No entanto, é a parte da luta que causa menos repugnância a
espectadores norte-americanos e britânicos. Acredito que seja porque é a
parte mais fácil de acompanhar e de entender. Se a tourada inteira fosse
tão fácil de acompanhar, valorizar e entender como é a parte das
banderillas, a atitude de todo mundo fora da Espanha em relação às
touradas seria diferente. Ao longo da minha vida, vi que a reação dos
jornais norte-americanos e das revistas populares mudou muito em
relação às touradas pela forma como ela passou a ser apresentada
exatamente como é, ou passou a ser objeto de tentativas honestas por
parte da ficção; e isso antes de o filho de um policial do Brooklyn se tornar
um matador popular e competente.
Além das três formas que descrevi de se colocar as banderillas, existem
pelo menos outras dez; algumas se tornaram obsoletas, como aquela em
que o homem responsável pelas banderillas provoca o touro com uma
cadeira na mão, para esperar sentado pelo ataque do touro, levantando da
cadeira para atrair o touro para o lado com uma finta, cravando as
banderillas e depois voltando a se sentar na cadeira. Isso quase não existe
mais, assim como várias outras formas de cravar as banderillas que foram
inventadas por certos toureiros e que raramente são bem executadas, a
não ser pelos próprios inventores, e que caíram em desuso.
Num touro que assuma uma querencia perto da barrera, não é possível
cravar banderillas usando o método do quarto de círculo ou de meio
círculo para escapar do ataque do touro, cravando os bastões no momento
em que a trajetória do homem se cruza com a do touro, sendo que após
desviar do chifre do touro, o homem ficaria entre o touro e a barreira, e
em touros assim, as banderillas devem ser cravadas com um golpe
enviesado, ou al sesgo. Nessa manobra, se o touro estiver perto da barrera,
um homem deve se posicionar com uma capa para atrair a atenção do
touro até que o homem com as banderillas faça uma trajetória oblíqua a
partir da barrera, crave as banderillas ao passar diante do touro sem parar,
da melhor maneira que puder. Com frequência, ele tem de saltar a barrera
se o touro vem na sua direção. Existe um homem munido de capa numa
posição mais distante na arena que tenta provocar o touro enquanto ele se
vira, mas como os touros que exigem essa manobra são quase sempre
aqueles mais suscetíveis a perseguir o homem em vez da isca, é comum
que o homem com a capa seja, por comparação, inútil.
Touros que não atacam, ou que, ao atacar, miram no homem, ou
aqueles que não enxergam direito, recebem as banderillas num
movimento chamado de media volta, ou meia-volta. Nesse método, o
banderillero se aproxima do touro por trás, chama a atenção dele e,
enquanto o animal se vira e baixa a cabeça para atacar o homem que está
em movimento, o homem crava as banderillas.
Esse é apenas um método emergencial de cravar as banderillas, pois ele
desrespeita o princípio da tourada segundo o qual o homem deve, ao
executar qualquer manobra com o touro, se aproximar dele pela frente.
Outra forma de cravar as banderillas que ainda existe é a chamada de
relance; que é quando o touro ainda está correndo e cabeceando depois de
ter recebido o primeiro par de banderillas, o homem aproveita essa corrida
do touro, que é diferente de um ataque que tenha sido provocado
deliberadamente, para fazer um movimento de um quarto de círculo ou
de meia-volta para cravar outro par.
É normal que o matador assuma as banderillas quando ele achar que o
touro tem potencial para uma performance brilhante. Em outros tempos,
um matador só assumia as banderillas se o público pedisse. Agora, as
banderillas fazem parte do repertório rotineiro de todos os matadores que
tenham o físico adequado e que tenham aprendido a cravar as banderillas
direito. Apenas na preparação do touro, às vezes atraindo-o ao correr de
costas fazendo zigue-zagues, essas mudanças repentinas de direção sendo a
defesa de um homem a pé contra um touro, dando a impressão de que
está brincando com o animal enquanto o coloca no lugar onde quer,
depois provocando-o com arrogância, com passos firmes e devagar na
direção do touro e então, quando o touro ataca, ele espera pelo touro ou
corre na direção dele, um matador tem a oportunidade de exibir sua
personalidade e seu estilo em todos os movimentos nesse terço da luta.
Um banderillero, no entanto, mesmo quando é mais habilidoso do que seu
mestre, segue apenas uma ordem, fora a orientação sobre em que parte do
animal inserir o bastão, e essa ordem é cravar rápido e corretamente para
entregar o touro rápido e na melhor forma possível para o seu mestre, o
matador, para o último e derradeiro ato. A maioria dos banderilleros é boa
em cravar os bastões por um lado ou por outro. É muito raro existir um
homem capaz de cravar bem as banderillas por ambos os lados. Por esse
motivo, um matador tem sempre um banderillero que é bom pela direita e
outro que é bom pela esquerda.
O melhor banderillero que já vi foi Manuel Garcia Maera. Ele, com
Joselito e Rodolfo Gaona, o mexicano, eram os melhores da era moderna.
Uma coisa peculiar é a qualidade impressionante dos toureiros mexicanos
com as banderillas. Nos últimos anos, em toda temporada, surgem de três
a seis mexicanos desconhecidos que atuam como ajudantes de toureiro e
todos eles são tão bons quanto ou até melhores do que os banderilleros
mais talentosos da Espanha. Eles têm um estilo no preparo e na execução,
e têm algo de dramático, porque assumem riscos inacreditáveis, que são a
marca e a característica da tourada mexicana, além da frieza que
demonstram em todo o resto do trabalho.
Rodolfo Gaona foi um dos melhores toureiros que já existiu. Ele cresceu
sob o regime de Don Porfírio Diaz e trabalhou na Espanha somente nos
anos em que as lutas foram suspensas enquanto o México passava por uma
revolução. Ele mudou seu estilo logo no início, influenciado por Joselito e
Belmonte, e competiu com eles quase de igual para igual na temporada de
1915; de igual para igual em 1916, mas depois disso um ferimento de uma
chifrada e um casamento infeliz acabaram com sua carreira na Espanha. O
seu desempenho foi ficando cada vez pior como toureiro, enquanto
Joselito e Belmonte foram se aperfeiçoando. O ritmo, que ele já não
acompanhava por não ser tão jovem quanto eles, o novo estilo e a perda de
ânimo causada pelas dificuldades em casa foram demais para ele, que
voltou para o México, onde era dominante entre os toureiros e serviu de
modelo para toda a safra atual de elegantes toureiros mexicanos. A
maioria dos toureiros espanhóis nunca viu Joselito nem Belmonte, viu
somente os seus imitadores, mas todos os mexicanos viram Gaona. No
México, ele era também mestre de Sidney Franklin e o estilo de Franklin
com a capa, que confundia e maravilhava os espanhóis quando ele surgiu,
foi elaborado e influenciado por Gaona. Hoje, num período sem guerra
civil, o México produz uma quantidade grande de toureiros que podem se
tornar grandes se souberem aprender com os touros. As artes nunca
florescem em tempos de guerra, mas com a paz no México, a arte das
touradas está florescendo muito mais no México do que na Espanha. A
dificuldade é a diferença no tamanho, no temperamento e na coragem dos
touros espanhóis com os quais os jovens mexicanos que vêm para a
Espanha não estão acostumados e por isso são, com frequência e depois de
um trabalho brilhante, pegos e chifrados não por um defeito em suas
técnicas, mas simplesmente porque eles estão trabalhando com animais
mais nervosos, poderosos e difíceis de avaliar do que aqueles que existem
no seu país. Não se pode ter um grande toureiro sem que ele seja chifrado
cedo ou tarde, mas se ele for chifrado cedo demais, repetidas vezes e
quando ainda é jovem demais, ele jamais será o toureiro que poderia ter
sido se os touros tivessem demonstrado respeito por ele.
Quando você avalia a colocação de um par de banderillas, deve prestar
atenção na altura que o homem consegue erguer os braços quando ele
crava os bastões, pois quanto mais alto elevar os braços, mais ele vai
permitir que o touro se aproxime do seu corpo. Perceba também quantos
círculos ou cuarteos ele usa para se desviar do ataque do touro, quanto
mais cuarteos usar, mais segurança ele tem. Em um par de banderillas bem
colocado, o homem junta os pés e ergue as mãos, e nos cambios e nos
chamados quiebros, você deve ver como ele espera pelo touro e deixa que
o animal se aproxime antes de mudar a posição dos pés. O mérito das
banderillas colocadas próximo das barreras depende totalmente do quanto
a manobra precisa ou não das capas agitadas atrás das barreras para atrair
a atenção do touro. Quando o homem trabalha no centro da arena, ao se
aproximar do touro, ele conta com dois homens munidos de capas
posicionados a uma certa distância, um de cada lado; o papel desses
homens é atrair a atenção do touro caso ele persiga o toureiro depois de
receber os bastões. Na colocação das banderillas próximo das barreras,
talvez seja necessário agitar uma capa depois que as banderillas foram
colocadas, para proteger o homem se ele estiver numa posição
complicada. Mas uma capa agitada no instante da colocação dos bastões é
apenas um artifício.
Entre os matadores em atividade, os que têm o melhor desempenho
com as banderillas são Manolo Mejías (“Bienvenida”), Jesus Solorzano, José
González (“Carnicerito de Mexico”), Fermín Espinosa (“Armillita II”) e
Heriberto Garcia. Antonio Márquez, Félix Rodríguez e Marcial Lalanda
fazem trabalhos muito interessantes com as banderillas. Às vezes, Lalanda
coloca pares excelentes, mas com frequência faz um quarto de círculo
grande demais para desviar da cabeça do touro. Márquez tem dificuldade
para dominar e posicionar o touro e, quando coloca as banderillas próximo
das barreras, o touro quase sempre é levado a investir contra as tábuas e
isso o deixa desconfiado da barrera e, no instante em que crava o par de
banderillas, há sempre um peón agitando uma capa atrás da barrera para
distrair o touro enquanto Márquez escapa. Félix Rodríguez é um
banderillero esplêndido, mas tem estado doente e não tem mais a força
física necessária para executar bem a função. Quando está na sua melhor
forma, ele é perfeito.
Fausto Barajas, Julián Saiz (“Saleri II”) e Juan Espinosa (“Armillita”) eram
banderilleros excelentes, mas estão em decadência. Talvez Saleri tenha se
aposentado até a publicação deste livro. Ignacio Sánchez Mejías era um
banderillero muito bom, que também se aposentou como matador, mas
ele tinha um estilo pesado e deselegante.
Existe meia dúzia de jovens mexicanos que são tão bons quanto qualquer
um desses matadores e que, até a publicação deste livro, podem estar
mortos, arruinados ou famosos.
Dos banderilleros trabalhando como peones sob as ordens de um
matador, os melhores com os bastões são Luis “Magritas” Suárez, Joachin
“Mella” Manzanares, Antonio Duarte, Rafael “Rafaellillo” Valera, Mariano
Carrato, Antonio “Bombita IV” Garcia, e, com a capa, Manuel “Rerre”
Aguilar e Bonifacio “Boni” Perea, o peón de confiança, ou banderillero
particular, de Bienvenida. O melhor peón com a capa que já vi foi Enrique
“Blanquet” Berenguet. Os melhores banderilleros são, muitas vezes,
homens que tentaram ser matadores, fracassaram no uso da espada e
acabaram se resignando a um trabalho assalariado numa cuadrilla. É
comum que eles saibam mais sobre os touros do que os próprios
matadores e é comum que tenham mais personalidade e estilo, mas eles
estão numa posição servil e precisam ter cuidado para não chamar mais
atenção do que o chefe. O único homem que, de fato, ganha dinheiro nas
touradas é o matador. Isso faz sentido porque ele assume o maior risco,
mas bons picadores, que recebem apenas duzentos e cinquenta pesetas,
são ridiculamente mal pagos em comparação ao matador, que recebe dez
mil pesetas ou mais. Se não forem bons no que fazem, eles definitivamente
representam um risco para o matador e recebem mais do que valem, mas
do modo como as coisas são, por melhores que sejam na sua profissão,
comparados aos matadores, eles nunca deixarão de ser trabalhadores
pagos com diárias. Existe uma demanda alta pelos melhores banderilleros
e picadores, e meia dúzia de cada deve atuar em até oitenta lutas numa
temporada, mas existem muitos profissionais bons e capazes que quase
não conseguem se sustentar. Eles são sindicalizados e os matadores devem
pagar para eles um salário mínimo; esse valor varia de acordo com a
posição do matador no ranking; existem três categorias divididas de
acordo com o valor que os banderilleros recebem por luta, mas existem
muito mais banderilleros do que oportunidades de lutar, e um matador
consegue contratá-los pelo valor que quiser, se ele for bem mesquinho,
fazendo-os assinar um recibo de um determinado valor em dinheiro e
descontando o valor do recibo na hora de fazer o pagamento. Apesar de
ser uma profissão muito mal paga, esses homens persistem, vivendo
abaixo da linha da pobreza, iludidos que ganham a vida trabalhando com
os touros e do orgulho de serem toureiros.
Por vezes, os banderilleros são magros, morenos, jovens, corajosos,
habilidosos e confiantes; muito mais homens do que o matador, do tipo
capaz de dormir com a mulher do chefe, levando o que parece ser uma
boa vida ao menos para eles; aproveitando a vida; outras vezes, eles são
respeitáveis pais de família que entendem de touros, gordos porém ágeis,
pequenos empresários que trabalham no ramo de touros; outras vezes,
eles são durões, pouco inteligentes, mas capazes e corajosos, com carreiras
tão longas quanto a de um jogador de beisebol, desde que suas pernas
aguentem; outros podem ser corajosos, mas não ter a menor habilidade,
trabalhando duro para ganhar a vida, ou eles podem ser velhos e
inteligentes, mas sem pernas, procurados pelos jovens toureiros pela
autoridade que têm na arena e pela habilidade de posicionar os touros
corretamente.
Blanquet era um homem muito pequeno, muito sério e honesto, com
um nariz romano e um rosto meio acinzentado, dono da maior
inteligência que já vi no quesito touradas e com um trabalho de capa que
parecia mágico ao corrigir as falhas de um touro. Ele era o peón particular
de Joselito, Granero e Litri. Todos eles foram mortos por touros e, nos três
casos, sua capa, sempre providencial quando necessária, não serviu para
nada no dia em que eles morreram. O próprio Blanquet morreu de um
ataque cardíaco ao entrar num quarto de hotel depois de ter saído da
arena, antes de tirar as roupas para tomar um banho.
Dos banderilleros em atividade, o que tem mais estilo com os bastões é,
possivelmente, Magritas. No trabalho com a capa, ninguém tem o estilo
que Blanquet tinha. Ele manuseava a capa usando apenas uma das mãos
com o mesmo tipo de delicadeza de Rafael El Gallo, mas com a modéstia
habilidosa de um peón. Foi ao ver a curiosidade e as ações de Blanquet,
quando nada em particular parecia estar acontecendo, que aprendi sobre a
importância dos detalhes invisíveis de uma tourada.
Você quer ver uma conversa? Sobre o quê? Algo a ver com pinturas? Algo
para agradar Mr. Huxley? Algo que faça o livro valer a pena? Tudo bem,
este é o fim de um capítulo, podemos dar um jeito. Bom, quando Julius
Meier-Graefe, o crítico alemão, veio à Espanha, ele queria ver obras de
Goya e de Velázquez em busca de êxtases sobre os quais pudesse escrever
depois, mas ele gostava mais de El Greco; ele não estava contente por
gostar mais de El Greco; ele não podia gostar de mais ninguém, então
escreveu um livro para provar como Goya e Velázquez eram pintores
pobres, e para exaltar El Greco, e o critério que ele usou para julgar os
pintores foi suas respectivas pinturas da crucificação de Nosso Senhor.
A essa altura, seria difícil fazer alguma coisa mais estúpida do que isso
porque, dos três, apenas El Greco acreditava em Nosso Senhor ou
demonstrava qualquer interesse em sua crucificação. Você só pode julgar
um pintor pela forma como ele pinta as coisas em que acredita ou as coisas
com que se importa e também as coisas que odeia; e julgar Velázquez, que
valorizava as indumentárias e acreditava na importância da pintura como
pintura, pelo retrato de um homem quase nu em uma cruz que já tinha
sido pintado, Velázquez deve ter pensado, muito satisfatoriamente na
mesma posição outras vezes, e por quem Velázquez não tinha interesse
nenhum, não é inteligente.
Goya era como Stendhal; a imagem de um padre bastava para lançar
essas duas figuras anticlericais num furor criativo. A crucificação, de Goya,
é uma oleografia de madeira cinicamente romântica que poderia servir de
cartaz para um anúncio de crucificações no estilo dos cartazes das
touradas. A crucificação de seis Cristos cuidadosamente selecionados vai
ocorrer a partir das cinco da tarde no Monumental Golgotha, de Madri,
com a autorização do governo. Crucificadores reconhecidos e
credenciados vão realizar o trabalho, cada um deles acompanhado por sua
cuadrilla munida de pregos, martelos, cruz, pás etc.
El Greco gostava de pintar quadros religiosos porque, evidentemente, ele
era religioso e porque sua arte incomparável, na época, não era limitada a
reproduzir de maneira precisa os rostos de fidalgos que sentavam para os
retratos, e ele poderia ir tão longe quanto quisesse nesse outro mundo e,
consciente ou inconscientemente, pintar santos, apóstolos, Cristos e
Virgens com os rostos andróginos e com as formas que animavam sua
imaginação.
Certa vez, em Paris, eu estava conversando com uma garota que escrevia
uma versão ficcional da vida de El Greco e eu perguntei para ela: “Você
falou que El Greco era um maricón?”
“Não”, ela disse. “Por que eu faria isso?”
“Você chegou a ver os quadros que ele pintou?”
“Sim, claro.”
“Você chegou a ver em alguma parte exemplos mais clássicos do que
aqueles que ele pintou? Você acha que foi acidente ou aqueles cidadãos
todos são mesmo homossexuais? O único santo que sei que é
universalmente representado dessa forma é San Sebastián. El Greco pintou
todos eles da mesma maneira. É só você ver os quadros. Não precisa
acreditar em mim.”
“Não tinha pensado nisso.”
“Pois então pense”, eu disse, “se você está escrevendo sobre a vida dele.”
“Tarde demais”, ela disse. “O livro está pronto.”
Para Velázquez, o que importava era a pintura, as indumentárias, os
cachorros, os anões e a pintura de novo. Goya não valorizava as
indumentárias, mas valorizava os tons de preto e cinza, a poeira e a luz, os
lugares elevados em meio às planícies, a região ao redor de Madri, o
movimento, os seus próprios cojones, a pintura, a gravura, e tudo aquilo
que ele tinha visto, sentido, tocado, manuseado, cheirado, desfrutado,
bebido, cavalgado, sofrido, cuspido, acariciado, suspeitado, observado,
amado, odiado, cobiçado, temido, detestado, admirado, abominado e
destruído. Naturalmente, nenhum pintor jamais conseguiu pintar tudo
isso, mas ele tentou. El Greco valorizava a cidade de Toledo, a sua
localização e a sua construção, algumas pessoas que moravam nela, o azul,
o cinza, o verde e o amarelo, o vermelho, o espírito santo, a comunhão e a
fraternidade de santos, a pintura, a vida após a morte e a morte após a
vida, e os homossexuais. Se é verdade que ele era um deles, ele devia ser
redimido pela sua tribo, pelo exibicionismo afetado de uma tia velha, pela
arrogância moral de um Gide, que lembrava a de uma solteirona
enrugada; pela preguiça e pela libertinagem afetada de um Wilde, que
traiu uma geração; pela humanidade sentimental de um Whitman e de
toda a aristocracia que foi triturada. Viva El Greco, el rey de los maricones.
18

A habilidade de um toureiro com a muleta é o que, no fim, determina sua


posição no ranking, porque ela é a etapa mais difícil de se dominar na
tourada moderna e é quando o matador tem mais liberdade para mostrar
seu talento. A muleta pode estabelecer uma reputação e o valor pago para
um matador depende de sua habilidade de apresentar um desempenho
completo, criativo, artístico e emocional com a muleta, considerando que
ele tenha um bom touro. Conseguir um touro corajoso em Madri, fazê-lo
chegar ao ato final em condições ideais e então, devido a um repertório
limitado, não conseguir tirar vantagem de sua bravura e de sua coragem
para fazer uma brilhante faena acaba com a chance de um toureiro ter
uma carreira de sucesso. Pois agora os toureiros são divididos, classificados
e pagos, curiosamente, não pelo que eles de fato fazem, já que o touro
pode atrapalhar no desempenho do toureiro, eles mesmos podem ficar
doentes, podem não ter se recuperado direito de uma chifrada, ou estar
num dia ruim; mas pelo que eles são capazes de fazer em condições ideais.
Se os espectadores sabem que o matador é capaz de executar uma série de
passes completos e consecutivos com a muleta, demonstrando coragem,
talento, habilidade e, acima de tudo, beleza e emoção, eles vão tolerar um
trabalho medíocre, um trabalho covarde, um trabalho desastroso porque
eles têm esperança de ver, cedo ou tarde, uma faena completa; a faena faz
com que um homem se supere e se sinta imortal, entrando numa espécie
de êxtase que, embora momentâneo, é tão profundo quanto um êxtase
religioso; um sentimento que envolve todas as pessoas dentro da arena e o
toureiro, que dialoga com o público por meio do touro e recebe como
resposta um êxtase cada vez mais intenso, ordenado, solene, passional,
capaz de aumentar o desprezo pela morte que, no fim, quando o animal
que tornou tudo possível é submetido à morte, deixa você com uma
sensação de vazio, de mudança e de tristeza, assim como acontece com
toda emoção forte.
Um toureiro que sabe fazer uma bela faena tem uma posição dominante
na profissão, desde que seja capaz de repetir o feito, se as condições forem
favoráveis; mas um toureiro que se mostrou incompetente ao tentar uma
faena nas condições certas, desprovido de criatividade e habilidade com a
muleta, mesmo sendo corajoso, honesto, experiente e conhecedor do
ofício, será sempre um mero operário das touradas pago de acordo com
esse papel.
É impossível acreditar na intensidade espiritual e emocional, e na beleza
clássica e pura, que podem ser produzidas por um homem, um animal e
um pedaço de pano escarlate envolvido num bastão. Se escolher não
acreditar e preferir encarar a coisa toda como um absurdo, você pode
provar que tem razão indo a uma tourada em que nada especial acontece;
e muitas delas são assim; e você poderá sempre confirmar seu ponto de
vista. Mas se um dia você presenciar uma faena de verdade, precisa ter
condições de reconhecê-la. E é o tipo de experiência que não permite um
meio-termo, ou você reconhece ou não reconhece. No entanto, não há
como ter certeza de que você vai ver uma bela faena a menos que vá a
muitas touradas. Mas se um dia você presenciar uma faena finalizada com
uma bela estocada, você não vai se esquecer dela tão fácil.
Tecnicamente, a muleta serve para o homem se defender do ataque do
touro e para regular a altura da cabeça do animal, para corrigir a tendência
que o touro às vezes tem de usar um ou outro chifre, para cansar o animal
e posicioná-lo antes do sacrifício, e para que o touro tenha algo contra o
que investir que não seja o corpo do homem, no instante em que o
matador crava a espada.
Em princípio, a muleta é carregada na mão esquerda e a espada na
direita, e os passes feitos com a muleta na mão esquerda são uma virtude
maior do que aqueles executados com a direita, uma vez que com a mão
direita, ou com ambas as mãos, ela fica mais estendida com a ajuda da
espada e assim o touro tem um alvo maior para atacar, podendo passar a
uma distância maior do corpo do homem e também, com o movimento
desse alvo maior, parar mais longe antes de atacar de novo, dando ao
homem mais tempo para preparar o próximo passe.
O melhor passe com a muleta, o mais perigoso de se fazer e mais bonito
de se ver, é o natural. Nele, o homem encara o touro com a muleta na
mão esquerda, a espada na direita, o braço esquerdo pendendo
naturalmente ao lado do corpo e o pano escarlate dobrado e pendurado
no bastão que o sustenta. O homem anda na direção do touro e o provoca
com a muleta, e quando ele ataca, o homem simplesmente desvia do
touro, movendo o braço esquerdo na frente dos chifres, o corpo do
homem seguindo o movimento do ataque, os chifres na frente do corpo
do toureiro, que tem os pés imóveis, ele move lentamente o braço que
segura o pano diante do touro e gira, fazendo uma volta de um quarto de
círculo com o animal. Se o touro parar, o homem provoca o touro de novo
e realiza mais um quarto de círculo com ele, e de novo, e de novo, e de
novo. Já vi fazerem isso seis vezes consecutivas; o homem controlando o
touro com a muleta como se fizesse mágica. Se, em vez de parar de atacar,
e o que faz o touro parar é um derradeiro movimento rápido na
extremidade mais baixa da muleta no fim de cada passe e a torção da
coluna causada pela curva que o matador obriga o touro a fazer, o animal
se vira e ataca mais uma vez, o homem pode responder com um pase de
pecho, ou passe de peito. Esse é o oposto do passe natural. Em vez de o
touro vir pela frente, com o homem movendo a muleta devagar antes do
ataque, no pase de pecho o touro, depois de fazer a curva, vem por trás ou
pelo lado, e o homem balança a muleta para a frente, deixa o touro passar
próximo do peito e o manda para longe varrendo o chão com o pano. O
passe de peito é ainda mais impressionante quando completa uma série de
passes naturais ou quando é forçado por um giro inesperado do touro,
seguido de um ataque, e é usado pelo homem para se salvar, não como
uma manobra planejada. A habilidade de executar uma série de passes
naturais e de finalizá-los com um passe de peito é a marca de um toureiro
de verdade.
Primeiro, é preciso coragem para provocar o touro em um bom passe
natural, sendo que existem muitos outros passes em que o toureiro fica
menos exposto; é preciso serenidade para aguardar a aproximação do
touro com a muleta baixada e dobrada na mão esquerda, sabendo que se
ele não morder a isca pequena que foi oferecida, ele vai avançar no
homem; em seguida é preciso uma habilidade enorme para mover a
muleta diante do ataque, mantendo o animal centralizado no pano, o
cotovelo reto enquanto o braço se mexe, movendo o pano em linha reta e
acompanhando a curva com o corpo sem mexer os pés. É um passe difícil
de fazer corretamente quatro vezes seguidas diante de um espelho numa
sala de visitas sem nenhum touro, e sete vezes seguidas bastam para deixar
qualquer um atordoado. Existem muitos toureiros que nunca chegam a
aprender como fazer esse passe de um jeito apresentável. Para fazê-lo bem,
sem contorções, mantendo a linha e com os chifres do touro tão próximos
da cintura que bastaria que subissem uns 4 ou 5 centímetros para atingir o
homem, controlando o ataque do touro com o movimento do braço e do
pulso, mantendo-o centralizado no pano, e parando o animal com um
movimento rápido do pulso na hora exata, para repetir isso três ou quatro
ou cinco vezes seguidas é preciso ser um toureiro e um artista.
O passe natural pode ser logrado com a mão direita, com a muleta bem
aberta pela espada e com o touro fazendo uma meia-volta traçada pelo
movimento do homem girando sobre os pés e não pelo movimento lento
feito apenas com o braço e o pulso. Existem muitos passes com a mão
direita que têm mérito, mas em quase todos o punho da espada fica na
mesma mão que segura o bastão da muleta, com a ponta da espada
espetando o tecido e estendendo a muleta e, por aumentar a extensão do
pano, permitindo que o toureiro faça o touro passar mais longe de seu
corpo, se quiser assim. Ele pode fazer o touro passar perto, mas tem meios
para afastá-lo caso seja necessário, uma opção que o homem que trabalha
com a muleta na mão esquerda não tem.
Além do passe natural e do passe de peito, os principais passes com a
muleta são os ayudados, feitos com a espada espetada na muleta e com
ambas seguradas pelas duas mãos. Esses passes podem ser chamados de
por alto ou por bajo, dependendo do local por onde a muleta passa sobre
os chifres do touro, ou pela forma como é agitada diante do focinho do
animal.
Todos os passes feitos com a muleta, e os meios-passes, que são aqueles
em que o touro não passa completamente pelo homem, têm um propósito
definitivo. Para um touro que é forte e tem disposição para o ataque, nada
pune mais do que uma série de passes naturais que, ao mesmo tempo que
cansam e contorcem o touro, fazem o animal acompanhar o pano e o
homem com o chifre esquerdo, treinando o touro para seguir a direção
que o homem quer que ele siga enquanto se encaminha para o sacrifício.
Um touro com músculos do pescoço que não tenham sido cansados o
suficiente e que mantenha a cabeça erguida vai baixar a cabeça depois de
uma série de ayudados por alto; passes feitos com a muleta e a espada
seguradas alto por ambas as mãos, obrigando o touro a atacar algo quando
passa pelo homem, cansam os músculos do pescoço e ele vai deixar a
cabeça bem mais baixa. Se ele está cansado e a cabeça está baixa demais, o
matador pode fazê-lo erguer a cabeça, temporariamente, com o mesmo
passe, se ele o modificar e não esperar a cabeça baixar de novo para matar
o touro. Os passes baixos, feitos com um giro e um movimento preciso da
muleta, às vezes com um giro lento e um movimento curto da parte baixa
do pano, e os cortes rápidos para a frente e para trás, servem para os
touros que ainda estão muito fortes ou que resistem a ficar no lugar. Eles
devem ser executados de frente para o touro que não quer passar, e a
virtude do toureiro consiste no trabalho com os pés sem nunca perder sua
posição diante do animal, sem nunca recuar mais do que o necessário,
dominando o animal com os movimentos da muleta, obrigando-o a fazer
curvas acentuadas, cansando-o rápido e deixando-o em posição. Um touro
que se recusa a passar, isto é, que se recusa a atacar de uma certa distância
com força suficiente de modo que, se o homem ficar parado e mover a
muleta corretamente, o touro passa por ele de corpo inteiro; um touro
assim ou é covarde ou foi tão desgastado pela luta que perdeu toda a
energia e não consegue mais atacar. Um matador habilidoso pode, usando
alguns passes suaves a curta distância, com cuidado para não deixar o
animal se virar demais nem torcer as pernas, fazer o touro covarde
acreditar que a muleta não é um castigo; que ele não será ferido se atacar,
e assim dar confiança ao touro covarde e convertê-lo num touro
pretensamente corajoso. Da mesma forma, ao trabalhar com delicadeza e
sabedoria, ele pode dar nova vida ao touro que perdeu a habilidade de
atacar e tirá-lo da defensiva, deixá-lo mais agressivo. Para fazer isso, a única
forma possível para um toureiro é correr riscos enormes, para forçá-lo a
atacar quando está na defensiva e para controlá-lo é preciso trabalhar o
mais próximo possível, deixando um espaço mínimo para que ele possa
ficar em pé, como diz Belmonte, e ao provocar o ataque de uma distância
tão pequena, o toureiro não tem como evitar ser atingido se ele errar o
cálculo e não tem tempo para preparar os passes. Seus reflexos precisam
ser perfeitos e ele precisa entender de touros. Se, ao mesmo tempo, ele for
elegante, você pode ter certeza de que elegância é uma qualidade inerente,
e não uma pose. Você pode fazer uma pose enquanto os chifres vêm de
longe, mas não há tempo para posar quando você está a um palmo dos
chifres, nem tempo de escapar buscando um lugar seguro ao lado do
pescoço do touro, como acontece quando se usa a muleta de um lado para
escapar do outro, cutucando o touro com a ponta da espada ou com o
bastão da muleta para fazê-lo se virar, ou para cansá-lo, ou para estimulá-
lo quando ele não quer atacar.
Existe uma escola de tourada, inaugurada e desenvolvida por Rafael El
Gallo, que cultiva a elegância até ela se tornar algo essencial e que reduz
ao máximo o risco dos chifres do touro passarem perto da barriga do
homem. El Gallo era um artista importante e sensível demais para se
tornar um toureiro completo, então ele foi evitando, o tanto que pôde,
aquelas partes da tourada que tinham a ver com ou apresentavam o risco
de morte, tanto para o homem quanto para o touro, mas principalmente
para o homem. Assim ele desenvolveu uma forma de trabalhar com o
touro na qual a elegância, a criatividade e a verdadeira beleza do
movimento substituíam e evitavam o perigoso classicismo da tourada
praticada até então. Juan Belmonte pegou algumas invenções de El Gallo e
as combinou com o estilo clássico e depois transformou as duas no seu
próprio estilo revolucionário. El Gallo era um inventor tanto quanto
Belmonte, mas de uma elegância maior, e se ele tivesse demonstrado a
coragem animal, fria e dedicada de Belmonte, ele seria um toureiro
imbatível. O mais próximo que alguém chegou dessa combinação foi
Joselito, irmão de Rafael, e seu único defeito tinha a ver com o fato de
tudo na tourada ser tão fácil para ele que ele sentia dificuldade de
demonstrar a emoção que Belmonte sempre demonstrava para compensar
suas limitações físicas, não apenas para o animal que enfrentava, mas
também para todos que estavam trabalhando com ele e para a maioria do
público. Observar Joselito era como ler sobre D’Artagnan quando menino.
No fim das contas, você não se preocupava com ele porque D’Artagnan
era muito habilidoso. Ele era bom demais, talentoso demais. Para ser
morto, ele teria de ser pego de surpresa. A essência do principal
sentimento inspirado pelas touradas tem a ver com a sensação de
imortalidade que o toureiro experimenta no meio de uma bela faena, uma
sensação que proporciona para os espectadores. Seu desempenho é uma
obra de arte e ele desafia a morte, se aproximando dela mais e mais, uma
morte que você entende estar ligada aos chifres do touro por causa das
proteções usadas pelos cavalos. Ele proporciona a sensação de
imortalidade e, enquanto você observa, esse sentimento passa a ser seu.
Por fim, quando a sensação de imortalidade é mútua, ele a comprova com
a espada.
Quando a tourada é fácil para um toureiro como era para Joselito, fica
difícil proporcionar a sensação de perigo que Belmonte proporcionava.
Mesmo se você visse o toureiro morrer, seria difícil ter compaixão, seria
como ver a morte de um deus. Com El Gallo era muito diferente. Era um
espetáculo perfeito. Não havia nada de trágico nele, mas nenhuma
tragédia seria capaz de superá-lo. Mas só funcionava quando ele estava na
arena. Seus imitadores serviam apenas para mostrar o quanto ele era
único.
Uma das invenções de El Gallo foi o pase de la muerte, ou o passe da
morte. Ele usava esse passe para começar as faenas e isso acabou sendo
adotado pela maioria dos toureiros como o primeiro passe em quase todas
as faenas. É o passe numa tourada que qualquer toureiro capaz de
controlar o nervosismo ao ver o touro se aproximar poderia aprender, no
entanto, é muito impressionante de ver. O matador vai na direção do
touro e o provoca, depois fica parado de perfil, com a muleta estendida
pela espada, levantada pelas duas mãos, mais ou menos do mesmo jeito
que um jogador de beisebol segura o taco quando enfrenta o
arremessador. Se o touro não atacar, o matador avança dois ou três passos
e para mais uma vez, os pés unidos, a muleta bem estendida. Quando o
touro ataca, o homem fica imóvel, como se estivesse morto, até o
momento em que o touro alcança a muleta, então ele ergue o pano
devagar e o touro passa por ele, quase sempre levantando a cabeça para
acertar a muleta, de modo que é possível ver o homem imóvel e o touro
quicando no ar, num ângulo que o afasta do homem. É um passe fácil e
seguro porque geralmente permite que o touro avance na direção de sua
querencia, passando pelo homem como se estivesse escapando do fogo; e
porque, em vez de um pequeno pedaço de pano escarlate como no passe
natural, quando o toureiro precisa atrair a atenção do touro, um grande
pedaço de pano é oferecido aqui, como se fosse uma bujarrona, e é só o
que o touro vê. O animal não está controlado nem dominado, o homem
apenas tira vantagem de seu ataque.
El Gallo também era um mestre em fazer passes elegantes diante dos
chifres do touro, usando ambas as mãos e também passando a muleta de
uma das mãos para a outra, às vezes pelas costas; alguns passes
começavam como se fossem naturais, mas viravam outra coisa, com o
homem fazendo a muleta dar voltas ao redor do próprio corpo e o touro
acompanhando a ponta solta do pano; outros passes eram com o homem
girando no próprio eixo próximo do pescoço do touro, com o animal
dando voltas ao redor do homem; havia ainda passes de joelhos, usando as
duas mãos na muleta para obrigar o touro a traçar uma curva; todos esses
passes exigiam um grande conhecimento da mentalidade do touro e muita
confiança para executá-los com segurança, mas que, quando as exigências
eram cumpridas, eram bonitos de se ver e muito gratificantes para El
Gallo, embora fossem contra a ideia de uma verdadeira tourada.
Chicuelo é um toureiro contemporâneo que domina boa parte do
repertório de El Gallo no trabalho que se faz próximo do touro. Vicente
Barrera também sabe fazer todos esses passes, mas seus pés nervosos e sua
velocidade de execução não têm nada a ver com a elegância sincera de El
Gallo nem com a habilidade de Chicuelo, apesar de Barrera estar
aprimorando bastante seu estilo e seu método.
Todos esses floreios funcionam com touros que recusam os passes ou
para a segunda parte de uma faena, e servem para o matador mostrar o
controle que tem sobre o animal e sua elegância criativa. Trabalhar apenas
com a cabeça de um touro que aceita os passes, não importa o quão bom,
elegante ou criativo seja o toureiro, é privar os espectadores da parte mais
real de uma tourada, quando o homem faz passar deliberadamente os
chifres do touro o mais devagar e o mais próximo possível do seu corpo, e
é substituir uma série de artifícios elegantes, que servem de enfeite para
uma faena, pelo perigo sincero de uma faena em si.
O toureiro contemporâneo que mais consegue dominar os touros com a
muleta, que consegue controlar os touros mais rápido, sejam eles
corajosos ou covardes, e que executa com mais frequência todos os passes
clássicos e perigosos, como o passe natural com a mão esquerda e o pase
de pecho, ambos essenciais numa tourada honesta, e no entanto é
excelente no trabalho elegante e criativo diante dos chifres do touro, é
Marcial Lalanda. No início de carreira, seu estilo tinha problemas, ele
torcia a capa como se fosse um saca-rolhas e seus passes naturais não eram
nada naturais, eram forçados, tendenciosos e afetados. Ele passou por uma
melhora constante de estilo e hoje é excelente com a muleta, sua saúde
ficou muito mais robusta e, com o conhecimento que tem dos touros, e
com sua inteligência ímpar, ele consegue ter um desempenho adequado e
interessante com qualquer touro que entre na arena. Ele perdeu quase
toda a apatia que marcou seu início de carreira, foi chifrado gravemente
três vezes e sua coragem aumentou ao invés de diminuir, e ele foi um
grande toureiro nas temporadas de 1929, 1930 e 1931.
Tanto Manuel “Chicuelo” Jiménez quanto Antonio Márquez são capazes
de fazer uma faena clássica, completa e perfeita usando a muleta quando o
touro não oferece dificuldade e o homem consegue controlar o
nervosismo. Félix Rodríguez e Manolo Bienvenida são mestres no uso da
muleta, capazes de controlar um touro difícil e de tirar proveito da
inocência e da coragem de um touro fácil, mas Rodríguez não anda bem
de saúde e Bienvenida, como expliquei em outro capítulo, não pode ser
julgado até que prove ser capaz de controlar o nervosismo e os reflexos
depois
de um primeiro ferimento grave. Vicente Barrera é um hábil dominador
de touros, com um estilo complicado naqueles movimentos em que o
touro passa de corpo inteiro pelo homem, mas a cada dia está melhor e
pode, se continuar assim, se tornar um toureiro muito competente. Ele
tem potencial para ser um dos grandes. Ele tem talento, uma
compreensão natural da tourada reforçada pela habilidade de enxergar a
luta com perspectiva, reflexos extraordinários e um bom físico, mas
durante muito tempo ele demonstrou tamanha presunção que era mais
fácil ele reunir a imprensa para enaltecer seus defeitos do que encarar esses
defeitos com o propósito de corrigi-los. Ele é o melhor na parte criativa do
trabalho feito próximo do touro e, em especial, num ayudado por bajo em
que imita Joselito, segurando a espada e a muleta juntas e apontadas para
baixo, e o homem controlando o touro com um movimento delicado e um
pouquinho ridículo, como se estivesse com as mãos estendidas e unidas
mexendo uma grande caldeira de sopa com um guarda-chuva fechado.
Joaquin Rodríguez, conhecido como Cagancho, é um cigano
considerado o herdeiro de El Gallo no que se refere à elegância, à
criatividade e ao pânico, mas sem herdar nada do grande conhecimento
que El Gallo tinha de touros e dos princípios da tourada. Cagancho tem
uma elegância escultural, uma lentidão majestática e movimentos suaves,
mas se encarar um touro que o impeça de unir os pés e preparar seus
passes, fica claro que ele não tem recursos suficientes; e nos casos em que
o touro não realiza movimentos perfeitos, o cigano é tomado pelo pânico
e evita se aproximar do touro segurando a muleta o mais longe possível do
seu corpo. Ele é o tipo de toureiro que, se você vir com um touro que o
deixa confiante, pode proporcionar uma tarde inesquecível, mas você
corre o risco de vê-lo sete vezes consecutivas em touradas completamente
decepcionantes.
Francisco Vega de los Reyes, chamado de Gitanillo de Triana, é um
primo de Cagancho que pode ser muito bom com a capa e, embora não
tenha a elegância de Cagancho com a muleta, ele é muito mais hábil e
corajoso com ela, apesar de seu trabalho ser, no fundo, inconsistente.
Enquanto executa uma faena, ele parece incapaz de controlar o touro
devidamente e seus passes deixam o animal sempre a uma distância muito
curta, e devido à própria inépcia já foi chifrado muitas vezes. Assim como
Chicuelo e Márquez, ele não anda muito saudável e perdeu o vigor, e
embora a saúde não seja uma desculpa aceita pelo público para justificar o
mau desempenho de um toureiro muito bem pago, pois não existe
nenhuma lei determinando que ele só lute contra touros se estiver em
condições de fazer isso, a condição física de um toureiro é uma das coisas
que devem ser levadas em conta ao fazer uma crítica de seu trabalho,
muito embora ele não possa usar esse argumento como uma desculpa
dada ao público pagante. Gitanillo de Triana é alegremente corajoso e
sincero por natureza na arena, mas a inconsistência de sua técnica dá a
impressão de que ele pode ser chifrado a qualquer momento durante uma
tourada.
Depois de escrever essas linhas sobre Gitanillo de Triana, pude vê-lo ser
destruído por um touro em Madri, numa tarde de domingo, no dia 31 de
maio de 1931. Fazia mais de um ano desde a última vez que tinha visto
uma luta com ele e, num táxi a caminho da arena, fiquei me perguntando
se ele teria mudado e se eu teria de revisar o que tinha escrito a seu
respeito. Ele surgiu no paseo caminhando com tranquilidade, o rosto
moreno, mais bonito do que antes e sorrindo para todo mundo que ele
reconhecia no percurso até a barrera para trocar de capa. Tinha uma
aparência saudável; a pele era de um marrom-claro que lembrava tabaco; o
cabelo, que tinha sido descolorido pela água oxigenada que usaram para
limpar o sangue coagulado depois de um acidente de carro que o deixou
gravemente ferido no mesmo ano em que o vi pela última vez, voltara a
ser preto e reluzente como o ébano; e ele usava um traje brilhante para
destacar todo esse preto e esse marrom, e parecia muito feliz com tudo.
Ele mostrou segurança com a capa, manuseando o pano devagar e
lindamente; lembrava o estilo de Belmonte, a não ser pelo fato de estar
sendo feito por um cigano de pele escura, pernas compridas e quadris
estreitos. Seu primeiro touro foi o terceiro daquela tarde e, depois de um
trabalho ótimo com a capa, ele observou as banderillas serem colocadas;
em seguida, antes de entrar na arena com a espada e a muleta, ele fez um
sinal para os banderilleros indicando que queria o touro mais perto da
barrera.
“Cuidado; ele ataca um pouco mais com o chifre esquerdo”, disse o
responsável pelas espadas ao entregar a espada e o pano.
“Deixe atacar do jeito que for; eu dou conta dele”, disse Gitanillo e sacou
a espada da bainha de couro que ficou vazia e flácida, e foi a passos largos,
as pernas compridas, na direção do touro. Ele deixou o touro atacar uma
vez e deu um pase de la muerte. O touro se virou muito rápido e Gitanillo
preparou a muleta para fazer o touro passar pela esquerda; ele levantou a
muleta e foi levantado pelo touro, com as pernas bem abertas, as mãos
ainda segurando a muleta, de cabeça para baixo, o chifre esquerdo do
touro em sua coxa. O touro fez Gitanillo girar sobre o chifre e o
arremessou contra a barrera. Com o chifre, o touro o encontrou de novo e
o colheu do chão para arremessá-lo contra a madeira mais uma vez. Em
seguida, com o homem caído de bruços, o touro cravou os chifres nas suas
costas. Tudo isso não demorou mais do que três segundos e no instante
em que Gitanillo foi levantado do chão pela primeira vez, Marcial Lalanda
correu na direção do touro com a capa. Os outros toureiros tinham suas
capas bem estendidas e acenavam para o touro. Marcial investiu contra a
cabeça do touro, dando uma joelhada no focinho e um tapa na cara do
animal na tentativa de fazê-lo largar o homem e se afastar; Marcial correu
de costas até o centro da arena com o touro seguindo a capa. Gitanillo
tentou ficar de pé, mas não conseguiu. Os funcionários da arena tiveram
de carregá-lo, com a cabeça balançando, até a enfermaria. Um banderillero
tinha sido chifrado pelo primeiro touro e ainda estava na mesa de
operação quando chegaram com
Gitanillo. O médico encerrou o atendimento do banderillero porque viu
que não havia nenhuma hemorragia grave e a artéria femoral estava
intacta, e começou a atender Gitanillo. Havia um ferimento em cada
perna, ambos causados pelos chifres, e em cada ferimento os músculos do
quadríceps e o abdutor tinham sido rasgados. Mas no ferimento das costas,
o chifre tinha atravessado a pélvis, rasgado o nervo ciático e arrancado o
nervo pela raiz, como se fosse uma minhoca arrancada do gramado por
um passarinho.
Quando seu pai foi vê-lo, Gitanillo disse: “Pai, não chore. Lembra como
foi feio o acidente de carro e todo mundo disse que a gente não
sobreviveria? É isso que vai acontecer de novo.” Mais tarde, ele disse: “Sei
que não posso beber nada, mas diga pra eles umedecerem minha boca. Só
umedecer um pouco.”
Aquelas pessoas que dizem que pagariam para ver uma tourada em que
o homem fosse chifrado, em vez de sempre ter o touro morto pelo
homem, deveriam ter visto o que aconteceu na arena, na enfermaria e,
mais tarde, no hospital. Gitanillo sobreviveu ao calor de junho e julho e às
duas primeiras semanas de agosto, morrendo de meningite causada por
um ferimento na base da coluna vertebral. Ele pesava cinquenta e oito
quilos quando foi chifrado e vinte e oito quilos quando morreu e, ao longo
do verão, sofreu três rupturas diferentes da artéria femoral, enfraquecida
pelas úlceras causadas pelos tubos de drenagem inseridos no ferimento da
coxa e que rompia sempre que ele tossia. Enquanto ele estava no hospital,
Felix Rodríguez e Valência II também deram entrada com ferimentos
quase idênticos na coxa e, muito embora os ferimentos ainda estivessem
abertos, ambos receberam alta para voltar a lutar antes de Gitanillo
morrer. O azar de Gitanillo foi que o touro o arremessou contra a base da
cerca de madeira, então ele estava apoiado em algo sólido quando sofreu a
chifrada nas costas. Se estivesse caído na areia, no meio da arena, o mesmo
golpe que causou o ferimento fatal provavelmente o arremessaria para o
alto em vez de atravessar sua pélvis. Quem diz que pagaria para ver um
toureiro ser morto ficaria satisfeito de saber que Gitanillo começou a
delirar no calor com a dor causada pelo nervo. Dava para ouvi-lo da rua.
Parecia um crime mantê-lo vivo, e ele teria sido muito mais sortudo se
tivesse morrido logo depois da luta, enquanto ainda tinha algum controle
sobre si mesmo e ainda tinha sua coragem, em vez de passar pelo terror
cada vez maior da humilhação espiritual e física imposta a alguém que
suporta por muito tempo uma dor que é insuportável. Ver e ouvir um ser
humano nessas condições deveria, imagino, fazer alguém ter mais
consideração pelos cavalos, pelos touros e por outros animais, mas basta
puxar as orelhas do cavalo para esticar a pele sobre as vértebras na base do
crânio e dar um golpe simples com a puntilla entre as vértebras e assim
resolver todos os problemas do cavalo, que morre instantaneamente. O
touro morre em quinze minutos contando a partir do momento em que o
homem começa a lutar contra ele e todos os ferimentos que sofre ao longo
da tourada são superficiais e, assim como os ferimentos superficiais de um
homem, não devem doer tanto. Mas enquanto se acreditar que o homem é
dono de uma alma imortal, os médicos vão fazer de tudo para mantê-lo
vivo mesmo nos casos em que a morte pareceria a maior dádiva que um
homem poderia dar para o outro, então são os cavalos e os touros que
recebem o melhor tratamento, enquanto o homem é aquele que mais se
arrisca.
Heriberto Garcia e Fermín Espinosa, mais conhecido como Armillita
Chico, são dois toureiros mexicanos, ambos artistas completos e capazes
com a muleta. Heriberto Garcia é tão bom quanto os melhores toureiros e
seu trabalho não tem aquela frieza típica dos índios que extrai toda a
emoção da maioria das touradas mexicanas. Armillita é frio; um pequeno
indígena sem queixo e de pele marrom, com uma coleção estranha de
dentes, um perfil bonito para um lutador, com as pernas mais compridas
do que o tronco, e é sem dúvida um dos grandes artistas com a muleta.
Com um touro que ataque em linha reta permitindo que o matador
deixe os pés unidos, Nicanor Villalta trabalha mais próximo do touro, fica
mais exaltado, mais animado, fazendo uma curva com o próprio corpo de
modo a projetar a cintura na direção dos chifres e o belo trabalho que faz
com os pulsos ao manusear a muleta faz o touro andar em círculos ao
redor dele vezes seguidas. Os chifres passam tão perto da sua barriga que,
mais tarde, já no hotel, é possível ver os vergões no seu abdome, sem
exagero; eu vi os vergões, mas achava que eles tinham sido feitos pelos
bastões das banderillas que o acertaram quando o touro passou por ele tão
perto que sua camisa ficou manchada com o sangue do animal; mas os
vergões podem ter sido feitos pelas pontas cegas dos chifres, os chifres
passavam tão perto que eu nem quis ver. Quando ele faz uma boa faena,
ele mostra que tem coragem; coragem e um pulso mágico que faz você
perdoar toda a falta de jeito que ele pode demonstrar com touros que não
atacam em linha reta. Você pode ver uma bela faena de Villalta em Madri;
nunca nenhum matador teve tanta sorte para sortear touros bons como
ele tem em Madri. Pode ter certeza de que ele vai ser desajeitado, feito um
louva-a-deus, sempre que pegar um touro difícil, mas lembre que a falta de
jeito é causada por sua estrutura física, e não por covardia. Por causa de
sua estrutura física, ele só consegue ser elegante se puder juntar os pés e,
embora a falta de jeito seja um sinal de pânico num toureiro naturalmente
elegante, no caso de Villalta significa apenas que ele sorteou um touro que
o obrigará a afastar os pés para poder lutar. Mas se você puder vê-lo numa
tourada em que ele consiga juntar os pés, inclinar o corpo antes do ataque
do touro como se fosse uma árvore no meio de uma tempestade; controlar
o touro que dá uma, duas, três voltas ao seu redor; animado a ponto de se
ajoelhar diante do touro já dominado e morder o chifre, você vai perdoá-lo
pelo pescoço que Deus lhe deu, por usar uma muleta que mais parece um
lençol de tão grande e pelas pernas que lembram dois postes telefônicos, e
você vai perdoá-lo porque esse corpo incomum tem mais coragem e honra
do que uma dúzia de toureiros.
Cayetano Ordóñez, o Niño de la Palma, sabia manusear a muleta
perfeitamente com qualquer uma das mãos, era um toureiro que
desempenhava seu papel lindamente, fazia faenas com um grande senso
artístico e dramático, mas depois de entender que um touro poderia levar
um homem ao hospital, o que era inevitável, ou à morte, o que era
provável, e que cravar a espada no meio da cernelha valia cinco mil pesetas
para o toureiro, ele nunca mais foi o mesmo. Ele queria as cinco mil
pesetas, mas não tinha disposição para se aproximar do touro quando
entendeu o estrago que os chifres podiam fazer. A coragem percorre um
caminho curto: do coração até a cabeça, mas quando desaparece, ninguém
sabe direito para onde ela vai; talvez se esgote numa hemorragia ou acabe
por causa de uma mulher, mas é um mau negócio trabalhar no ramo das
touradas quando a coragem desaparece sem deixar rastros. É possível
recuperá-la com outro ferimento, quando o primeiro deixa o toureiro com
medo da morte, o segundo pode botar um fim a esse medo. Os toureiros
continuam no ramo contando com seu conhecimento e com sua
habilidade de controlar o perigo, torcendo para que a coragem volte e às
vezes ela volta, mas na maioria das vezes, não volta.
Enrique Torres e Victoriano Roger Valência II não são bons com a
muleta e essa é a maior limitação que eles enfrentam no trabalho, pois
ambos são habilidosos com a capa num dia bom. Luis Fuentes Bejarano e
Diego Mazquarián, mais conhecido como Fortuna, são dois toureiros
muito corajosos, ambos têm um bom conhecimento da profissão, são
capazes de controlar touros difíceis e apresentam desempenhos
competentes com qualquer tipo de touro, mas sem nenhum estilo
aparente. Fortuna é mais tradicional do que Bejarano, cujo estilo baseia-se
em artifícios modernos e ruins, mas ambos são corajosos, competentes,
sortudos e banais. Eles são o tipo de matador bom de se ver com touros
comuns ou com touros difíceis. Numa situação em que um toureiro
criativo não faria nada, eles conseguem proporcionar uma tourada
competente com todas as emoções baratas e a teatralidade misturadas
com um ou dois momentos de emoção verdadeira. Dos três melhores
matadores das touradas, que são Antonio “Zurito” de la Haba, Martín
Agüero e Manolo Martínez, apenas Martínez chega perto de executar uma
faena com a muleta e, quando ele consegue executá-la, é muito mais por
causa da coragem e dos riscos que assume do que por uma habilidade
verdadeira em manusear o pano.
Dos outros trinta e quatro matadores em atividade, apenas uns poucos
merecem ser mencionados. Um deles, Andrés Mérida, de Málaga, é um
cigano alto, magro e de olhar vago que manuseia a capa e a muleta com
criatividade e é o único toureiro de que se tem notícia que parece
totalmente distraído na arena, como se estivesse pensando em outra coisa
muito distante e muito diferente. Ele é suscetível a ataques de medo tão
intensos que são difíceis de descrever, mas quando se sente confiante com
um touro, ele consegue ser maravilhoso. Dos três ciganos de verdade,
Mérida, Cagancho e Gitanillo de Triana, o meu preferido é Mérida. Ele
tem a mesma elegância dos outros, mas com algo de grotesco que,
somado ao seu olhar vago, na minha opinião, faz dele o cigano mais
interessante de todos, logo depois de El Gallo. De todos eles, Cagancho é o
mais talentoso. Gitanillo de Triana é o mais corajoso e o mais digno. No
último verão, ouvi várias pessoas de Málaga dizerem que Mérida não era
cigano de verdade. Se esse for o caso, ele é ainda melhor como uma
imitação do que seria como um cigano.
Saturio Torón é um banderillero excelente, muito valente, com os
modos mais ignorantes, perigosos e ruins que já vi num matador. Depois
da prática como banderillero, ele assumiu a espada como aprendiz de
matador em 1929 e teve uma temporada excelente, sendo bem-sucedido
graças à coragem e à boa sorte. Ele foi oficialmente designado como
matador em 1930 por Marcial Lalanda em Pamplona e foi gravemente
ferido nas suas três primeiras lutas. Se ele evoluísse, talvez conseguisse se
livrar de algumas pequenas vulgaridades típicas de cidade pequena que
marcam seu estilo e se tornasse um bom toureiro, mas pelo que vi em
1931, ele parecia um caso perdido e eu torço muito para que os touros não
acabem com ele.
Na lista daqueles que começaram com potencial para serem bons
matadores e terminaram sendo fracassos ou tragédias, as duas principais
causas de fracasso, sem contar má sorte, são a falta de habilidade artística,
que não tem como ser compensada por coragem, e medo. Dois matadores
que eram corajosos de verdade, mas que falharam em conquistar espaço
por causa de um repertório limitado, foram Antonio “Zurito” de la Haba e
Bernardo “Carnicerito” Muñoz. Outro que é muito corajoso e com mais
repertório que Carnicerito e Zurito, e que mostra potencial para se tornar
um bom matador, apesar da baixa estatura, é Julio “Palmeno” García.
Além de Domingo Ortega, sobre quem já escrevi neste livro, entre os
novos matadores com alguma fama estão José Amoros, cujo estilo é mais
elástico e peculiar, e ele parece se esticar para longe do touro como se
fosse feito de borracha, mas não tem categoria nenhuma e seu único
talento é a elasticidade; José González, o Carnicerito do México, um
indígena mexicano que pertence à escola dos prodígios destemidos
capazes de devorar um touro vivo e, apesar de ser muito corajoso, um
bom banderillero e um artista competente e emocionante, ele não deve
durar muito se correr com os touros adultos os mesmos riscos que corre
com os touros jovens e, como ele deixou o público mal-acostumado a
experimentar emoções fortes, as pessoas certamente vão perder o interesse
se ele deixar de correr riscos; e Jesús Solorzano, o mais promissor de todos
os novos toureiros. Jesús, também chamado de Chucho, caso você não
conheça o diminutivo desse nome cristão, é um mexicano que não tem
sangue indígena e é um toureiro perfeito, corajoso, criativo, inteligente e
tem pleno domínio de todos os aspectos de sua arte, à exceção de um
detalhe bem pequeno, o de executar o descabello, ou coup de grâce, e no
entanto ele não tem personalidade nenhuma. Essa falta de personalidade é
difícil de analisar, mas até então parece estar relacionada a uma maneira de
se comportar que é arrogante, desleixada, negligente e provocadora toda
vez que não está lidando diretamente com o touro. Os toureiros dizem
que o medo do touro pode alterar a personalidade de um toureiro, isto é,
se ele é arrogante e controlador, ou afável e elegante, o medo elimina essas
características; mas Solorzano não tem nenhuma personalidade para ser
alterada. No entanto, quando ele se sente confiante com um touro, faz
tudo com perfeição e já cravou um belo par de banderillas caminhando
devagar na direção do touro, no mesmo estilo de Gaona, exibiu o melhor e
mais vagaroso trabalho com a capa, e com a muleta executou a faena mais
emocionante e mais próxima do touro que vi em toda a temporada de
1931. A parte ruim do seu trabalho é que o seu desempenho com o touro é
lindo, mas assim que ele se afasta do animal, assume uma posição meio
corcunda e uma expressão apática, mas com ou sem personalidade ele é
um toureiro maravilhoso que tem conhecimento, além de coragem e
criatividade.
Outros dois matadores novos são José Mejías, conhecido como Pepe
Bienvenida, o irmão caçula de Manolo, que é mais corajoso e mais nervoso
que o irmão mais velho, tem um repertório pitoresco e variado, e uma
personalidade muito sedutora, mas não tem a mesma habilidade artística
nem o conhecimento que Manolo tem para dominar os touros com
segurança, embora possa desenvolver isso com o tempo; e David Liceaga,
um jovem toureiro mexicano que é bastante habilidoso com a muleta, sem
nenhum estilo nem habilidade com a capa e, o que é estranho para um
mexicano, medíocre com as banderillas. Escrevo isso de Liceaga sem ter
lido nada sobre ele nos textos escritos por pessoas que respeito e que o
viram trabalhar. Ele lutou apenas duas vezes em Madri em 1931; uma vez
como novillero no dia em que viajei para Aranjuez a fim de ver Ortega, e
de novo em outubro, para se tornar oficialmente um matador, depois que
fui embora da Espanha. Mas ele é muito popular na Cidade do México, e
qualquer um que queira conferir o seu trabalho provavelmente consegue
vê-lo no México nos meses de inverno.
Minha lista não inclui nenhum prodígio, pois optei por não avaliar
ninguém que não tenha conquistado o direito de ser julgado. Existem
prodígios aos montes nas touradas. Até este livro sair, os prodígios já serão
outros. Cultivados pela publicidade, eles brotam todas as temporadas com
a força de uma boa tarde de tourada em Madri com um touro gentil; mas a
flor glória-da-manhã é um monumento de resistência comparada com
esses toureiros de uma vitória só. Daqui a cinco anos, você vai encontrá-
los comendo esporadicamente num café, usando seu único terno
apresentável, e poderá ouvi-los falar sobre como, naquela tarde em Madri,
eles foram melhores do que Belmonte. Pode até ser verdade. “E como foi a
sua última apresentação?”, você pergunta. “Não tive muita sorte na hora
de matar o touro. Só me faltou um pouquinho de sorte”, diz o antigo
prodígio, e você diz: “Que pena. É difícil um homem sempre ter sorte para
matar os touros”, e você imagina o prodígio suando, pálido e doente de
medo, incapaz de olhar para os chifres ou de se aproximar deles, algumas
espadas no chão, capas espalhadas por toda parte, o toureiro correndo na
direção do touro em diagonal esperando que a espada atinja um ponto
vital, almofadas arremessadas dentro da arena e os bois prontos para
entrar. “Só me faltou um pouquinho de sorte.” Isso foi dois anos atrás e ele
não lutou nenhuma vez desde então, a não ser deitado na cama, quando
acorda suando de medo, e ele não vai lutar de novo a menos que sinta
gana de lutar, porque todo mundo sabe que ele é covarde e imprestável,
ele talvez tenha de encarar alguns touros que ninguém mais quer e, se
criar coragem para fazer isso, como não tem treinado, é possível que o
touro o mate. Ou talvez, de novo, ele “não tenha muita sorte na hora de
matar o touro”.
Existem mais de setecentos e sessenta toureiros malsucedidos que ainda
tentam praticar a arte da tourada na Espanha; os habilidosos se deram mal
por sentirem medo e os corajosos se deram mal por falta de talento. Às
vezes, quando você não tem sorte, acaba vendo um toureiro corajoso
morrer. No verão de 1931, assisti a uma luta com touros de cinco anos de
idade enormes e muito rápidos e três aprendizes de matador. O mais
experiente entre eles era Alfonso Gómez, conhecido como Finito de
Valladolid, e tinha pelo menos trinta e cinco anos, dava para ver que tinha
sido um homem bonito e agora era um fracasso em sua profissão, ainda
assim muito digno, inteligente e corajoso, que tinha passado dez anos
lutando em Madri sem nunca chamar a atenção do público o suficiente
para avançar de novillero a matador. O mais velho era Isidoro Todo,
conhecido como Alcalareno II, com trinta e sete anos e um pouquinho
mais do que um metro e meio de altura, um homenzinho animado e
corpulento que sustentava quatro crianças, a irmã viúva e a mulher com
quem vivia com o pouco de dinheiro que ganhava nas touradas. Tudo que
ele tinha como toureiro era uma coragem enorme e o fato de ser muito
baixinho, um defeito que impossibilitava sua carreira como matador, mas
que fez dele uma atração, uma curiosidade na arena. O terceiro lutador era
Miguel Casielles, um perfeito covarde, mas essa é uma história enfadonha
e desagradável. A coisa mais marcante foi a maneira como Alcalareno II
morreu, e essa morte foi desagradável demais, analisando agora, para falar
dela a menos que seja necessário. Cometi o erro de falar dela para o meu
filho. Quando voltei para casa depois de ter assistido à tourada, ele queria
saber tudo que tinha acontecido na luta e, como um idiota, contei para ele
o que eu tinha visto. A única coisa que ele fez foi me perguntar se o
toureiro tinha sobrevivido porque ele era pequeno demais. Meu filho
também era pequeno. Eu disse que sim, ele era pequeno, mas ele não
sabia como usar a muleta. Eu não disse que ele tinha morrido; disse apenas
que tinha se ferido; pelo menos tive essa presença de espírito, embora não
fosse grande coisa. Então alguém na sala, acho que foi Sidney Franklin,
disse em espanhol: “Ele morreu.”
“Você não me contou que ele tinha morrido”, disse o menino.
“Eu não tinha certeza.”
“Não gosto que ele tenha morrido”, disse o menino.
No dia seguinte, ele disse: “Não consigo parar de pensar no homem que
morreu porque era muito pequenininho.”
“Não pense nisso”, eu disse, desejando pela milésima vez na vida que eu
pudesse retirar o que tinha dito. “É besteira pensar nisso.”
“Não quero pensar nisso, mas queria que você não tivesse me contado
porque, toda vez que fecho os olhos, vejo o toureiro morrendo.”
“Pense no Pinky”, eu disse. Pinky é um cavalo em Wyoming. Depois
disso, foi preciso ter cuidado com a morte. Meus olhos estavam muito
ruins para ler e minha mulher estava lendo em voz alta o romance mais
sangrento que Dashiell Hammett já escreveu, Maldição em família, e
quando Mr. Hammett matava um personagem ou um grupo de
personagens, ela substituía por na-na-na todas as vezes que apareciam as
palavras morto, garganta cortada, tiro na cabeça, espalhado pelo quarto, e
assim por diante, e logo a diversão do na-na-na conquistou o menino de tal
maneira que, quando ele disse: “Sabe aquele cara que foi na-na-na porque
era muito pequenininho? Eu não me lembro mais dele”, eu sabia que
estava tudo bem.
Houve quatro toureiros que foram promovidos a matador em 1931, dois
deles merecem ser citados como promessas e um como curiosidade, e um
nem precisa ser citado porque era um prodígio. As duas promessas são
Juanito Martín Caro, conhecido como Chiquito de la Audiencia, e Luis
Gómez, conhecido como El Estudiante. Chiquito, aos vinte anos, tinha
experiência porque lutava contra touros jovens desde os doze. Com um
estilo elegante, gracioso, consistente, inteligente e competente, ele era tão
bonito que parecia uma garota, mas na arena ele era dominante e sério, e
não havia nada de afeminado nele a não ser seu rosto, e não havia nada da
aparência frágil e derrotada de Chicuelo. Sua desvantagem era que o seu
trabalho, embora fosse inteligente e bonito de ver, era frio e
desapaixonado; faz tanto tempo que ele luta que parece ter o cuidado e os
recursos de defesa de um matador em fim de carreira, em vez de agir
como um garoto que arrisca de tudo para conquistar espaço. Mas ele tem
uma habilidade artística enorme e é esperto, e vai ser muito interessante
acompanhar a carreira dele.
Luis “El Estudiante” Gómez é um jovem estudante de medicina com um
rosto bonito e moreno, passa a impressão de ser ávido, e tem um bom
físico que pode servir de referência para um biótipo do jovem matador
típico, dono de um eficiente estilo de manusear a capa e a muleta que é ao
mesmo tempo clássico e moderno, e capaz de fazer um sacrifício bom e
rápido. Depois de três temporadas lutando nas províncias durante o verão
e estudando medicina em Madri no inverno, ele estreou no outono
passado em Madri como um novillero e fez um sucesso enorme. Ele se
tornou um matador profissional em Valência, durante as corridas de San
José em março de 1932 e, de acordo com aficionados em quem confio, era
muito bom e parecia promissor, embora às vezes, trabalhando com a
muleta, sua coragem e seu desejo de fazer uma faena acabavam colocando
ele em situações difíceis das quais não se dava conta e se salvava porque
tinha sorte e reflexos bons. Na superfície, parecia que ele dominava os
touros, mas na verdade a sorte o salvou mais de uma vez; contudo, com
inteligência, coragem e um bom estilo, é uma esperança legítima como
matador se continuar com sorte ao longo de sua primeira campanha
inteira.
Alfredo Corrochano, filho de Gregorio Corrochano, o influente crítico
de touradas do jornal monarquista de Madri, ABC, é um matador feito sob
encomenda pelo pai sob a influência de Ignacio Sánchez Mejías, o cunhado
de Joselito, que Corrochano atacou de maneira tão severa e com uma
virulência enorme durante a temporada em que acabou morrendo.
Alfredo é um garoto magro, moreno, desprezível e arrogante, com uma
expressão majestática que lembra a de Alfonso XIII quando criança. Ele
estudou na Suíça e foi treinado como matador nos testes dos novilhos e
dos bois das fazendas de touros nos arredores de Madri e Salamanca por
Sánchez Mejías, seu pai e todos aqueles que bajulavam seu pai. Ele lutou
como profissional nos últimos três anos, primeiro como um artista-mirim
ao lado dos filhos de Bienvenida, depois como um novillero, no ano
passado. Devido à influência do pai, sua apresentação em Madri deu o que
falar e ele foi alvo da amargura de todos os inimigos que seu pai fez com
textos sarcásticos extremamente bem escritos, assim como de todos
aqueles que o odiavam por ser um filho da classe média monarquista que
estava privando garotos que não tinham o que comer de uma chance de
ganhar a vida na arena. Ao mesmo tempo, ele lucrava com a publicidade e
a curiosidade que esses sentimentos geravam e, em suas três aparições
como novillero em Madri, ele se entediou de maneira atrevida, arrogante e
muito masculina. Ele demonstrou ser um bom banderillero, um
dominador excelente com a muleta, com inteligência e perspectiva na hora
de lutar com o touro, mas revelou um estilo lamentavelmente ruim com a
capa e uma inabilidade absoluta de executar o touro de maneira adequada
ou mesmo decente. Em 1932, ele recebeu a alternativa em Castellon de la
Plana na primeira corrida do ano e, de acordo com os meus informantes,
ele não mudou desde a última vez que o vi, a não ser pelo fato de que
estava tentando corrigir a maneira vulgar com que fazia uma veronica,
substituindo vários truques pitorescos com a capa por essa manobra
insubstituível que demonstra a serenidade e a habilidade artística de um
toureiro. Sua carreira deve chamar atenção como uma curiosidade, mas
acredito que, a menos que ele demonstre mais segurança para matar o
touro, o público vai acabar perdendo o interesse, uma vez que o fato de ser
filho de quem é deixe de ser uma novidade.
Victoriano de la Serna era um jovem novillero que teve aquela
necessidade de mostrar trabalho típica dos prodígios, de apresentar uma
grande tarde de tourada em Madri, em setembro de 1931. Ele foi levado,
exibido e explorado nos arredores de Madri, com touros pequenos
escolhidos a dedo, como uma forma de minimizar os riscos de um desastre
e de aumentar as chances de um triunfo, inclusive nos relatos dos críticos
de Madri pagos para assistir, então ele foi levado para uma segunda
aparição em Madri como um matador profissional, no fim da temporada.
Ele mostrou que sua profissionalização foi precoce, que ainda era imaturo,
tinha pouca experiência para ir para a arena de forma segura com os
touros mais velhos. Nessa temporada, ele contou com uma certa
quantidade de contratos assinados no ano passado, antes de fracassar em
Madri, mas, apesar de sua indubitável e extraordinária habilidade natural,
sua oficialização precoce como matador parece ter sido o início de sua
queda, uma situação conhecida por todos os outros prodígios que o
antecederam. Como sempre, em nome do toureiro, que tem menos culpa
do que os seus aproveitadores, espero estar errado e que ele seja,
miraculosamente, capaz de aprender seu ofício enquanto o pratica como
um matador, mas isso é uma forma tão evidente de enganar o público que
mesmo quando um matador consegue aprender sua arte nessas
circunstâncias, o público raramente o perdoa e, quando ele se torna
confiante o suficiente para satisfazer as pessoas, elas já perderam o
interesse.
19

Existem apenas duas formas corretas de matar touros com a espada e a


muleta e, como ambas se valem de um momento em que a chifrada é
inevitável caso o touro não siga o pano direito, os matadores recorrem a
artifícios naquela que é a parte mais importante de uma tourada, e assim
noventa em cada cem touros mortos são sacrificados de uma maneira que
mais parece uma paródia do modo certo de matar um touro. Uma razão
para isso é que as chances de um grande artista com a capa e a muleta ser
também um assassino são muito baixas. Um bom assassino precisa amar o
ato de matar; ele precisa sentir que é a melhor coisa que pode fazer, que é
algo digno e que é uma espécie de recompensa, caso contrário ele não terá
o desprendimento necessário para matar. O verdadeiro assassino deve ter
um senso de honra e um senso de glória muito maior do que um toureiro
comum. Em outras palavras, ele precisa ser um homem mais simples. Ele
também precisa sentir prazer com a morte, e não executá-la apenas como
um movimento que envolve o pulso, a visão, e um controle da mão
esquerda superior ao de outros homens, pois essa é a forma mais simples
desse orgulho, um orgulho que sentirá naturalmente por ser um homem
simples, mas ele deve ter um prazer espiritual na hora de matar. Matar de
maneira limpa e de um modo que inspire prazer estético e orgulho sempre
foi um dos maiores prazeres de uma parte da raça humana. Por causa da
outra parte, a parte que não gosta de matar, que é mais articulada e
forneceu a maioria dos bons escritores que existem, nós não temos muitos
relatos sobre o autêntico prazer de matar. Um dos maiores prazeres do
homem, além dos meramente estéticos como atirar em pássaros, e dos
prazeres vaidosos como caçar por esporte, marcado pela importância
desproporcional da fração de segundo necessária para dar um tiro, é a
sensação de se rebelar contra a morte ao poder administrá-la. Uma vez que
você aceita isso, o mandamento não matarás é fácil de obedecer. Mas
quando um homem ainda é capaz de se rebelar contra a morte, ele sente
prazer em assumir um dos atributos de Deus: o de proporcionar a morte.
Esse é um dos sentimentos mais profundos nos homens que sentem
prazer matando. Essas coisas são feitas por orgulho e o orgulho,
obviamente, é um pecado capital e uma virtude pagã. Mas é o orgulho que
está por trás da tourada e o prazer verdadeiro de matar que está por trás
de um grande matador.
É claro que essas qualidades espirituais necessárias não fazem de um
homem um bom matador, a menos que ele tenha o talento físico para
desempenhar o ato; uma boa visão, um pulso forte, coragem e uma boa
mão esquerda para controlar a muleta. Ele precisa ter essas qualidades em
um grau excepcional, ou sua honestidade e seu orgulho vão levá-lo para o
hospital. Hoje, não existe na Espanha um matador que seja bom de
verdade. Existem matadores bem-sucedidos que podem matar com
perfeição, quando querem e se têm sorte, mas sem muito estilo e que
geralmente nem tentam muito porque não precisam disso para cativar o
público; existem toureiros que teriam sido bons matadores no passado,
que começaram suas carreiras matando touros tão bem quanto possível,
mas que, por não terem habilidade com a capa e a muleta, logo deixaram
de atrair a atenção do público e assim tiveram poucos contratos e menos
oportunidades de desenvolver sua habilidade com a espada ou de seguir
praticando; e existem matadores que estão no início de carreira e matam
bem, mas que ainda não passaram pelo teste do tempo. Mas não existe um
matador que seja excelente e que, dia após dia, consiga matar direito, com
facilidade e orgulho. Os principais matadores desenvolveram um jeito
artificial e simples de matar que subverteu aquele que deveria ser o
momento de mais emoção da tourada, tornando-o uma decepção. Agora,
a emoção é proporcionada pela capa, de vez em quando pelas banderillas e
quase sempre pelo trabalho com a muleta, e o melhor que você pode
esperar da espada é um fim que seja rápido e que não estrague o efeito de
tudo que veio antes. Acho que vi mais de cinquenta touros serem mortos
com graus diferentes de dificuldade até ver um touro ser morto do jeito
certo. Eu não tinha nenhuma reclamação da tourada até então, ela era
bem interessante, melhor do que qualquer outra coisa que eu tenha visto;
mas eu achava que a parte da espada não era particularmente interessante,
mas sim um anticlímax. Ainda assim, sem saber nada sobre touradas,
pensei que talvez fosse mesmo um anticlímax e que as pessoas que falavam
e escreviam bem sobre as mortes estavam mentindo. Meu ponto de vista
era bastante simples; eu gostava do fato de ele ser morto com uma espada
porque é raro qualquer coisa ser morta com uma espada; mas a forma
como ele era morto parecia artificial e não me comovia nem um pouco.
Assim é uma tourada, pensei, com um final não muito bom, mas talvez
seja isso mesmo e eu ainda não tenha entendido direito. De qualquer
forma, foram os dois dólares mais bem gastos da minha vida. Ainda assim,
lembrei da minha primeira tourada, antes de eu entender como
funcionava, antes até de eu entender o que se passava na arena, em meio à
novidade, à multidão, à confusão, ao vendedor de cervejas com casaco
branco, dois cabos de aço entre os meus olhos e a arena logo abaixo, o
lombo do touro coberto de sangue, as banderillas batendo umas nas
outras enquanto o touro se movia, deixando um rastro de poeira atrás de
si, os chifres com uma aparência sólida como se fossem de madeira, mais
grossos do que um braço na parte curvada; eu me lembro de, no meio
dessa confusão animada, ter vivido um momento de grande emoção
quando o homem fincou a espada. Mas não consegui ver exatamente o
que aconteceu e em que parte, mas no touro seguinte, prestei atenção e
não senti nada, e entendi que tinha sido um artifício. Vi outros cinquenta
touros serem mortos depois disso até sentir a mesma emoção de novo.
Mas nesse ponto eu já entendia como eles faziam e sabia que tinha visto
uma morte bem executada naquela primeira vez.
Quando testemunhar a morte de um touro pela primeira vez, se for uma
morte comum, é mais ou menos isso que você vai ver. O touro imóvel
sobre as quatro patas encarando o homem a uma distância de mais ou
menos cinco metros, com os pés unidos, a muleta na mão esquerda e a
espada na direita. O homem ergue a muleta com a mão esquerda para ver
se o touro segue o pano com os olhos; depois ele baixa o pano e o segura
junto com a espada, vira o corpo de modo que fique de lado em relação ao
touro, faz um giro com a mão esquerda para enrolar o pano no bastão da
muleta, saca a espada da muleta baixada e mira o touro, a cabeça, com a
lâmina da espada e o seu ombro esquerdo apontando para o animal, a
muleta ainda na mão esquerda baixada. Você vai ver o toureiro deixar o
corpo tenso e caminhar na direção do touro e, muito rápido, ele cruza o
caminho do animal, ou a espada vai voar longe e cair no chão, ou você vai
ver o punho envolvido com flanela vermelha, ou o punho e uma parte da
lâmina despontando do lombo ou do pescoço do touro e o clamor da
multidão em aprovação ou desaprovação, dependendo da maneira como o
homem executou o movimento e da posição da espada.
Isso é tudo que você vai ver no sacrifício; mas há uma mecânica própria
dele. Não é correto tentar matar um touro com um golpe da espada no
coração. A espada não é longa o suficiente para alcançar o coração, se for
cravada no lugar certo, que é entre as escápulas. O certo é ela passar pelas
vértebras no alto das costelas e cortar a aorta para matar
instantaneamente. Esse é um golpe perfeito com a espada e, para executá-
lo, um homem precisa ter sorte para que a ponta da espada não atinja a
coluna vertebral ou as costelas ao ser cravada. Nenhum homem consegue
ir na direção de um touro, passar por cima da cabeça do animal se ela
estiver erguida e cravar a espada no lombo. Quando a cabeça do touro está
erguida, a espada não é longa o suficiente para ir da cabeça até o lombo.
Para que o homem consiga inserir a espada no lugar certo para matar o
touro, a cabeça do touro deve estar baixada para que o lugar certo fique
exposto, e mesmo assim o homem deve inclinar o corpo para a frente,
sobre a cabeça do touro, para fazer a espada entrar. Agora, se o touro
erguer a cabeça enquanto a espada está entrando, duas coisas podem
acontecer, e nenhuma delas é o homem ser arremessado no ar: ou o touro
estará em movimento passando pelo homem, perseguindo a muleta que
está no braço esquerdo enquanto a espada é cravada com o braço direito,
ou o homem estará em movimento passando pelo touro, que é desviado
para longe pela muleta na mão esquerda, que baixada cruza a frente do
corpo do homem, da direita para a esquerda, enquanto ele crava a espada
sobre a cabeça do touro e escapa ao longo do flanco do animal. O
sacrifício pode ser deturpado quando tanto o homem quanto o touro
estão em movimento.
Estes são os fundamentos mecânicos das duas maneiras de se matar um
touro corretamente: ou o touro deve vir na direção do homem e,
provocado, avançar controlado pelo homem, que faz o animal passar por
ele e se afastar com um movimento da muleta enquanto a espada é
cravada no lombo do touro; ou o homem deve posicionar o touro com as
patas dianteiras em paralelo e as traseiras formando um quadrado com as
dianteiras, a cabeça não pode estar nem muito baixa nem muito alta, deve
testar o animal erguendo e baixando o pano para ver se ele segue o
movimento com os olhos e, em seguida, com a muleta na mão esquerda
cruzando na frente do corpo de modo que o touro, se acompanhar o pano,
vai passar pela direita do homem, que avança sobre o touro, que baixa a
cabeça para acompanhar o pano e se afastar do homem, que crava a
espada e escapa ao longo do flanco do animal. Quando o homem espera
pelo ataque do touro, é chamado de matar recibiendo.
Quando o homem avança sobre o touro, é chamado de volapié, ou pés
alados. A preparação para o ataque, com o ombro esquerdo e a espada
apontando para o touro, a muleta na mão esquerda, é chamada de
perfilagem. Quanto mais perto do animal o homem estiver, menores serão
as chances de ele desviar e escapar do touro se ele não seguir o pano
durante a aproximação. O movimento feito com a muleta no braço
esquerdo, que passa na frente do corpo do homem, da esquerda para a
direita, para se livrar do touro, é chamado de cruzamento. Sempre que o
homem não cruzar o pano, o touro ficará em cima dele. Se o homem não
conseguir afastar o touro o suficiente, é certeza que o chifre vai acertá-lo.
Para um cruzamento bem-sucedido, é preciso fazer um movimento do
pulso que balança as pregas da muleta dobrada e também um movimento
simples do braço que passa pela frente do corpo do homem e se afasta. Os
toureiros dizem que um touro é morto mais pela mão esquerda, que
controla a muleta e conduz o animal, do que pela mão direita, que crava a
espada. Não é preciso fazer força para fincar a espada, a menos que a ponta
atinja um osso; se for guiado corretamente pela muleta, e se o homem
inclinar o corpo sobre a espada, às vezes parece que o touro arranca a
espada da mão do toureiro. Outras vezes, quando acerta um osso, parece
que o toureiro cravou a espada num muro de borracha e cimento.
No passado, os touros eram mortos recibiendo, com o matador
provocando e esperando pelo ataque, e os touros que eram pesados
demais para atacar tinham os tendões das pernas cortados por uma lança
com uma lâmina na ponta, no formato de meia-lua, e depois eram mortos
com um punhal cravado entre as vértebras do pescoço quando já estavam
nas últimas. Esse esquema repugnante se tornou desnecessário quando
Joachín Rodríguez, conhecido como Costillares, inventou o volapié, no fim
do século XVIII.
No sacrifício do touro recibiendo, o homem fica parado com o corpo
reto e os pés ligeiramente separados depois de ter provocado o ataque do
touro dobrando uma de suas pernas e agitando a muleta na direção do
animal, o homem deixa o touro se aproximar até que ele e o touro se
tornam um só no momento do golpe da espada; e o choque do encontro
separa os dois; esse momento, em que eles estão unidos pela espada, que
parece entrar um centímetro de cada vez, é a forma mais arrogante de
lidar com a morte e é uma das melhores coisas que você pode ver numa
tourada. Você talvez nunca veja porque o volapié, que é bem perigoso
quando executado corretamente, é muito menos perigoso do que a suerte
de recibir, tanto que hoje é muito raro ver um toureiro matar recibiendo.
Presenciei a morte de mais de mil e quinhentos touros e vi o movimento
ser executado corretamente apenas quatro vezes. Você vai ver o
movimento ser tentado, mas ele só será um recibiendo se o homem
realmente esperar pelo touro e depois se livrar dele com um movimento
do braço e do pulso, sem deturpar a manobra dando um passo para o lado.
Maera fazia, Niño de la Palma fez uma vez em Madri e simulou a manobra
várias vezes, Luis Freg fazia. Poucos touros chegam ao fim de uma luta em
condições de fazer um recibiendo, mas existem ainda menos toureiros
capazes de executá-lo. Uma razão para a decadência dessa forma de matar
é que, se o touro ignorar o pano e atacar o homem, o chifre estará na
altura do peito. Ao lutar com a capa, o primeiro ferimento, a primeira
chifrada será na perna, na altura da coxa. Enquanto o segundo ferimento,
se o touro passar pelo homem com um ou outro chifre, será uma questão
de sorte. Na muleta ou na morte pelo volapié, o ferimento é quase sempre
na coxa direita, pois é a região por onde os chifres do touro passam
quando ele baixa a cabeça, embora um homem que tenha passado bem
por cima dos chifres possa ser atingido debaixo do braço ou mesmo no
pescoço se o touro levantar a cabeça antes que o homem termine o
movimento. Mas ao matar recibiendo, se alguma coisa der errado, o chifre
acerta o peito do homem e por isso você dificilmente vê alguém tentar
esse movimento, a não ser por um toureiro que tenha sorteado um ótimo
touro e que tenha feito uma esplêndida faena, e que no fim queira fazer
um clímax formidável, sendo assim, ele tenta matar recibiendo, mas
geralmente o touro foi castigado com a muleta, ou o homem não tem
experiência para fazer a manobra corretamente, e a faena termina com um
anticlímax ou com uma chifrada.
O volapié, se executado do jeito certo, de maneira lenta, próxima e
sincronizada, é uma boa maneira de matar. Vi toureiros serem chifrados
no peito, ouvi a costela quebrar, de verdade, com o impacto e vi um
homem ser girado pelo chifre com o chifre completamente dentro dele,
muleta e espada no ar, depois no chão, o touro dando cabeçadas e o
homem no alto e o homem preso no chifre quando é arremessado para o
alto, e ele se livrou de um chifre para cair no outro, até cair no chão, tentar
se levantar, colocar as mãos no buraco do peito e ser carregado para fora,
com os dentes quebrados, para morrer uma hora depois na enfermaria
ainda usando os trajes de tourada, os ferimentos grandes demais para fazer
qualquer coisa. Vi a expressão no rosto desse homem, no rosto de Isidoro
Todo, quando ele ainda estava no ar, consciente de tudo que estava
acontecendo e também depois, conseguindo falar quando estava na
enfermaria e antes de morrer, embora o sangue que tinha na boca deixasse
as palavras ininteligíveis, então entendo a preocupação dos toureiros em
relação a matar recibiendo quando se sabe que a chifrada vem na altura do
peito.
De acordo com historiadores, Pedro Romero, um matador na Espanha
na época da revolução americana, matou cinco mil e seiscentos touros
recibiendo entre os anos de 1771 e 1779, e viveu para morrer deitado na
sua cama aos noventa e cinco anos. Se isso for verdade, vivemos numa
época muito decadente em que é um evento ver um matador tentar um
recibiendo, mas não sabemos quantos touros Romero teria vivido para
matar se ele tivesse tentado executar passes como Juan Belmonte fazia
com a capa e a muleta, tão próximo do touro. E também não sabemos
quantos desses cinco mil ele matou direito, esperando com calma e
cravando a espada no alto, bem no meio das escápulas, ou quantos ele não
matou direito, dando um passo para o lado e deixando a espada entrar no
pescoço. Os historiadores falam bem de todos os toureiros mortos. Ao ler
histórias sobre os grandes toureiros do passado, fica a impressão de que
eles nunca tinham um dia ruim e de que o público jamais ficava insatisfeito
com eles. Talvez o público nunca ficasse insatisfeito com eles antes de 1873
porque não tive tempo para ler relatos contemporâneos que falassem
sobre uma época anterior a essa data, mas a partir dela as touradas passam
a ser consideradas decadentes por cronistas contemporâneos. Durante o
período que agora é descrito como a era de ouro de todas as eras de ouro,
a época de Lagartijo e Frascuelo, que foi uma era de ouro de verdade,
havia a opinião geral de que as coisas não iam bem; de que os touros eram
muito menores e mais jovens, ou eram grandes e covardes. Lagartijo não
gostava de matar; Frascuelo, sim, mas ele era maldoso com sua cuadrilla e
impossível de conviver; Lagartijo saiu da arena com uma multidão atrás
dele no dia de sua última apresentação em Madri. Quando os relatos
chegam a Guerrita, outro herói da era de ouro, que corresponde ao
período antes, durante e depois da Guerra Hispano-Americana, já se falava
sobre como os touros eram pequenos e jovens; os animais gigantes de
coragem fenomenal que havia na época de Lagartijo e Frascuelo já não
existiam mais. Lemos sobre como Guerrita não chega aos pés de Lagartijo.
É um sacrilégio comparar os dois e as touradas fuleiras de hoje fazem
aqueles que se lembram da honestidade (não mais da terrível maldade) de
Frascuelo se revirarem no caixão; El Espartero não era bom e a prova disso
é que ele morreu; por fim, Guerrita se aposenta e todo mundo respira
aliviado; ninguém mais o aguenta, embora as touradas, assim que Guerrita
se foi, tenham entrado numa depressão profunda. Os touros,
estranhamente, ficaram menores e mais jovens, ou eles são grandes e
covardes; Mazzantini não é bom, ele ainda mata, sim, mas não recibiendo,
e ele se atrapalha todo com a capa e é uma negação com a muleta.
Felizmente, ele se aposenta e, assim que o grande Don Luis Mazzantini sai
de cena, os touros ficam menores e mais jovens, embora existam alguns
covardes que são enormes e que seriam mais úteis puxando carroças do
que dentro de uma arena, e quando aquele colosso da espada saiu de cena,
assim como, lamentavelmente, Guerrita, o mestre dos mestres, novatos
como Ricardo Bombita, Machaquito e Rafael El Gallo, todos toureiros de
araque, dominaram as touradas. Bombita controla os touros com a muleta
e tem um sorriso agradável, mas ele não consegue matar como
Mazzantini; El Gallo é ridículo, um cigano maluco; Machaquito é corajoso
mas ignorante, ele só se salva porque tem sorte e pelo fato de que os
touros são muito mais jovens e menores do que os gigantes corajosos da
época de Lagartijo, Salvador Sanchez e Frascuelo, que hoje é
carinhosamente chamado de Negro e amado por todos. Vicente Pastor é
honesto e corajoso na arena, mas ele dá um pulinho quando mata e quase
passa mal de medo antes de entrar na arena. Antonio Fuentes ainda é
elegante, um belo toureiro com os bastões e tem um bom estilo de matar,
mas isso não conta porque quem é que não seria elegante com os touros
de hoje em dia, tão mais jovens e menores do que os touros na época de
colossos como Lagartijo, Frascuelo, o heroico Espartero, o mestre dos
mestres Guerrita, e aquele deus da espada Don Luis Mazzantini. A
propósito, nessa época, quando Don Indalecio Mosquera promoveu a
Arena Madri sem se importar nem um pouco com a qualidade das
touradas, só com o tamanho dos touros, estatísticas mostram que esses
eram, consistentemente, os maiores touros jamais enfrentados em Madri.
Por volta da mesma época, Antonio Montes morreu no México e no
mesmo instante foi considerado o melhor toureiro de sua geração. Sério e
magistral, sempre fazendo valer o dinheiro do ingresso, Montes foi morto
por um pequeno touro mexicano, magro e de pescoço longo, que ergueu a
cabeça em vez de acompanhar a muleta no momento em que a espada foi
cravada, e quando Montes tentou se virar e escapar dos chifres, o chifre
direito encaixou no meio das nádegas, o touro levantou Montes e o
carregou por quatro metros, como se ele estivesse sentado numa banqueta
(o chifre perfurou o toureiro e sumiu de vista), e depois caiu morto por
causa da espada. Montes levou quatro dias para morrer.
Então surge Joselito, chamado de Pasos Largos no início de carreira e
atacado por todos os admiradores de Bombita, Machaquito, Fuentes e
Vicente Pastor, todos esses aposentados, felizmente, e todos considerados
incomparáveis. Guerrita disse que, se você quisesse ver Belmonte,
precisava se apressar porque ele não duraria muito; nenhum homem
consegue trabalhar tão perto do touro. Quando ele continuou trabalhando
cada vez mais perto, descobriram, claro, que os touros eram paródias dos
animais gigantes que ele, Guerrita, tinha matado. A imprensa admitia que
Joselito era muito bom, mas observava que ele só conseguia cravar
banderillas de um lado, o direito (óbvio que os touros eram muito
pequenos), ele mesmo insistia nesta ideia: ele matava erguendo a espada
tão alto que alguns diziam que ele a tirava do chapéu e outros afirmavam
que ele usava a espada como se fosse um prolongamento do próprio nariz,
e juro por Deus: vaiaram, xingaram e jogaram almofadas na última vez
que ele lutou em Madri, no dia 15 de maio de 1920, enquanto enfrentava
seu segundo touro, depois de ter cortado a orelha do primeiro, e alguém o
acertou no rosto com uma almofada enquanto a multidão gritava “Que se
vaya! Que se vaya!”, que pode ser traduzido como “Suma daqui e nunca
mais me apareça!”. No dia seguinte, 16 de maio, ele morreu em Talavera
de la Reina, chifrado na parte baixa do abdome. Seus intestinos ficaram à
mostra (ele não conseguiu segurá-los com as mãos, mas morreu de
choque hemorrágico causado pela força da cornada enquanto os médicos
trabalhavam no ferimento, e sua expressão era muito tranquila na mesa de
operação depois de ter morrido, como mostra uma foto de seu cunhado
cobrindo seus olhos com um lenço, e do lado de fora uma multidão de
ciganos chorando com El Gallo andando de um lado para o outro, num
estado lamentável, aterrorizado pela ideia de entrar e ver o irmão morto, e
o banderillero Alamendro dizendo: “Se eles mataram esse homem, então
conseguem matar qualquer um! Qualquer um!”) e na imprensa,
imediatamente, ele se tornou e continua sendo o maior toureiro de todos
os tempos; maior que Guerrita, Frascuelo e Lagartijo, de acordo com os
mesmos homens que o tinham atacado quando ele era vivo. Belmonte se
aposentou e se tornou maior até do que José, voltou a lutar depois que
Maera morreu, e descobriram que ele explorava a antiga fama porque
estava mais interessado no dinheiro (ele só lutou com touros selecionados
naquele ano), lutou por mais um ano, juro que foi o melhor de sua
carreira, ele lutou contra todos os touros, não fez nenhuma exigência
relacionada a tamanhos e foi triunfante em todas as etapas da tourada,
inclusive no sacrifício, algo que ele não dominava antes, e foi atacado pela
imprensa durante a temporada inteira. Ele se aposentou de novo depois de
ter sofrido um ferimento terrível causado por uma chifrada e todos os
relatos contemporâneos concordam que ele é o maior toureiro vivo. Então
é assim que funciona, e não tenho como saber como era Pedro Romero
até que eu leia os relatos contemporâneos sobre sua carreira antes,
durante e depois, e duvido que existam muitos relatos assim, mesmo em
correspondências, para respaldar um julgamento correto.
De acordo com todas as fontes diferentes que li e de todos os relatos
contemporâneos, a época dos maiores touros e a verdadeira era de ouro
em Madri foi a de Lagartijo e Frascuelo, que foram os maiores toureiros
dos últimos sessenta anos até Joselito e Belmonte. A época de Guerrita não
foi uma era de ouro e ele foi responsável por introduzir touros mais jovens
e menores (pesquisei os pesos e conferi fotografias), e nos doze anos em
que lutou, ele teve apenas um ano bom de verdade como toureiro, que foi
1894. Touros grandes voltaram às arenas na época de Machaquito,
Bombita, Pastor e El Gallo, e o tamanho dos touros diminuiu
consideravelmente na era de ouro de Joselito e Belmonte, embora eles
tenham enfrentado várias vezes os maiores touros que existiam. Hoje os
touros são grandes e velhos para os matadores que não são influentes, e
pequenos e jovens quando o toureiro é poderoso o suficiente para
influenciar na seleção. Os touros são sempre tão grandes quanto as raças
permitem ser em Bilbao, pouco importa o que querem os matadores, e
geralmente os criadores andaluzes enviam os maiores e melhores touros
para a feria de julho em Valência. Vi Belmonte e Marcial Lalanda
triunfarem em Valência com touros tão grandes quanto os maiores
registrados na história daquela arena.
Este resumo histórico começou lamentando o desaparecimento do
sacrifício de touros recibiendo, que, para recapitular, desapareceu por não
ser ensinado nem praticado, porque não havia demanda do público, pois é
uma coisa que precisa ser praticada, entendida e dominada, e é muito
arriscada quando improvisada. Se ela fosse praticada, poderia ser
facilmente desempenhada se permitissem aos touros chegar ao fim da luta
em condições adequadas. Mas, numa tourada, qualquer suerte que possa
ser substituída por outra com quase o mesmo apelo entre o público, e com
menos risco de morrer caso algo dê errado, com certeza vai desaparecer
das touradas a menos que haja uma demanda do público para que os
lutadores a executem.
Para que um volapié seja executado corretamente, o touro precisa estar
aprumado e com as patas dianteiras alinhadas e próximas uma da outra. Se
uma pata estiver mais para a frente, isso afeta a altura da escápula e a
abertura por onde a espada deve entrar, que é do tamanho do espaço entre
as mãos quando você toca apenas a ponta dos dedos e deixa os pulsos um
pouco afastados, a abertura vai fechar do mesmo modo que o espaço entre
as mãos fecha se você aproximar um pulso do outro. Se as pernas do touro
estiverem bem abertas, essa abertura se fecha porque as escápulas quase
encostam uma na outra e, se as patas não estiverem alinhadas, a abertura
se fecha totalmente. É por essa abertura que a ponta da espada deve passar
para penetrar na cavidade do corpo, e ela só consegue penetrar se não
atingir uma costela nem a coluna vertebral. Para melhorar as chances de
atingir a aorta, a ponta da espada é vergada de modo que ela faça uma
curva para baixo. Se o homem for matar o touro de frente, projetando o
ombro esquerdo, se ele cravar a espada entre as escápulas do animal, ele
automaticamente se exporá aos chifres; na verdade, o corpo do toureiro
deve passar por sobre os chifres no momento em que crava a espada. Se a
mão esquerda do toureiro, que cruza diante do corpo segurando a muleta
que é quase arrastada no chão, não consegue manter a cabeça do animal
baixada até que o homem possa cravar a espada por sobre os chifres e
escapar ao longo do flanco do touro, o homem será chifrado. Para evitar
esse momento de grande perigo a que o homem se expõe toda vez que
mata um touro, de acordo com as regras, os toureiros que querem matar
sem se expor devem começar a uma distância considerável do touro de
modo que o touro, vendo que o homem se aproxima, também estará em
movimento e o homem, que cruza diante da investida do touro com o
braço direito projetado para a frente em vez do ombro esquerdo, tenta
cravar a espada sem deixar que seu corpo fique ao alcance dos chifres. A
forma que acabei de descrever é a maneira mais flagrante que existe para
uma má execução do sacrifício. Quanto mais atrás a espada for cravada no
pescoço do touro e quanto mais baixo no lombo, menor é o risco para o
homem e maior é a certeza de que ele vai matar o touro, uma vez que a
espada passa pela cavidade do peito, pelos pulmões, ou corta a jugular e
outras veias, ou a carótida e outras artérias do pescoço, todas elas podem
ser atingidas pela ponta da espada sem que o homem corra risco nenhum.
É por esse motivo que um sacrifício é julgado pelo lugar onde a espada é
cravada e pela maneira como o homem se aproxima para matar, e não
pelos resultados obtidos. Matar o touro com apenas um golpe da espada
não tem mérito nenhum a menos que a espada seja cravada num ponto
alto no lombo do touro e a menos que o homem passe por sobre a cabeça
do animal e deixe seu corpo ao alcance dos chifres no momento do ataque.
Muitas vezes no sul da França e eventualmente em províncias da
Espanha, onde acontecem poucas touradas, vi um toureiro ser aplaudido
com entusiasmo porque tinha matado o touro com um golpe da espada
apesar da manobra ter sido um assassinato sem qualquer risco para o
homem; porque ele não se expôs em momento algum e apenas fincou a
espada num ponto vulnerável e desprotegido. O motivo para o homem ter
de matar o touro cravando a espada num ponto alto no lombo é porque se
trata de um lugar que o touro pode defender e que só vai ficar
desprotegido se o homem se aproximar dos chifres, contanto que ele lute
de acordo com as regras. Matar um touro em pontos que o animal não
consegue defender, como o pescoço ou o flanco, é criminoso. Matá-lo num
ponto alto no lombo impõe riscos para o homem e exige muita habilidade
para evitar o perigo. Se o homem usa essa habilidade para realizar o
movimento correto com a espada de maneira tão segura quanto possível,
expondo seu corpo ao mesmo tempo que o protege com a destreza da
mão esquerda, ele é um bom matador. Se ele usa sua habilidade apenas
para trapacear no sacrifício, cravando a espada no lugar certo mas sem
nunca expor seu corpo, ele é um carniceiro eficiente, mas não importa o
quão rápido e seguro ele consiga matar os touros, ele não é um matador.
Um grande matador de verdade não é o homem que tem coragem de
chegar muito perto do touro para cravar a espada num ponto
relativamente alto no lombo, mas sim um homem que consegue chegar
muito perto do touro, devagar, movendo primeiro o pé esquerdo e
demonstrando uma habilidade tão grande com a mão esquerda que, à
medida que se aproxima, com o ombro esquerdo projetado, faz o touro
baixar a cabeça e mantê-la baixada enquanto passa por sobre os chifres,
crava a espada e, enquanto a espada entra, o homem escapa ao longo do
flanco do touro. Um grande matador deve conseguir executar essa
manobra com segurança e estilo, e no caso de ele se aproximar do touro
com o ombro esquerdo projetado e ao atacar a espada atingir um osso que
impeça sua entrada, ou se ela for desviada pelas costelas e só entrar um
terço da lâmina, ainda assim o mérito da tentativa de matar será tão
grande quanto se a lâmina tivesse entrado inteira e matado o touro, pois o
homem se arriscou e o resultado só não foi bom por azar.
Um pouco mais do que um terço da espada, no lugar certo, consegue
matar um touro que não seja muito grande. Metade da espada atinge a
aorta em qualquer touro, se a espada for direcionada de maneira correta e
cravada num ponto alto o suficiente. Muitos toureiros, portanto, não usam
o corpo para cravar a espada inteira, eles apenas tentam inserir metade da
lâmina, sabendo que isso basta para dar conta do touro se ela entrar no
lugar certo e assim eles ficam muito mais seguros se não tiverem de
empurrar aqueles dois últimos palmos para dentro. Essa prática de
administrar as estocadas, criada por Lagartijo, é o que acabou com a
emoção do sacrifício, pois a beleza do momento do sacrifício é aquele
instante em que o homem e o touro formam uma figura única, conforme
a espada penetra inteira, com o homem se inclinando sobre o touro, e a
morte unindo as duas figuras no clímax emocional, estético e artístico da
tourada. Esse instante não existe ao cravar apenas metade da espada no
touro.
Hoje, Marcial Lalanda é o matador com mais habilidade para cravar a
espada, segurando-a na altura dos olhos, enquanto observa o touro,
recuando um passo ou mais antes de começar a aproximação e, com a
ponta da lâmina apontada para cima, ele chega perto do touro, desvia dos
chifres com habilidade e crava a espada quase sempre com perfeição.
Entretanto, ele não se expõe em momento algum e não há nenhuma
emoção no sacrifício. Ele também sabe como matar. Eu o vi executar um
volapié com perfeição; mas ele faz valer o dinheiro do público em outros
departamentos da luta e confia na habilidade que tem de se desvencilhar
rápido do touro de modo a preservar a memória de seus feitos com a capa,
as banderillas e a muleta. Sua maneira convencional de matar, da maneira
como a descrevi, é uma paródia infeliz de como um sacrifício pode ser.
Depois de ler muitos relatos contemporâneos, acredito que o caso de
Marcial Lalanda, no que se refere não aos primeiros julgamentos que
sofreu, mas ao domínio constante que exerce no presente, à filosofia que
adota em relação às touradas e ao seu método de matar são comparáveis
ao que o grande Lagartijo fazia no meio da carreira, embora Lalanda não
seja comparável ao cordovês em elegância, estilo e naturalidade; mas
ninguém hoje consegue superar a maestria de Lalanda. Acredito que daqui
a dez anos as pessoas vão se referir aos anos 1929, 1930 e 1931 como a era
de ouro de Marcial Lalanda. Hoje em dia, ele atrai tantos inimigos quanto
qualquer outro grande toureiro, mas ele é, sem dúvida, o mestre de todos
os toureiros da atualidade.
Vicente Barrera tem um estilo de matar pior do que o de Lalanda, mas
ele adota um esquema diferente. Em vez de cravar metade da lâmina com
habilidade no lugar certo, ele prefere o movimento traiçoeiro de fincar
uma parte da lâmina em qualquer lugar acima do pescoço, respeitando
assim a lei que exige ao menos uma estocada do toureiro, tendo em mente
que, executando uma estocada, ele pode matar o touro com um
descabello. Ele é um virtuoso do descabello, que se trata de um golpe com
a ponta da espada no meio da coluna cervical para cortar a medula,
supostamente usado como um coup de grâce num touro moribundo que já
não consegue acompanhar a muleta com os olhos, poupando o matador
de atacar o touro pela frente. Barrera usa a primeira estocada, imposta por
lei a qualquer matador segundo os regulamentos das touradas, apenas para
tentar a sorte de cravar a espada sem se expor ao perigo. Pouco importa o
resultado dessa estocada, Barrera opta sempre por matar o touro com um
descabello. Ele recorre ao seu trabalho com os pés, usa a muleta para fazer
o touro baixar o focinho e expor o ponto entre as vértebras na base do
crânio enquanto ergue a espada que estava nas costas, acima da cabeça,
com o cuidado de manter a lâmina fora do campo de visão do touro e, em
seguida, com a espada apontando para baixo, controlada pelo pulso e com
a precisão de um malabarista, ele dá o golpe e acerta a medula espinhal,
matando o touro como se estivesse desligando um interruptor de luz. O
método de Barrera matar, apesar de estar dentro das regras, é a negação da
essência e da tradição de uma tourada. O descabello, que é executado de
surpresa como um coup de grâce pensado para acabar com o sofrimento de
um animal que não consegue mais se defender, é usado por ele para evitar
riscos que ele deveria correr ao matar usando a espada. Ele desenvolveu
uma precisão tão mortífera no uso da espada, e o público sabe disso por
experiência própria, que nada faz Barrera correr qualquer risco por menor
que seja, e hoje o público tolera esse uso abusivo do descabello e às vezes
até aplaude. Aplaudi-lo por sabotar no sacrifício só porque ele executa
uma manobra com habilidade, confiança e segurança, garantida pelo
trabalho de pés assertivo diante do touro e pela habilidade de fazer um
touro baixar a cabeça como se estivesse morrendo, é quase tão baixo
quanto a inteligência de certa parcela do público de arena.
Entre os matadores de primeira categoria, Manolo Bienvenida é o pior
na hora de matar o touro, só não é pior do que Cagancho. Nenhum deles
finge respeitar as regras do sacrifício e, na verdade, se aproximam do touro
correndo com a intenção de dar uma espetada no touro com a espada
correndo menos riscos do que um banderillero corre ao colocar as
banderillas. Nunca vi Bienvenida matar um touro bem e apenas duas vezes
num total de vinte e quatro, em 1931, eu o vi matar touros de maneira
decente. A covardia que demonstra no momento do sacrifício é
vergonhosa. A covardia de Cagancho quando ele tem de matar é mais do
que vergonhosa. Não tem nada a ver com o suor e a boca seca de um
garoto de dezenove anos que não sabe matar direito e tem medo demais
dos touros grandes e pavor dos chifres e não corre os riscos necessários
para tentar a manobra e aprender como executá-la corretamente. É uma
artimanha cigana premeditada contra o público, colocada em prática pelo
vigarista mais descarado e revoltante que já pisou numa arena. Cagancho
sabe matar direito, ele é alto, o que facilita muito o ato de matar o touro e,
quando ele quer, consegue matar de maneira competente, eficaz e com
estilo. Mas Cagancho nunca faz nada que envolva o risco de levar uma
chifrada. Matar é evidentemente perigoso, até para um grande toureiro,
então Cagancho, com a espada na mão, evita se aproximar demais dos
chifres do touro, a menos que ele perceba que o touro é inocente e
inofensivo, e que vai seguir o pano como se o focinho estivesse grudado
nele. Se Cagancho comprovou que, para sua alegria, o touro não
representa risco nenhum, ele vai matar com estilo, elegância e uma
confiança absoluta. Se acha que o touro representa o mais remoto perigo,
ele não chega nem perto dos chifres. Essa covardia cínica é a atitude mais
repugnante que pode haver numa tourada; pior até do que o pânico de
Niño de la Palma, porque Niño de la Palma não consegue mais executar
seus passes corretamente, o medo toma conta dele, enquanto quase todas
as atitudes de Cagancho poderiam servir de exemplo e modelo de uma
tourada artisticamente perfeita. No entanto, ele só tem um desempenho
desses se tiver certeza de que não há perigo algum no embate com o
touro; mesmo que as chances estejam quase todas a favor do homem, isso
não é o suficiente. Ele não se arrisca. Ele precisa ter certeza absoluta de
que não há perigo ou ele vai sacudir uma capa a dois metros de distância,
balançar a ponta da muleta e assassinar com uma estocada pela lateral. Ele
vai fazer isso com touros que não são violentos nem particularmente
perigosos para um matador com habilidade razoável e alguma coragem. A
coragem dele é menor do que a de um piolho, tendo em vista que seu
físico, seu conhecimento e sua técnica permitem que ele se sinta muito
mais seguro dentro de uma arena do que qualquer pessoa atravessando
uma rua movimentada, desde que ele não chegue perto do touro. Um
piolho ainda se arrisca nas costuras de uma roupa. Pode ser que você vá
para uma guerra e receba remédio para piolho, ou você pode caçar o
piolho com a unha do polegar, mas não existe remédio para Cagancho. Se
houvesse uma comissão que regulasse os toureiros e suspendesse
matadores como acontece com boxeadores de araque, que perdem o
direito de lutar quando não têm as costas quentes, Cagancho poderia ser
eliminado das praças de touros ou ele poderia, por medo da suspensão, se
tornar um grande toureiro.
Manolo Bienvenida teve uma única grande luta em toda a temporada de
1931 e ela foi no seu último dia em Pamplona, quando ele estava com mais
medo do público e da raiva que as pessoas sentiram dos seus desempenhos
covardes do que dos touros. Ele tinha pedido para o governo mandar
tropas para protegê-lo antes da luta e o governador disse que, se ele tivesse
um bom desempenho na arena, não precisaria de proteção. Todas as noites
em Pamplona, Manolo fazia chamadas telefônicas de longa distância para
saber das notícias que envolviam a derrubada de árvores na fazenda de seu
pai por camponeses da Jacquerie na Andaluzia; bosques inteiros sendo
cortados e queimados, porcos e galinhas sendo mortos, rebanhos de gado
sendo afugentados; a fazenda, que ele ajudava a pagar com o dinheiro que
ganhava nas touradas, sendo saqueada um dia após o outro no belo plano
de sabotagem agrária da revolta andaluza; e ele com apenas dezenove anos
de idade, sabendo pelo telefone que seu mundo estava sendo destruído um
pouco a cada noite, o que bastava para deixá-lo bem preocupado. Mas os
garotos em Pamplona e os camponeses do interior que estavam gastando
suas economias para ver as touradas, e tendo suas expectativas frustradas
por causa de matadores covardes, não queriam saber de abstrações
envolvendo crises econômicas e a falta de interesse dos matadores no
próprio trabalho, e eles se revoltaram contra Manolo de modo tão
violento e o deixaram com tanto medo que, enfim, temendo de ser
linchado, ele proporcionou uma tarde esplêndida no último dia da feria.
Se uma penalidade pudesse suspendê-lo de seus negócios lucrativos,
Cagancho talvez tivesse bons desempenhos com mais frequência. Sua
desculpa é que ele corre perigo, e o espectador, não, mas ele é pago de
acordo, e o espectador está pagando, e o público protesta quando
Cagancho se recusa a aceitar o perigo. É verdade que ele já foi chifrado
antes, mas por causa de imprevistos como uma repentina rajada de vento
que o deixou desprotegido quando estava muito próximo de um touro que
considerava seguro. Existe uma parcela de risco que ele não consegue
eliminar e, depois de sair do hospital e voltar para a arena, ele não
consegue nem chegar perto de um touro que ele considera inofensivo,
uma vez que não há nenhuma garantia de que o vento não sopre enquanto
ele estiver trabalhando, ou de que a capa não entre no meio de suas
pernas, ou de que ele não pise na capa, ou de que o touro não fique cego.
Ele é o único toureiro que me deixou feliz por ter sido chifrado; mas
chifrá-lo não é uma solução porque ele sai pior do hospital. No entanto,
ele continua assinando contratos e roubando o dinheiro do público porque
todo mundo sabe que, quando quer, ele consegue fazer uma faena
completa e esplêndida, um exemplo de manobra perfeita, e encerrá-la com
um sacrifício lindamente executado.
O melhor matador hoje é Nicanor Villalta, que começou trapaceando na
hora de matar o touro, usando sua altura para se inclinar sobre o touro
enquanto cegava o animal com uma muleta imensa, e que agora
aperfeiçoou, depurou e dominou a arte de tal forma que, pelo menos em
Madri, ele mata quase todos os touros que encara de perto com confiança,
de maneira correta, segura e emocionante, aprendendo a fazer mágica
com seu pulso esquerdo a fim de matar o touro de verdade, sem
artimanhas. Villalta é um exemplo do homem simples que citei no início
deste capítulo. No que se refere à inteligência e à conversa, ele não é tão
esperto quanto uma criança de doze anos de idade se ela tiver problemas
de desenvolvimento, e ele se acha tão glorioso e acredita tanto na própria
grandiosidade que não parece haver limites para ele. Além disso, ele tem
uma bravura meio histérica que supera em intensidade qualquer coragem
mais contida. Pessoalmente, eu o considero insuportável, embora ele
talvez seja agradável para quem não se importa com pessoas histéricas que
ficam se vangloriando, mas com a espada e a muleta em Madri, ele é hoje
o matador mais corajoso, mais confiante e mais consistente e emocionante
da Espanha.
O homem que melhor manuseava a espada no meu tempo era Manuel
Vare, conhecido como Varelito, provavelmente o melhor matador de sua
geração, que tinha Antonio de la Haba, conhecido como Zurito; Martín
Aguero; Manolo Martínez e Luis Freg. Varelito tinha uma estatura
mediana, era simples, sincero e um ótimo matador. Como todos os
matadores de estatura mediana, ele era bastante castigado pelos touros.
Ainda sem se recuperar dos efeitos de uma chifrada ocorrida no ano
anterior, ele estava com dificuldade de matar com seu estilo antigo na feria
de abril, em Sevilha, no ano de 1922 e, com um desempenho de má
qualidade, a multidão o vaiou e o insultou ao longo de toda a feria. Ao dar
as costas para o touro depois de ter cravado a espada, o animal o atacou e
causou um ferimento profundo próximo do reto, chegando a perfurar os
intestinos. Foi um ferimento semelhante ao sofrido por Sidney Franklin,
que se recuperou na primavera de 1930, e foi o mesmo tipo de ferimento
que matou Antonio Montes. Ele, Varelito, ao ser chifrado no fim de abril,
viveu até o dia 13 de maio. Enquanto o carregavam da arena para a
enfermaria, a multidão, que o tinha vaiado um minuto antes, agora estava
murmurando como sempre acontece depois de uma chifrada grave, e
Varelito dizia, olhando para o público: “Vocês são culpados por isso. Eu
sou culpado por isso. Vocês são culpados por isso. Vocês conseguiram o
que queriam. Eu sou culpado. Vocês são culpados. Eu sou culpado. Vocês
são. Eu sou”. Ele levou quase quatro semanas para morrer.
Zurito era filho de um dos últimos e mais importantes picadores do
passado. Ele era de Córdoba, moreno e muito magro; sua expressão era
muito triste; ele era sério e tinha um profundo senso de humor. Ele
matava de modo clássico, lento e bonito, com um senso de honra que o
proibia de tirar qualquer vantagem ou usar qualquer artimanha, ou de
abandonar a linha reta ao avançar na direção do touro. Ele era um dos
quatro novilleros que causavam sensação na turma de 1923 e 1924, e
quando os outros três, que eram mais experientes do que ele, embora
nenhum deles fosse muito experiente, se tornaram matadores, ele também
se tornou um no finzinho da temporada, sem terminar seu aprendizado,
no sentido de que um aprendizado deve ocorrer até que um ofício seja
dominado.
Nenhum dos quatro passou por um verdadeiro aprendizado. Manuel
Baez, conhecido como Litri, o mais sensacional dos quatro, era um
prodígio. Era muito corajoso e seus reflexos eram ótimos, mas era de uma
bravura insensata e muito ignorante na luta. Ele era um menino de rosto
moreno, pernas arcadas e cabelo preto, tinha a expressão de um coelho e
um tique nervoso nos olhos que o fazia piscar quando via o touro se
aproximar; mas ao longo de um ano ele substituiu coragem, sorte e
reflexos por conhecimento e, sempre que era arremessado pelo touro, o
que aconteceu, literalmente, centenas de vezes, ele estava tão perto dos
chifres que o animal não conseguia acertá-lo direito e sua sorte o salvou
em quase todas as situações, menos em uma. Todos nós falávamos dele
como carne de touro e, na verdade, não fez nenhuma diferença quando ele
recebeu a alternativa, porque ele lutava com uma coragem nervosa que
não podia durar, e com seu estilo irregular, ele tinha certeza de que seria
destruído por um touro e, quanto mais dinheiro ganhasse antes disso,
melhor. Ele sofreu um ferimento grave na primeira luta do ano em
Málaga, no início de fevereiro de 1926, depois de ter tido uma temporada
completa como matador. Ele não teria morrido se o ferimento não tivesse
infeccionado com uma gangrena gasosa e a perna não tivesse sido
amputada tarde demais para salvar sua vida. Os toureiros dizem, “Se tiver
que ser chifrado, que seja em Madri”, ou se eles forem valencianos, eles
trocam Madri por Valência, já que essas duas cidades recebem as touradas
mais importantes e, portanto, têm a maioria dos ferimentos causados por
chifradas e, consequentemente, dois dos melhores especialistas nesse tipo
de cirurgia. Não há tempo para um especialista ir de uma cidade a outra
para executar a parte mais importante no cuidado de um ferimento, que é
a abertura e a limpeza de todas as lacerações causadas por uma chifrada
para evitar possíveis infecções. Cheguei a ver um ferimento causado por
uma chifrada cuja abertura na coxa não era maior do que uma moeda de
um dólar, mas que por dentro havia percorrido cinco trajetórias diferentes
causadas pelo giro do corpo do homem sobre o chifre e, às vezes, pela
extremidade do chifre, que racha. Esses ferimentos internos precisam ser
abertos e limpos e, ao mesmo tempo, todas as incisões precisam ser feitas
no músculo de modo que ele cicatrize o mais rápido possível e com a
menor perda de mobilidade possível. Um cirurgião da praça de touros tem
dois objetivos: salvar o homem, o objetivo de um cirurgião convencional;
e devolver o toureiro à arena o mais rápido possível, para que ele possa
cumprir seus contratos. É essa habilidade de curar rápido o toureiro que
torna valioso o trabalho de um especialista em ferimentos causados por
chifrada. É um tipo de cirurgia muito específico, mas sua forma mais
simples, que é o tratamento do ferimento causado quase sempre entre o
joelho e a virilha ou entre o joelho e o tornozelo, pois é nesses lugares que
o touro, de cabeça baixada, atinge o homem numa chifrada, implica
costurar a artéria femoral com rapidez se ela estiver rompida e depois,
geralmente com o dedo ou com uma sonda, encontrar, abrir e limpar
todas as trajetórias que o chifre possa ter percorrido, ao mesmo tempo que
mantém o coração do paciente batendo com injeções de cânfora e que
repõe o sangue perdido com injeções de uma solução salina e assim por
diante. De qualquer forma, a perna infeccionada de Litri em Málaga
acabou sendo amputada pelos médicos, que prometeram, antes de sedá-lo,
limpar somente o ferimento; e quando ele acordou e viu que estava sem a
perna, ele achou que sua vida tinha acabado e entrou num desespero
profundo. Eu gostava muito dele e gostaria que tivesse morrido sem sofrer
a amputação, uma vez que iria morrer de qualquer forma quando recebeu
a alternativa e era certo que seria destruído assim que sua sorte acabasse.
Zurito nunca teve sorte. Por ter tido uma educação incompleta, seu
repertório era bastante limitado com a capa e a muleta, feito sobretudo de
passes por alto e do artifício fácil do molinete, e seu trabalho excelente
com a espada e sua pureza de estilo ao manuseá-la foram ofuscados pela
campanha surpreendente que Litri estava fazendo e pela bela temporada
que Niño de la Palma fez. Zurito teve duas boas temporadas depois da
morte de Litri, mas antes que tivesse chance de se tornar uma figura
dominante de verdade, seu trabalho se tornou antiquado porque ele não
buscava se aperfeiçoar com a capa e a muleta e, como ele sempre mirava a
espada bem no alto da abertura entre as escápulas e atacava com o ombro
esquerdo muito alto, era difícil para ele manter a muleta baixa o suficiente
para controlar o touro, e assim ele foi castigado por muitos touros;
sofrendo particularmente com golpes terríveis de chifres sem ponta na
altura do peito, sendo erguido pelos touros em quase todos os sacrifícios.
Depois ele quase perdeu uma temporada por causa de ferimentos internos
e de uma espécie de inchaço nos lábios, que também tinham sido
atingidos. Em 1927, ele estava lutando em condições físicas tão ruins que
era difícil de ver. Ele sabia que perder a competição de uma temporada
complicava a vida do toureiro, que ficaria limitado a duas ou três lutas por
ano e não conseguiria ganhar a vida, ainda mais com a temporada que
Zurito estava tendo; seu rosto, que até então era de um tom moreno
saudável, estava tão cinza quanto uma lona desgastada pelo tempo; e ele
tinha tão pouco fôlego que dava até dó; ainda assim, conseguia atacar em
linha reta, chegando bem perto, com o mesmo estilo clássico e a mesma
falta de sorte. Quando o touro o erguia do chão ou dava um daqueles
palatazos, ou golpes com o chifre sem ponta que os toureiros dizem
machucar tanto quanto feridas abertas porque causam hemorragias
internas, ele desmaiava de fraqueza, era carregado até a enfermaria,
atendido e liberado para voltar à arena, tão fraco quanto um doente, a fim
de matar mais um touro. Devido ao seu estilo de matar, ele se chocava
com o touro em quase todos os sacrifícios que executava. Ele lutou vinte e
uma vezes, desmaiou em doze delas e matou todos os seus quarenta e dois
touros. Porém, isso não foi suficiente porque seu trabalho com a capa e a
muleta, que nunca teve estilo, não era nem sequer competente nas
condições em que ele estava, e o público não gostava de vê-lo desmaiar.
Chegaram a publicar um artigo contra ele num jornal de San Sebastián.
Essa cidade, onde ele tinha sido muito bem-sucedido, nunca mais o
contratou porque seus desmaios eram considerados revoltantes pelo
público padrão e pelos estrangeiros. Então aquela temporada foi difícil
para ele, apesar de ter dado a demonstração de coragem mais pungente
que já vi. Ele se casou no fim da temporada. Ela queria se casar, segundo
disseram, antes que ele morresse, e em vez disso ele se tornou cada vez
mais saudável; ele engordou bastante e, como amava sua mulher, evitava
atacar o touro em linha reta e lutou apenas mais catorze vezes. No ano
seguinte,
lutou apenas sete vezes na Espanha e na América do Sul. No ano seguin-
te, ele voltou a atacar em linha reta como fazia antes, mas tinha apenas
dois contratos na Espanha para o ano inteiro; o que não bastava para
sustentar sua família. É claro que seus desmaios não eram uma visão
agradável, mas ele conhecia apenas uma forma de matar e ela funcionava,
e se, ao tentá-la, o chifre ou o focinho o acertasse e ele perdesse a
consciência, era um sinal de má sorte, e ele sempre voltava a lutar tão logo
ficasse consciente de novo. Mas o público não gostava. Muito rápido, ele
virou passado. Eu mesmo não gostava dos desmaios, mas juro por Deus
que o admirava. Um excesso de honra pode destruir um homem mais
rápido do que qualquer outra característica boa e, com um pouquinho de
azar, ela acabou com Zurito em uma única temporada.
O velho Zurito, o pai, criou um filho para ser matador e o ensinou sobre
honra, técnica e estilo clássico, e esse garoto é uma negação apesar de ter
habilidade e integridade. Ele ensinou o outro filho a ser um picador e ele
tem um estilo perfeito, uma coragem enorme, é um cavaleiro esplêndido e
seria o melhor picador da Espanha se não fosse por um detalhe. Ele é
muito leve para conseguir castigar os touros. Não importa o quão forte ele
crave a lança, ele mal consegue fazer o touro sangrar. Então ele, com mais
estilo e habilidade do que qualquer outro picador vivo, trabalha em
novilladas ganhando entre cinquenta e cem pesetas por touro, quando
poderia estar seguindo a grandiosa tradição do seu pai se pesasse vinte
quilos mais. Tem mais um filho, que trabalha como picador, mas eu não o
conheço; mas me falaram que ele também é muito leve. É uma família
sem sorte.
Martín Agüero, o terceiro matador, era um garoto de Bilbao que não
tinha nada a ver com um toureiro, ele se parecia mais com um jogador
profissional de beisebol, mais robusto e encorpado, um terceira-base ou
um interbases. Ele era beiçudo, tinha uma aparência germânica que
lembrava o jogador Nick Altrock, e não era criativo com a capa nem com a
muleta, embora fosse bom o suficiente com a capa e, às vezes, excelente;
entendia de touradas; não era ignorante; e fazia o que fazia com a muleta
de maneira competente, embora fosse totalmente sem imaginação e nem
um pouco criativo. Em resumo, era capaz de trabalhar com a capa muito
perto do touro e era um toureiro eficiente, mas sem brilho. Com a espada,
ele era um matador rápido e eficiente. Suas estocadas sempre ficavam
maravilhosas em fotografias porque a fotografia não passa nenhuma noção
do tempo, mas quando você o via matando, ele atacava tão rápido que,
embora matasse de maneira mais eficiente do que Zurito, cruzando o
caminho do touro de maneira magnífica, e cravando a lâmina inteira da
espada em nove de dez tentativas, uma estocada de Zurito era muito
melhor de ver do que uma estocada de Agüero, porque Zurito se
aproximava do touro devagar e em linha reta, marcando tão
completamente o tempo do sacrifício que ele jamais pegava o touro de
surpresa. Agüero matava como um açougueiro, e Zurito, como um padre
numa bênção.
Agüero era muito corajoso e muito eficiente e foi um dos melhores
matadores em 1925, 1926 e 1927, lutando cinquenta e duas vezes nos dois
últimos anos e quase nunca sendo atingido pelo touro. Em 1928, ele foi
chifrado gravemente duas vezes, a segunda cornada causada pela decisão
de voltar a lutar antes de se recuperar por completo da primeira, e as duas
acabaram comprometendo sua saúde e seu físico. Um nervo em uma de
suas pernas foi tão gravemente ferido que atrofiou e isso acabou causando
uma gangrena nos dedos do pé direito e uma cirurgia para removê-los em
1931. Na última notícia que tive, seu pé tinha sido mutilado de tal forma
que sua volta para as touradas foi considerada impossível. Restam os dois
irmãos que trabalham como novilleros e têm a mesma aparência, o
mesmo físico e, ao que parece, a mesma habilidade com a espada.
Diego “Fortuna” Mazquiarán, de Bilbao, é outro grande matador no
estilo açougueiro. Fortuna tem os cabelos cacheados e os pulsos grossos, é
robusto, gosta de se gabar, casou com uma mulher rica, luta apenas para
ter o próprio dinheiro, é tão corajoso como o touro e um pouquinho
menos inteligente. Ele é o homem mais sortudo que já lutou contra
touros. Ele conhece apenas uma forma de lutar com um touro, ele se
comporta como se todos fossem difíceis e executa manobras bruscas e
repentinas com a muleta a fim de posicionar o touro, sem considerar que
tipo de faena seria mais apropriada. Se o touro for difícil, isso o satisfaz
tremendamente, mas se o animal exigir uma bela faena, não. Uma vez que
consiga alinhar as patas dianteiras do touro, Fortuna enrola a muleta,
perfila com a espada, olha para os seus amigos por cima do ombro e diz,
“Vamos ver se dá para matá-lo assim!” e executa um golpe bom, reto e
forte. Ele tem tanta sorte que a espada pode até cortar a medula espinhal e
derrubar o touro como se tivesse sido atingido por um raio. Se ele não
tiver sorte, ele vai suar e o seu cabelo vai cachear ainda mais, ele vai fazer
gestos explicando para o público as dificuldades do animal; vai pedir que o
público reconheça que não se trata de um problema com ele, Fortuna. No
dia seguinte, ocupando seu lugar de sempre no tendido número dois (ele é
um dos poucos toureiros que assiste a touradas com regularidade), quando
um touro extremamente difícil entra na arena para outro toureiro, ele diz
para todos nós: “Aquele touro não é difícil. Aquele touro é tranquilo. Ele
tem que lutar bem contra aquele touro.” No entanto, Fortuna é muito
corajoso; corajoso e estúpido. Ele não sente nenhum tipo de nervosismo
em relação à luta. Eu o ouvi falando com um picador, “Vamos. Anda logo.
Rápido. Estou morrendo de tédio aqui. Isso tudo é muito chato. Anda
logo.” Entre os artistas frágeis, ele se destaca como um sobrevivente de
outra época. Mas, se você se sentar perto dele ao longo de uma temporada
inteira, é você quem vai morrer de tédio.
Manolo Martínez, do bairro de Ruzafa, em Valência, é ligeiro, tem olhos
redondos, o rosto retorcido e o sorriso fino, e parece mais o tipo que
aposta em cavalos, ou parece um daqueles sujeitos durões que você via ao
redor de mesas de bilhar quando era pequeno. Muitos críticos não o
consideram um grande matador porque ele nunca teve sorte em Madri e
os editores do jornal francês de touradas Le Toril, um periódico muito
bom, não o consideram nem um pouco porque ele tem bom senso para
não se arriscar quando luta no sul da França, onde qualquer espada que
desapareça dentro do touro, independente de como e de onde seja
cravada, é aplaudida com entusiasmo. Martínez é tão corajoso quanto
Fortuna, e ele nunca morre de tédio. Ele adora matar e não é convencido
como Villalta; quando tudo corre bem, ele fica feliz, tanto por você quanto
por ele mesmo. Ele já foi muito castigado pelos touros e eu o vi levar uma
cornada feia em Valência. Seu trabalho com a capa e a muleta é irregular,
mas se o touro for honesto e rápido ao atacar, Martínez trabalhará tão
perto do animal quanto qualquer outro toureiro. No dia da cornada,
pegou um touro que atacava mais com o chifre direito e, aparentemente,
ele não percebeu esse defeito. O touro se chocou com ele uma vez durante
um passe com a capa e, na segunda vez, Martínez fez o passe pelo mesmo
lado apesar de não ter espaço, e o touro o colheu com o chifre direito e o
arremessou. Ele não se feriu, o chifre escorregou ao longo da pele sem
enganchar e só rasgou as calças, mas ele caiu de cabeça e ficou grogue e,
na virada seguinte com a capa, ele levou o touro até o centro da arena e lá,
sozinho, tentou mais uma vez fazer um passe pela direita. É claro que o
touro o pegou de novo, o defeito do chifre direito acentuado por ter
conseguido pegar o homem antes, e dessa vez o chifre perfurou o corpo e
Martínez saiu do chão carregado pelos chifres, o touro o arremessou com
tudo e, com ele caído no chão e imóvel, o touro o chifrou várias vezes até
que outros toureiros conseguissem chegar ao centro da arena e atrair a
atenção do animal. Quando Manolo se levantou, ele viu o sangue jorrando
de sua virilha e, sabendo que a artéria femoral tinha sido atingida, ele usou
as duas mãos para tentar conter a hemorragia e correu o mais rápido
possível na direção da enfermaria. Ele sabia que sua vida estava se esvaindo
no sangue que passava por entre os dedos e ele não podia esperar que fosse
carregado. Eles se ofereceram para carregá-lo, mas ele fez que não com a
cabeça. O dr. Serra veio correndo pelo corredor de acesso à arena e
Martínez gritou para ele, “Don Paco, sofri uma baita cornada!” e, com o
dr. Serra usando o polegar para tentar conter o sangue que jorrava da
artéria, os dois foram para a enfermaria. O chifre tinha atravessado quase
completamente a sua coxa, ele estava perdendo tanto sangue e estava tão
fraco e prostrado que ninguém acreditava que poderia sobreviver e, a certa
altura, quando não conseguiram identificar seus batimentos cardíacos, eles
chegaram a anunciar sua morte. A destruição do músculo foi tamanha que
ninguém pensou que ele voltaria a lutar se sobrevivesse, mas depois de ter
sido chifrado no dia 31 de julho, ele estava bem o suficiente para lutar no
México no dia 18 de outubro, graças ao seu físico e à habilidade do dr.
Paco Serra. Martínez sofreu ferimentos terríveis causados por chifradas,
mas quase nunca ao matar o touro; mas geralmente por gostar de
trabalhar perto de touros que não permitem essa proximidade e pela
maneira irregular com que manuseia a capa e a muleta e pelo desejo de
manter os pés absolutamente unidos enquanto executa o passe; mas os
ferimentos parecem reforçar sua coragem. Ele é um toureiro local. Ele só
tem desempenhos muito bons em Valência, mas em 1927, numa feria
organizada em torno de Juan Belmonte e Marcial Lalanda, e para a qual
Martínez não tinha sido contratado, quando Belmonte e Martínez foram
chifrados, ele foi chamado para substituí-los e lutou três touradas
excepcionais. Ele fez tudo com a capa e a muleta tão perto e tão
perigosamente, e assumiu riscos tão grandes, que foi difícil acreditar que
os touros não o matariam, e quando chegou a hora do sacrifício,
perfilando de perto, com arrogância, se balançando um pouco para se
firmar bem no chão, com o joelho esquerdo ligeiramente dobrado,
colocando o peso no outro pé, e então avançando e matando de uma
maneira que nenhum homem vivo seria capaz de fazer melhor. Em 1931,
ele sofreu um ferimento grave em Madri e ainda não havia se recuperado
quando lutou em Valência. Hoje, todos os críticos dizem
que sua carreira acabou, mas desde o início ele ganhou a vida provando
que
os críticos estavam errados, e acredito que assim que seus nervos e
músculos forem capazes de seguir seu coração, ele voltará a lutar tão bem
quanto antes, até um touro acabar com ele. Isso parece inevitável dada sua
irregularidade e sua inabilidade de dominar um touro difícil, combinadas
com sua enorme coragem. Sua bravura é quase cômica. É um pouco
como a coragem de um cockney, enquanto a de Villalta é orgulhosa, a de
Fortuna é burra e a de Zurito é mística.
A coragem de Luis Freg é a mais estranha que já vi. Ele não tem
nenhuma criatividade, a não ser com a espada. Sua coragem é tão
indestrutível quanto o mar, embora seja sem sal, a não ser talvez pelo sal
do seu sangue, e o sangue humano tem um gosto doce e enjoativo, apesar
de sua qualidade salina. Se Luis Freg tivesse morrido em qualquer uma das
quatro vezes que foi dado como morto, eu poderia escrever mais
livremente sobre seu caráter. Ele é um índio mexicano, atarracado, de voz
macia, mãos leves, nariz adunco, um olhar de soslaio, beiçudo, cabelo
muito escuro, o único matador que ainda usa um rabicho na cabeça, e ele
é um toureiro profissional no México desde que Johnson lutou contra
Jeffries em Reno, Nevada, em 1910, e na Espanha desde o ano seguinte.
Nos vinte e um anos que ele trabalhou como matador, os touros lhe
deram setenta e dois ferimentos graves causados por chifradas. Nenhum
toureiro foi mais castigado pelos touros do que ele. Ele recebeu a extrema-
unção em cinco ocasiões diferentes em que sua morte foi dada como certa.
Suas pernas são tão marcadas e retorcidas por cicatrizes que mais parecem
os galhos de um carvalho velho, e seu peito e seu abdome estão cobertos
por cicatrizes de ferimentos que deveriam ter sido fatais. A maioria
causada por falta de agilidade e pela inabilidade de controlar os touros
com a capa e a muleta. No entanto, ele era um grande matador; lento,
seguro e direto, e as poucas vezes que foi chifrado enquanto matava,
poucas em relação ao total de vezes que foi ferido, ocorreram porque ele
não teve agilidade para sair do meio dos chifres e escapar pelo flanco do
animal depois de cravar a espada, e não por qualquer defeito na sua
técnica. As chifradas terríveis, os meses em hospitais que consumiam todo
o seu dinheiro, não afetavam em nada sua coragem. Mas era uma coragem
estranha. Ela nunca entusiasmava ninguém. Não era contagiosa. Você
podia vê-la, reconhecê-la e saber que o homem era corajoso, mas de
alguma forma era como se a coragem fosse um xarope e não um vinho, ou
tivesse o sabor de sal e cinzas na boca. Se as qualidades tivessem odores,
para mim, o odor da coragem seria o de couro defumado ou o cheiro de
uma estrada no inverno, ou o cheiro do mar quando o vento rasga uma
onda, mas a coragem de Luis Freg não tinha esse odor. Ela era azeda e
pesada, e debaixo disso havia algo sutil que era desagradável e gosmento, e
quando ele estiver morto, vou contar para você tudo o que sei sobre ele e é
uma história bem estranha.
A última vez que ele foi dado como morto foi em Barcelona, rasgado
com violência, o ferimento cheio de pus, ele delirando e todo mundo
acreditando que estava praticamente morto, e ele dizia: “Eu vejo a morte.
É
Vejo bem. Ai. Ai. É uma coisa horrível.” Ele viu bem a morte, mas ela foi
embora. Hoje, ele está falido e fazendo uma série de apresentações de
despedida. Ele flertou com a morte por vinte anos e a morte nunca o
pegou.
Esses são os retratos de cinco matadores. Para resumir, após analisar
bons matadores, você pode dizer que um grande matador precisa de
honra, coragem, um bom físico, um bom estilo, uma ótima mão esquerda
e bastante sorte. E também precisa de uma boa propaganda e de muitos
contratos. O lugar e o efeito das estocadas, e as várias formas de matar,
estão descritos no glossário.
Se há uma característica que o povo da Espanha tem em comum, ela é o
orgulho, e se há mais uma, ela é o bom senso, e se há uma terceira, ela é a
falta de praticidade. Porque eles são orgulhosos, eles não se abalam com o
sacrifício do touro; eles se sentem dignos desse prêmio. Como têm bom
senso, eles mostram interesse pela morte e não passam suas vidas evitando
pensar nela e torcendo para que ela não exista apenas para descobrir que
ela existe quando chega a hora de morrer. Esse bom senso espanhol é tão
duro e seco quanto os planaltos e as planícies de Castela, e se torna menos
duro e
seco à medida que se afasta de Castela. Na sua melhor forma, esse bom
senso é associado a uma completa falta de praticidade. No sul, ele se torna
pitoresco; ao longo do litoral, ele se torna indistinguível e mediterrâneo;
no norte, em Navarra e Aragão, existe uma tradição tão forte de bravura
que ele se torna romântico; e ao longo da costa do Atlântico, como
acontece em todos os países banhados por um mar frio, a vida é tão prática
que não há tempo para o bom senso. A morte, para quem pesca nas áreas
frias do oceano Atlântico, é algo que pode surgir a qualquer momento,
que surge com frequência e que deve ser evitado como um acidente de
trabalho; assim eles não se preocupam com ela e não têm nenhum fascínio
por ela.
Duas coisas são necessárias para que um país ame as touradas. Uma é
que os touros devem ser criados no país e a outra é que as pessoas devem
se interessar pela morte. Os ingleses e os franceses estão mais preocupados
com a vida. Os franceses têm um respeito profundo pelos mortos, mas os
prazeres ligados às coisas materiais, à família, à segurança, à classe e ao
dinheiro são as coisas mais importantes para eles. Os ingleses também se
ocupam mais deste mundo e a morte não é algo a ser considerado,
lembrado, mencionado, perseguido ou arriscado a menos que seja a
serviço do país, ou por esporte, ou em troca de uma recompensa
adequada. Caso contrário, é um assunto desagradável que deve ser evitado
ou, na melhor das hipóteses, interpretado moralmente, mas nunca
estudado. Nunca fale sobre os mortos, eles dizem, e eu os ouvi em alto e
bom som. Quando os ingleses matam, eles matam por esporte e os
franceses matam por pot. Mas é um bom pot, o mais lindo do mundo, e
vale muito a pena matar por ele. No entanto, qualquer morte que não seja
por esporte nem por pot é considerada uma morte cruel pelos franceses e
pelos ingleses. Como todas as generalizações, as coisas não são assim tão
simples como descrevi, mas estou procurando afirmar um princípio e me
abster de citar exceções.
Hoje, na Espanha, as touradas não têm mais espaço na Galícia nem na
maior parte da Catalunha. Eles não criam touros nessas províncias. Galícia
fica ao lado do mar e por ser uma região pobre, onde os homens viajam
para fora ou para o mar, a morte não é um mistério a ser perseguido e
resolvido, mas sim um perigo cotidiano que deve ser evitado e as pessoas
são práticas, ardilosas, com frequência estúpidas, com frequência
mesquinhas, e sua diversão favorita é o canto coral. Catalunha faz parte da
Espanha, mas as pessoas não são espanholas e, embora as touradas sejam
bem-sucedidas em Barcelona, isso ocorre de maneira artificial porque o
público lá vai às touradas como se fosse ao circo, em busca de alegria e
entretenimento, e é quase tão ignorante quanto o público de Nîmes,
Béziers e Arles. Os catalães vivem num território rico, pelo menos a maior
parte deles; eles são bons fazendeiros, bons empresários e bons
comerciantes; eles são os eleitos da Espanha, do ponto de vista mercantil.
Quanto mais rica é uma região, mais simples são os seus camponeses, e
eles combinam um campesinato simples e uma língua infantil com uma
classe de comerciantes altamente próspera. Para eles, assim como
acontece na Galícia, a vida é prática demais para que se tenha o tipo mais
duro de bom senso ou qualquer sentimento sobre a morte.
Em Castela, o camponês não tem nada da pobreza de espírito,
combinada sempre com a ardileza, dos catalães ou dos galegos. Ele vive
numa região com o clima mais severo que há para se cultivar qualquer
coisa, mas é uma região muito saudável; ele tem comida, vinho, esposa e
filhos, ou ele teve, mas não conta com nenhum conforto, não tem muito
dinheiro e esses bens não são fins em si mesmos; eles são apenas uma
parte da vida e a vida é uma coisa que vem antes da morte. Um sujeito de
sangue inglês escreveu: “A vida é real; a vida é austera, e o túmulo não é
seu fim.” E onde eles enterraram esse sujeito? E que fim levou a realidade
e a austeridade? As pessoas de Castela têm um bom senso enorme. Elas
jamais teriam um poeta que escrevesse uma frase como essa. Elas sabem
que a morte é uma realidade inescapável, a única coisa certa para todo e
qualquer homem; a única convicção que transcende todos os confortos
modernos e que, se você a tem, não precisa de uma banheira em cada lar
americano e não precisa de rádio. Eles pensam bastante sobre a morte e,
quando têm uma religião, eles têm uma que diz que a vida é muito mais
curta do que a morte. Com esse sentimento, eles assumem um interesse
inteligente na morte e, quando podem ver a morte ser dada, evitada,
recusada e aceita ao longo de uma tarde, em troca de um certo valor em
dinheiro, eles pagam o preço e vão para a praça de touros, e continuam
indo mesmo quando, por motivos que tentei mostrar neste livro, se
sentem frequentemente desapontados pela falta de criatividade e
enganados pela falta de emoção.
A maioria dos grandes toureiros veio da Andaluzia, onde os melhores
touros são criados e onde, com o clima ameno e o sangue mourisco, os
homens exibem uma elegância e uma indolência que não têm nada a ver
com Castela, embora eles tenham, misturado com o sangue mourisco, o
sangue de homens de Castela que expulsaram os mouros e ocuparam
aquela região camponesa. Dos grandes toureiros de verdade, Cayetano
Sanz e Frascuelo vieram dos arredores de Madri (embora Frascuelo tenha
nascido no sul), assim como Vicente Pastor entre os toureiros não tão
grandes e Marcial Lalanda, o melhor entre os matadores da atualidade. O
número de touradas diminuiu na Andaluzia, devido a problemas agrários,
assim como diminuiu o número de grandes toureiros produzidos pela
região. Em 1931, dos dez melhores matadores, havia apenas três da
Andaluzia, Cagancho e os dois Bienvenidas; e Manolo Bienvenida, embora
tenha ascendência andaluza, foi nascido e criado na América do Sul,
enquanto seu irmão, nascido na Espanha, também foi criado fora do país.
Chicuelo e Niño de la Palma, representando Sevilha e Ronda, estão
acabados; e Gitanillo de Triana, de Sevilha, morreu.
Marcial Lalanda veio de uma região perto de Madri, assim como
Antonio Márquez, que vai voltar a lutar, e Domingo Ortega. Villalta é de
Zaragoza, e Barrera, de Valência, assim como Manolo Martínez e Enrique
Torres. Félix Rodríguez nasceu em Santander e cresceu em Valência, e
Armillita Chico, Solorzano e Heriberto García são todos mexicanos. Quase
todos os melhores novilleros são de Madri ou dos arredores de Madri, do
norte, ou de Valência. Desde a morte de Joselito e de Maera, e da
aposentadoria de Belmonte, o reinado da Andaluzia na tourada moderna
chegou ao fim. Agora, o núcleo das touradas na Espanha, no que diz
respeito tanto à produção de toureiros quando ao entusiasmo pelas lutas, é
Madri e a região ao redor de Madri. Valência vem em seguida. Hoje, o
lutador mais completo e virtuoso das touradas é, indubitavelmente,
Marcial Lalanda; e os lutadores jovens mais completos do ponto de vista da
coragem e da técnica vêm do México. Sem dúvida, as touradas estão
perdendo espaço em Sevilha que, com Córdoba, foi o grande centro de
touradas; e, sem dúvida, elas estão ganhando mais espaço em Madri, onde
na primavera e no começo do verão de 1931, em dificuldades financeiras,
em uma época de instabilidade política, e com somente lutas ordinárias, a
arena lotava duas e até três vezes por semana.
Julgando pelo entusiasmo que vi ser demonstrado sob a República, a
tourada moderna continuará existindo na Espanha, apesar do enorme
desejo que os políticos alinhados com a Europa têm de acabar com elas
para que não sofram mais nenhum constrangimento intelectual por serem
diferentes dos seus colegas europeus que eles encontram na Liga das
Nações, e nas embaixadas e nas cortes estrangeiras. Atualmente, uma
campanha violenta está sendo conduzida contra as touradas por certos
jornais com subsídios do governo, mas o número de pessoas que tiram o
seu sustento das muitas ramificações de criar, transportar, lutar, alimentar
e abater os touros bravos é tão grande que eu não acredito que o governo
vá acabar com as touradas, mesmo que seja forte o suficiente para fazê-lo.
Um estudo detalhado está sendo feito do uso potencial e verdadeiro de
todas as terras usadas como pasto para os touros bravos. Nas reformas
agrárias que devem ocorrer na Andaluzia, algumas das maiores fazendas
certamente serão divididas, mas como a Espanha é um país de pasto e
também de produção agrícola, e uma parte grande das terras é inadequada
para o cultivo, e como o gado criado não gera desperdícios, com todos os
animais sendo vendidos e abatidos na arena ou no matadouro, a maior
parte das terras usadas hoje para o pasto dos touros bravos no sul
certamente será mantida. Num país que, para dar emprego aos
trabalhadores agrícolas, optou por banir todas as máquinas de colheita e
de plantio em 1931, o governo está sendo cuidadoso antes de destinar mais
terras para cultivo. Não há dúvida de que as terras nos arredores de
Colmenar e Salamanca continuarão servindo de pasto para touros bravos.
Vejo uma possível redução nas terras destinadas à criação de touros bravos
na Andaluzia e a divisão de algumas fazendas, mas acredito que não haverá
nenhuma grande mudança na indústria com o atual governo, embora
vários de seus integrantes pudessem ficar orgulhosos de acabar com as
touradas e sem dúvida farão de tudo para atingir esse objetivo, e a maneira
mais rápida de conseguir isso é acabar com os touros, uma vez que os
toureiros surgem, sem nenhum tipo de estímulo, porque têm um talento
natural como acrobatas ou jóqueis ou escritores têm, e nenhum deles é
insubstituível; mas um touro bravo é resultado de gerações de trabalho
cuidadoso na sua criação, como acontece com cavalos de corrida, e
quando você manda uma raça para o matadouro, essa raça deixa de existir.
20

Se este livro fosse um livro de verdade, ele teria tudo. O Prado, com a
aparência de universidade americana e os aspersores que molham a grama
cedo numa manhã ensolarada de verão em Madri; as montanhas nuas e
esbranquiçadas que ficam de frente para Carabanchel; os dias passados
num trem, no mês de agosto, com as cortinas fechadas para bloquear o sol
e o vento fazendo a cortina se mexer; a palha que levanta voo do chão
duro de debulha e bate contra o vagão; o cheiro dos cereais e os moinhos
de vento. O livro teria a mudança que ocorre na paisagem quando você
deixa para trás o verde de Alsasua; teria Burgos do outro lado da planície e
o queijo que se come mais tarde no quarto; teria o jovem que embarcou
no trem carregando amostras de vinho em jarros cobertos de vime; era
sua primeira viagem a Madri e ele compartilhou os jarros com entusiasmo
e todo mundo ficou bêbado, incluindo os dois guardas civis que estavam a
bordo, e perdi as passagens e os dois guardas civis acabaram nos ajudando
(eles nos acompanharam para fora do trem como se fôssemos prisioneiros
porque não tínhamos as passagens e depois se despediram como se nada
tivesse acontecido assim que embarcamos num táxi); Hadley carregava
uma orelha de touro embrulhada num lenço, a orelha era dura e seca e os
pelos todos tinham caído e o homem que tinha cortado a orelha também
viu seus cabelos caírem e hoje ele tenta disfarçar fazendo uns fios
compridos cruzarem o topo da cabeça; ele era vaidoso. Ele era bem
vaidoso.
O livro deixaria clara a mudança que ocorre na paisagem quando você
desce as montanhas e chega a Valência no entardecer, num trem em que
você faz a gentileza de carregar um galo para uma mulher que quer levá-lo
para a irmã; e deveria mostrar a arena de madeira em Alciras, onde eles
arrastam os cavalos mortos para fora, largam no campo e você precisa
passar por eles ao ir embora; e deveria ter o barulho das ruas de Madri
depois da meia-noite; a feria que atravessa a noite, no mês de junho; e as
caminhadas de domingo de volta para casa depois de sair da arena; ou com
Rafael no táxi. Que tal? Malo, hombre, malo; dando de ombros, ou com
Roberto, Don Roberto, Don Ernesto, sempre tão educado, tão gentil e um
bom amigo. E também a casa onde Rafael vivia, antes que a opção de virar
republicano se tornasse respeitável, com a cabeça empalhada do touro que
havia matado Gitanillo, um grande jarro de azeite, sempre muitos
presentes e refeições de primeira.
O livro teria o cheiro da pólvora queimada e a fumaça e o clarão e o
barulho da traca que explode percorrendo as folhas verdes das árvores e
deveria ter o sabor da horchata, uma horchata bem gelada, e as ruas
recém-lavadas sob o sol, e os melões e as gotas geladas ao redor de um
jarro de cerveja; as cegonhas sobre as casas em El Barco de Ávila e fazendo
manobras no céu, e a cor vermelha da arena que lembra argila; e a dança
ao som de flautas e tambores, à noite, com luzes que escapam por entre as
folhas verdes e o retrato de Garilbaldi emoldurado pelas folhas. Para que
ficasse completo, o livro deveria ter o sorriso forçado de Lagartijo; o
sorriso foi sincero um dia, e os matadores malsucedidos nadando com
prostitutas baratas em Manzanares, ao longo da estrada de El Pardo; quem
não tem cão, caça com gato, dizia Luis; e os jogos de bola na grama perto
do rio, onde o lindo marquês aparecia de carro com seu boxeador, onde a
gente fazia paellas; e caminhava para casa no escuro com os carros que
passavam voando pela estrada; e as luzes elétricas que passavam por entre
as folhas verdes e o orvalho que fazia a poeira assentar, na friagem da
noite; e a sidra em Bombilla e a estrada para Pontevedra que parte de
Santiago de Compostella com uma curva acentuada na altura dos
pinheiros e as amoras à beira da estrada; e Algabeño, o maior impostor de
todos os tempos; e Maera no quarto do Hotel Quintana trocando de roupa
com o padre naquela vez que
todo mundo encheu a cara, mas ninguém passou mal. Houve uma vez
que foi bem assim, mas este livro não pode ter tudo.
Reviver tudo isso; arremessar gafanhotos para as trutas no rio Tambre,
da ponte, no meio da tarde; ver o rosto sério e bronzeado de Félix Merino
no velho Aguilar; ver o corajoso e estranho Pedro Montes, de olhos
opacos, ter de se vestir fora de casa porque tinha prometido à mãe que
pararia de lutar depois que Mariano, seu irmão, morreu em Tetuan; e Litri,
como um coelhinho, piscando os olhos nervosamente ao encarar o touro;
ele tinha as pernas bem tortas e era corajoso e os três foram mortos e
nunca mais se falou deles na cervejaria que ficava debaixo do Palace, na
sombra, que Litri frequentava com o pai e que acabou sendo comprada
pela Citroën; e também não se fala sobre como eles carregaram Pedro
Carreño, morto, pelas ruas com tochas acesas até a igreja onde o
colocaram nu sobre o altar.
Este livro não fala de Francisco Gómez, o Aldeano, que trabalhou em
Ohio numa usina siderúrgica e voltou para casa a fim de se tornar matador
e hoje carrega marcas e cicatrizes que só não são piores que as de Freg,
com um olho tão torto que as lágrimas correm pelo nariz. Não fala de
Gavira, que morreu na hora ao sofrer uma chifrada igual à que matou El
Espartero. E também não fala da noite em Zaragoza, sobre a ponte,
observando o rio Ebro, e do paraquedista no dia seguinte e dos charutos
de Rafael; nem da competição de valetes no velho teatro chique e dos
belos casais de garotos e garotas; nem de quando mataram o Noy de Sucre
em Barcelona, nem nada desse lugar; nem qualquer coisa sobre Navarra;
nem sobre como León é uma cidade miserável; nem sobre ficar com um
músculo estirado num hotel onde bate sol em Palencia, quando fazia calor
e você ainda não sabia o que era calor porque nunca tinha estado lá; nem
da estrada entre Requena e Madri, onde os carros afundam na poeira; nem
de quando fazia 49ºC na sombra em Aragão e o carro, que não tinha nada
de errado, precisava ser abastecido de água a cada vinte quilômetros
rodados numa superfície plana.
Se este livro fosse mais completo, ele falaria da última noite da feria,
quando Maera brigou com Alfredo Davi no Café Kutz; ele mostraria os
engraxates. Meu Deus, seria impossível falar de todos os engraxates; e de
todas as garotas bonitas que vi passar; e das putas; e de como nós éramos
naquela época. Pamplona mudou muito; eles construíram prédios por
toda a planície até chegar bem perto do planalto; agora não se veem as
montanhas. Eles colocaram abaixo o antigo Gayarre e estragaram a praça
para abrir uma via ampla que dá acesso à arena e, nos bons tempos, o tio
bêbado de Chicuelo subia no andar de cima do restaurante para ver o povo
dançar na praça; Chicuelo ficava sozinho no quarto enquanto a cuadrilla
estava no bar ou espalhada pela cidade. Escrevi sobre isso no conto Falta de
entusiasmo, mas ele não ficou muito bom, com exceção da cena em que a
multidão arremessa gatos mortos contra o trem e, em seguida, Chicuelo
aparece numa cabine do trem, sozinho; capaz de dar conta de tudo
sozinho.
O livro, se falasse da Espanha, deveria falar do garoto magro de dois
metros e meio de altura que fazia propaganda para o espetáculo El
Empastre antes de ele chegar à cidade, e naquela noite, na feria de ganado,
as putas não teriam nada para fazer com o anão, ele era do tamanho
normal a não ser pelas pernas, que tinham vinte centímetros de
comprimento, e ele disse, “Sou um homem como qualquer outro”, e a
puta disse, “Não é não, e é aí que mora o problema”. Você não acreditaria
na quantidade de anões e aleijados que aparecem em todas as ferias da
Espanha.
Pela manhã, nós tomávamos café lá e depois nadávamos no Irati em
Aoiz, na água transparente cuja temperatura variava de acordo com a
profundidade, fresca, fria, gelada e congelada, e ficávamos à sombra das
árvores na margem quando o sol ficava muito quente e o vento soprando
nos trigais inclinados com a montanha do outro lado do rio. Havia um
velho castelo no início do vale por onde o rio passava entre duas pedras; e
nós deitamos nus na grama baixa sob o sol e depois à sombra. O vinho em
Aoiz não era bom e por isso levamos um dos nossos, e o presunto também
não era bom, e na vez seguinte nós compramos comida no Hotel
Quintana. Quintana era o mais aficionado de todos e nosso amigo mais fiel
na Espanha, e dono de um bom hotel que vivia lotado. Que tal Juanito?
Que tal, hombre, que tal?
E por que o livro não teria a cavalaria atravessando o rio a vau, com a
sombra das árvores nos cavalos, se trata-se da Espanha, e por que não
falaria deles marchando para fora da escola de metralhadoras e cruzando o
terreno de calcário, muito pequenos a essa distância, e das montanhas
mais ao longe, vistas da janela do Quintanilla. Ou de acordar pela manhã,
com as ruas vazias no domingo, e ouvir o grito a distância e depois os
disparos. Isso acontece com frequência se você vive o bastante e viaja
muito.
E se você cavalga e sua memória é boa, você ainda pode cavalgar pela
floresta de Irati com árvores que parecem mais desenhos num livro para
crianças. Eles cortaram essas árvores. Eles transportaram troncos rio
abaixo e eles mataram os peixes, ou eles bombardearam e envenenaram os
peixes, como fizeram em Galícia; os resultados são os mesmos; no fim,
não é muito diferente de casa, a não ser pelos arbustos amarelos nas
pradarias e pela chuva fina. Há nuvens vindas do mar que passam pelas
montanhas, mas quando o vento sopra a partir do sul, Navarra fica tomada
pela cor do trigo, com exceção das áreas planas onde ele não cresce, mas
sobre as montanhas e ao redor de estradas com árvores e de muitas
cidadezinhas com sinos, quadras de pelota, cheiro de esterco de ovelhas e
praças com cavalos dormindo em pé.
Se você conseguisse descrever a chama das velas sob o sol; o brilho do
metal nas baionetas recém-lubrificadas, o amarelo no cinto de couro
envernizado daqueles que defendem o Senhor; ou a caçada em duplas por
entre os sobreiros das montanhas atrás daqueles que caíram na armadilha
em Deva (foi um caminho longo e difícil para os que saíram do Café de la
Rotonde para serem estrangulados numa sala fria por ordem do Estado,
tendo apenas o consolo da religião, absolvidos uma vez e presos até que o
capitão-general de Burgos revertesse a sentença da corte), e na mesma
cidade onde Loyola sofreu o ferimento que o fez pensar na vida, o mais
corajoso de todos que foram traídos naquele ano mergulhou do balcão da
corte, de cabeça, porque tinha jurado que eles não o matariam (sua mãe
quis que ele prometesse não acabar com a própria vida porque ela prezava
sua alma, mas ele mergulhou com precisão, mesmo com as mãos atadas,
enquanto os outros que estavam com ele rezavam); se eu pudesse
descrevê-lo; descrever um bispo; descrever Cándido Tiebas e Torón;
descrever nuvens que se movem rápido fazendo sombra sobre os trigais e
os cavalos pequenos que caminham com cuidado; o cheiro do azeite de
oliva; a sensação do couro; os calçados com sola de corda; as voltas de uma
trança de alho; os vasos de cerâmica; os alforjes nos ombros; os odres de
vinho; os pedaços de madeira que tinham a forma de forquilhas (as pontas
eram parte do galho); os cheiros da manhã; as noites frias nas montanhas e
os longos dias de calor no verão, sempre com árvores e com sombras sob
as árvores, assim você teria uma ideia de Navarra. Mas não neste livro.
Ele deveria ter Astorga, Lugo, Orense, Soria, Tarragona e Calatayud, os
bosques de castanheiras nas montanhas altas, as regiões verdes e os rios, a
poeira vermelha, a sombra pequena à beira dos rios secos e as montanhas
brancas de calcário; os passeios agradáveis sob as palmeiras na cidade velha
que fica no rochedo à beira-mar, com um clima fresco na brisa da tarde;
com mosquitos à noite, mas pela manhã com a água limpa e a areia
branca; para depois admirar o crepúsculo na casa de Miró; as videiras a
perder de vista, delimitadas por sebes e pela estrada; a ferrovia e o mar
com a praia de seixos e a grama alta de papiro. Havia recipientes de
cerâmica com quatro metros de altura para safras diferentes de vinho,
colocados lado a lado dentro de um quarto escuro; havia uma torre na casa
onde se subia à tarde para ver as videiras, as cidadezinhas e as montanhas,
e para ouvir e escutar como tudo era quieto. Na frente do celeiro, uma
mulher segurava um pato cuja garganta tinha sido cortada e ela o agradava
com delicadeza enquanto uma menina segurava uma taça para pegar o
sangue que seria usado no molho. O pato parecia muito contente e
quando elas o colocaram no chão (o sangue todo na taça), ele se mexeu
um pouco e descobriu que estava morto. Depois, nós o comemos,
recheado e assado; e comemos muitos outros pratos, bebendo o vinho
daquele ano e o do ano anterior e o do ótimo ano que tinha sido quatro
anos antes, e de outros anos que não guardei enquanto um ventilador para
espantar moscas girava no sentido horário sem parar e nós conversávamos
em francês. Todos nós éramos melhores em espanhol.
Aqui está Montroig, que se pronuncia Montroich, um dos muitos lugares
da Espanha, e também as ruas de Santiago num dia de chuva; a vista da
cidade no alto das colinas quando você volta para casa pelos planaltos; e
todas as carroças carregadas que percorrem trilhas de chão batido e que,
ao longo da estrada para Grau, deveriam ir até a arena temporária feita de
madeira em Noya, com o cheiro de madeira recém-cortada; Chiquito com
seu rosto delicado, um grande artista, fino muy fino, pero frio. Valência II,
com o olho que costuraram errado que deixa à mostra a parte interna da
pálpebra, já não pode mais ser arrogante. E também o garoto que errou o
touro completamente ao tentar matá-lo e errou de novo numa segunda
tentativa. Se conseguisse ficar acordado para ver as fiestas noturnas, veria
como elas são divertidas.
Em Madri, depois de ter perdido duas disputas, um toureiro cômico
esfaqueou Rodalito na barriga porque não suportava a ideia de perder mais
uma vez. Agüero comendo com toda a família na sala de jantar; todos eles
parecendo a mesma pessoa com idades diferentes. Ele tinha a aparência de
um interbases ou de um quarterback, mas não de um matador. Cagancho
em seu quarto, comendo com a mão porque não sabia usar o garfo. Ele
não conseguia aprender e quando passou a ganhar dinheiro, evitava comer
em público. Ortega noivou com a Miss Espanha, o mais feio com a mais
bonita, e quem era o mais espirituoso? Desperdicios, na Gaceta del Norte, era
o mais espirituoso; o texto mais espirituoso que li na vida.
E na casa de Sidney, alguns apareciam pedindo trabalho como toureiro,
outros pediam dinheiro emprestado, outros pediam uma camisa velha,
outros pediam um terno completo; eram todos toureiros, todos
conhecidos nos restaurantes da vida, todos muito educados, todos sem
sorte; as muletas dobradas e empilhadas; as capas dobradas; as espadas no
estojo de couro; tudo guardado no armário; os bastões da muleta na
gaveta de baixo, os trajes no baú enrolados num tecido para proteger o
brocado; meu uísque num jarro de cerâmica; Mercedes, traga os copos; ela
diz que ele teve febre a noite inteira e que só saiu de casa uma hora atrás.
Então ele volta. Como você está? Ótimo. Ela disse que você teve febre.
Mas me sinto ótimo agora. Doutor, que tal comermos aqui? Ela pode
preparar alguma coisa e fazer uma salada. Mercedes, ó Mercedes.
E você podia atravessar a cidade a pé para ir ao café onde dizem que você
se informa sobre quem deve dinheiro para quem e quem enganou quem e
por que ele mandou o outro para aquele lugar e quem teve filho com
quem e quem casou com quem antes e depois do que e quanto tempo
levou para isso e aquilo e o que o médico disse. Quem ficou feliz porque os
touros estavam atrasados, entregues somente no dia da luta, com as pernas
fracas, bastavam dois passes e, bum, era o fim, ele disse, e depois choveu e
a luta teve que ser adiada por uma semana e foi aí que ele ficou doente.
Quem se recusava a lutar com quem e quando e por que e é sério isso dela,
claro que é, sua besta, você não sabia que era sério? De maneira nenhuma
e é isso aí mesmo, de qualquer maneira, ela os engole vivos, e informações
importantes como essas você fica sabendo nos cafés. Nos cafés, os garotos
estão sempre certos; nos cafés, todos são corajosos; nos cafés, onde os
pires são empilhados e os drinques são anotados a lápis no tampo de
mármore das mesas, em meio aos restos das temporadas perdidas, há uma
sensação boa porque ninguém precisa provar nada para ninguém e todo
mundo é incrível por volta das oito da noite, se alguém puder pagar a
conta no fim.
O que mais o livro deveria ter sobre um país que você ama muito? Rafael
diz que as coisas mudaram muito e ele não vai mais para Pamplona. Acho
que La Libertad está ficando parecido com Le Temps. Ele não é mais o
jornal em que você podia publicar uma notificação e sabia que o batedor
de carteiras leria, agora que os republicanos se tornaram respeitáveis e que
Pamplona mudou, claro, mas não tanto quanto nós que estamos velhos.
Eu achava que, se fosse só para tomar um drinque, a cidade seria a mesma
de sempre. Sei que as coisas mudaram e não me importo. As coisas
mudaram para mim também. Deixe que tudo mude. Nosso fim vai chegar
antes que as coisas mudem demais e, se não houver nenhum dilúvio,
depois do nosso fim, ainda vai chover no norte durante o verão e os falcões
vão fazer ninhos na Catedral de Santiago e em La Granja, onde nós
praticamos com a capa nas longas trilhas de cascalho por entre as sombras,
não faz diferença nenhuma se as fontes da cidade funcionam ou não. Nós
nunca mais vamos voltar de Toledo no escuro, beber Fundador para o tirar
o pó da garganta, nem vai haver aquela semana em que aconteceu aquilo à
noite naquela feria em Madri. Vimos tudo passar e vamos ver tudo passar
mais uma vez. O mais importante é continuar e dar conta do trabalho e
ver e ouvir e aprender e entender; e escrever quando você tiver alguma
coisa para dizer; e não antes disso; e também não muito tempo depois.
Não se preocupe com os outros, se puder, procure ver o mundo como um
todo e de maneira clara. Então faça sua parte, ela vai dizer algo sobre o
todo se for feita com sinceridade. Trabalhe e aprenda como fazer isso.
Não. Este livro não é um livro de verdade, mas havia algumas coisas que
precisavam ser ditas. Havia algumas coisas práticas que precisavam ser
ditas.
UM GLOSSÁRIO EXPLICATIVO DE CERTAS FRASES, PALAVRAS E
TERMOS USADOS NAS TOURADAS

A
Abanico: aberto como um leque.
Abano: touro que entra na arena de um jeito covarde, que se recusa a
atacar, mas que pode melhorar ao ser castigado.
Abierto de cuerna: de chifres grandes.
Abrir-el-toro: atrair o touro para o centro da arena e para longe da barrera.
Aburrimiento: tédio, a sensação predominante numa tourada ruim. Pode
ser um pouco atenuada por uma cerveja gelada. A não ser que a cerveja
esteja gelada demais, aí o aburrimiento aumenta.
Acero: aço. Palavra comum para se referir à espada.
Acometida: ataque do touro.
Acornear: chifrar.
Acosar: etapa do teste dos touros jovens na fazenda. O vaqueiro tira o
touro jovem ou novilho do rebanho, persegue o animal até que ele se
sinta acossado e ataque.
Acoson: quando o toureiro é seguido de perto pelo touro.
Acostarse: tendência do touro de se aproximar do toureiro por um lado ou
por outro no momento do ataque. Se o touro tende para um lado, o
toureiro deve ceder espaço para ele nesse lado ou será chifrado.
Achuchón: quando o touro tromba com o homem durante um passe.
Adentro: parte da arena entre o touro e a barreira.
Adorno: qualquer floreio inútil executado pelo toureiro para enaltecer seu
domínio sobre o touro. Ele pode ser de bom gosto ou de mau gosto, e
vai de se ajoelhar de costas para o animal até pendurar o chapéu de um
espectador no chifre do touro. O pior adorno que vi na vida foi de
Antonio Marquez, que mordeu o chifre do touro. O melhor foi de Rafael
El Gallo, que cravou quatro pares de banderillas no touro e depois, de
maneira muito delicada, nas pausas que fazia para se refrescar enquanto
trabalhava com a muleta, extraiu as banderillas uma de cada vez.
Afición: amor pelas touradas. A palavra se refere também ao público de
uma arena, mas é usado nesse sentido genérico para se referir à parte
mais inteligente do público.
Aficionado: alguém que entende de touradas de maneira geral e também
específica, e que ainda se importa com elas.
Afueros: parte da arena entre o touro e o centro da arena.
Aguantar: método de matar o touro com a espada e a muleta usado
quando o touro ataca inesperadamente enquanto o matador está de lado
enrolando a muleta. Nesse caso, o matador espera por ele sem sair do
lugar, executa um passe segurando a muleta bem baixo com a mão
esquerda enquanto crava a espada com a mão direita. Nove em dez
sacrifícios que vi com essa manobra foram malfeitos porque o matador
não esperou o touro se aproximar o suficiente para cravar a espada
direito e acabou fincando a espada no pescoço, algo que o homem faz
quase sem risco nenhum.
Agujas: agulhas, outra palavra usada para se referir aos chifres do touro.
Ela também se refere às costelas que ficam no alto, entre as escápulas.
Ahondar el estoque: empurrar ainda mais a espada para dentro depois que
ela já foi cravada. Os homens responsáveis pelas espadas geralmente
tentam isso quando o touro está próximo da barrera e o matador não
consegue matar o touro. Às vezes, a manobra é executada pelos
banderilleros, que arremessam uma capa sobre a espada e puxam a capa
para baixo.
Ahormar la cabeza: arrumar a cabeça do touro na posição certa para o
sacrifício. O matador deve usar a muleta para fazer isso. Ele faz o animal
baixar a cabeça com passes mais próximos do chão e o faz erguer a
cabeça com passes altos, mas às vezes os passes altos podem fazer baixar
uma cabeça que está alta demais, pois obriga o touro a esticar tanto o
pescoço que ele acaba se cansando. Se o matador não consegue fazer o
touro erguer a cabeça, um banderillero geralmente consegue fazer isso
com alguns movimentos da capa. Se o matador vai ter que fazer ajustes
maiores ou menores, depende da forma como os picadores trataram o
animal e de como as banderillas foram colocadas.
Aire: vento; o pior inimigo de um toureiro. Capas e muletas são molhadas
e sujas de areia para que se tornem mais fáceis de controlar no vento.
Elas não podem ser mais pesadas do que já são naturalmente, caso
contrário acabariam com o pulso do toureiro e, se houver vento demais,
o homem não consegue controlar o pano. A capa ou a muleta podem ser
sopradas de repente, deixando o homem exposto ao touro. Em toda luta
há uma parte da arena onde o vento é mais fraco e o toureiro deve usar
esse lugar para fazer o trabalho mais complicado com a capa e a muleta,
se for possível lidar com o touro nesse local.
Al Alimón: passe muito bobo feito com dois homens, em que cada um
deles segura uma ponta da capa e o touro passa por baixo do pano entre
eles. Esse passe não é perigoso e você só vai vê-lo na França, ou num
lugar onde o público seja muito ingênuo.
Alegrar al Toro: atrair a atenção do touro quando ele fica lento.
Alegria: significa leveza na tourada; um estilo sevilhano pitoresco e
elegante, criado em resposta à maneira trágica e clássica da escola de
Ronda.
Alguacil: meirinho a cavalo sob as ordens do presidente que cavalga à
frente dos toureiros na entrada, ou paseo, usando um traje do reinado de
Filipe II, recebe a chave do toril das mãos do presidente e, durante a
tourada, transmite as ordens do presidente aos envolvidos na tourada.
Essas ordens costumam ser dadas por um tubo acústico que conecta o
camarote do presidente com o corredor entre a arena e os assentos do
público. O mais comum é ter dois aguacils em cada tourada.
Alternativa: investidura oficial de um aprendiz de matador ou de um
matador de novillos como matador profissional de touros. Nela, o
matador veterano abre mão do direito de matar o primeiro touro e faz
isso apresentando a muleta e a espada para o toureiro, que assume a
alternativa de matar o touro pela primeira vez ao lado de matadores
profissionais. A cerimônia ocorre quando soa o trompete para a morte
do primeiro touro. O homem que está assumindo a função de matador
entra na arena com uma capa dobrada sobre o braço para encontrar o
veterano que lhe dá a espada e a muleta, e recebe a capa. Eles trocam um
aperto de mãos e o novo matador mata o primeiro touro. No segundo
touro, ele devolve a espada e a muleta para seu padrinho, que, por sua
vez, mata o segundo touro. Depois disso, eles se alternam da maneira
mais tradicional, o quarto touro é morto pelo veterano, o quinto, pelo
segundo mais experiente, e o estreante mata o último touro. Uma vez
que ele assuma a alternativa na Espanha, seu ranking como matador
profissional passa a valer em todas as arenas da Península, com exceção
de Madri. Depois de receber a alternativa numa província, ele precisa
repetir a cerimônia em sua primeira apresentação em Madri. As
alternativas dadas no México ou na América do Sul não são reconhecidas
na Espanha até que sejam confirmadas nas províncias ou em Madri.
Alto: pase por alto é um passe em que o touro passa por baixo da muleta.
Alto (en todo lo): golpe de espada ou estocada no ponto certo, no alto,
entre as escápulas do touro.
Ambos: os dois, as duas; ambas manos, ambas as mãos.
Amor propio: amour propre, amor-próprio, algo raro entre os toureiros
modernos, sobretudo depois de sua primeira temporada de sucesso ou
quando eles têm cinquenta ou sessenta contratos a cumprir.
Anda: vai! Com frequência, as pessoas gritam isso para os picadores que
hesitam em se aproximar do touro.
Andanada: assentos baratos que ficam no alto da arena, no lado
ensolarado, na mesma altura dos camarotes que estão no lado que pega
sombra.
Anillo: praça de touros. E também o anel na base do chifre que revela a
idade do touro. O primeiro anel representa três anos. Depois disso, cada
anel representa mais um ano.
Anojo: touro jovem.
Apartado: separação dos touros que ocorre geralmente ao meio-dia que
antecede a luta, quando os animais são classificados e colocados nos
currais na ordem em que devem entrar na arena.
Aplomado: estado em que o touro fica pesado feito chumbo, mais para o
fim da luta.
Apoderado: empresário ou agente do toureiro. Diferente dos empresários
de boxeadores, ele quase nunca ganha mais do que cinco por cento para
cada luta que consegue agendar para o matador.
Apodo: apelido de um toureiro profissional.
Aprovechar: tirar vantagem de, se beneficiar de um bom touro. A pior
coisa que um matador pode fazer é não aproveitar ao máximo um touro
que seja nobre e fácil, e que permita um desempenho brilhante. Ele vai
enfrentar muito mais touros difíceis do que fáceis e, se ele não
aprovechar os touros bons para dar o máximo de si, a multidão será
muito mais crítica do que se tivesse uma apresentação fraca com um
touro difícil.
Apurado: touro que fica desgastado e sem energia por causa de uma luta
mal executada.
Arena: a areia do chão da praça de touros.
Arenero: funcionário da praça de touros que alisa a areia depois que cada
touro é morto e retirado da arena.
Armarse: quando o matador enrola a muleta e posiciona a espada na altura
dos olhos, alinhando o rosto, o braço e a lâmina, na preparação para o
sacrifício.
Arrancada: outra palavra usada para falar do ataque do touro.
Arrastre: ato de arrastar os cavalos mortos e o corpo do touro morto,
executado por um trio de mulas ou de cavalos, depois que cada touro é
sacrificado. Os cavalos são tirados primeiro. Se o touro foi
excepcionalmente corajoso, a multidão o aplaude bastante. Às vezes, é
dada uma volta na arena com o corpo do touro antes de ele ser retirado.
Arreglar los pies: fazer o touro alinhar as patas antes do sacrifício. Se uma
pata está mais à frente do que a outra, as escápulas ficam desalinhadas,
fechando a abertura por onde a espada deve passar, ou a diminuindo
bastante.
Arrimar: ficar bem próximo do touro. Se os matadores arriman al toro, a
tourada será boa. O tédio surge quando os toureiros trabalham distantes
dos chifres do touro.
Asiento: assento.
Astas: baionetas, outro sinônimo para os chifres.
Astifino: touro com chifres pontudos e afiados.
Astillado: touro com as extremidades de um chifre ou de ambos os chifres
lascadas, geralmente por ter investido contra a jaula ou contra o curral,
no momento em que chega à arena. Chifres assim causam os piores
ferimentos.
Atrás: para trás; de costas.
Atravesada: de maneira transversal; quando a espada entra enviesada e
acaba despontando pelo flanco do touro. Um golpe como esse, a não ser
que o touro tenha se deslocado durante o ataque, indica que o homem
não se aproximou do touro em linha reta no momento do sacrifício.
Atronar: golpe com a puntilla, ou punhal, entre as vértebras cervicais,
dado por trás quando o touro está no chão mortalmente ferido, e que
corta a medula espinhal e mata o touro instantaneamente. Esse coup de
grâce é dado pelo puntillero, um dos banderilleros, que segura uma lona
no braço direito para proteger as roupas do sangue ao se aproximar do
touro. Quando o touro está de pé e esse mesmo golpe é dado pela frente
e executado pelo matador, armado com uma espada específica de ponta
reta ou com uma puntilla, ele é chamado de descabello.
Avíos de matar: ferramentas de matar, isto é, a espada e a muleta.
Aviso: sinal dado por uma corneta, autorizado pelo presidente, para o
matador cujo touro ainda está vivo depois de dez minutos de manobras
com a espada e a muleta. O segundo aviso é dado três minutos depois do
primeiro e o terceiro e último aviso é dado dois minutos depois do
segundo. No terceiro aviso, o matador é obrigado a se retirar e os bois,
que estão a postos desde o primeiro aviso, entram na arena para
conduzir o touro para fora. Existe um relógio enorme em todas as
arenas mais importantes para que os espectadores possam controlar o
tempo que o matador leva para executar o trabalho.
Ayudada: passe em que a ponta da espada fica espetada na muleta para
esticar o tecido; nesse caso, diz-se que a muleta está sendo ajudada pela
espada.
Ayuntamiento: prefeitura ou câmara municipal nas cidadezinhas
espanholas. Um camarote é reservado para o ayuntamiento nas arenas
espanholas.

B
Bajo: baixo, baixa. Uma lança baixa que é colocada na lateral do pescoço,
perto das escápulas. Um golpe da espada no lado direito em qualquer
lugar abaixo da parte mais alta das escápulas e na parte posterior do
pescoço também é chamado de bajo.
Bajonazo: golpe deliberado da espada no pescoço ou na parte inferior do
ombro por um matador que procura matar o touro sem correr riscos.
Em um bajonazo, o matador procura cortar as artérias ou veias do
pescoço, ou atingir os pulmões com a espada. Com um golpe desses, ele
assassina o touro sem se posicionar na frente do animal e longe dos
chifres.
Banderilla: bastão redondo de setenta centímetros de comprimento,
envolvido por papel colorido e com uma ponta de arpão feita de metal,
cravado em pares na cernelha do touro, no segundo ato da tourada; a
ponta do arpão é o que fura a pele do touro. As banderillas devem ser
colocadas bem no alto da cernelha, perto uma da outra.
Banderillas cortas: banderillhas pequenas de apenas vinte e cinco
centímetros de comprimento. É raro ver alguém as usando.
Banderillas de fuego: banderillas com fogos de artifício ao longo do bastão,
usadas em touros que não atacam os picadores, para que a explosão da
pólvora faça o touro se mexer, cabecear e cansar os músculos do
pescoço, que é o objetivo do picador ao confrontar o touro.
Banderillas de lujas: banderillas muito enfeitadas, usadas em apresentações
beneficentes. Desajeitadas e difíceis de cravar por causa do peso.
Banderillero: toureiro responsável por cravar as banderillas que recebe
ordens do matador, é pago por ele e ajuda na lida com o touro usando a
capa. Cada matador emprega quatro banderilleros, que às vezes são
chamados de peones. No passado, eles eram chamados de chulos, mas
esse termo não é mais usado. Banderilleros fazem de 150 a 250 pesetas
por luta. Eles se revezam na colocação das banderillas, dois deles
colocam num touro e os outros dois colocam no touro seguinte. Em
viagens, as despesas dos banderilleros, à exceção do vinho, do café e do
tabaco, são pagas pelo matador, que, por sua vez, é pago pelo promotor
do evento.
Barbas; El Barbas: gíria dos toureiros para se referir aos touros adultos, que
aos quatro anos e meio de idade chegam a pesar trezentos e vinte quilos
de carne, sem contar chifres, cabeça, cascos e couro; sabem usar os
chifres e fazem os toureiros merecerem o dinheiro que recebem.
Barrenar: empurrar a espada, algo que o matador faz depois de ter se
aproximado do touro para matá-lo e quando está escapando dos chifres
ao longo do flanco do animal. Uma vez que se desvie dos chifres, ele
pode empurrar a espada sem perigo.
Barrera: cerca vermelha de madeira ao redor da área central da arena onde
ocorre a luta contra o touro. A primeira fileira de assentos também é
chamada de barreras.
Basto: sem elegância, arte e agilidade; pesado.
Batacazo: queda grave do picador.
Becerrada: apresentação beneficente de amadores ou aprendizes de
toureiro em que são usados touros jovens demais para serem perigosos.
Becerro: bezerro.
Bicho: bicho ou inseto. Uma gíria para se referir ao touro.
Billetes: ingressos para a tourada. NO HAY BILLETES: um aviso na janela da
bilheteria indicando que os ingressos esgotaram, o sonho de todo
promotor de eventos. Mas o garçom no café quase sempre consegue um
ingresso se você estiver disposto a pagar o preço dos cambistas.
Bisco: touro com um chifre mais baixo do que o outro.
Blando: touro que não suporta ser castigado.
Blandos: carne sem osso. Quando a espada penetra com facilidade numa
estocada, e no lugar certo, sem acertar um osso, dizem que ela foi nos
blandos.
Bota: odre individual de vinho, chamado de gourd pelos ingleses. Os odres
são arremessados para dentro da arena por espectadores exaltados no
norte da Espanha como uma ovação para o toureiro que está dando a
volta pela arena. O toureiro triunfante deve dar um gole no vinho e
arremessar o odre de volta. Os toureiros detestam esse costume porque,
se o vinho espirrar, pode manchar a caríssima camisa cheia de babados
que eles usam.
Botella: garrafa; elas são arremessadas dentro da arena por selvagens,
bêbados e espectadores exaltados como sinal de reprovação.
Botellazo: golpe dado com a garrafa na cabeça; é possível evitá-lo, basta
manter distância dos bêbados.
Boyante: touro fácil de lidar que acompanha bem os movimentos do pano
e que ataca de maneira direta e franca.
Bravo; Toros Bravos: touros corajosos e selvagens.
Bravucón: touro que blefa e que não é corajoso de verdade.
Brazuelo: parte superior das pernas dianteiras. O touro pode ficar manco e
incapaz de continuar na luta se os picadores atingirem os tendões do
brazuelo.
Brega: sequência de tarefas que deve ser executada com cada touro ao
longo de uma luta, incluindo o sacrifício.
Brindis: brinde oficial ou dedicatória do touro para o presidente ou para
qualquer outra pessoa, feita pelo toureiro antes de executar o sacrifício.
O brinde ao presidente é obrigatório no primeiro touro que cada
toureiro mata numa tourada. Depois de brindar ao presidente, ele pode
dedicar o touro a qualquer alta autoridade governamental presente na
arena, a qualquer espectador renomado, ou a um amigo. Quando o
matador dedica o touro ou faz um brinde a alguém, ele arremessa o
chapéu ao concluir a fala e a pessoa homenageada fica com o chapéu até
o touro ser morto. Depois que o touro é morto, o matador volta para
pegar o chapéu, que é arremessado na arena com o cartão do homem
que estava com ele, ou com algum presente dentro dele nos casos em
que o homem veio preparado para ser homenageado. Pelas regras da
etiqueta, o presente é obrigatório, a menos que a dedicatória seja entre
amigos que compartilham a mesma profissão.
Brío: genialidade e vivacidade.
Bronca: protesto barulhento em sinal de reprovação.
Bronco: touro selvagem, nervoso, imprevisível e difícil.
Buey: bezerro ou boi, ou um touro que é pesado e que age como um boi.
Bulto: fardo; o homem em vez do pano. Um touro que mira o fardo não
presta atenção na capa nem na muleta, mesmo quando são muito bem
manuseadas, e prefere em vez disso atacar o homem. Um touro que faz
isso quase sempre teve a chance de lutar antes como um bezerro na
fazenda ou numa arena de província onde não foi morto, o que
desrespeita as regras.
Burladero: abrigo feito de tábuas de madeira, próximo do curral ou da
barrera, usado por toureiros e vaqueiros caso sejam perseguidos pelo
touro.
Burriciegos: touros com problemas de visão. Eles podem ser míopes,
hipermetropes ou ter a visão turva. É possível fazer uma boa luta contra
um touro hipermetrope se o matador não tiver medo de chegar bem
perto do touro e o acompanhar de modo que o animal não perca o pano
de vista ao se virar depois de um ataque. Touros míopes são muito
perigosos porque eles atacam de repente e muito rápido, de uma
distância incomum, e avançam contra o maior objeto que atrair sua
atenção. E é quase impossível ter uma boa luta com touros de visão
turva, causada quase sempre pelo embaçamento dos olhos ao longo da
luta nos casos em que o touro está acima do peso e o dia está quente, ou
quando o touro se suja com as vísceras do cavalo depois de dar uma
chifrada.

C
Caballero em Plaza: toureiro espanhol ou português montando um cavalo
puro-sangue treinado que, com a ajuda de homens a pé que manuseiam
capas para posicionar o touro, crava as banderillas usando uma das mãos
de cada vez ou ambas ao mesmo tempo e mata o touro usando um
dardo sem apear do cavalo. Esses cavaleiros também são chamados de
rejoneadores devido ao rejón, ou dardo que eles usam. Esse dardo é
muito afiado, fino, com ponta semelhante à de um punhal, e fica
posicionado na extremidade de uma lança que foi parcialmente cortada
de modo que ela quebre no momento em que o dardo é inserido no
touro, assim o dardo afunda mais à medida que o touro cabeceia, e ele
morre de um golpe que com frequência parece insignificante. A
habilidade que o toureiro precisa ter com o cavalo é enorme e as
manobras são complicadas e difíceis, mas depois de ver uma tourada
como essa algumas vezes, fica a impressão de que ela não tem o mesmo
apelo da tourada tradicional pois o homem não corre perigo nenhum. É
o cavalo que assume os riscos, não o cavaleiro; como o cavalo está em
movimento toda vez que se aproxima do touro, qualquer ferimento que
ele sofra será devido à falta de bom senso ou de habilidade do cavaleiro,
e não será o
tipo de ferimento que derruba o cavalo no chão e expõe o cavaleiro. O
touro também é ferido e se exaure rápido por causa dos ferimentos
profundos causados pelo dardo, que costumam atingir a área proibida do
pescoço. Além disso, como o cavalo, depois dos primeiros dez metros,
pode sempre ser mais rápido que o touro, a tourada se torna uma
perseguição em que um animal com uma velocidade superior foge de
outro menos rápido, com o animal que persegue sendo apunhalado por
um toureiro a cavalo. Isso é o oposto do que diz a teoria das touradas a
pé, em que o toureiro deve manter sua posição durante o ataque do
touro e enganar o animal com o movimento do pano que tem nas mãos.
Na tourada a cavalo, o homem usa o cavalo como isca para provocar o
ataque do touro, geralmente aproximando-se do touro por trás, mas a
isca está sempre em movimento e, quanto mais vejo esse tipo de
tourada, mais me parece monótono. As habilidades exibidas no controle
do cavalo são sempre admiráveis e o grau de treinamento dos cavalos é
incrível, mas o negócio todo parece mais um espetáculo de circo do que
uma tourada de verdade.
Caballo: cavalo. Os cavalos dos picadores também são chamados de pencos
ou, mais literalmente, rocinantes, e mais uma variedade de nomes
pejorativos como pangaré, pileca, pilungo etc.
Cabestros: bois treinados para ajudar com os touros. Quanto mais velho e
experiente for um boi desses, mais valioso e útil ele será.
Cabeza: cabeça.
Cabeza a rabo: passe em que o touro passa todo o corpo por baixo da
muleta, da cabeça até o rabo.
Cabezada: golpe com a cabeça.
Cachete: outro termo para o sacrifício do touro com a puntilla, quando o
animal já não está mais em pé.
Cachetero: aquele que dá o coup de grâce com a puntilla.
Caída: queda do picador quando seu cavalo é derrubado pelo touro.
Também é chamado de caída o golpe com a espada que atinge uma
parte mais baixa do que devia no pescoço do animal, sem a intenção de
ser um bajonazo.
Calle: rua; os piores toureiros, em geral, são aqueles que são sempre vistos
nas ruas. Na Espanha, se alguém está sempre na rua é porque não tem
nenhum lugar melhor para ir e, se tiver, então não é bem-vindo.
Callejón: corredor entre o muro de madeira, ou barrera, que cerca a arena
e a primeira fileira de assentos.
Cambio: mudança. Um passe com a capa ou a muleta em que o toureiro,
depois de atrair o ataque do touro com o pano, muda a direção do
animal com um movimento do pano, de modo que o animal que
passaria por um dos lados do homem acaba passando pelo outro. A
muleta também pode ser mudada de uma das mãos para a outra durante
um cambio, fazendo o touro dobrar o próprio corpo e parar no lugar. Às
vezes, o homem muda a muleta de uma das mãos para a outra que está
posicionada nas costas. Isso é só um enfeite e não faz diferença para o
touro. Nas banderillas, o cambio é uma finta feita com o corpo para
mudar a direção do touro; ela foi descrita em detalhes neste livro.
Camelo: falso; um toureiro que usa de artimanhas para dar a impressão de
que trabalha perto do touro quando, na verdade, ele nunca assume
nenhum risco.
Campo: o interior. Faenas del campo são todas as operações no processo
de criar, rotular, testar, conduzir, selecionar, enjaular e transportar os
touros desde as fazendas.
Capa ou capote: capa usada nas touradas. Com o mesmo formato das
capas mais comuns que são usadas no inverno da Espanha, elas
geralmente são feitas de seda crua de um lado e de percal do outro,
pesadas, duras e reforçadas na gola, com cor de cereja na parte externa e
amarela na parte interna. Uma boa capa de tourada custa 250 pesetas.
Elas são pesadas e, na parte de baixo, pequenas rolhas de cortiça são
costuradas no tecido da capa que os matadores usam. Elas servem para
que o matador levante as extremidades da capa e segure com apenas
uma das mãos enquanto agita a capa com as duas mãos.
Caparacón: proteção semelhante a um colchão que cobre o peito e a
barriga do cavalo usado pelo picador.
Capea: tourada informal em praças de cidadezinhas com amadores e
aspirantes a toureiro. E também uma paródia da tourada oficial que
ocorre em partes da França ou em locais onde o sacrifício do touro é
proibido; nesse tipo de tourada, não há picadores e o sacrifício do touro
é simulado.
Capilla: capela na praça de touros usada pelos toureiros para rezar antes de
entrar na arena.
Capote de brega: capa da tourada como descrita num verbete anterior.
Capote de paseo: capa luxuosa que o toureiro usa ao entrar na arena. Ela é
carregada de brocados de ouro ou prata e custa algo entre 1.500 e 25.000
pesetas.
Cargar la suerte: primeiro movimento dos braços feito pelo matador
quando o touro se aproxima do pano em que ele afasta o pano do touro
a fim de distanciá-lo de si.
Carpintero: carpinteiro da praça de touros que fica no callejón pronto para
arrumar qualquer dano à barrera ou aos portões da arena.
Carril: rodeira, sulco ou trilho de trem; um carril nas touradas é um touro
que ataca em linha reta, como se escorregasse por uma canaleta ou
deslizasse sobre trilhos, permitindo que o matador exiba o máximo de
seu brilhantismo.
Cartel: programação de uma tourada. Também pode significar o tamanho
da fama que um toureiro tem numa determinada localidade. Por
exemplo, você pergunta para um amigo que trabalha no ramo: “Qual é o
seu cartel em Málaga?”. “Maravilhoso; em Málaga, ninguém tem mais
cartel do que eu. Meu cartel é imensurável.” Vale registrar que, na sua
última aparição em Málaga, ele pode ter sido expulso da cidade por
espectadores frustrados e furiosos.
Carteles: cartazes que anunciam as touradas.
Castigaderas: lanças longas usadas na condução e na separação dos touros
por várias passarelas e corredores dos currais para fazê-los ocupar suas
baias antes da luta.
Castoreno ou castor: chapéu largo com pompom na lateral usado pelo
picador.
Cazar: matar o touro de maneira traiçoeira e enganosa com a espada, sem
que o homem se aproxime de fato do animal.
Ceñido: próximo do touro.
Ceñirse: aproximar-se. Usado para se referir aos touros que passam tão
perto do toureiro quanto o toureiro permitir, aproximando-se mais a
cada ataque. Em relação ao homem, diz-se ciñe quando ele trabalha
muito próximo do animal.
Cerca: perto; como na frase: perto dos chifres.
Cerrar: fechar. Cerrar el toro: trazer o touro para perto da barrera; o
oposto de abrir. O toureiro fica encerrado en tablas quando ele provoca o
ataque do touro próximo da barrera de modo que o touro o impede de
escapar por um lado e a barrera o impede de escapar pelo outro.
Cerveza: cerveja; a cerveja de barril é boa em qualquer parte de Madri,
mas a melhor é encontrada na Cervecería Alvarez, na calle Victoria. A
cerveja de barril é servida em copos de meio litro que são chamados de
dobles ou em copos de um quarto de litro chamados de cañas, cañitas ou
medias. As cervejarias de Madri foram fundadas por alemães e as
cervejas são as melhores do continente, depois das alemãs e das tchecas.
A melhor cerveja de garrafa de Madri é a Aguilar. Nas províncias, boas
cervejas são fabricadas em Santander, a Cruz Blanca, e em San Sebastián.
Na segunda cidade, a melhor cerveja que bebi foi no Café de Madrid, no
Café de la Marina e no Café Kutz. Em Valência, a melhor cerveja de
barril que bebi na vida foi no Hotel Valência, onde ela é servida
trincando de tão gelada e em grandes jarras de vidro. A co-
mida nesse hotel, que tem quartos muito modestos, é excelente. Em
Pamplona, a melhor cerveja fica no Café Kutz e no Café Iruña. Eu não
recomendaria beber cerveja em outros cafés. Bebi cervejas de barril
excelentes em Palência, Vigo e La Coruña, mas nunca encontrei uma
boa cerveja de barril em nenhuma cidade pequena da Espanha.
Cerviguillo: parte alta do pescoço do touro onde a corcova de músculos
forma o chamado morillo, uma espécie de escudo do pescoço.
Chato: de nariz arrebitado.
Chico: pequeno; também significa jovem. Os irmãos mais novos dos
toureiros geralmente são chamados pelo nome da família, ou pelo nome
profissional, seguido de Chico: Armillita Chico, Amorós Chico etc.
Chicuelinas: passe com a capa inventado por Manuel “Chicuelo” Jiménez.
O homem apresenta a capa para o touro e, quando o touro ataca e sofre
o passe, o homem, enquanto o touro faz a volta, dá uma pirueta fazendo
a capa enrolar no próprio corpo. Ao fim da pirueta, ele está de frente
para o touro pronto para o próximo passe.
Chiquero: baia fechada onde o touro espera para entrar na arena.
Choto: bezerro que ainda é amamentado; termo depreciativo para
descrever touros pequenos demais e novos demais.
Citar: provocar o touro para que ele ataque.
Clarines: trombetas que, sob as ordens do presidente, dão o sinal para
anunciar as trocas ao longo da luta.
Claro: touro simples e fácil de lidar.
Cobarde: touro ou toureiro covarde.
Cobrar: el mano de cobrar é a mão direita.
Cogida: arremesso que o homem sofre ao ser chifrado pelo touro;
significa, literalmente, o ato de pegar; se o touro pega, ele arremessa.
Cojo: manco; um touro que esteja mancando na arena deve ser retirado.
Os espectadores começam a gritar “Cojo!” assim que percebem a
manqueira.
Cojones: testículos; dizem que um toureiro corajoso tem um belo par
desses. Num toureiro covarde, dizem que eles não existem. Os testículos
do touro são chamados de criadillas e, preparados em qualquer uma das
formas que usam para fazer um pão doce, eles são uma iguaria. Durante
o sacrifício do quinto touro, às vezes as criadillas do primeiro touro são
servidas no camarote real. Nos seus discursos, Primo de Rivera gostava
tanto de fazer referência às virtudes masculinas que diziam que ele tinha
comido criadillas demais e elas acabaram afetando seu cérebro.
Cola: rabo do touro; geralmente chamado de rabo. Cola pode se referir
também à fila em frente à bilheteria.
Colada: instante em que o toureiro percebe que sua posição é
insustentável, seja por administrar mal o pano ou porque o touro não
presta nenhuma atenção nele, ou ignora o pano para atacar o homem;
nesse caso o homem deve fazer de tudo para se salvar do ataque.
Coleando: agarrar o rabo do touro e torcê-lo na direção da cabeça do
animal. Isso provoca uma dor enorme no touro e com frequência
machuca sua coluna. Essa manobra só é permitida quando o touro está
chifrando ou tentando chifrar um homem caído no chão.
Coleta: rabicho enrolado, curto e bem amarrado que o toureiro usa na
parte de trás da cabeça para fixar a mona, uma espécie de botão preto,
liso e oco, coberto de seda, com o dobro do tamanho de uma moeda de
um dólar, cuja função é segurar o chapéu. Antigamente, todos os
toureiros usavam grampos para prender e esconder o chumaço de
cabelo quando não estavam na arena. Agora, eles descobriram que
podem fixar uma mona e uma coleta ao mesmo tempo com um colchete
na parte de trás da cabeça quando se arrumam para lutar. Hoje, você só
vê o rabicho, que já foi uma marca importante dos toureiros, nas cabeças
dos jovens aspirantes a toureiro nas províncias.
Colocar: um homem está bien colocado quando ele se posiciona
corretamente na arena em todos os atos da tourada. É uma expressão
usada também para se referir à colocação da espada, da lança e das
banderillas no touro. Um toureiro também está bien colocado quando
ele finalmente é reconhecido na profissão.
Compuesto: composto; manter a postura reta enquanto o touro ataca.
Confianza: confiança; peón de confianza: banderillero particular que
representa e pode até aconselhar o matador.
Confiar: tornar-se confiante na lida com o touro.
Conocedor: profissional que supervisiona os touros bravos na propriedade
de um criador.
Consentirse: ficar muito próximo do touro com o corpo ou com o pano
para forçar um ataque e, em seguida, continuar próximo e sustentar o
ataque do touro.
Contrabarrera: segunda fileira de assentos na praça de touros.
Contratas: contratos assinados pelos toureiros.
Contratista de Caballos: fornecedor de cavalos; responsável por entregar os
cavalos usados numa luta em troca de um preço fixo.
Cornada: ferimento causado por um chifre; um ferimento de verdade,
diferente de um varetazo, ou arranhão. Uma cornada de caballo é uma
cornada enorme, o tipo de ferimento que o touro causa no peito de um
cavalo.
Cornalón: touro com os chifres excepcionalmente grandes.
Corniabierto: de chifres excepcionalmente largos.
Corniavacado: de chifres de vaca. Touro que tem os chifres são virados
para cima e para trás.
Corniveleto: chifres altos e retos.
Corral: recinto adjacente à arena onde os touros são mantidos
imediatamente antes de serem enfrentados. Eles recebem comida, sal e
água.
Correr: termo usado para se referir à corrida que o touro dá ao ser
provocado pelo banderillero assim que entra na arena.
Corrida ou Corrida de Toros: tourada espanhola.
Corrida de Novillos Toros: luta em que são usados touros jovens ou
grandes com algum tipo de defeito.
Corta: estocada em que um pouco mais do que a metade da espada
penetra no corpo do touro.
Cortar: toureiros geralmente sofrem pequenos cortes nas mãos causados
pela espada, quando manuseiam a espada e a muleta. Cortar la oreja:
cortar a orelha do touro. Cortar la coleta: cortar o rabicho ou se
aposentar.
Cortar terreno: dizem que o touro corta terreno quando, depois que o
toureiro provocou um ataque e vai na direção do touro, mas na diagonal,
para colocar as banderillas, por exemplo, no ponto em que as duas
trajetórias se encontram, o touro muda de direção numa tentativa de
chifrar o homem; ganhar terreno correndo na diagonal.
Corto; vestido corto: usar a jaqueta curta dos pastores andaluzes.
Antigamente, o termo se referia a toureiros que usavam seus trajes fora
da arena.
Crecer: aumentar; touro cuja coragem aumenta ao ser castigado.
Cruz: ponto de interseção entre a linha no alto das escápulas do touro e a
coluna vertebral. Lugar onde a espada deve ser cravada se o matador
realizar um sacrifício perfeito. Cruz se refere também ao cruzamento do
braço que segura a espada com o braço que segura a muleta no
momento em que o matador se aproxima do touro para matar. O
toureiro cruza bem quando a mão esquerda move o pano devagar e mais
próximo do chão, de dentro para fora, movimento que acentua a cruz
formada com o outro braço e que assim controla bem o touro enquanto
crava a espada. Fernando Gómez, pai de Los Gallos, teria sido o primeiro
a dizer que o toureiro que não cruza dessa forma se torna
imediatamente amaldiçoado. Outro ditado afirma que a primeira vez
que você não cruzar será sua primeira viagem ao hospital.
Cuadrar: enquadrar o touro para o sacrifício; patas dianteiras e traseiras
alinhadas, e cabeça nem muito alta nem muito baixa. Nas banderillas:
momento em que o touro baixa a cabeça para chifrar e o homem junta
os pés, com as mãos unidas, e crava os bastões no touro.
Cuadrilla: trupe de toureiros sob as ordens de um matador, incluindo
picadores e banderilleros, um dos quais atua como puntillero.
Cuarteo: forma mais comum de cravar as banderillas, descrita neste livro;
uma finta com o corpo ou uma esquiva usada para não se aproximar do
touro em linha reta na hora de matar.
Cuidado: cuidado!, quando é uma exclamação. Termo descritivo usado
para se referir a um touro que adquiriu conhecimento ao longo da luta e
se tornou perigoso.
Cuidando la línea: defendendo a linha; quando o toureiro cuida para que
seus movimentos sejam esteticamente elegantes enquanto lida com o
touro.
Cumbre: ápice; torero cumbre: o melhor toureiro possível; faena cumbre:
um trabalho com a muleta absolutamente superior.
Cuna: posição diante da cabeça do touro, entre os chifres, que serve como
refúgio temporário para um toureiro que se encontra numa situação
desesperadamente perigosa.
D
Defenderse: defender; um touro se defende quando ele se recusa a atacar,
mas presta atenção em tudo e chifra qualquer coisa que se aproxime.
Dehesa: terra para pasto.
Déjalo: não mexa com ele! Não o incomode. Gritado pelo toureiro para os
peones quando eles conseguem posicionar o touro ou quando o matador
não quer que mexam com o touro para que ele não se canse ainda mais
com as capas.
Delantal: passe com a capa inventado por Chicuelo em que a capa é
balançada na frente do homem, esvoaçando como se fosse um avental
numa mulher grávida ao vento.
Delantera de tendido: terceira fileira de assentos na arena, atrás da contra-
barrera e da barrera. Delantera de grada: primeira fileira de assentos na
galeria.
Delantero: par de banderillas colocadas num ponto bem posterior ao lugar
onde deveriam ser cravadas.
Derecho: direito; mano derecha: mão direita.
Derramar la vista: olhar disperso; touro que fixa rápido o olhar em vários
objetos diferentes antes de subitamente definir um e atacar.
Derrame: hemorragia, geralmente visível na boca; se o sangue é claro ou
espumoso, isso sempre é um sinal de que a espada foi mal colocada e
atingiu os pulmões. Um touro pode sangrar pela boca quando a espada é
cravada corretamente, mas é muito raro.
Derribar: derrubar; na perseguição a um touro jovem que está na fazenda,
um homem a cavalo armado com uma lança longa espeta a ponta da
lança perto da base do rabo do touro, que perde o equilíbrio e cai no
chão.
Derrote: golpe alto que o touro dá com os chifres.
Desarmar: o matador é desarmado ao perder a muleta quando o chifre
enrosca no pano e o touro o arremessa longe ou quando o touro
deliberadamente dá cabeçadas altas no momento em que o homem se
aproxima para o sacrifício.
Desarrollador: onde a carne do touro é preparada para ser vendida depois
da luta.
Descabellar: fazer o descabello significa matar o touro pela frente, após ele
ter sido mortalmente ferido por uma estocada, cravando a ponta da
espada entre a base do crânio e a primeira vértebra, de modo que a
medula espinhal seja cortada. Esse é um coup de grâce executado pelo
matador enquanto o touro ainda está de pé. Se o touro estiver quase
morto e com a cabeça baixa, o golpe não será difícil, pois com a cabeça
perto do chão, o espaço entre a vértebra e o crânio fica aberto. No
entanto, muitos matadores que não se importam de correr o risco de se
aproximar do touro e desviar dos chifres mais uma vez, depois de ter
administrado uma primeira estocada, seja ela mortal ou não, tentam
executar o descabello num touro que não está de maneira nenhuma
moribundo e, como o animal precisa ser levado a baixar a cabeça e pode
cabecear para cima quando ver ou sentir a espada, o descabello se torna
então difícil e perigoso. É perigoso tanto para os espectadores quanto
para o matador, porque o touro, com uma cabeceada, consegue
arremessar a espada a dez metros de altura ou mais. Espadas que foram
arremessadas dessa forma por touros chegaram a matar espectadores em
arenas espanholas. Um visitante cubano em Biarritz morreu alguns anos
atrás na praça de touros em Bayonne, na França, ferido por uma espada
com que Antonio Márquez estava tentando fazer um descabello.
Márquez foi acusado de homicídio culposo, mas acabou sendo absolvido.
Em 1930, um espectador morreu atingido por uma espada arremessada
em Tolosa, na Espanha, e o matador que estava tentando executar o
descabello era Manolo Martínez. A espada, que atingiu o homem nas
costas, atravessou o corpo e foi removida com dificuldade por dois
homens; ambos ficaram com as mãos muito feridas pela lâmina. A
prática de tentar um descabello num touro que ainda está forte e que
precisaria de mais uma estocada para ser morto ou ferido mortalmente é
uma das piores e mais vergonhosas práticas da tourada moderna. A
maioria dos desastres mais escandalosos e vergonhosos protagonizados
por toureiros acometidos de uma covardia súbita, como Cagancho, Niño
de la Palma e Chicuelo, se deve ao fato de eles tentarem descabellar um
touro que estava em condições de se defender contra o golpe. Na
maneira correta de descabellar, a muleta é carregada mais perto do chão
para forçar o touro a baixar o focinho. O matador pode espetar o focinho
do touro com a ponta da muleta ou com a espada para forçá-lo a baixar o
focinho. Quando a ponta da espada usada no descabello, cuja lâmina tem
a ponta reta e não curvada para baixo como é mais comum, é cravada da
maneira certa, ela atinge e corta a medula espinhal e o touro cai tão
subitamente quanto uma luz que se apaga quando um interruptor é
acionado para desligar uma lâmpada.
Descansar: descanso é o intervalo entre o terceiro e o quarto touro, que
ocorre em algumas praças de touros enquanto a arena está sendo
molhada e alisada. Um homem também pode fazer um touro descansar
por um momento entre duas séries de passes com a muleta, se achar que
o touro está sem fôlego.
Descompuesto: que se descompôs por nervosismo.
Desconfiado: preocupado ou sem confiança.
Descordando: estocada ou golpe de espada que penetra por acidente entre
duas vértebras, corta a medula espinhal e derruba o touro
instantaneamente. Não deve ser confundido com o descabello ou com o
golpe da puntilla, que corta a medula espinhal deliberadamente.
Descubrirse: descobrir; em relação ao touro, significa que o animal baixa
bem a cabeça para deixar acessível o ponto em que a espada deve ser
cravada. Em relação ao homem, significa ficar exposto, sem a proteção
do pano quando está lidando com o touro.
Desgarradura: rasgo no corpo do touro feito por um picador
desqualificado ou desalmado.
Desigual: toureiro que não tem consistência em suas apresentações;
brilhante num dia e entediante no outro.
Despedida: apresentação de despedida de um toureiro; deve ser levada tão
a sério quanto a apresentação de despedida de um cantor. A verdadeira
última performance de um toureiro geralmente é um negócio triste, pois
o homem tem algumas limitações que o levam a se aposentar, ou ele se
aposenta para viver do dinheiro que ganhou e vai ter muito cuidado para
não se arriscar na última chance que os touros terão de acabar com ele.
Despedir: quando o homem com a capa ou a muleta manda o touro para
longe ao fim de um passe. A manobra de se afastar do touro executada
pelo picador ao fim de um ataque, quando o picador faz o cavalo se virar.
Despejo: momento em que o público deve desocupar a arena. Os
espectadores não têm mais permissão para desfilar na arena de Madri
antes do início da luta.
Desplante: qualquer gesto teatral executado por um toureiro.
Destronque: desgaste do touro causado por viradas repentinas da coluna
vertebral, quando o toureiro usa a capa ou a muleta para obrigar o
animal a fazer curvas em espaços muito pequenos.
Diestro: habilidoso; termo genérico para se referir ao matador.
Divisa: cores adotadas por um criador de touros usadas em um ferro com
o formato de um pequeno arpão e colocado no morillo do touro no
momento em que ele entra na arena.
División de Plaza: dividir a arena em duas partes, fazendo a barrera cortar
o círculo ao meio e exibir duas touradas ao mesmo tempo. É o tipo de
coisa que não se vê mais desde que as touradas foram formalizadas, a
não ser muito de vez em quando em lutas noturnas, para compensar a
falta de atrações, mais como uma curiosidade e uma relíquia de outros
tempos.
Doblar: virar; um touro que vira depois de atacar e volta a atacar;
Doblando con el: um toureiro que vira com o touro mantendo a capa ou
a muleta na frente do touro para manter a atenção de um animal que
tem a tendência de se dispersar depois de cada ataque.
Doctorado: gíria para se referir à alternativa; fazer o doutorado em
tauromaquia.
Dominio: habilidade de dominar o touro.
Duro: duro, rígido e resistente. Gíria para a estrutura óssea que a espada
pode atingir na hora do sacrifício; significa também a moeda de cinco
pesetas.

E
Embestir: atacar; embestir bien: seguir bem o pano; atacar com vigor e
determinação.
Embolado: touro, boi ou vaca cujos chifres foram cobertos com uma capa
de couro que é grossa nas extremidades para tornar a ponta cega.
Embroque: espaço entre os chifres do touro; estar entre os chifres do
touro.
Emmendar: corrigir ou melhorar a posição em que se enfrenta o touro;
mudar um lugar ou passe que não está funcionando por outro que é
mais bem-sucedido.
Empapar: centralizar bem a cabeça do touro no meio do pano da capa ou
da muleta ao receber um ataque, de modo que o animal não consegue
ver nada além das pregas do pano que se move à sua frente.
Emplazarse: quando o touro assume uma posição fixa no meio da arena e
se recusa a deixá-la.
Empresa: organização responsável por promover touradas numa
determinada arena.
Encajonamiento: quando os touros são colocados nos nichos ou nas jaulas
individuais para os levarmos até a arena.
Encierro: condução dos animais a pé, cercados por bois, de um curral para
o curral da arena. Em Pamplona, a corrida dos touros pelas ruas com a
multidão correndo à frente deles, do curral até o extremo da cidade, para
dentro da ou cruzando a arena, até o curral da praça de touros. Os
touros que devem ser enfrentados à tarde correm pelas ruas às sete da
manhã no mesmo dia da luta.
Encorvado: arcado; toureiro que segura o pano com o corpo inclinado
para a frente a fim de fazer o touro passar o mais longe possível. Quanto
mais reta for a postura do homem, mais perto o touro vai passar de seu
corpo.
Enfermeria: sala de operação que faz parte de todas as arenas.
Enganchar: pegar qualquer coisa com o chifre e arremessá-la para o alto.
Engaño: qualquer coisa que serve para enganar o touro ou o espectador.
No primeiro caso, a capa e a muleta; no segundo, as artimanhas que dão
uma ideia de perigo que não existe de verdade.
Entablerarse: quando o touro assume uma posição que ele se recusa a
deixar, próximo da barrera.
Entero: inteiro; touro que chega ao momento do sacrifício sem ter sido
abrandado e enfraquecido pelos embates com os picadores e os
banderilleros.
Entrar a matar: aproximar-se para matar.
Eral: touro com dois anos de idade.
Erguido: reto e determinado; toureiro que mantém sua postura ao lidar
com o touro.
Espada: usado também para se referir ao próprio matador.
Espalda: ombros ou costas do homem. Quando dizem que um homem
trabalha de costas é para se referir a um sodomita.
Estocada: golpe da espada ou estocada em que o matador se aproxima pela
frente para tentar cravar a espada no alto entre as escápulas do touro.
Estoque: a espada usada na tourada. Ela tem um punho de chumbo
revestido de camurça, uma proteção transversal a cinco centímetros do
punho e tanto o punho quanto a proteção são envoltos com uma flanela
vermelha. Ela não tem um punho cravado de joias, como afirma o livro
Virgin Spain. A lâmina tem cerca de setenta e cinco centímetros de
comprimento e a ponta curvada para baixo com o propósito de penetrar
melhor e de alcançar o ponto entre as costelas, vértebras, escápulas e
outras estruturas ósseas que possa encontrar pelo caminho. Nas espadas
modernas, uma, duas ou três ranhuras na parte de trás da lâmina têm a
função de permitir a entrada de ar no ferimento causado pela espada,
senão a lâmina da espada vira uma espécie de tampão para o ferimento
que causa. As melhores espadas são feitas em Valência, e os preços
variam de acordo com o número de ranhuras e com a qualidade do aço
usado. O equipamento tradicional de um matador é formado por quatro
espadas comuns para o sacrifício e uma espada de ponta reta com a
extremidade ligeiramente mais larga para o descabello. As lâminas de
todas as espadas, com exceção da que é usada no descabello, são
extremamente afiadas da ponta até a metade da lâmina. Elas são
guardadas em bainhas de couro macio e o conjunto inteiro fica num
estojo de couro com detalhes em relevo.
Estribo: estribo de metal usado pelo picador; e também a viga de madeira
a meio metro do chão que percorre toda a parte interna da barrera e que
ajuda os toureiros a saltar a cerca de madeira.
Extraño: movimento repentino para um lado ou para o outro, feito pelo
touro ou pelo homem.

F
Facultades: em relação ao homem, habilidades físicas ou qualidades; em
relação ao touro, preservar suas faculdades significa manter suas
capacidades intactas apesar dos castigos impostos ao animal.
Facultativo; Parte Facultativo: diagnóstico oficial enviado ao presidente a
respeito do ferimento ou dos ferimentos de um toureiro, fornecido pelo
cirurgião responsável pela enfermaria depois de ter operado ou tratado
do homem.
Faena: soma dos movimentos feitos pelo matador com a muleta no último
terço da tourada; significa também qualquer trabalho realizado com o
touro; faena de campo é qualquer etapa no processo de criação de
touros.
Faja: faixa usada na cintura como um cinto.
Falsa: falso, incorreto, enganoso. Salidas em falsa são tentativas de cravar
as banderillas em que o homem passa pela cabeça do touro sem cravar
os bastões, seja porque o touro não atacou, nesse caso a atitude do
homem foi correta, seja porque o homem cometeu um erro de cálculo.
Às vezes, elas são feitas com muita elegância para mostrar como o
matador avalia a distância entre ele e o touro.
Farol: passe com a capa que começa como uma veronica com as duas
mãos segurando o pano, mas quando o touro passa pelo homem, a capa
envolve a cabeça do homem e parte das costas à medida que ele gira
com o touro para acompanhar o movimento da capa.
Farpa: banderilla longa e pesada que os toureiros portugueses usam, a
cavalo, para cravar no touro.
Fenómeno: fenômeno, prodígio; era usado a princípio para designar um
jovem matador que tivesse realizado proezas na sua profissão, mas agora
é usado com sarcasmo para descrever um toureiro famoso muito mais
por causa da publicidade que recebe do que pela experiência e pelas
habilidades que tem.
Fiera: besta selvagem; gíria para se referir ao touro. Também usada como
gíria para se referir a uma mulher fácil, que outros chamariam de vadia.
Fiesta: período de festas ou chance de se divertir. Fiesta de los toros: a
tourada. Fiesta nacional: tourada; usada de maneira irônica por
escritores que são contra as corridas porque simbolizam o atraso da
Espanha em relação a outras nações europeias.
Fijar: cortar a trajetória do touro e fixá-lo num determinado lugar.
Filigranas: manobras extravagantes com o touro; refinamentos artísticos
ou qualquer passe ou manobra numa tourada.
Flaco; toro flaco: touro que é magro, flácido ou inconsistente. Que não
tem fi bra.
Flojo: fraco, mais ou menos, pouco convincente, sem ânimo.
Franco: touro nobre fácil de lidar.
Frenar: frear; touro que reduz a velocidade de repente enquanto passa pelo
homem porque quer parar e chifrar em vez de seguir a trajetória do
ataque; um dos touros mais difíceis de enfrentar porque ele vai para o
passe sem dar nenhuma indicação de que vai frear.
Frente par detrás: passe com a capa em que o homem vira de costas para o
touro, mas seu corpo está coberto pela capa, que está com um dos lados
estendido pelas duas mãos. Na verdade, é uma forma da veronica feita de
costas para o touro.
Fresco: calmamente, sem vergonha, cínico.
Fuera: sai fora! Fora daqui! Dá o fora daqui! O significado muda de acordo
com o grau de veemência com que a palavra é dita.

G
Gachis: garotas com vários parceiros sexuais; prostitutas.
Gacho: chifres que apontam para baixo.
Galleando: quando o homem, com a capa nas costas, como que vestido
com ela, olha por sobre o ombro na direção do touro e se move numa
série de zigue-zagues, fintas e desvios, levando o touro a acompanhar os
movimentos da parte baixa da capa.
Gallo: galo de briga; nome profissional da grande família Gómez de
toureiros ciganos.
Ganadería: fazenda onde os touros bravos são criados; todos os touros,
vacas, novilhos e bezerros de uma fazenda.
Ganadero: criador de touros bravos.
Ganar terreno: touro que força o homem a ceder terreno toda vez que
ataca.
Garrocha: sinônimo para a lança usada pelo picador; uma grande vara
usada para saltar por sobre os touros em touradas do passado.
Gente: pessoas; gente coletudo ou cidadãos de rabicho se refere aos
toureiros.
Ginete: cavaleiro, picador; buen ginete: bom cavaleiro.
Golletazo: golpe de espada na lateral do pescoço que perfura o pulmão e
causa a morte quase instantânea do touro, sufocado pelo sangue;
manobra para matar touros usada por toureiros apavorados demais para
se aproximar dos chifres; essa estocada só se justifica nos touros que já
receberam um ou dois golpes corretos da espada e que se defenderam
tão bem, evitando expor o lugar entre os ombros onde a espada deve ser
cravada, arrancando a muleta das mãos do toureiro quando ele se
aproximou e se recusando a atacar, que a única saída possível para o
homem é executar o golletazo.
Gótico; un niño gótico: na tourada, um garoto convencido e afetado,
como é afetada a arquitetura gótica.
Gracia: graça e elegância mesmo sob perigo; gracia gitana: elegância
cigana.
Grado: balcão ou assentos cobertos numa praça de touros, acima dos
assentos descobertos, ou tendidos, e dos camarotes, ou palcos.
Grotesca: grotesco; o oposto de gracioso.
Guardia: polícia municipal; que não é levada a sério nem por ela mesma.
Guardia Civil: polícia nacional, levada muito a sério; armada com sabres
e carabinas Mauser de 7 mm, elas são, ou eram, modelo de uma força
policial disciplinada e implacável.

H
Hachazo: golpe que o touro dá com os chifres.
Herida: ferimento.
Herradera: marcação de novilhos na fazenda.
Herradura: ferradura; cortar la herradura: cortar a ferradura, uma
estocada bem colocada, bem no alto, em que a lâmina, uma vez dentro
do touro, segue uma trajetória oblíqua para baixo, na direção do peito do
touro, cortando a pleura e causando morte imediata sem qualquer
hemorragia externa.
Hierro: ferro de marcar; marca de um criador de touros ou de um criador
de touros bravos.
Hombre: homem; como uma exclamação, expressa surpresa, prazer,
choque, reprovação ou alegria, de acordo com o tom usado. Muy
hombre: homem corajoso, isto é, que tem huevos, cojones etc.
Hondo: profundo; estocada honda: espada cravada até o punho.
Hueso: osso; como gíria, significa resistente.
Huevos: ovos; gíria para testículos, assim como outros dizem colhões.
Huir: fugir; vergonhoso tanto para touros quanto para homens.
Hule: lona; gíria para a mesa de operação.
Humillar: baixar a cabeça.

I
Ida: estocada em que a lâmina faz uma trajetória descendente acentuada
sem que ela seja perpendicular. Uma estocada como essa, embora seja
bem colocada, pode causar hemorragia pela boca nos casos em que a
lâmina atinge os pulmões.
Ida y vuelta; allez et retour: viagem de ida e volta; touro que faz a volta no
fim de um ataque para investir mais uma vez contra o toureiro em linha
reta. Perfeito para o toureiro que quer exibir seus talentos sem ter de
atrair o touro com a capa ou a muleta ao fim de cada investida.
Igualar: fazer o touro alinhar as patas dianteiras.
Inquieto: nervoso.
Izquierda: esquerda; mano izquierda: mão esquerda, chamada de zurda no
dialeto das arenas.

J
Jaca: cavalo, égua ou pônei; Jaca torera: uma égua tão bem treinada pelo
toureiro português Simão da Veiga que ele conseguia, montado nela,
cravar banderillas com as duas mãos sem encostar nas rédeas, com a
égua sendo guiada apenas pelas esporas e pela pressão dos joelhos.
Jalear: aplaudir.
Jaulones: nichos individuais ou jaulas em que os touros são transportados
da fazenda para a arena. A jaula é propriedade do criador, leva sua
marca, seu nome e seu endereço, e é devolvida ao fim da luta.
Jornalero: trabalhador; toureiro que mal consegue se sustentar
trabalhando na profissão.
Jugar: jogar; jugando con el toro: quando um ou mais matadores sem
capa, mas com as banderillas juntas numa das mãos, provocam o touro
numa série de ataques; correndo em zigue-zague ou vendo o quanto
podem se aproximar do touro sem provocar uma investida. Para fazer
isso de uma maneira interessante, é preciso ter muita elegância e saber
como o touro pensa.
Jurisdicción; momento em que o touro, durante um ataque, se aproxima
do homem e baixa a cabeça para chifrar. Tecnicamente é quando o touro
deixa seu território para entrar no território do toureiro, chegando ao
lugar onde o homem espera pelo animal com o pano.

K
Kilos: um quilo equivale a pouco mais de duas libras. Às vezes os touros
são pesados depois de serem mortos e antes de serem carneados, e
sempre são pesados depois de preparados como carne, com a pele
arrancada, cabeça e cascos separados, e todas as partes ruins da carne
descartadas. O touro que resta desse processo é chamado en canal e há
muitos anos a pesagem dos touros depois de carneados tem sido alvo de
críticas. Um touro bravo com quatro anos e meio de idade deve pesar
algo entre 295 e 340 quilos en canal, dependendo do tamanho e da raça
do animal; hoje, o peso mínimo oficial é 285 quilos. A pesagem da carne
ou en canal equivale a 52,5% do peso do animal vivo. Assim como, no
caso do dinheiro, apesar da moeda oficial ser a peseta e as pessoas nunca
falarem em pesetas para se referir a dinheiro numa conversa, mas sim em
reales, ou 25 centimos, um quarto de peseta, ou em duros, que equivale
a cinco pesetas; na pesagem de touros, quando as pessoas conversam,
elas falam em arrobas, uma unidade de peso que equivale a vinte e cinco
libras. Um touro tem seu peso calculado em arrobas de carne que ele vai
render depois de morto e carneado. Um touro de 26 arrobas vai render
pouco mais do que 291 quilos. Esse é o tamanho mínimo de um touro
para a arena para que assim o animal seja imponente o bastante para dar
emoção à corrida. O peso ideal para um touro bravo é de 26 a 30
arrobas, quando ele não foi engordado com cereais. Cada arroba entre 24
e 30 é crucial para definir a força, o tamanho e o poder destrutivo de um
touro, assim como ocorre nas categorias do boxe. Numa comparação,
podemos dizer que nos quesitos de força e de poder destrutivo, touros
com menos de 24 arrobas são pesos-moscas, pesos-galos e pesos-penas.
Touros de 24 a 25 arrobas são pesos-leves e meios-médios. Touros de 26
arrobas são pesos-médios e meios-pesados; de 27 a 30 arrobas são pesos-
pesados e, acima de 30 arrobas, chegam perto da categoria de Primo
Carnera. Uma cornada ou chifrada de um touro que pesa apenas 24
arrobas, se acertar o alvo, vai ser tão fatal quanto aquela dada por um
animal muito maior. É como um golpe de punhal sem muita força,
enquanto um touro de 30 arrobas dá o mesmo golpe com a força de um
bate-estaca. É um fato, no entanto, que um touro de 24 arrobas é
geralmente imaturo; com pouco mais de três anos de idade; e touros
dessa idade não sabem usar os chifres de maneira hábil, seja no ataque
ou na defesa. O touro ideal capaz de fazer frente ao toureiro, e assim
render uma corrida emocionante, deve ter pelo menos quatro anos e
meio de idade para ser maduro, e pesar, en canal, um mínimo de 25
arrobas. Quanto mais arrobas ele pesar além das 25, sem perder
velocidade e não simplesmente engordando mais, maior será a emoção e
maior será o mérito de qualquer trabalho realizado pelo homem na luta
com o animal. Para acompanhar as touradas com inteligência e ter uma
compreensão profunda de como funcionam, você precisa aprender a
pensar em arrobas assim como no boxe é preciso classificar os homens
nas muitas categorias oficiais de peso. Hoje, as touradas sofrem na mão
de criadores inescrupulosos que vendem touros jovens demais, leves
demais e imaturos demais, sem testar devidamente a coragem dos
animais, e dessa forma abusam da tolerância com que seus animais
subdimensionados são encarados, desde que sejam corajosos e capazes
de proporcionar uma corrida brilhante, ainda que desprovida de emoção.

L
Ladeada: para um lado; sobretudo em relação a uma estocada.
Lances: qualquer passe realizado com a capa.
Largas: passe que faz o touro se aproximar do homem, passar por ele e
depois se afastar, feito com a capa totalmente estendida e segurada pela
extremidade em apenas uma das mãos.
Lazar: laçar; usar o laço ou a corda do oeste norte-americano para apanhar
o gado, ou com o lazo amarrado a um peso numa das extremidades,
como é feito na América do Sul.
Levantado: primeira fase do touro ao entrar na arena, quando ele tenta
mandar todo mundo para fora do círculo sem concentrar o ataque em
ninguém.
Liar: enrolar, com um movimento do pulso esquerdo, o tecido da muleta
no bastão que dá suporta a ela, antes de perfilar o touro para executar o
sacrifício com a espada.
Librar: livrar; librar la acometida: escapar de um ataque do touro por meio
do trabalho com os pés ou por um passe improvisado com a muleta ou a
capa.
Libre de cacho: qualquer manobra realizada com o touro fora do alcance
dos chifres; pode ser a distância ou depois que os chifres passaram;
significa, literalmente, livre da possibilidade de ser pego.
Lidia: luta; toro de lidia: touro bravo. É também o nome do semanário
sobre touradas mais famoso e antigo que existe.
Lidiador: aquele que luta contra touros.
Ligereza: agilidade; uma das três qualidades necessárias para se tornar um
matador, de acordo com o grande Francisco Montés; as três são:
agilidade ou leveza dos pés, coragem e um conhecimento profundo do
ofício.
Llegar: chegar; descreve o momento em que o touro atinge o cavalo com
os chifres, apesar da lança do picador.
Lleno: arena cheia ou ingressos esgotados; todos os assentos da arena
ocupados.

M
Macheteo: cortar como se fosse com uma faca de bolo ou com uma
machete; macheteo por la cara é uma série de movimentos de um lado
para o outro com a muleta, com o homem recuando a pé se o touro
atacar, feitos para cansar os músculos no pescoço do touro e prepará-lo
para o sacrifício. É a forma mais simples e segura de cansar um touro
com a muleta e é usada pelos toureiros que não querem correr riscos ou
tentar qualquer manobra mais difícil.
Macho: másculo, masculino, superdotado de órgãos reprodutivos
masculinos; torero macho: toureiro cujo trabalho se baseia na coragem e
não numa técnica perfeita e no estilo, embora o estilo possa ser
desenvolvido.
Maestro: mestre em qualquer coisa; maneira pela qual os peones podem se
referir ao matador. Passou a ser usada de maneira sarcástica, sobretudo
em Madri. Você pode usar maestro para se dirigir a alguém mostrando
que não o respeita.
Maldito ou Maldita: xingamento usado para falar de um touro: “Maldita
seja a vaca que te pariu!.”
Maleante: patife ou trambiqueiro; o tipo de maleante mais comum numa
tourada é o batedor de carteiras ou carteirista. Esses cidadãos são
numerosos, extremamente habilidosos e tolerados no sentido de que a
polícia de Madri tem todos eles listados e, se você foi roubado e viu que
cara tinha o batedor de carteiras, a polícia pega centenas deles na rua ou
em casa e exibe todos eles para você. A melhor forma de evitá-los é
nunca andar de bonde nem de metrô, pois são os lugares onde o trabalho
deles é mais fácil. Eles têm uma qualidade positiva: eles não destroem
documentos pessoais nem passaportes, nem ficam com os documentos
guardados como outros bandidos; eles preferem pegar o dinheiro e
largar a carteira com os documentos numa caixa de correio numa
tabacaria ou numa dessas caixas de primeiros socorros embutidas na
linha do bonde. As carteiras podem ser recuperadas na agência geral dos
Correios. Pela minha experiência e pela de meus amigos como vítimas
dos batedores de carteiras na Espanha, devo dizer que esses senhores, na
sua área, combinam as mesmas qualidades que Montés listou como
sendo indispensáveis para um toureiro: leveza, coragem e um
conhecimento profundo de seu ofício.
Maleta: valise, literalmente; gíria para descrever um toureiro ruim ou
inferior.
Malo: ruim, imperfeito, defeituoso, doente, cruel, desagradável,
desprezível, péssimo, podre, sujo, fedido, nojento, desonesto, filho da
puta etc., dependendo das circunstâncias. Toro malo: touro com esses
atributos e outros defeitos inerentes, como a tendência de saltar por
sobre a barrera e atacar o público; escapar ao ver a capa etc.
Mamarracho: insulto lançado contra um touro insatisfatório; outros
diriam vagabundo, vadio, vaca ou bastardo.
Mancornar: jogar um novilho no chão segurando os chifres com as mãos e
usando o peso do corpo na manobra.
Mandar: comandar ou ordenar; numa tourada, significa fazer o touro
obedecer ao pano; dominar o touro com o pano.
Manejable: controlável; um touro com que é fácil de trabalhar.
Mano: mão; mano bajo: com a mão baixa; a maneira certa de manusear a
capa numa veronica. Manos se refere também às patas do touro.
Mansedumbre: touro que exibe passividade típica de um boi.
Manso: domesticado, tranquilo e manso; um touro que não tem o sangue
de um touro bravo é manso, assim como os bois chamados de cabestros
quando são treinados.
Manzanilla: vinho de xerez natural e levemente seco, que não teve seu teor
alcoólico artificialmente aumentado. Muito consumido na Andaluzia e
por todos os envolvidos numa tourada. É servido em chatos, ou copos
baixos, geralmente acompanhado de uma tapa, ou de uma pequena
porção de comida de qualquer tipo, com azeitonas ou anchovas,
sardinha, atum e pimenta-doce, ou uma fatia de presunto defumado. Um
chato melhora os ânimos, três ou quatro fazem você se sentir muito
bem, mas se você comer as tapas enquanto bebe, pode tomar doze
chatos sem ficar bêbado. Manzanilla também significa camomila, mas se
você se lembrar de pedir um chato de manzanilla, não há nenhuma
chance de receber chá de camomila.
Marear: ficar mareado; deixar o touro atordoado por fazê-lo girar de um
lado para o outro com o movimento da capa. Isso é feito com o objetivo
de fazer o animal cair de joelhos depois de ter sofrido uma estocada
imprecisa e é algo feio para quem vê e desonesto para quem executa.
Maricón: sodomita, boiola, afeminado, veado, bicha etc. Eles também têm
desses na Espanha, mas só sei de dois entre os quarenta e tantos
matadores. Isso não significa que os interessados em provar que
Leonardo da Vinci, Shakespeare etc. eram todos bichas não consigam
encontrar mais alguns entre os toureiros. Dos dois, um é quase
patologicamente muquirana, não tem muita coragem, mas é muito
habilidoso e delicado com a capa, uma espécie de decorador de
exteriores das touradas, e o outro tem fama de ser muito corajoso e
desajeitado, e de ser incapaz de economizar uma peseta. No meio
profissional, a palavra é usada como um termo para ofender,
ridicularizar ou insultar. Os espanhóis têm muitas, muitas histórias
engraçadas de maricón.
Mariposa: borboleta; série de passes com a capa sobre o ombro do homem
e o homem encarando o touro, recuando de costas lentamente em
zigue-zague, atraindo o touro primeiro com um lado da capa e depois
com o outro, supostamente imitando o voo de uma borboleta. Inventado
por Marcial Lalanda, esse quite exige que o toureiro conheça bem os
touros para poder executá-lo corretamente.
Mariscos: molusco consumido nos cafés enquanto se bebe cerveja antes ou
depois das touradas; entre os melhores estão o percebes, uma espécie de
craca com um pedúnculo apetitoso e um sabor muito delicado e
delicioso; lagostins, uns camarões grandes e carnudos do Mediterrâneo;
cigalas, uma integrante da família das lagostas com garras estreitas e o
corpo longo, rosa e branco, cujas garras e cauda você quebra com um
quebra-nozes ou um martelo; cangrejos del rio, lagostim ou lagosta de
água doce, preparados com sementes inteiras de pimenta-preta na cauda;
e gambas, ou camarões comuns servidos com casca que devem ser
chupados e comidos com as mãos. Percebes, encontrado ao longo da
costa do Atlântico, na Espanha, não é vendido em Madri entre os meses
de abril e setembro por causa do fim da temporada. Acompanhados de
cerveja ou de absinto, eles são muito gostosos; os pedúnculos da craca
têm um sabor mais delicado e atraente do que qualquer ostra, marisco
ou molusco que comi na vida.
Marronazo: quando o picador erra o touro no ataque e a ponta da lança
desliza pelo couro do touro sem machucá-lo.
Matadero: matadouro. Lugar onde se treina com a puntilla e a espada.
Matador: toureiro profissional que mata touros, enquanto um Mata Toros
é apenas um açougueiro de touros.
Mayoral: supervisor numa fazenda de touros; pode se referir também aos
vaqueros ou pastores que acompanham os touros enjaulados da fazenda
até a arena, dormindo com as jaulas nos caminhões de frete, cuidando
para que os touros recebam água e comida, e dando assistência no
momento de descarregar os touros e separá-los para a luta.
Media-estocada: estocada em que apenas metade da lâmina penetra o
touro. Se for cravada no lugar certo em um touro de tamanho médio, a
media-estocada consegue matar tão rápido quanto uma estocada que
crave a lâmina inteira no touro. Se o touro for muito grande, no entanto,
metade da lâmina pode não ser suficiente para alcançar a aorta ou outros
vasos sanguíneos grandes, que cortados levam à morte rápida.
Media-luna: lâmina com formato de foice fixada na ponta de uma lança
usada em touradas de antigamente para paralisar os touros que o
matador não conseguiu matar. Por um longo tempo depois de ter caído
em desuso, quando o touro que não foi morto na arena passou a ser
retirado por bois, a media-luna ainda era exibida para constranger o
matador e anunciar a entrada dos bois na arena. Hoje, ela não é mais
exibida.
Medias: meias longas como as que são usadas pelos toureiros.
Media veronica: um recorte, ou corte feito no ataque do touro, que
termina numa série de passes com a capa chamados de veronicas. Na
media veronica o homem segura a capa com as duas mãos, assim como
na veronica, e assim que o touro passa pelo homem, movendo-se da
esquerda para a direita, o homem traz a mão esquerda para perto do
quadril e recolhe a capa para perto do quadril com a mão direita,
diminuindo o movimento da veronica e usando metade da capa,
obrigando o touro a dobrar o corpo e fixando o animal no lugar para
que o homem possa se afastar dando as costas para o touro. Essa
manobra de fixar o animal num lugar é obtida com o movimento da
capa cortando a trajetória normal do touro, levando-o a fazer uma curva
num espaço menor do que o comprimento de seu corpo. Juan Belmonte
aperfeiçoou essa manobra com a capa e agora ela é o desfecho
obrigatório para qualquer série de veronicas. Os meios passes feitos pelo
matador segurando a capa com as duas mãos enquanto corria de costas
balançando a capa de um lado para o outro a fim de levar o touro de
uma parte da arena a outra eram chamados de medias veronicas, mas
hoje a verdadeira media-veronica é a que foi descrita anteriormente.
Media-vuelta: método de cravar as banderillas em touros que não atacam
bem, no qual o homem assume uma posição atrás do touro e corre na
direção da cabeça do animal, enquanto o touro vira a cabeça na direção
do homem. Touros impossíveis de matar pela frente também precisam
de um golpe da espada dado com uma media-vuelta.
Medios: parte central da arena, que é dividida em três territórios com o
propósito de se executar suertes diferentes com o touro; o centro ou
medios; o terço seguinte ou tercio; e a área mais próxima da barrera,
chamada de tablas.
Mejorar: melhorar; mejorando su estilo: melhorando seu estilo; mejorar al
terreno é quando o toureiro se encontra muito perto da barrera para
conseguir executar o passe que está preparando sem ser chifrado e, com
a ajuda da capa ou da muleta, ele pode mudar para uma posição melhor
ou mais segura.
Meter el pie: provocar o touro a atacar dobrando o joelho para a frente e
depois esticando a perna, com o corpo voltado para o touro, quando o
toureiro espera pelo touro para matá-lo da forma conhecida como
recibiendo.
Metisacas: colocar e tirar; estocadas em que o matador, por uma hesitação,
crava um pouco da espada e depois tira.
Mogón: touro com um chifre quebrado ou lascado, às vezes ficando com
uma protuberância arredondada; touros assim são usados nas novilladas.
Mojiganga: mascarada; no passado, os touros entravam na arena das
novilladas durante uma procissão ou um espetáculo. Esses eventos eram
chamados de mojigangas; os únicos sobreviventes desse costume são os
grupos que imitam a banda El Empastre, fundada por Rafael Dutrus, em
que um touro jovem é solto na arena enquanto a banda toca e o animal é
enfrentado e morto por alguns dos músicos, enquanto os outros
continuam tocando seus instrumentos.
Molinete: passe com a muleta em que o homem dá um giro completo
com o corpo, fazendo a muleta se enrolar nele. Causa um efeito enorme
quando é executada entre os chifres do touro ou ao lado deles, nesse caso
o touro também gira o corpo tentando seguir a ponta do tecido.
Mona: botão coberto de seda na base do rabicho usado pelo toureiro.
Monerias: tourada fuleira; extravagâncias imaturas realizadas no confronto
com o touro.
Monosabios: funcionários da praça de touros que usam camisas vermelhas
e auxiliam os picadores quando eles caem, ajudam os picadores a voltar
para o cavalo, conduzem os cavalos na direção do touro, matam os
cavalos que foram feridos, retiram as selas, cobrem os corpos com lona
etc. Eles passaram a ser chamados de monosabios quando uma trupe de
macacos artistas usando uniformes vermelhos se apresentou em Madri
em 1847, logo após a administração da praça de touros adotar as camisas
vermelhas para os funcionários.
Morillo: a corcova de músculos no alto do pescoço de um touro bravo que
se enrijece quando fica irritado. É onde o picador deve fincar a lança e
onde os banderillos devem cravar os bastões na parte superior dessa
corcova, perto dos ombros.
Morucho: touro mestiço que às vezes é bravo, violento e perigoso, mas
sem as características de tipo ou de casta de um puro-sangue. Em várias
partes da Espanha, touros que têm um pouco do sangue de uma raça
selvagem são criados por fazendeiros que não fazem parte de nenhuma
das associações dos criadores de touros bravos puros-sangues, e esses
touros mestiços são vendidos para serem usados em novilladas, nas
arenas pequenas e nas capeas. O fato de serem mestiços fica evidente na
grossura do rabo, no tamanho dos chifres e dos cascos, e na ausência da
corcova; de resto eles têm a aparência de verdadeiros touros bravos.
Movido: movimentado; toreo movido: trabalhar demais com os pés
enquanto enfrenta o touro.
Mozo de estoques: funcionário particular e responsável pelas espadas a
serviço do matador. Na arena, ele prepara as muletas e entrega as
espadas para o toureiro ao longo da luta, limpando as espadas usadas
com uma esponja e secando as lâminas antes de guardá-las. No
momento do sacrifício ele deve seguir o matador no corredor atrás da
barrera sempre a postos para entregar uma nova espada ou a muleta por
sobre a barrera, caso o toureiro precise. Quando está ventando muito,
ele umedece as capas e a muleta com uma moringa de água que carrega
consigo e também atende as exigências pessoais do matador. Fora da
arena, antes da luta, ele pega os envelopes com o cartão do matador e
uma certa quantia de dinheiro para os vários críticos de touradas, ajuda o
matador a se vestir e cuida para que todo o equipamento seja
transportado até a arena. Depois da luta, ele cuida dos telefonemas —
mensagens enviadas via companhia telefônica, escritas e entregues como
os telegramas são entregues nos Estados Unidos — ou das raras
mensagens verbais enviadas à família do matador, aos amigos, à
imprensa e a qualquer clube de entusiastas das touradas que possa ser
organizado em homenagem ao matador.
Mucha: muita; de muchas piernas: bom das pernas; com pernas muito
fortes; muchas arrobas: muito pesado. De mucho cuidado: muito
suspeito; isto é, um touro muito difícil de enfrentar.
Muchacho: garoto; jovem.
Muerte: morte; lugar onde a espada deveria entrar para matar o touro
corretamente. Toureiros dizem que o touro revela a muerte quando ele
baixa bem a cabeça. Pase de la muerte: passe com a muleta citado neste
livro.
Muleta: pano de sarja ou de flanela escarlate com forma de coração
dobrada e pendurada num bastão de madeira que tem uma ponta afiada
de metal na extremidade mais fina do bastão e um punho estriado na
extremidade mais grossa; a ponta afiada atravessa o tecido que está
dobrado numa extremidade e, na outra, o tecido é fixado ao punho com
um parafuso manual que ajuda a manter o pano sobre o bastão. A
muleta é usada para defender o homem; para cansar o touro e ajustar a
posição de sua cabeça e de seus pés; para desempenhar uma série de
passes de valor estético maior ou menor; e para ajudar o homem na hora
do sacrifício.
Muletazo: passe realizado com a muleta.
Multa: multa aplicada ao toureiro, ao criador de touros ou ao diretor da
arena e calculada pelo dirigente responsável pela corrida ou pelo
governador. Multas aplicadas ao toureiro são uma farsa pois todo
contrato firmado com um matador tem uma cláusula que determina que
toda multa aplicada contra o toureiro deve ser paga pelos promotores.
Essa cláusula tem mais de trinta e cinco anos e foi inserida pela primeira
vez para evitar que os promotores contratassem toureiros por valores
aleatórios e depois recebessem uma multa do presidente sobre a
diferença entre o valor que o toureiro cobrou para lutar e o valor que o
promotor estava disposto a pagar. Atualmente, com a sindicalização de
matadores, picadores e banderilleros, eles podem realizar um boicote
contra qualquer arena cujo promotor tenha deixado de pagar suas
dívidas e manter o boicote até que a dívida seja paga, inviabilizando até
as lutas realizadas por outros promotores até que as exigências sejam
atendidas, e não há nenhuma necessidade de manter a cláusula sobre as
multas para proteger os toureiros. Sua única consequência hoje é
permitir que lutadores inescrupulosos saibam que qualquer multa que
recebam, mesmo que seja justa, aplicada por trabalho insatisfatório ou
desonesto, não vai ser paga com dinheiro do próprio bolso. Esse é um
dos abusos que deveriam ser corrigidos na próxima vez que um governo
elaborar um novo decreto para a regulamentação da tourada.

N
Nalgas: nádegas, ou traseiro; alvo de muitos ferimentos por chifradas
causados pela decisão do matador de dar as costas para o touro sem ter
fixado o animal corretamente no lugar para evitar um ataque. Traseiros
proeminentes destroem a linha formada pelo corpo que o toureiro
procura fazer ao combater o touro e impedem que seu estilo seja levado
a sério, por isso a tendência de ter essa região mais rechonchuda é uma
fonte de preocupação para os matadores na tourada moderna.
Natural: passe feito com a muleta na mão esquerda, próximo do chão no
qual o homem provoca o touro pela frente; com a perna direita voltada
para o touro, a muleta carregada pelo meio do bastão na mão esquerda,
braço esquerdo estendido e o pano na frente do homem, a muleta é
movimentada levemente na direção do touro para chamar atenção, esse
movimento é quase imperceptível para o espectador; quando o touro
ataca e alcança a muleta, o homem gira com o animal, mantendo o
braço totalmente estendido e movendo a muleta devagar na frente do
touro, fazendo o animal girar num quarto de círculo ao redor do
homem; essa virada é dada com a elevação do pulso ao fim do passe para
manter o touro no lugar para outro passe. Esse passe é descrito em
detalhes neste livro. É o passe fundamental da tourada, o mais simples, o
mais puro e o mais perigoso de se executar.
Navarra: província no norte da Espanha; nome de um passe com a capa,
que caiu em desuso, no qual o matador primeiro balança a capa como
numa veronica e, em seguida, com o touro prestes a sair da capa, o
homem dá um giro completo na direção oposta àquela em que estava
balançando a capa, e passa a mover a capa à frente e abaixo do focinho
do touro.
Nervio: energia e vigor do touro.
Niño: criança ou menino; recentemente, houve uma praga de niños como
nommes de guerre nas touradas. Seguindo o sucesso de El Niño de la
Palma, houve uns trezentos toureiros apelidados de Niño disso ou
daquilo, do Niño do Matadouro ao Niño de Sierra Nevada. Em outros
tempos, havia pares ou trios de crianças toureiras batizadas com o nome
da cidade de onde vinham, como os Niños Sevillanos; Niños Cordobeses
etc. No entanto, os toureiros que se graduaram nessas empreitadas
juvenis deixaram de ser chamados de Niños e passaram a ser chamados
de Gallito, Machaquito e assim por diante; tornando seus nomes
famosos e abandonando os apelidos infantis quando já não eram mais
crianças, embora eles tenham mantido um afetuoso diminutivo no nome
profissional.
Noble: touro que realiza ataques sinceros, que é corajoso, simples e fácil
de manipular.
No Hay Derecho: você não tem o direito; frase comum de protesto contra
qualquer violação das leis ou dos direitos do indivíduo.
Noticiero: comunicado; El Noticiero de Lunes é a folha oficial com notícias
do governo e um relatório curto das touradas de domingo publicado em
cidades espanholas na manhã de segunda-feira por causa da lei que
proíbe o trabalho no domingo, defendida pelos trabalhadores dos jornais
da Espanha muitos anos atrás.
Novedad: novidade; toureiro que chama atenção por ser novidade.
Novillada: hoje em dia, uma novillada é uma tourada em que os touros são
jovens demais ou velhos demais para uma tourada oficial, isto é, com
menos de quatro anos de idade ou com mais de cinco anos, ou com
problemas de visão ou com chifres imperfeitos; esses touros são
combatidos por toureiros que nunca tiveram título de matador ou que
renunciaram a ele. A novillada, ou corrida de novillos-toros, é igual a
uma tourada oficial em vários aspectos, menos na qualidade dos touros e
na inexperiência ou nas limitações dos toureiros. Em outros tempos, a
novillada se referia a qualquer forma de entretenimento com touros que
não fosse a corrida oficial, mas atualmente a novillada ocorre devido ao
desejo de oferecer uma tourada regular a preços mais acessíveis,
viabilizados por touros que custam menos e por homens que, dispostos a
fazer seu nome, ou devido ao fato de terem falhado como matadores
profissionais, são menos exigentes do que os matadores profissionais na
hora de negociar o pagamento. A temporada de novilladas em Madri vai
do início de março até a Páscoa e de julho até a metade de setembro. Nas
províncias, ela acompanha a temporada inteira de touradas, oferecida
por todas as cidadezinhas que não conseguem bancar uma corrida
oficial. O ingresso para uma novillada custa geralmente a metade do
valor do ingresso para uma corrida normal. Os touros enfrentados são
frequentemente maiores e mais perigosos do que aqueles usados nas
corridas de touros, pois os novilleros são forçados a aceitar os touros que
foram recusados pelas estrelas da profissão. É nas novilladas que morre a
maioria dos toureiros, uma vez que homens com pouca experiência
enfrentam touros extremamente perigosos em cidadezinhas onde as
arenas têm pouca estrutura médica e nenhum cirurgião hábil na técnica
especial de tratar ferimentos causados por chifres.
Novillero: matador de novillos-toros, os touros descritos no verbete
anterior. Ele pode ser um aspirante a toureiro que não conseguiu ganhar
a vida na classe de matadores profissionais e renunciou à alternativa em
nome de mais contratos. O máximo que um novillero consegue ganhar
em Madri são cinco mil pesetas por luta e ele pode, se for um debutante,
lutar por um valor bem mais baixo, de mil pesetas. No caso do valor
menor, se ele ainda tiver que pagar o aluguel do traje, remunerar os dois
picadores, os dois banderilleros e o responsável pelas espadas, e mandar
envelopes com cinquenta ou cem pesetas para os críticos na imprensa,
ele estará endividado ao fim da luta. Um novillero protegido pela
administração da praça de touros pode ter de lutar apenas com touros
jovens e ser muito bem-sucedido com esses animais, e falhar
completamente ao se tornar um matador profissional devido à diferença
de perigo, força e velocidade entre um touro jovem e um touro maduro.
Não se pode julgar um matador baseado no desempenho que tem com
touros jovens, mesmo que demonstre preparo e uma técnica perfeita,
pois ele pode não ter a fi bra necessária para enfrentar um touro de
verdade.
Novillo: touro usado nas novilladas.
Nuevo: novo; Nuevo en esta Plaza, usado depois do nome de um toureiro
num programa, significa que ele se apresenta pela primeira vez naquela
arena.
Nulidad: uma nulidade; matador que é um inconveniente e não uma
atração dentro de um programa.

O
Ojo: olho; um matador que deseja dar ao público a informação, falsa ou
verdadeira, de que o touro não enxerga direito como uma desculpa para
um desempenho medíocre, vai apontar para o próprio olho. Buen ojo:
olho bom ou bom senso.
Olivo: oliveira; tomar el olivo: correr para a oliveira, frase usada para
descrever a ação em que o matador é tomado por pânico ou quando, por
ter deixado o touro colocá-lo numa situação difícil, ele mergulha por
sobre a barrera para escapar. O matador não deve nunca correr de costas
para o touro; muito menos correr e se atirar atrás da barrera.
Orejar: orelha; quando o matador teve um desempenho excelente com o
touro, tanto com a muleta quanto com a espada, matando o animal com
eficácia depois de uma boa faena com a muleta, ou se o trabalho com a
muleta não foi brilhante, mas acabou sendo compensado por um
sacrifício estupendo, a multidão vai acenar com os lenços para pedir ao
presidente que conceda a orelha do touro como símbolo de honra ao
matador. Se o presidente concorda e acredita que o pedido se justifica,
ele acena com o próprio lenço e, em seguida, o banderillero pode cortar
a orelha e entregá-la ao matador. Na verdade, vários matadores que
ficam ansiosos para ter uma longa lista de orelhas, por causa da
publicidade que recebem quando isso acontece, deixam um banderillero
orientado a cortar uma orelha no primeiro aceno de qualquer lenço. Se o
público dá qualquer sinal de reivindicar a orelha, esse peón corta a orelha
fora e corre com ela até o matador, que a exibe, erguendo a orelha na
direção do presidente e sorrindo, e o presidente, diante de um fato
consumado, fica mais suscetível a concordar com a concessão da orelha e
então acena com o próprio lenço. Graças a essa forma de falsificar a
concessão da orelha, que já foi uma honra enorme e acabou sendo
banalizada, se um matador faz uma apresentação decente e tem sorte ao
matar o touro, ele provavelmente vai ganhar a orelha do animal. Esses
peones que são verdadeiros profissionais na hora de cortar orelhas do
touro criaram um costume ainda pior; se o presidente fizer mesmo o
sinal para cortar a orelha antes que o matador implore por ela, eles se
apressam em cortar as duas orelhas e o rabo, que eles correm a levar
para o matador com a desculpa de que estavam entusiasmados. Os
matadores, estou pensando especificamente em dois, um valenciano
convencido, baixinho, de nariz adunco e cabelo preto, e um poste
telefônico de Aragão, convencido, corajoso, ingênuo e de pescoço
comprido, dão uma volta pela arena segurando uma orelha numa das
mãos e a outra orelha mais o rabo coberto de esterco na outra mão, com
um sorriso afetado e acreditando que triunfaram numa apoteose
absoluta quando, na verdade, eles tiveram um desempenho apenas
honesto, mas tiveram habilidade para valorizar tudo que fizeram.
Originalmente, o ato de cortar a orelha significava que o touro se
tornava propriedade do matador, que poderia dispor da carne se
quisesse. Esse significado se perdeu há bastante tempo.

P
Padrear: procriar.
Padrino: padrinho ou responsável; nas touradas, o matador mais velho que
cede a espada e a muleta para um matador mais jovem que recebe a
alternativa pela primeira vez como matador numa corrida de touros
oficial.
Pala: pá, taco ou remo. Na tourada, a parte exterior lisa dos chifres; golpes
recebidos por um toureiro pela parte lisa dos chifres são chamados de
paletazos ou varetazos e com frequência são sérios, causam hemorragia
interna grave e outras lesões internas e por fora deixam apenas um
hematoma.
Palitroques: galho; outro nome para as banderillas.
Palmas: aplausos.
Palos: paus; gíria para as banderillas.
Pañuelo: lenço; um lenço branco exibido pelo presidente sinaliza o fim ou
o começo dos atos que envolvem as lanças dos picadores, os bastões dos
banderilleros e a espada do matador; um lenço verde indica que o touro
deve ser retirado da arena; um lenço vermelho indica que banderillas
explosivas devem ser usadas. O sinal de cada aviso para o matador, que
marca o tempo da tourada, é dado pelo presidente com um lenço
branco.
Par: par de banderillas.
Parado: abrandado ou parado sem estar exausto; a segunda fase enfrentada
pelo touro ao longo da luta e aquela em que o toureiro deve extrair o
máximo do animal. Torear parado é enfrentar o touro com um mínimo
de movimento dos pés. É a única forma de lutar contra um touro bravo
que merece ser aplaudida, sem as falhas de chifrar mais para um lado ou
mais para o outro.
Parar: ficar parado e observar calmamente o touro se aproximar; parar los
pies: manter os pés parados enquanto o touro ataca. São três os
principais mandamentos das touradas; parar: manter os pés imóveis;
templar: mover o pano lentamente; e mandar: dominar e controlar o
animal usando o pano.
Parear: cravar um par de banderillas.
Parón: termo moderno usado para designar um passe feito pelo toureiro
com a capa ou a muleta em que ele mantém os pés juntos e não faz
nenhum movimento do instante em que o touro começa a atacar até o
fim da execução do passe. Tais passes, em que o homem fica parado
como uma estátua, são manobras brilhantes que o toureiro pode incluir
em seu repertório, mas eles só podem ser executados com um touro que
se move numa linha reta perfeita ao atacar; senão o homem será
chifrado. Além disso, esses passes quebram um dos mandamentos das
touradas: o homem consegue parar e consegue templar, mas não
consegue mandar porque um toureiro com os pés juntos não consegue
balançar o pano longe o suficiente para manter o touro dominado pelas
pregas do tecido e, sendo assim, a menos que o touro seja tão perfeito
que ele faça a volta automaticamente para atacar de novo, o homem será
incapaz de controlá-lo com a muleta o suficiente para conseguir virá-lo
de modo a vincular uma série de passes. Com um touro ideal, no
entanto, os parones são muito emocionantes e impressionantes, e todo
toureiro deveria ser capaz de fazer essa manobra com o animal certo,
mas sem ignorar a verdadeira arte de dominar os touros, de fazê-los sair
da linha de ataque com um movimento do pano, enquanto espera por
um touro capaz de fazer sozinho uma faena inteira diante de um
homem que parece uma estátua. Os passes giratórios feitos por Villalta e
por seus imitadores, em que o homem gira na ponta dos pés e em
semicírculos com o touro, também são chamados de parones.
Pase: passe feito com a capa ou a muleta; movimento do pano para atrair
um ataque do animal em que os chifres passam ao lado do corpo do
homem.
Paseo: entrada dos toureiros na arena e a caminhada através dela.
Paso atrás: passo para trás que o matador dá depois de perfilar o touro
antes do sacrifício, com o objetivo de aumentar a distância do animal
enquanto dá a impressão de que está perfilando o touro de muito perto;
a distância dá também mais tempo para desviar quando o toureiro se
aproxima do touro para matar e o animal não mantém a cabeça baixada
com a muleta.
Paso de banderillas: quando o toureiro se aproxima do touro para matar
sem obedecer a uma linha reta, mas movendo-se como num quarto de
círculo para desviar dos chifres do touro, como faz um banderillero.
Aceitável nos casos em que não se consegue matar o touro de outro
jeito.
Pecho: peito; o pase de pecho é um passe feito com a muleta na mão
esquerda ao fim de um passe natural em que o touro, que virou o corpo
ao fim do passe natural, volta a atacar e o homem faz o animal passar
rente ao peito e o manda para longe com uma varrida da muleta.
O passe de peito deve ser o fim de uma série de naturales. É também um
grande mérito quando é usado pelo toureiro para se livrar de um ataque
inesperado ou de uma investida repentina do touro. Nesse caso, ele é
chamado de forzado de pecho, ou um passe forçado. Ele é chamado de
preparado quando é dado como um passe à parte, sem ser precedido por
um natural. O mesmo passe pode ser feito com a mão direita, mas nesse
caso não será um verdadeiro pase de pecho, uma vez que o verdadeiro
natural e o verdadeiro de pecho são feitos apenas com a mão esquerda.
Quando nenhum desses passes é feito com a mão direita, a espada, que
deve estar sempre na mão direita, estende o pano e faz com que ele
pareça muito maior, permitindo assim que o toureiro mantenha o touro
a uma distância maior e que mande o touro mais para longe depois de
cada ataque. O trabalho realizado com a muleta estendida pela espada na
mão direita é brilhante e louvável com frequência, mas não tem a
dificuldade, o perigo e a sinceridade do trabalho realizado com a muleta
na mão esquerda e a espada na direita.
Pelea: luta, a luta com o touro.
Peón: banderillero; toureiro que trabalha a pé sob as ordens do matador.
Pequeño: pequeno.
Perder el sitio: toureiro que, por doença, falta de confiança, covardia ou
nervosismo, perde seu estilo e até mesmo a noção de onde está e de
como as coisas devem ser feitas.
Perder terreño: perder terreno enquanto enfrenta o touro; ter de apelar
para o trabalho de pés em vez de controlar o touro com o pano; e
também perder terreno na profissão.
Perfilar: perfilar antes de matar com a espada na mão direita, com o
antebraço esticado ao longo do peito, muleta na mão esquerda, ombro
esquerdo voltado para o touro, os olhos seguindo a linha da espada.
Periódicos: jornais; os jornais de Madri que têm os relatos mais corretos e
desinteressantes das touradas em Madri e nas províncias são La Libertad
entre os diários e El Eco Taurino entre os jornais de tourada. La Fiesta
Brava, de Barcelona, apesar de seus relatos serem bem parciais, tem
artigos e reportagens excelentes.
Periodistas: aqueles que escrevem para os jornais; jornalistas.
Perros: cachorros usados antigamente, antes que fossem adotadas as
banderillas explosivas, para assustar um touro que não ataca o picador;
fazê-lo cabecear e cansar seus músculos do pescoço, substituindo assim
os efeitos das lanças.
Pesado: pesado; enfadonho; cansado.
Peso: peso.
Pesuña: pata do touro. Touros bravos sofrem com glosopeda ou febre
aftosa, que afeta as patas do animal e os cascos podem sofrer rachaduras
ou quebrar totalmente.
Peto: cobertura acolchoada que o cavalo do picador usa no peito, no
flanco direito e na barriga. Adotadas durante a parte final da ditadura de
Primo de Rivera, a partir da indicação da ex-rainha da Espanha, nascida
na Inglaterra.
Pica: a lança ou vara usada na tourada. É formada de uma haste de
madeira feita de freixo com um tamanho que varia de dois metros e
cinquenta e cinco centímetros a dois metros e setenta centímetros, e de
uma ponta de metal triangular de vinte e nove centímetros. Abaixo da
ponta de metal, a extremidade da haste é envolvida por um cordão e
equipada com uma guarda redonda de metal que evita que a haste
penetre mais do que cento e oito milímetros no touro. O modelo atual
da lança exige bastante dos touros e aqueles animais que atacam a valer,
e que insistem no ataque mesmo quando são castigados, quase não
conseguem suportar mais do que quatro lanças sem perder quase toda a
sua força. Isso é particularmente verdade desde que os picadores,
prejudicados pela proteção do cavalo, acabam cravando a lança muito
atrás do morillo, que é o lugar onde eles deveriam cravar a lança, e onde
os músculos da corcova conseguem suportar o castigo e, ao cravar a
lança numa região desprotegida da coluna, o picador pode ferir o touro
gravemente e comprometê-lo pelo resto da luta. Um ferimento causado
pela lança atual ao ser cravada fora do lugar certo e entre as costelas
pode atingir os pulmões ou, no mínimo, a pleura. Parte desse trabalho
ruim do picador é proposital e feito a pedido do matador, que espera que
o touro fique sem forças, o que não acontece porque o picador é tão
limitado pela proteção acolchoada do cavalo que ele precisa se esticar
para cravar a lança no touro, a uma distância que fica difícil acertar o
alvo, em vez de ser capaz de cravar a lança com cuidado onde e como ele
quiser. A razão para isso é que o picador espera que o touro se aproxime
o suficiente para que possa cravar a lança direito; o touro, não importa o
tamanho, vai atacar o muro acolchoado e derrubar o homem e o cavalo
com o impacto, antes que a lança possa ser inserida. Não existe nada para
o touro chifrar e erguer, e forçar os músculos do pescoço enquanto
ergue e recebe a lança. Por esse motivo, os picadores, quando um touro
se recusa a atacar mais de uma vez, frustrado com o colchão que protege
o cavalo, adotaram a manobra de virar o cavalo quando o touro se
afasta, de modo que o touro possa chifrar o cavalo no traseiro
desprotegido e cansar o pescoço com esse ataque. Como esses
ferimentos quase nunca são fatais e ficam pouco evidentes, a menos que
você procure por eles; você vai ver o mesmo cavalo voltar para a arena
outras vezes; o ferimento é costurado e limpo entre um touro e outro,
diferente da época em que não havia proteção e o touro tinha permissão
para atacar o cavalo, chifrá-lo e erguê-lo, de modo a cansar os músculos
do pescoço, mas o cavalo não sobrevivia. Agora, com a proteção, poucos
cavalos são mortos na arena, mas quase todos são feridos no quarto
traseiro ou entre as pernas, da maneira que foi descrita. A postura de
admitir a necessidade de se matar cavalos para haver uma tourada foi
substituída por uma atitude hipócrita de suposta proteção que causa aos
cavalos muito mais sofrimento, mas que, uma vez adotada, será mantida
para sempre porque permite que os fornecedores de cavalos
economizem dinheiro, permite que os promotores do evento
economizem dinheiro e permite que as autoridades pensem que
tornaram as touradas mais civilizadas. Tecnicamente, mas não
moralmente, a questão que deve ser lembrada é que desacelerar o touro
sem privá-lo de sua força ou de seu desejo de atacar, algo obtido quando
o touro é autorizado a atingir o alvo, fazer força com o pescoço para
erguer o cavalo, firmando bem as quatro patas, resistindo à lança cravada
em sua corcova ou em seu pescoço, para derrubar e matar o cavalo;
deixa o touro em condições ideais para avançar às próximas duas fases da
luta, e não se pode obter isso apenas com o picador castigando o touro
severamente de uma forma que vai feri-lo e fazê-lo perder força, sangue
e todo o impulso de atacar. É isso que acontece ao touro quando ele
recebe a lança nas escápulas, no meio da coluna, ou nas costelas; em vez
de avançar para as próximas duas etapas pronto para combater o
toureiro, se o touro sofrer o tipo de ferimento que a lança atual consegue
causar, ele fica acabado.
Picador: homem a cavalo que ataca o touro com a lança, sob as ordens do
matador. Recebe de cem a duzentas e cinquenta pesetas por luta, tem a
perna e o pé direitos protegidos por camurça, usa jaqueta curta, uma
camisa e uma gravata como todos os outros toureiros, e um chapéu
largo de copa baixa com um pompom na lateral. É raro os picadores
serem chifrados pelo touro, pois os matadores têm obrigação de protegê-
los com a capa quando eles caem perto do touro. Se eles caem longe do
touro, eles são protegidos pelo cavalo. Com frequência, os picadores
quebram braços, mandíbulas, pernas e costelas, e fraturam o crânio
raramente. Poucos são mortos na arena, em comparação com os
matadores, mas muitos ficam com sequelas de concussões na cabeça. De
todas as profissões mal pagas da vida civil, acredito que o trabalho do
picador é o mais difícil e o que está mais exposto ao perigo e à morte,
que é evitada, felizmente, pela capa do matador na maioria das vezes.
Picar arriba: cravar a lança no alto do morillo do touro.
Picar atrás: cravar a lança bem atrás do morillo.
Picar corta: cravar a lança segurando a haste pelo cabo de madeira bem
próximo da ponta de metal. Essa manobra expõe mais o homem, pois
ele pode cair para a frente entre o cavalo e o touro, mas torna seu ataque
com a lança muito mais certeiro.
Picar delante: cravar a lança muito à frente do pescoço.
Piernas: pernas; tiene muchas piernas, tanto para o homem quanto para o
touro, significa ter pernas muito fortes.
Pinchazo: perfurada; um pinchazo é uma estocada que penetrou muito
pouco no touro. Pinchar en el duro é fincar um pouco da espada e
atingir um osso. Um pinchazo em que o matador consegue cravar bem a
espada, no lugar certo, mas atinge um osso, não é um demérito, pois o
fato de a ponta da espada atingir ou não uma costela, ou uma vértebra, é
uma questão de sorte. Se o homem se aproximou em linha reta e
acertou o lugar da espada, ele deve ser aplaudido apesar de ter atingido
um osso com a espada. Por outro lado, matadores covardes fazem uma
série de pinchazos sem nunca acompanhar a espada e cravá-la até o
punho, evitando qualquer risco de se aproximar dos chifres, na esperança
de fazer o touro sangrar com essas estocadas para depois matá-lo com
um descabello. O mérito ou demérito de um pinchazo deve ser julgado
pela forma como o homem se aproxima do touro e por suas intenções
evidentes.
Pisar: pisar; pisar terreno del toro: trabalhar tão perto do touro que você
invade o território dele.
Pisotear: quando o touro ataca um homem caído no chão e o pisoteia
enquanto tenta chifrá-lo.
Pitillo: cigarro.
Pitón: ponta do chifre do touro; ou, às vezes, o chifre inteiro. Passes de
pitón a pitón são movimentos bruscos com a muleta, de um chifre ao
outro, para cansar os músculos no pescoço do touro. Os dois chifres são
pitones.
Pitos: assobios; sinal de reprovação. Às vezes, quando está na arena um
matador que todo mundo sabe que é covarde, ou que está numa fase
ruim da carreira, ou que seja impopular numa cidade específica, os
espectadores vão à arena munidos de apitos de cachorro ou apitos de
polícia, para poder fazer mais barulho. Um desses espectadores armados
com apito, sentado logo atrás de você, pode ensurdecê-lo
temporariamente. Não há o que fazer, a não ser enfiar os dedos nas
orelhas. Esses apitos são comuns em Valência, onde ensurdecer alguém é
considerado uma piada divertidíssima.
Plaza: espaço público; Plaza de toros: praça de touros.
Poder a poder: força à força; método de cravar as banderillas descrito neste
livro.
Pollo: frango; e também um jovem novo na cidade. Toureiro jovem que
gosta de posar como alguém experiente.
Polvo: poeira; erguida pelo vento na arena e assentada com a aspersão de
água. Quando o vento levanta poeira na arena, os espectadores gritam
“Água! Água!” até que o carrinho de aspersão seja acionado ou até que
alguém use uma mangueira.
Pomo: botão do punho da espada.
Prueba: teste, avaliação ou prova; Prueba de caballos é a prova dos cavalos
dos picadores. Prueba é também o nome de uma das touradas realizadas
todo ano em Pamplona, em que quatro touros locais eram usados, e a
luta oferecida a preços populares funcionava como um teste das raças
locais. Hoje, é uma luta em que seis matadores assumem juntos o
sacrifício de um touro.
Punta de Capote: ponta da capa; fazer o touro correr atrás da capa, que é
segurada por uma extremidade de modo que ela se estenda com todo o
seu comprimento; forma correta de enfrentar os touros quando eles
entram na arena.
Puntazo: pequeno ferimento de chifre, enquanto uma cornada é um
ferimento grande.
Puntilla: punhal usado para matar o touro ou o cavalo depois que o animal
foi mortalmente ferido.
Puntillero: homem que mata o touro ou o cavalo com a puntilla.
Puro: charuto cubano; puros são consumidos pela maioria das pessoas
envolvidas com as touradas que têm condições de comprá-los.
Puta: puta, meretriz, rameira, mundana, cadela ou prostituta; hijo de puta:
filho de qualquer uma das citadas no início da frase; insulto comum que
as pessoas gritam para o matador, equivalente ao nosso filho da puta. Em
espanhol, eles insultam com mais veemência quando desejam o mal de
parentes em vez de agredir a pessoa mais diretamente.
Puya: outro nome para a lança; pode se referir também à ponta triangular
de metal.
Puyazo: lança cravada no touro.

Q
Quedar: permanecer ou ficar no lugar; Quedar sin toro: para um toureiro,
ficar sem um inimigo porque o touro teve sua força e sua disposição
destruídas por um ferimento ou por uma série de ferimentos causados
pelo picador.
Qué lástima!: que pena! Expressão usada quando você ouve que um amigo
foi chifrado de maneira grave, ou que contraiu uma doença venérea, ou
que casou com uma puta, ou que algo aconteceu com sua esposa ou seus
filhos, ou quando um touro bom entra na arena para lutar contra um
toureiro ruim, ou quando um touro ruim entra na arena para lutar
contra um toureiro bom.
Querencia: parte da arena onde o touro gosta de ficar; onde ele se sente
em casa.
Querer: desejar; no quiere: na tourada, significa que o matador não quer
tentar nada, satisfeito de seguir com a tarde da maneira mais tranquila
possível; quando se refere a um touro, significa que o animal não quer
atacar o cavalo ou o pano.
Qué se vaya!: significa algo como suma daqui e nunca mais me apareça.
Gritado para os toureiros.
Quiebro: qualquer inclinação do corpo, especialmente do quadril para um
lado ou para o outro a fim de evitar os chifres do touro; qualquer
movimento de desvio ou de esquiva executado pelo corpo quando
próximo do touro para evitar ser atingido pelo animal.
Quiebro de muleta: inclinar e balançar a muleta com o pulso esquerdo
baixado num movimento para a direita a fim de guiar o touro para longe
do homem na manobra de cravar a espada; é porque a mão esquerda
guia e afasta o touro, e a direita crava a espada, que os toureiros dizem
que você mata o touro mais com a mão esquerda do que com a direita.
Quinto; no hay quinto malo: o quinto não pode ser ruim; crença antiga de
que o quinto touro sempre será bom. Surgida provavelmente na época
em que os criadores de touros decidiam a ordem em que os touros
deveriam ser enfrentados; antes de serem sorteados pelos matadores por
lote como são hoje; como os criadores conheciam bem os animais, eles
sempre deixavam o melhor na quinta posição. Hoje em dia, o quinto
pode ser tão ruim quanto qualquer outro.
Quite: de quitar — afastar; é a manobra de afastar o touro de qualquer um
que esteja em perigo por causa dele. O termo se refere especialmente à
manobra de afastar o touro do cavalo e do homem depois do ataque aos
picadores, feita pelos matadores com capas numa espécie de
revezamento; cada um deles atrai o touro para si depois de um ataque. O
matador que deve matar o touro faz o primeiro quite e os outros seguem
a ordem: eles se aproximam com a capa, atraem o touro para longe do
homem e do cavalo caídos, e colocam o touro em posição para o
próximo picador. O quite mudou, de modo que, hoje, uma série de
manobras com a capa é obrigatória depois que o matador atrai o touro
com um quite; supostamente, eles competem para ver quem consegue
chegar mais perto e ser mais criativo ao passar o touro. Quites feitos para
afastar o touro de um homem que está sendo chifrado ou que está caído
no chão com o touro em cima dele são um trabalho de equipe que
envolve todos os toureiros e é nesse momento que você pode avaliar sua
coragem, conhecimento dos touros e grau de altruísmo, pois um quite
nessas circunstâncias é extremamente perigoso e muito difícil de
executar, porque os homens precisam chegar tão perto do touro para
fazê-lo deixar o objeto que está tentando chifrar que, ao recuar, atraindo
o ataque do touro com a capa, eles se tornam alvos fáceis.

R
Rabioso: feroz; um matador fica rabioso quando ele se coloca,
mentalmente, num furor de coragem que contrasta com a coragem fria
e consistente de um homem verdadeiramente corajoso; um toureiro que
é friamente corajoso só vai ficar rabioso quando ele se irritar com as
provocações da multidão ou com as trombadas e arremessos do touro.
Rabo: rabo do touro.
Racha: ímpeto de sorte; mala racha: onda de má sorte; toureiro que
sorteia uma série de touros fracos; sucessão de touradas ruins.
Ración: uma porção; no café, você pede una ración de camarões, percebes
ou de qualquer outra coisa. Una ración de marisco geralmente tem cem
gramas, um pouco menos do que um quarto de libra. É por esse motivo
que você pode receber dois camarões enormes numa vez e, na outra,
quatro camarões menores e pagar o mesmo valor pelos dois pratos, uma
vez que eles são vendidos por peso.
Rebolera: passe com a capa em que ela é segurada por uma extremidade e
balançada de forma a desenhar um círculo ao redor do homem.
Rebotado: levar uma trombada da cabeça do touro depois de cravar a
espada; levar um tranco ou um empurrão sem cair no chão.
Rebrincar: dar um salto para o lado; às vezes, é o que o touro faz quando a
capa é apresentada a ele pela primeira vez.
Recargar: touro que volta a atacar mesmo sendo castigado pela lança do
picador.
Receloso: touro que reluta em atacar, mas não por ter sido desgastado
pelos castigos da luta, e sim por temperamento; mas que, se for
provocado repetidas vezes, vai atacar.
Recibir: matar o touro pela frente, com a espada a postos, esperando pelo
ataque do animal e sem mover os pés, uma vez que o ataque do touro
comece; com a muleta baixada na mão esquerda e a espada na mão
direita, o antebraço direito cruza o peito e aponta para o touro e, à
medida que ele se aproxima, e segue a muleta, crava a espada com a mão
direita e faz o animal se afastar com a muleta na mão esquerda, como
num pase de pecho, sem mover os pés até que a espada tenha sido
cravada. A maneira mais difícil, perigosa e emocionante de se matar
touros, raramente vista nos tempos modernos. Vi ser executada por
inteiro três vezes em quase trezentas touradas.
Recoger: chifrar de novo; no caso do touro, pegar alguma coisa no chão e
arremessar no ar; ou depois de arremessar um homem para cima, pegá-
lo com o outro chifre.
Recorte: qualquer passe com a capa em que ela é arrancada da frente do
touro ou virada de repente; um movimento rápido feito pelo homem
que interrompe o ataque do animal; manobra que faz o touro dobrar o
corpo de maneira brusca, torcendo as pernas e a coluna.
Recursos: um toureiro de muitos recursos é aquele que tem truques na
manga e que sabe como lidar com as dificuldades à medida que elas vão
surgindo.
Redondel: sinônimo para a arena onde o touro é combatido.
Redondo; en redondo: sucessão de passes, como os naturais, em que o
homem e o touro executam um círculo completo; qualquer passe que
tende a traçar um círculo.
Regalo: presente ou recordação que o toureiro recebe do espectador a
quem ele dedicou o touro. Usado de maneira sarcástica para se referir a
um touro difícil.
Reglamento: decretos do governo que regram as touradas na Espanha. A
ideia era publicar uma tradução dessa legislação como um apêndice
deste livro, mas como a normativa em vigor é da época de Primo de
Rivera, optou-se por esperar a publicação de um reglamento novo, que
deve ser incluído em futuras edições deste livro, se for o caso.
Regular: normal, comum ou medíocre, quando se refere ao trabalho de
um matador ou ao resultado de uma corrida.
Rehiletes: setas; sinônimo de banderillas.
Rehilitero: banderillero.
Rejón: dardo usado para matar touros por um toureiro a cavalo.
Rejoneador: homem a cavalo que tenta matar touros usando um rejón.
Relance; al relance: colocar mais um par de banderillas surpreendendo o
touro que ainda está atacando depois de ter recebido um par anterior de
banderillas.
Reloj: relógio; usados em todas as arenas, por determinação da lei, para
que os espectadores possam acompanhar o tempo gasto pelo matador
no momento do sacrifício.
Rematar: acabar; fazer o último passe de qualquer série de passes com a
capa; executar algum movimento capaz de criar um clímax emocional
ou estético. Em relação aos animais, quando um touro rematar en tablas,
ou acertar as tábuas, significa que o touro perseguiu um homem que
saltou a barrera, fazendo o animal investir os chifres contra a madeira.
Remojar: umedecer bem as capas e muletas para serem usadas em um dia
ventoso.
Remos: pernas dianteiras ou traseiras do touro ou do cavalo.
Rendido: cansado; dominado pelo homem.
Renovador: inovador, transformador da arte etc. Aparecem vários desses
nas touradas, quase um por ano, mas o único verdadeiro inovador das
touradas modernas foi Juan Belmonte.
Renunciar: abrir mão ou renunciar; um toureiro abre mão da alternativa
quando abandona a posição de um profissional matador de touros para
aceitar qualquer contrato que surja como novillero.
Reparado de vista: touro com problema de visão em um olho, mas não
totalmente cego. Problemas de visão são frequentemente causados por
um fragmento de palha ou outra sujeira qualquer que machuque o olho
do touro enquanto ele come.
Res: animal selvagem; qualquer cabeça de gado numa fazenda criadora de
touros bravos puros-sangues.
Resabio: crueldade; toro de resabio: touro cruel.
Retirada: aposentadoria; toureiros se aposentam às vezes quando eles têm
poucos contratos, ou quando estão muito apaixonados pelas esposas; e
voltam a lutar anos depois, no primeiro caso, porque esperam que a
novidade de seu retorno renda mais contratos e, no segundo caso,
porque precisam de dinheiro ou porque experimentaram uma
diminuição na intensidade da paixão pela esposa.
Revistas: revistas ou publicações; revistas de toros são periódicos sobre
touradas. Hoje, a maioria dessas publicações é feita de propagandas que
destacam fotografias e relatos floreados das performances de toureiros
que pagam uma certa quantia em dinheiro para os editores. Toureiros
que devem dinheiro porque deixaram de pagar por alguma propaganda
ou outros que se recusaram a aceitar propostas de propaganda,
geralmente na forma de pagamento para aparecer numa fotografia da
capa ou, numa opção mais barata, numa fotografia interna, sofrem
ataques mais ou menos difamatórios nas páginas mais baratas. Le Toril,
publicado em Toulouse, na França, é uma publicação imparcial sobre
touradas mantida por assinaturas e que não aceita propagandas nem
anúncios, sejam eles declarados ou escondidos nos textos. A sinceridade
e a imparcialidade da revista ao fazer críticas consistentes são limitadas
pelo número pequeno de corridas que seus editores conseguem ver a
cada ano, e pelo fato de que eles não acompanham a primeira e a
segunda temporada por assinatura em Madri e, dessa forma, encaram
cada tourada como um evento isolado e não como parte da campanha
ou da temporada de um toureiro. El Eco Taurino, publicado em Madri,
oferece os relatos mais completos e corretos das touradas na Espanha e
no México. La Fiesta Brava, de Barcelona, embora seja um semanário
feito de propagandas, tem fotografias excelentes, e um pouco de fatos e
notícias. Nenhuma das outras publicações é séria, embora algumas,
como Toreros y Toros, sejam jornais interessantes. El Clarín, de Valência,
tem se dado bem com fotografias excelentes, mas é apenas um folheto
de propaganda. Torerias é sempre interessante e é o mais indecente de
todos os folhetos chantagistas. Nos velhos tempos, La Lidia, Sol y Sombra
e, por um período curto, Zig-Zag foram boas revistas sobre as touradas
em que se podia ler sobre a história da tourada na época em que
circularam, embora pareça que nenhuma delas jamais tenha sido livre de
influências financeiras, evidentes de um jeito ou de outro, exercidas por
certos matadores.
Revistero: crítico ou resenhista de touradas.
Revolcón: arremessado pelo touro sem ser ferido, pelo fato de o chifre ter
enroscado na roupa, ou quando o toureiro é erguido pelo meio das
pernas ou por baixo do braço.
Revoltoso: touro que se vira rápido para atacar, rápido demais, depois que
o homem executou o passe com a capa ou a muleta.
Rodillas: joelhos.
Rodillazos: passes em que o toureiro está ajoelhado, com um ou com os
dois joelhos no chão. O mérito dessa manobra leva em conta a superfície
onde ela é realizada e se o matador se ajoelhou antes ou depois que os
chifres passaram por ele.
Rondeño; Escuela Rondeña: Escola de Ronda, ou o estilo de Ronda ao
tourear, discreto, de repertório limitado, simples, clássico e trágico, em
contraponto ao estilo de Sevilha, que é mais variado, festivo e gracioso.
Belmonte, por exemplo, embora tenha sido um inovador, na essência
fazia parte da Escuela Rondeña, apesar de ter nascido e crescido em
Sevilha. Joselito era um exemplo da chamada Escola de Sevilha. Assim
como ocorre nas artes ou na literatura, essa separação de pessoas em
escolas é artificial e arbitrária; nas touradas, mais do que em qualquer
outro lugar, o estilo é feito dos hábitos e das atitudes em relação à
tourada e das habilidades físicas. Se um toureiro tem um temperamento
muito sério, discreto em vez de alegre na arena e com um repertório
limitado devido à falta de imaginação, educação precária ou limitações
físicas que o impedem, por exemplo, de cravar as banderillas, ele é
classificado como alguém da Escola Rondeña, embora ele talvez não
tenha nenhum comprometimento com a maneira discreta de tourear
nem acredite que essa seja uma forma melhor de lutar do que a alegre.
Ele é espontaneamente discreto. Por outro lado, muitos toureiros que
não são nem um pouco alegres ou animados, quando estão na arena,
porque vieram de Sevilha e foram treinados lá, empregam todos os
truques sevilhanos com leveza e elegância, e um sorriso forçado no
rosto, e fazem floreios e gracejos quando na verdade estão tomados de
um medo paralisante. As escolas de Sevilha e de Ronda, como escolas de
visões opostas sobre as touradas, existiram de fato nos primórdios das
touradas profissionais, quando havia uma rivalidade enorme entre os
grandes matadores das duas cidades e entre seus discípulos no que se
referia à forma de lutar, mas agora rondeño significa ser discreto, trágico
e com um repertório limitado na praça de touros, e sevilhano significa
ser alegre, ou ter uma alegria aparente, com um estilo floreado e um
repertório variado.
Rozandole los alamares: quando os chifres do touro passam de raspão
pelos enfeites no traje do toureiro.
Rubios: em relação aos homens, loiros; em relação aos touros, é o lugar no
alto entre as escápulas onde a espada deve ser cravada. Rubias são as
mulheres loiras.

S
Sacar; arrancar; sacar el estoque: arrancar a espada para fazer o ferimento
sangrar mais livremente e levar o touro ao chão; ou simplesmente retirar
a espada por ter sido mal colocada. Geralmente, essa manobra é
realizada por um banderillero, que se aproxima do touro correndo por
trás e arremessa a capa por cima da espada de modo que o peso da capa
mexa com a espada e ela saia do touro. Se o touro estiver quase morto, o
próprio matador pode arrancar a espada com a mão ou com uma
banderilla, às vezes usando a mesma espada para executar um
descabello. Sacar el toro é trazer o touro para o centro da arena depois
que o animal assumiu uma posição perto da barrera.
Sacar el corcho: sacar a rolha de uma garrafa. Um sacacorchos é um saca-
rolhas. Nas touradas, é um estilo feio de trabalhar com a capa, em que o
pano é retorcido para provocar o touro de longe e com o propósito de
atrair o animal para uma série de veronicas.
Salida en hombros: para o matador, é ser carregado nos ombros da
multidão, um sinal de triunfo. Pode significar muito ou não significar
nada, a depender se o empresário do toureiro distribuiu ingressos
gratuitos com instruções ou se a homenagem é mesmo espontânea.
Salidas: saídas; nas touradas, a salida significa mandar o touro para longe
do toureiro usando o pano ao fim de um passe. A salida ao fim de cada
passe é o ponto em que o touro deve sair do território do homem nos
casos em que o touro passa por ele. As respectivas saídas do homem e do
touro depois do momento decisivo tanto na colocação das banderillas
quanto no sacrifício são chamadas de salidas.
Salir por piés: é correr com velocidade total para não ser chifrado depois
de qualquer tentativa de manobra com o touro.
Salsa torera: salsa significa tempero, mas salsa é também a qualidade
indefinível que um toureiro precisa ter para que seu trabalho não seja
monótono, ainda que seja perfeito.
Saltos: nos velhos tempos, eram os saltos dados sobre o touro que podiam
ser sem ajuda ou com a ajuda de uma vara. Os únicos saltos de hoje são
aqueles que os toureiros são forçados a dar sobre a barrera para escapar
do touro.
Sangre torera: sangue de toureiro, como quando o homem vem de uma
família de toureiros profissionais.
Sano: saudável; os touros devem passar pela avaliação de um veterinário e
estar saudáveis antes de uma luta. Fraqueza nos cascos causada pela febre
aftosa, ou glosopeda, não é fácil de detectar, pois ela geralmente vai
aparecer durante a luta.
Santo: um santo; el santo de espaldas: usado para se referir a um toureiro
que teve um dia difícil; o santo deu as costas para ele. Os toureiros têm
como santa padroeira a Virgem de sua vila, cidade ou distrito, mas a
Nossa Senhora da Soledade é a padroeira de todos os toureiros e é o
retrato dela que ilustra a capela da praça de touros em Madri.
Seco: seco, severo; torero seco é aquele que trabalha de forma brusca e
brutal, em vez de trabalhar de forma suave. Valor seco: coragem natural
e sem artifícios; golpe seco: é o golpe que o touro às vezes dá com a
cabeça para tentar se livrar da lança. É o tipo de golpe dado pelo touro
que, se atingir o cavalo ou o homem, causa os piores ferimentos
possíveis. Vino seco: um vinho que não é doce.
Sencillo: um touro que é direto nos ataques, nobre e fácil de controlar.
Sentido: compreensão; define um touro que quase não presta atenção no
pano e que prefere atacar o homem porque foi capaz de aprender rápido
ao longo da luta por meio das manobras inadequadas do homem que o
enfrenta com a capa e as banderillas. Se um toureiro corre e trabalha a
distância em vez de mostrar a habilidade de se posicionar tão perto que o
touro só pode se concentrar no pano, o animal, vendo o homem ao lado
do pano, aprende a distinguir um do outro muito rápido. É assim que
um homem pode tornar um touro difícil, por ter medo do animal,
trabalhar distante dele e não cravar rápido as banderillas, enquanto o
touro fica fácil e dominado por um homem que trabalha tão próximo
que o animal não enxerga nada além do pano, e que crava as banderillas
rápido, antes que o touro aprenda como chifrar o homem.
Señorito: jovem senhor; Señoritos: são os toureiros que assumem ares de
jovens da cidade ou, às vezes, de filhos de pais endinheirados que se
aventuram nas touradas.
Sesgo: enviesamento; al sesgo: maneira de cravar as banderillas explicada
neste livro.
Sevillano; escuela sevillana: a escola sevilhana ou o estilo de tourear de
Sevilha, alegre, variado e rebuscado, em contraste com a forma discreta,
limitada e clássica da escola de Ronda. Um sevilhano e uma moeda de
cinco pesetas cunhada no sul do país, com a mesma quantidade de prata
que a moeda comum do mesmo valor, mas que não é aceita no norte em
transações comerciais porque não é considerada legal para quitar certos
débitos. Não aceite nenhuma moeda de cinco pesetas com a cara do
finado rei quando criança e você não vai ter nenhum problema. Eles
podem dar outras moedas, se você pedir.
Silla: cadeira; antigamente, banderillas eram colocadas com o homem
sentado numa cadeira; ele esperava sentado pelo ataque do touro;
levantava quando o touro se aproximava; fintava para um lado a fim de
atrair o ataque do touro e desviava para o outro a fim de escapar do
ataque; então cravava os bastões e, depois que o touro já havia passado,
sentava de novo na cadeira.
Simulacro: simulação; touradas que ocorrem em lugares onde o sacrifício
do touro é proibido, como Portugal e França, e nas quais o ato de matar
o touro é simulado com o matador colocando uma roseta ou uma
banderilla em vez da espada usada numa tourada de verdade.
Sobaquillo: axila, lugar comum de ferimentos por chifrada causados
quando o homem, ao se aproximar do touro para matar, não consegue
fazer o touro baixar a cabeça com a muleta.
Sobreros: substitutos, touros na reserva, caso qualquer um daqueles
designados para a luta seja reprovado na arena pelo público.
Sobresaliente: quando dois matadores enfrentam juntos seis touros e um
novillero ou aspirante a matador entra com eles na arena, ele é o
sobresaliente ou substituto responsável por matar os touros caso os
toureiros sejam feridos e não consigam continuar na tourada. Um
sobresaliente geralmente recebe duzentas ou trezentas pesetas e deve
ajudar com a capa no trabalho rotineiro de cravar as banderillas. Ele
geralmente recebe permissão dos matadores para fazer um ou dois
quites mais para o fim da tourada.
Sol y sombra: sol e sombra; assentos da arena que estão no sol quando a
luta começa, mas que ficam na sombra à medida que a luta avança. O
preço desses assentos é maior do que os que ficam apenas na sombra e
menor do que os que ficam no sol, e representam uma economia
considerável para quem precisa controlar os gastos.
Sorteo: separação dos touros em lotes e sorteio dos lotes antes da luta para
determinar que touros serão mortos por quais matadores. Pode se referir
também ao sorteio da loteria espanhola.
Suertes: todas as manobras predeterminadas numa tourada; qualquer
movimento numa tourada que tenha regras para sua execução. Suerte,
no singular, também significa sorte.
Sustos: sustos, medos, sobressaltos.

T
Tablas: tábuas; a barrera que cerca a arena onde o touro é enfrentado.
Entablada se refere a um touro que assume uma posição perto da cerca e
que se recusa a deixá-la.
Tabloncillo: fileira de assentos ao ar livre mais alta da arena, logo abaixo
das galerias cobertas.
Tacones: saltos; tacones de goma: saltos de borracha; esses são vendidos
por ambulantes que abordam você no café, cortam o salto do sapato que
você está usando com uma espécie de ferramenta para cortar o couro
rápido e o obrigam a colocar um salto de borracha. Os saltos de
borracha que eles usam são vagabundos, da pior categoria. A desculpa
que eles dão quando você reclama que eles atacaram seus sapatos é que
eles achavam que você tinha pedido os saltos de borracha. É uma
extorsão. Se um dia um agressor de saltos de borracha atacar seus
sapatos sem que você tenha pedido claramente um par de saltos de
borracha, dê um chute na barriga do sujeito ou bem no queixo e procure
outra pessoa para arrumar os sapatos. Acredito que a lei estará a seu
favor, mas se você for preso, a multa não será muito mais cara do que os
saltos de borracha. Existe um catalão com uma cara sinistra que é um
estripador de saltos de sapato encontrado em todas as ferias e
identificável por uma cicatriz na bochecha direita. Essa cicatriz fui eu que
fiz, mas agora ele aprendeu a se esquivar e talvez você tenha dificuldade
de acertá-lo. O melhor a fazer quando você vir esse vendedor de saltos
sem-vergonha (um verdadeiro hijo de puta) se aproximando é tirar os
sapatos e colocar dentro da camisa. Se ele tentar colar saltos de borracha
nos seus pés descalços, pode acionar o consulado americano ou
britânico.
Tal: tal, similar, parecido etc. Qué tal? É só o que você precisa saber para
perguntar: Como vai? Tudo bem? Quais são as novidades? O que tem
feito da vida? Como andam as coisas, chefia? O que você acha? Quais são
as novas desde a última vez que te vi?. E se você acrescentar, depois de
Qué tal, as palavras la familia, você está perguntando sobre a família do
sujeito, uma gentileza necessária; la madre?, sua mãe; su señora, sua
esposa; el negocio, seu negócio (a resposta, geralmente, é fatal); los toros,
os touros (geralmente, muy malo); el movimiento, o movimento,
anarquista, revolucionário, católico ou monárquico (eles geralmente vão
mal); ou las cosas, que inclui tudo isso e muito mais. Las cosas geralmente
não estão tão ruins, porque quase sempre há um otimismo ligado ao
orgulho espanhol, não importa o quão detalhado e genérico seja o
pessimismo.
Taleguilla: bermudas do toureiro.
Tanteo: calcular; lances de tanteo são os primeiros passes feitos pelo
matador usando a capa sem que o homem se aproxime do touro com o
objetivo de ver como o touro ataca antes de arriscar um passe que faça o
touro passar bem próximo do homem.
Tapar: encobrir; tapando la cara con la muleta (encobrindo o rosto com a
muleta): é se aproximar para matar e, ao cobrir o rosto inteiro do touro
com o pano, cegar o animal e então passar por sobre os chifres para
cravar a espada; uma maneira de trapacear no sacrifício, muito usada por
toureiros altos cuja altura permite que eles usem esse truque com
facilidade (em vez de baixar a muleta, fazer o touro acompanhá-la e
balançá-la de modo a afastar o animal do homem).
Taparse: cobrir; é quando o touro, ao erguer a cabeça, cobre o lugar onde
a espada e as banderillas devem ser colocadas; ou quando ele levanta a
cabeça de modo a cobrir o lugar entre o pescoço e a vértebra onde o
matador deve descabellar. Um touro com reflexos rápidos, e que esteja
na defensiva, poderá erguer a cabeça dessa forma toda vez que sentir a
lâmina da espada, tornando impossível a manobra do matador.
Tapas: ou tampas; são chamadas dessa forma porque eram colocadas no
topo dos copos, como se fossem tampas, em vez de serem servidas em
pratinhos como ocorre hoje; são os aperitivos de salmão defumado,
atum e pimenta-doce, sardinhas, anchovas, presunto Sierra defumado,
salsicha, frutos do mar, amêndoas torradas, azeitonas recheadas de
anchovas, servidos gratuitamente com vinho Manzanilla ou vermute,
nos cafés, bares ou bodegas.
Tarascadas: corridas ou ataques repentinos do touro.
Tarde: tarde, atrasado; muy tarde: muito tarde.
Tardo: lento; toro tardo: touro que é lento para atacar.
Taurino: qualquer coisa relacionada à tourada.
Tauromachia: arte de lutar contra touros, a pé ou a cavalo. Os livros mais
famosos a tratar das regras das touradas à moda antiga são as
Tauromachias de José Delgado (Pepé Hillo), Francisco Montés e, mais
recentemente, Rafael Guerra (Guerrita). Alguém escreveu o livro de
Pepe Hillo e o de Guerrita por eles. Mas dizem que o de Montés foi
escrito por ele mesmo. Com certeza, é o mais claro e mais simples de
todos.
Tela: tecido ou material; más tela, num relato de tourada, quer dizer que o
touro recebeu outra dose de capas esvoaçantes; tela é usado sempre num
sentido depreciativo; largando tela: significa estender a capa demais;
estender o tecido para manter o homem o mais longe possível do touro;
estender o toldo.
Temoroso: touro covarde que balança a cabeça e recua de qualquer objeto,
às vezes dando um salto repentino e virando as costas, ou recuando
devagar enquanto cabeceia em vez de atacar.
Templador: pequeno recinto de madeira com quatro lados, erguido no
meio de algumas arenas da América do Sul, com entradas nos quatro
cantos, que oferece proteção extra para os toureiros.
Templar: movimentar a capa ou a muleta bem devagar, com suavidade e
calma, prolongando dessa forma a duração de um passe e o perigo que
ele representa, e dando um ritmo para a ação que envolve o homem, o
touro e a capa, ou o homem, o touro e a muleta.
Temple: lentidão, suavidade e ritmo no trabalho de um toureiro.
Temporada: temporada de uma tourada; na Espanha, da Páscoa até o dia
primeiro de novembro. No México, do dia primeiro de novembro até o
fim de fevereiro.
Tendido: fileiras de assentos ao ar livre numa praça de touros que começa
na altura da barrera e vai até as galerias cobertas, ou grada. Essas fileiras
de assentos são divididas em até dez seções, cada uma com uma entrada
própria, e numeradas como Tendido 1, Tendido 2 etc.
Tercio: terço; uma tourada é dividida em três partes, o tercio de varas, a
parte com as lanças; o tercio de banderillas; e o tercio del muerte, ou o
terço da morte. Na divisão do terreno da arena em si para o propósito da
luta, o tercio é o segundo terço da arena, se ela for dividida em três áreas
circulares. A parte mais próxima da barrera é chamada de tablas e o terço
central da arena é chamado de medios.
Terreno: território; no sentido técnico mais amplo, o território do touro é
considerado aquela área entre o ponto onde ele se encontra e o centro da
arena, o território do toureiro é a área entre o ponto onde ele se
encontra e a barrera. Espera-se que o touro, ao fim de um passe, vá para
o centro da arena e, onde ele tem mais espaço e liberdade. Isso nem
sempre ocorre, pois um touro cansado ou um touro covarde geralmente
vai para perto da barrera. Nesses casos, os territórios precisam ser
revertidos, o homem pega o território externo e deixa o interno para o
touro. A ideia é deixar livre para o touro aquela que é sua saída
espontânea ao fim de cada embate entre o homem e o touro ou ao fim
de qualquer série de passes. O território é também um terço da arena
escolhido pelo toureiro para executar qualquer manobra ou série de
passes, seja ele no centro do círculo, no meio ou mais próximo da
barrera. O território de um toureiro pode ser considerado também a
quantidade de terreno de que ele precisa para executar uma série de
passes bem-sucedidos. No sacrifício executado da maneira mais comum,
com o touro e o toureiro cada qual em seu território, o touro fica com o
flanco direito voltado para a barrera e o esquerdo virado para o centro
da arena, de modo que quando o matador se aproximar para matar o
touro, depois que o homem passa por ele, o touro segue para o meio da
arena e o homem vai na direção da cerca. No caso de touros que
mostraram que sua saída espontânea é na direção da cerca, e não na
direção do centro da arena, o matador vai reverter essa posição quando
se aproximar para matar e atacar o touro com os terrenos cambiados, ou
territórios trocados, posicionando o animal de modo que ele fique com o
flanco esquerdo voltado para a barrera e com o direito virado para o
centro da arena. Nessa posição, o homem se encaminha para o centro
depois de ter passado pelo touro e a saída espontânea do touro ficará
livre no sentido da cerca. A forma mais garantida de um toureiro ser
chifrado é quando ele não entende a lógica dos territórios ou a direção
das saídas espontâneas, ou os sentidos específicos de saída usados por um
determinado touro, e acaba ficando no caminho do touro ao fim de uma
suerte, em vez de deixar o touro seguir seu caminho preferido. Uma
querencia ou lugar especial pelo qual o touro tenha desenvolvido um
apreço é sempre sua saída espontânea ao fim de um passe.
Tiempo; estocadas a un tiempo: são aquelas em que o touro ataca no
mesmo instante em que o homem se aproxima para matar. Para serem
bem executadas, o matador precisa ter muito sangue-frio.
Tienta: teste de coragem realizado com os novilhos numa fazenda de
touros.
Tijerillas: tesouras; passe com a capa feito com os braços cruzados;
raramente visto, mas existe uma tendência atual de revivê-lo.
Tirones: passes com a muleta em que a extremidade de baixo balança
perto do focinho do touro e depois é retirada; a muleta balançando para
atrair a atenção do touro de um lugar para o outro dentro da arena.
Tomar: pegar; dizem que um touro pega a muleta quando ele ataca o pano
com gosto; dizem que um homem pega o touro de corto quando ele
provoca o ataque bem perto do animal, e de largo quando ele provoca a
distância.
Tonterias: absurdo; artifícios bobos feitos com o touro, como pendurar o
chapéu no chifre etc.
Toreador: a palavra torero afrancesada. Não é usada em espanhol, a não
ser para se referir às vezes a um toureiro francês.
Torear: enfrentar touros em um espaço fechado estando a pé ou a cavalo.
Toreo: a arte de enfrentar touros. Toreo de salón: praticar o trabalho com
a capa e a muleta para aprimorar forma e estilo, sem nenhum touro por
perto; parte fundamental no treinamento de um toureiro.
Torerazo: um grande toureiro.
Torerito: toureiro menos importante.
Torero: toureiro profissional. Matadores, banderilleros e picadores são
todos toureiros. Torera significa estar relacionada às touradas.
Torete: tourinho.
Toril: recinto de onde os touros saem para entrar na arena.
Toro: touro bravo. Todo es toro: é tudo touro; comentário sarcástico
usado por banderilleros que cravaram as banderillas em algum lugar
ridículo do animal. Los toros dan y los toros quitan: os touros dão e os
touros tiram; eles rendem dinheiro e podem acabar com sua vida.
Toro de paja: touro de palha; touro inofensivo; tão normal que não
representa nenhum perigo. Toro de lidia: touro bravo. Toro bravo: touro
corajoso. Toro de bandera: touro que é referência em coragem. Torazo:
touro enorme; torito: tourinho; Toro de fuego: touro de papier-mâché
em tamanho natural montado sobre rodas e carregado de fogos de
artifício, rebocado pelas ruas à noite para comemorar festas no norte da
Espanha; também chamado em basco de Zezenzuzko. Toro de
aguardiente: touro com uma corda amarrada nos chifres segurada por
um grupo de pessoas e que corre livre pelas ruas de um vilarejo para
divertir o populacho.
Traje de luces: traje de tourada.
Trampas: artimanhas, trapaças; formas de simular um perigo que não
existe.
Trapio: condição física geral de um touro bravo. Buen trapio: reunindo
todas as qualidades desejadas de tipo, condições físicas e tamanho em
touros bravos de raça.
Trapo: a muleta.
Trasera: estocada dada muito atrás.
Trastear: trabalhar com a muleta.
Trastos: ferramentas; nas touradas, a espada e a muleta.
Trinchera: trincheira; de trinchera: passe com a muleta quando é dado
pelo homem fora do alcance do touro; buscar o refúgio do pescoço,
ficando ao lado dos chifres quando o touro se vira.
Trucos: truques.
Tuerto: caolho; touros cegos de um olho usados nas novilladas. Acredita-se
que tuertos ou pessoas caolhas atraem má sorte. Touros caolhos não são
muito difíceis de enfrentar, mas é quase impossível ter uma tourada
brilhante com um desses.
Tumbos: quedas ou derrubadas; as quedas sofridas pelos picadores.
Turno: vez; por ordem de senioridade como a usada no trabalho dos
matadores; tudo é feito por vez nas touradas, para que elas sejam rápidas
e sem conflitos.

U
Último: o último; último tercio: o último terço da tourada, em que o
touro é morto com a espada e a muleta.
Uretritis: gonorreia; doença comum na Península. Existe um provérbio
espanhol que diz: “Más cornadas dan las mujeres: as mulheres chifram
mais do que os touros.”
Urinario: banheiro público.
Utrero: touro com três anos de idade. Utrera é uma vaca da mesma idade.
Muitos touros vendidos para serem usados em arenas espanholas são
pouco mais do que utreros. Touros em que o cruzamento de linhagens
diferentes não foi bem-sucedido costumam ser muito corajosos como
novilhos e utreros, mas perdem a coragem progressivamente depois que
chegam aos quatro anos de idade. Isso é ainda mais verdadeiro em
relação a touros criados na província de Salamanca. Por consequência,
seus criadores tentam vender utreros como touros, fazendo os animais
comerem cereais para atingir o peso necessário. São esses touros
vendidos para serem enfrentados antes de estarem maduros que acabam
com a emoção e com a seriedade das touradas e, ao eliminar da tourada
seu elemento mais fundamental, o touro, conseguem desacreditar as
touradas mais do que qualquer outra entidade.

V
Vaca: vaca.
Vacuna: relacionado ao gado.
Valiente: corajoso, bravo.
Valla: muro, ou cerca de madeira, ou barrera.
Valor: coragem, bravura, frieza. Primeira qualidade que um toureiro deve
ter.
Vaquero: cuidador ou pastor de touros bravos na fazenda; vaqueiro.
Vaquilla: vaquinha.
Vara: lança; lança usada na tourada.
Varetazo: golpe dado pela parte lisa do chifre do touro; qualquer golpe
dado com os chifres que não perfure o corpo. Pode ser uma contusão
grave com hemorragia interna ou só um arranhão.
Ver llegar: ver chegar; a habilidade de observar o touro se aproximar
durante o ataque sem hesitar e, calmamente, fazer os movimentos
necessários para executar a manobra que você tem em mente. Observar
calmamente o touro atacar é uma coisa fundamental e extremamente
difícil de executar numa tourada.
Vergüenza: vergonha; um sin vergüenza é um toureiro sem honra, sem
vergonha. Qué vergüenza! significa que vergonha ou que desgraça.
Veronica: passe com a capa que recebeu esse nome porque nele a capa é
segurada com as duas mãos da mesma forma como Santa Veronica
aparece nas pinturas religiosas segurando o lenço com que limpou o
rosto de Cristo. Não tem nada a ver com o homem limpando a face do
touro, como um escritor espanhol chegou a sugerir. Ao executar a
veronica, o matador se posiciona de frente ou de lado para o touro, com
a perna esquerda ligeiramente adiantada em relação ao corpo, e oferece
a capa que ele segura com as duas mãos, segurando as extremidades de
baixo da capa pelas rolhas costuradas nas pontas, amontoando o tecido
de modo a encher as mãos com o pano, com os dedos apontados para
baixo e os polegares para cima. Conforme o touro ataca, o homem
espera até que o animal baixe a cabeça para chifrar a capa, e nesse
instante move a capa à frente do touro com um movimento suave dos
braços, os braços baixados, fazendo a cabeça e o corpo do touro
passarem na altura de sua cintura. Ele faz o touro passar e se afastar com
a capa, girando de leve na ponta dos dedos ou na planta do pé ao fazer o
movimento e, no fim do passe, quando o touro faz a volta, o homem
está em posição para repetir o passe, dessa vez com a perna direita
ligeiramente adiantada, traçando a capa à frente do touro para que ele
passe na outra direção. Um homem pode trapacear na veronica ao dar
um passo para o lado durante o ataque do touro para se afastar dos
chifres e juntar os pés uma vez que os chifres terminem de passar por
ele, ou se inclinar ou dar um passo na direção do touro uma vez que os
chifres passarem por ele para dar a impressão de que executou o passe
com os chifres passando muito perto. Um matador que não finge fazer
uma veronica pode fazer o touro passar tão perto que os chifres chegam
a arrancar as rosetas douradas que enfeitam sua jaqueta. Matadores
também podem provocar o touro com os pés juntos e fazer uma série de
veronicas dessa forma, com pés tão imóveis que parecem pregados ao
chão. Isso só pode ser feito com um touro que faz a volta e ataca de novo
espontaneamente e numa linha reta perfeita. Os pés devem estar
ligeiramente separados ao fazer um touro passar mais de uma vez, se for
um touro que precisa ser incitado a acompanhar a capa para fazer a volta
no fim do passe. De qualquer forma, a virtude da veronica não tem a ver
com o fato de os pés estarem juntos ou separados, e sim com o quanto
eles permanecem imóveis do momento em que o ataque começa até
depois que o touro passa, e com a proximidade dos chifres em relação ao
corpo do homem. Quanto mais lento, suave e baixo for o movimento da
capa, melhor será a veronica.
Viaje: viagem; a direção tomada pelo ataque do touro ou pelo homem, ao
se aproximar do touro para cravar as banderillas ou para matar.
Viento ou aire: vento, o pior inimigo do toureiro.
Vientre: barriga; lugar comum para os ferimentos causados por chifrada
quando o homem é atacado no momento do sacrifício e não consegue
encolher a barriga ao passar por sobre os chifres, no movimento
necessário para uma boa estocada. Ferimentos na barriga e no peito são
os mais graves numa tourada, não apenas pelo ferimento, mas pelo
choque causado pela força do golpe dado com o chifre e com a cabeça. O
lugar mais comum para um ferimento de chifrada é a coxa, pois é o
ponto que o touro vai atingir primeiro ao atacar e levantar a cabeça para
chifrar.
Vino: vinho; vino corriente é vinho comum ou vinho de mesa; vino del
pais é o vinho local, sempre bom de pedir; vino Rioja é vinho da região
de Rioja, no norte da Espanha; tinto e branco. Os melhores são feitos por
Bodegas Bilbainos, Marqués de Murrieta e Marqués de Riscal. Rioja
Clarete e Rioja Alta são os mais leves e agradáveis entre os vinhos tintos.
Diamante é um bom vinho branco para acompanhar um peixe. Os
Valdepeñas são mais encorpados do que os Riojas, mas eles fazem um
branco e um rosé excelentes. Os vitivinicultores espanhóis produzem
Chablis e Burgundies que não são recomendáveis. O Clarete Valdepeñas
é um vinho muito bom. Os vinhos de mesa em Valência são muito bons,
os de Tarragona são melhores, mas não viajam bem. A Galícia tem bons
vinhos de mesa locais. Nas Astúrias, eles bebem cidra. Os vinhos locais
de Navarra são muito bons. Para todos aqueles que vêm à Espanha e só
conhecem o xerez, os vinhos tintos secos, leves e esplêndidos de Málaga
serão uma revelação. O vin ordinaire na Espanha é muito superior ao da
França porque nunca é manipulado nem adulterado, e custa só trinta por
cento mais caro. Acredito que seja, de longe, o melhor da Europa. E,
diferente da França, eles não produzem Grands Vins.
Vista: visão clara; de mucha vista: ter visão clara e conhecimento sobre
touradas.
Vividores: viventes; trapaceiros; aqueles parasitas que ganham a vida com
as touradas sem fazer nenhuma contribuição para elas. O trapaceiro
espanhol consegue ganhar a vida onde seu colega armênio ou grego mal
conseguiria existir; e onde o bom trapaceiro americano morreria de
fome, o trapaceiro espanhol ganha o suficiente para se aposentar.
Volapié: voar enquanto corre; método de matar touros inventado por
Joaquín Rodríguez (Costillares), na época em os americanos declararam
independência dos ingleses, para lidar com um touro que, por estar
cansado demais, não consegue atacar para que o toureiro possa matá-lo
recibiendo, a manobra em que o homem espera o ataque do touro para
cravar a espada. No volapié, o homem posiciona o touro com as quatro
patas alinhadas; perfila o touro a uma distância pequena, com a muleta
baixada; mira ao longo da lâmina, que funciona como o prolongamento
do antebraço que está cruzado no peito, e se aproxima do touro, o
ombro esquerdo projetado para a frente, cravando a espada com a mão
direita no meio dos ombros do touro; faz o touro se afastar usando a
muleta na mão esquerda, encolhe a barriga para evitar o chifre direito e
escapa do encontro pelo flanco do animal. Ainda que os matadores de
hoje raramente cheguem perto do touro no momento de cravar a
espada, e quase nunca segurem a espada no nível do peito, e mirem com
a lâmina de qualquer jeito, na altura do queixo ou acima do nariz, o
volapié, como foi descrito aqui e inventado por Costillares, ainda é o
método de matar touros na era moderna.
Volcar: virar ou tombar; volcando sobre el morillo: expressão usada para
se referir a um matador que avança para matar de maneira tão firme e
franca que quase cai em cima dos ombros do touro depois de cravar a
espada.
Voluntad: desejo ou boa vontade; dizem que um matador demonstrou
buena voluntad quando ele dá o melhor de si e, se o resultado for ruim, é
por causa de algum defeito do touro ou por incapacidade do homem e
não por falta de vontade.
Vuelta al ruedo: volta na arena feita pelo matador por insistência dos
espectadores para receber aplausos. Ele é acompanhado pelos
banderilleros que pegam e embolsam os charutos arremessados, e
arremessam de volta os chapéus ou outros artigos de vestuário atirados
na arena.

Z
Zapatillas: sapatilhas sem salto usadas pelos toureiros na arena.
REAÇÕES DE ALGUNS POUCOS INDIVÍDUOS À TÍPICA TOURADA
ESPANHOLA

As idades citadas são aquelas com que viram uma tourada pela
primeira vez.
P.H., 4 anos; norte-americano; homem. Levado pela babá a uma tourada
espanhola em Bordeaux, sem conhecimento nem permissão dos pais,
depois de ver o touro atacar os picadores, ele berrou: “Il faut pas faire
tomber le horsy!”. Pouco depois, ele berrou: “Assis! Assis! Je ne peux pas
voir le taureau!”. Quando os pais perguntaram o que tinha achado da
tourada, ele disse: “J’aime ça!”. Levado a uma tourada espanhola em
Bayonne três meses depois, ele pareceu muito interessado, mas não disse
nada durante a luta. Depois que terminou, ele disse: “Quand j’étais jeune,
la course de taureaux n’était pas comme ça”.
J.H., 9 anos; norte-americano; homem; formação: liceu francês; um ano
de pré-escola nos Estados Unidos. Fez equitação por dois anos e teve
permissão de ir às touradas com o pai como recompensa pelo desempenho
na escola e, como seu irmão mais novo viu uma luta sem que seus pais
soubessem e não sofreu efeitos colaterais, ele achava injusto que o filho
mais novo tivesse visto um espetáculo que ele só teria permissão de ver
quando completasse doze anos. Acompanhou a tourada com um interesse
enorme e sem falar nada. Quando as almofadas começaram a ser jogadas
contra um toureiro covarde, ele cochichou: “Papai, posso jogar a minha?”.
Achou que o sangue na perna do cavalo era tinta e perguntou se os cavalos
eram pintados assim para que o touro os atacasse. Ficou muito
impressionado com os touros, mas achou que o trabalho dos matadores
parecia fácil. Admirou a coragem vulgar de Saturio Torón. Disse que
Torón era seu preferido. Todos os outros ficaram com medo. Acreditou
piamente que nenhum toureiro, por mais esforçado que fosse, era muito
bom. Implicou com Villalta. Disse: “Odeio o Villalta!”, na primeira vez que
usou esse verbo para falar de um ser humano. Questionado por que, disse:
“Odeio a cara dele e o jeito como ele se mexe.” Declarou que, na sua
opinião, não existia nenhum toureiro melhor do que seu amigo Sidney e
que ele não queria mais ver nenhuma tourada que não tivesse Sidney na
arena. Disse que não gostava de ver os cavalos serem feridos, mas se
divertiu ao ver um episódio engraçado envolvendo cavalos. Ao descobrir
que os matadores também morriam, decidiu que preferia trabalhar como
guia em Wyoming ou com armadilhas para caçar animais. Quem sabe
trabalhar como guia no verão e com armadilhas no inverno.
X.Y., 27 anos; norte-americano; homem; ensino superior completo;
quando menino, andava a cavalo na fazenda. Levou uma garrafa de bolso
com conhaque na sua primeira tourada — tomou vários goles na arena —,
quando o touro atacou o picador e atingiu o cavalo, X.Y. deu um berro
repentino e recuperou o fôlego — e tomou um gole de conhaque —, e
repetiu isso em cada encontro do touro com o cavalo. Parecia estar à
procura de fortes emoções. Duvidou do meu entusiasmo pelas touradas.
Disse que era só para eu manter a farsa. Ele não se entusiasmava e
afirmava que ninguém poderia se entusiasmar. Ainda acha que o interesse
pelas touradas é uma mentira. Não se interessa por nenhum tipo de
esporte. Não se interessa por jogos de azar. Ele se diverte e se ocupa com
bebidas, vida noturna e fofocas. Escreve. Viaja.
Cap. D.S., 26 anos; soldado; britânico; descendente de irlandeses e
ingleses; formação: escolas públicas e Sandhurst; foi para Mons em 1914
como oficial de infantaria; ferido em 27 de agosto de 1914; histórico
brilhante como oficial de infantaria entre 1914 e 1918. Caça com cães e
pratica corrida de obstáculos para cavalos. Como diversão, gosta de caçar,
esquiar e escalar; é culto e inteligente, e aprecia a literatura e a arte
modernas. Não tem interesse por jogos nem apostas. Sofreu de maneira
sincera e profunda ao ver o que aconteceu com os cavalos em sua primeira
tourada — disse que foi a coisa mais horrível que já tinha visto. Continuou
a frequentar as touradas, segundo ele, para entender a mentalidade das
pessoas que toleram uma coisa dessas. Ao fim de sua sexta tourada, ele
entendeu tão bem que se envolveu numa discussão em que defendeu a
conduta de um matador, John Anllo, o Nacional II, durante a luta em que
um espectador o insultou. Participou de lutas amadoras realizadas pela
manhã nas arenas. Escreveu dois artigos sobre touradas, um deles foi uma
apologia, publicados por um jornal do exército.
Srta. A.B., 28 anos; norte-americana; não é amazona; formação: ensino
médio completo; estudou para se tornar cantora de ópera; não se interessa
por esportes nem por jogos de azar. Não aposta. Foi a uma tourada e ficou
ligeiramente horrorizada. Não gostou do que viu. Nunca mais foi.
Srta. E.R., 30 anos; norte-americana; formação: superior completo; sabe
cavalgar e tinha um pônei quando criança; musicista; autor favorito: Henry
James; esporte favorito: tênis; nunca tinha visto uma luta de boxe nem
uma tourada até se casar. Gostava de boas lutas de boxe valendo dinheiro.
Não queria que ela visse os cavalos sofrerem na tourada, mas acreditava
que ela poderia gostar do resto da corrida. Fiz ela desviar o olhar quando o
touro atacou o cavalo. Avisei quando não olhar. Não queria que ela ficasse
chocada ou horrorizada. Descobri que ela não ficou chocada nem
horrorizada pelos cavalos e que encarou a situação toda como parte da
tourada, de que ela gostou imensamente logo de primeira, e da qual se
tornou grande adepta e admiradora. Desenvolveu um olhar infalível para
avaliar um matador em questões de classe, honestidade e capacidade assim
que botava os olhos num toureiro. Certa vez, ficou muito impressionada
com um determinado matador. Com certeza, o matador ficou muito
impressionado com ela. Teve a sorte de estar distante das touradas quando
o matador enfrentou sua derrocada moral.
Srta. S.T., 30 anos; inglesa; formação: escola particular e convento; sabe
cavalgar; ninfomaníaca alcoólica. Chegou a pintar por um tempo. Gastava
dinheiro rápido demais para conseguir apostar em qualquer coisa —
apostou algumas vezes com dinheiro emprestado. Amava beber mais do
que experimentar emoções fortes — muito impressionada com a morte
dos cavalos, mas tão animada com os toureiros e com as emoções de
maneira geral que passou a frequentar as arenas. Depois das touradas,
bebia até apagar qualquer lembrança delas.
W.G., 27 anos; norte-americano; homem; formação: superior completo;
excelente jogador de beisebol; um ótimo desportista, muito inteligente e
tinha boas noções de estética; único contato com cavalos foi em fazendas;
recentemente, se recuperou de uma depressão que veio depois de um
colapso nervoso; ficou chocado e horrorizado com os cavalos. Não
conseguiu acompanhar a tourada. Fez um julgamento moral de tudo.
Sofreu de maneira sincera e verdadeira com a dor que presenciou na luta.
Odiou os picadores. Achou que eles eram moralmente responsáveis.
Depois de ir embora da Espanha, o horror diminuiu e ele se lembrou de
partes da luta que considerava boas, mas ele tinha uma antipatia real e
sincera pelas touradas.
R.S., 28 anos; norte-americano; homem; escritor de sucesso sem bens
próprios; formação: superior completo; gostou muito das touradas;
gostava da música feita por compositores da moda, mas não era músico;
não admirava nenhuma arte além da música; não era cavaleiro; não se
incomodou nem um pouco com os cavalos; participava de touradas
amadoras pela manhã e sabia como conquistar o público; viveu em
Pamplona por dois anos. Parecia gostar imensamente das touradas, mas
deixou de acompanhá-las depois de casado, embora diga com frequência
que gostaria de voltar a vê-las. Talvez volte um dia. Parecia genuinamente
interessado nelas, mas agora não tem mais tempo para nada que não
envolva ganhar dinheiro e cultivar contatos. Tem interesse genuíno em
golfe. Quase não aposta em jogos de azar, mas faz algumas apostas em
questões que envolvem fatos, opinião, lealdade etc.
P.M., 28 anos; norte-americana; formação: convento e superior
completo; não toca nenhum instrumento musical; não aprecia música; é
inteligente e gosta de artes e de literatura; costumava andar a cavalo e teve
um pônei quando criança. Viu sua primeira tourada em Madri, na qual três
homens foram chifrados. Não gostou do que viu e saiu da arena antes da
tourada terminar. Viu outra um pouco melhor na segunda vez e gostou.
Não se incomodou nada com os cavalos. Passou a entender de touradas e a
apreciá-las mais do que qualquer outro espetáculo. Tem frequentado as
touradas regularmente. Não se interessa por boxe nem por futebol
americano, mas gosta de ciclismo. Gosta de pescar e de atirar. Não gosta
de jogos de azar.
V.R., 25 anos; norte-americana; formação: convento e superior completo;
amazona talentosa; gostou tremendamente das touradas logo de início;
não se incomodou nada com os cavalos; desde sua primeira vez, vai às
touradas sempre que tem chance. Gosta bastante de boxe, gosta de
corridas de cavalos, não se interessa por ciclismo e gosta de apostar em
jogos de azar.
A.U., 32 anos; norte-americano; formação: superior completo; poeta; de
uma sensibilidade enorme; atleta versátil; gosta de música, artes e
literatura; andava a cavalo no exército, mas não é um cavaleiro. Não se
interessa por jogos de azar, ficou profundamente abalado ao ver os touros
investirem contra os cavalos em sua primeira tourada, mas isso não afetou
sua diversão. Gostava imensamente do trabalho do matador quando ele
era bom e vaiava prontamente com o resto da multidão quando não era.
Desde aquele outono, vive num lugar onde não tem acesso às touradas.
S.A., Romancista de fama internacional que escreve em iídiche. Teve
sorte de ver touradas excelentes em sua primeira viagem a Madri e
afirmou que não havia emoção comparável em intensidade, a não ser por
sua primeira relação sexual.
Sra. M.W., 40 anos; norte-americana; formação: escolas privadas; não
tem aptidão para esportes; já andou a cavalo; tem um gosto apurado para
a música, a pintura, a escrita; é generosa, inteligente, fiel, sedutora; uma
excelente mãe. Preferiu não ver os cavalos — desviou o olhar — e gostou
do restante da tourada, mas não fez questão de ver muitas mais. Gosta
muito de se divertir e sabe muito bem como fazer isso.
W.A., 29 anos; norte-americano; homem; jornalista de sucesso;
formação: superior completo; não sabe andar a cavalo; muito civilizado e
tem muito gosto por comer e beber; é culto e experiente; ficou frustrado
com sua primeira tourada, mas não se incomodou com os cavalos; na
verdade, gostou dela, mas acabou ficando entediado com o resto da luta;
depois acabou demonstrando um grande interesse em touradas e trouxe a
esposa para a Espanha, mas ela não gostou das lutas e, no ano seguinte,
W.A. deixou de acompanhá-las. Ele não tinha sorte e as touradas que via
eram quase sempre ruins, ele acompanhou o boxe por um tempo, mas não
frequenta mais as lutas. Aposta um pouco em jogos de azar, ama comida,
bebida e conversa boa. Extremamente inteligente.
Nessas poucas reações, tentei ser completamente fiel às primeiras
impressões e às impressões definitivas que esses indivíduos tiveram sobre
as touradas. A única conclusão que consigo tirar dessas reações é que
algumas pessoas vão gostar das touradas e outras não vão gostar. Como se
trata de uma desconhecida, não pude contar a história de uma inglesa de
uns trinta e cinco anos que vi numa tourada em San Sebastián,
acompanhada do marido, que ficou tão abalada com os cavalos sendo
atacados pelo touro que ela gritava e chorava como se fossem seus cavalos
ou os próprios filhos na arena. Ela foi embora chorando, mas disse para o
marido ficar. Ela não quis chamar atenção, mas a cena foi horrível demais
para ela. Era uma mulher bonita e parecia ser simpática, e fiquei com pena
dela. Também não descrevi as reações de uma garota espanhola que foi a
uma tourada em La Coruña com quem parecia ser seu marido ou noivo.
Ela chorou muito e sofreu em toda a corrida, mas permaneceu na arena.
Falando com toda franqueza, essas foram as duas únicas mulheres que vi
chorar em mais de trezentas touradas. Deve-se levar em conta, claro, que
nessas lutas eu só conseguia observar meus vizinhos mais próximos.
UMA BREVE AVALIAÇÃO DO NORTE-AMERICANO SIDNEY FRANKLIN
COMO MATADOR

A maioria dos espanhóis não frequenta as touradas, apenas uma pequena


parcela, e entre aqueles que assistem, há um número limitado de
aficionados que entendem do assunto. Ainda assim, várias vezes ouvi as
pessoas dizerem que perguntaram a um espanhol, um espanhol de
verdade, veja só, que tipo de toureiro era Sidney Franklin, e o espanhol
disse que ele era muito corajoso, mas muito esquisito e não entendia qual
era o problema. Se você perguntasse a esse espanhol se ele viu Franklin
lutar, ele diria que não; o problema é que os espanhóis falam assim dele
por causa de um orgulho patriótico. Não é assim que ele luta.
Franklin é corajoso, com uma bravura fria, serena e inteligente, mas em
vez de ser esquisito e ignorante, ele é um dos toureiros mais habilidosos,
elegantes e confiantes da atualidade. Seu repertório com a capa é enorme,
mas ele não procura usar o repertório variado para evitar fazer uma
veronica, pois a base do seu trabalho com a capa e a técnica de suas
veronicas são clássicas, muito emocionantes e lindamente marcadas e
executadas. Você jamais vai encontrar um espanhol que tenha visto
Franklin se apresentar e que negue sua criatividade e excelência com a
capa.
Ele não crava banderillas, pois nunca estudou nem praticou essa
manobra devidamente, e essa é uma omissão grave, uma vez que, com seu
físico, noção de distância e frieza, ele poderia ser um ótimo banderillero.
Franklin sabe usar a muleta com a mão direita, mas usa muito pouco a
mão esquerda. Ele mata corretamente e com facilidade. Ele não dá a
devida importância ao sacrifício, pois ele o considera fácil e ignora o
perigo. Se ele perfilasse o touro com mais estilo, a manobra para matar se
tornaria muito mais emocionante.
Hoje, existem apenas seis matadores profissionais que são mais técnicos,
inteligentes e completos do que ele na Espanha, e os toureiros sabem disso
e o respeitam muito por isso.
É tarde demais para ele se tornar um bom banderillero, mas ele percebe
seus outros defeitos e está constantemente se aprimorando. Com a capa,
ele não precisa melhorar nada; ele é um mestre, um doutor em
tauromaquia, e não apenas um artista clássico, mas também um inventor e
um inovador.
Ele foi treinado por Rodolfo Gaona, o mexicano, o único matador que
era páreo para Joselito e Belmonte, que por sua vez foi treinado por um
banderillero do grande Frascuelo, que deu a ele o treinamento mais
completo possível no que se refere aos fundamentos clássicos da tourada,
ignorados por muitos jovens matadores que têm bastante coragem, um
pouco de elegância e de juventude, e postura e esperança; e foram o
talento e a qualidade do estilo de Franklin, adquiridos na melhor escola
possível, que tanto maravilhavam e entusiasmavam os espanhóis.
Ele teve triunfos importantes e legítimos em Sevilha, Madri e San
Sebastián, diante da elite dos aficionados, e triunfos em Cádiz, Ceuta e em
outras cidades nas províncias. Ele lotou a arena de Madri de tal modo que
os ingressos esgotaram em três apresentações seguidas; a primeira vez foi
como a novidade norte-americana que todo mundo estava curioso para
ver depois de seu sucesso estrondoso em Sevilha, mas as duas vezes
seguintes foram por causa de seus méritos como toureiro. Isso foi em
1929, o ano em que ele poderia ter assumido como um matador de touros
profissional
em pelo menos seis cidades diferentes, e eu teria falado sobre ele no corpo
deste livro com os outros matadores de touros, mas ele optou sabiamente
por mais um ano como novillero; ele estava lutando o quanto queria e
fazia mais dinheiro como novillero do que muitos matadores de touros, e
mais um ano como novillero daria a ele mais um ano para aperfeiçoar o
trabalho com a muleta, bem como mais experiência e mais conhecimento
sobre os touros espanhóis, que são muito diferentes dos mexicanos. Ele
teve azar em sua segunda luta, no início de março de 1930, quando foi
chifrado por um touro ao dar as costas para o animal, depois de ter
cravado a espada, e sofreu um ferimento grave que perfurou o reto, o
músculo do esfíncter e o intestino grosso, e quando ele se recuperou para
honrar seus contratos, o ferimento não havia cicatrizado e ele lutou em
más condições físicas até o fim da temporada. Durante o inverno de 1930-
31, ele lutou no México e, alternando com Marcial Lalanda em Nuevo
Laredo, sofreu um ferimento pequeno causado pela chifrada de um
novilho na perna, que não teria causado nenhum problema (ele lutou no
domingo seguinte) se o cirurgião que o atendeu não tivesse insistido em
aplicar vacinas contra tétano e gangrena. O intervalo entre essas injeções e
aquelas que ele havia recebido em Madri para os mesmos problemas foi
muito pequeno, e isso acabou causando um tipo de abscesso no braço
esquerdo, que inchou e deixou o braço praticamente inutilizado e
comprometeu sua temporada espanhola em 1931. Depois, ele também
veio do México para a Espanha com o dinheiro da temporada de inverno e
com mais disposição de aproveitar a vida do que de retornar às touradas.
Ele tinha feito a arena de Madri pagar caro por uma apresentação sua no
ano anterior e, assim que ele decidiu estar pronto para lutar de novo, a
administração deu um jeito de se vingar de uma forma tipicamente
espanhola, criando pretextos para ignorar Franklin até que todas as datas
da arena estivessem agendadas.
Ele tem habilidade com línguas, mais a coragem fria e a habilidade de
comandar típica de um soldado da fortuna, ele é uma companhia
agradável, um grande contador de histórias, tem uma curiosidade enorme
e onívora sobre tudo, mas consegue saber o que precisa ao ver e ouvir com
atenção, e lê apenas o jornal The Saturday Evening Post, que ele percorre de
cabo a rabo todas as semanas, e que geralmente lê em três dias e passa os
outros quatro sofrendo à espera da próxima edição. Ele é um patrão
exigente com aqueles que trabalham para ele, mas inspira uma lealdade
impressionante. Ele não só fala espanhol perfeitamente, como fala com o
sotaque do lugar onde estiver, não importa qual seja; ele cuida dos
próprios negócios sozinho e se orgulha do seu tino comercial, que é
péssimo. Ele confia em si mesmo tanto quanto um cantor de ópera, mas
não é convencido.
Preferi não escrever nada sobre sua vida, uma vez que ele enfrentou
riscos enormes e viveu de maneira absolutamente fantástica, e faria jus a
quaisquer vantagens que a história pudesse contar. Ouvi a história inteira
algumas vezes, na primeira metade de 1931, e presenciei alguns capítulos
da história no instante em que ocorreram, e ela é melhor do que qualquer
romance pitoresco que você tenha lido. A vida de qualquer homem, se
narrada de maneira sincera, é um romance, mas a vida de um toureiro
obedece a uma ordem inevitável na sua trágica progressão. A vida de
Sidney escapou a essa regra e ele de fato viveu três vidas: uma mexicana,
uma espanhola e uma americana, de forma inacreditável. As histórias
dessas vidas pertencem a ele e eu não vou contá-las para você. Mas posso
contar, sinceramente, deixando de lado todas as questões de raça e
nacionalidade, que ele é um artista bom e competente com a capa, e
nenhuma história das touradas será completa se não der a ele o espaço que
ele merece.
DATAS COMUNS DE TOURADAS NA ESPANHA, NA FRANÇA, NO MÉXICO
E NAS AMÉRICAS CENTRAL E DO SUL

Futuros espectadores não devem levar a sério as touradas realizadas na França, na


América Central e na América do Sul, a não ser talvez as de Lima, no Peru.

JANEIRO
Touradas todos os domingos na Cidade do México; em Lima, no Peru; e
em Caracas, na Venezuela.
No dia 1º janeiro há sempre uma tourada em San Luis de Potosí, no
México.
Há touradas de vez em quando, aos domingos, nas cidades de Tampico,
Vera Cruz, Torreón, Puebla, León, Zacatecas, Ciudad Juarez e Monterey.
Em Casablanca, no Marrocos, uma ou mais touradas ocorrem nos
domingos de janeiro.
Valência, Maracay e Maracaibo, na Venezuela, realizam touradas de vez
em quando aos domingos.
Cartagena das Índias, na Colômbia, também costuma ter touradas em
janeiro.
FEVEREIRO
Touradas acontecem todos os domingos na Cidade do México, em Lima
e em Caracas, e eventualmente uma tourada beneficente num dia de
semana, na Cidade do México.
Aos domingos, há touradas oficiais ou novilladas em San Luis de Potosí,
Ciudade Juarez, Puebla, Torreón, Monterey, Aguas Calientes, Tampico,
León e Zacatecas, no México, e touradas em Bogotá, Baranquilla e no
Panamá, na América Central.
Se o tempo ajudar, as novilladas começam aos domingos em Madri e
Barcelona, e em Valência.
MARÇO
Há touradas todos os domingos na Cidade do México e em Caracas
(Venezuela). De tempos em tempos, ocorrem touradas em Málaga,
Barcelona e Valência, e há sempre uma tourada em Castellón de la Plana
para as Fiestas de la Magdalena, que você pode procurar em qualquer
calendário religioso e vai achar.
As novilladas geralmente ocorrem, se o tempo ajudar, todos os
domingos em Madri, Barcelona, Valência, Zaragoza, e num domingo ou
outro em Bilbao.
ABRIL
Há touradas no domingo de Páscoa em Madri, Barcelona, Sevilha,
Zaragoza, Málaga, Múrcia e Granada.
Na segunda-feira depois da Páscoa, começam as primeiras touradas dos
pacotes por assinatura em Madri.
A feria em Sevilha começa uma semana depois da Páscoa e tem três
touradas em dias sucessivos.
Dia 25, feria em Lorca.
Dia 29, feria em Jerez de la Frontera.
Há touradas todo domingo depois da Páscoa em Madri, Barcelona e
Valência, e novilladas aos domingos em Zaragoza, Bilbao e geralmente nas
arenas menores de Vista Alegre e Tetuán de las Victorias, em Madri. Se
você for a qualquer uma das duas, tenha cuidado com os batedores de
carteiras.
MAIO
Se a Páscoa for mais cedo e o Corpus Christi cair em maio, há touradas
nessa data em Madri, Sevilha, Granada, Málaga, Toledo e Bilbao,
possivelmente também em Zaragoza.

DATAS FIXAS PARA TOURADAS


2 de maio: Bilbao, Lucena.
3 de maio: Bilbao, Figueras, Santa Cruz de Tenerife.
4 de maio: Puertollano, Jerez de los Caballeros.
Entre os dias 8 e 10 de maio: Ecija e Caravaca.
Entre os dias 13 e 15 de maio: Osuna e Badajoz.
15 de maio: Madri.
16 de maio: Madri e Talavera de la Reina.
17 de maio: Madri. Essas três touradas ocorrem na Feria de San Isidro,
patrono de Madri. A feria já não é mais a mesma, mas as touradas
continuam sendo realizadas.
18 a 20 de maio: Ronda, Olivenza, Baeza.
21 a 22 de maio: Zaragoza.
25 a 26 de maio: Córdoba.
30 de maio: Aranjuez e Cáceres (novillada em Madri).
31 de maio: Cáceres, Teruel e Antequera.
No último domingo de maio, geralmente ocorre uma tourada na arena
romana de Béziers, na França.
Em maio, a temporada de verão das novilladas começa no México.
JUNHO
Há touradas todas as quintas-feiras e todos os domingos em Madri e
todos os domingos em Barcelona.
Entre os dias 2 e 4 de junho: Trujillo.
9 de junho: Placência.
Entre os dias 9 e 11 de junho: Uma grande feria em Algeciras,
geralmente com três touradas.
Entre os dias 13 e 17 de junho: Feria em Granada, geralmente com três
touradas.
22 de junho: Ávila.
24 de junho: Tolosa, Medina del Rio Seco, Cabra, Barcelona, Zafra,
Badajoz, feria em Badajoz com duas touradas.
25 de junho: Tolosa, Badajoz.
Entre os dias 27 e 29 de junho: Feria em Segóvia, geralmente com duas
lutas.
29 de junho: Alicante.
Entre os dias 29 e 30 de junho: Feria em Burgos, geralmente com duas
lutas.
JULHO
No primeiro domingo de julho: Touradas em Palma de Mallorca.
Entre os dias 6 e 12 de julho: Feria de San Fermín em Pamplona, com
cinco lutas em dias sucessivos, começando no dia 7 de julho. Touradas
amadoras todos os dias às sete da manhã. Os touros correm pelas ruas nas
manhãs das touradas. Melhor chegar à arena às seis da manhã para
comprar ingressos para os camarotes. Os outros ingressos são gratuitos e
esgotam. Os ingressos geralmente podem ser comprados na noite anterior
entre seis e sete horas nas bilheterias da praça.
14 de julho: Touradas em Bordeaux e Bayonne.
Entre os dias 15 e 18 de julho: Touradas em La Linea, perto de Gibraltar.
23 de julho: Alcira. Geralmente uma boa tourada.
25 de julho: Grande tourada em San Sebastián e Santander. Primeira
tourada da feria em Valência, onde ocorrem de sete a nove touradas em
dias sucessivos até o dia 2 de agosto, inclusive.
No primeiro domingo de julho, há uma tourada em Nîmes, na França.
Ao longo do mês de julho, há novilladas às quintas-feiras e aos domingos
em que não ocorrem touradas oficiais, em Madri ou Barcelona. As grandes
ferias que merecem ser visitadas são as de Pamplona e Valência.
AGOSTO
No dia 2 de agosto, há uma feria em Vitória, com três touradas em dias
sucessivos, e outra em La Coruña, também com três touradas. Vitória é
acessível de carro numa viagem de três horas a partir da fronteira com a
França, em Hendaye. Se a feria for programada para um domingo, essas
touradas podem ocorrer lá pelo dia 4 ou 5.
Entre os dias 2 e 5 de agosto, há touradas em Santander, San Sebastián,
Cartagena e Tomellosa.
Entre os dias 8 e 10, há uma feria em Pontevedra, na Galícia, geralmente
com uma tourada apenas.
10 de agosto: Manzanares.
Entre os dias 15 e 17 de agosto, ocorre a Grande Semaine de San
Sebastián, com três lutas sucessivas nesses dias. Se houver um domingo
mais para o começo ou mais para o fim da feria, as touradas podem
ocorrer nos dias 14, 15 e 16, porque os produtores de eventos procuram
sempre encaixar uma série de touradas dentro de uma feria num domingo.
Nos dias 15 e 16 de agosto, há também ferias em Gijón, Badajoz e
Almendralejo, com duas touradas em cada uma delas e uma tourada nos
mesmos dias em Puerto de Santa Maria (dia 15), Palma de Mallorca (dia
15), Jaén, Tafalla e Jatiba (dia 15). Pode-se chegar a Tafalla a partir de
Biarritz numa viagem de quatro horas e meia de carro.
16 de agosto: Orihuela, Burgode, Osma e Jumilla.
17 a 20 de agosto: Ciudad Real, Sanlucar, Toledo, Málaga, Antequera e,
às vezes, Guadalajara.
21 de agosto: A feria de verão em Bilbao começa quase sempre com
cinco touradas sucessivas. Durante essa semana, há touradas aos domingos
em San Sebastián, Oviedo, Almagro (duas touradas), Astorga (duas
touradas, nos dias 24 e 25), Almería (duas lutas, geralmente nos dias 26 e
27), Tarazona de la Mancha (dia 24), Alcalá de Henares (dia 25).
28 de agosto: Tarazona de Aragon e Toro. San Sebastián, se cair num
domingo.
28 a 30 de agosto: Málaga, Puerto de Santa María, Linares, Colmenar
Viejo (às vezes com duas touradas).
29 de agosto: Málaga (segunda tourada da feria).
30 de agosto: Linares (segunda tourada da feria).
31 de agosto: Calahorra, Requena, Constantina.
Ao longo do mês de agosto, há novilladas em Madri e Barcelona, e
geralmente em Zaragoza e Valência, todos os domingos e geralmente
todas as quintas-feiras. As grandes ferias do mês de agosto, do ponto de
vista das touradas, são as de Bilbao e San Sebastián. Se você quiser
conhecer o campo, vá para Colmenar Viejo, Astorga ou Toro.
SETEMBRO
O mês das grandes ferias.
Dias 2 e 3: Palência geralmente tem boas touradas e um público
inteligente. Uma agradável cidade castelhana com boa cerveja e excelentes
caçadores de codornas.
Dias 3 e 4: Mérida, Villarobledo e Priego. Geralmente são duas touradas
em Mérida, uma em Villarobledo e uma em Priego.
No primeiro domingo de setembro, ocorre uma tourada em San
Sebastián, e se o domingo cair depois do dia 4, em Aranjuez.
Dias 5 e 6: Feria em Cuenca, geralmente com duas touradas e uma
novillada. Cidade maravilhosa, mas com uma estrada terrível. Nas mesmas
datas, há uma feria em Castellar com duas touradas. Entre os dias 4 e 6,
tanto touradas quanto novilladas em Segóvia, Huelva, Requena e Jerez de
los Caballeros.
Começa a feria em Múrcia, no dia 7 ou no dia 8. Geralmente com duas
touradas.
Dias 7 e 8: Utrera, Palma de Mallorca, Cabra, Bélmez, Tortosa,
Ayamonte, Cáceres, Barbastro, Santoña, Benavente e às vezes em
Valdepeñas e Lorca.
Dia 9 de setembro: Uma feria com duas touradas começa em Calatayud
e, no dia 10, Albacete dá início a uma feria com três touradas sucessivas,
embora às vezes eles cheguem a apresentar cinco touradas. As duas valem
a pena.
Dia 9, ainda, San Martín de Valdeiglesias, na estrada de Madri para a
Sierra de Gredos, Villanueva del Arzobispo, Barcarrota e Andújar.
Dias 10 e 11: Geralmente começa uma feria com duas touradas em
Zamora e, no dia 11, quase sempre ocorrem touradas em Haro, Utiel e
Cehegin.
Dia 12 de setembro: Começa a feria de Salamanca, com três touradas em
dias sucessivos.
Há touradas também em San Sebastián no segundo domingo de
setembro, e costuma ser uma tourada xumbrega, embora às vezes seja
boa, e em Utiel, Mellila e Barcelona.
No terceiro domingo de setembro, começam as touradas dos pacotes de
assinatura para a temporada de outono em Madri, com touradas todos os
domingos até meados de outubro.
Dias 14 e 15 de setembro: Costuma ter touradas ou novilladas em Jerez
de la Frontera, Aranda de Duero, Castuera e Aracena.
Nos dias 15 e 16, geralmente há touradas em San Clemente, Mora,
Trujillo e Tomelloso.
Numa data entre os dias 18 e 20, dependendo de onde cair o domingo,
começam três dias sucessivos de touradas na feria de Valladolid. A cidade é
acessível tanto pela ferrovia quanto pela estrada. Essas touradas
frequentemente são boas e o público é inteligente, e um desses três dias de
touradas geralmente é reservado para as ferias de Oviedo, Olivenza e
Zalamea la Real.
No dia 21 de setembro, começa uma feria com três dias de touradas em
Logroño. Essa é a feria de setembro mais fácil de acessar a partir da
fronteira francesa, via Hendaye e Irun. As touradas costumam ser de alto
nível.
Numa data entre os dias 21 e 23, há uma tourada em Talavera de la
Reina, Fregenal de la Sierra, Sória e Requena.
No terceiro domingo de setembro, se o tempo estiver bom no norte e
houver bastantes visitantes, pode haver uma tourada em San Sebastián.
Quase sempre há uma tourada em Tarrogona, Zaragoza, Barcelona,
Málaga, Bilbao e Córdoba. Essas costumam ser realizadas na Celebração
da Virgem Maria.
Entre os dias 25 e 28 de setembro, quase sempre há uma tourada em
Quintanar de la Orden, Torrijos, Hellín e Béjar.
No dia 28 de setembro, ocorre a primeira de duas touradas da Feria de
San Miguel, em Sevilha. Essa duas touradas costumam ser muito melhores
do que as corridas da feria de primavera.
Touradas podem ser realizadas nos últimos três dias de setembro, em
Caravaca, Ubeda, Jaén, Almendralejo e Belmonte.
As ferias mais importantes de setembro são as de Salamanca, Calatayud,
Albacete, Valladolid, Logroño e Sevilha. Todas essas valem a pena.
OUTUBRO
No primeiro, no segundo e geralmente no terceiro domingo de outubro,
há touradas em Madri e Barcelona, e geralmente em Valência.
Dias 1º e 2 de outubro: Ubeda, feria.
Dia 3 de outubro: Soria, feria.
Entre os dias 2 e 4 de outubro: Zafra, feria.
Geralmente há uma tourada na primeira semana de outubro em
Aranjuez.
No dia 12 ou no dia 13 de outubro, começa a feria de Pilar, em Zaragoza,
que dura de quatro a cinco noites. Essa é a última feria importante da
temporada.
Entre os dias 15 e 20, há uma feria em Guadalajara, com uma tourada, e
nos dias 18 e 19, outra em Jaén, com duas touradas. No dia 18 ou no dia
19, às vezes há touradas em Gandia e Játiva.
No último domingo de outubro, há touradas em Barcelona e Valência, se
o tempo estiver bom, e ocasionalmente há uma tourada no último dia de
outubro em Gerona.
A grande feria do mês é a de Pilar, em Zaragoza.
Em meados de outubro, a temporada oficial de touradas começa na
Cidade do México e no resto do território mexicano.
NOVEMBRO
Caso o tempo esteja bom, touradas podem ser realizadas na primeira
semana de novembro em Barcelona ou Valência. Elas ocorrem todos os
domingos na Cidade do México e em várias outras cidades mexicanas, com
os toureiros contratados para o México viajando logo depois da feria de
Pilar, em Zaragoza.
A última tourada na Espanha é geralmente em Ondara, na província de
Alicante, entre os dias 16 e 20 de novembro.
DEZEMBRO
O segundo mês mais importante da temporada mexicana, com touradas
todos os domingos na Cidade do México e, com frequência, em várias
outras cidades mexicanas.
Em Lima (Peru), Caracas (Venezuela) e Bogotá (Colômbia), a temporada
começa em meados de dezembro, geralmente com matadores espanhóis e
com qualquer prodígio local que esteja na moda. Na Venezuela, há
touradas eventuais em Valência e Maracaibo, assim como touradas
ocasionais mais ou menos sérias no Panamá e na Guatemala. Se quiser ver
touradas em novembro ou dezembro, a Cidade do México é o lugar
perfeito para isso.
NOTA BIBLIOGRÁFICA

Para uma lista de 2.077 livros e folhetos em espanhol que tratam de


tauromaquia — o escritor deste livro tem uma dívida profunda com os
autores desses livros e pede a eles desculpas pela intromissão —, o leitor
que quiser saber mais sobre a história das touradas espanholas deve acessar
Libros e Folletos de Toros, Biblioteca Taurina, Compuesta Con Vista de la
Biblioteca Taurómaca de Don José Luis de Ybarra y Lopez de Calle, por
Graciano Diaz Arquer, e publicado em Madri pela Biblioteca de Pedro
Vindel.
Morte ao entardecer não tem a intenção de ser um relato histórico nem
uma obra muito aprofundada. Ele foi pensado como uma introdução à
tourada moderna da Espanha e procura explicar as emoções e as práticas
que envolvem esse espetáculo. Ele foi escrito porque não havia nenhum
livro que fizesse isso em espanhol nem em inglês. O escritor pede a
compreensão dos aficionados em relação a suas explicações técnicas.
Quando é possível escrever um livro controverso a respeito da execução de
uma única sorte, a explicação arbitrária de um homem sobre as touradas
certamente será inaceitável para muitos.
E. H.
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub
pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.
Morte ao entardecer
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