CRÔNICA

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TIPOLOGIA TEXTUAL

A crônica
A crônica
Texto e interação – uma proposta de produção textual a partir de gêneros e projetos –
William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães – Atual Editora

Leia a crônica a seguir, de Mário Prata:

Na fila da liberdade (O Estado de S. Paulo, 16/7/2004)


É interessante notar as diferenças em filas de um lugar para outro.
Em Florianópolis, por exemplo, tanto nas filas de banco como nas
de supermercado, as pessoas ficam conversando, com calma,
esperando. Mesmo no Rio de Janeiro, enfrenta-se uma fila com
mais humor.
Em São Paulo, a fila é uma tortura. A fila é triste e interminável.
Parece que, se fosse possível, a gente mataria aqueles quatro ou
cinco que estão na nossa frente. E, se alguém conversa com alguém,
o assunto é a própria fila. Uns chegam a dizer palavras chulas.
Xingam, como se a culpa fosse da pobre mocinha que está do outro
lado da fila, muito mais aflita que os filenses.
Pois foi numa dessas filas que o fato se deu.
Era uma bela fila, de umas dez pessoas. E em supermercado,
com aqueles carrinhos lotados, olhando a mocinha tirar latinha por
latinha, rolo por rolo de papel higiênico, aquela coisa que não tem fim
mesmo. E naquela fila tinha um garotinho de uns 10 anos, que existe
apenas uma palavra para definir a figurinha: um pentelho. Como muito
bem define o Houaiss: “Pessoa que exaspera com sua presença, que
importuna, que não dá paz aos outros”.
Pois ali estava o pentelhinho no auge de sua pentelhação.
Quanto mais demorava, mais ele se aprimorava. E a mãe, ao lado,
impassível. Chegou uma hora que o garoto começou a mexer nas
compras dos outros. Tirar leite condensado de um carrinho e colocar
no outro. Gritava, ria, dava piruetas. Era o reizinho da fila. E a mãe, não
era com ela.
Na fila ao lado (aquela de velhos, deficientes e grávidas) tinha
um casal de velhinhos. Mas velhinhos mesmo, de mãos dadas. Ali,
pelos 80 anos. A velhinha, não aguentando mais a situação, resolveu
tomar as dores de todos e foi falar com a mãe. Que ela desse um jeito
no garoto, que ela tomasse uma providência. No que a mãe, de alto e
bom tom:
− Educo meu filho assim, minha senhora. Com liberdade,
sem repressão. Meu filho é livre e feliz. É assim que se deve
educar as crianças hoje em dia.
A velhinha ainda ameaçou dizer alguma coisa, mas se
sentiu antiga, ultrapassada. Voltou para a sua fila. Só que não
encontrou o seu marido, que havia sumido.
Não demorou muito e voltou o marido com um galão de
água de cinco litros e calmamente se aproximou da mãe do
pentelho, abriu e entornou tudo na cabeça da mulher.
O velhinho colocou o vasilhame (que palavra antiga) no
seu carrinho e, enquanto a mulher esbravejava e o pentelho
morria de rir, disse bem alto:
− Também fui educado com liberdade!!!
Foi ovacionado.
A crônica é um gênero textual que oscila entre
literatura e jornalismo e, antes de ser reunida em livros,
costuma ser veiculada em jornal ou revista. Os assuntos
abordados pelas crônicas costumam ser fatos
circunstanciais, situações corriqueiras do cotidiano,
episódios dispersos e acidentais, como, por exemplo,
um flagrante de esquina, o comportamento de uma
criança ou de um adulto, um incidente doméstico etc.
A crônica: entre o efêmero e o perene
(Antonio Candido. “A vida ao rés-do-chão”.
In: Para gostar de ler – crônicas.
São Paulo: Ática, 1992. v. 5. p. 6)
“[A crônica] não tem pretensões a durar, uma vez que é filha do jornal
e da era da máquina, em que tudo acaba tão depressa. Ela não foi feita
originalmente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra
num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou
forrar o chão da cozinha. Por se abrigar nesse veículo transitório, o seu intuito
não é dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão.
Por isso mesmo consegue quase sem querer transformar a literatura em algo
íntimo com relação à vida de cada um e, quando passa do jornal ao livro, nós
verificamos meio espantados que a sua durabilidade pode ser maior do que
ela própria pensava. Como no preceito evangélico, o que quer salvar-se acaba
por perder-se; e o que não teme perder-se acaba por se salvar. No caso da
crônica, talvez como prêmio por ser tão despretensiosa, insinuante e
reveladora. E também porque ensina a conviver intimamente com a palavra,
fazendo com que ela não se dissolva de todo ou depressa demais no
contexto, mas ganhe relevo, permitindo que o leitor a sinta na força dos seus
próprios valores.”
A crônica (Carlos Drummond de Andrade)
Crônica tem esta vantagem: não obriga ao paletó-gravata do
editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes
problemas; não exige de quem a faz o nervosismo saltitante do repórter,
responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece;
dispensa a especialização suada em economia, política nacional e
internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que
existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico etc., mas a
crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao
falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou o comentário
precisos que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de
loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e
não trivial, e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo
e a vadiação de espírito. Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na
divulgação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que
sirva a interesse pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da
imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem
procurar influir neles. Fazer mais do que isto seria pretensão descabida de sua
parte. Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da
manhã ou à espera do coletivo.
01. Segundo o que se depreende do texto, para Drummond a
crônica poderia ser caracterizada como:

a) uma atividade literária em prosa, veículo de notícias sobre


fatos da atualidade.
b) uma atividade jornalística, isto é, noticiário científico ou
literário, apresentado em linguagem simples e agradável.
c) uma atividade literária que visa menos à especificidade e
profundidade do assunto que ao entretenimento do leitor.
d) uma reportagem disfarçada, pois nela não se nota “o
nervosismo saltitante do repórter”.
e) uma reportagem, embora camuflada em atividade literária, na
qual o jornalista não deve ser faccioso.
02. Segundo Drummond, não é exato afirmar que:

a) a crônica (geral) deve ser fruto da fantasia e da vadiação de


espírito do cronista, embora não deva tratar de trivialidades.
b) o cronista geral não é obrigado a posicionar-se corretamente
diante dos grandes problemas.
c) embora haja cronistas especializados em economia, finanças
etc., não se obriga o cronista geral à especialização em
determinado assunto.
d) o cronista geral não pode ser confundido com repórter,
porque este visa à apuração de fatos, enquanto aquele deve
“circular entre os acontecimentos do dia”.
e) o cronista geral deve ser confiável, embora não precise
entender de nada, ao falar de tudo.
03. Assinale a alternativa em que ambas as expressões não se relacionam com o modelo de crônica apresentada por Drummond:

a) paletó-e-gravata; ponto de vista não ortodoxo


b) nervosismo saltitante; território livre da imaginação
c) prazo de atuação limitado; ponto de vista não trivial
d) informação ou comentário preciso; apuração imediata do fato
e) inclinação para o jogo da fantasia; especialização suada

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