Branco - Ascensão e Queda de Uma Cultura Popular
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Branco - Ascensão e Queda de Uma Cultura Popular
Ascensão e queda
de uma cultura popular
Jorge Freitas Branco1
Resumo
Tomo como ponto de partida o processo de folclorização ocor-
rido em Portugal (1938-1948), que institucionalizou uma cultura
popular suportada por um dispositivo próprio (concursos, exposi-
ções, museu). Apresentam-se e discutem-se exemplos etnográficos
de situações ibéricas de uso/desuso de cultura popular, que ilus-
tram estratégias de mediação entre grupos sociais. A queda da cul-
tura popular institucional e a ascensão de culturas populares frag-
mentadas reflectem a prioridade dada à performance, contrariando
o anterior protagonismo social dos actores/produtores, agora rele-
gados para plano secundário.
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Professor associado de antropologia no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-
IUL). Avenida das Forças Armadas s/n, 1649-026 Lisboa, Portugal; e-mail:
[email protected]. Investigador do Centro em Rede de Investigação
Antropológica (CRIA).
Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 14, vol.21(1), 2010
Abstract
I take as a starting point the process of folklorization which took
place in Portugal between 1938 and 1948, and which institutiona-
lized popular culture, through the creation of specific state-pro-
moted devices (competitions, exhibitions, museums). I present
and discuss ethnographic examples of Iberian situations in which
the use and disuse of popular culture is evident, illustrating strate-
gies of meditation between social groups. The fall of an institu-
tional popular culture and the rise of fragmented popular cultures
reflect the priority granted to performance, counteracting the
former social protagonism of social actors and producers, now
relegated to a secondary role.
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Lenços de namorados
“Pelo Museu de Arte Popular, bordar, bordar!” foi o lema lançado
por quatro cidadãs para assinalar o Dia Internacional dos Museus, neste
ano de 2009, em Lisboa. Pretenderam alertar a opinião pública para a
extinção decretada pelo governo daquela estrutura museológica, dois
anos antes. Quiseram mobilizar pessoas para, a partir do meio-dia, frente
ao edifício situado à beira-Tejo, perto da torre de Belém, bordarem um
lenço de namorados, que se antevia adquirir dimensão inusitada. Com
esta forma de protesto pretendiam anular a certidão de óbito passada ao
museu. A entrega do lenço, bordado de fresco na circunstância descrita,
a um responsável ministerial, simbolizaria o descontentamento daquelas
pessoas perante a decisão governamental.
O museu estava moribundo há anos, vedado ao público para a
realização de infindáveis obras de manutenção, que incluíam refazer a
cobertura, porque a chuva danificava sectores do espólio. Sua extinção
implicou transferir as colecções de arte popular portuguesa, datadas na
sua maioria das décadas de 30 e 40 do século passado, para as reservas
do Museu Nacional de Etnologia, situado ladeira acima, a distância
menos confortável para improvisar o desvio a pé dos visitantes.
O lema é uma alusão à letra do hino nacional português 2. Despido
do recheio, o museu defunto conserva na sua arquitectura matéria para
polémica. O desagrado manifestado assenta em duas questões: as insta-
2 Trata-se de uma inspiração do respectivo refrão, cuja letra tem a seguinte primeira
estrofe: “Heróis do mar, nobre povo / Nação valente, imortal / Levantai hoje de
novo / O esplendor de Portugal! / Entre as brumas da memória, / Ó Pátria sente-
se a voz / Dos teus egrégios avós, / Que há-de guiar-te à vitória! / Às armas, às
armas! / Sobre a terra, sobre o mar, / Às armas, às armas! / Pela Pátria lutar /
Contra os canhões marchar, marchar!” A versão inicial foi composta em 1890 por
Alfredo Keil (música) e H. Lopes de Mendonça (letra) como forma de mobilização
da opinião pública portuguesa contra a cedência da monarquia ao ultimato feito pela
(aliada) Grã-Bretanha em torno de uma considerável extensão territorial africana
ligando Angola a Moçambique, reclamada por Portugal (o chamado Mapa Cor-de-
Rosa). Com a implantação da república (1910) a marcha nacionalista seria declarada
hino nacional. Não terá sido em momento algum da acção de protesto entoada a
melodia juntamente com a letra adaptada, porque então os mídia teria reportado a
ocorrência.
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A partir de 1944 passa a designar-se Secretariado Nacional de Informação, Cultura
Popular e Turismo (SNI), conforme se manteria até à queda do regime, a 25 de
Abril de 1974.
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5 Cabe aqui referir a obra original de Luís R. Vilhena (1997) sobre o movimento
folclórico no Brasil, enquanto movimento social de intelectuais. Trata-se de uma
incidência ainda por estudar no caso português e pouco abordada para outros
países.
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As “Misiones Pedagógicas”
Em 1931, após a criação da Segunda República em Espanha, os
políticos do novo poder confrontaram-se com um país dividido, con-
forme atestavam os resultados eleitorais. Eram as grandes cidades que
haviam provocado a mudança de regime, o mundo rural mantinha-se
ligado à monarquia e à igreja católica. Para combater a influência religiosa
no ensino, fundara-se, ainda no século XIX, a Institución Libre de Ense-
ñanza (ILE), com estatuto e práticas laicas. Tratando-se de um dos
suportes ideológicos do republicanismo, destituído o antigo poder, rapi-
damente surgiu a ideia de retomar experiências pontuais anteriores, lan-
çando acções de índole cultural junto das populações camponesas nas
regiões remotas.
De acordo com esta perspectiva „esclarecida‟, a cultura constituía
um instrumento capaz de transformar a sociedade. Cabia aos intelectuais
assumirem-se como vanguarda para a concretização da tarefa. Nesse ano
de mudança de regime instituíram-se as “Misiones Pedagógicas” na forma
de um organismo oficial („Patronato‟), a fim de pôr em prática a inter-
venção letrada nesse outro longínquo universo rural arredado dos acon-
tecimentos nacionais.
Comemorando os 75 anos da criação do „Patronato‟, realizou-se
uma exposição evocativa em Madrid e outras cidades de Espanha. Gra-
ças à documentação e ao espólio de imagens a preto e branco disponível,
pode-se hoje avaliar a amplitude da iniciativa e seguir o seu curso no
terreno (CSIC 2006, Holguin 2003).
A realização de uma missão numa localidade pressuponha um
pedido ao Patronato, em Madrid, formulado por uma autoridade local,
em que se especificavam dados sobre essa mesma localidade, a fim de se
preparar a acção. A presença dos misioneros no terreno demorava, em
regra, uma semana. Pelas fotografias avalia-se o modo de intervir. Logo
após a chegada da caravana de automóveis e caminhões, era montado
um palco na praça da aldeia.
Este trabalho constituía em si já parte do espectáculo - era a forma
dos „intrusos‟ se revelarem à população. Na assistência, os homens ob-
servavam tudo de pé ou sentados sobre os muros, enquanto as mulheres
presenciavam o acontecimento com crianças ao colo. A indumentária
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Um verão quente
Ao derrube do autoritarismo que vigou em Portugal durante 48
anos (1926-1974), seguiu-se um período de transformações revolucioná-
rias, na época designadas PREC (Processo Revolucionário em Curso).
Entre 1974 e 1976, o país viveu em permanente indagação de si próprio.
Os sentidos incutidos à cultura popular não constituíram excepção,
questionaram-se os seus modos de uso.
No Verão de 1975 decorreu o Plano Trabalho e Cultura (PTC). O
período ficou conhecido como „Verão Quente‟ pela intensidade das lutas
políticas que se viveram, coincidindo com uma onda de calor e uma vaga
de incêndios florestais.
Na origem do PTC pode-se ver o acréscimo do número de candi-
datos às universidades que se acentuava desde os anos anteriores.
As estruturas existentes não dispunham de capacidade para absor-
ver o aumento da procura. A este desfasamento juntou-se a reformu-
lação do sistema de educação que a queda da ditadura veio acelerar.
Perante as transformações sociais em curso ou que se reivindicavam em
todos os domínios (descolonização, liberdades cívicas e políticas, saúde,
habitação), o governo decidiu criar um Serviço Cívico Estudantil (SCE),
que deveria anteceder e ser condição de entrada dos jovens nas univer-
sidades.
O estratagema permitia ganhar tempo, de forma a evitar o colapso
no ensino superior, ele próprio arrastado no processo de democratização
da sociedade. No âmbito do SCE, os jovens deveriam cumprir durante
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Manobras militares
Entre finais 1974 e o Outono de 1975 decorreu em regiões inte-
riores do território português uma sequência de acções de contacto com
as populações, designadas Campanhas de Dinamização Cultural. Foram
concebidas e levadas a cabo por estruturas militares inseridas no Movi-
mento das Forças Armadas (MFA), que havia conduzido o golpe que
derrubou a ditadura na madrugada de 25 de Abril de 1974, e, entretanto,
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Trata-se de contrafacção de bordados confeccionados no princípio do século passa-
do. A referência à data assim o denuncia, visto naquela altura não se festejar o Dia
dos Namorados em Portugal. Pesquisa e fotografia de Jean-Yves Durand, a quem se
agradece a informação e a cortesia da cedência da imagem.
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estética, reagindo outros a tal fixação de regras para o gosto 10. No con-
texto de então, o debate sobre a autenticidade endossava outros debates
banidos pelo regime (separação entre estado e igreja, lutas de classes).
Durante o período revolucionário da década de 1970, uma vez que essa
cultura popular institucionalizada foi associada ao antigo regime e não a
um fenómeno da modernidade, ela funcionou juntamente com a religião,
a democracia, a liberdade, como mobilizador contra o espectro do comu-
nismo. Desde os anos 90, perante as “etnopaisagens” (Appadurai 2004)
formadas com a globalização, a função da cultura popular ajusta-se às
novas configurações políticas: não se desagrega, antes se facciona, muda
seus contornos, aparentemente destituídos de centro emissor ou de refe-
rências fixas. Tudo se destradicionaliza (García Canclini 2001).
A rigidez de conteúdos e práticas impostos pela folclorização cede
o lugar à hibridação e à liquidez de consumos consagrada pelos merca-
dos globais. Por isso, as instituições museológicas que ao longo do
século passado se haviam consolidado especializando-se na cultura popu-
lar doméstica, europeia e mesmo exótica11 perdem a atractividade e a
autoridade alcançadas em outras épocas. Fecham-se os museus, deslo-
cam-se as colecções.
Estas ganham novos sentidos inseridas noutras configurações,
como se verifica em Madrid (Museo del Traje), em Paris (Musée du quai
Branly) ou em Berlim (Humboldt-Forum). Os lenços de namorados deixa-
ram de ter sentido como idealização dum passado rural, apresentados
como “fragmento dum discurso amoroso”.
No seu protesto, as bordadeiras improvisadas de Lisboa batem-se
pela continuidade de uma cultura popular cujo edifício quer ruir. Não
persistem os factores que conduziram em tempos passados à institucio-
10 Tem pertinência remeter para o livro de H. Lebovics (1995, original 1992) sobre os
conflitos de identidade cultural (“True France”) na França da primeira metade do
século passado. O contexto português que analiso, não será equivalente. Pesem
algumas similitudes, elas não devem sobrepor-se ao papel que a diferença de regime
político e social implica. Guerra cultural aberta na França, é verdade, que decorre
em paralelo a outros debates políticos públicos. Em Portugal tratou-se de transferir
para o campo da estética (da cultura popular), o que em nenhuma outra instância da
sociedade era permitido debater.
11 Vêm a propósito os trabalhos publicados por Johannes Fabian, em que se apresen-
tam as criações culturais africanas urbanas inseridas destinadas a consumos dinâmi-
cos locais, nacional ou não só […] (Fabian 1998).
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Bibliografia
BURKE, Peter. 1978. Popular Culture in Early Modern Europe. Londres: Temple
Smith.
CASTELO BRANCO, Salwa E.; NEVES, José S.; LIMA, Mª João. 2003. Perfis
dos grupos de música tradicional em Portugal, em finais do século XX.
In CASTELO BRANCO, Salwa E., BRANCO, Jorge F. (eds.): Vozes do
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__________; BRANCO, Jorge F. (ed.) 2003. Vozes do povo: a folclorização em
Portugal. Oeiras: Celta.
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DURAND, Jean-Yves (org). 2006. Os lenços de namorados: frentes e versos de um
produto artesanal no tempo da sua certificação. Município de Vila Verde: Vila
Verde.
FABIAN, Johannes. 1998. Moments of Freedom: Anthropology and Popular Culture.
Charlottesville: University Press of Virginia.
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