António Nóvoa Currículo e Docência
António Nóvoa Currículo e Docência
António Nóvoa Currículo e Docência
António Nóvoa
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Este texto limita-se a transcrever a intervenção oral proferida no 1º Colóquio
Internacional de Políticas Curriculares, no dia 13 de Novembro de 2003.
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transformar os alunos em meros repetidores da escola (já Nietzsche dizia que um mestre se
devia sentir mal retribuído se os seus discípulos permanecessem apenas e sempre discípulos).
• Argumentarei, em primeiro lugar, que nos tem faltado uma teoria da pessoa (ou,
melhor dizendo, da pessoalidade), uma teoria que nos ajude a compreender as pessoas
na sua singularidade e diversidade, contribuindo para o reforço dos professores na sua
inteireza, como pessoas e como profissionais, como profissionais e como pessoas.
• Argumentarei, em segundo lugar, que temos ignorado – ou, pelo menos, temos
prestado pouca atenção – à dimensão da partilha, cada vez mais essencial numa
escola que tem de cuidar de alunos tão diferentes e que, para isso, necessita de
professores habituados ao diálogo, à relação com o outro, ao trabalho colectivo, à
consolidação de rotinas e culturas profissionais baseadas na cooperação.
• Argumentarei, por último, que a escola nem sempre tem sido o lugar da prudência,
num duplo sentido, social e científico. “Social”, porque temos acenado, uma e outra
vez, com discursos de salvação e de redenção que os factos se encarregaram de
desmentir. “Científico”, porque nos deixamos arrastar, por vezes, para uma arrogância
da ciência e da técnica, que trouxe um “progresso” que não se traduziu numa vida
melhor, numa vida mais decente.
É a partir destas três entradas que organizarei o meu discurso, que se situa num
esforço para pensar a refundação da escola. Historicamente, a escola falhou muitas
promessas, mas também cumpriu alguns desígnios. Não vale a pena travar este debate sob o
signo da acusação ou do maniqueísmo. Vale a pena, sim, juntar vozes e presenças que não
repitam apenas, como escreveu Albert Jacquard, que a escola tem que estar ao serviço da
sociedade, mas que digam também que a sociedade tem que estar ao serviço da escola.
O debate não pode ficar fechado nos interesses das famílias ou dos alunos, nas
necessidades da economia ou da sociedade, nas posições do Estado ou das comunidades
locais, nos pontos de vista dos professores ou dos especialistas. É precisa esta gente toda para
travar o debate sobre a escola e para encontrar rumos novos para uma instituição que, apesar
de tudo, ainda não fomos capazes de substituir por outra melhor.
Não me verão optar por uma ou por outra margem do debate. O pior de tudo é
ficarmos numa margem, gritando contra os que estão do outro lado. Adopto, pois, a metáfora
da ponte para situar a minha intervenção. E recorro mesmo ao escritor Julio Cortázar quando
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diz que uma ponte só é verdadeiramente ponte quando alguém a atravessa. É justamente para
esta travessia que gostaria de vos convidar durante a próxima hora.
1. A PESSOA
Lembram-se do princípio do século XX. Do modo como então se elaborou uma crítica
fortíssima à “escola tradicional”. Recordo-me, por exemplo, de um texto notável de Maria
Montessori sobre a nova criança. Esta inquietação deu origem a estudos e pesquisas sobre a
infância e o seu desenvolvimento. A crítica à escola definiu-se, também, como uma tentativa
para abandonar modelos tradicionais de transmissão dos saberes e para valorizar os processos
de aprendizagem centrados na criança. Faltou, no entanto, uma teoria intermédia, entre a
criança e a aprendizagem, uma teoria sobre a pessoa-aluno.
Esta ausência tem dificultado a nossa reflexão e, sobretudo, a nossa capacidade para
compreendermos (e darmos respostas pertinentes) aos novos alunos (às novas pessoas-
alunos) que têm invadido (e ainda bem) as nossas escolas. Ao longo do século XX, baseámos
a acção pedagógica numa espécie de “modelo ideal” de aluno – o tal aluno médio, que nunca
existiu, mas que uma relativa homogeneidade social e cultural das turmas permitia imaginar,
dando origem a práticas educativas razoavelmente coerentes.
Hoje, este ideal-tipo de aluno desapareceu completamente e temos diante de nós uma
diversidade “explosiva”, constituída por alunos de todas as origens; de alunos que querem
estar na escola, mas que não têm qualquer intenção de estudar ou de aprender. É difícil tratar
um doente que não se quer curar (mas, em certos casos, é possível recorrer à anestesia). É
impossível ensinar um aluno que não quer aprender. E para esta situação, nenhum de nós
estava verdadeiramente preparado.
Ora esta relação (a qualidade desta relação) exige que os professores sejam
pessoas inteiras. Não se trata de regressar a uma visão romântica do professorado (a
conceitos vocacionais ou missionários). Trata-se, sim, de reconhecer que a necessária
tecnicidade e cientificidade do trabalho docente não esgotam todo o ser professor. E
que é fundamental elaborar uma “terceira proposta”, que reforce a pessoa-professor e
o professor-pessoa.
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sentidos no seio de uma profissão que está “fragmentada”.
2. A PARTILHA
A apresentação deste Colóquio destaca a análise dos aspectos culturais, éticos, raciais/étnicos,
de género e relativos à equação “poder-saber-conviver”. Situa-se assim (e bem) a segunda
questão emergente de um debate sobre o currículo e a contemporaneidade que gostaria de
discutir convosco: primeiro, numa referência curricular geral; depois, numa aproximação
mais directa às questões da formação de professores.
Fá-lo-ei a partir dos dois conceitos que estão no texto de apresentação do Colóquio: o
conceito de diferença e o conceito de conviver. Um e outro têm dado origem a inúmeras
controvérsias. De forma necessariamente breve, apresentar-vos-ei o meu próprio ponto de
vista, sabendo que vou ser bastante polémico.
Há hoje, no mundo da educação, pelo menos no plano dos princípios, uma atenção
grande à diferença (às diferenças). A realidade está ainda, muitas vezes, aquém das nossas
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intenções. Mas esta atenção traduz a vontade, genuína, de dar resposta aos novos alunos que
chegam às escolas, com culturas, linguagens e projectos de vida muito diferentes daqueles a
que estávamos habituados. É uma boa notícia esta sensibilidade de educadores e pedagogos.
Mas ela não deixa de levantar problemas e dificuldades que nem sempre temos sabido
enfrentar da melhor maneira. Assim sendo, e manifestando-me contra algumas correntes
pedagógicas muito fortes, gostaria de argumentar perante vós contra a infantilização e contra
a comunitarização da escola.
Contra a infantilização da escola, porque uma aceitação acrítica das culturas infantis e
juvenis dominantes poderia levar-nos a aproximar a escola do mundo social de tal maneira
que deixaria de haver distinções. E então a escola seria uma instituição igual às outras
instituições e perderia todo o seu sentido. São os jogos de computador na sala de aula, são as
séries de televisão nos programas de ensino, são os jogadores de futebol nos livros escolares.
Eu sei que a intenção é boa e que temos de ser engenhosos no nosso esforço de conquistar as
crianças. Mas temos de exercer uma enorme vigilância crítica para que estes “expedientes”
não se transformem, pouco a pouco, na “essência” da escola. Gaston Bachelard disse um dia,
invertendo os termos habituais, que temos de substituir o “aborrecimento de viver” pela
“alegria de pensar”. E acrescentou que “não é a Escola que deve ser feita à imagem da Vida,
mas sim a Vida à imagem da Escola”. O mais importante é adquirir os instrumentos do
pensamento e da cultura, é aprender a trabalhar o conhecimento, o que implica uma
actividade metódica, rigorosa, sistemática. Sem isso, a escola torna-se dispensável.
Contra a comunitarização da escola, porque aquilo que nos junta no espaço escolar
não são, em primeiro lugar, as afinidades ou os laços afectivos. O que nos junta é a vontade
de ensinar as regras da vida social, de aprender a viver em conjunto. Philippe Meirieu, numa
afirmação muito provocatória, fala dos “bárbaros” que durante muito tempo mantivemos fora
das escolas e que agora a ocupam com todo o direito e legitimidade. Ele diz que estes alunos
estão, muitas vezes, inseridos em grupos sociais quentes, nomeadamente em bandos juvenis,
com lideranças carismáticas e ambientes de grande “solidariedade interna”. E afirma, por
isso, que eles não precisam que a escola lhes dê “mais comunidade”, mas sim que ela lhes dê
“mais sociedade”. Não se trata tanto de conviver, mas sim de aprender as regras do convívio,
isto é, a aprendizagem do diálogo, da democracia e das regras de vida em sociedade. Quando
a escola cede aos desvios comunitaristas renuncia à mais nobre das suas missões: permitir
que as crianças acedam a um mundo diferente daquele em que nasceram e nele participem de
pleno direito.
Eu sei que estou a ser excessivo. Intencionalmente excessivo. Mas é para marcar com
nitidez as contradições que existem nestes dois processos a que chamei infantilização e
comunitarização da escola. Reside aqui a segunda questão emergente do debate curricular. É
preciso trabalhar na contradição, trabalhar com estas contradições, sabendo que elas não têm
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uma solução definitiva, mas tendo uma consciência forte dos desvios para que nos podem
arrastar. Não devemos nunca esquecer a dupla matriz da escola: lugar de partilha do saber e
lugar de aprendizagem das regras da vida em sociedade.
Mutatis mutandis esta é, também, uma das questões centrais da formação de professores. No
mesmo duplo plano que acabei de referir: a partilha de saberes e as práticas de trabalho
cooperativo. A emergência do professor colectivo (do professor como colectivo) é uma das
principais realidades deste início de século. Já se tinha assistido a este fenómeno noutras
instituições, por exemplo na saúde, na engenharia ou na advocacia, mas na escola, apesar da
existência de algumas práticas colaborativas, não se tinha verificado ainda a consolidação de
um verdadeiro “actor colectivo” no plano profissional.
Por um lado, a ideia de escola aprendente, isto é, da escola como o lugar da formação
dos professores, como o espaço da análise colectiva das práticas, enquanto rotina sistemática
de acompanhamento, de supervisão e de reflexão sobre o trabalho docente. Não se trata de
acrescentar novas tarefas à longa lista de tarefas que os professores são já chamados a
desempenhar. Nem se trata de desviar a atenção dos professores do trabalho pedagógico
propriamente dito. Trata-se, sim, de fazer evoluir a profissão de uma dimensão individual
para uma dimensão colectiva. Trata-se, sim, de transformar a experiência colectiva em
conhecimento profissional.
E para isso precisamos de uma teoria do colectivo, da docência como colectivo, que
está ainda nos seus primeiros passos. Esta teoria elabora-se no espaço de um conhecimento
partilhado, mas também no espaço de uma ética partilhada. Não há respostas feitas para o
conjunto de dilemas que os professores são chamados a resolver numa escola marcada pela
diferença cultural e pelo conflito de valores. A teoria de que vos falo integra,
inevitavelmente, esta ética profissional, que é também uma ética social, pública, uma ética de
compromisso. Se é verdade, como diz Paulo Freire, que é o diálogo que nos faz pessoas,
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sublinho agora que é a partilha com os colegas que nos faz educadores.
3. A PRUDÊNCIA
Chego, assim, à terceira parte desta intervenção. Sobre a prudência, sobre a decência,
sobre a necessidade de um conhecimento prudente para uma vida decente
(Boaventura de Sousa Santos). A frase parece de uma enorme evidência e
simplicidade. Ela encerra, no entanto, toda uma reflexão epistemológica sobre o saber,
a sua produção e a sua utilização. Estamos no cerne do debate sobre o currículo e a
contemporaneidade.
O debate tem de ser travado com uma enorme precaução e uma grande
humildade. Temos de reconhecer, humildemente, a dificuldade de traçar caminhos
claros, nestes tempos de incerteza. Mas não podemos parar. A educação continua a
acontecer, todos os dias, nas nossas escolas. É este o drama dos professores, quando
são colocados perante uma sistemática interrogação crítica, que relativiza os
conhecimentos e os valores. Não é possível fazer educação no cinismo: ninguém pode
ensinar, de facto, se não acreditar que vale a pena ensinar aquilo que está a ensinar,
que aquilo que está a ensinar tem um valor para os seus alunos. Importa, por isso, que
o debate traga uma lucidez crítica sem nos arrastar para a resignação ou para a
renúncia. Temos de ser capazes de construir verdades, verdades provisórias é certo,
mas verdades que nos permitam construir uma acção séria e coerente.
Coloquemos então as duas questões clássicas: O que é que vale a pena ser
ensinado? E como é que deve ser ensinado?
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Reboul: Vale a pena ser ensinado tudo o que une e tudo o que liberta. Tudo o que
une, isto é, tudo o que integra cada indivíduo num espaço de cultura e de sentidos.
Tudo o que liberta, isto é, tudo o que promove a aquisição do conhecimento, o
despertar do espírito científico. Esta resposta é útil, mas não chega. Ela deve ser
completada por uma terceira injunção: Tudo o que torna a vida mais decente. Quero
dizer, na senda do que atrás vos expliquei, que o pensamento curricular tem de
interrogar-se sobre se a relação entre o saber e a vida humana, entre a ciência, a
consciência e a decência. Aproximamos aqui um problema que é claramente
“político”, mas que é também “ético”, no sentido referido pelo neurologista António
Damásio quando relaciona as emoções, os sentimentos e a consciência. Este é, talvez,
o grande desafio da contemporaneidade.
Mutatis mutandis esta é, também, uma das questões centrais da formação de professores.
Estamos perante a necessidade de reforçar os professores como conhecedores, isto é, como
produtores de conhecimento. E é por isso que são tão importantes as estratégias de formação
de professores baseadas na investigação.
Um dos nossos dramas, como diz David Labaree, é que ensinar é uma tarefa de
enorme complexidade... mas que parece fácil. Não é. Exige mestria, competência e tacto
pedagógico. A organização das situações de aprendizagem, a progressão dos alunos ou a
concepção de dispositivos de diferenciação pedagógica são tarefas muito complexas. Ensinar
só é fácil para quem nunca entrou numa sala de aula.
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transposição didáctica explica a passagem dos saberes a currículo formal (objectivos e
programas), depois a currículo real (conteúdos de ensino) e, finalmente, a aprendizagens
feitas pelos alunos. Estes trabalhos foram muito importantes, na medida em que explicaram o
processo de transformação (e não de mera transmissão) dos saberes. Mas tem faltado uma
compreensão mais exacta do trabalho docente. É por isso que, em vez de transposição
didáctica, tenho vindo a falar de transposição deliberativa.
Com este conceito quero sublinhar dois pontos: 1º Que o acto de ensino obriga
sempre a uma decisão-em-situação, face a uma realidade concreta, imprevisível, que exige
respostas imediatas; 2º Que o acto de ensinar está impregnado de “saberes”, mas também de
“valores”, o que implica uma deliberação, que comporta uma dimensão cognitiva, mas
também ética. Volto a um dos pontos essenciais da minha intervenção: o trabalho educativo
implica sempre um horizonte ético, implica sempre a mobilização de um conhecimento
prudente para uma vida decente.
Não basta pensarmos os saberes. Não basta preocuparmo-nos com a sua transmissão e
aquisição pelos alunos. Temos, também, de nos interrogar sobre as consequências sociais
destes saberes, sobre o modo como a sua mobilização contribui (ou não) para uma vida
melhor. E é esta fronteira – a existência de uma teoria do conhecimento prudente – que
distingue, em última análise, o currículo da modernidade (tal como ele se organizou ao longo
do século XX) do currículo da contemporaneidade (tal como gostaríamos que ele se
organizasse no século XXI). É o debate que temos pela frente nos próximos anos.
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prudentes. Ser professor, hoje, é recusar as modas, a novidade pela novidade, e
construir um caminho pedagógico com os colegas, um caminho que busca a sensatez e
a coerência.
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