Apontamentos Patrimonio
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J. LEMOS PINTO
2009
PATRIMÓNIO HISTÓRICO
Por entre o imenso e heterogéneo património histórico, escolhi como categoria exemp-
lar aquela que diz respeito ao património edificado. No passado, ter-se-ia dito os "monu-
mentos históricos", mas as duas expressões deixaram de ser sinónimas. Desde os anos
sessenta do século XX, os monumentos históricos constituem apenas parte de uma he-
rança que não pára de aumentar. Aquando da criação em França da Comissão dos Mo-
numentos Históricos, as três grandes categorias de monumentos históricos eram consti-
tuídas pelos vestígios da Antiguidade, por edifícios religiosos da Idade Média e por al-
guns castelos. No final da Segunda Guerra Mundial, o número de bens inventariados ti-
nha sido multiplicado por dez, mas a sua natureza não tinha mudado quase nada. Eles
derivavam essencialmente da arqueologia e da história erudita da arquitectura. Desde
então, todas as formas da arte de edificar, eruditas e populares, urbanas e rurais e todas
as categorias de edifícios, públicos e privados, sumptuários e utilitários, foram anexadas
sob novas denominações: arquitectura menor, para designar as construções privadas não
monumentais, muitas vezes erguidas sem o concurso de arquitectos; arquitectura verna-
cular, expressão usada para distinguir os edifícios característicos dos diversos territóri-
os; arquitectura industrial, para as fábricas. Enfim, o domínio patrimonial deixou de es-
tar limitado aos edifícios individuais; ele compreende, daqui em diante, os conjuntos
edificados e o tecido urbano: quarteirões e bairros urbanos, aldeias, cidades inteiras e
mesmo conjuntos de cidades.
Até aos anos sessenta, o quadro cronológico no qual se inscreviam os monumentos his-
tóricos não ultrapassava as barreiras da segunda metade do século XIX. Hoje em dia, os
Belgas deploram a perda da Maison du Peuple, demolida em 1968 e os Franceses a per-
da dos Halles, destruídos em 1970. O século XX forçou as portas do domínio patrimo-
As ameaças permanentes que pairam sobre o património não impedem um vasto con-
senso em favor da sua protecção, defendidas em nome de valores científicos, memori-
ais, sociais, urbanos que esse património possui nas sociedades avançadas.
Os únicos monumentos autênticos que a nossa época edificou dissimulam-se sob formas
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insólitas: recordam um passado cujo peso e, a maioria das vezes, o horror, impedem de
os confiar apenas à memória histórica. Entre as duas guerras mundiais, o campo de ba-
talha de Verdun tinha constituído um precedente: teria sido suficiente balizar nele um
percurso para criar o memorial de uma das grandes catástrofes da história moderna.
Após a Segunda Guerra, o centro de Varsóvia, reconstruído à semelhança do que era,
recorda a identidade da nação polaca e a vontade destruidora que animava os seus inimi-
gos. Do mesmo modo, as sociedades actuais desejaram conservar viva a recordação do
genocídio do povo judeu. Melhor do que os símbolos abstractos ou imagens realistas,
são os próprios campos de concentração que se tornaram monumentos.
O novo centro de Varsóvia só é monumento porque é uma réplica: ele substitui, com
uma fidelidade atestada pela fotografia, a cidade destruída. O monumento simbólico er-
guido, ex nihilo, para fins de rememoração, já quase não existe nas nossas sociedades
desenvolvidas. À medida que elas dispunham de mnemotécnicas mais eficazes, deixa-
ram, pouco a pouco, de erguer monumentos e transferiram o fervor com que os rodea-
vam para os monumentos históricos.
Roma: em 146 a. C, aquando da partilha dos despojos após o saque de Corinto, o gene-
ral romano fica desconcertado com a importância das ofertas feitas por Átalo II por ob-
jectos pelos quais os Romanos não percebiam o interesse. Ele adquire uma pintura cen-
tenária de Aristides, juntamente com algumas estátuas. Houve quem considerasse este
episódio a data de nascimento simbólico do objecto de arte e da sua colecção.
Os objectos gregos espoliados pelos exércitos romanos começam por fazer uma entrada
no seio de algumas habitações patrícias. Mas o seu estatuto altera-se no momento em
Finalmente, a mesma prudência deve ser observada no que diz respeito à interpretação
do valor estético atribuído às criações da Grécia clássica. É verdade que a beleza revela
entre os coleccionadores motivos estranhos ao prazer característico da arte: prestígio en-
tre os conquistadores, snobismo entre os que tinham conseguido ascender na escala so-
cial, lucro ou prazer do jogo entre os restantes. Para que se possa legitimamente evocar
a noção de monumento histórico, falta a esses tempos o distanciamento da história, sus-
tentado por um projecto deliberado de preservação.
Antes de mais, razões de economia em tempos de crise. Em Roma, no século VI, o papa
Gregório I toma a seu cargo a manutenção do parque imobiliário e pratica uma política
de reutilização: «não destruam os templos pagãos, mas apenas os seus ídolos. No que
diz respeito aos edifícios, contentai-vos em aspergi-los com água benta e neles colocar
os vossos altares e as vossas relíquias.». O Panteão, consagrado em 609 à Virgem Ma-
ria, constitui um precedente durante quase trezentos anos.
No entanto, o interesse utilitário não era o único em jogo na preservação dos vestígios
antigos. O interesse e o respeito testemunhados a essas obras estão em consonância com
as posições tomadas pela Igreja face às letras e ao saber clássicos. Desta forma, a bene-
volência para com a humanitas e as artes antigas culmina com esses breves e parciais
renascimentos a que Panofsky chamou renascences, nos séculos XI e XII, sob o impul-
so dos grandes abades humanistas. Quando Hugo de Cluny, Hildeberto de Lavardin,
Jean de Salisbury se dirigem a Roma, é com emocionado respeito pela sua cultura clás-
sica que eles admiram os monumentos.
Atracção intelectual, é certo, mas também sensibilidade: as obras antigas fascinam pelas
suas dimensões, pelo requinte, pela perícia da sua execução, e pela riqueza dos seus ma-
teriais. Quando o abade de Saint-Denis manda restaurar o mobiliário da sua igreja, ad-
mira o trabalho maravilhoso de um painel do altar atribuído aos «artesãos bárbaros», e
«a escultura muito delicada, hoje insubstituível das tabuinhas de marfim da cadeira» .
A experiência dos humanismos do século XV não será antecipada pelo interesse e pelo
júbilo que suscitam os monumentos antigos entre os proto-humanistas da Antiguidade
Tardia e da Idade Média? Uma diferença irredutível opõe as duas formas de humanismo
e as suas relações com a Antiguidade: o distanciamento histórico que o observador do
Quattrocento estabeleceu, pela primeira vez, entre o mundo ao qual pertencia e a lon-
gínqua Antiguidade, de que estuda os vestígios. Para os clérigos do século VIII ou do
século XII, o mundo antigo é simultaneamente impenetrável e imediatamente próximo.
Impenetrável, pois os territórios tinham-se tornado cristãos, a visão pagã do mundo já
não tinha lugar, não era concebível. Próximo, pois estas formas vazias, ao dispor da
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mão e do olhar, são imediatamente transponíveis para o contexto cristão, onde são rein-
terpretadas segundo códigos familiares.
Mas os monumentos antigos não são apenas «reciclados»: são, com uma mesma simpli-
cidade, desmantelados e os fragmentos reinseridos em novas construções, para as embe-
lezar. Desde o século VI, Roma é uma fonte de materiais para os novos santuários.
Carlos Magno faz transportar de Roma e de Ravena os mármores e as colunas que utili-
zará em Aix la Chapelle. Suger, ao ampliar Saint-Denis, exaspera-se: «Onde encontrarei
colunas de mármore? Só encontro uma solução: ir a Roma ».
Mas Roma não é a única reserva. Em Lião, são os mármores do Forum vetus que aju-
dam a construir Saint-Martin-d'Ainay e as suas colunas a abside da catedral. Nîmes e
Arles alimentarão as abadias de Saint-Germain-des-Prés em Paris.
Nesta obra salvadora dos papas, são difíceis de traçar as fronteiras entre as medidas di-
tadas pela utilidade, as que inspiram o interesse histórico ou ainda a vontade de afirmar
uma identidade através dos monumentos. Duas memórias são solicitadas por duas cate-
gorias de monumentos: uma, mais próxima, religiosa, que estrutura a vida quotidiana, e
outra, mais distante, de um passado temporal e glorioso.
A presença simultânea em Roma destes dois tipos de monumentos, remetendo para duas
tradições tão distantes, convidava, sem dúvida, a um efeito de diferenciação e à criação
de uma outra distância à face aos monumentos da Antiguidade. O édito pelo qual se
protege a coluna de Trajano em 1162 é ambivalente: «Nós desejamos que ela permane-
ça intacta.» Monumento ou já monumento histórico? Impossível de responder.
Quando Martinho V retorna à cidade, os grandes monumentos jazem por entre as vi-
nhas e pastos, quando não foram ocupados e varridos por habitações. No contexto da re-
volução do saber em que vive então a Itália, essa mesma imagem arruinada de uma An-
tiguidade obriga o olhar a conceder aos monumentos romanos uma dimensão histórica.
É neste contexto mental, nestes locais e sob a designação plural de «antiguidades» que
se deve situar o nascimento do monumento histórico. Ainda precisará de três séculos
para adquirir o seu nome definitivo.
Designo por «antiquisante» a primeira fase deste desenvolvimento, dado que o interesse
pelos vestígios do passado, enquanto tais, se concentra apenas nos edifícios e obras de
arte da Antiguidade, com exclusão de qualquer outra época. Inúmeros testemunhos per-
mitem fixar o despertar do olhar distanciado e estético por volta de 1430 que, liberto das
paixões medievais, dirigindo-se para os edifícios antigos os transforma em objectos de
reflexão e de contemplação. Contudo, esta nova atitude foi preparada desde a segunda
metade do século XIV. Os historiadores e os historiadores de arte que se dedicaram aos
movimentos artísticos e intelectuais que se desenvolveram na Itália do Quattrocento
identificaram no século XIV duas atitudes originais, características, respectivamente,
dos humanistas e dos artistas. Estas duas atitudes contribuíram para uma primeira con-
Desde logo, os edifícios antigos adquirem um novo valor para Petrarca e para o seu cír-
culo de amigos. Eles testemunham a realidade de um passado acabado. Dissipam atra-
vés da sua presença a ressonância fabulosa dos textos gregos e latinos e esse poder não
se manifesta em nenhum lugar melhor do que em Roma.
Disse-se desta carta, tal como de outras contemporâneas, que transmitem de Roma uma
imagem «quase enfaticamente não visual». A sua pertença exclusiva ao mundo da escri-
ta e as suas preocupações essencialmente literárias, políticas, históricas, continuaram até
aos primeiros decénios do século XV a condicionar a atitude e o olhar dos humanistas
que faziam a viagem de Roma. Salvo excepções, esses visitantes não estão interessados
nos monumentos em si mesmos. Para eles, o testemunho do texto sobre o passado é
mais importante do que todos os outros. Preferem as inscrições que cobrem os edifícios
antigos aos próprios edifícios. Em 1452, Alberti resume os limites dessa atitude que ele
já ultrapassou: « Os túmulos dos Romanos e os vestígios da sua antiga magnificência,
que nós vemos em todo o nosso redor, ensinaram-nos a acreditar nos testemunhos dos
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historiadores latinos que, sem dúvida, nos pareceriam menos credíveis de outra forma.»
A esta aproximação literária opõe-se, na passagem do século XIV para o XV, uma outra
dos «homens de arte» (artifices) que, distintamente dos humanistas, estão basicamente
interessados nas formas. Pertenceu, de facto, a escultores e a arquitectos a descoberta
em Roma do universo formal da arte clássica. É o que se poderia chamar «efeito Bru-
nelleschi», na medida em este é o mais ilustre desses descobridores.
Mas não é o primeiro. Depois de ter confiado as suas reacções de letrado, Dondi opõe-
lhe as «dos nossos artifices modernos» perante os edifícios antigos, estátuas e outros
objectos análogos «da Roma antiga»: «Eles são tomados de espanto. Mais de uma vez,
ouvi um escultor famoso evocar as estátuas que ele tinha visto em Roma com tal admi-
ração e veneração que parecia estar fora de si.»
No entanto, segundo alguns historiadores, a síntese das duas abordagens, artística e le-
trada, teria sido realizada durante o último quartel do século XIV. A carta de Dondi
apresentaria a análise de dois componentes, colocados em pé de igualdade. Estes opera-
riam em conjunto entre os primeiros curiosos de arte antiga, de que Niccolo Niccoli é a
figura tutelar. Este erudito florentino, que começou por coleccionar os manuscritos de
autores clássicos, apaixonou-se pela escultura antiga. A colecção que ele lega a Cosme
de Médicis pode contribuir para o considerarmos o primeiro amador de arte no sentido
moderno desse termo. Niccoli é o catalizador que permitiu a eclosão dos coleccionado-
res príncipes, sábios e artistas do Quattrocento italiano. A sua perícia e sensibilidade
são conhecidas através da sua correspondência, nomeadamente com Poggio Bracciolini,
de quem foi o conselheiro frequentemente solicitado.
Niccoli não deixa de ser uma excepção. Por entre os letrados dos finais do século XIV e
do começo do século XV, os amadores de arte antiga representam uma ínfima minoria.
Esta é dominada pela figura precoce de Poggio, que parece ter conseguido, entre os pri-
meiros, aliar os dois olhares: o do sábio e o do esteta. A correspondência e os escritos
deste letrado, ao qual se deve a redescoberta de Vitrúvio, revelam como ele dá livre cur-
so ao deleite estético que lhe causam as esculturas e os edifícios antigos. Torna-se co-
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leccionador, mas não é por acaso que ele pede a Donatello para confirmar os seus entu-
siasmos. Foram Donatello e Brunelleschi que educaram o seu olhar e a sua sensibilidade
e que lhe ensinaram a ver a arquitectura e a escultura clássicas.
Nos anos de 1420 e 1430, iria estabelecer-se um diálogo sem precedentes entre artistas e
humanistas. Por um lado, os primeiros formam o olhar dos segundos, ensinam-no a ver
com outros olhos. Por outro, estes últimos revelam aos arquitectos e aos escultores a
perspectiva histórica e a riqueza da humanitas greco-romana, cujo conhecimento conce-
de à sua visão das formas antigas uma acuidade e uma profundidade novas. Donatello,
Brunelleschi e Ghiberti mostraram, na sua primeira visita em 1420, a arte de Roma a
Alberti. Mas, reciprocamente, é a influência de Alberti que explica como, em 1429,
Ghiberti renuncia completamente ao velho homem medieval e cria a Porta do Paraíso.
Com Alberti, o estaleiro romano é lido como uma lição de construção e depois como
uma introdução ao problema da beleza. Os edifícios de Roma são simultaneamente a
ilustração das regras da beleza arquitectónica, que ele se esforça por formular em termos
matemáticos, e o culminar de uma inaugural «história da arquitectura», cujo início ele
situa na Ásia, que prossegue pela experimentação da medida e das proporções na Grécia
e alcança, por fim, a sua perfeição em Roma, onde os arquitectos do Quattrocento vão
poder formar-se segundo o exemplo dos seus vestígios.
Outros arquitectos da mesma época, como Ghiberti, não se esquivaram a mencionar nos
seus escritos as obras de alguns construtores dos séculos XIII e XIV. As suas análises
trouxeram uma contribuição original à historiografia da arquitectura; continuam, no en-
tanto, dominadas pela periodização tripartida de Petrarca: bela antiguidade, idade obscu-
ra e renascimento moderno. Este esquema, votado a uma longa carreira, condiciona e
orienta a visão dos sábios, dos artistas e dos seus mecenas. Exclui do seu campo tudo
aquilo que pertence aos tempos intermédios. O monumento histórico não pode ser senão
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antigo, a arte não pode ser senão antiga ou contemporânea.
A literatura dos humanistas sobre as obras da Antiguidade faz esperar a sua conservação
deliberada e organizada. Esta toma formas diferentes consoante se trate de objectos mó-
veis ou de edifícios. De um lado, moedas, inscrições, esculturas e fragmentos diversos
coleccionados pelos artistas, os humanistas e os príncipes italianos são conservados nas
antecâmaras e nos jardins das suas habitações. A galeria surge apenas no século XVI,
mas chega a acontecer que amadores do século XV mandem construir edifícios para al-
bergar as suas antiguidades (villa de Mantegna, em Mântua). A colecção que se diferen-
cia do gabinete de curiosidades precede o museu. De natureza privada, ela oferece desde
1471 o primeiro exemplo de abertura (uma vez por ano) ao público, com as colecções
pontifícias do Capitólio.
Por outro lado, a conservação dos edifícios tem de ser necessariamente in situ e levanta
dificuldades técnicas. Depende do domínio público e político. Contra as forças sociais
de destruição que os ameaçam, os edifícios antigos têm uma única protecção - aleatória,
se não irrisória - a paixão pelo saber e o amor da arte. É por isso que a tomada de cons-
ciência no Quattrocento do duplo valor histórico e artístico dos monumentos da Anti-
guidade não implicou a sua conservação efectiva e sistemática. A Roma do século XV
é, nesta matéria, caracterizada por uma ambivalência notável.
É aos papas que compete, tal como no tempo de Gregório o Grande, a tarefa da preser-
vação. Mas trata-se, agora, de uma conservação moderna, já não lesiva, distanciada, ob-
jectiva e provida de medidas de restauro e de protecção dos edifícios antigos contra as
agressões múltiplas de que são alvo. A partir de Martinho V, sucedem-se as bulas ponti-
fícias com esta finalidade. A bula publicada por Pio II é exemplar. Antes de mais, o
papa distingue monumentos e antiguidades. Desejando conservar a Cidade na sua digni-
dade e esplendor, decide empregar a mais vigilante atenção na manutenção e preserva-
ção das basílicas, igrejas e outros lugares santos, «mas também para que as gerações fu-
turas encontrem intactos os edifícios da Antiguidade que conferem à Cidade o seu maior
encanto, incitam a seguir os exemplos gloriosos dos antigos e, o que é mais importante,
permitem-nos perceber a fragilidade da condição humana».
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O papa enuncia um conjunto de interdições precisas, que não isentam qualquer catego-
ria de infractores. Sob pena de excomunhão e de pesadas multas, proíbe «a todos, qual-
quer que seja o seu poder, ou a dignidade, danificar ou transformar em cal qualquer edi-
fício da Antiguidade existentes na Cidade ou nas suas proximidades, mesmo que se en-
contrem em propriedades que lhes pertençam».
Como explicar a ambivalência destes príncipes e destes papas que protegem com uma
mão e degradam com a outra os edifícios antigos da cidade? É contra o seu papel no
massacre do Roma que se eleva, a maioria das vezes, a censura dos humanistas. Mas,
mesmo as atitudes dos que protestam, letrados ou artistas, nem sempre é coerente. Rafa-
el denuncia que «... desde a minha chegada a Roma, se destruíram monumentos, como a
arcada na entrada dos banhos de Diocleciano, o templo de Ceres e uma parte do Fórum,
cujos mármores forma convertidos em cal». No entanto, o mesmo Rafael beneficia de
um breve de Leão X que lhe confia «a inspecção geral de todas as descobertas de pedras
Com efeito, estes homens deslumbrados pela luz da Antiguidade e das antiguidades não
podiam libertar-se repentinamente de uma mentalidade ancestral e esquecer os compor-
tamentos enraizados, idênticos aos da maioria dos seus contemporâneos, tanto os letra-
dos como os iletrados. O distanciamento relativamente aos edifícios do passado exige
uma aprendizagem longa, uma duração que o saber não pode diminuir e que é necessá-
rio para que o respeito se substitua à familiaridade.
Finalmente, a atitude contraditória dos papas é ditada por políticas económicas e técni-
cas ligadas à necessidade de embelezar e de modernizar a cidade. A urgência exige ma-
teriais de construção, de que não se dispõe em quantidades suficientes, e espaços livres
para as realizar. Tal como mais tarde, no contexto da modernização encetada desde os
séculos do classicismo, e pelas mesmas razões, os promotores dos trabalhos são, muitas
vezes, os executantes das destruições.
Esta ambivalência, que se assemelha a uma duplicidade, anuncia uma dimensão impor-
tante do discurso sobre a conservação e a protecção patrimoniais em geral, e a dos mo-
numentos históricos e das antiguidades em particular. Quer se apoie na razão ou no sen-
timento, esse discurso tornar-se-á muitas vezes na boa consciência do demolidor e na
caução da demolição. Ao ligar a noção de antiguidades à da sua preservação, e colocan-
do assim fora de jogo o conceito de destruição, os papas fundam uma protecção ideal,
cuja natureza, puramente discursiva, serve para mascarar e autorizar a destruição real,
ao nível das acções, das mesmas antiguidades.
O Museu, que recebe o nome quase na mesma altura que o monumento histórico, insti-
tucionaliza a conservação das pinturas, das esculturas e dos objectos de arte antigos e
prepara a via da conservação dos monumentos da arquitectura. Entre a segunda metade
do século XVI e o segundo quartel do século XIX, as antiguidades são objecto de um
imenso esforço de conceitualização e de recenseamento. Um aparelho iconográfico for-
talece esse trabalho e facilita a sua entrada na memória. Um corpus de edifícios, conser-
vados pelo poder da imagem e do texto, é assim reunido num museu de papel.
A atitude inaugural dos humanistas é prosseguida pela pesquisa culta e meticulosa dos
eruditos, conhecidos então por antiquários. A palavra, caída em desuso nessa acepção,
merece ser conservada devido à sua conotação precisa e concreta. Ela designa aquele
que é «sabedor no conhecimento dos antigos e que tem curiosidade por eles» .
Durante mais de dois séculos, o inquérito foi conduzido por eruditos pertencentes a to-
das as nações da Europa. Diferentes pelo seu nascimento (da média burguesia à alta
aristocracia), pela sua condição (religiosos e laicos, ociosos ou homens de trabalho, ho-
mens de letras e homens de ciência) e pela sua fortuna, eles estavam unidos pela paixão
pela Antiguidade e pelas antiguidades. Essa comunidade de sábios de que Roma era o
centro de união, reunia quase todas as congregações: beneditinos, como o francês Mont-
faucon; jesuítas, como o alemão Kircher; abades seculares, como o italiano Paciaudi, ou
Barthélemy; pastores anglicanos, como Pococke. A eles juntam-se príncipes, como Fe-
derico Cesi; diplomatas como o marquês de Nointel. Acrescentam-se professores e ho-
mens de ciências, como o astrónomo italiano Branchini; médicos, como Spon; juristas,
como Cassiano dal Pozzo; homens de toga e altos funcionários, como Foucault.
A esta lista há a acrescentar os artistas que contribuíram para a iconografia das antigui-
dades e que eram igualmente autênticos eruditos. Não há contestação possível para Ru-
bens ou Piranesi e para o gravador Pietro Bartoli. Mas, por entre os arquitectos, forma-
dos na técnica do levantamento, deve ou não contar-se com Serlio, Mignard, ou ainda
von Erlach?
Mencionam-se, por fim, os amadores, desde o mecenas inglês Leicester até ao barão
belga de Crassier. A fronteira entre o antiquário e o letrado é incerta, uma vez que a ex-
tensão da educação clássica dos últimos cria um antiquário em potência.
Antiguidades nacionais
O modelo das antiguidades clássicas inspira aos eruditos a abertura de um novo campo,
o das antiguidades nacionais: monumentos antigos erguidos ou produzidos nos diferen-
tes países europeus antes, e principalmente depois, do colonato romano. Diversos facto-
res contribuíram para semelhante interesse: o efeito estimulante das investigações leva-
das a cabo nos territórios nacionais em busca de vestígios greco-romanos. Depois, o de-
sejo de equipar a tradição cristã com um corpus de obras e de edifícios históricos análo-
go ao da tradição antiga. Por fim, o desejo de afirmar a originalidade e a excelência da
civilização ocidental, seja para a diferenciar das suas fontes greco-romanas, seja para
afirmar particularidades nacionais contra a hegemonia dos cânones arquitectónicos itali-
anos. Este novo projecto começa a esboçar-se desde finais do século XV, e toma formas
locais, monográficas, incertas na localização cronológica e morfológica dos edifícios,
Os tempos que separam o reino de Teodósio do século XV não estão, todavia, desprovi-
dos de realizações: «A esses séculos devemos invenções que os antigos da bela antigui-
dade ignoravam: os moinhos, os óculos, a bússola, os vidros, a imprensa. Esses homens,
que não tinham qualquer ideia sobre a beleza da pintura, a elegância estatuária, e as pro-
porções da arquitectura, ocuparam-se na invenção de coisas úteis».
Quanto aos vestígios megalíticos, por vezes atribuídos aos Romanos ou integrados na
herança cristã, atiçam a curiosidade pelo seu aspecto insólito e misterioso e começam a
ser inventariados a partir do século XVII. Em 1759, Caylus apresenta uma tipologia e
um inventário ilustrado dos megálitos gauleses.
Gótico
A arquitectura conhecida hoje por gótica tinha-se tornado fora de Itália, desde finais do
século XV, no símbolo das antiguidades nacionais e é sobre ela que se debruçava a aten-
ção dos antiquários: documentada por abundantes arquivos, era simultaneamente muito
antiga e familiar. Consoante os países, o processo que transformava os monumentos gó-
ticos em antiguidades nacionais era favorecido ou travado por condições particulares,
bem ilustradas pelos exemplos de França e de Inglaterra.
Esta atitude não é discernível entre os Ingleses. Para eles, o gótico é um estilo nacional
que, nem a evolução do gosto, nem a moda colocarão em questão. Dois factores origi-
nais contribuíram para a Grã-Bretanha conceder este estatuto privilegiado às constru-
ções góticas da Idade Média, em particular, aos edifícios religiosos: o triunfo da Refor-
ma e a penetração tardia do «estilo italiano» na arquitectura.
Estas condições explicam por que os estudos consagrados às antiguidades nacionais fo-
ram mais precoces, mais numerosos e mais bem acolhidos em Inglaterra do que em
França. A dimensão do interesse manifestado pelas antiguidades nacionais é assinalada,
para além disso, pela criação de sociedades de antiquários: a Society of Antiquarians of
London é fundada em 1585, para «fazer progredir e ilustrar a história e as antiguidades
de Inglaterra». Os antiquários britânicos constituíram um corpus extenso e coerente.
Eles colocaram pela primeira vez as questões relativas à origem do gótico e à sucessão
das suas diferentes fases, tentando elaborar, de forma sistemática, uma terminologia dos
diferentes estilos medievais. Finalmente, eles iniciaram, em termos ainda actuais, o de-
bate acerca do restauro dos monumentos históricos e a natureza das intervenções.
Advento da imagem
O antiquário tem de ultrapassar três obstáculos: o peso da tradição, que atribui aos auto-
res da Antiguidade e às crónicas medievais a sua autoridade, bem como o seu poder de
ocultar o real; a falta de preparação para o método de observação científica, posta em
causa pelas concepções medievais da representação e da cópia, que privilegiam um ou
mais elementos, por vezes imateriais, em detrimento da forma global; a insuficiência do
material arqueológico disponível. Peiresc desconfia por princípio de todo o testemunho
não confirmado pelos seus próprios olhos: «pedia a diferentes pessoas medidas e planos
das mesmas coisas para as comparar e tomar em seguida a decisão mais segura». Pei-
resc formula os princípios directores de uma investigação bem conduzida.
Impõe-se a comparação com o avanço das ciências naturais que, na mesma época, so-
frem das mesmas dificuldades e são estorvadas pelo mesmo pseudo-saber lendário: ani-
mais fantásticos e templos fabulosos exigem a mesma crítica. As duas disciplinas aju-
dam-se e educam-se mutuamente. Nesse tempo, elas são frequentemente praticadas por
um mesmo sábio: Peiresc e dal Pozzo observam com o mesmo olhar um camafeu ou um
camaleão. Outro ponto comum aos naturalistas e aos antiquários é a sua dependência
face aos ilustradores, seja porque é necessário utilizar documentos de épocas anteriores,
de que não se pode verificar a fiabilidade, seja porque qualquer publicação exige a me-
diação interpretativa do gravador. Salvo raras excepções, é um risco confiar na objecti-
Quanto aos desenhos dos arquitectos, são geralmente tão inexactos quanto os dos pinto-
res. Se desde o século XV eles efectuam levantamentos precisos no local, até meados do
século XVIII eles preocupam-se pouco com a exactidão das representações. Quer sejam
apresentados em planta, corte, ou elevação, os edifícios antigos são reduzidos e abstraí-
dos de qualquer contexto, de acordo com um erro metodológico denunciado por Peiresc
e igualmente frequente na reprodução das naturalia. O arquitecto não se contenta em
idealizar ou normalizar os monumentos antigos que representa: ele inventa deliberada-
mente. Por vezes reconstitui, sem outro apoio que não o da sua imaginação, as partes
ausentes dos edifícios arruinados, ou então imagina edifícios que nunca viu pessoalmen-
te. Tomemos o exemplo do Partenon: entre a primeira imagem fantasiosa, executada in
situ em 1444, e a representação científica e publicada por David Le Roy decorreram três
séculos e meio, intercalados por uma sucessão de figurações inexactas.
O Iluminismo
Momigliano define com perspicácia esta «história» finalmente crítica, como a síntese da
atitude analítica dos antiquários e da aproximação interpretativa dos filósofos historia-
dores das Luzes. A história da arte teria sido, por seu lado, fundada por uma outra sínte-
se crítica, na qual a filosofia da arte representa o papel da filosofia da história. Winckel-
mann foi o primeiro a propor uma periodização geral da arte antiga, fundada sobre crité-
rios formais, que permitiam a crítica das ideias feitas.
O estatuto das antiguidades repousa sobre a importância e o novo papel que a época
No entanto, dos valores histórico e artístico que os humanistas tinham descoberto nas
antiguidades, a maioria dos antiquários reteve apenas o primeiro e negligenciou o se-
gundo. Não se encontram quase nenhumas apreciações sensíveis e juízos de gosto nas
suas obras. E quando, por acaso, a admiração é expressa, é em bloco, de forma conveni-
ente, adoptando a terminologia (soberbo, magnífico) da tradição textual antiga.
Contudo, um pequeno número de antiquários, com destaque para Caylus, lançou as ba-
ses de uma outra história da arte, distinta da de Winckelmann, menos abstracta, mais
sensível e atenta às características plásticas das obras. Caylus foi um amador e um artis-
ta antes de se tornar num erudito e o seu objectivo principal, enquanto antiquário, era o
de disponibilizar os materiais para uma história das formas. Daí a necessidade de uma
aprendizagem do olho e da mão. Ele percebe imediatamente as diferenças de estilo na
sua ligação com a duração. O seu olho não se arrisca a confundir grego, etrusco ou ro-
mano, ou a atribuir uma romanidade qualquer aos megálitos bretões. Está ao serviço de
um saber artístico, que a maior parte dos outros antiquários negligencia e a que nós cha-
mamos história da arte. Ao tentar dar a conhecer a dimensão artística das antiguidades,
ele apresenta o prazer singular, ainda mal reconhecido, de que elas são portadoras. Des-
de então, dá-se a conhecer uma nova filosofia, plena de consequências quanto ao modo
de conservação das antiguidades: o prazer da arte não é mediatizável e exige a presença
real do seu objecto.
Caylus foi um dos primeiros a interrogar-se acerca do valor para a arte das imagens que
reproduzem os monumentos históricos e a sublinhar a sua ambiguidade. Reconhece-lhes
um fim didáctico para os noviços. Indispensáveis ao amador erudito, as imagens não são
para ele mais do que um instrumento de trabalho, na medida em que estão «destituídas
da vida que se admira nos originais». Este juízo situa Caylus na história das ideias.
Este amor pela arte que, desde o Renascimento, exige a presença real do seu objecto
para se satisfazer, iria por fim mobilizar forças sociais suficientemente poderosas para
Património - O Tempo os Antiquários. Monumentos Reais e Monumentos Figurados 25/90
institucionalizar uma conservação material sistemática das antiguidades. Um mercado
de arte em expansão constante, associado ao aprofundamento da reflexão sobre a arte e
às descobertas arqueológicas, criava uma nova mentalidade por entre um público de
amadores, recrutados em camadas sociais mais vastas e que dispunham de uma autori-
dade e de um poder económico sem precedentes. Enquanto se multiplicavam as colec-
ções privadas, eram criados os primeiros museus de arte destinados ao usufruto público.
O desenvolvimento destas instituições inscreve-se no projecto filosófico e político das
Luzes: vontade dominante de «democratizar» o saber e de o tornar acessível a todos.
Desde que a palavra vandalismo foi cunhada pelo abade Gregório, o balanço das des-
truições revolucionárias já foi feito e a historiografia da sua metodologia detalhadamen-
te estabelecida. Em contrapartida, a obra de salvaguarda do património francês realizada
pela Revolução permanece em geral desconhecida. Ela foi, no entanto, analisada com
minúcia a partir dos arquivos e documentos oficiais por Rucker, que aí vê «as origens
da conservação dos monumentos históricos em França». Com efeito, a conservação do
monumento histórico, com o seu aparelho jurídico e técnico remonta à Revolução.
A classificação do património
A transferência de bens para a nação não tinha precedentes e iria colocar problemas
igualmente sem precedentes. Integradas entre os bens patrimoniais, as antiguidades são
valores materiais que, sob pena de prejuízo financeiro, há que preservar e manter.
Havia que elaborar um método para o inventário da herança e definir as suas regras de
gestão. Sob proposta de Mirabeau e de Talleyrand foi criada uma «comissão dos monu-
mentos». Devia classificar as diferentes categorias de bens recuperados. De seguida,
cada categoria é ela própria inventariada e é relatado o estado dos bens que a compõem.
Finalmente, e antes de qualquer decisão sobre o seu destino, os bens são protegidos e
provisoriamente colocados fora do circuito, seja pelo seu reagrupamento em
«depósitos», seja pela colocação de selos, nomeadamente nos caso dos edifícios.
Os bens imóveis, conventos, igrejas, castelos e palácios colocavam problemas numa ou-
tra escala, e as comissões revolucionárias incumbidas da sua conservação estavam ainda
menos preparadas para os enfrentar. Do estrito ponto de vista da manutenção, elas não
dispunham de infra-estruturas técnicas e financeiras que lhes permitissem substituir-se
aos antigos proprietários. Mas, sobretudo, competia-lhes inventar novas utilizações para
edifícios. Que se podia fazer de uma igreja? Anexá-la para o culto do Ser Supremo?
Esta solução não teve mais sucesso do que tinha tido na Antiguidade Tardia a conversão
dos templos pagãos em igrejas cristãs. O seu estilo neoclássico, em consonância com os
ideais da Revolução, valeu à igreja de Sainte Geneviève transformar-se no «Panteão
francês». Bréquigny sugeria a utilização das igrejas fora de uso como museus. Mas as
catedrais e as igrejas, que em muitos casos tinham perdido os seus tectos, foram a maior
parte das vezes convertidas em depósitos de munições, de pólvora ou de sal ou, caso
não se conseguisse, em mercados, enquanto que os conventos e as abadias eram trans-
formados em prisões ou em casernas.
Compreender esta atitude reactiva exige que o vandalismo ideológico seja distinguido
das outras formas de destruição do património histórico surgidas com a Revolução.
Com efeito, não deve ser confundido nem com as destruições resultantes de actos priva-
dos, nem com as destruições ordenadas pelo Estado revolucionário, mas associadas a
fins económicos. Os actos privados de vandalismo pertencem ao cortejo de desvios que
acompanham os períodos de guerras e de problemas sociais: roubos, pilhagens. Existe,
no entanto, uma outra forma de degradação privada do património, tanto mais perversa
quanto realizada em plena legalidade. Assim, através da França, nas cidades e no cam-
po, os compradores de bens nacionais puderam, impunemente, arrasar, para lotear o ter-
reno ou para os converter em pedreiras de materiais de construção, alguns dos monu-
mentos prestigiados, como seja a abadia de Cluny.
Para mais, o Estado revolucionário tinha ele próprio ordenado destruições destinadas a
socorrer as despesas. Quantas guerras não obrigaram os reis a mandar fundir a sua bai-
xela de prata e os seus objectos de ourivesaria? A falida Assembleia Legislativa não só
decretou a fundição de pratas e de relicários, como transformou em canhões os tectos de
chumbo ou de bronze das catedrais, das basílicas e de igrejas.
Contudo, ao decreto sobre a fundição sucede, um mês mais tarde, uma Adenda de Ins-
truções que o tempera com excepções. Por entre as nove condições ou critérios moti-
vando cada um a conservação dos bens condenados, o interesse histórico, a beleza do
trabalho, o valor pedagógico para a arte e as técnicas são pela primeira vez enumerados
em conjunto e constituem uma definição implícita dos monumentos ou do património
histórico. Pode ver-se aí o incentivo da conservação reactiva.
Quer adopte uma forma jurídica ou exprima posições individuais, o discurso instigador
do vandalismo não tem ambiguidade. O pintor David faz votar pela Convenção o levan-
tamento de uma estátua colossal em honra do povo francês e elevada sobre os destroços
dos ídolos da tirania e da superstição.
Não se pode contestar as diferenças de pontos de vista que reinavam nas diferentes co-
missões e na Assembleia. Dussaulx toma a palavra diante da Convenção: «… há que
poupar os monumentos preciosos para as artes. Fui informado por artistas célebres que a
porta de Saint-Denis está ameaçada. Sem dúvida consagrada a Luís XVI, ela merece o
ódio dos homens livres, mas essa porta é uma obra-prima. Ela pode ser convertida em
monumento nacional, que os conhecedores virão de toda a Europa para a admirar.».
Estas verdades foram desde cedo compreendidas pelos homens que organizaram contra
os decretos vândalos a protecção da herança monumental da nação. Eles tinham por ob-
jectivo uma dupla superação.
Antes de mais, superação da violência utópica: eles sabiam que a violência não pode ser
legítima se não for temporária. Vicq d'Azyr afirma: «Logo que o povo rompeu a sua ca-
deia e venceu os opressores pôde ferir tudo; mas hoje o povo remeteu o cuidado da sua
fortuna e das suas vinganças a legisladores». Romper com o passado não significa nem
abolir a sua memória, nem destruir os seus monumentos, mas conservar uns e outros
num movimento dialéctico que assume e ultrapassa o seu significado histórico original.
A atitude dos que se abstêm de equiparar a arte e o saber à ideologia, é comparável à
dos revolucionários soviéticos que conservaram intacta São Petersburgo e os seus palá-
cios, testemunhos da sua história e dos tesouros acumulados pelos soberanos, fundado-
res da nação.
Publica-se a Instrução sobre a maneira de inventariar, com setenta páginas. Ela inicia-
Património - A Revolução Francesa 33/90
se com uma breve apologia da razão e da educação e termina com uma não menos breve
condenação do vandalismo, totalizando seis páginas. As outras sessenta e quatro pági-
nas são consagradas à definição das diferentes categorias de bens a conservar e à descri-
ção dos procedimentos técnicos próprios de cada uma delas. O principal redactor deste
texto não é nem um político, nem um historiador, nem um artista. É Vicq d'Azyr, suces-
sor de Buffon na Academia Francesa. Este sábio, especialista da anatomia do cérebro,
transpôs para o domínio dos monumentos históricos a terminologia e os métodos descri-
tivo e taxinómico que o tinham tornado célebre na sua disciplina. Ele colocou ao serviço
da protecção do património nacional o seu saber pedagógico. O papel representado por
Vicq d'Azyr no seio da Comissão Temporária das Artes durante os anos de 1792 e 1793
ilustra uma nova forma, pela primeira vez prática, das relações mantidas pelas ciências
naturais com o estudo dos monumentos históricos. O quadro construído pelos mentores
da conservação reactiva para inventariar os bens imóveis da herança nacional liberta o
conceito de monumento histórico de qualquer restrição ideológica ou estilística. O cor-
pus dos monumentos históricos compreende desde aí, para além dos vestígios greco-ro-
manos em solo francês, as antiguidades nacionais (celtas, «intermédias» e góticas) e as
obras da arquitectura clássica e neoclássica.
Valores
Os valores atribuídos a estes monumentos são revelados quer através dos decretos e ins-
truções publicadas pelo Comité de Instrução Pública, como nos Relatórios de Gregório,
que se assemelham à argumentação desenvolvida anteriormente por Vicq d'Azyr e ou-
tros fundadores da conservação secundária.
O valor nacional é o mais importante. É ele que, do princípio ao fim, inspirou as medi-
das conservatórias tomadas pelo Comité de Instrução Pública, foi ele que justificou o in-
ventário e a verificação de todas as categorias da «sucessão». Curiosamente, ele não
será referido por Alois Riegl, que foi o primeiro historiador a interpretar a conservação
dos monumentos antigos por meio de uma teoria de valores. Riegl pensa em termos de
monumento histórico, noção que prevaleceu até aos anos sessenta do século XX, e não
em termos de património: este último conceito, forjado para designar bens pertencentes
à nação e susceptíveis de um novo tipo de conservação (ou utilização ?), perde parte da
sua pertinência e cai em desuso assim que a Revolução termina. Na França revolucioná-
ria, o valor nacional é aquele que legitimou. Tais como:
Depois dos valores cognitivos segue-se o valor económico dos monumentos históricos.
Por um lado, eles oferecem modelos para as manufacturas. Por outro lado, no século
que institucionalizou a «grande viagem», reconhece-se ao património monumental uma
forma de atrair os visitantes estrangeiros. A exploração turística dos monumentos fran-
ceses é imaginada a partir do modelo que a Itália realizou desde tempos recuados.
A investigação dos antiquários podia ser conduzida por indivíduos, agrupados ou não
em sociedades científicas. Viu-se inclusive que estas últimas tinham espontaneamente
tomado a seu cargo a protecção dos grandes monumentos religiosos na Grã-Bretanha.
Em França, a conservação de um património promovido a propriedade de todos torna-se
num negócio do Estado. Na tormenta revolucionária, a grande herança nacional é admi-
nistrada por comités ad hoc, nos quais o governo revolucionário delega o seu poder. A
política de conservação é um peça fundamental do dispositivo geral de centralização:
ela é elaborada em Paris, sob a responsabilidade do ministro do Interior, e os prefeitos,
representante do Estado, estão encarregados da sua aplicação.
Património - A Revolução Francesa 35/90
Assim, sob o ímpeto de 1789, todos os elementos necessários para uma autêntica políti-
ca de conservação do património monumental de França pareciam reunidos: criação do
termo monumento histórico, corpus em curso de inventariação, administração dispondo
de instrumentos jurídicos (disposições penais incluídas) e de técnicas sem equivalente.
A conservação do património histórico não foi durante a Revolução, nem uma ficção,
nem uma aparência. Essa experiência durou seis anos e determinou a longo prazo a evo-
lução da conservação monumental em França.
O fim da Revolução coloca termo aos trabalhos das comissões. O interesse de Napoleão
I iria centralizar-se prioritariamente nos museus. O Louvre tornava-se, graças a Vivant
Denon, no primeiro museu moderno e os museus de província recebiam o seu quinhão
do fabuloso espólio da pilhagem judiciosa e sistemática dos grandes museus e colecções
de arte europeias. Durante todo este projecto de transferência e apropriação, Napoleão
não se preocupou muito com a sorte dos monumentos históricos nacionais. A desnacio-
nalização de uma parte dos bens alienados contribuía para o adormecer de um aparelho
de gestão nascido prematuramente. Além disso as mentalidades não estavam maduras
para que essa gestão se generalizasse fora de um contexto revolucionário.
Por outro lado, a história da arquitectura era quase inexistente e não se dispunha de cri-
térios de análise que permitissem um tratamento sistemático dos edifícios a conservar.
Para mais, sem contar com as dificuldades próprias à situação económica e política, a
gestão da herança representava uma tarefa tornada sobre-humana pelo número de edifí-
cios cuja manutenção era, anteriormente, assegurada por instâncias entretanto abolidas.
Apesar destas dificuldades o período compreendido entre 1796 e 1830 não se salda, em
matéria de conservação dos monumentos históricos, por um vazio completo, nem mes-
mo por uma regressão, como se admite geralmente. Foi recentemente mostrado que a
obra dos conservadores esclarecidos tinha sido em parte continuada durante o Directório
e o Império pelo Conselho dos Edifícios Civis, instituído em 1795. Com discrição, per-
severança e meios limitados, este órgão soube até inovar. Graças à presença nas suas
equipas de arquitectos que eram, como Peyre, também antiquários, o Conselho coloca-
va, em França, as primeiras pedras de uma doutrina de restauro dos edifícios antigos e
punha-se ao serviço da arte gótica. Para além disso, por via da sua luta contra o vanda-
lismo dos especuladores, os arquitectos do Conselho fizeram prevalecer pela primeira
vez a qualidade estética dos edifícios medievais e contribuíram para preparar o reconhe-
cimento de que o valor artístico dos monumentos do passado ia ser objecto, a partir do
«Os monumentos da antiga França induzem sentimentos nacionais e não mais se reno-
vam»: (Voyages pittoresques et romantiques dans l’ancienne France de Charles Nodier
e barão Taylor). Esta constatação de um esgotamento irremediável e traduz uma altera-
ção de mentalidade. O monumento histórico entra na sua fase de consagração, cujo ter-
mo se pode fixar por volta de 1960, ou, se se quiser encontrar uma outra fronteira sim-
bólica, em 1964, data da redacção da Carta de Veneza (Carta Internacional Sobre a Con-
servação e Restauro dos Monumentos e Sítios).
Este espaço cronológico pode parecer demasiado largo. Ele esconde acontecimentos que
teriam podido fundar uma periodização mais fina. Veja-se as contribuições dos diferen-
tes países para a teoria e para as práticas de conservação do monumento histórico (pri-
meiro, avanço da reflexão britânica, que se mantém até aos últimos decénios do século
XIX, depois a Itália e os países germânicos tomam a dianteira da inovação). Do mesmo
modo a invenção de técnicas ou os progressos da história da arte e da arqueologia, em
conjunto, marcaram o desenvolvimento do restauro dos monumentos enquanto discipli-
na autónoma. Também a evolução e as revoluções da arte e do gosto determinaram fa-
ses distintas no tratamento e selecção dos monumentos históricos a proteger.
Os anos 20 do século XIX assinalam a afirmação de uma mentalidade que rompe com a
dos antiquários, bem como com a atitude da Revolução Francesa. Desde os anos 50 do
século XIX que, apesar das diferenças de industrialização, a maior parte dos países eu-
ropeus consagrou o monumento histórico. Consagração que poderia ser definida a partir
de dois textos simbólicos e complementares, um oficial e administrativo, o outro contes-
tatário e polémico. São eles o Relatório «apresentado ao Rei em 1830 por Guizot, mi-
nistro do Interior, para fazer instituir um inspector-geral dos monumentos históricos em
França» e o panfleto, publicado em 1854 por John Ruskin, sobre «a abertura do Crystal
Palace, encarado do ponto de vista das suas relações com o futuro da arte».
A pintura e a gravura românticas fazem com que a representação figurada dos monu-
mentos antigos desempenhe um papel quase oposto ao que lhe tinha sido atribuído ante-
riormente pelas obras eruditas. A uma iconização museológica e abstracta, em que a
imagem tende a substituir-se à realidade das antiguidades, sucede, uma iconização su-
pletiva que enriquece a percepção concreta do monumento histórico, por via da media-
ção de um novo prazer. O olhar do antiquário construía do monumento uma imagem in-
dependente e tão analítica quanto possível. O olhar do artista romântico inscreve o mo-
numento numa encenação sintética que o dota de um valor pictórico suplementar, sem
relação com a sua qualidade estética própria.
A diferença entre as duas aproximações é, por vezes, ilustrada por um único e mesmo
artista. E o caso de Tumer e da sua obra gravada. Por um lado, ele executa durante os
anos noventa do século XIX para o antiquário Whitaker ilustrações analíticas apresen-
tando objectos descontextualizados, dissociados uns dos outros e definidos com rigor
pelas suas características morfológicas e decorativas. Por outro lado, entrega a diversos
Annuals as suas primeiras «topografias pitorescas», vistas sintéticas nas quais o monu-
mento faz parte de um conjunto no qual está cenograficamente inserido: apresentado,
Homens da escrita, intelectuais e artistas foram mobilizados por uma outra força: a to-
mada de consciência de uma mudança de era histórica. A entrada na era industrial, a
Património - A Consagração do Monumento Histórico 41/90
brutalidade com que esta vem dividir a história das sociedades e o seu ambiente e o
«nunca mais como antes» que dela resulta são uma das origens do romantismo, pelo
menos na Grã-Bretanha e em França. A consciência da chegada de uma nova era criou,
face ao monumento histórico, uma mediação e uma distância consecutivas, ao mesmo
tempo que libertava energias em prol da sua protecção.
É assim que Hugo, Balzac e Mérimée opõem à «velha» França, «a nova França. Veja-
se: Hugo, «A indústria substituiu a arte»; Balzac, «Temos produtos, já não temos
obras». Em Inglaterra, Carlyle: «Não é apenas o mundo físico que é organizados pela
máquina, mas também o nosso mundo interior e espiritual». Ruskin sublinha a oposição
de um lado e de outro da fatídica linha de divisão entre a arquitectura tradicional e a
construção moderna. A primeira tinha por vocação afirmar a permanência do sagrado,
articulando na duração as diferenças dos homens. A segunda, anónima e padronizada,
recusa a duração e as suas marcas: a arquitectura doméstica é substituída por habitações
precárias, onde se vive como em estalagens e a arquitectura pública dá lugar a espaços
de ferro e de vidro, cuja superfície o tempo não está autorizado a marcar.
A Inglaterra, apesar de ser a terra natal da revolução industrial, permanece mais apegada
às suas tradições, mais orientada para o passado: o ideal de revival, que nunca se adap-
tou em França, inspira aí um movimento florescente. Não é surpreendente que os Ingle-
ses tenham dado ao monumento histórico significados mais diversificados e mais em
consonância com o presente.
Os defensores ingleses dos monumentos históricos ignoram este fatalismo. Eles não se
resignam com o desaparecimento dos edifícios antigos. Para eles, os monumentos do
passado são necessários à vida do presente, não sendo nem ornamento aleatório, nem ar-
caísmo, nem tão-somente portadores de saber e de prazer, mas parte do quotidiano.
O valor da devoção
Ruskin referiu também a memória como um novo destino e um novo valor do monu-
mento histórico. «Nós podemos viver sem a arquitectura, mas sem ela não podemos re-
cordar.». Para o autor de Stones of Venice, a arquitectura é o único meio de que dispo-
mos para conservar vivo um laço com um passado ao qual devemos a nossa identidade.
Mas este passado é, antes de mais, definido pelas gerações humanas que nos precede-
ram. Se Ruskin chega a interrogar os monumentos por meio da memória objectiva da
história, ele prefere, contudo, uma aproximação afectiva. É por intermédio dos senti-
mentos morais, a devoção e o respeito, que ele entra no mesmo nível do passado. Que
recordam os edifícios antigos? O valor sagrado dos trabalhos que os homens de bem,
desaparecidos e anónimos, realizaram para honrar o seu Deus, compor os seus lares,
manifestar as suas diferenças. Fazendo-nos ver e tocar o que viram e tocaram as gera-
ções desaparecidas, o mais humilde lar possui, a par do edifício mais glorioso, o poder
Ele pergunta-se como poderia a arquitectura reencontrar o valor de devoção, que lhe era
consubstancial, na crise iniciada pela revolução industrial. Ou seja, como é que «a ar-
quitectura do presente poderia ser tornada histórica». Este qualificativo só é merecido,
segundo Ruskin, se a arquitectura se reapropriar da sua essência e do seu papel memori-
al por via da qualidade do trabalho e do investimento moral de que teria sido objecto.
Vê-se que Ruskin, aproximando os edifícios do presente e do passado, não está longe de
tornar a dar ao monumento histórico o valor e a função do monumento original. Com
efeito, abstracção feita do valor histórico que lhe é inerente, o primeiro distingue-se do
segundo apenas pelo carácter impreciso e mesmo genérico, do que ele recorda à memó-
ria, através do sentimento difuso de devoção: a figura intacta da obra, solidária e manu-
almente realizada pelas gerações humanas.
Em todos estes domínios, os Britânicos foram pioneiros. A sua substituição foi assegu-
A era industrial altera o modo de vida e a organização das sociedades, a ponto de tornar
obsoletos os tecidos urbanos existentes. Os monumentos que aí se inserem são obstácu-
los a um novo modo de urbanização. Para além disso, a manutenção dos edifícios anti-
gos é cada vez mais negligenciada e o seu restauro não obedece a conhecimentos regu-
lamentados. É-se assim confrontado com dois tipos de vandalismo, que foram designa-
dos em França e em Inglaterra pelos mesmos adjectivos: destruidor e restaurador.
No contexto do século XIX a acção dos defensores do património não podia ser eficaz
se não assumisse duas formas específicas e complementares: uma legislação de protec-
ção e uma disciplina de conservação.
Evocarei aqui apenas os trabalhos que precederam a legislação francesa, durante muito
tempo uma referência, primeiro para a Europa e depois para o resto do mundo, devido à
clareza e à racionalidade dos seus procedimentos.
A via tinha sido aberta pelo Comité de Instrução Pública durante a Revolução. Entre
1830, quando Guizot criou o cargo de Inspector dos Monumentos Históricos, e 1887,
data da promulgação da primeira lei sobre os Monumentos Históricos. Decorre uma lon-
ga fase de experimentação e de reflexão. O posto de inspector coube a Vitet, que se de-
mite em 1834 em favor de Mérimée. Este tem por missão «classificar» os edifícios que
Uma primeira lei foi promulgada em 1887 e a forma definitiva em 1913, constituindo
actualmente esse documento o texto de referência sobre os monumentos históricos. O
Serviço dos Monumentos Históricos é uma instituição centralizada, dotado de uma in-
fraestrutura administrativa e técnica e de uma grelha de procedimentos jurídicos adapta-
dos ao conjunto de casos previsíveis e serviu de modelo a outros países, em que o papel
do Estado é menos centralizador (Alemanha, Itália). Em Inglaterra, a intervenção do Es-
tado na gestão e conservação dos monumentos históricos apareceu tarde, com o Ancient
Monuments Protection Act de 1882, e permaneceu reduzida. A lei francesa de 1913 ia,
contudo, revelar inconvenientes: o peso da burocracia e o esbatimento progressivo do
papel activo, estimulante e anti-conformista dos actores benévolos.
Querer e saber «classificar» monumentos é uma coisa. Saber depois conservá-los fisica-
mente e restaurá-los é um outro assunto, que assenta sobre outros conhecimentos. Ele
exige uma prática específica e praticantes especializados: os «arquitectos dos monumen-
tos históricos», que o século XIX inventou.
Obstáculo mais grave, por fim, é o facto do trabalho de consolidação e de restauro não
surgir como gratificante aos olhos dos praticantes. Não é prestigioso, não solicita o «gé-
nio criativo» do artista. Os inspectores tinham de detectar os poucos homens susceptí-
veis de investirem na conservação do passado. Havia também que iniciá-los na história
da arte e na história da construção. Mérimée e Vitet foram eles próprios obrigados a esta
pedagogia, por falta de um curso de História da Arquitectura Medieval.
O debate sobre o restauro assume dimensão europeia no século XIX e opõe duas doutri-
nas: uma, intervencionista, predominante no conjunto dos países europeus; outra, anti-
intervencionista, com destaque em Inglaterra. O seu antagonismo pode ser simbolizado
pelos dois homens que as defenderam com mais convicção e talento: Viollet-le-Duc e
Ruskin, respectivamente.
No campo oposta está Ruskin, secundado por Morris, que defende um anti-intervencio-
nismo radical, consequência da sua concepção de monumento histórico. Argumenta que
o trabalho das gerações passadas confere aos edifícios que nos legaram um carácter sa-
grado, e as marcas que o tempo lhes imprimiu fazem parte da sua essência.. Nós não te-
mos o direito de tocar nos monumentos do passado, pois eles não nos pertencem. Eles
pertencem, em parte aos que os edificaram, em parte às gerações que nos seguirão.
Qualquer intervenção sobre estas «relíquias» é um sacrilégio. A violência das impreca-
ções de Ruskin contra o restauro encontra ecos em parte da imprensa inglesa. No verda-
deiro sentido do termo, restauro significa «a destruição mais total que uma construção
pode sofrer; é uma mentira absoluta».
Contudo, percebe-se que ambos preconizam a manutenção dos monumentos com a con-
dição de ser de forma invisível. A intransigência com a qual eles condenam o restauro
explica-se pela sua fé incondicional na perenidade da arquitectura enquanto arte. Daí re-
sulta, para Ruskin, a afirmação dogmática de uma «arquitectura histórica» necessária e,
para Morris, de um revivalismo necessário. Para este último, os monumentos antigos fa-
zem «parte do mobiliário da nossa vida quotidiana».
Este retrato deve, no entanto, ser matizado: ele não seria assim se não fosse o contexto
intelectual da época e o estado de degradação no qual se encontravam então a maior
parte dos monumentos. Deve interrogar-se o sentido real dos restauros «agressivos» ou
«historicizantes» de Viollet-le-Duc e realçar as preocupações que inspiram as suas inter-
venções correctivas. Contrariamente às hipóteses seguidistas de Ruskin e de Morris, o
passado morreu sem apelo; a sua atitude de restaurador explica-se pela via da constata-
ção deste falecimento. Ao reconstituir, ele restitui ao objecto restaurado um valor histó-
rico, mas não a sua historicidade. Da mesma forma, a brutalidade das suas intervenções
prende-se muitas vezes com o facto, exigido pelas suas preocupações didácticas, de ele
tender a esquecer a distância constitutiva do monumento histórico. Um edifício não se
torna «histórico» senão na condição de ser entendido como pertencendo simultanea-
mente a dois mundos, um presente e imediatamente dado, o outro passado e inapropriá-
vel. Atente-se na sua advertência: «seria pueril reproduzir num restauro uma disposição
eminentemente viciosa». Um tal juízo de valor coloca em questão a noção de monu-
mento histórico, que se torna numa abstracção, e a noção de restauro, que não leva mais
em conta a autenticidade do objecto restaurado.
França e Inglaterra
Para os Franceses, os monumentos nos quais «não se deve tocar» são pouco numerosos.
Com efeito, em França, um monumento histórico não é concebido nem como uma ruí-
na, nem como uma relíquia que se dirige à memória afectiva. Ele é, antes de mais, um
objecto historicamente determinado e susceptível de uma análise racional e, em seguida,
apenas um objecto de arte. O restauro é a outra face, obrigatória, da conservação; neces-
sário, ele deve e pode ser fiel. E uma questão de método e de competência técnica.
Para Vitet: «temos que nos tornar contemporâneos do monumento que se restaura, dos
artistas que o construíram, dos homens que o habitaram. Há que conhecer a fundo todos
os procedimentos da arte, a fim de restabelecer, qualquer parte de um edifício a partir
de simples fragmentos, não por capricho ou por hipótese, mas por uma severa e consci-
enciosa indução». Ainda que tardiamente reconhecida, a autenticidade estética não
coincide com a autenticidade histórica e tipológica. Ao postular a possibilidade de um
restauro fiel e de uma cópia cuja perfeição o torne indetectável, os Franceses transfor-
mam em verdade a mentira denunciada por Ruskin e Morris e revelam o privilégio que
eles concedem aos valores da memória histórica relativamente aos da memória afectiva
e aos da utilização piedosa. Assim, se criticam com pertinência algumas reutilizações
dos edifícios antigos, os Franceses tendem a favorecer a museologização dos monumen-
tos históricos muito mais facilmente do que os Ingleses. Vitet resume a lógica desta ati-
tude quando lamenta que as catedrais continuem a servir para o culto, já que tal é um
género de vandalismo lento, insensível, que arruína e deteriora.
Esta análise das atitudes e dos comportamentos que opõem a França e a Inglaterra em
matéria de restauro não tem senão um valor geral. Existiram em Inglaterra rivais de Vi-
ollet-le-Duc, como G. Scott e os seus partidários eclesiólogos. Da mesma forma, em
França, Montalembert defende uma ideologia revivalista semelhante a Ruskin. Viollet-
le-Duc, que Ruskin e Morris não perderam nunca ocasião de vilipendiar, foi defendido
por alguns arquitectos ingleses, enquanto que Morris era acusado de fetichismo e escar-
necido sem delicadeza. Também os restauros de Viollet-le-Duc foram criticados sem
pruridos por Didron muito antes de Anatole France se ter dedicado à questão.
A França seguia, na maioria dos casos, os preceitos de Viollet-le-Duc. Tal como o pró-
prio Ruskin tinha compreendido, o destino desse antagonismo doutrinal era previsível.
Património - A Consagração do Monumento Histórico 50/90
O que podia a tese sentimental do deixar envelhecer (e perecer) contra o projecto racio-
nal e espectacular dos arquitectos e historiadores intervencionistas? A Europa inteira es-
tava prestes a aderir às ideias de Viollet-le-Duc, que faziam eco às aspirações historicis-
tas dos restauradores formados nos países de língua alemã e da Europa Central.
Sínteses
Todo o saber em fase de constituição convida à crítica dos seus conceitos, dos seus mé-
todos e dos seus projectos. Após o trabalho fundador da primeira geração, seguiu-se, no
final do século, uma reflexão posterior, crítica e complexa.
O método de Boito surgiu num ensaio sob a forma de diálogo, «Conservare o restaura-
re», que apareceu em 1893. O autor concede a palavra a dois técnicos: um defende as
ideias de Viollet-le-Duc e o outro, alter ego de Boito, critica-as, servindo-se de argu-
mentos de Ruskin e de Morris. Boito constrói a sua doutrina sobre esta oposição.
O trabalho reflexivo mais ambicioso relativo à noção de monumento histórico foi reali-
zado nos começos do século XX por Alois Riegl. A sua obra fundamental é O Culto
Moderno dos Monumentos (Der Moderne Denkmalkultus) onde formula, sem ambigui-
dade, a distinção entre monumento e monumento histórico, cuja aparição ele situa em
Itália no século XVI.
Define o monumento histórico através dos valores de que este foi investido ao longo da
história. A sua análise é estruturada pela oposição de duas categorias de valores: uns, de
rememoração, ligados ao passado e que fazem intervir a memória; outros, de contempo-
raneidade, pertencentes ao presente.
O valor histórico está relacionado com a noção de história de Riegl, que chama históri-
co a tudo aquilo que foi e não é mais hoje em dia. Para ele “a noção de evolução” é o
centro de toda concepção de história. Essa noção é fundamental no seu pensamento, ca-
racterizando a abordagem em relação às artes de diferentes períodos e, consequentemen-
te, estendida aos monumentos. Para o historiador, a ideia de evolução confere direito de
existência histórica a toda e qualquer corrente artística, inclusive às não-clássicas.
O valor antiguidade reside no seu aspecto vetusto, nos traços de decomposição impos-
tos pelas forças da natureza, alterando sua forma e cor, fazendo aflorar no espectador a
sensação do ciclo de criação-destruição, que se apresenta como lei inexorável da exis-
tência. Por isso, o valor de antiguidade determina como pressuposto a não-intervenção
conservativa. O valor de antiguidade assemelha-se à sensibilidade dos românticos, sus-
cita face aos monumentos históricos uma «atenção piedosa», e está próximo do valor de
piedade de Ruskin. Todavia, o seu significado é diferente: Ruskin milita por uma ética e
procura impor a sua concepção moral de monumento a uma sociedade. Riegl parte, ao
contrário, de uma constatação. O valor de antiguidade do monumento histórico não é
para ele um voto, mas uma realidade. Este valor de antiguidade revela-se ao primeiro
contacto com uma obra, na qual fica claro seu aspecto não-moderno, isto é, surge da di-
ferença que pode ser percebida inclusive pelas massas. É esse apelo às massas, presente
no valor de antiguidade, que fez com que o historiador acreditasse na sua ascendência
no século XX, onde passava a predominar uma cultura de massas.
Valores Acções
Comemorativo Conservar; Restaurar
Histórico Conservar; Não restaurar
Antiguidade Não conservar; Não restaurar
Utilização Conservar; Restaurar
Arte Relativo Conservar; Restaurar
Arte Novidade Conservar; Restaurar
Der Moderne Denkmalkultus não representa um utensílio crítico apenas para o restaura-
dor. Ao avaliar o peso semântico do monumento histórico, ele torna-o num problema
social, numa chave para a interrogação do futuro das sociedades modernas. Como se
verá mais tarde, é a partir de pistas sintomáticas abertas pela obra que se procura hoje
pensar o património histórico.
INTRODUÇÃO
O que é uma obra de arte e como estudá-la? Este é o domínio da História da Arte. Obra
de arte ou de artesanato, a sua criação implica a intervenção humana sobre os materiais.
A história da arte é uma disciplina autónoma devido aos seus métodos, à sua história e
às obras que são objecto de estudo. A história da arte é, ao mesmo tempo, um ramo da
história global, da história da cultura, da civilização. A disciplina aperfeiçoou-se a partir
do Renascimento, com as diferentes escolas de pensamento ao tentar delimitar as suas
fronteiras em relação à arqueologia, à história dos acontecimentos, à filosofia, à sociolo-
gia e à etnologia. Geograficamente, não existe limite para a história da arte; cronologi-
camente, a história da arte cobre todas as facetas da acção humana, desde a pré-história
até aos nossos dias. Outrora tentou-se limitar o campo artístico às sociedades cultas,
mas hoje tende-se a integrar na história da arte as produções que, sob a designação de
populares ou artesanais, pertencem, por vezes, ao domínio da etnologia.
A história da arte adquiriu, no decurso das últimas décadas, um lugar próprio e destaca-
do entre as ciências históricas e sociais. Mas temos a sensação de viver uma crise da
disciplina, uma crise da sua autonomia face ao perigo de absorção por parte de outras
disciplinas: crise de crescimento, crise metodológica face aos desafios tecnológicos, cri-
se devida à crítica dos métodos formulada pelos especialistas dos campos vizinhos.
I. - As etapas principais
O estudo da arte como disciplina histórica começa na época moderna. O humanismo vai
tomar em consideração as noções de arcaísmo, de classicismo e de declínio e associá-las
às investigações biográficas, às fontes descritivas e aos dados cronológicos para criar a
história da arte. Giorgio Vasari, pintor e arquitecto, publica em 1562 as Vidas dos Mais
Excelentes Pintores, Escultores e Arquitectos, onde ordena, numa perspectiva histórica,
os artistas que o precederam e os que são seus contemporâneos. A modernidade de Va-
sari deve-se à sua visão evolutiva da história aplicada à arte.
A renovação da história da arte como ciência viria da arqueologia, que era exclusiva do
antiquariato. Winckelmann viaja para estudar directamente as obras e defende a herança
antiga, nomeadamente a grega. Pela primeira vez, a observação das obras consegue ob-
ter classificações estilísticas e atribuições independentes da erudição livresca. Pela pri-
meira vez, também, a escultura adquire maior importância do que a pintura.
Burckhardt procura conciliar a história política e a história da arte. Para este historiador
o Estado, a religião e a cultura são os três elementos da civilização, dos quais apenas o
último é susceptível de provocar um renascimento.
Wõlfflin empreende o estudo formal das obras. Defende que a forma organiza a obra de
arte e dá-lhe um sentido. Depois de ter definido o classicismo da Renascença, opõe-lhe
os valores formais do Barroco. Enuncia os traços essenciais que permitem distinguir os
dois períodos: a passagem da linha à pintura, do plano à profundidade, da luz absoluta à
luz relativa. Para Wõlfflin, estas categorias não devem ser universalizadas; elas apli-
cam-se quase exclusivamente à diferença entre Renascimento e Barroco.
Nasce em Viena uma escola autónoma à volta de Riegl, que se propõe diminuir os ris-
cos de subjectividade. Interessa-se pela transformação de um único motivo, o acanto, e
pelo seu desenvolvimento e analisam a produção da Antiguidade Tardia, partindo do es-
tudo formal dos motivos. A noção de vontade artística é introduzida por oposição à de
imitação da natureza. A escola formalista de Viena tem uma repercussão considerável
graças à obra de Focillon, para quem a obra de arte deve ser apreendida e interpretada
no plano formal. Três momentos da vida das formas condicionam a evolução artística: o
estádio das experiências, o estado clássico e a desintegração barroca. Estes estados são
modulados pelas diferentes evoluções formais: renascimentos, sobrevivências, desperta-
res. O pensamento de Focillon abarca diversos domínios artísticos: a história da gravu-
ra, a história da pintura, a arte do Extremo Oriente e a história da arte medieval.
Integrado na linha de pensamento dirigida para a função social da obra de arte, situa-se
Hauser, com a sua História Social da Arte. O autor devolve um lugar ao artista e conce-
de ao trabalho do indivíduo uma função real, contrariamente à teoria defendida antes
dele, tendente a criar uma história da arte sem nomes.
A França tem no domínio da Antiguidade uma longa tradição de estudo, encorajada pe-
las escolas francesas de Atenas, Roma e Cairo, muito cedo empenhou-se em trabalhos
de inventário, desde o Dicionário das Antiguidades Gregas e Romanas ao Inventário
dos Mosaicos da Gália e da África. A presença da França no Norte de África permitiu
investigações sobre a arte púnica e a arte romana. O progresso mais espectacular deu-se
no domínio do mosaico, mas a ceramografia e o estudo da pintura mural registaram
também um desenvolvimento notável. Sobre o início e o fim do período romano, a in-
vestigação francesa contribuiu para a renovação da disciplina, com estudos sobre a Itália
pré-romana e abordagens inovadoras sobre a Antiguidade Tardia. Neste último domínio,
Marrou contribuiu para a definição de uma civilização original, que não é aquela que se
considerava como um reflexo do império decadente, mas que, pelo contrário, correspon-
de a uma nova era, dotada de estruturas artísticas originais e durante a qual se assiste à
cristianização da sociedade.
No entanto, o debate principal que se desencadeou em 1968 é o que diz respeito à pró-
pria existência da história da arte como disciplina autónoma face à arqueologia antiga.
Em França, na maioria das universidades, as duas disciplinas não se distinguem; assim,
é corrente encontrar departamentos de arqueologia grega ou romana (ou até unicamente
de história antiga) e departamentos de história da arte medieval, moderna ou contempo-
rânea (com uma única excepção, aliás bastante rara, para a arqueologia medieval).
A arqueologia da Antiguidade impôs-se cada vez mais nos seus objectivos e nos seus
métodos, com tendência para marginalizar ou absorver a história da arte antiga. A isto
veio adicionar-se um fenómeno saído das contestações de Maio de 1968: a arqueologia
seria a única ciência capaz de compreender a cultura material, reflexo da vida quotidia-
na da maioria; a história da arte, disciplina elitista, refugiar-se-ia no estudo formal e na
perspectiva visual de objectos de luxo fabricados para o prazer de alguns e nas elucubra-
ções dos historiadores da arte. A lamparina de óleo diria respeito à arqueologia e a Vitó-
ria de Samotrácia, à história da arte.
História da Arte – O Estudo da Arte como Disciplina Histórica 61/90
A fim de restituir à história da arte o seu lugar no quadro das ciências históricas da Anti-
guidade, é indispensável deixar de acreditar que o friso monumental depende da história
da arte e que a cerâmica pertence em exclusivo aos estudos arqueológicos. A história da
arte da Antiguidade deve incluir, para além dos estudos formais, uma perspectiva que
permita tomar em consideração as condições da criação artística (condições económicas
e técnicas que tornam possível a obra), a história dos artistas e dos artesãos, a rede das
clientelas e a utilização da obra por aqueles a quem é destinada.
Nos últimos decénios, a história da arte obteve cinco orientações metodológicas princi-
pais: a formalista, a marxista, a sociológica, a iconológica e a semiológica ou estrutura-
lista. A primeira dedica-se ao estudo da composição, da forma e dos volumes, tende a
destacar constantes formais, frequentemente isoladas em relação às cronologias históri-
cas, e cria uma escala de referências internas que permitem atribuições e classificações.
A escola formalista, que se desenvolveu em torno de Focillon, desempenhou um grande
papel no seio das instâncias internacionais da história da arte.
Com ligações ténues ao marxismo, constituiu-se a história social da arte, mediante ten-
tativas que procuravam valorizar os elementos sociológicos da produção artística e rela-
cionar a obra de arte e os grupos sociais que a determinam. Esta perspectiva considera o
artista um elemento activo da sociedade que consome as suas obras e dedica uma aten-
ção particular aos que encomendam as obras e aos clientes, à produção e ao consumo.
Entre as grandes polémicas públicas dos últimos decénios encontra-se a que envolveu o
Centro Georges-Pompidou. A obra tornou-se num enorme sucesso público e faz parte
da paisagem urbana. Além do mais, é preciso sublinhar a sua função na tomada de cons-
ciência da importância da arte contemporânea.
Uma maior atenção envolve agora a criação mais contemporânea. As principais etapas
foram: a exposição sobre "Doze Anos de Arte Contemporânea em França"; o primeiro
Salão Internacional de Arte Contemporânea; o primeiro Mês da Fotografia, em Paris; a
abertura do Museu Picasso. O empacotamento da Pont-Neuf por Christo, foi realizado
nesse mesmo ano. A década de oitenta é marcada, em Paris, por grandes realizações,
como a Cidade das Ciências de La Villette, a Ópera da Bastilha e o Arco da Defesa. O
Grande Louvre é sem dúvida a realização mais importante.
I. - As técnicas artísticas
Entre as técnicas que recorrem à noção de relevo e de pleno relevo figura, em primeiro
lugar, a escultura, frequentemente destinada a um acabamento policromo (arte medie-
val). A escultura utiliza a pedra, a madeira, o marfim, a cera, o metal ou a terracota. A
terracota abre espaço às produções cerâmicas, de revestimentos ou decorativas. A por-
celana é um dos tipos principais de cerâmica, com inúmeras variantes. É necessário vol-
tar a falar do vidro, a propósito da técnica do vidro soprado e das formas antigas de fa-
brico de pequenos objectos. Ainda no domínio dos objectos de pequenas dimensões, a
glíptica diz respeito à criação de objectos a partir de minerais, muitos deles preciosos:
camafeus, cristal de rocha, jade, coral e pedras preciosas em geral. O ouro, a prata, o
ferro, o aço, o cobre constituem um campo importante da história da arte, no modo de
lhes dar forma e na sua transformação técnica. Os esmaltes, entre o vidro e o metal, com
as suas técnicas principais: o cloasonado, em relevo, o translúcido e o esmalte em fundo
História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 65/90
rebaixado. Há ainda outros domínios técnicos mais ou menos derivados dos já mencio-
nados, como o trabalho artesanal da madeira de uso decorativo, ou ebanisteria, e depois
o imenso campo dos objectos de uso quotidiano que requerem novas tecnologias.
A arte apareceu há cerca de trinta e cinco mil anos. Com o Paleolítico Superior surgiram
os primeiros objectos de adorno e estatuetas femininas e desenvolveu-se a arte parietal
de caçadores, sobretudo em África e no continente europeu (Altamira).
1. A arte egípcia. - Uma espantosa continuidade domina a arte egípcia. As formas ar-
quitecturais das pirâmides, o tratamento da figura humana, a associação do escrito e do
figurado e a repetição interminável dos temas são as suas características marcantes.
A arquitectura egípcia é conhecida sobretudo pelos templos e pelos túmulos. Entre estes
últimos, distinguimos o túmulo dos dignitários, a mastaba, e o túmulo real, geralmente
representado pela pirâmide. As mastabas de Mênfis exemplificam a arte das primeiras
dinastias. A mastaba compõe-se de uma câmara funerária ao nível da superfície, ligada
por um poço a uma câmara subterrânea, o túmulo. Os relevos murais policromos da ca-
pela funerária informam-nos acerca da vida do defunto, das suas tarefas, dos seus laze-
res. Entre as pirâmides mais antigas encontra-se a de Djoser, e entre as mais conhecidas,
as de Quéops, Quéfren e Miquerinos. Quando no Império Novo a corte foi transferida
para Tebas, adoptou-se o túmulo escavado na rocha ou hipogeu. A escultura em pleno
relevo atinge, desde as primeiras dinastias, um elevado grau de perfeição. Na IV dinas-
tia, o escriba sentado (do Louvre), o duplo retrato do príncipe Rahotep e da princesa Ne-
A estela de Naram-Sim (Louvre) é uma das obras-primas do Oriente Antigo. Nas estelas
o feito guerreiro é enaltecido. Os pequenos cilindros de pedra utilizados para selar as ta-
buinhas de argila em que se escreviam os textos são verdadeiras obras de arte. A restau-
ração suméria distingue-se pela fortificação da cidade de Ur e, sobretudo, pelas famosas
estátuas de Gudéia, príncipe de Lagasch.
Em 612, Ninive, que tinha sido enriquecida por Senaquerib, é destruída. Nabucodonosor
privilegia Babilónia. Em contacto com a Grécia, a civilização da época persa aqueméni-
da desenvolve uma arte faustosa, de que se encontra o essencial em Persépolis.
3. A arte da Antiguidade Clássica. - Por arte grega entende-se a arte produzida pelos
povos do Mediterrâneo oriental e das regiões colonizadas pelos Gregos, que se desen-
volve de maneira autónoma a partir do fim da época micénica. Consideram-se quatro di-
visões principais na sua evolução: o período de formação (1650-650), o período arcaico
(650-480), o período clássico (480-323) e o período helenístico (323-31).
Com o pintor Polignoto e o escultor Míron inicia-se o cânone clássico, que atingirá o
seu apogeu com Fídias e Policleto. O cânone de Policleto consiste em estabelecer pro-
porções ideais, medindo o comprimento total do corpo sete vezes a altura da cabeça
(Doríforo). O nome refere-se a uma célebre estátua de um soldado armado de lança,
com tal perfeição de formas e equilíbrio das proporções que passou a ser considerada o
cânone da estatuária antiga. Ao longo do século IV, os escultores Praxíteles e Escopas e
o pintor de Nícias definem o ritmo, o naturalismo e os sentimentos do segundo classicis-
mo. A decoração do mausoléu de Halicarnasso e do Artemésion de Éfeso atinge um ex-
tremo patético que marca os séculos posteriores.
O maior dos Fora imperiais em Roma é o erigido por Trajano ao lado dos de Augusto e
de César. A coluna de Trajano é um monumento de cerca de quarenta metros de altura,
ornado com um friso contínuo em espiral, com relevos que apresentam as duas campa-
nhas militares conduzidas contra os Dácios. A época de Adriano é caracterizada pela ac-
tividade arquitectónica do imperador (Panteão de Roma).
No período dos Antoninos e dos Severos dão-se poucas alterações urbanas na cidade de
Roma (termas de Caracala). Dois monumentos importantes determinam as característi-
cas da época: as colunas de Antonino o Pio, e de Marco Aurélio. Esta última ilustra o
processo de simbiose artística entre as províncias e Roma; a comparação com o estilo da
coluna de Trajano é um exercício de história da arte que mostra claramente a evolução
artística, estilística e iconográfica entre as duas realizações imperiais.
A palavra "românico" é um termo arbitrário. Foi introduzido no século XIX e parece es-
tar relacionado com a "România", na qual encontra a sua difusão geográfica, e com a
arte romana, de que é suposto derivar.
A partir do último terço do século XI a arte românica surge na Europa ocidental total-
mente constituída. Inteiramente abobadada, a igreja é reforçada por contrafortes e inva-
dida por uma importante decoração esculpida, que se desenvolve sobretudo à volta do
portal, na igreja e no claustro. O tipo mais conhecido de igreja românica é o que está re-
lacionado com as rotas de peregrinação para Santiago de Compostela. A igreja está divi-
dida em três ou cinco naves, em que a central tem uma abóbada de berço sobre frechais
e as laterais abóbada de arestas. Os apoios são pilares e suportam o peso do edifício.
Tribunas muito amplas encimam o conjunto.
Sem ter o brilho da época carolíngia, os manuscritos iluminados da época românica são
muito importantes. Na Inglaterra, as escolas de Winchester impõem-se. Outros centros,
não menos ilustres, produzem manuscritos de valor: Cluny e Roma.
3. A arte gótica. - O termo "gótico" define um estilo que tem o seu pleno desenvolvi-
mento no Norte de França nos séculos XII e XIII. No entanto, certos monumentos ante-
riores já apresentam, isoladamente, as características dos edifícios do século XIII. As
soluções técnicas que a arte gótica vai utilizar, como o arco de volta quebrada e a abó-
bada de cruzaria ogival, já tinham sido ensaiadas nos edifícios românicos. O que muda
com o progresso técnico e a estandardização do trabalho arquitectónico é o espírito da
sociedade e os poderes económicos, político e religioso que a dirigem.
A nave da catedral de Chartres tem três andares, um trifório de tipo contínuo e janelas
altas e amplas. A planta é muito elaborada: três naves, vasto transepto com colaterais e
coro com nave lateral dupla e deambulatório com capelas radiantes.
O culto mariano é um dos aspectos essenciais da iconografia gótica, com os portais con-
Na viragem para o século XIV fazem-se sentir duas tendências na construção das cate-
drais góticas. A primeira situa-se na continuidade das experiências anteriores e é
exemplificada pela catedral de Clermond-Ferrand. A segunda procura uma unidade es-
pacial interior, para a qual contribui a iluminação, que penetra abundantemente no edifí-
cio graças ao alargamento das aberturas. É uma arquitectura ligeira, no seio da arte radi-
ante (Estraburgo). Na Inglaterra, o estilo decorado (York) multiplica as nervuras, intro-
duzindo-lhes uma decoração esculpida que as cobre. O Sul de França, a Espanha (Bur-
gos, Léon) e a Itália seguem vias diferentes.
No século XIV a estatuária domina, com Virgens com o Menino em alabastro e em pe-
dra, e painéis de retábulo, que se difundem por toda a Europa. A ourivesaria evolui. O
interior dos edifícios ganha uma decoração esculpida policroma (retábulos, púlpitos,
gradeamentos de coro). Proliferaram os artistas de corte e as encomendas privadas. A
Espanha beneficia dos contactos com a França, atenuados nas zonas orientais pela in-
fluência italiana. Na Itália, Nicola Pisano mostra toda a força da Antiguidade nos púlpi-
tos monumentais de Pisa e de Siena. A arte gótica da Toscana é representada por Gio-
vanni Pisano e Andrea Pisano (portas do baptistério de Florença). A pintura é dominada
pela obra de Giotto, em Pádua e Assis. A monumentalidade, a qualidade do tratamento e
o seu estilo dão a Giotto um lugar à parte na história da arte.
O último período da arte gótica é conhecido com o nome de gótico flamejante. A arqui-
tectura caracteriza-se pela diversificação e complexidade das plantas e pela multiplica-
ção das nervuras das abóbadas e arcos. Os pilares simplificam-se e o exterior do edifí-
cio, com uma grande profusão de flechas e pináculos, torna-se espectacular e sobrecar-
regado. A Inglaterra desenvolve um estilo particular dito perpendicular (Cambridge).
No plano iconográfico, os temas preferidos são o Cristo Sofredor, A Virgem da Pieda-
de, a Descida da Cruz e a Deposição no Túmulo.
2. A arte do Islão. - A arte islâmica apresenta específicos que se mantêm ao longo dos
séculos. A arte islâmica, que se manifesta da Península Ibérica à China, não é unitária,
porque assimila as tradições artísticas de cada região: na utilização da cor, na decoração
figurativa dos palácios e nos balneários sumptuosos, nas iluminuras exclusivamente ge-
ométricas, vegetais ou epigráficas, nas mesquitas; no uso da luz. A mesquita é o edifício
mais característico, centro de oração e da vida quotidiana. A planta típica possui um pá-
tio de entrada rodeada de pórticos, prolongado por uma grande sala de oração, no fundo
e no eixo da qual se encontra o mihrab. A mesquita faz-se notar na cidade graças ao mi-
narete, cuja evolução arquitectónica pode ser traçada através dos séculos. A arquitectura
dos túmulos e dos mausoléus é muito importante. Uma arte islâmica particular desen-
volve-se na África negra.
A arte chinesa cobre um período imenso. Às fases mais antigas correspondem os pri-
meiros estilos dos Chang, vasos zoomorfos que contribuem para a difusão do estilo ani-
malista e para o gosto pelos adereços. A época dos Reinos Combatentes assiste ao surgi-
mento da escultura. A época Han acentua as trocas com o Oeste: os vasos, os bronzes
pequenos, as figurinhas em terracota, as pedras cinzeladas e a arte da laca são eminente-
mente decorativos. Nas épocas Wei e Suei a arte budista penetra na China e, na época
Tang, a conquista da Ásia Central provoca a influência da arte iraniana, nomeadamente
na cerâmica e na decoração dos espelhos. A difusão da arquitectura budista leva à pro-
fusão de mirantes e torres de vigia e à adaptação das stupas a pagodes. As épocas Song
e Yuan revelam a evolução do taoismo e o lugar cada vez maior que a pintura tem, na
cerâmica, na escultura e, sobretudo, nos rolos. A tradição pictórica chinesa, tem uma
história autónoma no decurso dos períodos Ming e Qing.
A civilização chinesa influencia a arte do Japão nas épocas Asuka e Hakuho, e introduz
a estatuária budista. O mundo dos mosteiros contribui desde o início da época de Heian
para a originalidade nipónica, que coincide com a ruptura com a China e a valorização
da escrita enquanto arte gráfica. A civilização da época Fujiwara assiste à fixação do
tipo dos Budas e às séries de pinturas hieráticas cobertas a folha de ouro. A época Ka-
makura caracteriza-se pelas ilustrações de livros de temas populares e lendas budistas.
A época Muromachi assiste à influência da pintura chinesa de aguarela, através da esco-
Fora de Florença, a Itália vibra numa febre de criação. Em Veneza, Bellini; na Úmbria,
Piero della Francesca são referências do Renascimento. Este torna-se efectivo durante o
século XVI (Cinquecento) romano, sob os pontificados de Júlio II e Leão X. A basílica
de S. Pedro do Vaticano, de Bramante, evidencia a inspiração que os monumentos anti-
gos propicia aos arquitectos do Renascimento. A força de Miguel Ângelo exerce-se na
obra de S. Pedro, depois de ter concebido em Roma a Praça do Capitólio e o palácio
Farnese. No Norte da Itália brilha a obra de Paládio, cujos tratados de arquitectura vão
contribuir para a difusão da arquitectura "antiga" na Europa.
Quatro grandes figuras marcam a pintura do século XVI italiano: Rafael, Miguel Ânge-
lo, Giorgione e Ticiano. Os dois primeiros desenvolvem a sua actividade principalmente
em Roma: de Rafael podemos citar as galerias do Vaticano e a sua deliciosa série de
Madonas; de Miguel Ângelo, os frescos da Capela Sistina; Giorgione e Ticiano criam
um estilo veneziano que se prolonga com Veronese e Tintoreto.
Rubens, formado em Itália no início do século XVII, criador de uma escola flamenga
inspirada nos venezianos, é um dos maiores pintores de todos os tempos. Em contraste
com a pintura intimista e torturada de El Greco, Rubens traduz a vida em toda a sua
efervescência, com o emprego sumptuoso da cor e das formas contrastadas. Próximo de
Rubens, Van Dyck deixou retratos aristocráticos. Rembrandt faz de Amsterdão o grande
centro da arte holandesa. Pintor da luz fluida e difusa, contribui para o desenvolvimento
de uma pintura que ilustra a vida rural e urbana, os retratos de grupo e as paisagens.
A este barroco, que associa a arquitectura e a pintura e conta entre as suas criações com
as populares igrejas da Alemanha Meridional, opõe-se o classicismo francês de Luís
XIV, com o arquitecto Mansart e o pintor Le Brun. A racionalização e o despojamento
da arquitectura clássica encontram-se na fachada da colunata do Louvre. O grande em-
preendimento arquitectónico do reinado é o palácio de Versalhes, com projecto de Le
Vau e Hardouin Mansart e jardins de Le Nôtre. Para além de Versalhes, as fórmulas
barrocas aplicam-se, com reserva, na Igreja dos Inválidos de Paris.
A arte do século XVIII encontra-se delimitada por duas tendências: o rococó e o neo-
classicismo. O rococó é o estilo ornamental da Regência e do reinado de Luís XV. A
A pintura europeia da primeira metade do século XVIII possui dois centros criadores
principais: França e Veneza. Watteau é o intérprete das cerimónias galantes e das festas
campestres, Boucher é o mestre da pintura histórica e da felicidade sensual. A escola ve-
neziana brilha com a fantasia de Tiepolo e com as paisagens de Canaletto.
Após o barroco e o rococó, a Europa volta-se para a Antiguidade, numa reacção neo-
clássica. Este movimento surge da Itália e é caracterizado pelo escultor Canova, que tra-
ta, segundo o gosto da época, grandes temas da escultura grega. A fórmula neoclássica
encontra em França, com Luís XVI e, depois, com Napoleão, um terreno privilegiado: o
Panteão, o Arco do Triunfo e a Madalena. Este estilo, que gerou o Museu Britânico, a
Porta de Brandeburgo, prolifera mais tarde nos Estados Unidos (Capitólio).
A passagem para o romantismo percebe-se em Goya. Este, que foi um pintor rococó
(cartões de tapeçarias), evoluiu como retratista crítico, tomando-se cronista do seu tem-
po. As guerras inspiram-lhe os famosos Desastres da Guerra e 2 e 3 de Maio. Na mes-
ma época, David, pintor da Revolução e do Império, contribui para o neoclassicismo
com uma das suas obras (O Juramento dos Horácios) e marca a arte de Ingres.
Três pintores tiveram um papel determinante nas tendências artísticas do século XX:
Cézanne, Van Gogh e Gauguin. Na valorização das construções pelo primeiro inspira-se
o cubismo. Da expressividade impulsiva e colorida de Van Gogh nasce o expressionis-
mo. Gauguin tem um papel essencial na generalização do gosto pelos temas exóticos.
Com uma menor carga social, o fauvismo, que exalta a cor pura, é o equivalente em
França do expressionismo. Matisse renuncia à perspectiva e reduz a pintura a linhas e
superfícies, que são apenas um contraste de cores. Partindo de Cézanne e Gauguin, Ma-
tisse intensifica os aspectos formais para acentuar a expressão.
O cubismo nasce da tendência para simplificar as linhas e as formas e para tornar mais
geométricas as figurações. Este desenvolve-se em duas direcções, para a representação
da natureza com elementos geométricos, ou para a abstracção pura, uma revolução na
pintura atribuída a Picasso (As Meninas de Avinhão). Entre as consequências do cubis-
mo figura o orfismo, palavra criada por Apollinaire para designar uma pintura que seria
apenas cor. Igualmente próximo da estética cubista, o futurismo, movimento literário e
artístico italiano definido por Marinetti: deseja integrar a pintura e as produções indus-
triais, colocando a tónica no maquinismo e no seu movimento.
Com a Primeira Guerra Mundial, o movimento Dada representa uma vontade de ruptura
com a tradição. Na Suíça, Aip; na Alemanha, Max Ernst representam os diferentes cen-
tros de difusão do movimento. O estilo e a arte não são conceitos que interessem estes
artistas, cujo movimento colectivo visa, em primeiro lugar, provocar o espectador. Para
além da experiência Dada, aparece o suprematismo de Malevitch, ao qual se opõem as
tendências construtivistas-produtivistas. Numa linha neoplástica de massas limitadas
por linhas verticais e horizontais, situa-se, na Holanda, Mondrian.
A arte abstracta, que nasce entre 1910 e 1920, conheceu inúmeras variantes, entre elas,
os núcleos Círculo e Quadrado e Abstracção-Criação. Na Polónia, W. Strzeminski em-
preende uma crítica do suprematismo para criar o unismo e faz telas quase monocromá-
ticas. Depois da II Guerra Mundial, o expressionismo abstracto, movimento conhecido
igualmente com o nome de action painting, reúne grandes artistas sem unidade estilísti-
ca nas suas criações, mas com preocupações próximas: Pollock, Kooning. Os Estados
Unidos ganham então um lugar de primeiro plano no desenvolvimento da arte contem-
porânea, por um lado, graças à emigração de inúmeros artistas e homens de letras e, por
outro, graças aos novos mercados que aí se desenvolvem.
A obra de Rauschenberg e a de Jasper Johns são uma antecipação da pop art, termo que
visa tomar em consideração a cultura popular da sociedade de consumo. A partir dos
anos sessenta, e em paralelo com estes movimentos anglo-saxónicos, surge em Paris o
novo realismo. Entre os numerosos artistas que dele fazem parte figuram Spoerry (qua-
dros-embuste), Arman (acumulações de objectos) e Christo (assemblages, depois emba-
lagens) apresentam um trabalho mais directamente escultural.
Os anos setenta identificam-se com a arte minimal, a arte conceptual, a landart e a arte
pobre. A arte minimal refere-se a experiências escultóricas e pictóricas que traduzem as
formas com a ajuda de materiais industriais simples; trata-se de uma luta pela percepção
imediata da obra e contra o ilusionismo da escultura tradicional e a interpretação. Cerca
de 1968, os artistas procuram o desaparecimento do objecto na obra de arte, em favor do
conceito e da arte efémera; interessam-se pela arte como ideia. A arte conceptual adopta
os novos meios técnicos como o gravador, a dactilografia, as fotocópias. Usam-se cená-
rios naturais para experimentar a land art. Esta escolhe como lugar de experimentação
espaços naturais, de preferência o mar, a montanha. A arte pobre, que utiliza materiais
humildes ou pobres (plantas, cordas, terra), em oposição aos produtos manufacturados.
Entre as novas disciplinas dos estudos de história da arte, figura a história da fotografia,
não apenas enquanto técnica utilizada por numerosos artistas, pintores e escultores, des-
de o século passado, mas igualmente enquanto técnica criativa com desenvolvimento
autónomo. Iniciada por Niepce, a verdadeira fotografia só aparece quando Daguerre in-
troduz o daguerreótipo. O inventor da fotografia em negativo/positivo é Talbot, que in-
troduz o calótipo e com ele a possibilidade de obter diversas provas a partir do mesmo
negativo. A placa de vidro com colódio não cede o seu lugar no mercado senão à placa
seca de gelatino-brometo. Dois tipos de fotógrafos trabalham no século XIX: por um
lado, os artistas retratistas, como Nadar, os fotógrafos de arte cujas investigações são
paralelas às dos pintores; por outro, os fotógrafos retratistas que se multiplicam em to-
das as cidades. Os domínios de estudo da história da fotografia são imensos: a fotografia
documental; o fotojornalismo; a fotografia a cores; a fotografia de arquitectura; a foto-
grafia publicitária. A história da fotografia é igualmente uma história de grandes artis-
tas: de Hausmann, Atget, Man Ray e Kertesz.
Para além dos dois grandes repertórios internacionais, o Repertório de Arte e Arqueolo-
gia e o Repertório Internacional da Literatura de Arte, a maioria dos países possui bi-
bliografias nacionais. Aos catálogos de exposição, que constituem um género novo de
publicação sobre a arte e dos quais já falámos, devemos acrescentar os catálogos dos
museus. Os historiadores da arte publicam habitualmente as suas investigações especia-
lizadas em revistas. Entre aquelas que tiveram uma maior continuidade figura a Gazette
des Beaux-Arts.
V. - Os fundos documentais
A história da arte tenta utilizar a informática para tratar o volume de informações cada
vez maior de que dispõe. O contributo da ciência para a história da arte já foi assinalado
há muito tempo no que diz respeito à restauração e às análises laboratoriais. Os exames
técnicos para o estudo dos quadros efectuam-se por observação da superfície (luz rasan-
te, fotografia, microscópios, raios) e em profundidade (raios X), na esperança de desco-
brir dados seguros para a autentificação ou atribuição. Actualmente, o trabalho de labo-
ratório tornou-se muito especializado e continua a aperfeiçoar-se.
Recentemente o debate incidiu, especialmente em França, não tanto nas diferenças entre
História da arte e História, ou mesmo entre História da arte e Crítica de arte, mas nas
que separam a História da arte da Arqueologia. A História da arte surgiu a alguns como
uma ciência aristocrática, encarregada de analisar o belo, o gosto de uma certa classe so-
cial, ao passo que a Arqueologia permitiria penetrar na vida dos mais humildes, graças
às investigações sobre a cultura material. A História da arte apresenta diferentes facetas
e pode abranger todas as abordagens do campo histórico. Para além disso, pode compre-
ender um aspecto do imenso campo da criação humana, o trabalho de natureza artística
ou artesanal, pelos seus próprios meios, seguindo os seus próprios métodos de aborda-
gem. Com a importância crescente dos media, a arte atinge um público cada vez mais
amplo e o gosto colectivo forma-se estudando a disciplina. Entre as disciplinas históri-
cas, a História da arte é a que teve uma curva de crescimento mais acentuada: publica-
ções de inéditos, edições, documentação de obras, monografias de monumentos e de ar-
tistas, catálogos críticos, estudos sobre as influências e as relações artísticas, abertura ao
grande público e ao mundo actual. Hoje em dia, a História da arte é uma ciência que se
interessa por todos os períodos, por todas as artes e que acompanha a História. Toma em
consideração todos os suportes e todos os meios de expressão de todas as épocas. Já não
é sensível apenas às questões de atribuição, datação e interpretação iconográfica, mas
contribui igualmente para a compreensão das condições da criação, do financiamento,
do processo de encomenda, das técnicas e da execução da obra de arte e, como é óbvio,
da percepção desta pelo público a que se destina.