Capítulo Negacionismo - Paulo Beer

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O negacionismo como forma de mobilização

Paulo Beer

Termo que tragicamente galga popularidade num dos momentos mais trágicos da história
brasileira, o negacionismo reúne, sob um mesmo nome, diversas formas de indesejáveis
que partilham uma característica central: a recusa daquilo que é assinalado enquanto
verdade. Embora colocar a questão nesses termos pareça ser suficiente para defini-la, a
dificuldade real é bem maior. Isso porque localizar a verdade enquanto referência na
definição de seus desvios é uma tarefa tão traiçoeira quanto inescapável: aqueles que se
embrenham nesta empreitada arriscam contribuir com a sustentação de uma amálgama
que, ao nomear indiscriminadamente recusas da verdade, acaba por reunir expedientes
radicalmente distintos sob uma mesma designação.
É o que se observa, por exemplo, na circulação irrestrita que o termo
‘negacionismo’ apresenta (assim como suas formas aparentadas como fake-news ou fatos
alternativos): facilmente encontra-se uma discussão em que todas as partes envolvidas
acusam, umas às outras, de serem negacionistas em relação ao mesmo ponto debatido.
Daí a insuficiência de abordar o negacionismo somente a partir de sua inadequação em
relação àquilo que é enunciado enquanto verdadeiro: o que se produz é somente a
reprodução de um jogo de disputa pela verdade.
Neste capítulo, proponho um deslocamento desse modo de compreensão, para o
qual a verdade deve ser compreendida enquanto um processo, e não somente um
qualitativo ligado à adequação (verdadeiro ou falso). É olhando para esse processo que
podemos situar o negacionismo não enquanto um desvio, mas como uma combinação
específica de expedientes usualmente tomados enquanto “normais”. Não se trata,
portanto, de tomar o negacionismo enquanto uma aberração, mas sim como uma
possibilidade de relação com o saber. Processo este que, por sua vez, pode ser usado com
o intuito de instrumentalizar maneiras específicas de mobilização política.

O que é o negacionismo?

Como, então, definir o negacionismo? Ora, a resposta mais comum parece


bastante imediata: basta estabelecer de maneira clara os parâmetros de veracidade a partir
dos quais os fatos devem ser julgados, de modo a distinguir o verdadeiro e o falso.
Expediente que, sempre que possível, recorre ao argumento “científico” para supor uma
definição clara e precisa daquilo que seria a verdade, e deslegitimar seus opositores.
Entretanto, mesmo nos casos em que efetivamente se trata de um tema abordado por
estudos científicos, um esforço como esse dificilmente produz normas e prescrições
universais capazes de diferenciar negacionistas e não-negacionistas. Isso porque a própria
ciência, ou mais especificamente, a filosofia da ciência, apresenta uma dificuldade
constitutiva em estabelecer parâmetros indiscutíveis de verdade e falsidade.
Com bem aponta Ian Hacking (2005), o máximo que se consegue alcançar são
formas históricas do ‘verdadeiro’. Compreensões da verdade como correspondência ou
adequação — sustentadas a partir de uma ideia de adequação entre coisa e intelecto —
mostram sua limitação no fato de que a passagem do intelecto à coisa é sempre mediada
por elementos contingentes, como cultura, linguagem etc. Algo que se reatualiza na
sempre presente lacuna entre conhecimento formal e o mundo (BALIBAR, 2012).
Contudo, não se deve inferir que o reconhecimento dessa restrição resulte numa
desvalorização do conhecimento científico; trata-se, isso sim, de uma complexificação de
como se deve compreender seu valor. De onde se indica a necessidade de entender o valor
da ciência não somente a partir de seu rigor epistemológico, mas também por diversos
outros fatores, como sua capacidade de produção de novos fatos, pela constituição de uma
comunidade aberta ao contraditório e pela proficuidade de seus esforços (HACKING,
1983/2012).
A definição do que seria verdadeiro, uma vez que não responde ao simples
reconhecimento de uma verdade transcendental, implica num campo de negociação que
reúne diversos elementos. Evidentemente há discussões epistemológicas metodológicas
presentes, já que se trata do estabelecimento dos acordos sobre como os enunciados
verdadeiros devem se organizar. Entretanto, somente epistemologia e metodologia não
são suficientes na definição do verdadeiro, ou, em certos casos, na decidibilidade entre
possibilidades concorrentes de enunciações históricas da verdade. Isso indica que que
esse campo de negociação em que diferentes propostas epistemológicas e metodológicas
são apresentadas — aonde diferentes teorias são comparadas e somente algumas
sobrevivem — não se define somente por argumentos sustentados a partir de algum tipo
de garantia epistemológica: há sempre presente uma dimensão política (STENGERS,
1993/2000).
Essa dimensão política pode ser compreendida inicialmente pelo fato de que a
verdade é algo que diz respeito a todos, logo trata-se de algo que se inscreve
necessariamente no campo bem comum, da política. Mas, para além disso, deve-se
reconhecer que a verdade carrega consigo questões ligadas a poder, uma vez que há poder
em ser aquele que enuncia o verdadeiro. Finalmente, a própria questão da decidibilidade
se inscreve no campo político: uma vez que não há uma garantia externa que defina a
forma correta de enunciação do verdadeiro, trabalha-se com produção de consensos. Tais
consensos abarcam tanto definições básicas sobre premissas epistemológicas e
metodológicas, quanto searas menos objetivas como o interesse de uma comunidade num
determinados tipos de pergunta em detrimento de outros (HACKING, 2000; STENGERS,
1993/2000);
Isso não significa que a ciência possa ser reduzida a expedientes políticos. A
presença de uma dimensão política não indica que ela explique todas as decisões, ou
sequer a maior parte delas. Ainda mais importante, não significa que o valor do
conhecimento científico seja menor por causa disso. Isso indica que o modo de produção
de conhecimento não se limita à simples aplicação de normas epistemológicas e
metodológicas definidas, mas deve ser compreendido como uma instituição que congrega
diferentes linhas de força de maneiras distintas, a depender do contexto e do objeto de
estudo (LATOUR, 2012).
Tal consideração é central para se compreender o negacionismo, uma vez que uma
definição um pouco mais elaborada do fenômeno indica não a negação de verdades
específicas, mas a recusa da própria possibilidade de produção de consensos. Afinal, que
saberes possam ser negados é um dos pressupostos das ciências; o que problema parece
estar em outro lugar. Tampouco são todos os consensos que são deslegitimados: pesquisas
mostram que a confiança da população brasileira na ciência é bastante alta
(CASTELFRANCHI, 2013), de modo que aquilo que se vê geralmente sob a rubrica do
negacionismo não consiste num tipo de negação geral do valor da ciência, senão num
modo particular de apreciação de assuntos específicos. Além disso, vê-se que muitas das
“pautas” negacionistas não incidem em polêmicas atuais do campo científico, mas têm
como objeto questões minimamente resolvidas entre os cientistas — reforçando que se
trata de um tipo de recusa de processos de produção de consensos. Isso pode ser visto,
por exemplo, em negações atuais do caráter antropogênico do aquecimento global: uma
questão já superada pelos estudiosos, mas que continua a ser tensionada em grupos
específicos (ESTEVES, 2014; LEITE, 2015).
Nessa toada, deve-se reconhecer que o negacionismo não se limita a questões
ligadas à ciência, mas reúne diversos campos em que se faz presente um tipo particular
de cristalização do pensamento — ligado à deslegitimação de consensos. Reconhecer esse
traço permite abarcar as diferenças daquilo que é usualmente apontado enquanto posições
negacionistas a partir de um ponto comum, produzindo unidade naquilo que parece ser
uma amálgama. Afinal, há diferenças em se pensar sobre o negacionismo científico
(ligado ao que nomeamos como “fatos alternativos”) e sobre negacionismos históricos,
ligados a movimentos revisionistas.
O negacionismo científico faz uso de uma apropriação mal-intencionada de
debates sobre a ciência. Parte-se de uma abordagem crítica que observa a dificuldade em
se definir parâmetros metodológicos e epistemológicos que definam a unidade do fazer
científico. Entretanto, o que se propõe a partir é um relativismo total que permitiria
recusar estudos científicos pela acusação de que eles seriam desenhados para produzir os
resultados desejados. Junto a isso, há também a proposição de estudos não aceitos pela
comunidade científica, os quais têm sua validade defendida a partir de acusações de viés
da própria comunidade.
A distância entre esse tipo de argumentação e a proposição de uma compreensão
não unicista e normativa de ciência é nítida. Como indica Hacking (1999; 2000), embora
não seja possível estabelecer uma referência externa que garanta a veracidade do
conhecimento — algo que implica a existência de diferentes formas de veracidade —,
isso de maneira alguma significa que o fazer científico permita tal grau de manipulação:
junto aos limites impostos pela comunidade científica, há também a resistência dos
próprios objetos de estudo.
Em seu livro The Social Construction of What? [A construção social de quê?]
(1999), Hacking aponta a um modo de crítica relativista que tentaria deslegitimar o
conhecimento produzido a partir da revelação de possíveis interesses e compromissos
presentes na formulação dos saberes. Por exemplo, como se o conhecimento produzido
sobre a eficácia das vacinas contra COVID-19 pudesse ser descartado pelo fato de parte
dos estudos ter sido realizada por empresas que têm interesses econômicos em jogo.
Segundo o autor, esse tipo de crítica radical nomeada como “desmascaramento” apresenta
dois pontos de fragilidade: primeiro, na desconsideração de que todo e qualquer
conhecimento é produzido de modo inseparável de interesses “impuros”; segundo, na
consideração indiferenciada do impacto desses interesses no conhecimento produzido.
Pode-se imaginar que há empresas que efetivamente manipulam dados com o intuito de
produzir os resultados esperados; contudo, isso não significa que todo e qualquer estudo
realizado por uma empresa com interesses econômicos deva ser descartado pelo simples
fato de esses interesses existirem.
Desse modo, o negacionismo pode ser compreendido como um processo que
instrumentaliza a desconsideração da complexidade contida neste tipo de exame.
Instrumentalização essa que faz com que um posicionamento crítico em relação às
interferências ou contingências presentes na produção de conhecimento seja
transformado na deslegitimação do processo de produção de conhecimento. Ou seja, tanto
a variabilidade do conhecimento quanto a inevitabilidade de seus atravessamentos
políticos são apresentadas de modo a desconstruir o valor dos consensos estabelecidos.
Entretanto, a fragilidade conceitual de como essa deslegitimação é realizada continua a
deixar em aberto a questão de por que tantos indivíduos se engajam nela. Nesse sentido,
parece insuficiente tomar o negacionismo somente como uma mazela a ser combatida na
disputa pela verdade e na defesa da legitimidade dos consensos produzidos. Veremos isso
à frente.
No caso do negacionismo histórico, o questionamento se dirige à legitimidade das
narrativas apresentadas. Expediente já presente em projetos revisionistas que, partindo de
questionamentos sobre a parcialidade das versões e da não objetividade das memórias,
não se intimidam em distorcer ou exagerar fatos (SANTANA & MAYNARD, 2017;
VIDAL-NAQUET, 1988). Novamente encontramos a combinação indicada acima: uma
crítica referente à impossibilidade de estabelecimento de um verdadeiro inquestionável é
mobilizada de modo a destituir os consensos produzidos por um grande número de
pesquisadores. Assim como no negacionismo científico, não se trata de um processo que
visa uma crítica do consenso estabelecido de modo a se instaurar outro consenso — algo
necessário em qualquer campo de pesquisa. O que se vê é a deslegitimação não só de um
consenso específico, mas da própria legitimidade da comunidade de pesquisadores em
estabelecer consensos que não se adequem àquilo visado pelos negacionistas.
Tal distinção fica mais clara ao considerarmos um terceiro emprego usual do
termo negacionismo, ligado à recusa de conteúdos usualmente mobilizados pela mídia.
Nessa derivação, nomeada como fake-news, o fervor relativista presente nas formas
apresentadas anteriormente parece ainda mais intenso. Neste caso, vê-se como esforços
de transparência e de explicitação das bases sobre as quais se constroem as notícias são
facilmente suplantados. Em parte, isso passa pela insistência e pelo bombardeio de
narrativas intencionalmente distorcidas (ZANATTA & ABRAMOVAY, 2019), porém
há algo que deve ser considerado sobre o engajamento dos atores envolvidos.
Por um lado, é patente que esse tipo de difusão é intensificado por recursos
tecnológicos recentes (SILVA JUNIOR & BEER, 2021; VILALTA, 2020). Porém, estes
recursos parecem cumprir duas funções distintas: por um lado permitem uma agência
inédita sobre o compartilhamento e difusão de conteúdo; por outro, permitem a realização
de diagnósticos sobre os interesses, medos e identificações de seus usuários. Um recente
estudo sobre o compartilhamento de informações falsas no Twitter mostra que conteúdos
falsos geram mais engajamento dos usuários, circulando com maior amplitude e
velocidade que informações verdadeiras (VOSOUGHI, ROY & ARAL, 2018). Além
disso, são usualmente acompanhados de uma sensação de “novidade”. Neste ponto,
encontramos um outro elemento que permeia a questão da verdade e do conhecimento:
para além de debates epistemológicos e da consideração de uma dimensão política, há
também os efeitos subjetivos que o conhecimento produz nos indivíduos.
Se é possível definir o negacionismo para além de um ataque à verdade, como um
ataque à possibilidade de construção de consensos que apresentem um grau mínimo
de permeabilidade à diferença, é necessário questionar a função que tal expediente
realizaria para os indivíduos envolvidos. Algo que não diz respeito à simples
consideração da veracidade de um fato, mas que demanda a compreensão de como
lidamos com o conhecimento. Deve-se pensar, assim, numa dinâmica não restrita a
funções informacionais ou intelectuais veiculadas nos saberes produzidos, mas que
também envolva os processos afetivos indissociáveis destes. Para tanto, a teoria
psicanalítica pode oferecer algumas ideias interessantes.

A verdade e o saber

Primeiramente, trata-se de tomar a relação entre verdade e saber enquanto um


processo que articula, de maneira indissociável, representações e afetos. Mais
especificamente, na psicanálise, podemos pensar em um processo dialético em que
verdade e saber se tensionam numa dinâmica opositiva (LACAN, 1966/1998). Nesse
sentido, a principal característica da verdade é sua função disruptiva em relação ao
conhecimento, consistindo assim numa forma de questionamento ou negação que emerge
do inconsciente. Tal proposição articula-se com a ideia de que qualquer conhecimento
sobre o desejo (no sentido de conhecer o objeto adequado ao desejo) é inadequado,
portanto colocando o ato de negação no centro do trabalho clínico psicanalítico (LACAN,
1953-54/1986).
Esse desenvolvimento responde inicialmente a uma problematização específica
sobre o conceito de resistência, ganhando posteriormente um papel mais geral. Cabe
lembrar que o texto freudiano “Construções em análise” (FREUD, 1937/2018) parte de
um comentário sobre as críticas usuais ao este conceito, o que o leva a refletir sobre os
momentos em que o analisante nega uma construção proposta pelo analista. Nesse
sentido, Lacan parece dar atenção especial a uma parte final do texto, quando Freud
elabora dois desfechos distintos: por um lado, o analisante pode reconhecer que uma
construção possa produzir efeitos terapêuticos mesmo quando não corresponde aos fatos
que realmente teriam acontecido; por outro lado, há momentos em que um analisante
reconhece a correção da construção proposta, mas ainda assim se agarra a algum tipo de
negação ligada à sensação de que algo estaria faltando. Esses dois momentos parecem ser
privilegiados por Lacan por apresentarem pontos cruciais de seu percurso teórico: a
desimportância da exatidão de uma construção e sua necessária incompletude.
Isso é afirmado por Lacan em seu comentário sobre o caso de Ernst Kris (1951),
onde ele escreve sobre um analisante com fantasias plagiarias. Kris conta que após uma
interpretação mais incisiva de sua parte, em que apontava certas resistências do analisante
e propunha uma construção envolvendo seu pai e seu avô, escuta deste que, muitas vezes
ao sair das sessões, passava algum tempo olhando cardápios de restaurantes onde se servia
‘miolos frescos’ (cérebro de macaco). Kris entende isso como um sinal da exatidão de
sua construção, pois representaria um processo sublimatório bem-sucedido em que a
fantasia de “roubar as ideias dos outros” teria se transformado em algo socialmente aceito:
“comer cérebros (de macacos)”.
Lacan discorda. Afirma que a resposta do analisante à construção do analista pode
ser tomada enquanto um acting out (LACAN, 1953-54/1986; 1958/1998), produzido por
haver algo que não estaria sendo escutado. O psicanalista francês é claro ao afirmar que
não questiona a correção da construção, a qual poderia muito bem ser perfeita em relação
à história do analisante. No entanto, afirma que o problema reside em o analista oferecer
seu saber no lugar aonde poderia emergir algo relacionado à verdade. Neste momento
crucial, repleto de angústia e próximo da verdade, Lacan afirma que o saber do analista
inviabiliza a emergência de algo do inconsciente do analisante — de onde afirmará que é
o analista que resiste.
O conhecimento preenche a falta e silencia o analisante, levando-o ao acting out
(onde algo verdadeiro finalmente emergiria). A verdade não se relaciona com a correção
da construção, mas deve ser tomada como o que emerge para além de qualquer
conhecimento estabilizado. Donde se depreende tanto desimportância da correção
histórica quanto a incompletude inevitável de qualquer construção. A verdade está,
portanto, ligada a um efeito de desestabilização e não a qualquer reivindicação de
adequação ou correspondência.
Segundo Lacan, o principal erro teria sido não torcer o sintoma nomeado como
“vontade de roubar ideias” para algo próximo, mas muito diferente, como “a
impossibilidade de ter suas próprias ideias”. Esta forma conteria mais apropriadamente a
negatividade do desejo, que deveria ser o horizonte permanente de qualquer interpretação:
a verdade enquanto a impossibilidade de encontrar um objeto — ou produzir um saber —
adequado ao desejo seria o ponto ao redor do qual orbita uma análise (LACAN,
1951/1998). A interpretação carregaria, então, um apelo "negativo" que levaria a esta
forma da verdade marcada por um impossível.
Essa ideia continua a ganhar corpo: em seu texto “A Coisa Freudiana”
(1955/1998), o psicanalista define a verdade como aquilo que emerge do inconsciente e
nega o saber instituído. Trata-se das formas “vagabundas” da verdade: sonhos, atos
falhos, chistes, sintomas. Junto a isso, uma dimensão temporal desse processo deve ser
notada, uma vez que algo surgiu como verdade num primeiro momento se estabilizará,
no momento seguinte, como saber. Uma vez estabelecido como saber, estará sujeito a
uma nova possibilidade de ruptura da verdade.
No entanto, esse processo não se limita a dimensões representacionais. Ao
contrário, deve-se atentar para o que se mobiliza em termos afetivos e pulsionais com
esse movimento dialético. Algo já apontado por Freud, ao indicar que as funções
intelectuais respondem ao prazer e à angústia (FREUD, 1925/2014). Lacan
frequentemente aproxima verdade e angústia, algo que pode ser compreendido pelo fato
de que a emergência de formações do inconsciente produz algum tipo de desorganização
psíquica. Esse é também o funcionamento dos sintomas, a partir do qual Lacan retoma a
ideia freudiana de que o sintoma carrega a verdade (LACAN, 1966/1998). Aqui
começamos a nos aproximar de nossa discussão principal, já que há uma maneira de
entender os efeitos de operações intelectuais considerando seus efeitos identificatórios.

Verdade e identificação

Pode-se lembrar que a discussão realizada por Lacan começa com a questão da
resistência e da negação, e avança por uma crítica feroz à ideia de que uma análise deveria
levar à identificação do analisante com seu analista (LACAN, 1953- 54/1986). Indica-se,
assim, que as ideias acima apresentadas sobre o conhecimento e o processo dialético da
verdade podem ser articuladas a processos identificatórios.
Em poucas palavras, a verdade poderia desmontar identificações previamente
estabelecidas, deixando o sujeito em uma situação de desamparo. Algo frequentemente
visto na clínica enquanto o efeito de um sintoma que emerge: de repete, o indivíduo não
se reconhece mais como se reconhecia antes, experienciando grande angústia. Algo
também observado por Freud em relação ao funcionamento de grupos, ao indicar o pânico
que o desmantelamento de uma massa pode produzir (FREUD, 1921/2011). Vê-se aí o
reconhecimento de fenômenos similares, especialmente se consideramos que angústia e
pânico não devam ser compreendidos enquanto noções tão distantes dentro da psicanálise.
Freud (1923/2011) afirma que o processo identificatório é uma solução de compromisso
para que um objeto interditado não seja completamente perdido, estando assim ligado ao
alívio de medos e angústias. Consequentemente, a perda de ideais identificatórios
produziria novas situações habitadas por estes afetos. Haveria, portanto, um conforto
resultante de um processo identificatório, assim como desconstruções identificatórias
produziriam angústia.
Vê-se que a angústia resultante — e a busca de amparo identificatório — são mais
intensas no momento logo após a emergência de algo que toque a verdade: um momento
lógico em que o eu é despido de certas identificações ou saberes sobre si mesmo, mas
ainda não o foi capaz de estabelecer novos. A própria causa do desmantelamento da
identificação anterior pode ser assimilada como um modelo identificatório. Assim, pode-
se produzir identificações com os próprios sintomas (algo bastante frequente numa
sociedade em que os diagnósticos se fazem cada vez mais presentes), ou mesmo com o
analista que produz tais desconstruções num processo analítico.
Este último reúne dois pontos interessantes: o analista pode se tornar um modelo
identificatório, especialmente quando a emergência da verdade resulta de uma
interpretação. Ele se encontra numa posição privilegiada, como aquele que teria
produzido uma experiência de tamanha intensidade. Entretanto, oferecer-se enquanto tal
seria novamente uma saída defensiva, que instituiria um saber com o intuito de recobrir
algo da ordem da verdade; e especialmente problemática, caso indicada enquanto uma
solução “final”. Este é o cerne da crítica lacaniana sobre a valorização da identificação
com o analista (LACAN, 1953-54/1986), uma vez que a ideia de se identificar com a
imagem de alguém forte e capaz de lidar com suas próprias questões (por exemplo,
KOHUT, 1979) seria reproduzir ideologicamente um modo de vida específico.
Esse percurso permeado por uma discussão clínica de maior importância se
justifica, neste capítulo, em outro horizonte. Trata-se de sustentar de que a verdade,
enquanto algo que se opõe ao saber estabelecido, pode desmantelar identificações. Tal
desmantelamento deve ser compreendido, portanto, como um efeito da verdade: quando
um saber estabelecido tem suas inconsistências expostas, produzindo angústia e
desamparo. E que, nessa situação, novas identificações seriam mais fáceis de serem
implementadas.
Pode-se pensar, assim, numa articulação entre verdade, conhecimento e
identificação. De fato, o potencial identificatório dos conhecimentos produzidos é algo
não restrito ao pensamento psicanalítico, como pode-se ver nos conceitos de nominalismo
dinâmico e ontologia histórica, propostos por Ian Hacking (1995/2000; 1998; 2002/2009).
Em relação a isso, o filósofo da ciência se aproxima da psicanálise ao reconhecer que que
o conhecimento contém em si uma potencialidade identificatória. Nosso modo de lidar
com o saber e os enunciados que tomamos enquanto corretos exercem uma função de
organização de nossa grade simbólica — algo que, consequentemente, pode ser perdido.
Não à toa que Freud situa “ideais” enquanto uma das formas concernentes aos objetos
que podem ser perdidos e desencadear um processo melancólico (FREUD, 1917/2013).
Se uma ideia pode ser alçada à condição de objeto de investimento libidinal, isso implica
que o modo como lidamos com os saberes disponíveis não se reduz a uma mera operação
intelectual de avaliação ou escolha consciente.
Lembremos as elaborações de Freud sobre a identificação como um processo de
deserotização (FREUD, 1923/2011). A identificação seria o resultado de um
desinvestimento libidinal parcial, após um objeto ser perdido ou interditado. Como todo
processo sublimatório, produz consequências: nesse processo, pulsão de morte e pulsão
erótica se separam temporariamente, naquilo nomeado como desfusão pulsional. Quando
o objeto é realocado em uma forma "aceitável" (como objeto identificatório e não objeto
de desejo), as pulsões são refundidas, mas com uma diferença: uma quantidade de pulsão
erótica torna-se pulsão de morte.
A identificação é, portanto, um processo que inclui a interdição de um objeto de
desejo e uma reorganização do investimento pulsional. Ademais, o objeto pode ser
colocado no lugar de ideal de eu (FREUD, 1921/2011) - que também produz
identificações 'laterais' no vínculo com pares - consistindo em um destino à angústia e ao
sofrimento causados pela interdição de um objeto de desejo. Deve-se considerar, portanto,
que os processos de enamoramento e de identificação com um líder e um grupo não se
limitam a concordâncias conscientes e partilhas de ideais, mas engloba processos
inconscientes que dizem respeito à organização pulsional e à destinação dada à libido e à
agressividade. O próprio ideal — seja ele o ideal de um líder, um ideal de pureza, um
ideal tradição etc. — é o elemento central desse processo, funcionando enquanto um
elemento de mediação do laço com outros. E também de organização de cada um dos
indivíduos, que encontram destinações para angústia, libido e agressividade a partir dos
elementos simbólicos e imaginários ofertados nesses processos.
Porém, a articulação entre conhecimento e ideais identificatórios merece ainda
mais uma consideração. Em seu texto “Sobre as teorias sexuais infantis” (1908/2015),
Freud propõe uma articulação entre castração, conhecimento e identificação: uma criança
começa a teorizar sobre a sexualidade quando confrontada com uma limitação da atenção
recebida de os cuidadores (por exemplo, quando um irmão chega ou vendo isso acontecer
com um amigo). Ou seja, a função intelectual da investigação é claramente mobilizada
enquanto uma resposta à angústia. Essas teorias infantis permitem uma reorganização
libidinal, onde a criança pode assumir uma nova posição e lidar com os objetos de desejo
dessa nova situação “interditada”.
Porém, haveria um momento de angústia subsequente: as teorias infantis não
seriam aceitas pelos adultos, que tentariam impor à criança alguma teoria mais
“domesticada”. Nesse momento, diz Freud, entre o valor de sua própria teoria e o risco
de perder o amor do adulto, a criança aceita as teorias impostas. E, junto a elas, reforça o
laço identificatório com os adultos. Pode-se reconhecer a centralidade tanto do teorizar
quanto das teorias em si na organização libidinal, já que a própria relação com o
conhecimento é uma destinação para a angústia mobilizada pela possibilidade de perda o
amor e cuidado. Portanto, não somente a atividade intelectual estaria profundamente
imbricada com a afetividade, como as próprias teorias apresentam funções ligadas à
identificação e à organização psíquica (FREUD, 1908/2015; 1925/2014).
Mas como isso pode estar ligado a notícias falsas e discursos autoritários? É aqui
que a identificação deve estar ligada à questão da verdade enquanto um processo.
Para tanto, procede retomar a questão da identificação com o analista, uma vez
que consiste numa destinação defensiva para a angústia proveniente de emergências de
verdades referentes ao processo analítico. Este processo identificatório responderia,
assim, ao fato de que o analista é de alguma forma responsável (ou pelo menos co-
responsável) por produzir rupturas (efeitos de verdades), que podem afetar teorias
"primordiais" (ou previamente elaboradas). Assim, as rupturas causadas como efeitos de
verdades podem causar o desmantelamento de construções e identificações estabelecidas
(construções sobre o próprio analisante que foram, até então, acreditadas por ele),
produzindo angústia, medo e desamparo.
Uma forma de dar destino a essa angústia é dar origem a novas identificações ou
construções sobre si mesmo. Para tanto, o analista se encontra numa posição privilegiada,
por estar envolvido nos processos que articulam efeitos de “verdade” e desmontagens de
identificações. O analista pode lidar com esse processo de maneiras opostas, seja
reforçando, seja interpretando essa identificação; mas, em ambos os casos, percebe-se
que estar vinculado ao processo em que a verdade nega um conhecimento ou uma
identificação é uma posição que facilita com que ele mesmo seja tomado enquanto objeto
identificatório. Ademais, vê-se que o modo como um indivíduo lida com essa angústia
pode produzir resultados muito diferentes: entre eles, a constituição de novas
identificações ainda mais fortes ou impermeáveis a possíveis desestabilizações futuras.

Criando desconfiança

Dois pontos devem ser considerados em nossa discussão principal: primeiro, há


uma ligação entre verdade e negação do conhecimento estabelecido; segundo, a negação
produz simultaneamente um "efeito de verdade" e angústia, causada pelo
desmantelamento das identificações; constata-se, portanto, uma relação de solidariedade
entre identificações e conhecimento, fazendo com que a negação de ideias possa produzir
uma crise identificatória, assim como o estabelecimento de novas identificações também
interfere no modo como se lida com teorias e ideias. Deve-se explorar, entretanto, como
negações pontuais podem produzir algum tipo de recusa em relação à legitimidade dos
processos de produção de consenso.
Voltemos à indicação de Ian Hacking, sobre como o conhecimento científico
produz um efeito retroativo e muda as possibilidades de experiência no grupo de pessoas
afetadas por esse discurso (HACKING 1995/2000, 1998, 2002/2007). Diversos quadros
psicopatológicos — entre eles o transtorno de múltiplas personalidades e a fuga histérica
— apresentam correlações entre sintomas e o conhecimento em voga. Hacking também
reconhece o papel exercido pela mídia, mostrando como jornais, livros e filmes são
elementos cruciais nesse processo. Por fim, propõe sua “ontologia histórica” (Hacking
2002), afirmando que há sempre uma dimensão cultural e histórica da experiência
ontológica, que interage com os discursos e instituições estabelecidas. Nesse sentido, a
existência de cada um seria experienciada a partir dos elementos culturais disponíveis,
com os quais cada indivíduo pode estabelecer laços identificatórios variados.
Há um traço particular desse efeito retroativo dos discursos sobre os modos de
existência que nos interessa especialmente: a interação entre dois níveis diferentes de
discursividade, que comporta uma diferenciação entre dois tipos de conhecimento: o
conhecimento superficial e o conhecimento profundo. Por exemplo, a existência de uma
teoria sobre a personalidade baseada no funcionamento da memória (conhecimento
superficial) pressupõe algo mais amplo, a saber: que existem fatos conhecíveis sobre a
memória (conhecimento profundo). Este último seria uma invenção do século 19, quando
o raciocínio científico passou a se aventurar em áreas até então ocupadas pela religião, ou
seja, a alma (HACKING, 1995/2000). Afirma-se, assim, uma mudança em como os
indivíduos entendem e experimentam sua existência na medida em que as questões da
alma podem ser cientificamente conhecidas. Além disso, esse conhecimento profundo
reafirma outro conhecimento também profundo, que concretiza a ideia de que existe uma
forma particular e talvez mais confiável de conhecer as coisas: por meio da ciência. O
conhecimento muda a forma como os indivíduos vivem, tanto em uma dimensão
superficial quanto em uma dimensão profunda. Pessoas podem tomar a si mesmas
enquanto objetos cientificamente conhecíveis, e também se identificar com ideias
específicas em circulação. A inversão dessas ideias leva a uma maneira interessante de
abordar o negacionismo, uma vez que consiste na negação do conhecimento nesses dois
níveis.
Como indicado, a compreensão de discursos autoritários contemporâneos
baseados em fake news e fatos alternativos exige considerar o papel da negação. Trata-se
de tomar a negação característica do negacionismo não como um efeito, mas como um
instrumento. Isso significa que a negação não é empregada de modo a produzir algum
tipo de abertura no debate, mas para mobilizar pontos frágeis de narrativas estabelecidas
com o intuito de deslegitimar a produção de consenso.
Não é difícil reconhecer o uso de ferramentas tecnológicas que realizam
diagnósticos do que seriam pontos fracos de narrativas estabelecidas para grupos
específicos (SILVA JUNIOR & BEER,2019; ZANATTA & ABRAMOVAY, 2019).
Porém, para além do emprego dos famigerados algoritmos, vê-se que as próprias redes de
indivíduos que se identificam com negações são também são responsáveis por esses
processos. Pode-se considerar que a suposição de que todo discurso tem um ponto fraco
ressoa na incompletude inerente à verdade (tomada enquanto processo), produzindo
respostas afetivas a essas negações. Assim, esse tipo de engajamento produziria angústia,
mas também um certo fascínio. Não à toa, entende-se que conteúdos falsos se espalham
mais e com maior velocidade nas redes sociais, carregando “sentimentos negativos” e
uma “sensação de novidade” (VOSOUGHI, ROY & ARAL, 2018).
Tal mecanismo parece ser parte central de discursividades autoritárias atuais.
Nestas, pode-se reconhecer, com alguma frequência, que antes de propor uma nova
narrativa, geralmente há a negação radical de um fato estabelecido. Exemplos dos mais
diversos podem ser encontrados em acontecimentos como o plebiscito do Brexit ou as
eleições de Trump e Bolsonaro: nesses eventos, vê-se diversas ações em que o ataque a
um ponto específico de uma narrativa é apenas um prelúdio a uma tentativa de
deslegitima-la por inteira, ou até mesmo para abalar a credibilidade do narrador ou de
qualquer um que almeje apresentar outra versão. Em outras palavras, pode-se pensar na
negação de um conhecimento superficial que produz efeitos num conhecimento mais
profundo. Essa passagem do particular ao geral é central, pois potencializa a negação do
modelo identificatório ligado à ideia negada.
Vejamos um exemplo protagonizado por Donal Trump, num discurso que ganhou
grande atenção por produzir diversas comparações com o livro 1984 (ORWELL, 1949):
em um evento de veteranos do exército, Trump começa a falar sobre supostas mentiras
relativas a uma questão muito específica ligada a tributação de automóveis importados;
na sequência, emenda sua argumentação numa tentativa de deslegitimação da mídia em
geral (Gajanan 2018). Como ele diz: “O que você está vendo e o que está lendo não é o
que está acontecendo”.
Essa frase desempenha um papel duplo: pode ser entendida como uma crítica
generalizada à mídia, mas serve também como uma afirmação sobre a incompletude
inerente do conhecimento. Como se houvesse um aviso subjacente sobre acreditar em
qualquer narrativa, pois ela sempre seria falsa em alguma medida. Considerando a
teorização psicanalítica apresentada anteriormente, é possível reconhecer uma
semelhança superficial. Talvez Trump tenha lido Lacan sobre a verdade ter estrutura de
ficção (LACAN, 1953/2007) e começou a acreditar que ele não mente, mas cria a
realidade (SCHERER, 2017). Piadas à parte, há algo que parece ser mobilizado nesse tipo
de discursividade bufônica que merece ser tratado com atenção.
A questão central diz respeito ao vínculo entre informação e confiança, ligado aos
efeitos decorrentes da emergência de uma verdade. Como visto anteriormente, há uma
relação entre desconstruir uma narrativa ou identificação e ser localizado na posição de
quem fala a verdade, podendo oferecer um horizonte identificatório passível de
reorganizar a vida libidinal e aliviar angústias.
Isso significa que quando Donald Trump realiza uma crítica focada num
determinado assunto que pode revelar algo não contido (verdade) na narrativa
estabelecida (conhecimento), ele pode produzir algo similar a um efeito de verdade. Ele
realiza uma negação do conhecimento estabelecido. Esse efeito de verdade é recapturado
no próximo movimento, com o objetivo de desmantelar não apenas a narrativa particular,
mas a legitimidade de quem poderia tê-la afirmado (a mídia). Isso é reforçado pela alusão
de que nada pode ser confiado, o que ressoa um fato verdadeiro, porém angustiante: uma
negação é sempre possível.
Mas há uma contradição performativa, pois é aquele que denuncia a falsidade e
adverte sobre a fragilidade de qualquer enunciado verdadeiro que poderá ser assimilado
como portador da verdade: alguém em quem se pode confiar porque é aquele que revela
as mentiras dos outros. Reconhecer essa contradição em um nível intelectual não significa
que ela não possa ser assimilada como um modelo identificatório, preservando o caráter
de portador da verdade e, portanto, tomando como certo tudo o que tal indivíduo diz.
Principalmente se ele continuar produzindo efeitos de verdade por meio de negações e
deslegitimação de instituições. É assim que a negação pode se tornar negacionismo,
sustentando-se nos processos afetivos ligados à possibilidade de identificação com a
revelação decorrente da negação. Os conteúdos pontuais negados são, assim, secundários.

Negacionismo messiânico
Nesse ponto, é possível abordar a construção do caráter messiânico de Bolsonaro,
profundamente ligada à ideia de revelação da verdade. Esta tem sido de fato uma de suas
reivindicações centrais, e não é coincidência que um de seus motes seja a famosa citação
de João “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. O próprio emprego das
palavras “mito” e “mitou” por seus apoiadores usualmente acompanha a "revelação" de
uma "verdade incômoda". Desnecessário dizer que essas verdades incômodas são muito
mais a negação de narrativas aceitas do que a afirmação de propostas novas. Uma postura
amplamente coerente com novos gurus de extrema direita como Olavo de Carvalho e
Steve Bannon, cujo “Tradicionalismo” está muito mais voltado para a desconstrução do
que a agendas propositivas (TEITELBAUM, 2020).
Uma sabatina realizada no canal GloboNews em 2018 explicita esse
funcionamento. Questionado sobre uma posição negacionista sustentada na afirmação de
que o golpe de 1964 no Brasil não levou a uma ditadura, Bolsonaro reafirma sua posição
atacando a credibilidade da rede de jornalistas (Padiglione 2018). Afirma que era uma
hipocrisia questioná-lo sobre isso, já que a Rede Globo havia apoiado o golpe de 1964. A
partir daí, ele se sente livre para afirmar fatos falsos, que sustentariam sua afirmação de
que não foi uma ditadura. O efeito de consternação sobre os 9 entrevistadores era claro,
como se eles realmente tivessem perdido a legitimidade para afirmar fatos históricos.
Naquela altura, não havia dúvida de que Bolsonaro havia vencido a disputa pela
“verdade”. Para sustentar uma posição negacionista, ele faz uso de um saber evitado
naquele contexto (o apoio da Rede Globo à ditadura). Conseguiu assim ser reconhecido
como um defensor da verdade ao denunciar um fato usualmente oculto pela mídia
tradicional. Depois disso, foi como se Bolsonaro tivesse licença para dizer qualquer coisa
e ninguém parecia ser capaz de confrontá-lo. O vídeo rapidamente se tornou viral, e o
“mito” havia aparecido de novo. A partir de uma negação que causou consternação e
angústia, o “Messias” brasileiro ocupou novamente o lugar de quem revela a verdade,
mesmo que essa verdade incluísse posicionamentos negacionistas. Mais que isso, vê-se
que o próprio negacionismo serve como um reforço de sua posição de “revelador”, a qual
pode ser internalizada enquanto ideal de eu e também serve ao estabelecimento de
identificações laterais, seguindo à risca a teoria freudiana (FREUD, 1921/2011).
Pode-se, assim, entender o negacionismo não como um efeito, mas enquanto um
instrumento na produção de um líder carismático baseado na ideia de uma “verdade
libertadora”. Tal verdade é mobilizada em sua dimensão opositiva, fato que adequa seu
caráter messiânico a seu posicionamento enquanto um outsider político (NOBRE, 2020;
DUARTE & CÉSAR, 2020). Esse funcionamento mostra que não se trata apenas de
ideias, mas de como as ideias se relacionam com a identificação e com a angústia. Na
forma como é possível criar um líder carismático considerado inquestionável por meio de
um processo que cria angústia e desamparo nos indivíduos por meio do desmantelamento
de crenças e bases identificatórias e, posteriormente, alivia a angústia e o desamparo ao
oferecer um novo modelo identificatório: aquele que revela a verdade. O que está em
jogo, portanto, não é apenas um debate de ideias, mas uma disputa pelos afetos.
Deslocar a questão do negacionismo de debates pontuais para entende-lo como
um instrumento de construção e mobilização de massas permite, nesse sentido, modificar
tanto o diagnóstico como as terapêuticas possíveis. Por mais que embates pontuais
possam ser necessários e urgentes, vê-se que a causa não se refere às ideias em si, mas ao
modo como lidamos com o conhecimento produzido e sua incompletude, incluindo os
efeitos afetivos e identificatórios indissociáveis da verdade quando compreendida
enquanto um processo. Trata-se, portanto, de localizar o conflito não como uma simples
guerra de narrativas, mas como efeito de um processo de fragmentação social que
despotencializa o caráter transformativo que deveria resultar da inadequação entre ideias
e realidade. Se a verdade não se reduz a essa adequação, a possibilidade de transformação
decorre, esta sim, da potência transformativa da inadequação.
O que se vê, no negacionismo, é justamente a realização da retirada do caráter
conflitivo desta inadequação, a qual permite que ideias não percam potência mesmo se
claramente inadequadas aos fatos. Algo, como apresentado, sustentado numa
racionalidade organizada por um projeto de recusa total da possibilidade de construção
de consensos. O consenso, assim como a própria realidade, é algo que congrega
necessariamente a resistência dos objetos e a necessidade de algum tipo de negociação
dos atores envolvidos. Não por acaso, o negacionismo aparece como um sintoma de
sociedades que experienciam situações intensas de fragmentação social. Algo coerente
com a realização da célebre afirmação de Margareth Thatcher: “o social não existe”. Ao
que parece, uma sociabilidade que se constrói sobre ideais de desagregação e
fragmentação — agrupamentos e massas que se baseiam na deslegitimação da
possibilidade de produção de consensos — pode revelar o quanto o ideal de democracia
é absolutamente dispensável à um modo de organização social baseada na exploração.

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