Notas Soltas Da Corda e Do Carr - Sergio Godinho

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Lista de autores, por ordem de saída dos contos:

Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo
Madeira | Inês Pedrosa | Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel
Jorge Marmelo | Mário de Carvalho | Dulce Maria Cardoso | Pedro
Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado | JP
Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel
Ochoa | João Bonifácio | David Soares | Pedro Santo | Onésimo
Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira | Patrícia
Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio
Godinho

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Contos Digitais DN
A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo
Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN.
Autor: Sérgio Godinho
Título: Notas Soltas Da Corda E Do Carrasco
Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto
Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso
ESCRIT’ORIO editora | www.escritorioeditora.com
© 2013 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora
ISBN: 978-989-8507-35-8

Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento
expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição o texto e o
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sobre o autor
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Sérgio Godinho
Cantor, compositor, escritor, ator (teatro e cinema), Sérgio Godinho é, para citar
uma das suas canções clássicas, o verdadeiro “homem dos sete instrumentos”,
contando com uma carreira artística de invejável longevidade, que se prolonga há
40 anos de modo quase intocável. Começada pelo disco Os Sobreviventes, tem
inúmeros marcos, como Pano Crú, Domingo no Mundo e, recentemente, Mútuo
Consentimento. Para o público infantojuvenil, destacam-se os temas musicais das
séries televisivas Os Amigos de Gaspar e Árvore dos Patafúrdios, a peça Eu, Tu,
Ele, Nós, Vós, Eles (premiada pela Secretaria de Estado da Cultura, em 1980) e os
livros A Caixa (1993) e O Pequeno Livro dos Medos (2000), com ilustrações
também de sua autoria.
Editou ainda o livro de poemas O Sangue Por Um Fio (2009), o de crónicas
Caríssimas 40 Canções (2012) e tem colaborações variadíssimas, musicais e
literárias. Quarenta das suas letras foram também “revistas” por outros tantos
ilustradores, no livro Sérgio Godinho e as 40 Ilustrações (2011).
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Notas Soltas Da Corda
E Do Carrasco
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Sérgio Godinho

E um dia o carrasco foi executado.


A noite anterior foi de tormentos e de luz intensa. Nada estava
ainda preparado para o golpe final, e já não era ele que o teria que
preparar. Técnica. Não se sabe.
Parece que houve um momento em que se apercebeu de tudo o
que não tinha sido. É esse o momento em que se é outra pessoa. E
deu-se conta das notas soltas da sua cabeça ainda intacta, muito
embora as não tivesse sequer, nunca na vida, formulado. Parece.
– Confesso:
um homem só tem de imperfeito aquilo que prefere.
Tinha vindo do triângulo clássico, equilátero e adolescente – numa
ponta a vítima, na outra o carrasco, e na terceira aquilo que eu
sempre seria, o salvador. Adolescente, equilátero e no entanto
imperfeito; apenas três pontas daquilo que queria descobrir e traçar,
e todas à mesma distância, parecia-me. Errado. Se queria ser vítima,
iria ter que ser salvo. Se queria ser o seu salvador, iria, em muitas
alturas, ter que ser vítima, ou pelo menos viver a seu mando. E não
sabia ainda o quanto os dois eriçam e – soube depois – legitimam o
carrasco.
Escolhi o caminho da lei, porque tinha que se confiar no presente
caminho da lei, certa ou errada no futuro. Foi-me confiada a parte
final da decisão, o último impulso.
É de leis que se trata. O meu antigo director-geral, quando
confrontado com os limites daquilo que está conforme à lei sem
estar de acordo com a ética mais profunda, presenteou-nos com o
argumento derradeiro, ao dizer: ‘A ética está na lei.’ Assim se ensina
no Livro Primeiro do Direito.
Fosse tudo assim tão simples, e não haveria nem política, nem
ética, e muito menos as duas ao mesmo tempo.
Mas, certo ou errado, era pegar ou largar. Consegui o emprego.

Alguém dirá: porque não escreve ele as suas memórias?


Porque as minhas memórias são as do esquecimento. Há duas
formas de esquecimento, o que afunda para sempre e o que flutua
escuro em águas escuras, e reaparece como que adaptado às
circunstâncias.
No momento de dar alguém à morte, apago todas as
circunstâncias. Não há choro nem prece nem pensar nem rebate
furioso da culpa nem resignação nem vontade de viver e muito
menos presunção de inocência ou gritos de instigação que me façam
estremecer. ‘A ética está na lei.’ Acredito por contrato nisto. Executo
à hora marcada.

Como carrasco, não quero ser absolvido. Penso nisto, agora que
acabo de cometer um duplo crime. O meu carrasco não vai gritar
por socorro, ninguém o iria atender. Não mata por convicção e muito
menos por instinto. Mata por incumbência, assim como eu antes
assinei um papel a aceitar o lugar e fui pago para isso, não muito
bem mas também não muito mal. Fui pago à hora e ao mês, e
quando houve imprevistos de última hora, tirei o capuz, fui para casa
ainda a tempo de aproveitar parte da luz do dia – e voltei no dia
seguinte, à hora marcada. Dizem-me, à distância, que é terrível –
mas é assim.

A única e última esperança do carrasco é o futuro, a salvação, a


abolição, a reposição, a sobrevivência da espécie. Uma triste
espécie, pensava eu em dias-não (todos os temos), de cara tapada e
antebraços expostos, cabelos brancos por dentro e pêlos negros por
fora. Aliás (assim ia o curso da história), uma espécie em extinção,
que ninguém se lembraria de resgatar e repor. Nenhum habitat o
quereria de volta.
Isto pensava eu em dias de inacção.

O ano tinha começado com um mês sem condenados à morte. E


depois outro mês igual, fevereiro, que era mais curto. A única
expectativa (tinha evitado a palavra ‘esperança’, por saber que não
há esperança em nenhuma das faces, no momento de executar a
lei) ia ser uma nova tarefa que me pudesse surgir em meados do
mês seguinte. Antes, nada. E nunca se sabia quantos indultos ou
adiamentos me iriam condenar à inactividade. Fica-se sempre um
pouco culpado por aquilo que se não aproveita da função, a que tão
bem dominamos.
Eu, que cortava sempre rentes as unhas quando havia trabalho,
ouvia-as crescer sem controle, um dia quase as vi num artigo de
revista, e imaginei-me igualmente de unhas encaracoladas como
alguns eremitas da Índia, a quem dos dedos saem búzios; e a
imagem reflectida da página não foi muito agradável de guardar, na
mente e na pasta dos recortes.
Escrevi a carrascos de outros palanques, não para lhes perguntar
nem o tamanho da corda nem a forma de evitar no laço o nó
corrediço, nome que aliás sempre me inspirou alguma repulsa, por
nele nunca ouvir o chiar do antigo sisal encerado, e o sobressalto
gutural do condenado.
Queria apenas saber como se sentiam quando não havia vítimas.
E, quando finalmente as havia, se ainda se sentiam um pouco
nervosos antes de executarem a tarefa, ou, pelo contrário, mais
calmos; se suavam das mãos, se se olhavam ao espelho antes de
pôr o capuz, e se era agradável de ver. Eu olhava, e a minha cara
parecia-me sempre mais branca e decidida, antes de passar a olhar
o mundo, os guardas o padre as testemunhas o director as famílias
quando as havia, pelos dois buracos do pano. E o homicida, cuja
cara provavelmente não conheceria (houve um par de más
surpresas). O homicida que mostrava as faces rosadas de medo, de
aceitação, de ódio, ou já um prenúncio neutro quase da ausência
iminente.

Tinha-me especializado no nó de sete laços, bastavam sete, e era


eu que o preparava em ocasiões especiais, quase que uma refeição
sem sabor nem alimento. Nada de mais, mas questão apesar de
tudo árdua, instintiva, calcular a distância mínima e máxima entre o
pescoço e a corda, o espaço entre o corpo e a alma.
E por vezes, preparar-me para ouvir o som da alma:
‘Eu não sou o teu espaço entre o pescoço e a corda’, como deveria
gritar o condenado na noite anterior à execução marcada.
Este espaço seria o da liberdade, e nisso eu acredito. A culpa não
é minha. Eu sou livre como sou, enviaram-me um postal que diz:
‘Amor é... ser livre como o carrasco’, e isso sem saberem que função
era a minha neste mundo. Foi uma boa piada, porque é aquilo que
eu sou, livre como o carrasco, e estou a sós comigo mesmo no
momento fatal. Mas a verdadeira boa piada é que acho que não sou
muito poucos, sou muitos, muitos até.

O corpo e a alma desentendem-se ao longo de todas as querelas,


interiores ou exteriores, e eu sei que planeiam a sua separação
eterna. Assim eu sentiria se o machado desferisse o seu ímpeto de
uma só vez, e dele soltasse uma cabeça do corpo. A liberdade da
lâmina é que a lâmina nunca se engana, ou seja (parafraseando a
máxima prosaica), ‘o material tem sempre razão’. Vivi já a época dos
enforcamentos, e depois passado à era da electricidade, e daí à
química, perguntei-me porque tinha ignorado a guilhotina e o
garrote. Nunca arranjei emprego nessas espécies entretanto
extintas, mas também nunca o procurei. Do garrote, só posso dizer
que é contra os meus princípios (explicaria porquê, se achasse que
vinha ao caso).
E a guilhotina teria sido o triunfo da mecânica e da eficácia, uma
homenagem ao homem que lhe deu o nome, ao serviço das voláteis
certezas da justiça (aliás a desconjuntada justiça); mas condenou-se
a si mesma ao tomar por bom o lema mal aplicado, ‘o material tem
sempre razão’. Porque houve uma vez em que, miraculosamente, as
mãos da vítima se soltaram, e com elas abertas parou a lâmina.
Ficou quase sem dedos, salvou a cabeça, acabou amnistiado e por
um tempo glorificado. A lâmina tornou-se romba em desuso desde
aí.
Simples: bastou esse só caso para salvar um condenado da
guilhotina, e condenar a guilhotina ao exílio perpétuo do tempo. E
aos resumos de História o seu inventor.
Ao menos o fuzilamento tem que alinhar homens, e fazê-los firmar
a arma no ombro e os pés na terra, para lá do tremor repartido,
vindo de cada cabeça, ‘quem treme das pernas ou tem dúvidas, erra
o alvo’. Houve um que errou, não se sabe qual. Fê-lo de propósito?
Algo de longe lhe lembrou que não devia acertar? Ou era só um
desajeitado aprendiz, indigno da ordem de ‘Fogo!’? Ou um sabotador
da intenção, um infiltrado, um inimigo a desmascarar, porque não
quis e não soube abater o inimigo?

Durara séculos, a transição das técnicas, e para mim tinha sido


insuficiente. Era agora o dedo em qualquer gatilho, tal qual e igual
ao gesto do fuzilamento. No fundo, odiava armas, porque matar
supõe um esforço físico, assim como uma faca tem que romper a
roupa os músculos o sangue. Premir um botão ou artilhar a seringa
eram-me incomodativos – muitas vezes repugnantes insignificantes.
Mas os pregadores da civilização ficam contentes com estes (assim
lhes chamam…) avanços. Vissem eles os condenados a quem o novo
método não se aplica, seja por teimosia do corpo vivo ou por defeito
técnico (e esses sim, deixam-me impaciente e suado) e não lhe
chamariam ‘avanços civilizacionais’, e ‘métodos mais humanos’, como
dizem em jornais da televisão. E acrescentam ainda ‘compaixão’;
maneira de deitar cano abaixo uma palavra mais que digna.

– Despacha-te e volta para casa, diria o instinto, se fosse ele a


instigar a desobediência.
Sucintamente: eu não tenho gosto em ver um corpo a morrer. O
espaço entre o corpo e a alma. Nem sei se gosto do conceito, a
pena de morte. O estertor, a cor que muda. Mas nunca consegui
olhar para mais ninguém, nesses momentos. Ali, éramos só nós os
dois, ainda que, sim, sejamos muitos.
Foi assim também, quando vi a minha filha acabar de nascer. Vi-a
roxa, depois arroxeada, depois rosa, e nenhum de nós chorou,
apenas a mãe chorou.
Foi assim que começou a vida do mundo.
‘Acabar de nascer’ é uma frase mais natural do que ‘acabar de
morrer’?
Recebi um telefonema de um amigo aflito: o M. (nosso amigo
comum) acabou de morrer.
Morreu, desorientou-se, morreu, pensei, e andei às voltas pela
casa, sem saber o que sentir, até que ele acabasse de morrer na
falta que tinha dele. Demorou tempo, não se está à espera que
alguém acabe de morrer, mesmo se esperado e predito.
E digo isto sem a ironia que o meu ofício supõe.
Sim, ajudo a acabar de morrer. Os condenados.
Conformados surpreendidos? O que fizeram eles antes? Por onde
andaram arrependidos? Quem afrontou a lei?
Ou não fosse o meu trabalho uma forma assistida de suicídio.

Houve um tempo em que aos prisioneiros era imposto o capuz.


Sempre que saíam do casulo das celas, não lhes era permitida
qualquer transformação, tinham que usar capuz, e, de dentro dele,
verem só uma forma igual à sua, nunca uma outra cara. Sabendo
que não é assim que as pessoas se reconhecem – é pela diferença e
não pela semelhança. Havia gordos e magros, altos e baixos, vozes
sonantes e sumidas, mas era-se mais cego do que os cegos, quando
não se enfrentava uma cara que não as dos guardas. Não há iguais
entre iguais, era assim a lei e a sentença do capuz.
Foi abolida por ser inumana, mas ninguém achou inumana a
escolha do condenado:
– Quero morrer de capuz para não ver a minha morte – ou:
– Quero ver a minha vida até ao fim.
A minha, que se escolhe na obrigação, é negra e cristalina:
– Uso o capuz por uso, social e pessoal.
Mas houve um que se desmascarou. Um que afastou o capuz, que
quis morrer sem que nada o impedisse de respirar. Desmascarou-se,
olhou-me, disse com a cabeça um pouco de lado:
– Sei quem tu és.
Ou, pelo menos, pareceu-me que sorriu.
Eu sabia quem ele era, e estava consciente do que tinha que fazer.
Consciente demais, mesmo. Conhecia-o desde há muito, de
adolescente, talvez, e nem sequer era um amigo, era só alguém
frequente nas ruas e nos cafés, na mercearia, na oficina.
Ia chegar a sua hora, última ou primeira segundo as crenças.
Viu-me os olhos, suei muito, nessa primeira hora do dia, e do que
me veio à boca, tive o hálito seco ácido espesso. Nada compensa
esses gostos do bem e do mal. Técnica. Não se sabe.
Dormi pesado mas mal toda essa noite, vezes e vezes acordado
pelos tremores do sonho que esquecia no momento de ir lembrá-lo.
Uma cara escura na água escura. Não conseguia dar-lhe luz, e
queria perceber se me reconhecia, do escuro para onde o tinha
acabado de mandar. De um só gesto justiceiro e compassivo (assim
se diz agora), tinha-o feito apagar a luz intensa.
Sei que foi a partir dessa manhã que perdi qualquer paladar ou
sentido de obrigação perante o costume da tarefa.

Não demorou dois dias (tudo foi rápido) até matar fora da lei.
Duplo crime, contra outra pessoa e contra mim. Uns dizem que foi
acaso, outros que foi acaso, mas propositado. Intencionalmente, diz
ao acusador a lei. Por negligência, diz a lei dos meus advogados
(eram dois, nunca soube porquê), à procura do mal menor dos
vazios legais.
Rasguei a roupa os músculos o sangue doutra pessoa. Que
querem que diga? Que soube abater o inimigo? Que ele continua
vivo dentro de mim, e afia a faca comigo? Decidiram finalmente que
foi intencional, e eu disse para mim mesmo:
– Faca afiada, e por isso não vou matar mais ninguém.
Mente a religião com quantos olhos tem na cara, quando diz que
mesmo antes da morte regressa a cara da inocência a confortar-nos.
É ainda uma cara de capuz, não sabemos.
Matei alguém, nem bicho nem planta, uma pessoa. Não há
conforto, não quero mais esquecer-me desse dia e das suas
circunstâncias. Comandamos as nossas próprias circunstâncias, e daí
não há por onde fugir. Do luto dos outros, eu próprio me encarrego,
será a minha última tarefa.
É este o momento em que se é outra pessoa. E nessa liberdade,
eu acredito.

Não fugi. Entreguei-me.


Às mãos do meu sucessor.
De corpo e alma, pensei ainda.

Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

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