Capítulo Negacionismo - Paulo Beer
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Paulo Beer
Termo que tragicamente galga popularidade num dos momentos mais trágicos da história
brasileira, o negacionismo reúne, sob um mesmo nome, diversas formas de indesejáveis
que partilham uma característica central: a recusa daquilo que é assinalado enquanto
verdade. Embora colocar a questão nesses termos pareça ser suficiente para defini-la, a
dificuldade real é bem maior. Isso porque localizar a verdade enquanto referência na
definição de seus desvios é uma tarefa tão traiçoeira quanto inescapável: aqueles que se
embrenham nesta empreitada arriscam contribuir com a sustentação de uma amálgama
que, ao nomear indiscriminadamente recusas da verdade, acaba por reunir expedientes
radicalmente distintos sob uma mesma designação.
É o que se observa, por exemplo, na circulação irrestrita que o termo
‘negacionismo’ apresenta (assim como suas formas aparentadas como fake-news ou fatos
alternativos): facilmente encontra-se uma discussão em que todas as partes envolvidas
acusam, umas às outras, de serem negacionistas em relação ao mesmo ponto debatido.
Daí a insuficiência de abordar o negacionismo somente a partir de sua inadequação em
relação àquilo que é enunciado enquanto verdadeiro: o que se produz é somente a
reprodução de um jogo de disputa pela verdade.
Neste capítulo, proponho um deslocamento desse modo de compreensão, para o
qual a verdade deve ser compreendida enquanto um processo, e não somente um
qualitativo ligado à adequação (verdadeiro ou falso). É olhando para esse processo que
podemos situar o negacionismo não enquanto um desvio, mas como uma combinação
específica de expedientes usualmente tomados enquanto “normais”. Não se trata,
portanto, de tomar o negacionismo enquanto uma aberração, mas sim como uma
possibilidade de relação com o saber. Processo este que, por sua vez, pode ser usado com
o intuito de instrumentalizar maneiras específicas de mobilização política.
O que é o negacionismo?
A verdade e o saber
Verdade e identificação
Pode-se lembrar que a discussão realizada por Lacan começa com a questão da
resistência e da negação, e avança por uma crítica feroz à ideia de que uma análise deveria
levar à identificação do analisante com seu analista (LACAN, 1953- 54/1986). Indica-se,
assim, que as ideias acima apresentadas sobre o conhecimento e o processo dialético da
verdade podem ser articuladas a processos identificatórios.
Em poucas palavras, a verdade poderia desmontar identificações previamente
estabelecidas, deixando o sujeito em uma situação de desamparo. Algo frequentemente
visto na clínica enquanto o efeito de um sintoma que emerge: de repete, o indivíduo não
se reconhece mais como se reconhecia antes, experienciando grande angústia. Algo
também observado por Freud em relação ao funcionamento de grupos, ao indicar o pânico
que o desmantelamento de uma massa pode produzir (FREUD, 1921/2011). Vê-se aí o
reconhecimento de fenômenos similares, especialmente se consideramos que angústia e
pânico não devam ser compreendidos enquanto noções tão distantes dentro da psicanálise.
Freud (1923/2011) afirma que o processo identificatório é uma solução de compromisso
para que um objeto interditado não seja completamente perdido, estando assim ligado ao
alívio de medos e angústias. Consequentemente, a perda de ideais identificatórios
produziria novas situações habitadas por estes afetos. Haveria, portanto, um conforto
resultante de um processo identificatório, assim como desconstruções identificatórias
produziriam angústia.
Vê-se que a angústia resultante — e a busca de amparo identificatório — são mais
intensas no momento logo após a emergência de algo que toque a verdade: um momento
lógico em que o eu é despido de certas identificações ou saberes sobre si mesmo, mas
ainda não o foi capaz de estabelecer novos. A própria causa do desmantelamento da
identificação anterior pode ser assimilada como um modelo identificatório. Assim, pode-
se produzir identificações com os próprios sintomas (algo bastante frequente numa
sociedade em que os diagnósticos se fazem cada vez mais presentes), ou mesmo com o
analista que produz tais desconstruções num processo analítico.
Este último reúne dois pontos interessantes: o analista pode se tornar um modelo
identificatório, especialmente quando a emergência da verdade resulta de uma
interpretação. Ele se encontra numa posição privilegiada, como aquele que teria
produzido uma experiência de tamanha intensidade. Entretanto, oferecer-se enquanto tal
seria novamente uma saída defensiva, que instituiria um saber com o intuito de recobrir
algo da ordem da verdade; e especialmente problemática, caso indicada enquanto uma
solução “final”. Este é o cerne da crítica lacaniana sobre a valorização da identificação
com o analista (LACAN, 1953-54/1986), uma vez que a ideia de se identificar com a
imagem de alguém forte e capaz de lidar com suas próprias questões (por exemplo,
KOHUT, 1979) seria reproduzir ideologicamente um modo de vida específico.
Esse percurso permeado por uma discussão clínica de maior importância se
justifica, neste capítulo, em outro horizonte. Trata-se de sustentar de que a verdade,
enquanto algo que se opõe ao saber estabelecido, pode desmantelar identificações. Tal
desmantelamento deve ser compreendido, portanto, como um efeito da verdade: quando
um saber estabelecido tem suas inconsistências expostas, produzindo angústia e
desamparo. E que, nessa situação, novas identificações seriam mais fáceis de serem
implementadas.
Pode-se pensar, assim, numa articulação entre verdade, conhecimento e
identificação. De fato, o potencial identificatório dos conhecimentos produzidos é algo
não restrito ao pensamento psicanalítico, como pode-se ver nos conceitos de nominalismo
dinâmico e ontologia histórica, propostos por Ian Hacking (1995/2000; 1998; 2002/2009).
Em relação a isso, o filósofo da ciência se aproxima da psicanálise ao reconhecer que que
o conhecimento contém em si uma potencialidade identificatória. Nosso modo de lidar
com o saber e os enunciados que tomamos enquanto corretos exercem uma função de
organização de nossa grade simbólica — algo que, consequentemente, pode ser perdido.
Não à toa que Freud situa “ideais” enquanto uma das formas concernentes aos objetos
que podem ser perdidos e desencadear um processo melancólico (FREUD, 1917/2013).
Se uma ideia pode ser alçada à condição de objeto de investimento libidinal, isso implica
que o modo como lidamos com os saberes disponíveis não se reduz a uma mera operação
intelectual de avaliação ou escolha consciente.
Lembremos as elaborações de Freud sobre a identificação como um processo de
deserotização (FREUD, 1923/2011). A identificação seria o resultado de um
desinvestimento libidinal parcial, após um objeto ser perdido ou interditado. Como todo
processo sublimatório, produz consequências: nesse processo, pulsão de morte e pulsão
erótica se separam temporariamente, naquilo nomeado como desfusão pulsional. Quando
o objeto é realocado em uma forma "aceitável" (como objeto identificatório e não objeto
de desejo), as pulsões são refundidas, mas com uma diferença: uma quantidade de pulsão
erótica torna-se pulsão de morte.
A identificação é, portanto, um processo que inclui a interdição de um objeto de
desejo e uma reorganização do investimento pulsional. Ademais, o objeto pode ser
colocado no lugar de ideal de eu (FREUD, 1921/2011) - que também produz
identificações 'laterais' no vínculo com pares - consistindo em um destino à angústia e ao
sofrimento causados pela interdição de um objeto de desejo. Deve-se considerar, portanto,
que os processos de enamoramento e de identificação com um líder e um grupo não se
limitam a concordâncias conscientes e partilhas de ideais, mas engloba processos
inconscientes que dizem respeito à organização pulsional e à destinação dada à libido e à
agressividade. O próprio ideal — seja ele o ideal de um líder, um ideal de pureza, um
ideal tradição etc. — é o elemento central desse processo, funcionando enquanto um
elemento de mediação do laço com outros. E também de organização de cada um dos
indivíduos, que encontram destinações para angústia, libido e agressividade a partir dos
elementos simbólicos e imaginários ofertados nesses processos.
Porém, a articulação entre conhecimento e ideais identificatórios merece ainda
mais uma consideração. Em seu texto “Sobre as teorias sexuais infantis” (1908/2015),
Freud propõe uma articulação entre castração, conhecimento e identificação: uma criança
começa a teorizar sobre a sexualidade quando confrontada com uma limitação da atenção
recebida de os cuidadores (por exemplo, quando um irmão chega ou vendo isso acontecer
com um amigo). Ou seja, a função intelectual da investigação é claramente mobilizada
enquanto uma resposta à angústia. Essas teorias infantis permitem uma reorganização
libidinal, onde a criança pode assumir uma nova posição e lidar com os objetos de desejo
dessa nova situação “interditada”.
Porém, haveria um momento de angústia subsequente: as teorias infantis não
seriam aceitas pelos adultos, que tentariam impor à criança alguma teoria mais
“domesticada”. Nesse momento, diz Freud, entre o valor de sua própria teoria e o risco
de perder o amor do adulto, a criança aceita as teorias impostas. E, junto a elas, reforça o
laço identificatório com os adultos. Pode-se reconhecer a centralidade tanto do teorizar
quanto das teorias em si na organização libidinal, já que a própria relação com o
conhecimento é uma destinação para a angústia mobilizada pela possibilidade de perda o
amor e cuidado. Portanto, não somente a atividade intelectual estaria profundamente
imbricada com a afetividade, como as próprias teorias apresentam funções ligadas à
identificação e à organização psíquica (FREUD, 1908/2015; 1925/2014).
Mas como isso pode estar ligado a notícias falsas e discursos autoritários? É aqui
que a identificação deve estar ligada à questão da verdade enquanto um processo.
Para tanto, procede retomar a questão da identificação com o analista, uma vez
que consiste numa destinação defensiva para a angústia proveniente de emergências de
verdades referentes ao processo analítico. Este processo identificatório responderia,
assim, ao fato de que o analista é de alguma forma responsável (ou pelo menos co-
responsável) por produzir rupturas (efeitos de verdades), que podem afetar teorias
"primordiais" (ou previamente elaboradas). Assim, as rupturas causadas como efeitos de
verdades podem causar o desmantelamento de construções e identificações estabelecidas
(construções sobre o próprio analisante que foram, até então, acreditadas por ele),
produzindo angústia, medo e desamparo.
Uma forma de dar destino a essa angústia é dar origem a novas identificações ou
construções sobre si mesmo. Para tanto, o analista se encontra numa posição privilegiada,
por estar envolvido nos processos que articulam efeitos de “verdade” e desmontagens de
identificações. O analista pode lidar com esse processo de maneiras opostas, seja
reforçando, seja interpretando essa identificação; mas, em ambos os casos, percebe-se
que estar vinculado ao processo em que a verdade nega um conhecimento ou uma
identificação é uma posição que facilita com que ele mesmo seja tomado enquanto objeto
identificatório. Ademais, vê-se que o modo como um indivíduo lida com essa angústia
pode produzir resultados muito diferentes: entre eles, a constituição de novas
identificações ainda mais fortes ou impermeáveis a possíveis desestabilizações futuras.
Criando desconfiança
Negacionismo messiânico
Nesse ponto, é possível abordar a construção do caráter messiânico de Bolsonaro,
profundamente ligada à ideia de revelação da verdade. Esta tem sido de fato uma de suas
reivindicações centrais, e não é coincidência que um de seus motes seja a famosa citação
de João “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. O próprio emprego das
palavras “mito” e “mitou” por seus apoiadores usualmente acompanha a "revelação" de
uma "verdade incômoda". Desnecessário dizer que essas verdades incômodas são muito
mais a negação de narrativas aceitas do que a afirmação de propostas novas. Uma postura
amplamente coerente com novos gurus de extrema direita como Olavo de Carvalho e
Steve Bannon, cujo “Tradicionalismo” está muito mais voltado para a desconstrução do
que a agendas propositivas (TEITELBAUM, 2020).
Uma sabatina realizada no canal GloboNews em 2018 explicita esse
funcionamento. Questionado sobre uma posição negacionista sustentada na afirmação de
que o golpe de 1964 no Brasil não levou a uma ditadura, Bolsonaro reafirma sua posição
atacando a credibilidade da rede de jornalistas (Padiglione 2018). Afirma que era uma
hipocrisia questioná-lo sobre isso, já que a Rede Globo havia apoiado o golpe de 1964. A
partir daí, ele se sente livre para afirmar fatos falsos, que sustentariam sua afirmação de
que não foi uma ditadura. O efeito de consternação sobre os 9 entrevistadores era claro,
como se eles realmente tivessem perdido a legitimidade para afirmar fatos históricos.
Naquela altura, não havia dúvida de que Bolsonaro havia vencido a disputa pela
“verdade”. Para sustentar uma posição negacionista, ele faz uso de um saber evitado
naquele contexto (o apoio da Rede Globo à ditadura). Conseguiu assim ser reconhecido
como um defensor da verdade ao denunciar um fato usualmente oculto pela mídia
tradicional. Depois disso, foi como se Bolsonaro tivesse licença para dizer qualquer coisa
e ninguém parecia ser capaz de confrontá-lo. O vídeo rapidamente se tornou viral, e o
“mito” havia aparecido de novo. A partir de uma negação que causou consternação e
angústia, o “Messias” brasileiro ocupou novamente o lugar de quem revela a verdade,
mesmo que essa verdade incluísse posicionamentos negacionistas. Mais que isso, vê-se
que o próprio negacionismo serve como um reforço de sua posição de “revelador”, a qual
pode ser internalizada enquanto ideal de eu e também serve ao estabelecimento de
identificações laterais, seguindo à risca a teoria freudiana (FREUD, 1921/2011).
Pode-se, assim, entender o negacionismo não como um efeito, mas enquanto um
instrumento na produção de um líder carismático baseado na ideia de uma “verdade
libertadora”. Tal verdade é mobilizada em sua dimensão opositiva, fato que adequa seu
caráter messiânico a seu posicionamento enquanto um outsider político (NOBRE, 2020;
DUARTE & CÉSAR, 2020). Esse funcionamento mostra que não se trata apenas de
ideias, mas de como as ideias se relacionam com a identificação e com a angústia. Na
forma como é possível criar um líder carismático considerado inquestionável por meio de
um processo que cria angústia e desamparo nos indivíduos por meio do desmantelamento
de crenças e bases identificatórias e, posteriormente, alivia a angústia e o desamparo ao
oferecer um novo modelo identificatório: aquele que revela a verdade. O que está em
jogo, portanto, não é apenas um debate de ideias, mas uma disputa pelos afetos.
Deslocar a questão do negacionismo de debates pontuais para entende-lo como
um instrumento de construção e mobilização de massas permite, nesse sentido, modificar
tanto o diagnóstico como as terapêuticas possíveis. Por mais que embates pontuais
possam ser necessários e urgentes, vê-se que a causa não se refere às ideias em si, mas ao
modo como lidamos com o conhecimento produzido e sua incompletude, incluindo os
efeitos afetivos e identificatórios indissociáveis da verdade quando compreendida
enquanto um processo. Trata-se, portanto, de localizar o conflito não como uma simples
guerra de narrativas, mas como efeito de um processo de fragmentação social que
despotencializa o caráter transformativo que deveria resultar da inadequação entre ideias
e realidade. Se a verdade não se reduz a essa adequação, a possibilidade de transformação
decorre, esta sim, da potência transformativa da inadequação.
O que se vê, no negacionismo, é justamente a realização da retirada do caráter
conflitivo desta inadequação, a qual permite que ideias não percam potência mesmo se
claramente inadequadas aos fatos. Algo, como apresentado, sustentado numa
racionalidade organizada por um projeto de recusa total da possibilidade de construção
de consensos. O consenso, assim como a própria realidade, é algo que congrega
necessariamente a resistência dos objetos e a necessidade de algum tipo de negociação
dos atores envolvidos. Não por acaso, o negacionismo aparece como um sintoma de
sociedades que experienciam situações intensas de fragmentação social. Algo coerente
com a realização da célebre afirmação de Margareth Thatcher: “o social não existe”. Ao
que parece, uma sociabilidade que se constrói sobre ideais de desagregação e
fragmentação — agrupamentos e massas que se baseiam na deslegitimação da
possibilidade de produção de consensos — pode revelar o quanto o ideal de democracia
é absolutamente dispensável à um modo de organização social baseada na exploração.
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