Notas Soltas Da Corda e Do Carr - Sergio Godinho
Notas Soltas Da Corda e Do Carr - Sergio Godinho
Notas Soltas Da Corda e Do Carr - Sergio Godinho
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Lista de autores, por ordem de saída dos contos:
Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo
Madeira | Inês Pedrosa | Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel
Jorge Marmelo | Mário de Carvalho | Dulce Maria Cardoso | Pedro
Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado | JP
Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel
Ochoa | João Bonifácio | David Soares | Pedro Santo | Onésimo
Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira | Patrícia
Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio
Godinho
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sobre o autor
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Sérgio Godinho
Cantor, compositor, escritor, ator (teatro e cinema), Sérgio Godinho é, para citar
uma das suas canções clássicas, o verdadeiro “homem dos sete instrumentos”,
contando com uma carreira artística de invejável longevidade, que se prolonga há
40 anos de modo quase intocável. Começada pelo disco Os Sobreviventes, tem
inúmeros marcos, como Pano Crú, Domingo no Mundo e, recentemente, Mútuo
Consentimento. Para o público infantojuvenil, destacam-se os temas musicais das
séries televisivas Os Amigos de Gaspar e Árvore dos Patafúrdios, a peça Eu, Tu,
Ele, Nós, Vós, Eles (premiada pela Secretaria de Estado da Cultura, em 1980) e os
livros A Caixa (1993) e O Pequeno Livro dos Medos (2000), com ilustrações
também de sua autoria.
Editou ainda o livro de poemas O Sangue Por Um Fio (2009), o de crónicas
Caríssimas 40 Canções (2012) e tem colaborações variadíssimas, musicais e
literárias. Quarenta das suas letras foram também “revistas” por outros tantos
ilustradores, no livro Sérgio Godinho e as 40 Ilustrações (2011).
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Notas Soltas Da Corda
E Do Carrasco
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Sérgio Godinho
Como carrasco, não quero ser absolvido. Penso nisto, agora que
acabo de cometer um duplo crime. O meu carrasco não vai gritar
por socorro, ninguém o iria atender. Não mata por convicção e muito
menos por instinto. Mata por incumbência, assim como eu antes
assinei um papel a aceitar o lugar e fui pago para isso, não muito
bem mas também não muito mal. Fui pago à hora e ao mês, e
quando houve imprevistos de última hora, tirei o capuz, fui para casa
ainda a tempo de aproveitar parte da luz do dia – e voltei no dia
seguinte, à hora marcada. Dizem-me, à distância, que é terrível –
mas é assim.
Não demorou dois dias (tudo foi rápido) até matar fora da lei.
Duplo crime, contra outra pessoa e contra mim. Uns dizem que foi
acaso, outros que foi acaso, mas propositado. Intencionalmente, diz
ao acusador a lei. Por negligência, diz a lei dos meus advogados
(eram dois, nunca soube porquê), à procura do mal menor dos
vazios legais.
Rasguei a roupa os músculos o sangue doutra pessoa. Que
querem que diga? Que soube abater o inimigo? Que ele continua
vivo dentro de mim, e afia a faca comigo? Decidiram finalmente que
foi intencional, e eu disse para mim mesmo:
– Faca afiada, e por isso não vou matar mais ninguém.
Mente a religião com quantos olhos tem na cara, quando diz que
mesmo antes da morte regressa a cara da inocência a confortar-nos.
É ainda uma cara de capuz, não sabemos.
Matei alguém, nem bicho nem planta, uma pessoa. Não há
conforto, não quero mais esquecer-me desse dia e das suas
circunstâncias. Comandamos as nossas próprias circunstâncias, e daí
não há por onde fugir. Do luto dos outros, eu próprio me encarrego,
será a minha última tarefa.
É este o momento em que se é outra pessoa. E nessa liberdade,
eu acredito.