Apontamentos Patrimonio

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UNIVERSIDADE ABERTA

APONTAMENTOS DE PATRIMÓNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO

J. LEMOS PINTO

2009
PATRIMÓNIO HISTÓRICO

MONUMENTO E MONUMENTO HISTÓRICO

Património histórico designa um legado destinado ao usufruto da comunidade e consti-


tuído pela acumulação contínua de objectos pertencentes ao passado: obras das belas-ar-
tes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes e conhecimentos hu-
manos. O culto prestado hoje em dia ao património histórico exige mais do que prazer.
Exige um questionar, uma vez que ele é revelador de um estado da sociedade e das
questões que nela existem.

Por entre o imenso e heterogéneo património histórico, escolhi como categoria exemp-
lar aquela que diz respeito ao património edificado. No passado, ter-se-ia dito os "monu-
mentos históricos", mas as duas expressões deixaram de ser sinónimas. Desde os anos
sessenta do século XX, os monumentos históricos constituem apenas parte de uma he-
rança que não pára de aumentar. Aquando da criação em França da Comissão dos Mo-
numentos Históricos, as três grandes categorias de monumentos históricos eram consti-
tuídas pelos vestígios da Antiguidade, por edifícios religiosos da Idade Média e por al-
guns castelos. No final da Segunda Guerra Mundial, o número de bens inventariados ti-
nha sido multiplicado por dez, mas a sua natureza não tinha mudado quase nada. Eles
derivavam essencialmente da arqueologia e da história erudita da arquitectura. Desde
então, todas as formas da arte de edificar, eruditas e populares, urbanas e rurais e todas
as categorias de edifícios, públicos e privados, sumptuários e utilitários, foram anexadas
sob novas denominações: arquitectura menor, para designar as construções privadas não
monumentais, muitas vezes erguidas sem o concurso de arquitectos; arquitectura verna-
cular, expressão usada para distinguir os edifícios característicos dos diversos territóri-
os; arquitectura industrial, para as fábricas. Enfim, o domínio patrimonial deixou de es-
tar limitado aos edifícios individuais; ele compreende, daqui em diante, os conjuntos
edificados e o tecido urbano: quarteirões e bairros urbanos, aldeias, cidades inteiras e
mesmo conjuntos de cidades.

Até aos anos sessenta, o quadro cronológico no qual se inscreviam os monumentos his-
tóricos não ultrapassava as barreiras da segunda metade do século XIX. Hoje em dia, os
Belgas deploram a perda da Maison du Peuple, demolida em 1968 e os Franceses a per-
da dos Halles, destruídos em 1970. O século XX forçou as portas do domínio patrimo-

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nial. Hoje estariam, sem dúvida, classificados o Hotel Imperial de Tóquio, demolido em
1968; as oficinas Esders, demolidas em 1960; os armazéns Schocken em Estugarda.

A noção de monumento histórico e as práticas de conservação expandiram-se para fora


da Europa. Os anos 1870, assistiram à entrada discreta do monumento histórico no Ja-
pão. Para este país, que não concebia arte antiga ou moderna que não fosse viva, que
conservava sempre novos os seus monumentos através da sua reconstrução ritual, a assi-
milação do tempo ocidental passava pelo reconhecimento de uma história universal,
pela adopção do museu e pela preservação dos monumentos enquanto testemunhos do
passado. Na mesma época, os Estados Unidos eram os primeiros a proteger o seu patri-
mónio natural, mas não se interessavam por um património edificado, cuja protecção é
recente, e que começou por envolver apenas as habitações individuais das grandes per-
sonalidades nacionais. Quanto à China, que se tinha mantido alheia a estes valores, a
partir dos anos 1970 abriu e explorou o filão dos seus monumentos históricos.

Os efeitos negativos do turismo não se fazem apenas sentir em Florença e em Veneza.


A velha cidade de Quioto degrada-se dia após dia. No Egipto, foi necessário encerrar os
túmulos do Vale dos Reis. Na Europa, como noutros locais, a inflação patrimonial é
combatida e denunciada por outras razões: custos de manutenção, inadaptação às neces-
sidades actuais, acção paralisante sobre os projectos de ordenamento do território. Com
efeito, sem recuar até à Antiguidade ou à Idade Média, basta recordar as igrejas góticas
destruídas nos séculos XVII e XVIII em nome do "embelezamento", substituídas por
edifícios barrocos ou clássicos. Por seu lado, os arquitectos invocam o direito dos artis-
tas à criação. Desejam, como os seus predecessores, marcar o espaço urbano e não ser
relegados para os arrabaldes, ou condenados, nas cidades históricas, ao pastiche. Recor-
dam que ao longo dos tempos os estilos coexistiram, justapostos e articulados numa
mesma cidade ou num mesmo edifício. A história da arquitectura, desde a época romana
ao gótico flamejante, é legível em parte dos grandes edifícios religiosos europeus. A se-
dução de uma cidade como Paris resulta da diversidade estilística das suas arquitecturas
e dos seus espaços, que não devem ser travados por uma conservação intransigente, mas
continuados: é o caso da pirâmide do Louvre. Quanto aos proprietários, também eles
reivindicam o direito de dispor livremente dos seus bens.

As ameaças permanentes que pairam sobre o património não impedem um vasto con-
senso em favor da sua protecção, defendidas em nome de valores científicos, memori-
ais, sociais, urbanos que esse património possui nas sociedades avançadas.

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O que entender por monumento? O sentido original do termo é o do latim monumen-
tum, derivado de monere (recordar), o que interpela a memória. Neste sentido, chamar-
se-á monumento a qualquer artefacto edificado por uma comunidade para recordar, ou
fazer recordar a outras gerações, acontecimentos, ritos ou crenças do passado. Esse pas-
sado foi seleccionado de modo a contribuir para manter e preservar a identidade de a co-
munidade, étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar.

O papel do monumento, entendido no seu sentido original, perdeu progressivamente a


sua importância e tendeu a apagar-se, ao passo que a própria palavra adquiria outros sig-
nificados. Em 1689, Furetiére parece já conceder ao termo um valor arqueológico, em
detrimento do seu valor de memória: «Testemunho que nos resta de qualquer grande po-
tência dos séculos passados. As pirâmides do Egipto, o Coliseu, são monumentos da
grandeza dos reis do Egipto, da república romana». Um século mais tarde, Quatremére
de Quincy nota que «a palavra aplicada à arquitectura designa um edifício, quer cons-
truído para eternizar a recordação de coisas memoráveis, quer concebido, erguido ou
disposto de forma a tomar-se num agente de embelezamento e de magnificência nas ci-
dades». «Monumento» denota o poder, a grandeza, a beleza: compete-lhe afirmar gran-
des desígnios públicos, promover os estilos, dirigir-se à sensibilidade estética. Hoje o
sentido de «monumento» progrediu: à beleza, sucedeu a admiração ou o espanto que
provocam a mestria técnica e uma versão moderna do colossal.

O esbatimento progressivo da função de memória do monumento tem muitas causas.


Evocarei duas. A primeira diz respeito ao espaço crescente que as sociedades ocidentais,
a partir do Renascimento, concederam ao conceito de arte. Ao conceder à beleza a sua
identidade e o seu estatuto, ao fazer dela o fim supremo da arte, o Quattrocento associa-
va-a a quaisquer celebrações religiosas e a todos os memoriais.

A segunda causa reside no desenvolvimento e na difusão de memórias artificiais, pela


criação de novos modos de conservação do passado: as técnicas de registo da imagem e
do som. Qualquer construção, independentemente do seu destino, pode ser promovida a
monumento pelas novas técnicas de «comunicação».

Nestas condições, os monumentos, no primeiro sentido do termo, terão ainda um papel


nas sociedades avançadas? Para além dos edifícios de culto que conservam a sua utiliza-
ção, para além dos cemitérios militares, constituirão os monumentos algo mais do que
uma sobrevivência? Edificar-se-ão outros?

Os únicos monumentos autênticos que a nossa época edificou dissimulam-se sob formas
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insólitas: recordam um passado cujo peso e, a maioria das vezes, o horror, impedem de
os confiar apenas à memória histórica. Entre as duas guerras mundiais, o campo de ba-
talha de Verdun tinha constituído um precedente: teria sido suficiente balizar nele um
percurso para criar o memorial de uma das grandes catástrofes da história moderna.
Após a Segunda Guerra, o centro de Varsóvia, reconstruído à semelhança do que era,
recorda a identidade da nação polaca e a vontade destruidora que animava os seus inimi-
gos. Do mesmo modo, as sociedades actuais desejaram conservar viva a recordação do
genocídio do povo judeu. Melhor do que os símbolos abstractos ou imagens realistas,
são os próprios campos de concentração que se tornaram monumentos.

O novo centro de Varsóvia só é monumento porque é uma réplica: ele substitui, com
uma fidelidade atestada pela fotografia, a cidade destruída. O monumento simbólico er-
guido, ex nihilo, para fins de rememoração, já quase não existe nas nossas sociedades
desenvolvidas. À medida que elas dispunham de mnemotécnicas mais eficazes, deixa-
ram, pouco a pouco, de erguer monumentos e transferiram o fervor com que os rodea-
vam para os monumentos históricos.

O sentido do monumento histórico avança dificilmente. A diferença fundamental foi


posta em evidência por Riegl no começo deste século: o monumento é uma criação deli-
berada, cujo destino foi assumido a priori e à primeira tentativa, ao passo que o monu-
mento histórico não é desejado inicialmente e criado enquanto tal. Este último é consti-
tuído a posteriori pelos olhares convergentes do historiador e do amador, que o selecci-
onam de entre os edifícios existentes. Todo o objecto do passado pode ser convertido
em testemunho histórico sem ter tido na sua origem um destino memorial.

As diferentes relações que os monumentos e os monumentos históricos mantêm com o


tempo, a memória e o saber, impõem uma diferença maior relativa à sua conservação. O
esquecimento, a desafectação, o desuso, fazem esquecê-los e deixam-nos cair. A des-
construção voluntária e concertada também os ameaça, inspirada quer pela vontade de
destruir quer, pelo contrário, pelo desejo de escapar à acção do tempo ou pela vontade
de aperfeiçoamento. A primeira forma, negativa, é evocada mais frequentemente: políti-
ca, religiosa, ideológica, ela prova o papel essencial representado pelo monumento na
manutenção da identidade dos povos e dos grupos sociais. A destruição positiva chama
menos a atenção e apresenta-se sob diferentes modalidades. Uma, ritual, é característica
de determinados povos, como o japonês que constrói periodicamente réplicas exactas
dos templos originais, cujas cópias precedentes são destruídas. A outra modalidade de

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destruição, criativa, é ilustrada na Europa por numerosos exemplos. Para conceder mais
esplendor ao santuário de Saint-Denis», Suger mandou destruir parte da basílica carolín-
gia que a tradição atribuía a Dagoberto. Não foi o monumento mais precioso e venerá-
vel da cristandade, S. Pedro de Roma, demolido após uma vida de quase doze séculos,
por uma decisão de Júlio II? Tratava-se de o substituir por um edifício grandioso, cuja
magnificência e cenografia pudessem recordar o poder conquistado pela Igreja.

Porque se insere num local imutável e definitivo no seio de um conjunto objectivado e


congelado pelo saber, o monumento histórico exige, no âmbito da lógica desse saber, e
pelo menos em teoria, uma conservação incondicional. A expressão monumento históri-
co aparece em 1790 pela pena de Millin, no momento em que, no contexto da Revolu-
ção Francesa, são elaborados os conceitos de monumento histórico e os instrumentos de
preservação (museus, inventários, classificação, reutilização) que lhe estão associados.
O vandalismo da Revolução não deve ser minimizado. Os homens que o combateram
no seio das Comissões revolucionárias concretizavam, sob a urgência do perigo, as idei-
as comuns aos amadores de arte, aos arquitectos e aos sábios da época iluminista.

A origem do monumento histórico deve ser procurada bastante antes do aparecimento


do termo que o designa. Para seguir a génese desse conceito, há que recuar ao momento
em que nasce o projecto, até então impensável, de estudar e conservar um edifício pela
única razão de ele ser um testemunho da história e uma obra de arte.

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I OS HUMANISMOS E O MONUMENTO ANTIGO

Pode situar-se o nascimento do monumento histórico em Roma por volta do ano de


1420, quando Martinho V restabelece a sede do papado nesta cidade.

O interesse intelectual e artístico que uma pequena elite do Quattrocento manifestava


pelos monumentos da Antiguidade resultava de uma longa maturação desde o último
quartel do século XIV. Não seria, porém, conveniente fazer remontar esta génese a um
tempo mais longínquo? Deve mesmo questionar-se se os homens da Antiguidade e da
Idade Média não dirigiram este mesmo olhar historiador para os monumentos e objectos
de arte do passado. A colecção de obras de arte antiga, que antecipa o museu, parece ter
aparecido nos finais do século III a. C. O território grego revela à elite culta dos seus
conquistadores um tesouro de edifícios públicos que parecem fazer, aos seus olhos, fi-
gura de monumentos históricos, tal como mais tarde o fariam, na Europa Medieval, os
monumentos romanos aos olhos dos clérigos formados nas humanidades. Serão estas
analogias ilusórias e superficiais?

Arte grega clássica e humanidades antigas

Reino de Pérgamo: os Atálidas procuraram com fervor e as esculturas e os objectos de


arte que a Grécia clássica produziu, sem nunca os coleccionarem. Conhecidas através
dos testemunhos de Pausânias, as colecções dos Atálidas não pertencem nem à categoria
dos tesouros, religiosos ou funerários, nem à categoria das curiosidades, acumuladas se-
gundo o acaso das guerras e das heranças pelos curiosos de todos os tempos. Estes ob-
jectos foram procurados, escolhidos e adquiridos pela sua qualidade intrínseca. Átalo I
possuía emissários em toda a Grécia e financia em Egina as primeiras escavações co-
nhecidas da história. A mesma atitude condu-lo, tal como aos seus sucessores, a admirar
e a mandar copiar na sua capital os grandes monumentos helenísticos.

Roma: em 146 a. C, aquando da partilha dos despojos após o saque de Corinto, o gene-
ral romano fica desconcertado com a importância das ofertas feitas por Átalo II por ob-
jectos pelos quais os Romanos não percebiam o interesse. Ele adquire uma pintura cen-
tenária de Aristides, juntamente com algumas estátuas. Houve quem considerasse este
episódio a data de nascimento simbólico do objecto de arte e da sua colecção.

Os objectos gregos espoliados pelos exércitos romanos começam por fazer uma entrada
no seio de algumas habitações patrícias. Mas o seu estatuto altera-se no momento em

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que Agripa exige que as obras entesouradas nos templos sejam expostas nos grandes es-
paços públicos. Roma conheceu coleccionadores de arte, mercados de arte, especialis-
tas, falsários, corretores. Roma espoliou a Grécia à escala das pilhagens napoleónicas.
Roma viu edificar, por Adriano, o primeiro museu de arquitectura.

Todos os objectos que encantaram os Atálidas e posteriormente os Romanos são de ori-


gem grega. À excepção de algumas obras do começo do século VI, esses objectos per-
tencem exclusivamente aos períodos clássico e helenístico. O seu valor não deriva nem
da sua relação com uma história que eles autentificariam ou permitiriam datar, nem da
sua antiguidade: eles dão a conhecer os feitos de uma civilização superior. São modelos,
apropriados para suscitar um requinte que só os Gregos tinham conhecido. Os Atálidas
queriam fazer da sua capital um centro de cultura grega. Os Romanos procuravam im-
pregnar-se do mundo plástico da Grécia, tal como procuravam impregnar-se do pensa-
mento da Grécia por via da sua língua.

Finalmente, a mesma prudência deve ser observada no que diz respeito à interpretação
do valor estético atribuído às criações da Grécia clássica. É verdade que a beleza revela
entre os coleccionadores motivos estranhos ao prazer característico da arte: prestígio en-
tre os conquistadores, snobismo entre os que tinham conseguido ascender na escala so-
cial, lucro ou prazer do jogo entre os restantes. Para que se possa legitimamente evocar
a noção de monumento histórico, falta a esses tempos o distanciamento da história, sus-
tentado por um projecto deliberado de preservação.

Vestígios antigos e humanitas medieval

Esses séculos testemunharam inúmeras destruições. Dois tipos de factores contribuíram


de forma principal para as mesmas. De um lado, o proselitismo cristão: as invasões bár-
baras dos séculos VI e VII saquearam talvez menos do que o proselitismo dos missioná-
rios na mesma época, ou do que os monges teólogos. Por outro lado, a indiferença rela-
tiva aos monumentos que tinham perdido o seu sentido e a sua utilidade, a insegurança
e a miséria: os grandes edifícios da Antiguidade são transformados em pedreiras, ou en-
tão recuperados e desvirtuados. Em Roma, no século IX, os arcos do Coliseu são ocupa-
dos por habitações, ao passo que a arena recebe uma igreja. Os arcos do teatro de Pom-
peia são ocupados por mercadores de vinho. Na Provença, as arenas de Arles são trans-
formadas em cidadela, as suas arcadas fechadas, um quarteirão de habitações construído
sobre as suas bancadas e uma igreja edificada no seu centro.

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Todavia, na mesma época, muitas obras e edifícios do paganismo foram objecto de uma
conservação deliberada, sob incitação, directa ou indirecta, do clero, que se tinha manti-
do como o único depositário de uma tradição letrada e da humanitas antiga. Monumen-
tos ou património histórico antes de tempo? Não se pode responder a esta questão senão
depois de se ter tentado analisar as motivações desta atitude preservadora.

Antes de mais, razões de economia em tempos de crise. Em Roma, no século VI, o papa
Gregório I toma a seu cargo a manutenção do parque imobiliário e pratica uma política
de reutilização: «não destruam os templos pagãos, mas apenas os seus ídolos. No que
diz respeito aos edifícios, contentai-vos em aspergi-los com água benta e neles colocar
os vossos altares e as vossas relíquias.». O Panteão, consagrado em 609 à Virgem Ma-
ria, constitui um precedente durante quase trezentos anos.

No entanto, o interesse utilitário não era o único em jogo na preservação dos vestígios
antigos. O interesse e o respeito testemunhados a essas obras estão em consonância com
as posições tomadas pela Igreja face às letras e ao saber clássicos. Desta forma, a bene-
volência para com a humanitas e as artes antigas culmina com esses breves e parciais
renascimentos a que Panofsky chamou renascences, nos séculos XI e XII, sob o impul-
so dos grandes abades humanistas. Quando Hugo de Cluny, Hildeberto de Lavardin,
Jean de Salisbury se dirigem a Roma, é com emocionado respeito pela sua cultura clás-
sica que eles admiram os monumentos.

Atracção intelectual, é certo, mas também sensibilidade: as obras antigas fascinam pelas
suas dimensões, pelo requinte, pela perícia da sua execução, e pela riqueza dos seus ma-
teriais. Quando o abade de Saint-Denis manda restaurar o mobiliário da sua igreja, ad-
mira o trabalho maravilhoso de um painel do altar atribuído aos «artesãos bárbaros», e
«a escultura muito delicada, hoje insubstituível das tabuinhas de marfim da cadeira» .

A experiência dos humanismos do século XV não será antecipada pelo interesse e pelo
júbilo que suscitam os monumentos antigos entre os proto-humanistas da Antiguidade
Tardia e da Idade Média? Uma diferença irredutível opõe as duas formas de humanismo
e as suas relações com a Antiguidade: o distanciamento histórico que o observador do
Quattrocento estabeleceu, pela primeira vez, entre o mundo ao qual pertencia e a lon-
gínqua Antiguidade, de que estuda os vestígios. Para os clérigos do século VIII ou do
século XII, o mundo antigo é simultaneamente impenetrável e imediatamente próximo.
Impenetrável, pois os territórios tinham-se tornado cristãos, a visão pagã do mundo já
não tinha lugar, não era concebível. Próximo, pois estas formas vazias, ao dispor da
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mão e do olhar, são imediatamente transponíveis para o contexto cristão, onde são rein-
terpretadas segundo códigos familiares.

Quando no começo do século XII, Hildeberto de Lavardin se extasia com um trabalho


que não poderia ser «nem igualado, nem refeito», e quando evoca a «paixão dos arte-
sãos» que foram responsáveis por essas imagens, não se deve esquecer que ele começa
por louvar a mutilação (purificadora) da Cidade, de que pode a partir de então acarinhar
os vestígios com boa consciência. O proto-humanismo apropriara-se literalmente dos
vestígios do mundo antigo ao cristianizá-los.

A ausência de distanciamento é o denominador comum de todas as atitudes respeitantes


à herança da Antiguidade greco-romana. O escultor românico integra monstros antigos
na representação de uma cena bíblica e o iluminador cobre com roupagens medievais os
heróis da mitologia grega. O mesmo acontece com os objectos e os monumentos da An-
tiguidade: qualquer que seja o saber dos que deles dispõem e o valor que lhes é atribuí-
do, são introduzidos no circuito das práticas cristãs, sem que tenha sido disposto em
tomo deles o distanciamento simbólico e as proibições que uma historização teria im-
posto. A alteridade de uma cultura diferente não era assumível. Os edifícios são investi-
dos de inocência e familiaridade, sem hesitações nem escrúpulos, tal como o são as for-
mas plásticas e os textos filosóficos.

Móveis ou imóveis, as criações da Antiguidade não representam assim o papel de mo-


numentos históricos. A sua preservação é, com efeito, uma reutilização. Ela apresenta-
se sob duas formas distintas: reutilização global, acompanhada ou não de reordenações;
fragmentação em bocados utilizáveis para fins e em locais diversos.

Mas os monumentos antigos não são apenas «reciclados»: são, com uma mesma simpli-
cidade, desmantelados e os fragmentos reinseridos em novas construções, para as embe-
lezar. Desde o século VI, Roma é uma fonte de materiais para os novos santuários.

Carlos Magno faz transportar de Roma e de Ravena os mármores e as colunas que utili-
zará em Aix la Chapelle. Suger, ao ampliar Saint-Denis, exaspera-se: «Onde encontrarei
colunas de mármore? Só encontro uma solução: ir a Roma ».

Mas Roma não é a única reserva. Em Lião, são os mármores do Forum vetus que aju-
dam a construir Saint-Martin-d'Ainay e as suas colunas a abside da catedral. Nîmes e
Arles alimentarão as abadias de Saint-Germain-des-Prés em Paris.

No entanto, deve sublinhar-se os privilégios que autorizaram Roma a ser a primeira a

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distanciar-se da sua herança e a situar-se num espaço histórico. No começo, a Cidade
apresentava a mais forte concentração de edifícios antigos famosos. Os papas tinham-se
assumido como os herdeiros de Roma, primeiro contra a tradição bizantina, depois con-
tra a barbárie dos invasores e, por fim, contra a hegemonia dos imperadores alemães.

Nesta obra salvadora dos papas, são difíceis de traçar as fronteiras entre as medidas di-
tadas pela utilidade, as que inspiram o interesse histórico ou ainda a vontade de afirmar
uma identidade através dos monumentos. Duas memórias são solicitadas por duas cate-
gorias de monumentos: uma, mais próxima, religiosa, que estrutura a vida quotidiana, e
outra, mais distante, de um passado temporal e glorioso.

A presença simultânea em Roma destes dois tipos de monumentos, remetendo para duas
tradições tão distantes, convidava, sem dúvida, a um efeito de diferenciação e à criação
de uma outra distância à face aos monumentos da Antiguidade. O édito pelo qual se
protege a coluna de Trajano em 1162 é ambivalente: «Nós desejamos que ela permane-
ça intacta.» Monumento ou já monumento histórico? Impossível de responder.

Quando Martinho V retorna à cidade, os grandes monumentos jazem por entre as vi-
nhas e pastos, quando não foram ocupados e varridos por habitações. No contexto da re-
volução do saber em que vive então a Itália, essa mesma imagem arruinada de uma An-
tiguidade obriga o olhar a conceder aos monumentos romanos uma dimensão histórica.
É neste contexto mental, nestes locais e sob a designação plural de «antiguidades» que
se deve situar o nascimento do monumento histórico. Ainda precisará de três séculos
para adquirir o seu nome definitivo.

A fase antiquisante do Quattrocento

Designo por «antiquisante» a primeira fase deste desenvolvimento, dado que o interesse
pelos vestígios do passado, enquanto tais, se concentra apenas nos edifícios e obras de
arte da Antiguidade, com exclusão de qualquer outra época. Inúmeros testemunhos per-
mitem fixar o despertar do olhar distanciado e estético por volta de 1430 que, liberto das
paixões medievais, dirigindo-se para os edifícios antigos os transforma em objectos de
reflexão e de contemplação. Contudo, esta nova atitude foi preparada desde a segunda
metade do século XIV. Os historiadores e os historiadores de arte que se dedicaram aos
movimentos artísticos e intelectuais que se desenvolveram na Itália do Quattrocento
identificaram no século XIV duas atitudes originais, características, respectivamente,
dos humanistas e dos artistas. Estas duas atitudes contribuíram para uma primeira con-

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ceitualização da história enquanto disciplina e da arte enquanto actividade autónoma.
Elas são uma condição necessária para que se constitua o objecto que nós designamos
por monumento histórico, e que está ligado às duas noções de história e de arte.

De um lado, uma aproximação literária, introduzindo o que se poderia chamar «efeito


Petrarca». Petrarca revela uma Antiguidade desconhecida, radiosa, que relega para a
noite da ignorância os séculos do Ocidente cristão que contribuíram para o seu desco-
nhecimento e para a falsificação das suas obras-primas. E se ela toma o valor de perfei-
ção e de modelo, ela revela também, pela primeira vez, a sua alteridade fundamental. A
leitura purificadora do poeta descobriu e fundou o distanciamento histórico.

Desde logo, os edifícios antigos adquirem um novo valor para Petrarca e para o seu cír-
culo de amigos. Eles testemunham a realidade de um passado acabado. Dissipam atra-
vés da sua presença a ressonância fabulosa dos textos gregos e latinos e esse poder não
se manifesta em nenhum lugar melhor do que em Roma.

Contudo, na época de Petrarca, os edifícios clássicos estão ao serviço de uma relação


ainda exclusivamente textual com a Antiguidade. A forma e a aparência dos monumen-
tos romanos não solicitam a sensibilidade visual: legitimam a memória literária. Mais
do que os seus monumentos individuais, é toda a Roma que evoca antes de mais «um
modo de vida exemplar, a virtus e a virilidade», numa palavra, um clima moral.

Em 1375, um amigo de Petraca, o médico Dondi, envia as suas impressões de Roma a


Frei Guglielmo de Cremona: «Vi estátuas preservadas e numerosos fragmentos, arcos
de triunfo grandiosos e colunas, nas quais está esculpida a história de acções notáveis, e
outros monumentos erguidos em honra de grandes homens. Vi tudo isto, com uma exci-
tação assinalável: Eis os testemunhos de grandes homens..."».

Disse-se desta carta, tal como de outras contemporâneas, que transmitem de Roma uma
imagem «quase enfaticamente não visual». A sua pertença exclusiva ao mundo da escri-
ta e as suas preocupações essencialmente literárias, políticas, históricas, continuaram até
aos primeiros decénios do século XV a condicionar a atitude e o olhar dos humanistas
que faziam a viagem de Roma. Salvo excepções, esses visitantes não estão interessados
nos monumentos em si mesmos. Para eles, o testemunho do texto sobre o passado é
mais importante do que todos os outros. Preferem as inscrições que cobrem os edifícios
antigos aos próprios edifícios. Em 1452, Alberti resume os limites dessa atitude que ele
já ultrapassou: « Os túmulos dos Romanos e os vestígios da sua antiga magnificência,
que nós vemos em todo o nosso redor, ensinaram-nos a acreditar nos testemunhos dos
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historiadores latinos que, sem dúvida, nos pareceriam menos credíveis de outra forma.»

A esta aproximação literária opõe-se, na passagem do século XIV para o XV, uma outra
dos «homens de arte» (artifices) que, distintamente dos humanistas, estão basicamente
interessados nas formas. Pertenceu, de facto, a escultores e a arquitectos a descoberta
em Roma do universo formal da arte clássica. É o que se poderia chamar «efeito Bru-
nelleschi», na medida em este é o mais ilustre desses descobridores.

Mas não é o primeiro. Depois de ter confiado as suas reacções de letrado, Dondi opõe-
lhe as «dos nossos artifices modernos» perante os edifícios antigos, estátuas e outros
objectos análogos «da Roma antiga»: «Eles são tomados de espanto. Mais de uma vez,
ouvi um escultor famoso evocar as estátuas que ele tinha visto em Roma com tal admi-
ração e veneração que parecia estar fora de si.»

O arrebatamento do escultor esconde uma diferença capital: já não é um letrado, mas


um artifex. A novidade da experiência relatada por Dondi prende-se com o facto de a
contemplação desinteressada da obra antiga ser assumida e reivindicada. É assim esta-
belecido um distanciamento em relação aos vestígios da Antiguidade, análogo à que as-
sumiam na mesma época os sucessores de Petrarca.

No entanto, segundo alguns historiadores, a síntese das duas abordagens, artística e le-
trada, teria sido realizada durante o último quartel do século XIV. A carta de Dondi
apresentaria a análise de dois componentes, colocados em pé de igualdade. Estes opera-
riam em conjunto entre os primeiros curiosos de arte antiga, de que Niccolo Niccoli é a
figura tutelar. Este erudito florentino, que começou por coleccionar os manuscritos de
autores clássicos, apaixonou-se pela escultura antiga. A colecção que ele lega a Cosme
de Médicis pode contribuir para o considerarmos o primeiro amador de arte no sentido
moderno desse termo. Niccoli é o catalizador que permitiu a eclosão dos coleccionado-
res príncipes, sábios e artistas do Quattrocento italiano. A sua perícia e sensibilidade
são conhecidas através da sua correspondência, nomeadamente com Poggio Bracciolini,
de quem foi o conselheiro frequentemente solicitado.

Niccoli não deixa de ser uma excepção. Por entre os letrados dos finais do século XIV e
do começo do século XV, os amadores de arte antiga representam uma ínfima minoria.
Esta é dominada pela figura precoce de Poggio, que parece ter conseguido, entre os pri-
meiros, aliar os dois olhares: o do sábio e o do esteta. A correspondência e os escritos
deste letrado, ao qual se deve a redescoberta de Vitrúvio, revelam como ele dá livre cur-
so ao deleite estético que lhe causam as esculturas e os edifícios antigos. Torna-se co-
Património - Os Humanismos e o Monumento Antigo 12/90
leccionador, mas não é por acaso que ele pede a Donatello para confirmar os seus entu-
siasmos. Foram Donatello e Brunelleschi que educaram o seu olhar e a sua sensibilidade
e que lhe ensinaram a ver a arquitectura e a escultura clássicas.

Nos anos de 1420 e 1430, iria estabelecer-se um diálogo sem precedentes entre artistas e
humanistas. Por um lado, os primeiros formam o olhar dos segundos, ensinam-no a ver
com outros olhos. Por outro, estes últimos revelam aos arquitectos e aos escultores a
perspectiva histórica e a riqueza da humanitas greco-romana, cujo conhecimento conce-
de à sua visão das formas antigas uma acuidade e uma profundidade novas. Donatello,
Brunelleschi e Ghiberti mostraram, na sua primeira visita em 1420, a arte de Roma a
Alberti. Mas, reciprocamente, é a influência de Alberti que explica como, em 1429,
Ghiberti renuncia completamente ao velho homem medieval e cria a Porta do Paraíso.

No fim deste processo «de impregnação mútua», artistas e humanistas traçaram, em


conjunto, o território da arte e articularam-no com o da história para aí implantar o mo-
numento histórico. Mas, o novo olhar dos humanistas sobre a arquitectura e a escultura
da Antiguidade clássica não implica por isso um julgamento estético. O saber histórico
continua a ser o único necessário à instituição das «antiguidades». Quantos letrados não
virão medir os templos romanos, pela única satisfação de interpretar o texto de Vitrú-
vio! Para muitos, e durante muito tempo, a análise visual do historiador, por mais atenta
e precisa que se possa tornar, ficará prisioneira da grelha do saber recebido.

Com Alberti, o estaleiro romano é lido como uma lição de construção e depois como
uma introdução ao problema da beleza. Os edifícios de Roma são simultaneamente a
ilustração das regras da beleza arquitectónica, que ele se esforça por formular em termos
matemáticos, e o culminar de uma inaugural «história da arquitectura», cujo início ele
situa na Ásia, que prossegue pela experimentação da medida e das proporções na Grécia
e alcança, por fim, a sua perfeição em Roma, onde os arquitectos do Quattrocento vão
poder formar-se segundo o exemplo dos seus vestígios.

Outros arquitectos da mesma época, como Ghiberti, não se esquivaram a mencionar nos
seus escritos as obras de alguns construtores dos séculos XIII e XIV. As suas análises
trouxeram uma contribuição original à historiografia da arquitectura; continuam, no en-
tanto, dominadas pela periodização tripartida de Petrarca: bela antiguidade, idade obscu-
ra e renascimento moderno. Este esquema, votado a uma longa carreira, condiciona e
orienta a visão dos sábios, dos artistas e dos seus mecenas. Exclui do seu campo tudo
aquilo que pertence aos tempos intermédios. O monumento histórico não pode ser senão
Património - Os Humanismos e o Monumento Antigo 13/90
antigo, a arte não pode ser senão antiga ou contemporânea.

A literatura dos humanistas sobre as obras da Antiguidade faz esperar a sua conservação
deliberada e organizada. Esta toma formas diferentes consoante se trate de objectos mó-
veis ou de edifícios. De um lado, moedas, inscrições, esculturas e fragmentos diversos
coleccionados pelos artistas, os humanistas e os príncipes italianos são conservados nas
antecâmaras e nos jardins das suas habitações. A galeria surge apenas no século XVI,
mas chega a acontecer que amadores do século XV mandem construir edifícios para al-
bergar as suas antiguidades (villa de Mantegna, em Mântua). A colecção que se diferen-
cia do gabinete de curiosidades precede o museu. De natureza privada, ela oferece desde
1471 o primeiro exemplo de abertura (uma vez por ano) ao público, com as colecções
pontifícias do Capitólio.

Por outro lado, a conservação dos edifícios tem de ser necessariamente in situ e levanta
dificuldades técnicas. Depende do domínio público e político. Contra as forças sociais
de destruição que os ameaçam, os edifícios antigos têm uma única protecção - aleatória,
se não irrisória - a paixão pelo saber e o amor da arte. É por isso que a tomada de cons-
ciência no Quattrocento do duplo valor histórico e artístico dos monumentos da Anti-
guidade não implicou a sua conservação efectiva e sistemática. A Roma do século XV
é, nesta matéria, caracterizada por uma ambivalência notável.

A partir do pontificado de Eugénio IV os humanistas, em particular os da corte pontifí-


cia, são unânimes em reclamar a conservação e uma protecção vigilante dos monumen-
tos romanos. Em uníssono estigmatizam a conversão da Cidade em pedreiras que ali-
mentam a nova construção e os fornos de cal.

É aos papas que compete, tal como no tempo de Gregório o Grande, a tarefa da preser-
vação. Mas trata-se, agora, de uma conservação moderna, já não lesiva, distanciada, ob-
jectiva e provida de medidas de restauro e de protecção dos edifícios antigos contra as
agressões múltiplas de que são alvo. A partir de Martinho V, sucedem-se as bulas ponti-
fícias com esta finalidade. A bula publicada por Pio II é exemplar. Antes de mais, o
papa distingue monumentos e antiguidades. Desejando conservar a Cidade na sua digni-
dade e esplendor, decide empregar a mais vigilante atenção na manutenção e preserva-
ção das basílicas, igrejas e outros lugares santos, «mas também para que as gerações fu-
turas encontrem intactos os edifícios da Antiguidade que conferem à Cidade o seu maior
encanto, incitam a seguir os exemplos gloriosos dos antigos e, o que é mais importante,
permitem-nos perceber a fragilidade da condição humana».
Património - Os Humanismos e o Monumento Antigo 14/90
O papa enuncia um conjunto de interdições precisas, que não isentam qualquer catego-
ria de infractores. Sob pena de excomunhão e de pesadas multas, proíbe «a todos, qual-
quer que seja o seu poder, ou a dignidade, danificar ou transformar em cal qualquer edi-
fício da Antiguidade existentes na Cidade ou nas suas proximidades, mesmo que se en-
contrem em propriedades que lhes pertençam».

Os papas não se contentam com medidas preventivas. Eles desentulham e restauram.


Eugénio IV recupera a cobertura do Panteão e desimpede-lhe os acessos. Nicolau V en-
carrega Alberti da conservação e recuperação dos monumentos da Antiguidade, bem
como do levantamento topográfico de Roma, que será a base de um projecto de reestru-
turação da Cidade. O aqueduto de Acqua Virgineo é posto em funcionamento, a mura-
lha de Aureliano é reparada e um restauro destrutivo desimpede o Panteão e a ponte de
Sant'Ângelo das construções parasitas. Paulo II manda restaurar o arco de Septimo Se-
vero, o Fórum, o Coliseu e a coluna de Trajano. Sisto IV restaura o templo de Vesta e o
Arco de Tito. Por outro lado, define as regras de expropriação por utilidade pública e
publica o primeiro édito contra a exportação de obras de arte. Pio II manda abrir em
Carrara, pedreiras de mármore para substituir o Coliseu.

Em contrapartida, os mesmos protagonistas que se mostram tão empenhados na causa


da conservação não participaram menos na devastação de Roma e das suas antiguida-
des. De facto, os monumentos nunca deixaram de ser utilizados como pedreiras para ali-
mentar a política de novas construções. Martinho V procura nos monumentos as pedras
para o restauro de São João de Latrão. Sob Nicolau V, aqueles produziam travertino,
mármore e pedra talhada. O próprio Pio II, a despeito das bulas e das pedreiras que abri-
ra em Carrara, recorria a blocos de mármore e de travertino do Coliseu, do Capitólio, do
porto de Óstia e da villa Adriana. O futuro Paulo II recorre ao Coliseu para o Palazzo
Venezia.

Como explicar a ambivalência destes príncipes e destes papas que protegem com uma
mão e degradam com a outra os edifícios antigos da cidade? É contra o seu papel no
massacre do Roma que se eleva, a maioria das vezes, a censura dos humanistas. Mas,
mesmo as atitudes dos que protestam, letrados ou artistas, nem sempre é coerente. Rafa-
el denuncia que «... desde a minha chegada a Roma, se destruíram monumentos, como a
arcada na entrada dos banhos de Diocleciano, o templo de Ceres e uma parte do Fórum,
cujos mármores forma convertidos em cal». No entanto, o mesmo Rafael beneficia de
um breve de Leão X que lhe confia «a inspecção geral de todas as descobertas de pedras

Património - Os Humanismos e o Monumento Antigo 15/90


e de mármore, de modo a que ele possa comprar tudo o que for necessário para a cons-
trução do novo templo».

Com efeito, estes homens deslumbrados pela luz da Antiguidade e das antiguidades não
podiam libertar-se repentinamente de uma mentalidade ancestral e esquecer os compor-
tamentos enraizados, idênticos aos da maioria dos seus contemporâneos, tanto os letra-
dos como os iletrados. O distanciamento relativamente aos edifícios do passado exige
uma aprendizagem longa, uma duração que o saber não pode diminuir e que é necessá-
rio para que o respeito se substitua à familiaridade.

Finalmente, a atitude contraditória dos papas é ditada por políticas económicas e técni-
cas ligadas à necessidade de embelezar e de modernizar a cidade. A urgência exige ma-
teriais de construção, de que não se dispõe em quantidades suficientes, e espaços livres
para as realizar. Tal como mais tarde, no contexto da modernização encetada desde os
séculos do classicismo, e pelas mesmas razões, os promotores dos trabalhos são, muitas
vezes, os executantes das destruições.

Esta ambivalência, que se assemelha a uma duplicidade, anuncia uma dimensão impor-
tante do discurso sobre a conservação e a protecção patrimoniais em geral, e a dos mo-
numentos históricos e das antiguidades em particular. Quer se apoie na razão ou no sen-
timento, esse discurso tornar-se-á muitas vezes na boa consciência do demolidor e na
caução da demolição. Ao ligar a noção de antiguidades à da sua preservação, e colocan-
do assim fora de jogo o conceito de destruição, os papas fundam uma protecção ideal,
cuja natureza, puramente discursiva, serve para mascarar e autorizar a destruição real,
ao nível das acções, das mesmas antiguidades.

É assim que, em Roma, no cenário do Quattrocento italiano, os três discursos da pers-


pectivação histórica, da perspectivação artística e da conservação contribuem para o
aparecimento de um objecto novo: reduzido apenas às antiguidades, por e para um pú-
blico limitado a uma minoria de eruditos, de artistas e de príncipes: esse objecto não
deixa de ser a forma primitiva do monumento histórico.

Património - Os Humanismos e o Monumento Antigo 16/90


O TEMPO DOS ANTIQUÁRIOS. MONUMENTOS REAIS E MO-
NUMENTOS FIGURADOS

Depois dos humanistas italianos, os letrados da Europa fizeram e a viagem ritual a


Roma, para descobrir os seus monumentos e se apropriar do conceito de antiguidade.
Por meio destas idas e vindas, e sob o efeito da mobilidade que durante os séculos XVII
e XVIII caracteriza a Europa erudita, o conteúdo da noção de antiguidade não pára de se
enriquecer e o seu campo de se alargar. Os eruditos europeus exploram novos lugares.
Nos confins do limes, eles procuram os vestígios das civilizações-mãe da Grécia, do
Egipto e da Ásia Menor. Recenseiam também as ruínas romanas ou gregas deixadas so-
bre o solo dos seus próprios países. A sede de conhecimento leva-os a questionar as
suas próprias origens, atestadas por outros testemunhos materiais, que chamarão de «an-
tiguidades nacionais». Spon, médico e erudito, depois da sua viagem a Itália, regista:
«Mesmo a França pode fornecer-nos obras belas, tanto como a Grécia ou a Itália.».

O Museu, que recebe o nome quase na mesma altura que o monumento histórico, insti-
tucionaliza a conservação das pinturas, das esculturas e dos objectos de arte antigos e
prepara a via da conservação dos monumentos da arquitectura. Entre a segunda metade
do século XVI e o segundo quartel do século XIX, as antiguidades são objecto de um
imenso esforço de conceitualização e de recenseamento. Um aparelho iconográfico for-
talece esse trabalho e facilita a sua entrada na memória. Um corpus de edifícios, conser-
vados pelo poder da imagem e do texto, é assim reunido num museu de papel.

A atitude inaugural dos humanistas é prosseguida pela pesquisa culta e meticulosa dos
eruditos, conhecidos então por antiquários. A palavra, caída em desuso nessa acepção,
merece ser conservada devido à sua conotação precisa e concreta. Ela designa aquele
que é «sabedor no conhecimento dos antigos e que tem curiosidade por eles» .

Para os humanistas do século XV e da primeira metade do século XVI, os monumentos


e os seus vestígios confirmavam e ilustravam o testemunho dos autores antigos. Mas o
seu estatuto era inferior ao dos textos, que conservavam a autoridade incondicional da
palavra. Pelo contrário, os antiquários desconfiavam dos livros, muito especialmente
dos livros dos «historiadores» gregos e latinos. Para eles, o passado revela-se mais segu-
ramente através dos testemunhos involuntários, das inscrições públicas e, sobretudo, das
produções da civilização. Não só esses objectos não podem enganar o tempo, como ain-
da fornecem informações originais sobre tudo o que os escritores da Antiguidade não

Património - O Tempo os Antiquários. Monumentos Reais e Monumentos Figurados 17/90


nos relataram, em especial quanto aos modos e costumes. Na condição de ser conveni-
entemente interpretado, o testemunho das antiguidades suplanta o do discurso, simulta-
neamente pela sua fiabilidade e pela natureza da sua mensagem. Montfaucon afirma:
«Os mármores e os bronzes dizem-nos muito mais sobre os funerais do que os autores
antigos; os conhecimentos que retiramos dos monumentos são muito mais seguros do
que os que aprendemos nos livros».

Durante mais de dois séculos, o inquérito foi conduzido por eruditos pertencentes a to-
das as nações da Europa. Diferentes pelo seu nascimento (da média burguesia à alta
aristocracia), pela sua condição (religiosos e laicos, ociosos ou homens de trabalho, ho-
mens de letras e homens de ciência) e pela sua fortuna, eles estavam unidos pela paixão
pela Antiguidade e pelas antiguidades. Essa comunidade de sábios de que Roma era o
centro de união, reunia quase todas as congregações: beneditinos, como o francês Mont-
faucon; jesuítas, como o alemão Kircher; abades seculares, como o italiano Paciaudi, ou
Barthélemy; pastores anglicanos, como Pococke. A eles juntam-se príncipes, como Fe-
derico Cesi; diplomatas como o marquês de Nointel. Acrescentam-se professores e ho-
mens de ciências, como o astrónomo italiano Branchini; médicos, como Spon; juristas,
como Cassiano dal Pozzo; homens de toga e altos funcionários, como Foucault.

A esta lista há a acrescentar os artistas que contribuíram para a iconografia das antigui-
dades e que eram igualmente autênticos eruditos. Não há contestação possível para Ru-
bens ou Piranesi e para o gravador Pietro Bartoli. Mas, por entre os arquitectos, forma-
dos na técnica do levantamento, deve ou não contar-se com Serlio, Mignard, ou ainda
von Erlach?

Mencionam-se, por fim, os amadores, desde o mecenas inglês Leicester até ao barão
belga de Crassier. A fronteira entre o antiquário e o letrado é incerta, uma vez que a ex-
tensão da educação clássica dos últimos cria um antiquário em potência.

Eruditos e coleccionadores, os antiquários acumulavam nos seus gabinetes medalhas e


outros «restos» do passado, mas também verdadeiros dossiers, associando descrições e
representações figuradas das antiguidades. Eles correspondiam-se e visitavam-se por
toda a Europa, trocando objectos, informações e discutindo as suas descobertas e as suas
hipóteses. As investigações de muitos eruditos ficavam inéditas nos seus arquivos, mas
eram utilizadas e citadas nas publicações de outros autores. As obras impressas eram di-
fundidas por toda a Europa, comentadas e contestadas. Assim se constituiu um imenso
corpus de objectos, que engloba as inscrições, as moedas, os selos, o quadro, todos os
Património - O Tempo os Antiquários. Monumentos Reais e Monumentos Figurados 18/90
acessórios da vida quotidiana pública e privada, e os grandes edifícios religiosos, presti-
giosos ou utilitários.

L’Antiquité expliquée et representée en figures de Montfaucon apresenta o inventário


mais completo de todos os géneros de antiguidades, indo do monumental (templos, tea-
tros) ao minúsculo (moedas e jóias), dos equipamentos públicos (aquedutos, termas) aos
utensílios domésticos (loiças, lamparinas), das imagens dos deuses aos adornos dos hu-
manos. Os monumentos arquitectónicos surgiam como particularmente ricos em infor-
mação, na medida em que constituíam o quadro espacial das instituições. Para além do
mais, as suas inscrições e decoração (pintada ou esculpida) referiam-se directamente às
crenças, aos hábitos e aos costumes da época.

O campo espácio-temporal das antiguidades alargava-se com as descobertas das grandes


estações arqueológicas de Herculano, Pompeia, seguidas das primeiras escavações de
Itália e da Sicília. O campo enriquecia-se também à medida que se estendia o alcance
das viagens: da bacia mediterrânica até ao Médio Oriente, do Egipto até ao Sudão. Ser-
lio reconstituiu a Esfinge a partir das descrições de Heródoto e Norden desenha-a ao
vivo. Estes viajantes já não se deixam absorver inteiramente pela pesquisa de monu-
mentos pertencentes às civilizações da Alta Antiguidade ou da Antiguidade Clássica:
eles familiarizam-se também com culturas até então ignoradas ou desprezadas. Assim,
Spon fica maravilhado com as mesquitas de Constantinopla, Norden cativado pelo Cai-
ro e por Alexandria.

Antiguidades nacionais

O modelo das antiguidades clássicas inspira aos eruditos a abertura de um novo campo,
o das antiguidades nacionais: monumentos antigos erguidos ou produzidos nos diferen-
tes países europeus antes, e principalmente depois, do colonato romano. Diversos facto-
res contribuíram para semelhante interesse: o efeito estimulante das investigações leva-
das a cabo nos territórios nacionais em busca de vestígios greco-romanos. Depois, o de-
sejo de equipar a tradição cristã com um corpus de obras e de edifícios históricos análo-
go ao da tradição antiga. Por fim, o desejo de afirmar a originalidade e a excelência da
civilização ocidental, seja para a diferenciar das suas fontes greco-romanas, seja para
afirmar particularidades nacionais contra a hegemonia dos cânones arquitectónicos itali-
anos. Este novo projecto começa a esboçar-se desde finais do século XV, e toma formas
locais, monográficas, incertas na localização cronológica e morfológica dos edifícios,

Património - O Tempo os Antiquários. Monumentos Reais e Monumentos Figurados 19/90


cujo único conhecimento era o da sua utilização.

Em 1729, Montfaucon inicia a publicação dos Monuments de la monarchie française.


Para ele, a pesquisa efectuada sobre «a bela antiguidade» deve ser continuada, a fim de
suprir a ausência quase total de informação acerca das idades apelidadas de obscuras.
Tal como todos os seus contemporâneos, ele conserva o esquema tripartido de Petrarca
e recusa aos «tempos intermédios» qualquer contribuição para as Belas Artes.

Os tempos que separam o reino de Teodósio do século XV não estão, todavia, desprovi-
dos de realizações: «A esses séculos devemos invenções que os antigos da bela antigui-
dade ignoravam: os moinhos, os óculos, a bússola, os vidros, a imprensa. Esses homens,
que não tinham qualquer ideia sobre a beleza da pintura, a elegância estatuária, e as pro-
porções da arquitectura, ocuparam-se na invenção de coisas úteis».

A obscuridade em que tinham permanecido os séculos intermédios priva os sábios de si-


nais, mas reservar-lhes-á surpresas. As igrejas e as catedrais apresentam um valor docu-
mental privilegiado: daqui resulta que os religiosos sejam os mais bem preparados para
a constituição do novo corpus. Os portais e as suas estátuas, os baixos-relevos, os mo-
numentos fúnebres, os vitrais e outros tesouros dos edifícios de culto, são explorados
devido ao seu carácter figurativo. Mas, a sua interpretação não assenta na maioria das
vezes em bases sólidas: assim, as personagens do Antigo e do Novo Testamento alinha-
das nas fachadas românicas ou góticas tornam-se reis e rainhas de França. Para Mont-
faucon, as estátuas da fachada real de Notre-Dame de Chartres representam a dinastia
merovíngia e ele data-as em função desse pressuposto. A arquitectura e os vestígios mo-
numentais colocam problemas de identificação, datação e interpretação ainda mais difí-
ceis, para os quais contribui a persistência de tradições orais fantasistas.

Quanto aos vestígios megalíticos, por vezes atribuídos aos Romanos ou integrados na
herança cristã, atiçam a curiosidade pelo seu aspecto insólito e misterioso e começam a
ser inventariados a partir do século XVII. Em 1759, Caylus apresenta uma tipologia e
um inventário ilustrado dos megálitos gauleses.

Gótico

Os testemunhos da arquitectura religiosa cristã do século VI ao XV são reunidos num


único conjunto e sob um único vocábulo, o gótico. A percepção das diferenças estilísti-
cas é ocultada pelas datações das crónicas que procuravam remontar os edifícios aos
tempos de Dagoberto ou Carlos Magno: a genealogia e a história dos edifícios religiosos

Património - O Tempo os Antiquários. Monumentos Reais e Monumentos Figurados 20/90


eram, para os fiéis, mais importantes do que o seu aspecto. Esta confusão conduz a uma
carência terminológica que, por seu lado, condiciona a percepção destes monumentos.

Em 1687, Félibien distingue o gótico antigo e o gótico moderno. O primeiro, conhecido


também por gótico velho e vilão, engloba indistintamente todos os estilos ainda sem
nome da Antiguidade Tardia ao período românico, inclusive. O segundo, conhecido
também por gótico novo ou gótico bom, corresponde ao conceito actual de gótico. Esta
terminologia será ainda a de Quatremére de Quincy.

A arquitectura conhecida hoje por gótica tinha-se tornado fora de Itália, desde finais do
século XV, no símbolo das antiguidades nacionais e é sobre ela que se debruçava a aten-
ção dos antiquários: documentada por abundantes arquivos, era simultaneamente muito
antiga e familiar. Consoante os países, o processo que transformava os monumentos gó-
ticos em antiguidades nacionais era favorecido ou travado por condições particulares,
bem ilustradas pelos exemplos de França e de Inglaterra.

Em França, a introdução, depois das guerras de Itália, do gosto e da arquitectura ultra-


montanos, conduz à desafeição do gótico. Aos olhos do público culto ou mundano, esse
estilo é, a partir de então, símbolo de arcaísmo, de grosseria e de mau gosto. As publica-
ções acerca das antiguidades nacionais, em especial sobre a arquitectura medieval, rece-
bem um acolhimento bastante reservado e são, por isso, pouco numerosas.

Os eruditos prosseguem, contudo, as suas pesquisas, monográficas ou gerais. Félibien,


afirma sobre Saint-Denis: « Toda a obra é gótica, mas um desses belos góticos que se
comparara a chama filigrana. Toda esta construção parece suster-se por inúmeras colu-
nas muito delgadas e com pequenos cordões que parecem sair de cada uma.»

A aproximação estrutural do gótico é, na época, característica de França. Inscreve-se


numa análise crítica da arquitectura que se apoia nas matemáticas e no saber técnico.
Mas, salvo raras excepções, os antiquários condenam a grosseria e a desmesura da ar-
quitectura gótica, à qual recusam qualquer valor artístico. Este duplo juízo contraditório
assenta sobre uma dissociação entre o sistema construtivo e a sua decoração: a admira-
ção deve-se à componente técnica; o desdém pelo resultado artístico, que é avaliado à
luz dos cânones gregos, é total. Do gótico moderno, Quatremère de Quincy reconhece
«a sua elegância, a ousadia das suas abóbadas, que exigem muita arte e uma inteligência
infinita para uma execução tão espantosa quanto bizarra». Mas, para ele, a decoração
gótica não é «senão um produto da corrupção do gosto, da ignorância de todas as regras,
da ausência de qualquer sentimento original. Encaramos a arquitectura gótica como
Património - O Tempo os Antiquários. Monumentos Reais e Monumentos Figurados 21/90
uma mistura irregular dos diferentes gostos dos séculos precedentes».

Esta atitude não é discernível entre os Ingleses. Para eles, o gótico é um estilo nacional
que, nem a evolução do gosto, nem a moda colocarão em questão. Dois factores origi-
nais contribuíram para a Grã-Bretanha conceder este estatuto privilegiado às constru-
ções góticas da Idade Média, em particular, aos edifícios religiosos: o triunfo da Refor-
ma e a penetração tardia do «estilo italiano» na arquitectura.

Golpes da Reforma: o vandalismo que se exerce contra os monumentos do catolicismo


continua após a vitória dos reformistas. Ele exige medidas oficiais de protecção e, em
1560, uma proclamação de Isabel I opõe-se à destruição e mutilação dos monumentos.
Mas, sobretudo a desafeição dos mosteiros e de outros edifícios religiosos cria uma dis-
tância histórica que a familiaridade da utilização dificultaria.

Resistência ao classicismo: as antiguidades britânicas são duplamente nacionais - ao seu


valor histórico, respeitante à história nacional, acrescenta-se o seu valor artístico, relati-
vo à arte nacional. Ao contrário de França, a Inglaterra conserva uma arquitectura gótica
viva durante todo o período clássico. A Grã-Bretanha resistiu ao «gosto italiano» até
meados do século XVII. Quando Christopher Wren reconstruiu a catedral de São Paulo
em estilo clássico, essa tendência não era exclusiva: simultaneamente, ele edificava pe-
quenas igrejas paroquiais de Londres em estilo gótico, da mesma forma que restaurava
ou terminava conjuntos arquitectónicos antigos começados nesse estilo.

Estas condições explicam por que os estudos consagrados às antiguidades nacionais fo-
ram mais precoces, mais numerosos e mais bem acolhidos em Inglaterra do que em
França. A dimensão do interesse manifestado pelas antiguidades nacionais é assinalada,
para além disso, pela criação de sociedades de antiquários: a Society of Antiquarians of
London é fundada em 1585, para «fazer progredir e ilustrar a história e as antiguidades
de Inglaterra». Os antiquários britânicos constituíram um corpus extenso e coerente.
Eles colocaram pela primeira vez as questões relativas à origem do gótico e à sucessão
das suas diferentes fases, tentando elaborar, de forma sistemática, uma terminologia dos
diferentes estilos medievais. Finalmente, eles iniciaram, em termos ainda actuais, o de-
bate acerca do restauro dos monumentos históricos e a natureza das intervenções.

Advento da imagem

A importância concedida pelos antiquários aos testemunhos da cultura material e das


belas-artes não passa de um caso particular no âmbito do triunfo da observação concreta

Património - O Tempo os Antiquários. Monumentos Reais e Monumentos Figurados 22/90


sobre a tradição oral e escrita. Entre o século XVI e o final do Iluminismo, o estudo das
antiguidades evolui, visando uma descrição controlável, logo fiável, dos seus objectos.
Daí o papel da ilustração no trabalho dos antiquários. Apesar da sua dispersão, as anti-
guidades devem ser tornadas observáveis em permanência e comparáveis pela comuni-
dade dos sábios. Mesmo nas obras epigráficas, a imagem torna-se indispensável. A ima-
gem é posta ao serviço de um método comparativo que permite estabelecer séries tipo-
lógicas, por vezes até sequências cronológicas, realizando assim uma espécie de história
natural das produções humanas. Para Caylus «A comparação está para a Antiguidade
como as experiências estão para o Físico. A inspecção de diversos monumentos, reuni-
dos com cuidado, desvenda-lhes a utilização. A melhor maneira de convencer o An-
tiquário e o Físico do erro é opondo ao primeiro novos monumentos e ao segundo novas
experiências.». A constituição dos museus de imagens de antiguidades não se processa,
contudo, sem dificuldades consideráveis. Essas dificuldades dizem respeito à fidelidade
das representações e só serão ultrapassadas durante os últimos decénios do século XVIII
e o primeiro terço do século XIX.

O antiquário tem de ultrapassar três obstáculos: o peso da tradição, que atribui aos auto-
res da Antiguidade e às crónicas medievais a sua autoridade, bem como o seu poder de
ocultar o real; a falta de preparação para o método de observação científica, posta em
causa pelas concepções medievais da representação e da cópia, que privilegiam um ou
mais elementos, por vezes imateriais, em detrimento da forma global; a insuficiência do
material arqueológico disponível. Peiresc desconfia por princípio de todo o testemunho
não confirmado pelos seus próprios olhos: «pedia a diferentes pessoas medidas e planos
das mesmas coisas para as comparar e tomar em seguida a decisão mais segura». Pei-
resc formula os princípios directores de uma investigação bem conduzida.

Impõe-se a comparação com o avanço das ciências naturais que, na mesma época, so-
frem das mesmas dificuldades e são estorvadas pelo mesmo pseudo-saber lendário: ani-
mais fantásticos e templos fabulosos exigem a mesma crítica. As duas disciplinas aju-
dam-se e educam-se mutuamente. Nesse tempo, elas são frequentemente praticadas por
um mesmo sábio: Peiresc e dal Pozzo observam com o mesmo olhar um camafeu ou um
camaleão. Outro ponto comum aos naturalistas e aos antiquários é a sua dependência
face aos ilustradores, seja porque é necessário utilizar documentos de épocas anteriores,
de que não se pode verificar a fiabilidade, seja porque qualquer publicação exige a me-
diação interpretativa do gravador. Salvo raras excepções, é um risco confiar na objecti-

Património - O Tempo os Antiquários. Monumentos Reais e Monumentos Figurados 23/90


vidade dos artistas contemporâneos. As críticas são várias: não têm por hábito tirar as
medidas exactas, negligenciam os detalhes, procuram melhorar os seus modelos, re-
constituem-nos muitas vezes de memória ou de acordo com o seu próprio estilo. Donde
o superior valor documental dos esboços, por muito toscos que sejam, executados ao
vivo pelos próprios antiquários.

Quanto aos desenhos dos arquitectos, são geralmente tão inexactos quanto os dos pinto-
res. Se desde o século XV eles efectuam levantamentos precisos no local, até meados do
século XVIII eles preocupam-se pouco com a exactidão das representações. Quer sejam
apresentados em planta, corte, ou elevação, os edifícios antigos são reduzidos e abstraí-
dos de qualquer contexto, de acordo com um erro metodológico denunciado por Peiresc
e igualmente frequente na reprodução das naturalia. O arquitecto não se contenta em
idealizar ou normalizar os monumentos antigos que representa: ele inventa deliberada-
mente. Por vezes reconstitui, sem outro apoio que não o da sua imaginação, as partes
ausentes dos edifícios arruinados, ou então imagina edifícios que nunca viu pessoalmen-
te. Tomemos o exemplo do Partenon: entre a primeira imagem fantasiosa, executada in
situ em 1444, e a representação científica e publicada por David Le Roy decorreram três
séculos e meio, intercalados por uma sucessão de figurações inexactas.

À medida que se generaliza, a exactidão da representação dos edifícios contribui para o


aperfeiçoamento do conceito de monumento histórico, que adquire, significativamente,
a sua denominação em finais do século XVIII.

O Iluminismo

A renovação iconográfica e conceptual das antiguidades é indissociável dos movimen-


tos do saber na época das Luzes. Os antiquários estabelecem então uma diferente rela-
ção com a duração: uma nova presença do tempo é devedora da geologia, da paleontolo-
gia debutante e, principalmente, da emergência da historiografia moderna.

Momigliano define com perspicácia esta «história» finalmente crítica, como a síntese da
atitude analítica dos antiquários e da aproximação interpretativa dos filósofos historia-
dores das Luzes. A história da arte teria sido, por seu lado, fundada por uma outra sínte-
se crítica, na qual a filosofia da arte representa o papel da filosofia da história. Winckel-
mann foi o primeiro a propor uma periodização geral da arte antiga, fundada sobre crité-
rios formais, que permitiam a crítica das ideias feitas.

O estatuto das antiguidades repousa sobre a importância e o novo papel que a época

Património - O Tempo os Antiquários. Monumentos Reais e Monumentos Figurados 24/90


concede à arte. Por um lado, o círculo de coleccionadores e de amadores alarga-se e
abre-se a novas camadas sociais: institucionalizam-se novas práticas (exposições, ven-
das públicas, colecções particulares) e surge nas gazetas uma literatura que associa uma
crítica, inicialmente tímida, às tradicionais descrições das obras expostas nos salões. Por
outro lado, a reflexão sobre a arte emancipa-se e ultrapassa as teorias clássicas da mime-
sis. A Crítica da Faculdade de Julgar concede à arte uma identidade e uma dignidade
novas, ao imputá-la a uma faculdade autónoma do espírito.

No entanto, dos valores histórico e artístico que os humanistas tinham descoberto nas
antiguidades, a maioria dos antiquários reteve apenas o primeiro e negligenciou o se-
gundo. Não se encontram quase nenhumas apreciações sensíveis e juízos de gosto nas
suas obras. E quando, por acaso, a admiração é expressa, é em bloco, de forma conveni-
ente, adoptando a terminologia (soberbo, magnífico) da tradição textual antiga.

Contudo, um pequeno número de antiquários, com destaque para Caylus, lançou as ba-
ses de uma outra história da arte, distinta da de Winckelmann, menos abstracta, mais
sensível e atenta às características plásticas das obras. Caylus foi um amador e um artis-
ta antes de se tornar num erudito e o seu objectivo principal, enquanto antiquário, era o
de disponibilizar os materiais para uma história das formas. Daí a necessidade de uma
aprendizagem do olho e da mão. Ele percebe imediatamente as diferenças de estilo na
sua ligação com a duração. O seu olho não se arrisca a confundir grego, etrusco ou ro-
mano, ou a atribuir uma romanidade qualquer aos megálitos bretões. Está ao serviço de
um saber artístico, que a maior parte dos outros antiquários negligencia e a que nós cha-
mamos história da arte. Ao tentar dar a conhecer a dimensão artística das antiguidades,
ele apresenta o prazer singular, ainda mal reconhecido, de que elas são portadoras. Des-
de então, dá-se a conhecer uma nova filosofia, plena de consequências quanto ao modo
de conservação das antiguidades: o prazer da arte não é mediatizável e exige a presença
real do seu objecto.

Caylus foi um dos primeiros a interrogar-se acerca do valor para a arte das imagens que
reproduzem os monumentos históricos e a sublinhar a sua ambiguidade. Reconhece-lhes
um fim didáctico para os noviços. Indispensáveis ao amador erudito, as imagens não são
para ele mais do que um instrumento de trabalho, na medida em que estão «destituídas
da vida que se admira nos originais». Este juízo situa Caylus na história das ideias.

Este amor pela arte que, desde o Renascimento, exige a presença real do seu objecto
para se satisfazer, iria por fim mobilizar forças sociais suficientemente poderosas para
Património - O Tempo os Antiquários. Monumentos Reais e Monumentos Figurados 25/90
institucionalizar uma conservação material sistemática das antiguidades. Um mercado
de arte em expansão constante, associado ao aprofundamento da reflexão sobre a arte e
às descobertas arqueológicas, criava uma nova mentalidade por entre um público de
amadores, recrutados em camadas sociais mais vastas e que dispunham de uma autori-
dade e de um poder económico sem precedentes. Enquanto se multiplicavam as colec-
ções privadas, eram criados os primeiros museus de arte destinados ao usufruto público.
O desenvolvimento destas instituições inscreve-se no projecto filosófico e político das
Luzes: vontade dominante de «democratizar» o saber e de o tornar acessível a todos.

Em contrapartida, nada de semelhante se passa domínio das antiguidades arquitectóni-


cas. A literatura artística e o modelo museológico exerceram mesmo, a maior parte das
vezes, efeitos perversos, ao favorecer uma fragmentação predadora dos grandes monu-
mentos, cujos despojos vêm enriquecer as colecções públicas e privadas. As pinturas
executadas pelos Panini e as gravuras produzidas para uma clientela mais modesta nos
ateliers de Piranesi recordam uma experiência vivida nos próprios locais representados.
Elas contribuem para integrar os monumentos históricos na paisagem viva e agitada da
vida quotidiana, mas sem convidar nem à sua conservação, nem à sua protecção.

Conservação real e conservação iconográfica

Após quase três séculos de estudos consagrados às antiguidades, a forma dominante da


sua conservação continua a ser o livro, com a sua iconografia gravada. Durante quase
todo este período, excepto, parcialmente, em Inglaterra, a arquitectura histórica não foi
protegida e restaurada senão em função de circunstâncias excepcionais e por instância
de personalidades fora do vulgar. Nem a própria Roma foi capaz de prosseguir a acção
pioneira que tinha inaugurado nesse domínio.

O caso da França é paradigmático. Desde o século XV que antiquários e arquitectos es-


tudaram os vestígios greco-romanos, em particular os da Provença. No entanto, se eles
lamentam o seu estado de abandono, só uma minoria ínfima se preocupa com a sua pro-
tecção. São raros os projectos de conservação e de limpeza das ruínas e não se contam
as destruições ordenadas pela administração no âmbito da ordenação territorial.

Os antiquários ingleses não se limitaram à observação e à descrição dos seus monumen-


tos góticos. O vandalismo da Reforma causa neles indignação, ferindo o seu sentido
prático (esbanjamento insensato) e o seu nacionalismo. Os danos causados aos monu-
mentos legados pela Idade Média são sentidos como um atentado à nação. As socieda-

Património - O Tempo os Antiquários. Monumentos Reais e Monumentos Figurados 26/90


des de antiquários apresentam-se como guardiãs desta herança. Com a ajuda da impren-
sa, essas sociedades representaram um papel na protecção do património histórico que,
em França, foi mais tarde assumido pelo Estado.

Os antiquários ingleses colocaram a questão do restauro dos seus monumentos nacio-


nais em termos claros, doutrinais e polémicos. Restauro conservativo ou restauro inter-
vencionista? Este debate acerca da natureza e da legitimidade da intervenção, foi inau-
gurado pela sociedade dos antiquários de Londres na altura das campanhas de restauro
conduzidas por Wyatt num conjunto de catedrais. Em nome da transparência, da sime-
tria e da unidade de estilo, este suprime as tribunas e outros obstáculos à travessia do
olhar de Ocidente para Oriente, desloca os monumentos fúnebres, demole os portais
«demasiado antigos» e substitui elementos tardios por elementos antigos reinventados.
O reverendo Milner e o desenhador Carter, em particular, multiplicam os apelos e os ar-
tigos denunciando a devastação e pregam uma cruzada contra «o apagar dos vestígios
da nossa antiga magnificência, que não podem ser senão ridiculamente imitados e não
serão nunca igualados». A sua argumentação, inteiramente fundada nas noções de quali-
dade e de autenticidade, refuta ponto por ponto as teses de Wyatt.

Estes e outros combates mostram que a conservação e o restauro concretos, efectivos,


exigem a conjugação de uma forte motivação de ordem afectiva e de um conhecimento
que se afinará à medida dos progressos da história da arte. No entanto, esta epopeia in-
glesa permanece única na época. À parte esta importante excepção, o imenso trabalho
de erudição e de recenseamento efectuado pelos antiquários mantém-se quase sem efei-
to sobre a conservação real dos edifícios históricos.

Património - O Tempo os Antiquários. Monumentos Reais e Monumentos Figurados 27/90


A REVOLUÇÃO FRANCESA

Desde que a palavra vandalismo foi cunhada pelo abade Gregório, o balanço das des-
truições revolucionárias já foi feito e a historiografia da sua metodologia detalhadamen-
te estabelecida. Em contrapartida, a obra de salvaguarda do património francês realizada
pela Revolução permanece em geral desconhecida. Ela foi, no entanto, analisada com
minúcia a partir dos arquivos e documentos oficiais por Rucker, que aí vê «as origens
da conservação dos monumentos históricos em França». Com efeito, a conservação do
monumento histórico, com o seu aparelho jurídico e técnico remonta à Revolução.

Rucker conferiu o conjunto de documentos publicados entre 1790 e 1795 destinados a


conservar e proteger os monumentos históricos, situa-os, com justiça, na tradição pré-
revolucionária da filosofia esclarecida, mas não sublinha o passo essencial introduzido
pelas instâncias revolucionárias em matéria de conservação dos monumentos históricos:
a passagem à acção. Da noite para o dia, a conservação iconográfica abstracta dos an-
tiquários dava lugar a uma conservação real.

Um caso dá-nos um exemplo da dimensão da inovação. Em 1790, o antiquário Millin,


que parece ser o inventor da palavra «monumento histórico», declara à Assembleia Na-
cional Constituinte: «A união dos bens eclesiásticos aos domínios nacionais e a venda
destes vão acarretar recursos para a nação. Mas esta venda é funesta para as artes e as
ciências, destruindo monumentos históricos que seria interessante conservar. Existem
objectos interessantes para as artes e para a história que não podem ser transportados e
que serão destruídos. São estes monumentos preciosos que nós desejamos salvaguardar.
Faremos representar (por desenho) os diversos monumentos nacionais, tais como caste-
los, abadias, mosteiros que possam narrar os grandes acontecimentos da nossa
história».O projecto de Millin permanece o de um antiquário. O seu propósito é o de
salvar por meio da imagem objectos votados à destruição e deles oferecer uma descri-
ção.

A obra conservadora dos Comités revolucionários deu-se em dois processos distintos. O


primeiro é a transferência para a nação dos bens do clero, da Coroa e dos emigrantes. O
segundo, paradoxalmente, é a destruição ideológica de que uma parte destes bens foi
alvo a partir de 1792. Este processo destruidor suscitou uma reacção de defesa, compa-
rável à que tinha provocado o vandalismo das reformas em Inglaterra. Mas, na França, a
postura reaccionária adquire uma outra dimensão e um outro significado político, pois

Património - A Revolução Francesa 28/90


não visa apenas a conservação das igrejas medievais, mas a totalidade do património.

A classificação do património

A transferência de bens para a nação não tinha precedentes e iria colocar problemas
igualmente sem precedentes. Integradas entre os bens patrimoniais, as antiguidades são
valores materiais que, sob pena de prejuízo financeiro, há que preservar e manter.

A categoria dos bens imóveis reúne as antiguidades nacionais, as antiguidades greco-ro-


manas e, sobretudo, uma herança arquitectónica moderna, por vezes até contemporânea:
A Biblioteca Nacional, o Hospital dos Inválidos, o Observatório, o palácio onde a nação
aloja os seus reis, as academias e a universidade.

Havia que elaborar um método para o inventário da herança e definir as suas regras de
gestão. Sob proposta de Mirabeau e de Talleyrand foi criada uma «comissão dos monu-
mentos». Devia classificar as diferentes categorias de bens recuperados. De seguida,
cada categoria é ela própria inventariada e é relatado o estado dos bens que a compõem.
Finalmente, e antes de qualquer decisão sobre o seu destino, os bens são protegidos e
provisoriamente colocados fora do circuito, seja pelo seu reagrupamento em
«depósitos», seja pela colocação de selos, nomeadamente nos caso dos edifícios.

O problema de fundo é colocado pela necessidade urgente de legislar acerca do destino


dos objectos tornados património da nação, que está repartido em duas categorias, mó-
veis e imóveis, pedindo dois tipos de tratamento diferentes.

Os primeiros serão transferidos do seu depósito provisório para um definitivo, aberto ao


público, que recebe a denominação de museu. Reunindo obras de arte, mas também,
conforme ao espírito enciclopedista, objectos das artes aplicadas e máquinas, os museus
ensinarão o civismo, a história, bem como os conhecimentos artísticos e técnicos. Esta
pedagogia é, logo à partida, determinada à escala nacional. Os acontecimentos políticos,
a penúria financeira, a inexperiência e a imaturidade em matéria museológica impedirão
a realização dessa grande ambição. Falhou igualmente a decisão de criar em Saint-Denis
um museu onde seriam recolhidos «todos os monumentos esculpidos e pintados com re-
lação aos reis e suas famílias». Só Paris é a excepção. O Louvre é o local simbólico
onde são reunidas a maior parte das riquezas artísticas durante a Revolução.

Quanto ao Museu dos Monumentos Franceses de Alexandre Lenoir, convém reduzi-lo


às suas justas proporções. Ele teve por origem o depósito criado em 1790 pelo pintor
Doyen no convento dos Pequenos Agostinhos para recolher as obras de arte das «casas

Património - A Revolução Francesa 29/90


religiosas». O seu aluno Lenoir tornou-se no «guarda geral» e abriu ao público a colec-
ção reunida. Esta constava de uma enorme acumulação de fragmentos de arquitectura e
de escultura, que tanto provinham de edifícios danificados pelos revolucionários, como
tinham sido retirados e desmontados preventivamente de monumentos ainda intactos.
Dois documentos esclarecem-nos acerca do conteúdo das salas do museu. O Diário de
Lenoir apresenta um inventário dos «fragmentos» expostos, de que precisa em geral a
origem, mas nunca a época, a forma ou a função e o Catálogo, que revela a «ordem» se-
gundo a qual este espólio foi organizado. Preocupado com a pedagogia cívica e a educa-
ção histórica dos cidadãos, ele dispôs os fragmentos segundo uma cronologia que lhe
parecia verosímil. Animado por um desejo de preservação do património nacional sus-
tentado por nenhum saber histórico, ou qualquer princípio selectivo, Lenoir opunha à
«orgia de destruição» revolucionária uma verdadeira orgia conservatória, que ele ali-
mentava graças aos meios postos à sua disposição.

A empresa de Lenoir apresenta, de forma quase caricatural, as dificuldades da nascente


mentalidade museológica. Não se improvisa um conservador de colecção pública. O sa-
ber e o olhar dos antiquários permanecem apanágio de uma minoria e a história da arte
nacional, em particular medieval, continua por elaborar, estando igualmente por estabe-
lecer os critérios de eleição das obras e por inventar a sua técnica de apresentação.

Os bens imóveis, conventos, igrejas, castelos e palácios colocavam problemas numa ou-
tra escala, e as comissões revolucionárias incumbidas da sua conservação estavam ainda
menos preparadas para os enfrentar. Do estrito ponto de vista da manutenção, elas não
dispunham de infra-estruturas técnicas e financeiras que lhes permitissem substituir-se
aos antigos proprietários. Mas, sobretudo, competia-lhes inventar novas utilizações para
edifícios. Que se podia fazer de uma igreja? Anexá-la para o culto do Ser Supremo?
Esta solução não teve mais sucesso do que tinha tido na Antiguidade Tardia a conversão
dos templos pagãos em igrejas cristãs. O seu estilo neoclássico, em consonância com os
ideais da Revolução, valeu à igreja de Sainte Geneviève transformar-se no «Panteão
francês». Bréquigny sugeria a utilização das igrejas fora de uso como museus. Mas as
catedrais e as igrejas, que em muitos casos tinham perdido os seus tectos, foram a maior
parte das vezes convertidas em depósitos de munições, de pólvora ou de sal ou, caso
não se conseguisse, em mercados, enquanto que os conventos e as abadias eram trans-
formados em prisões ou em casernas.

Vandalismo e conservação: interpretações e efeitos secundários


Património - A Revolução Francesa 30/90
As medidas tomadas desde o início da Revolução para a salvaguarda do património re-
sultam de uma conservação a que eu chamo primária ou preventiva. Por oposição, cha-
mo secundária ou reactiva a uma conservação cujos procedimentos, mais metódicos,
mais finos, mais actuantes e mais bem argumentados, foram elaborados para lutar con-
tra o vandalismo ideológico que causou estragos a partir de 1792.

Compreender esta atitude reactiva exige que o vandalismo ideológico seja distinguido
das outras formas de destruição do património histórico surgidas com a Revolução.
Com efeito, não deve ser confundido nem com as destruições resultantes de actos priva-
dos, nem com as destruições ordenadas pelo Estado revolucionário, mas associadas a
fins económicos. Os actos privados de vandalismo pertencem ao cortejo de desvios que
acompanham os períodos de guerras e de problemas sociais: roubos, pilhagens. Existe,
no entanto, uma outra forma de degradação privada do património, tanto mais perversa
quanto realizada em plena legalidade. Assim, através da França, nas cidades e no cam-
po, os compradores de bens nacionais puderam, impunemente, arrasar, para lotear o ter-
reno ou para os converter em pedreiras de materiais de construção, alguns dos monu-
mentos prestigiados, como seja a abadia de Cluny.

Para mais, o Estado revolucionário tinha ele próprio ordenado destruições destinadas a
socorrer as despesas. Quantas guerras não obrigaram os reis a mandar fundir a sua bai-
xela de prata e os seus objectos de ourivesaria? A falida Assembleia Legislativa não só
decretou a fundição de pratas e de relicários, como transformou em canhões os tectos de
chumbo ou de bronze das catedrais, das basílicas e de igrejas.

Contudo, ao decreto sobre a fundição sucede, um mês mais tarde, uma Adenda de Ins-
truções que o tempera com excepções. Por entre as nove condições ou critérios moti-
vando cada um a conservação dos bens condenados, o interesse histórico, a beleza do
trabalho, o valor pedagógico para a arte e as técnicas são pela primeira vez enumerados
em conjunto e constituem uma definição implícita dos monumentos ou do património
histórico. Pode ver-se aí o incentivo da conservação reactiva.

Após a fuga do rei, o poder revolucionário caucionou e encorajou a destruição e a de-


gradação do património histórico nacional por razões ideológicas. A Assembleia Legis-
lativa promulga um decreto sobre a «supressão dos monumentos, vestígios da feudalida-
de e, nomeadamente, de monumentos em bronze existentes em Paris». Um mês mais
tarde, a Convenção decreta que «todos os sinais da realeza e da feudalidade» serão des-
truídos. O decreto mais radical ordena no primeiro de Novembro de 1792 que todos os
Património - A Revolução Francesa 31/90
monumentos da feudalidade sejam convertidos em «canhões ou destruídos».

Poder-se-ia, a propósito destas medidas, parafrasear a constatação de Vasari sobre as


destruições medievais de monumentos antigos: «Isso não se fez por ódio às artes, mas
para insultar e abater os deuses pagãos». Os monumentos demolidos, danificados ou
desfigurados por ordem ou com o consentimento dos comités revolucionários são-no
enquanto expressão de poderes e de valores desprezados, encarnados pelo clero, pela
monarquia e pela feudalidade.

Quer adopte uma forma jurídica ou exprima posições individuais, o discurso instigador
do vandalismo não tem ambiguidade. O pintor David faz votar pela Convenção o levan-
tamento de uma estátua colossal em honra do povo francês e elevada sobre os destroços
dos ídolos da tirania e da superstição.

Paradoxalmente, a conservação reactiva emana do mesmo aparelho revolucionário que


o vandalismo ideológico. O Comité de Instrução Pública e as Comissões das Artes pu-
blicaram quase ao mesmo tempo decretos contraditórios, em que os primeiros (destruti-
vos) são anulados ou moderados pelos segundos (conservadores).

Defende-se que as «destruições republicanas» foram devidas à iniciativa da opinião pú-


blica: tratar-se-ia de acabar com uma cultura elitista e de a substituir pela dinâmica de
uma cultura igualitária. Desde logo, os decretos protectores tornam-se instrumentos de
uma táctica vergonhosa ou perversa: inúteis diversões retóricas destinadas a encobrir as
contradições da acção revolucionária, a dissimular os conflitos ideológicos surgidos no
seio das comissões revolucionárias, a suavizar os excessos da iconoclastia e a recusar
assumir a sua responsabilidade. A prova do carácter simbólico dos textos conservadores
seria a sua quase completa ineficácia. A argumentação é em parte fundamentada. Eu
própria indiquei que, a partir do momento em que a noção de monumento histórico se
constituiu, a forma e os considerandos do discurso protector são empregues pelos políti-
cos visando a destruição desse tipo de bem.

Não se pode contestar as diferenças de pontos de vista que reinavam nas diferentes co-
missões e na Assembleia. Dussaulx toma a palavra diante da Convenção: «… há que
poupar os monumentos preciosos para as artes. Fui informado por artistas célebres que a
porta de Saint-Denis está ameaçada. Sem dúvida consagrada a Luís XVI, ela merece o
ódio dos homens livres, mas essa porta é uma obra-prima. Ela pode ser convertida em
monumento nacional, que os conhecedores virão de toda a Europa para a admirar.».

Património - A Revolução Francesa 32/90


Contudo, os textos revolucionários para a protecção do património não podem ser redu-
zidos a um discurso de má-fé, a menos que se atribua aos redactores destes textos um
processo em contra-revolução. Admitiriam eles que uma nação se pode dar ao direito de
destruir os fundamentos materiais da sua história? A urgência da acção impõe, por ve-
zes, uma mens momentanea na condução dos negócios humanos. Os antropólogos ensi-
naram-nos que as sociedades tradicionais podiam, ciclicamente, por uma duração muito
breve e ritual, abstrair-se do seu passado e dos seus costumes para viver na imediatez do
presente. Mas estes parênteses não confirmam senão a regra: indivíduos e sociedades
não podem preservar e desenvolver a sua identidade senão na duração e através da me-
mória.

Estas verdades foram desde cedo compreendidas pelos homens que organizaram contra
os decretos vândalos a protecção da herança monumental da nação. Eles tinham por ob-
jectivo uma dupla superação.

Antes de mais, superação da violência utópica: eles sabiam que a violência não pode ser
legítima se não for temporária. Vicq d'Azyr afirma: «Logo que o povo rompeu a sua ca-
deia e venceu os opressores pôde ferir tudo; mas hoje o povo remeteu o cuidado da sua
fortuna e das suas vinganças a legisladores». Romper com o passado não significa nem
abolir a sua memória, nem destruir os seus monumentos, mas conservar uns e outros
num movimento dialéctico que assume e ultrapassa o seu significado histórico original.
A atitude dos que se abstêm de equiparar a arte e o saber à ideologia, é comparável à
dos revolucionários soviéticos que conservaram intacta São Petersburgo e os seus palá-
cios, testemunhos da sua história e dos tesouros acumulados pelos soberanos, fundado-
res da nação.

Depois, superação esclarecida da conservação «primária»: já não se trata apenas de pre-


venir um esbanjamento de riqueza. As medidas de preservação «secundárias» ou reacti-
vas do património histórico ultrapassam a atitude prática conservativa da sua primeira
fase revolucionária, bem como a conservação erudita, mas iconográfica, dos antiquários.
Os textos da conservação secundária afirmam os seus objectivos políticos e materiais:
«Todos esses bens preciosos que se mantinham longe do povo ou que só lhe eram mos-
trados para lhe impor respeito, todas essas riquezas lhe pertencem. A partir de agora,
elas servirão a instrução pública; servirão para formar legisladores, filósofos, magistra-
dos esclarecidos, artistas de génio».

Publica-se a Instrução sobre a maneira de inventariar, com setenta páginas. Ela inicia-
Património - A Revolução Francesa 33/90
se com uma breve apologia da razão e da educação e termina com uma não menos breve
condenação do vandalismo, totalizando seis páginas. As outras sessenta e quatro pági-
nas são consagradas à definição das diferentes categorias de bens a conservar e à descri-
ção dos procedimentos técnicos próprios de cada uma delas. O principal redactor deste
texto não é nem um político, nem um historiador, nem um artista. É Vicq d'Azyr, suces-
sor de Buffon na Academia Francesa. Este sábio, especialista da anatomia do cérebro,
transpôs para o domínio dos monumentos históricos a terminologia e os métodos descri-
tivo e taxinómico que o tinham tornado célebre na sua disciplina. Ele colocou ao serviço
da protecção do património nacional o seu saber pedagógico. O papel representado por
Vicq d'Azyr no seio da Comissão Temporária das Artes durante os anos de 1792 e 1793
ilustra uma nova forma, pela primeira vez prática, das relações mantidas pelas ciências
naturais com o estudo dos monumentos históricos. O quadro construído pelos mentores
da conservação reactiva para inventariar os bens imóveis da herança nacional liberta o
conceito de monumento histórico de qualquer restrição ideológica ou estilística. O cor-
pus dos monumentos históricos compreende desde aí, para além dos vestígios greco-ro-
manos em solo francês, as antiguidades nacionais (celtas, «intermédias» e góticas) e as
obras da arquitectura clássica e neoclássica.

Valores

Os valores atribuídos a estes monumentos são revelados quer através dos decretos e ins-
truções publicadas pelo Comité de Instrução Pública, como nos Relatórios de Gregório,
que se assemelham à argumentação desenvolvida anteriormente por Vicq d'Azyr e ou-
tros fundadores da conservação secundária.

O valor nacional é o mais importante. É ele que, do princípio ao fim, inspirou as medi-
das conservatórias tomadas pelo Comité de Instrução Pública, foi ele que justificou o in-
ventário e a verificação de todas as categorias da «sucessão». Curiosamente, ele não
será referido por Alois Riegl, que foi o primeiro historiador a interpretar a conservação
dos monumentos antigos por meio de uma teoria de valores. Riegl pensa em termos de
monumento histórico, noção que prevaleceu até aos anos sessenta do século XX, e não
em termos de património: este último conceito, forjado para designar bens pertencentes
à nação e susceptíveis de um novo tipo de conservação (ou utilização ?), perde parte da
sua pertinência e cai em desuso assim que a Revolução termina. Na França revolucioná-
ria, o valor nacional é aquele que legitimou. Tais como:

Património - A Revolução Francesa 34/90


O valor cognitivo. Na Instruction sur la manière de inventorier afirma-se que os monu-
mentos históricos são portadores de valores de saber específicos e gerais, para todas as
categorias sociais. Qualquer que seja o século a que pertencem, os monumentos são
«testemunhos irrepreensíveis da história». Eles permitem construir uma multiplicidade
de histórias, de políticas, de costumes, de arte, de técnicas e servem para a investigação
intelectual e para a formação das profissões e dos ofícios. Eles introduzem, para além
disso, uma pedagogia geral do civismo: os cidadãos estão dotados de uma memória his-
tórica que representará o papel afectivo de uma memória viva desde que mobilizada
pelo sentimento de orgulho e superioridade nacionais.

Depois dos valores cognitivos segue-se o valor económico dos monumentos históricos.
Por um lado, eles oferecem modelos para as manufacturas. Por outro lado, no século
que institucionalizou a «grande viagem», reconhece-se ao património monumental uma
forma de atrair os visitantes estrangeiros. A exploração turística dos monumentos fran-
ceses é imaginada a partir do modelo que a Itália realizou desde tempos recuados.

O valor artístico do património monumental é hierarquicamente o último: estatuto com-


preensível num tempo em que o conceito de arte permanece impreciso. O termo beleza
surge raramente e de fugida nos textos relativos à conservação. A Instruction trata as
«obras-primas da arte» do estrito ponto de vista da sua função pedagógica para a forma-
ção dos artistas.

Os comités revolucionários dotavam o monumentos de um valor nacional dominante e


atribuíam-lhes novos destinos, educativos, científicos e práticos. Esta passagem à acção
da prática conservatória, bem como o conjunto de procedimentos sem precedente elabo-
rados para a gerir, marcam, pela primeira vez, uma intervenção inovadora e radical da
França na génese do monumento histórico e da sua preservação.

A investigação dos antiquários podia ser conduzida por indivíduos, agrupados ou não
em sociedades científicas. Viu-se inclusive que estas últimas tinham espontaneamente
tomado a seu cargo a protecção dos grandes monumentos religiosos na Grã-Bretanha.
Em França, a conservação de um património promovido a propriedade de todos torna-se
num negócio do Estado. Na tormenta revolucionária, a grande herança nacional é admi-
nistrada por comités ad hoc, nos quais o governo revolucionário delega o seu poder. A
política de conservação é um peça fundamental do dispositivo geral de centralização:
ela é elaborada em Paris, sob a responsabilidade do ministro do Interior, e os prefeitos,
representante do Estado, estão encarregados da sua aplicação.
Património - A Revolução Francesa 35/90
Assim, sob o ímpeto de 1789, todos os elementos necessários para uma autêntica políti-
ca de conservação do património monumental de França pareciam reunidos: criação do
termo monumento histórico, corpus em curso de inventariação, administração dispondo
de instrumentos jurídicos (disposições penais incluídas) e de técnicas sem equivalente.
A conservação do património histórico não foi durante a Revolução, nem uma ficção,
nem uma aparência. Essa experiência durou seis anos e determinou a longo prazo a evo-
lução da conservação monumental em França.

O fim da Revolução coloca termo aos trabalhos das comissões. O interesse de Napoleão
I iria centralizar-se prioritariamente nos museus. O Louvre tornava-se, graças a Vivant
Denon, no primeiro museu moderno e os museus de província recebiam o seu quinhão
do fabuloso espólio da pilhagem judiciosa e sistemática dos grandes museus e colecções
de arte europeias. Durante todo este projecto de transferência e apropriação, Napoleão
não se preocupou muito com a sorte dos monumentos históricos nacionais. A desnacio-
nalização de uma parte dos bens alienados contribuía para o adormecer de um aparelho
de gestão nascido prematuramente. Além disso as mentalidades não estavam maduras
para que essa gestão se generalizasse fora de um contexto revolucionário.

Por outro lado, a história da arquitectura era quase inexistente e não se dispunha de cri-
térios de análise que permitissem um tratamento sistemático dos edifícios a conservar.
Para mais, sem contar com as dificuldades próprias à situação económica e política, a
gestão da herança representava uma tarefa tornada sobre-humana pelo número de edifí-
cios cuja manutenção era, anteriormente, assegurada por instâncias entretanto abolidas.

Apesar destas dificuldades o período compreendido entre 1796 e 1830 não se salda, em
matéria de conservação dos monumentos históricos, por um vazio completo, nem mes-
mo por uma regressão, como se admite geralmente. Foi recentemente mostrado que a
obra dos conservadores esclarecidos tinha sido em parte continuada durante o Directório
e o Império pelo Conselho dos Edifícios Civis, instituído em 1795. Com discrição, per-
severança e meios limitados, este órgão soube até inovar. Graças à presença nas suas
equipas de arquitectos que eram, como Peyre, também antiquários, o Conselho coloca-
va, em França, as primeiras pedras de uma doutrina de restauro dos edifícios antigos e
punha-se ao serviço da arte gótica. Para além disso, por via da sua luta contra o vanda-
lismo dos especuladores, os arquitectos do Conselho fizeram prevalecer pela primeira
vez a qualidade estética dos edifícios medievais e contribuíram para preparar o reconhe-
cimento de que o valor artístico dos monumentos do passado ia ser objecto, a partir do

Património - A Revolução Francesa 36/90


segundo decénio do século XIX.

Património - A Revolução Francesa 37/90


A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO HISTÓRICO – 1820 - 1960

«Os monumentos da antiga França induzem sentimentos nacionais e não mais se reno-
vam»: (Voyages pittoresques et romantiques dans l’ancienne France de Charles Nodier
e barão Taylor). Esta constatação de um esgotamento irremediável e traduz uma altera-
ção de mentalidade. O monumento histórico entra na sua fase de consagração, cujo ter-
mo se pode fixar por volta de 1960, ou, se se quiser encontrar uma outra fronteira sim-
bólica, em 1964, data da redacção da Carta de Veneza (Carta Internacional Sobre a Con-
servação e Restauro dos Monumentos e Sítios).

Este espaço cronológico pode parecer demasiado largo. Ele esconde acontecimentos que
teriam podido fundar uma periodização mais fina. Veja-se as contribuições dos diferen-
tes países para a teoria e para as práticas de conservação do monumento histórico (pri-
meiro, avanço da reflexão britânica, que se mantém até aos últimos decénios do século
XIX, depois a Itália e os países germânicos tomam a dianteira da inovação). Do mesmo
modo a invenção de técnicas ou os progressos da história da arte e da arqueologia, em
conjunto, marcaram o desenvolvimento do restauro dos monumentos enquanto discipli-
na autónoma. Também a evolução e as revoluções da arte e do gosto determinaram fa-
ses distintas no tratamento e selecção dos monumentos históricos a proteger.

Os critérios nacionais, mentais ou epistemológicos, técnicos, estéticos ou éticos permi-


tem determinar tempos fortes e momentos significativos na história do monumento his-
tórico. As divisões cronológicas que eles introduzem não têm, no entanto, senão um al-
cance relativo e secundário por comparação com o período 1820-1960: unidade que im-
põe (pelo reconhecimento, coerência e estabilidade) o estatuto adquirido pelo monu-
mento histórico com a chegada da era industrial. Esse estatuto pode ser definido por um
conjunto de determinações novas e essenciais, tais como a hierarquia dos valores de
que o monumento histórico se encontra investido, os seus contornos espácio-temporais,
o seu estatuto jurídico e o seu tratamento técnico.

Com efeito, a chegada da era industrial, enquanto processo de transformação e de degra-


dação do ambiente humano, contribuiu, com outros factores menos importantes, como o
Romantismo, para inverter a hierarquia de valores atribuídos aos monumentos históri-
cos e para privilegiar, pela primeira vez, os valores da sensibilidade, nomeadamente, es-
téticos. Quaisquer que sejam as datas, variáveis com os países, a industrialização perma-
neceu como a linha de divisão entre um antes e um depois. A revolução industrial con-
cede ao conceito de monumento histórico uma conotação aplicável à escala mundial. A
Património - A Consagração do Monumento Histórico 38/90
industrialização do mundo contribuiu, por um lado, para generalizar e acelerar as legis-
lações de protecção do monumento histórico e, por outro, para fazer do restauro uma
disciplina autónoma, solidária com os progressos da história da arte.

Os anos 20 do século XIX assinalam a afirmação de uma mentalidade que rompe com a
dos antiquários, bem como com a atitude da Revolução Francesa. Desde os anos 50 do
século XIX que, apesar das diferenças de industrialização, a maior parte dos países eu-
ropeus consagrou o monumento histórico. Consagração que poderia ser definida a partir
de dois textos simbólicos e complementares, um oficial e administrativo, o outro contes-
tatário e polémico. São eles o Relatório «apresentado ao Rei em 1830 por Guizot, mi-
nistro do Interior, para fazer instituir um inspector-geral dos monumentos históricos em
França» e o panfleto, publicado em 1854 por John Ruskin, sobre «a abertura do Crystal
Palace, encarado do ponto de vista das suas relações com o futuro da arte».

O conceito de monumento histórico em si mesmo

Valor cognitivo e valor artístico

O valor cognitivo do monumento histórico permanece-lhe solidamente associado duran-


te todo o período que nos ocupa. O século XIX recolocou no centro do campo da histó-
ria de arte, recentemente circunscrito e em organização, a função cognitiva do monu-
mento histórico. Apesar de resistências locais, o século da história distanciou-se face
aos antiquários. A história política e a das instituições concedem toda a sua atenção ao
documento escrito, sob todas as suas formas e desinteressam-se do mundo dos objectos
que os eruditos dos séculos XVII e XVIII interrogavam. No século XIX, os historiado-
res que queriam e sabiam olhar para os monumentos antigos eram excepções. No seu
Relatório ao Rei, Guizot realça bem a importância concedida à arte e ao seu estudo ci-
entífico e sublinha o valor dos monumentos para os especialistas. Para Guizot, como
para a maioria dos historiadores do seu tempo, os edifícios antigos já não contribuem
para fundar um saber, mas para ilustrar, e assim servir o sentimento nacional.

A substituição dos antiquários é efectuada pelos novos actores recém-chegados à cena


do saber: os historiadores de arte. Para eles, as criações da arquitectura antiga vão ser, a
partir de então, objecto de um inquérito sistemático relativo à sua cronologia, à sua téc-
nica, à sua morfologia, à sua génese e origens, à sua decoração a fresco, de esculturas e
vitrais, bem como à sua iconografia. Fundado sobre o estudo dos monumentos históri-
cos, está em constituição um novo corpo de saber, que é orientado pela reflexão sobre a

Património - A Consagração do Monumento Histórico 39/90


arte, na esteira da Crítica da Faculdade de Julgar. Já sublinhei a distinção operada du-
rante o Renascimento entre o valor informativo e o valor hedonístico das antiguidades
que, num caso, se dirige à razão histórica e, no outro, à sensibilidade estética.

As palavras «antiguidades» e «antiquários» estavam livres de ambiguidade, conotadas


pelo saber. As locuções história e historiador de arte estão mais conotadas com a pala-
vra arte do que com a palavra história: elas facilitam uma assimilação e uma confusão
do saber artístico e da experiência da arte que são comuns ainda hoje em dia.

As mesmas inquietudes foram expressas em França por Mérimée e Viollet-le-Duc, ates-


tando a permanência e a consolidação dos laços que uniam o monumento histórico ao
mundo do saber intelectual. Contudo, no seu confronto com os monumentos históricos,
tanto um como outro recorrem à via indirecta da análise racional: o primeiro para con-
vencer os Franceses a conservar a sua herança monumental e para disfarçar a sua falta
de sensibilidade estética; o segundo para tentar fundar uma nova arte de construir, vindo
em socorro de um «desejo de arte» e de uma sensibilidade arquitectónica enfraquecida.

Preparação romântica: o pitoresco, o abandono e o culto da arte

A sensibilidade romântica tinha descoberto nos monumentos um campo de deleite.

A pintura e a gravura românticas fazem com que a representação figurada dos monu-
mentos antigos desempenhe um papel quase oposto ao que lhe tinha sido atribuído ante-
riormente pelas obras eruditas. A uma iconização museológica e abstracta, em que a
imagem tende a substituir-se à realidade das antiguidades, sucede, uma iconização su-
pletiva que enriquece a percepção concreta do monumento histórico, por via da media-
ção de um novo prazer. O olhar do antiquário construía do monumento uma imagem in-
dependente e tão analítica quanto possível. O olhar do artista romântico inscreve o mo-
numento numa encenação sintética que o dota de um valor pictórico suplementar, sem
relação com a sua qualidade estética própria.

A diferença entre as duas aproximações é, por vezes, ilustrada por um único e mesmo
artista. E o caso de Tumer e da sua obra gravada. Por um lado, ele executa durante os
anos noventa do século XIX para o antiquário Whitaker ilustrações analíticas apresen-
tando objectos descontextualizados, dissociados uns dos outros e definidos com rigor
pelas suas características morfológicas e decorativas. Por outro lado, entrega a diversos
Annuals as suas primeiras «topografias pitorescas», vistas sintéticas nas quais o monu-
mento faz parte de um conjunto no qual está cenograficamente inserido: apresentado,

Património - A Consagração do Monumento Histórico 40/90


colorido, em função desse ambiente.

As obras ilustradas deste género multiplicaram-se durante os primeiros decénios do sé-


culo XIX. Monumentos e edifícios antigos, tornados no contraponto das paisagens natu-
rais e rurais ou dos panoramas urbanos, acolhiam novas determinações: implantação,
formas fantásticas, sinais de um novo valor pitoresco. As ilustrações de Voyages de No-
dier e de Taylor, que se queriam livres de qualquer preocupação científica, permane-
cem, em muitos casos, como a única fonte documental de que dispõem os historiadores
sobre a França urbana e rural nos começos do século XIX.

Para além do prazer, a imagem pitoresca pode engendrar um sentimento de perturbação


ou de angústia (com que se deleita a alma romântica), quando transforma em estigmas
as marcas do tempo nas construções dos homens. A ruína medieval, menos antiga, mais
disseminada e familiar, testemunha de forma mais dramática do que a ruína antiga. A
praça-forte reduzida às suas muralhas e a igreja gótica de que só subsiste a estrutura re-
velam, melhor do que se estivessem intactas, o poder fundador que as fez edificar.

Emoção estética engendrada pela qualidade arquitectónica ou pelo pitoresco, sentimento


de abandono imposto pela percepção da acção do tempo: estes valores afectivos inte-
gram o monumento histórico no novo culto da arte. Na Europa do Norte, a igreja gótica
presta-se à transição de um culto para outro: lugar importante para as celebrações de
uma religião ainda viva e para uma procura estética do absoluto. O católico Montalem-
bert testemunha esta contaminação quando admite a sua dupla «paixão antiga e profun-
da» pela arquitectura da Idade Média enquanto criação do catolicismo e da arte.

Escritores e pintores procuravam transcrever para formas literárias, de acordo com os


temperamentos individuais e as sensibilidades nacionais, a dimensão mística da arqui-
tectura gótica. Por muito diferentes que sejam, as catedrais de Hugo, de Ruskin ou de
Huysmans servem em uníssono o culto da arte.

Depois de se maravilharem pelos sortilégios dos monumentos antigos, muitos escritores


foram levados a tornar-se nos seus defensores titulares. Três anos após a criação da Ins-
pecção dos Monumentos Históricos, é a Victor Hugo, e não a Guizot, que Montalembert
outorga a prioridade na defesa desta causa.

Revolução industrial: a fronteira do irremediável

Homens da escrita, intelectuais e artistas foram mobilizados por uma outra força: a to-
mada de consciência de uma mudança de era histórica. A entrada na era industrial, a
Património - A Consagração do Monumento Histórico 41/90
brutalidade com que esta vem dividir a história das sociedades e o seu ambiente e o
«nunca mais como antes» que dela resulta são uma das origens do romantismo, pelo
menos na Grã-Bretanha e em França. A consciência da chegada de uma nova era criou,
face ao monumento histórico, uma mediação e uma distância consecutivas, ao mesmo
tempo que libertava energias em prol da sua protecção.

A encenação do monumento histórico, tal como o século XIX o consagra, assenta no


contraste: em último plano, uma paisagem pitoresca na qual está integrado o edifício;
em primeiro plano, está o mundo em vias de industrialização, sofrendo a agressão fron-
tal. O mundo perdeu a sua continuidade e a homogeneidade que lhe conferia a perma-
nência do fazer manual dos homens. O monumento histórico adquire por isso uma nova
determinação temporal. Ele está acantonado num passado que já não pertence à conti-
nuidade do futuro e que mais nenhum presente ou futuro virão aumentar. Desde o Re-
nascimento que as antiguidades, fonte de saberes e de prazeres, surgiam como referênci-
as para o presente, obras que se podiam igualar ou ultrapassar. A partir dos anos vinte
do século XIX, o monumento histórico é inscrito no insubstituível: os danos que sofre
são irreparáveis e a sua perda irremediável.

É assim que Hugo, Balzac e Mérimée opõem à «velha» França, «a nova França. Veja-
se: Hugo, «A indústria substituiu a arte»; Balzac, «Temos produtos, já não temos
obras». Em Inglaterra, Carlyle: «Não é apenas o mundo físico que é organizados pela
máquina, mas também o nosso mundo interior e espiritual». Ruskin sublinha a oposição
de um lado e de outro da fatídica linha de divisão entre a arquitectura tradicional e a
construção moderna. A primeira tinha por vocação afirmar a permanência do sagrado,
articulando na duração as diferenças dos homens. A segunda, anónima e padronizada,
recusa a duração e as suas marcas: a arquitectura doméstica é substituída por habitações
precárias, onde se vive como em estalagens e a arquitectura pública dá lugar a espaços
de ferro e de vidro, cuja superfície o tempo não está autorizado a marcar.

A consagração do monumento histórico surge assim directamente ligada à chegada da


era industrial, tanto na Grã-Bretanha como em França. Mas as suas consequências não
são interpretadas da mesma forma nos dois países no que diz respeito às incidências nos
valores atribuídos aos monumentos históricos. Em França o processo de industrialização
é legitimado pela consciência da modernidade, quaisquer que sejam os seus efeitos, ne-
gativos ou perversos. É a perspectiva de futuro que determinam o sentido e os valores
do monumento histórico: no seu manifesto contra o vandalismo, Hugo apela à criação

Património - A Consagração do Monumento Histórico 42/90


de «uma lei para o passado», «o que uma nação tem de mais sagrado, depois do futuro».

A Inglaterra, apesar de ser a terra natal da revolução industrial, permanece mais apegada
às suas tradições, mais orientada para o passado: o ideal de revival, que nunca se adap-
tou em França, inspira aí um movimento florescente. Não é surpreendente que os Ingle-
ses tenham dado ao monumento histórico significados mais diversificados e mais em
consonância com o presente.

Confrontados com a industrialização, os Franceses interessam-se essencialmente pelo


valor nacional e histórico dos edifícios antigos e tendem a promover dos mesmos uma
concepção museológica. Victor Hugo dá o tom: «Se é verdade que a arquitectura, sozi-
nha entre todas as artes, não tem mais futuro, empreguem os milhões a conservar e a
eternizar os monumentos nacionais e históricos». Balzac é pessimista: ele prevê a des-
truição completa do património antigo que, a seu termo, não subsistirá senão na «icono-
grafia literária». Distintamente dos antiquários, ele concebe o monumento antigo como
um precioso objecto, cuja conservação estipula o preço, mas que, contrariamente aos
seus contemporâneos ingleses, ele julga condenado pela evolução da história.

Os defensores ingleses dos monumentos históricos ignoram este fatalismo. Eles não se
resignam com o desaparecimento dos edifícios antigos. Para eles, os monumentos do
passado são necessários à vida do presente, não sendo nem ornamento aleatório, nem ar-
caísmo, nem tão-somente portadores de saber e de prazer, mas parte do quotidiano.

O valor da devoção

Ruskin referiu também a memória como um novo destino e um novo valor do monu-
mento histórico. «Nós podemos viver sem a arquitectura, mas sem ela não podemos re-
cordar.». Para o autor de Stones of Venice, a arquitectura é o único meio de que dispo-
mos para conservar vivo um laço com um passado ao qual devemos a nossa identidade.
Mas este passado é, antes de mais, definido pelas gerações humanas que nos precede-
ram. Se Ruskin chega a interrogar os monumentos por meio da memória objectiva da
história, ele prefere, contudo, uma aproximação afectiva. É por intermédio dos senti-
mentos morais, a devoção e o respeito, que ele entra no mesmo nível do passado. Que
recordam os edifícios antigos? O valor sagrado dos trabalhos que os homens de bem,
desaparecidos e anónimos, realizaram para honrar o seu Deus, compor os seus lares,
manifestar as suas diferenças. Fazendo-nos ver e tocar o que viram e tocaram as gera-
ções desaparecidas, o mais humilde lar possui, a par do edifício mais glorioso, o poder

Património - A Consagração do Monumento Histórico 43/90


de nos colocar em comunicação com elas. Ruskin utiliza uma metáfora: os edifícios do
passado fazem-nos escutar vozes que nos envolvem num diálogo.

Ele pergunta-se como poderia a arquitectura reencontrar o valor de devoção, que lhe era
consubstancial, na crise iniciada pela revolução industrial. Ou seja, como é que «a ar-
quitectura do presente poderia ser tornada histórica». Este qualificativo só é merecido,
segundo Ruskin, se a arquitectura se reapropriar da sua essência e do seu papel memori-
al por via da qualidade do trabalho e do investimento moral de que teria sido objecto.

Vê-se que Ruskin, aproximando os edifícios do presente e do passado, não está longe de
tornar a dar ao monumento histórico o valor e a função do monumento original. Com
efeito, abstracção feita do valor histórico que lhe é inerente, o primeiro distingue-se do
segundo apenas pelo carácter impreciso e mesmo genérico, do que ele recorda à memó-
ria, através do sentimento difuso de devoção: a figura intacta da obra, solidária e manu-
almente realizada pelas gerações humanas.

A ideias de Ruskin enriqueceram o conteúdo do conceito de monumento histórico ao fa-


zer parte deste a arquitectura doméstica. Ruskin sonha também com a continuidade do
tecido formado pelas habitações mais humildes. Ele é o primeiro, rapidamente seguido
por Morris, a incluir os «conjuntos urbanos» na mesma categoria dos edifícios individu-
ais, que é a do campo da herança histórica a preservar.

Ao recordar à memória afectiva a dimensão sagrada das obras humanas, o monumento


histórico adquire, para além disso, uma universalidade sem precedentes. O monumento
tradicional, sem qualificativo, estava universalmente distribuído, mas fazia reviver pas-
sados particulares de comunidades particulares. Em contrapartida, na concepção de Rus-
kin, quaisquer que sejam as civilizações ou grupos sociais que o ergueram, o monumen-
to histórico dirige-se igualmente a todos os homens.

Ruskin e Morris concebem a protecção dos monumentos históricos à escala internacio-


nal. Batem-se pelos monumentos e pelas cidades antigas de França, da Suíça, de Itália.
Ruskin propõe, a partir de 1854, a criação de uma organização europeia de protecção,
dotada de estruturas financeiras e técnicas adequadas e lança a noção de «bem
europeu». Quanto a Morris, depois de se ter insurgido contra a destruição de um bairro
popular em Nápoles, conduz o combate para além das fronteiras europeias, até à Tur-
quia e ao Egipto, onde procura proteger as arquitecturas árabe e copta.

Em todos estes domínios, os Britânicos foram pioneiros. A sua substituição foi assegu-

Património - A Consagração do Monumento Histórico 44/90


rada de seguida pelos Italianos, em particular Giovanni, que elaborou, em 1913, o con-
ceito de arquitectura menor que engloba o conceito de arquitectura doméstica. A arqui-
tectura menor torna-se parte integrante de um novo monumento, o conjunto urbano anti-
go: «Uma cidade histórica constitui em si um monumento, quer pela sua estrutura topo-
gráfica, quer pelo seu aspecto paisagístico, quer pelo carácter das suas vias e pelo con-
junto dos seus edifícios maiores e menores».

Práticas: legislação e restauro

A era industrial altera o modo de vida e a organização das sociedades, a ponto de tornar
obsoletos os tecidos urbanos existentes. Os monumentos que aí se inserem são obstácu-
los a um novo modo de urbanização. Para além disso, a manutenção dos edifícios anti-
gos é cada vez mais negligenciada e o seu restauro não obedece a conhecimentos regu-
lamentados. É-se assim confrontado com dois tipos de vandalismo, que foram designa-
dos em França e em Inglaterra pelos mesmos adjectivos: destruidor e restaurador.

Montalembert atribui o primeiro prémio de «vandalismo destruidor» ao «governo», o


segundo aos « municípios», o terceiro aos «proprietários», o quarto aos «falsos conse-
lhos e aos padres». «Em quinto lugar, e a uma grande distância dos seus precedentes,
vem a sublevação popular.» No que diz respeito ao «vandalismo restaurador», a palma
vai para o clero, seguido do governo, os municípios e os proprietários. A sublevação
tem a «vantagem de nada restaurar».

No contexto do século XIX a acção dos defensores do património não podia ser eficaz
se não assumisse duas formas específicas e complementares: uma legislação de protec-
ção e uma disciplina de conservação.

Origem da legislação francesa sobre monumentos históricos

Evocarei aqui apenas os trabalhos que precederam a legislação francesa, durante muito
tempo uma referência, primeiro para a Europa e depois para o resto do mundo, devido à
clareza e à racionalidade dos seus procedimentos.

A via tinha sido aberta pelo Comité de Instrução Pública durante a Revolução. Entre
1830, quando Guizot criou o cargo de Inspector dos Monumentos Históricos, e 1887,
data da promulgação da primeira lei sobre os Monumentos Históricos. Decorre uma lon-
ga fase de experimentação e de reflexão. O posto de inspector coube a Vitet, que se de-
mite em 1834 em favor de Mérimée. Este tem por missão «classificar» os edifícios que

Património - A Consagração do Monumento Histórico 45/90


têm direito ao estatuto de monumento histórico. É assistido nesta tarefa pela Comissão
dos Monumentos Históricos (1837) e pelo Comité de Trabalhos Históricos.

Vantagens do sistema: o processo está centralizado sob a dependência do ministro do


Interior, torna-se num instrumento de localização e de controlo. As regras da sua selec-
ção não são ditadas pelos critérios de erudição, mas pelos imperativos pragmáticos e
económicos de uma política de conservação e de protecção. Elas permitem unidade de
acção impossível às associações inglesas, separadas pelas suas ideologias.

Inconveniente do sistema: a tarefa do inspector é esmagadora. Depois, a centralização


realiza-se em detrimento das sociedades locais de antiquários e das sociedades de arque-
ologia recém-nascidas. Em vez de se estimular um trabalho de colaboração, a estrutura
instituída por Guizot marginaliza estas instituições. Temem os intervenientes locais e
acantonam-nos em tarefas subalternas. É o oposto da situação inglesa, em que as socie-
dades de protecção continuam a prosperar e a envolver-se nas tarefas de conservação.
Outra desvantagem francesa relativamente às sociedades de protecção britânicas, priva-
das e locais, é a penúria dos financiamentos estatais, que nenhum mecenato sustenta. O
inspector e a Comissão são obrigados a sacrificar numerosos monumentos. Os que são
salvos são em geral subtraídos à utilização viva e destinados a objectos de museu.

Uma primeira lei foi promulgada em 1887 e a forma definitiva em 1913, constituindo
actualmente esse documento o texto de referência sobre os monumentos históricos. O
Serviço dos Monumentos Históricos é uma instituição centralizada, dotado de uma in-
fraestrutura administrativa e técnica e de uma grelha de procedimentos jurídicos adapta-
dos ao conjunto de casos previsíveis e serviu de modelo a outros países, em que o papel
do Estado é menos centralizador (Alemanha, Itália). Em Inglaterra, a intervenção do Es-
tado na gestão e conservação dos monumentos históricos apareceu tarde, com o Ancient
Monuments Protection Act de 1882, e permaneceu reduzida. A lei francesa de 1913 ia,
contudo, revelar inconvenientes: o peso da burocracia e o esbatimento progressivo do
papel activo, estimulante e anti-conformista dos actores benévolos.

O restauro enquanto disciplina

Querer e saber «classificar» monumentos é uma coisa. Saber depois conservá-los fisica-
mente e restaurá-los é um outro assunto, que assenta sobre outros conhecimentos. Ele
exige uma prática específica e praticantes especializados: os «arquitectos dos monumen-
tos históricos», que o século XIX inventou.

Património - A Consagração do Monumento Histórico 46/90


Em França foi obra de Mérimée. Ao contrário dos antiquários e dos historiadores de
arte, o seu cargo confronta-o com questões práticas e técnicas que dizem respeito à
construção e à arquitectura. Ele serve de ligação entre os historiadores e os arquitectos
executantes, e enfrenta, neste papel, três obstáculos maiores.

O primeiro é comum ao países europeus, com excepção de Inglaterra: a ignorância dos


arquitectos em matéria de construções medievais. Estes conhecem a arquitectura Clássi-
ca e mesmo a greco-romana, mas tudo está por aprender no domínio do gótico e, princi-
palmente, do românico, que é desprezado e julgado sem valor, não apenas pelos prati-
cantes, mas também por historiadores de arte. Mérimée relata os custos deste desconhe-
cimento aquando das suas viagens no Poitou: o arquitecto do departamento fechou com
cimento uma fissura longitudinal da abóbada da igreja de Saint-Savin, sem se preocupar
com os frescos com que ela estava ornada. Mesma inconveniência no baptistério de
Saint-Jean de Poitiers, onde os antiquários encorajaram a destruição de maciços români-
cos em benefício de uma reconstituição aleatória do edifício paleo-cristão original.

O segundo obstáculo é o antagonismo entre Paris e a província. A vontade centralizado-


ra dos inspectores e da Comissão de Monumentos Históricos faz com que eles escolham
arquitectos formados na Escola de Belas-Artes de Paris, que são votados à hostilidade.

Obstáculo mais grave, por fim, é o facto do trabalho de consolidação e de restauro não
surgir como gratificante aos olhos dos praticantes. Não é prestigioso, não solicita o «gé-
nio criativo» do artista. Os inspectores tinham de detectar os poucos homens susceptí-
veis de investirem na conservação do passado. Havia também que iniciá-los na história
da arte e na história da construção. Mérimée e Vitet foram eles próprios obrigados a esta
pedagogia, por falta de um curso de História da Arquitectura Medieval.

No decorrer do século XX, os estudos para a conservação e o restauro dos monumentos


históricos exigiram a aquisição suplementar de novos saberes, científicos e técnicos, li-
gados, em particular, à constituição dos materiais. Mas, a história da arquitectura per-
maneceu também absolutamente fundamental. Ela representou um trunfo importante em
Itália e nos países de língua alemã, onde foi integrada no ensino das escolas de arquitec-
tura. Em França, esse ensino faltou sempre à Escola de Belas-Artes.

A intervenção de técnicos especializados nos monumentos arquitectónicos não exige


apenas conhecimentos históricos, técnicos e metodológicos. Ela implica também uma
doutrina que possa articular estes saberes e estes conhecimentos práticos, e que deu cor-
po a uma nova disciplina que se constituiu a partir dos anos vinte do século XIX.
Património - A Consagração do Monumento Histórico 47/90
As aporias do restauro: Ruskin ou Viollet-le-Duc

O debate sobre o restauro assume dimensão europeia no século XIX e opõe duas doutri-
nas: uma, intervencionista, predominante no conjunto dos países europeus; outra, anti-
intervencionista, com destaque em Inglaterra. O seu antagonismo pode ser simbolizado
pelos dois homens que as defenderam com mais convicção e talento: Viollet-le-Duc e
Ruskin, respectivamente.

Em Inglaterra, do lado dos intervencionistas está G. Scott, com um conhecimento supe-


rior da arquitectura medieval, que defende, em nome da fidelidade histórica, posições
«correctivas». O apoio dos Eclesiologistas permitiu-lhe intervir sobre as grandes cate-
drais inglesas e as suas ideias foram dominantes até aos anos noventa do século XIX.

No campo oposta está Ruskin, secundado por Morris, que defende um anti-intervencio-
nismo radical, consequência da sua concepção de monumento histórico. Argumenta que
o trabalho das gerações passadas confere aos edifícios que nos legaram um carácter sa-
grado, e as marcas que o tempo lhes imprimiu fazem parte da sua essência.. Nós não te-
mos o direito de tocar nos monumentos do passado, pois eles não nos pertencem. Eles
pertencem, em parte aos que os edificaram, em parte às gerações que nos seguirão.
Qualquer intervenção sobre estas «relíquias» é um sacrilégio. A violência das impreca-
ções de Ruskin contra o restauro encontra ecos em parte da imprensa inglesa. No verda-
deiro sentido do termo, restauro significa «a destruição mais total que uma construção
pode sofrer; é uma mentira absoluta».

Morris, talvez ainda melhor do que Ruskin, denuncia a inanidade da reconstituição ou


da cópia. Elas suporiam que fosse possível, quer reemergir no espírito do tempo em que
o edifício foi construído, quer identificarmo-nos completamente com o artista. Querer
restaurar um objecto ou um edifício é ferir a autenticidade que constitui o seu próprio
sentido. Parece que para eles o destino de qualquer monumento histórico é a ruína e a
desagregação progressiva.

Contudo, percebe-se que ambos preconizam a manutenção dos monumentos com a con-
dição de ser de forma invisível. A intransigência com a qual eles condenam o restauro
explica-se pela sua fé incondicional na perenidade da arquitectura enquanto arte. Daí re-
sulta, para Ruskin, a afirmação dogmática de uma «arquitectura histórica» necessária e,
para Morris, de um revivalismo necessário. Para este último, os monumentos antigos fa-
zem «parte do mobiliário da nossa vida quotidiana».

Património - A Consagração do Monumento Histórico 48/90


Do lado francês, a doutrina e a prática do restauro são dominadas por Viollet-le-Duc. A
sua contribuição é reduzida a uma célebre definição: «Restaurar um edifício é colocá-lo
num estado completo que pode nunca ter existido num dado momento». Os monumen-
tos históricos justificam um intervencionismo militante, de que se tem denunciado a ar-
bitrariedade: fachada gótica inventada na catedral de Clermont-Ferrand, coruchéus
acrescentados a Notre Dame de Paris, esculturas destruídas ou mutiladas substituídas
por cópias, reconstituições fantasistas do castelo de Pierrefonds.

Este retrato deve, no entanto, ser matizado: ele não seria assim se não fosse o contexto
intelectual da época e o estado de degradação no qual se encontravam então a maior
parte dos monumentos. Deve interrogar-se o sentido real dos restauros «agressivos» ou
«historicizantes» de Viollet-le-Duc e realçar as preocupações que inspiram as suas inter-
venções correctivas. Contrariamente às hipóteses seguidistas de Ruskin e de Morris, o
passado morreu sem apelo; a sua atitude de restaurador explica-se pela via da constata-
ção deste falecimento. Ao reconstituir, ele restitui ao objecto restaurado um valor histó-
rico, mas não a sua historicidade. Da mesma forma, a brutalidade das suas intervenções
prende-se muitas vezes com o facto, exigido pelas suas preocupações didácticas, de ele
tender a esquecer a distância constitutiva do monumento histórico. Um edifício não se
torna «histórico» senão na condição de ser entendido como pertencendo simultanea-
mente a dois mundos, um presente e imediatamente dado, o outro passado e inapropriá-
vel. Atente-se na sua advertência: «seria pueril reproduzir num restauro uma disposição
eminentemente viciosa». Um tal juízo de valor coloca em questão a noção de monu-
mento histórico, que se torna numa abstracção, e a noção de restauro, que não leva mais
em conta a autenticidade do objecto restaurado.

França e Inglaterra

Comparada com as posições radicais de Viollet-le-Duc, a atitude muito mais moderada


de Vitet e de Mérimée, e da maior parte dos seus contemporâneos franceses, parece pró-
xima da dos Ingleses, reunidos em torno de Ruskin e de Morris.

Reduzir ao mínimo possível a intervenção do arquitecto reparador, sempre que o estado


do monumento o permite, tem para Mérimée e Vitet valor de princípio. E, por outro
lado, também aí que se encontra o único meio de conservar uma qualidade essencial dos
monumentos históricos: a sua pátina. Victor Hugo defende a mesma atitude para com os
monumentos que, «envelhecidos ou mutilados, receberam do tempo ou dos homens uma

Património - A Consagração do Monumento Histórico 49/90


certa beleza, e nos quais não se deve tocar, porque supressões de que o tempo e os ho-
mens são os autores interessam à história e, por vezes, à arte. Consolidá-los, impedi-los
de cair, é tudo o que se deve permitir».

Para os Franceses, os monumentos nos quais «não se deve tocar» são pouco numerosos.
Com efeito, em França, um monumento histórico não é concebido nem como uma ruí-
na, nem como uma relíquia que se dirige à memória afectiva. Ele é, antes de mais, um
objecto historicamente determinado e susceptível de uma análise racional e, em seguida,
apenas um objecto de arte. O restauro é a outra face, obrigatória, da conservação; neces-
sário, ele deve e pode ser fiel. E uma questão de método e de competência técnica.

Para Vitet: «temos que nos tornar contemporâneos do monumento que se restaura, dos
artistas que o construíram, dos homens que o habitaram. Há que conhecer a fundo todos
os procedimentos da arte, a fim de restabelecer, qualquer parte de um edifício a partir
de simples fragmentos, não por capricho ou por hipótese, mas por uma severa e consci-
enciosa indução». Ainda que tardiamente reconhecida, a autenticidade estética não
coincide com a autenticidade histórica e tipológica. Ao postular a possibilidade de um
restauro fiel e de uma cópia cuja perfeição o torne indetectável, os Franceses transfor-
mam em verdade a mentira denunciada por Ruskin e Morris e revelam o privilégio que
eles concedem aos valores da memória histórica relativamente aos da memória afectiva
e aos da utilização piedosa. Assim, se criticam com pertinência algumas reutilizações
dos edifícios antigos, os Franceses tendem a favorecer a museologização dos monumen-
tos históricos muito mais facilmente do que os Ingleses. Vitet resume a lógica desta ati-
tude quando lamenta que as catedrais continuem a servir para o culto, já que tal é um
género de vandalismo lento, insensível, que arruína e deteriora.

Esta análise das atitudes e dos comportamentos que opõem a França e a Inglaterra em
matéria de restauro não tem senão um valor geral. Existiram em Inglaterra rivais de Vi-
ollet-le-Duc, como G. Scott e os seus partidários eclesiólogos. Da mesma forma, em
França, Montalembert defende uma ideologia revivalista semelhante a Ruskin. Viollet-
le-Duc, que Ruskin e Morris não perderam nunca ocasião de vilipendiar, foi defendido
por alguns arquitectos ingleses, enquanto que Morris era acusado de fetichismo e escar-
necido sem delicadeza. Também os restauros de Viollet-le-Duc foram criticados sem
pruridos por Didron muito antes de Anatole France se ter dedicado à questão.

A França seguia, na maioria dos casos, os preceitos de Viollet-le-Duc. Tal como o pró-
prio Ruskin tinha compreendido, o destino desse antagonismo doutrinal era previsível.
Património - A Consagração do Monumento Histórico 50/90
O que podia a tese sentimental do deixar envelhecer (e perecer) contra o projecto racio-
nal e espectacular dos arquitectos e historiadores intervencionistas? A Europa inteira es-
tava prestes a aderir às ideias de Viollet-le-Duc, que faziam eco às aspirações historicis-
tas dos restauradores formados nos países de língua alemã e da Europa Central.

Sínteses

Todo o saber em fase de constituição convida à crítica dos seus conceitos, dos seus mé-
todos e dos seus projectos. Após o trabalho fundador da primeira geração, seguiu-se, no
final do século, uma reflexão posterior, crítica e complexa.

Para além de Ruskin e de Viollet-le-Duc: Camillo Boito

A partir do o último quartel do século XIX a hegemonia da doutrina de Viollet-le-Duc


começa a ser abalada por um método mais questionante, mais moderado e também mais
bem informado, graças aos progressos da arqueologia e da história da arte. Esta orienta-
ção passou à prática lentamente, de forma quase sub-reptícia. Ela foi definida, activada
e defendida por um homem cuja obra é hoje quase ignorada, excepto no seu país de ori-
gem, a Itália: Camillo Boito, engenheiro, arquitecto e historiador de arte, competências
que lhe permitem situar-se na articulação de dois mundos tornados estranhos: o mundo
da arte, passado e actual, e o da modernidade técnica.

Em Itália, os princípios de Viollet-le-Duc tinham, como noutros locais, inspirado a mai-


or parte dos grandes restauros, nomeadamente em Florença, Veneza e Nápoles, onde
Ruskin e Morris os tinham atacado directamente. Confrontado com as duas doutrinas
antagónicas, Boito recolhe o melhor de cada uma para formular um conjunto de directi-
vas para a conservação e o restauro dos monumentos históricos. Essas últimas foram in-
tegradas na lei italiana de 1909 e Giovanni adere sem reserva quando, em 1931, traça o
balanço do «restauro italiano dos monumentos em Itália».

O método de Boito surgiu num ensaio sob a forma de diálogo, «Conservare o restaura-
re», que apareceu em 1893. O autor concede a palavra a dois técnicos: um defende as
ideias de Viollet-le-Duc e o outro, alter ego de Boito, critica-as, servindo-se de argu-
mentos de Ruskin e de Morris. Boito constrói a sua doutrina sobre esta oposição.

Ele segue a concepção de conservação dos monumentos de Ruskin e Morris, fundada


sobre a noção de autenticidade. Não se deve apenas preservar a pátina dos edifícios anti-
gos, mas também os acrescentos sucessivos de que o tempo os carregou, verdadeiros es-

Património - A Consagração do Monumento Histórico 51/90


tratos, comparáveis aos da crosta terrestre, que Viollet-le-Duc condenava sem escrúpu-
los. O respeito pela autenticidade deve igualmente recusar a concepção
«paleontológica», por meio da qual Viollet reconstitui as partes desaparecidas dos edifí-
cios. Também a sua tipologia estilística deve ser recusada, uma vez que, apesar de algu-
mas declarações em contrário, acabará por desprezar o carácter singular de cada monu-
mento.

Mas, a par de Viollet-le-Duc, e contra Ruskin e Morris, Boito sustenta a prioridade do


presente sobre o passado e afirma a legitimidade do restauro. É verdade que este não
passa de uma solução de recurso, pelo que não deve ser praticado senão in extremis,
quando todos os outros meios de salvaguarda (manutenção, consolidação, reparações
não expostas à vista) falharam. Então, o restauro revela-se como o complemento neces-
sário e indispensável de uma conservação, cujo projecto não pode subsistir sem ele.

A maior dificuldade consiste em saber avaliar a necessidade ou a oportunidade da inter-


venção, localizá-la, determinar a sua natureza e a sua importância. Uma vez admitido o
restauro, este deve adquirir a sua legitimidade. O carácter relativo, acidental e correctivo
do trabalho refeito deve ser ostensivamente assinalado. A zona restaurada deve poder
ser distinguida dos elementos originais do edifício à vista desarmada, recorrendo a arti-
fícios múltiplos: outros materiais, diferente cor dos do monumento original, aposição
sobre as partes restauradas de inscrições e de sinais simbólicos precisando as condições
e as datas das intervenções, divulgação de fotografias das diferentes fases das operações
e conservação na proximidade do monumento das partes que o restauro substituiu.

Boito deplora a semelhança de tratamento aplicado à diversidade dos monumentos, pelo


que propõe três tipos de intervenção, de acordo com o estilo e a idade dos edifícios.
Para os monumentos da Antiguidade sugere um restauro arqueológico, que se preocupe
com a exactidão científica e, em caso de reconstituição, considere apenas a massa e o
volume, deixando em branco o tratamento das superfícies e a sua ornamentação. Para os
monumentos góticos propõe um restauro pitoresco, que concentre o seu esforço no es-
queleto (ossatura) do edifício e abandone as carnes (estatuária e decoração) à sua ruína.
Finalmente, para os monumentos clássicos e barrocos propõe um restauro arquitectóni-
co, que leve em conta os edifícios na sua totalidade.

Os conceitos de autenticidade, de hierarquia de intervenções e de estilo restaurador per-


mitiram a Boito estabelecer os fundamentos críticos do restauro enquanto disciplina. Ele
enunciou um conjunto de regras que foram clarificadas em sequência das destruições
Património - A Consagração do Monumento Histórico 52/90
causadas pelos conflitos armados e à medida da evolução das técnicas construtivas, mas
que, no essencial, permanecem válidas.

Alois Riegl: uma contribuição maior

O trabalho reflexivo mais ambicioso relativo à noção de monumento histórico foi reali-
zado nos começos do século XX por Alois Riegl. A sua obra fundamental é O Culto
Moderno dos Monumentos (Der Moderne Denkmalkultus) onde formula, sem ambigui-
dade, a distinção entre monumento e monumento histórico, cuja aparição ele situa em
Itália no século XVI.

Define o monumento histórico através dos valores de que este foi investido ao longo da
história. A sua análise é estruturada pela oposição de duas categorias de valores: uns, de
rememoração, ligados ao passado e que fazem intervir a memória; outros, de contempo-
raneidade, pertencentes ao presente.

Ao examinar os vários tipos de valores atribuídos aos monumentos, o autor primeira-


mente diferencia os monumentos intencionais dos não-intencionais. Para Riegl, monu-
mento intencional é uma obra criada pela mão do homem com o intuito preciso de con-
servar para sempre presente e viva na consciência das gerações futuras a lembrança
de uma acção ou destino. A criação dos monumentos intencionais remonta às épocas
mais recuadas e, embora ainda hoje se produzam, não é a este tipo de monumento que a
sociedade moderna se refere quando utiliza o termo, mas aos monumentos artísticos e
históricos, ou seja, aos não-intencionais, aos que “não é o seu destino original que lhe
confere o significado de monumentos; somos nós, sujeitos modernos, que a atribuímos”.
O monumento histórico é para o Alois Riegl uma criação da sociedade moderna.

Os valores de rememoração dividem-se em valor de antiguidade, valor histórico e valor


comemorativo.

O valor histórico está relacionado com a noção de história de Riegl, que chama históri-
co a tudo aquilo que foi e não é mais hoje em dia. Para ele “a noção de evolução” é o
centro de toda concepção de história. Essa noção é fundamental no seu pensamento, ca-
racterizando a abordagem em relação às artes de diferentes períodos e, consequentemen-
te, estendida aos monumentos. Para o historiador, a ideia de evolução confere direito de
existência histórica a toda e qualquer corrente artística, inclusive às não-clássicas.

O valor histórico resulta do reconhecimento de que um determinado monumento repre-


senta um estado particular no desenvolvimento de um domínio da criação humana e, por
Património - A Consagração do Monumento Histórico 53/90
essa razão, deve ser mantido o mais fiel possível ao estado original, com implicação di-
recta no método de conservação adoptado.

O valor antiguidade reside no seu aspecto vetusto, nos traços de decomposição impos-
tos pelas forças da natureza, alterando sua forma e cor, fazendo aflorar no espectador a
sensação do ciclo de criação-destruição, que se apresenta como lei inexorável da exis-
tência. Por isso, o valor de antiguidade determina como pressuposto a não-intervenção
conservativa. O valor de antiguidade assemelha-se à sensibilidade dos românticos, sus-
cita face aos monumentos históricos uma «atenção piedosa», e está próximo do valor de
piedade de Ruskin. Todavia, o seu significado é diferente: Ruskin milita por uma ética e
procura impor a sua concepção moral de monumento a uma sociedade. Riegl parte, ao
contrário, de uma constatação. O valor de antiguidade do monumento histórico não é
para ele um voto, mas uma realidade. Este valor de antiguidade revela-se ao primeiro
contacto com uma obra, na qual fica claro seu aspecto não-moderno, isto é, surge da di-
ferença que pode ser percebida inclusive pelas massas. É esse apelo às massas, presente
no valor de antiguidade, que fez com que o historiador acreditasse na sua ascendência
no século XX, onde passava a predominar uma cultura de massas.

O último dos valores de rememoração, o valor comemorativo, é o que mais se aproxima


dos valores de contemporaneidade, na medida em que se remete à busca de um eterno
presente e exige do monumento a perenidade do estado original Eque dure para sempre.

A segunda categoria, de contemporaneidade, compreende o valor de utilização, relativo


às condições de utilização prática dos monumentos o transcendente valor de arte.

O valor de utilização é, segundo Riegl, igualmente inerente a todos os monumentos his-


tóricos, quer tenham conservado o seu papel memorial original e as suas antigas fun-
ções, quer tenham recebido novos destinos, estando aí incluídas as funções museológi-
cas. A ausência de valor de utilização é o critério que distingue o monumento histórico
e, simultaneamente, as ruínas arqueológicas, cujo valor é essencialmente histórico, e a
ruína, cuja antiguidade é a qualidade principal.

Quanto ao valor de arte, que atende às necessidades do espírito, Riegl decompõe-no em


duas categorias. Uma, valor de arte relativo, refere-se à capacidade que o monumento
mantém de sensibilizar o homem moderno, embora tenha sido criado por uma vontade
artística diferente da nossa. A outra categoria, dita valor da novidade, diz respeito à apa-
rência fresca e intacta das obras. Ela resulta de uma atitude que atribui ao novo uma su-

Património - A Consagração do Monumento Histórico 54/90


perioridade sobre o velho. Aos olhos da multidão, só o que está novo e intacto é belo.

A análise de Riegl revela as exigências simultâneas e contraditórias dos valores de que o


monumento histórico foi investido ao longo dos séculos. Numa perspectiva lógica, o va-
lor de antiguidade exclui o valor de novidade e ameaça também o valor de utilização e
o valor histórico. O valor de utilização contraria frequentemente o valor de arte relativo
e o valor histórico. Estes conflitos, já esboçados por Boito no domínio do restauro, ma-
nifestam-se na reutilização e, mais geralmente, na classificação dos monumentos histó-
ricos. Riegl mostra que eles não são insolúveis e que dependem de compromissos, nego-
ciáveis em cada caso particular, em função do estado do monumento e do contexto soci-
al e cultural no qual se insere. A análise axiológica do historiador vienense funda uma
concepção não dogmática e relativista do monumento histórico, em harmonia com o re-
lativismo que ele introduziu nos estudos de história da arte.

Valores Acções
Comemorativo Conservar; Restaurar
Histórico Conservar; Não restaurar
Antiguidade Não conservar; Não restaurar
Utilização Conservar; Restaurar
Arte Relativo Conservar; Restaurar
Arte Novidade Conservar; Restaurar

Der Moderne Denkmalkultus não representa um utensílio crítico apenas para o restaura-
dor. Ao avaliar o peso semântico do monumento histórico, ele torna-o num problema
social, numa chave para a interrogação do futuro das sociedades modernas. Como se
verá mais tarde, é a partir de pistas sintomáticas abertas pela obra que se procura hoje
pensar o património histórico.

A obra de Boito e, mais largamente, a da Riegl, mostram que na charneira do século


XIX e do século XX a conservação dos monumentos históricos tinha conquistado o es-
tatuto disciplinar que, desde finais dos anos 1860, apresentava, pelo menos em teoria,
quase os mesmo contornos da actualidade. A área tipológica incluía já a arquitectura
menor e o tecido urbano. A área cronológica continuava delimitada, por baixo, pela
fronteira da industrialização. Mas, em cima, os seus limites eram constantemente derru-
bados pelo trabalho dos arqueólogos e dos paleógrafos. A área de difusão tinha-se tor-
nado mundial. Por um lado, a arqueologia e a etnografia ocidentais anexavam os monu-
mentos de civilizações distantes que não pertenciam à Antiguidade mediterrânica.
Património - A Consagração do Monumento Histórico 55/90
Não se deve exagerar o alcance de ideias e de experiências antecipadoras, mas pontuais,
surgidas durante o período de consagração do monumento histórico: elas não afectaram
profundamente as práticas de conservação, que permaneceram mais ou menos idênticas
durante quase um século, entre 1860 e 1960. Com efeito, quase até aos anos sessenta do
século XX a conservação dos monumentos históricos continua a resumir-se, essencial-
mente, aos grandes edifícios religiosos e civis (com exclusão dos do século XIX). O res-
tauro permanece quase sempre fiel aos princípios de Viollet-le-Duc. O valor de antigui-
dade não subjuga as multidões tal como Riegl tinha presumido. É verdade que a grande
viagem como forma de iniciação se tinha democratizado em Inglaterra. Na Europa, ape-
sar das campanhas conduzidas desde o começo do século e apesar da criação, pelo Esta-
do italiano, nos anos 1930, de uma rede de exploração das obras de arte antiga, o «turis-
mo cultural» não recebeu ainda o seu nome. A mundialização do monumento histórico,
tão desejada por Ruskin e Morris, não avança quase nada.

A primeira conferência internacional relativa aos monumentos históricos realizou-se em


Atenas apenas em 1931. Esse acontecimento foi ocasião para levantar a questão das re-
lações entre os monumentos antigos e a cidade, e de desenvolver a esse propósito ideias
e propostas. Elas foram formuladas à margem do congresso, que era, em princípio, con-
sagrado aos problemas técnicos da conservação e do restauro.

Enfim, a crítica e o relativismo de Riegl estão longe de reger as práticas do património


histórico e, nomeadamente, a sua pedagogia, de que poderiam ter constituído a base.

Património - A Consagração do Monumento Histórico 56/90


HISTÓRIA DA ARTE

INTRODUÇÃO

O que é uma obra de arte e como estudá-la? Este é o domínio da História da Arte. Obra
de arte ou de artesanato, a sua criação implica a intervenção humana sobre os materiais.

A história da arte é uma disciplina autónoma devido aos seus métodos, à sua história e
às obras que são objecto de estudo. A história da arte é, ao mesmo tempo, um ramo da
história global, da história da cultura, da civilização. A disciplina aperfeiçoou-se a partir
do Renascimento, com as diferentes escolas de pensamento ao tentar delimitar as suas
fronteiras em relação à arqueologia, à história dos acontecimentos, à filosofia, à sociolo-
gia e à etnologia. Geograficamente, não existe limite para a história da arte; cronologi-
camente, a história da arte cobre todas as facetas da acção humana, desde a pré-história
até aos nossos dias. Outrora tentou-se limitar o campo artístico às sociedades cultas,
mas hoje tende-se a integrar na história da arte as produções que, sob a designação de
populares ou artesanais, pertencem, por vezes, ao domínio da etnologia.

Os temas da história da arte pertencem a dois grupos: os tradicionais (arquitectura, es-


cultura, pintura, artes da cor, artes dos objectos) e os que só raramente são tomados em
consideração no núcleo restrito da história da arte (teatro, dança, música, poesia, cine-
ma). Entre as produções artísticas, fala-se frequentemente de artes maiores (arquitectu-
ra, escultura, pintura) e artes menores (objectos).

O trabalho do historiador da arte é de especialista e de historiador: reconhecer as obras,


a sua autenticidade, emitir um juízo crítico, situá-las no quadro da evolução histórica de
cada período, abordá-las arqueologicamente para reconstituir as etapas técnicas da sua
execução, pesquisar os documentos escritos que lhes dizem respeito, apresentar estas
obras de maneira a torná-las compreensíveis a um público muito amplo.

A história da arte adquiriu, no decurso das últimas décadas, um lugar próprio e destaca-
do entre as ciências históricas e sociais. Mas temos a sensação de viver uma crise da
disciplina, uma crise da sua autonomia face ao perigo de absorção por parte de outras
disciplinas: crise de crescimento, crise metodológica face aos desafios tecnológicos, cri-
se devida à crítica dos métodos formulada pelos especialistas dos campos vizinhos.

História da Arte - Introdução 57/90


1 - O ESTUDO DA ARTE COMO DISCIPLINA HISTÓRICA

I. - As etapas principais

O estudo da arte como disciplina histórica começa na época moderna. O humanismo vai
tomar em consideração as noções de arcaísmo, de classicismo e de declínio e associá-las
às investigações biográficas, às fontes descritivas e aos dados cronológicos para criar a
história da arte. Giorgio Vasari, pintor e arquitecto, publica em 1562 as Vidas dos Mais
Excelentes Pintores, Escultores e Arquitectos, onde ordena, numa perspectiva histórica,
os artistas que o precederam e os que são seus contemporâneos. A modernidade de Va-
sari deve-se à sua visão evolutiva da história aplicada à arte.

Ao longo do século XVII, acentua-se a tendência para a classificação por escolas, em


função de critérios estéticos. Na Itália, Bellori; em França, André Félibien e Roger de
Piles procuram definir critérios para distinguir os processos de pintar.

Durante o século XVIII, assistimos ao reforço da noção de evolução artística. Cresce o


interesse pelas Antiguidades nacionais. As narrativas de viagens ficam cada vez mais
atentos à arte. Podemos resumir o período com os Monumentos da Monarquia France-
sa, de Montfaucon. Por outro lado, as novas formas de crítica, subjectiva e mundana, te-
rão em Diderot um porta-voz eminente.

A renovação da história da arte como ciência viria da arqueologia, que era exclusiva do
antiquariato. Winckelmann viaja para estudar directamente as obras e defende a herança
antiga, nomeadamente a grega. Pela primeira vez, a observação das obras consegue ob-
ter classificações estilísticas e atribuições independentes da erudição livresca. Pela pri-
meira vez, também, a escultura adquire maior importância do que a pintura.

Com o romantismo, os novos nacionalismos e a redescoberta da Idade Média, nascem


as primeiras instituições de salvaguarda do património. É a época dos inspectores dos
Monumentos Históricos, dos arquitectos restauradores, do começo do ensino de arqueo-
logia da Idade Média. São criadas as primeiras sociedades científicas eruditas.

Na Alemanha a tradição filosófica e estética produz formas originais de pensamento so-


bre a arte. Hegel com os seus escritos sobre a estética. Rumohr, que é considerado o
fundador da moderna pesquisa de arquivos na história da arte, ataca tanto a abordagem
visual de Winckelmann, como as considerações filosóficas de Hegel. Rumohr toma em
consideração as fontes, faz comparações e evidencia as relações entre modelo e artista e

História da Arte – O Estudo da Arte como Disciplina Histórica 58/90


as técnicas deste último. O apogeu do positivismo manifesta-se com Taine: a obra de
arte tem uma relação estreita com o meio, com a raça, o clima e os costumes.

Burckhardt procura conciliar a história política e a história da arte. Para este historiador
o Estado, a religião e a cultura são os três elementos da civilização, dos quais apenas o
último é susceptível de provocar um renascimento.

Wõlfflin empreende o estudo formal das obras. Defende que a forma organiza a obra de
arte e dá-lhe um sentido. Depois de ter definido o classicismo da Renascença, opõe-lhe
os valores formais do Barroco. Enuncia os traços essenciais que permitem distinguir os
dois períodos: a passagem da linha à pintura, do plano à profundidade, da luz absoluta à
luz relativa. Para Wõlfflin, estas categorias não devem ser universalizadas; elas apli-
cam-se quase exclusivamente à diferença entre Renascimento e Barroco.

Nasce em Viena uma escola autónoma à volta de Riegl, que se propõe diminuir os ris-
cos de subjectividade. Interessa-se pela transformação de um único motivo, o acanto, e
pelo seu desenvolvimento e analisam a produção da Antiguidade Tardia, partindo do es-
tudo formal dos motivos. A noção de vontade artística é introduzida por oposição à de
imitação da natureza. A escola formalista de Viena tem uma repercussão considerável
graças à obra de Focillon, para quem a obra de arte deve ser apreendida e interpretada
no plano formal. Três momentos da vida das formas condicionam a evolução artística: o
estádio das experiências, o estado clássico e a desintegração barroca. Estes estados são
modulados pelas diferentes evoluções formais: renascimentos, sobrevivências, desperta-
res. O pensamento de Focillon abarca diversos domínios artísticos: a história da gravu-
ra, a história da pintura, a arte do Extremo Oriente e a história da arte medieval.

Desenvolve-se na Europa um universo de especialistas, com o crescimento das colec-


ções e a multiplicação dos museus. Os catálogos, compilações e enciclopédias multipli-
cam-se desde o fim do século XIX. São publicados trabalhos gigantescos que procuram
reunir a totalidade das obras conhecidas, para melhor se apreenderem comparações e os
diferentes elementos de estudo. Publica-se sobre os marfins, sobre a escultura romana,
sobre as pinturas e sarcófagos de Roma.

A iconografía interessa Didron em França, ou Warburg em Hamburgo. As suas princi-


pais contribuições dizem respeito às funções sociais e religiosas dos símbolos no fim do
século XV. Panofsky desenvolve estas abordagens iconográficas e iconológicas, consi-
derando as artes visuais como uma parte de um universo cultural. Panofsky publica um
ensaio sobre A Perspectiva Como Forma Simbólica, talvez o mais conhecido dos seus
História da Arte – O Estudo da Arte como Disciplina Histórica 59/90
ensaios teóricos e críticos. Três aspectos foram isolados, entre as constantes do pensa-
mento de Panofsky: a relação entre o ideal e o detalhe da investigação histórica, a rela-
ção entre os conceitos de uma teoria geral e a infra-estrutura particular das obras e a re-
lação entre imagens e conceitos. A obra de Panofsky tem uma extraordinária importân-
cia para a evolução dos estudos de história da arte, porque contribui poderosamente para
o deslocamento dos centros de interesse do catálogo e dos métodos descritivos para a
compreensão sistemática das obras, no quadro intelectual e social de uma época.

Wittkower adapta alguns destes princípios à arquitectura. Em primeiro lugar, a propósi-


to de Paládio e do paladianismo e depois sobretudo no seu livro Princípios Arquitectu-
rais da Época Humanista. Ao estudar quer as fontes contemporâneas, quer os monu-
mentos, Wittkower transcende a interpretação tradicional da arquitectura do Renasci-
mento, que era apresentada em termos puramente estéticos.

Em Itália, a corrente filosófica da primeira metade do século XX é marcada pela obra


estética de Croce (Estética), que centra a sua teoria na investigação das personalidades e
propõe a realização de monografias de artistas.

Integrado na linha de pensamento dirigida para a função social da obra de arte, situa-se
Hauser, com a sua História Social da Arte. O autor devolve um lugar ao artista e conce-
de ao trabalho do indivíduo uma função real, contrariamente à teoria defendida antes
dele, tendente a criar uma história da arte sem nomes.

Em França, Francastel introduz a história social da arte, tentativa de inserção da obra de


arte no quadro dos grupos sociais que a determinam. Para Francastel, a obra de arte não
é o resultado de uma evolução autónoma das formas, mas pertence à história geral das
ideias e deve ser recolocada no quadro da história cultural. A escola de Francastel esfor-
ça-se por relacionar a sociedade e o estilo das obras, a produção e o consumo e por estu-
dar os aspectos materiais e técnicos das práticas artísticas. O artista não é um ser isola-
do, mas pertence à sociedade do seu tempo. A obra de arte deixa de ser tarefa de especi-
alistas e torna-se a imagem de uma sociedade.

II. - Entre arqueologia e história da arte

1. A Antiguidade Clássica em França. - A história da arte da Antiguidade é uma disci-


plina que permanece mal concebida. O objecto de estudo é partilhado pela história da
arte e pela arqueologia, numa associação que não se encontra nos períodos mais recen-

História da Arte – O Estudo da Arte como Disciplina Histórica 60/90


tes. Os domínios cronológico e geográfico são variáveis, dependendo de considerarmos
que a arte antiga se deve confundir com a Antiguidade Clássica, ou, pelo contrário, de
termos uma concepção mais ampla, da pré-história até à Antiguidade paleocristã.

Insistimos no papel desempenhado pela História da Arte da Antiguidade de Winckel-


mann, que contribuiu para a definição da história da arte antiga como disciplina autóno-
ma: uma história do belo e da forma, ultrapassando a personalidade do artista.

A França tem no domínio da Antiguidade uma longa tradição de estudo, encorajada pe-
las escolas francesas de Atenas, Roma e Cairo, muito cedo empenhou-se em trabalhos
de inventário, desde o Dicionário das Antiguidades Gregas e Romanas ao Inventário
dos Mosaicos da Gália e da África. A presença da França no Norte de África permitiu
investigações sobre a arte púnica e a arte romana. O progresso mais espectacular deu-se
no domínio do mosaico, mas a ceramografia e o estudo da pintura mural registaram
também um desenvolvimento notável. Sobre o início e o fim do período romano, a in-
vestigação francesa contribuiu para a renovação da disciplina, com estudos sobre a Itália
pré-romana e abordagens inovadoras sobre a Antiguidade Tardia. Neste último domínio,
Marrou contribuiu para a definição de uma civilização original, que não é aquela que se
considerava como um reflexo do império decadente, mas que, pelo contrário, correspon-
de a uma nova era, dotada de estruturas artísticas originais e durante a qual se assiste à
cristianização da sociedade.

No entanto, o debate principal que se desencadeou em 1968 é o que diz respeito à pró-
pria existência da história da arte como disciplina autónoma face à arqueologia antiga.
Em França, na maioria das universidades, as duas disciplinas não se distinguem; assim,
é corrente encontrar departamentos de arqueologia grega ou romana (ou até unicamente
de história antiga) e departamentos de história da arte medieval, moderna ou contempo-
rânea (com uma única excepção, aliás bastante rara, para a arqueologia medieval).

A arqueologia da Antiguidade impôs-se cada vez mais nos seus objectivos e nos seus
métodos, com tendência para marginalizar ou absorver a história da arte antiga. A isto
veio adicionar-se um fenómeno saído das contestações de Maio de 1968: a arqueologia
seria a única ciência capaz de compreender a cultura material, reflexo da vida quotidia-
na da maioria; a história da arte, disciplina elitista, refugiar-se-ia no estudo formal e na
perspectiva visual de objectos de luxo fabricados para o prazer de alguns e nas elucubra-
ções dos historiadores da arte. A lamparina de óleo diria respeito à arqueologia e a Vitó-
ria de Samotrácia, à história da arte.
História da Arte – O Estudo da Arte como Disciplina Histórica 61/90
A fim de restituir à história da arte o seu lugar no quadro das ciências históricas da Anti-
guidade, é indispensável deixar de acreditar que o friso monumental depende da história
da arte e que a cerâmica pertence em exclusivo aos estudos arqueológicos. A história da
arte da Antiguidade deve incluir, para além dos estudos formais, uma perspectiva que
permita tomar em consideração as condições da criação artística (condições económicas
e técnicas que tornam possível a obra), a história dos artistas e dos artesãos, a rede das
clientelas e a utilização da obra por aqueles a quem é destinada.

2. Arqueologia, arquitectura e património industriais. - Nos últimos anos tem havi-


do cada vez maior interesse pela preservação dos vestígios do passado industrial. É hoje
reconhecido que a salvaguarda das primeiras máquinas, a restauração dos edifícios e o
arquivo da documentação social, económica e técnica valorizam o património dos países
industrializados. Mas as obras industriais de interesse cultural - fábricas, minas, pontes
metálicas, instalações ferroviárias, carros eléctricos - desaparecem rapidamente. Os po-
deres públicos parecem compreender a importância da preservação de tal património,
mas o grande público não está ainda suficientemente informado sobre o interesse desta
salvaguarda. A arqueologia industrial deve ir ainda mais longe, ao núcleo de uma inves-
tigação pluridisciplinar que faça apelo ao historiador da arte, ao arquitecto, ao historia-
dor das técnicas, ao sociólogo e, entre numerosos outros especialistas, ao arqueólogo.

A França, ao contrário da Inglaterra e da Polónia, é um país jovem nestes estudos. O In-


ventário Geral dos Monumentos e dos Recursos Artísticos da França cobre este vasto
domínio e publicou um repertório dos investigadores e dos organismos implicados. As-
sociações de salvaguarda consagram-se à restauração e à valorização do património in-
dustrial. O esforço dirige-se à valorização dos vestígios e à sua apresentação ao público,
e igualmente à reutilização dos testemunhos da actividade industrial regional.

III. - Novas orientações da história da arte

Nos últimos decénios, a história da arte obteve cinco orientações metodológicas princi-
pais: a formalista, a marxista, a sociológica, a iconológica e a semiológica ou estrutura-
lista. A primeira dedica-se ao estudo da composição, da forma e dos volumes, tende a
destacar constantes formais, frequentemente isoladas em relação às cronologias históri-
cas, e cria uma escala de referências internas que permitem atribuições e classificações.
A escola formalista, que se desenvolveu em torno de Focillon, desempenhou um grande
papel no seio das instâncias internacionais da história da arte.

História da Arte – O Estudo da Arte como Disciplina Histórica 62/90


A história de arte marxista, que conheceu momentos teóricos muito fortes depois da pu-
blicação da Ideologia Alemã por Marx e Engels, foi objecto de um renovado interesse
antes e depois da última guerra, com historiadores da arte como Antal e Hauser. Manti-
da à margem dos círculos oficiais e dos debates académicos, esta perspectiva da história
da arte teve destaque na Alemanha Ocidental, França, Holanda e Estados Unidos.

Com ligações ténues ao marxismo, constituiu-se a história social da arte, mediante ten-
tativas que procuravam valorizar os elementos sociológicos da produção artística e rela-
cionar a obra de arte e os grupos sociais que a determinam. Esta perspectiva considera o
artista um elemento activo da sociedade que consome as suas obras e dedica uma aten-
ção particular aos que encomendam as obras e aos clientes, à produção e ao consumo.

O método iconológico, saído da escola alemã de Warburg e desenvolvido por Panofsky,


procura envolver na obra de arte os diferentes níveis de consciência individuais e colec-
tivos. Diferentemente da iconografia, a iconologia tem em comum com este último mé-
todo procurar também apreender o que a imagem representa, o tema. Centrada de início
no Renascimento, a iconologia distingue a imagem da forma e procura as ressurgências
das imagens ao longo das épocas.

O estruturalismo e a semiologia, como análise estrutural da obra de arte e como aplica-


ção do estudo dos símbolos, são dois métodos provenientes de outras disciplinas e adap-
tados ao domínio da obra de arte. Tornaram-se frequentemente numa metodologia autó-
noma destinada à obra artística: Umberto Eco representa em Itália, as melhores tentati-
vas de abordar as obras de arte com investigações que derivam da linguística de Saussu-
re relativamente à semiologia, e de Panofsky relativamente ao estruturalismo.

A história da arte permanece dividida entre a aplicação de métodos já provados e a sua


renovação. O que se designou como crise da disciplina foi um certo cansaço que invadiu
as jovens gerações, face a propostas académicas fundadas essencialmente em análises
estilísticas. Procurou-se uma primeira saída na abertura a períodos menos estudados.
Em primeiro lugar, à arte contemporânea, cujas tendências mais recentes chegam ao en-
sino e ao grande público. Em segundo lugar, ao século XIX, do qual criações considera-
das até há ainda pouco tempo pastiches resultantes de uma época de mau gosto, são
agora estudadas de maneira sistemática. Foram procuradas outras saídas em abordagens
mais temáticas relativamente às tendências ideológicas do momento. A história da arte
feminista, por exemplo, teve uma ampla difusão nos anos setenta, tal como os estudos
que tendem a situar a arte no contexto das políticas culturais.
História da Arte – O Estudo da Arte como Disciplina Histórica 63/90
IV. - A história da arte actual: a arte dos séculos XIX e XX

Dois domínios de investigação registaram um progresso considerável em França ao lon-


go dos últimos vinte anos, não apenas devido a pesquisas eruditas dos historiadores da
arte, mas também graças a uma sua atenção mais ampla por parte do público. Trata-se
dos aspectos monumentais da arte do século XIX e da arte mais contemporânea. Negli-
genciada durante muito tempo, a arte do século XIX foi redescoberta recentemente. O
interesse incidiu nos arquitectos que restauraram os monumentos da Idade Média, como
Viollet-le-Duc, que começaram a ser compreendidos, não apenas tendo em consideração
os estudos sobre o passado, mas igualmente enquanto criadores de arte. As investiga-
ções sobre a arquitectura urbana em geral e depois sobre a arquitectura industrial foram
também sensibilizando, pouco a pouco, as instâncias oficiais para a protecção destas ar-
quitecturas negligenciadas. Começou a estudar-se também a pintura religiosa de igrejas
e depois a obra de pintores caídos no esquecimento. Também o vitral, uma arte que se
desenvolveu no século XIX, é desde há alguns anos um campo privilegiado de investi-
gações em diversas regiões.

Entre as grandes polémicas públicas dos últimos decénios encontra-se a que envolveu o
Centro Georges-Pompidou. A obra tornou-se num enorme sucesso público e faz parte
da paisagem urbana. Além do mais, é preciso sublinhar a sua função na tomada de cons-
ciência da importância da arte contemporânea.

Uma maior atenção envolve agora a criação mais contemporânea. As principais etapas
foram: a exposição sobre "Doze Anos de Arte Contemporânea em França"; o primeiro
Salão Internacional de Arte Contemporânea; o primeiro Mês da Fotografia, em Paris; a
abertura do Museu Picasso. O empacotamento da Pont-Neuf por Christo, foi realizado
nesse mesmo ano. A década de oitenta é marcada, em Paris, por grandes realizações,
como a Cidade das Ciências de La Villette, a Ópera da Bastilha e o Arco da Defesa. O
Grande Louvre é sem dúvida a realização mais importante.

História da Arte – O Estudo da Arte como Disciplina Histórica 64/90


2 - A PERIODIZAÇÃO E OS DOMÍNIOS DA HISTÓRIA DA ARTE

I. - As técnicas artísticas

Para além da cronologia e das áreas culturais, é frequentemente adoptada a comparti-


mentação da história da arte de acordo com as técnicas. Podemos dividir o campo técni-
co de vários modos: em função dos materiais, da afinidade do trabalho ou, melhor ain-
da, da aparência e do resultado final do objecto. Assim, encontramos técnicas que deri-
vam do tratamento de uma superfície plana e outras que dependem de um efeito de rele-
vo e do baixo-relevo. Entre as primeiras deparamos, em primeiro lugar, com a pintura,
com as suas técnicas de composição das cores, e da maneira de as aplicar; em segundo
lugar, a iluminura e a pintura a óleo, a aguarela e o guache.

O mosaico é uma composição de pequenos elementos a fim de constituir uma superfície


decorada. As diferentes técnicas de incrustação e de embutido foram utilizadas tanto nos
monumentos, como no mobiliário e nos pequenos objectos. Uma outra forma de compo-
sição que se pode situar entre a pintura e o mosaico é o vitral. Na base de todas estas
técnicas figurativas está o desenho. Reserva-se, porém, o termo desenho para o trabalho
em pergaminho ou papel. A gravura e a estampa, assim como a impressão, são respon-
sáveis pela difusão geral da reprodução de obras de arte. A xilografia, a zincografia, a li-
tografia ou a técnica de reprodução sobre metal, são as principais técnicas gráficas. A
última série de técnicas sobre superfície plana é a que lida com o tratamento dos teci-
dos: tinturaria, telas estampadas, tapeçaria, bordados e carpetes.

Entre as técnicas que recorrem à noção de relevo e de pleno relevo figura, em primeiro
lugar, a escultura, frequentemente destinada a um acabamento policromo (arte medie-
val). A escultura utiliza a pedra, a madeira, o marfim, a cera, o metal ou a terracota. A
terracota abre espaço às produções cerâmicas, de revestimentos ou decorativas. A por-
celana é um dos tipos principais de cerâmica, com inúmeras variantes. É necessário vol-
tar a falar do vidro, a propósito da técnica do vidro soprado e das formas antigas de fa-
brico de pequenos objectos. Ainda no domínio dos objectos de pequenas dimensões, a
glíptica diz respeito à criação de objectos a partir de minerais, muitos deles preciosos:
camafeus, cristal de rocha, jade, coral e pedras preciosas em geral. O ouro, a prata, o
ferro, o aço, o cobre constituem um campo importante da história da arte, no modo de
lhes dar forma e na sua transformação técnica. Os esmaltes, entre o vidro e o metal, com
as suas técnicas principais: o cloasonado, em relevo, o translúcido e o esmalte em fundo
História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 65/90
rebaixado. Há ainda outros domínios técnicos mais ou menos derivados dos já mencio-
nados, como o trabalho artesanal da madeira de uso decorativo, ou ebanisteria, e depois
o imenso campo dos objectos de uso quotidiano que requerem novas tecnologias.

II. - Pré-história e Antiguidade

A arte apareceu há cerca de trinta e cinco mil anos. Com o Paleolítico Superior surgiram
os primeiros objectos de adorno e estatuetas femininas e desenvolveu-se a arte parietal
de caçadores, sobretudo em África e no continente europeu (Altamira).

Tradicionalmente, estabelece-se a seguinte sucessão de culturas: perigordiense antigo,


aurinhacense, perigordiano superior, solutrense e magdalenense. Entre os quatro estilos
estabelecidos por Leroi-Gourhan, o primeiro comporta representações de cabeças e das
partes dianteiras de animais; o segundo inclui animais completos com uma acentuação
das proporções da parte anterior; nos terceiro e quarto estilos encontramos um grande
realismo figurativo policromo. Entre os animais, encontramos o bisonte e o cavalo, inte-
grados numa iconografia do masculino e do feminino organizada por grupos. A repre-
sentação humana é menos frequente; as estatuetas femininas caracterizam-se pela sua
adiposidade abdominal e dorsal. As representações masculinas são ainda menos nume-
rosas e definem-se pelo carácter esquemático da cara.

1. A arte egípcia. - Uma espantosa continuidade domina a arte egípcia. As formas ar-
quitecturais das pirâmides, o tratamento da figura humana, a associação do escrito e do
figurado e a repetição interminável dos temas são as suas características marcantes.

A arquitectura egípcia é conhecida sobretudo pelos templos e pelos túmulos. Entre estes
últimos, distinguimos o túmulo dos dignitários, a mastaba, e o túmulo real, geralmente
representado pela pirâmide. As mastabas de Mênfis exemplificam a arte das primeiras
dinastias. A mastaba compõe-se de uma câmara funerária ao nível da superfície, ligada
por um poço a uma câmara subterrânea, o túmulo. Os relevos murais policromos da ca-
pela funerária informam-nos acerca da vida do defunto, das suas tarefas, dos seus laze-
res. Entre as pirâmides mais antigas encontra-se a de Djoser, e entre as mais conhecidas,
as de Quéops, Quéfren e Miquerinos. Quando no Império Novo a corte foi transferida
para Tebas, adoptou-se o túmulo escavado na rocha ou hipogeu. A escultura em pleno
relevo atinge, desde as primeiras dinastias, um elevado grau de perfeição. Na IV dinas-
tia, o escriba sentado (do Louvre), o duplo retrato do príncipe Rahotep e da princesa Ne-

História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 66/90


ferti (Cairo) celebrizam a representação dos olhos em cristal e cobre.

No Império Médio e no Império Novo surgem sarcófagos com coberturas antropomórfi-


cas. Do Império Médio datam a esfinge em granito rosado e a estátua do chanceler em
madeira, (Louvre), bem como o desenvolvimento da pintura.

Com o Império Novo, as influências artísticas vindas da Ásia acentuam-se e o templo


torna-se o elemento arquitectónica principal em detrimento do túmulo. Tebas, a nova
capital, acolhe os mais imponentes edifícios do Vale do Nilo. Os templos de Carnaque e
Luxor mostram, com as suas salas hipóstilas, pátios e colunatas que antecedem o san-
tuário, as reconstruções e os melhoramentos dos diferentes períodos históricos até à
época romana. Entre os retratos reais, o da rainha Hatshepsut, (Nova Iorque) pode ser
comparado com o de Tutmósis III (Turim). No reinado de Ramsés II acabaram-se a sala
hipóstila de Carnaque, o templo de Luxor e os de Abu Simbel.

No campo da escultura, a intensificação do culto a Aton ao longo da XVIII dinastia teve


consequências na escolha dos temas, nomeadamente com Amenófis IV. Esta mudança
traduz-se não apenas pela picagem das imagens de Amon e pelo abandono de Tebas,
mas igualmente pela criação, na nova capital El-Amarna, de uma escola de escultura, de
curta duração, mas de grande qualidade. O realismo dos retratos deste período é ilustra-
do pela estátua de Amenófis IV e pelo busto de Nefertite.

2. A arte mesopotâmica. - Entre o Tigre e o Eufrates desenvolveu-se no quinto milénio


uma civilização tão importante como a do Egipto. As produções artísticas das primeiras
dinastias de Ur e de Lagasch e o papel desempenhado pelas cidades de Mari e de Ebla
caracterizam o período que corresponde, cronologicamente, às primeiras dinastias do
Império Antigo egípcio, com produções como as tabuinhas sumérias em relevo, as está-
tuas de Mari e o estandarte de Ur (conservado no Museu Britânico).

A estela de Naram-Sim (Louvre) é uma das obras-primas do Oriente Antigo. Nas estelas
o feito guerreiro é enaltecido. Os pequenos cilindros de pedra utilizados para selar as ta-
buinhas de argila em que se escreviam os textos são verdadeiras obras de arte. A restau-
ração suméria distingue-se pela fortificação da cidade de Ur e, sobretudo, pelas famosas
estátuas de Gudéia, príncipe de Lagasch.

Os Assírios chegam em meados do II milénio. O palácio de Khorsabad é organizado em


torno de três grupos de construções. Na parte superior do zigurate encontra-se o templo.
Aí, no fim do século VIII a. C, a arte assíria atinge o apogeu, com os monumentais ani-

História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 67/90


mais guardiães das portas, com as esculturas em alto-relevo e as pinturas dos palácios.
No reinado de Assurbanípal, o baixo-relevo torna-se mais narrativo.

Em 612, Ninive, que tinha sido enriquecida por Senaquerib, é destruída. Nabucodonosor
privilegia Babilónia. Em contacto com a Grécia, a civilização da época persa aqueméni-
da desenvolve uma arte faustosa, de que se encontra o essencial em Persépolis.

3. A arte da Antiguidade Clássica. - Por arte grega entende-se a arte produzida pelos
povos do Mediterrâneo oriental e das regiões colonizadas pelos Gregos, que se desen-
volve de maneira autónoma a partir do fim da época micénica. Consideram-se quatro di-
visões principais na sua evolução: o período de formação (1650-650), o período arcaico
(650-480), o período clássico (480-323) e o período helenístico (323-31).

A história da arte grega começa em Creta. Na Grécia continental, o período micénico


assiste, no início do século XV, ao desenvolvimento de uma poderosa arquitectura em
Micenas. Os palácios, as casas, mas sobretudo os túmulos reais são os elementos mais
notáveis da construção. Estes são circulares e geralmente cobertos por uma cúpula falsa.

A criação mais importante da arquitectura grega é o templo, destinado a proteger a ima-


gem de culto (que só aparece tardiamente) e que de início era desprovido de qualquer
decoração. Entre as estátua mais antigas, figura a de mármore encontrada no santuário
de Artemis em Delos. Todo o período arcaico grego corresponde a um renascimento da
arte no seu sentido monumental e a uma observância das leis da proporção e da sime-
tria. A ordem dórica desenvolve-se no continente grego, em Creta e na Grande Grécia; a
jónica evolui nas ilhas e na Ásia Menor. Relacionada com as ordens arquitectónicas está
a colocação do frontão e, de uma maneira mais geral, a decoração da fachada, isto é, das
métopas e do friso. Os principais templos da segunda metade do século VI encontram-
se sobretudo em Selinunte, na Grande Grécia. Pela mesma altura, impõe-se a cerâmica
ática, primeiramente com figuras negras, depois com figuras vermelhas.

O classicismo grego, que cobre os séculos V e IV, é caracterizado pela hegemonia de


Atenas. As grandes criações urbanas do Pireu e de Olinto são obra de competentes urba-
nistas gregos. Entre as obras arquitectónicas figuram o teatro e as construções religio-
sas; o templo de Zeus em Olimpo, rodeado por um pórtico, apresenta as proporções fun-
damentais do templo da época clássica, bem como os principais elementos iconográfi-
cos. No domínio da escultura, generaliza-se um estilo severo nas figuras de atletas e de
divindades, de anatomia realista e estrutura robusta (auriga de Delfos).

História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 68/90


A Atenas de Fídias e de Péricles é a da Acrópole. Está concebida como um espaço aber-
to, com o Erécteion e o Parténon . Este é um edifício dórico, períptero, dividido em duas
salas, cada uma aberta sobre uma das fachadas. Na sala principal estava a estátua de
Atena. A nota mais espectacular no plano decorativo é a presença de um friso contínuo.

Com o pintor Polignoto e o escultor Míron inicia-se o cânone clássico, que atingirá o
seu apogeu com Fídias e Policleto. O cânone de Policleto consiste em estabelecer pro-
porções ideais, medindo o comprimento total do corpo sete vezes a altura da cabeça
(Doríforo). O nome refere-se a uma célebre estátua de um soldado armado de lança,
com tal perfeição de formas e equilíbrio das proporções que passou a ser considerada o
cânone da estatuária antiga. Ao longo do século IV, os escultores Praxíteles e Escopas e
o pintor de Nícias definem o ritmo, o naturalismo e os sentimentos do segundo classicis-
mo. A decoração do mausoléu de Halicarnasso e do Artemésion de Éfeso atinge um ex-
tremo patético que marca os séculos posteriores.

O período helenístico, compreendido entre a morte de Alexandre e a conquista por


Roma, assiste ao deslocamento dos centros de criação da Grécia continental para orien-
te. Pérgamo, Mileto e Alexandria ilustram o crescimento, a riqueza e a variedade arqui-
tectónicas. O monumento das Nereides, e o urbanismo de Antioquia, Pérgamo e Ale-
xandria, bem como as produções escultóricas (Vénus de Milo), as pinturas e os mosaicos
são testemunhos dos últimos séculos do helenismo.

Na Toscana e no Lácio do fim do século XI surge a civilização etrusca. Conhecemos as


estruturas urbanas e as casas com átrio, mas sobretudo as inúmeras sepulturas, cuja de-
coração pintada constitui o principal testemunho da vida quotidiana. As escavações ar-
queológicas recentes permitiram verificar a conformação do modelo do templo etrusco
ao templo romano definido por Vitrúvio. Os três tipos principais são, a partir do século
VI, o de nave única, o de três naves e o de alas laterais. O templo de Júpiter Capitolino,
de Roma, é típico deste período.

Entre os primeiros testemunhos arquitectónicos em Roma figuram os templos da Fortu-


na e da Mater Matuta, e as muralhas de meados do século VI. A Loba Capitolina, consi-
derada um símbolo do nascimento da arte romana, é na realidade uma obra etrusca do
século V, que alguns autores associam mesmo ao século IV. Entre as construções religi-
osas mais antigas da República, conhecemos a Regia, no fórum romano, e os templos da
zona sagrada do Largo Argentina. A edificação arquitectónica religiosa adquire um forte
impulso ao longo dos séculos III e II. A época tardo-republicana é marcada pela cons-
História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 69/90
trução do tabularium, no Capitólio, e pelo ordenamento da zona meridional do Campo
de Marte. O templo da Fortuna, em Palestrina, exemplo grandioso de arquitectura repu-
blicana, remonta à época de Sila. O teatro de Pompeu é o primeiro de Roma em pedra.
Em Tivoli, observamos a associação do teatro com o culto. A arquitectura de habitação
é conhecida a partir das casas com átrio das cidades escavadas de Pompeia e Herculano
(casa do Fauno e a Villa dos Mistérios).

O altar de Domitius, cujos fragmentos estão conservados em Munique e no Louvre, re-


presenta o gosto ecléctico da arte médio-itálica. Em oposição a esta arte oficial, desen-
volve-se uma corrente artística plebeia.

A expansão romana no século I d. C. traduz-se, no domínio artístico, por uma iconogra-


fia da vitória e por uma arte ao serviço do imperador. O século de Augusto, que corres-
ponde ao classicismo romano, pode ser resumido pela Ara Pacis; as procissões esculpi-
das apresentam a imagem da função dos sacerdotes e da função pública da família de
Augusto. A arte da Ara Pacis ilustra o novo gosto neo-ático das elites romanas.

O maior dos Fora imperiais em Roma é o erigido por Trajano ao lado dos de Augusto e
de César. A coluna de Trajano é um monumento de cerca de quarenta metros de altura,
ornado com um friso contínuo em espiral, com relevos que apresentam as duas campa-
nhas militares conduzidas contra os Dácios. A época de Adriano é caracterizada pela ac-
tividade arquitectónica do imperador (Panteão de Roma).

No período dos Antoninos e dos Severos dão-se poucas alterações urbanas na cidade de
Roma (termas de Caracala). Dois monumentos importantes determinam as característi-
cas da época: as colunas de Antonino o Pio, e de Marco Aurélio. Esta última ilustra o
processo de simbiose artística entre as províncias e Roma; a comparação com o estilo da
coluna de Trajano é um exercício de história da arte que mostra claramente a evolução
artística, estilística e iconográfica entre as duas realizações imperiais.

A Península Ibérica com Mérida e o aqueduto de Segóvia, a Gália com os anfiteatros de


Nimes e de Arles, evidenciam a presença de Roma nos planos monumental e público.
No Norte de Africa a romanização traduz-se no urbanismo das grandes cidades, Cartago
na Tunísia, Leptis Magna na Líbia, sem esquecer as riquezas arquitectónicas na Ásia
Menor e no Médio Oriente. A importância das cidades só se pode comparar, no limiar
da Antiguidade Tardia, com o desenvolvimento das villas suburbanas e rurais faustosa-
mente decoradas com mosaicos.

História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 70/90


4. A arte da Antiguidade Tardia. - A cristianização da sociedade realiza-se sem que
possamos detectar evolução artística. Temos de esperar pela Antiguidade Tardia, duran-
te os séculos III e IV d.C., para ver expressa publicamente a nova iconografia. A partir
de imagens neutras (um pastor, alguém que reza ou temas bucólicos) a iconografia afir-
ma-se claramente como católica, nos sarcófagos e nas catacumbas. Os temas extraídos
do Antigo Testamento apresentam ao cristão a ideia do triunfo sobre a morte, mediante
a fé. As imagens do Novo Testamento são sobretudo as que se referem aos milagres de
Cristo. Um dos aspectos mais importantes desta iconografia relaciona-se com os fenó-
menos sincréticos e de transposição de temas não cristãos em temas cristãos. Deste
modo, a passagem da representação de Orfeu encantando os animais com a sua lira para
a de David ou a de Cristo é análoga à representação do Cristo-Sol triunfante no seu car-
ro, que se encontra na actual Basílica de São Pedro.

Entre as formas mais antigas da arquitectura cristã é necessário considerar, em primeiro


lugar, a basílica. Esta apresenta-se, em geral, precedida de um pórtico ou nártex, no qual
se concentram os catecúmenos, que não podem penetrar no edifício sagrado. A igreja é
constituída por uma ou por três naves, separadas por colunas ou pilares, cobertas por um
vigamento de madeira, e que convergem longitudinalmente em direcção à abside. A luz
é difundida por grandes janelas rasgadas nas paredes das naves laterais e na parte eleva-
da da nave principal. As basílicas não são a única forma de arquitectura religiosa monu-
mental. Há os baptistérios, habitualmente de planta centrada e com a pia baptismal colo-
cada no centro, tal como a sepultura nos edifícios funerários de planta circular ou poli-
gonal, os martyria e os mausoléus. A planta centrada é utilizada mais excepcionalmente
no caso de igrejas e basílicas, como, por exemplo, S. Lourenço, em Milão. Entre as im-
ponentes basílicas constantinianas de Roma, deve-se mencionar a de S. João de Latrão e
a de S. Pedro. Esta foi construída junto à colina vaticana, por cima do cemitério que se
aí encontrava, com cinco naves, um transepto muito saliente e sete absides.

III. - A arte do Ocidente medieval

1. A arte da Alta Idade Média. - O período chamado "bárbaro" compreende, no domí-


nio artístico, diversas realidades. A arte entre os séculos V e VII é considerada arte ro-
mana tardia, ou arte germânica, ou arte da Alta Idade Média, ou mesmo bizantina.

Em Ravena, no reinado de Teodorico, constroem-se de importantes monumentos, como


Santo Apolinário-o-Novo e o mausoléu real, que são considerados "romanos". Com a

História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 71/90


estabilização dos reinos "nacionais", o "romanismo" e o "germanismo" conduzem, a
partir de meados do século VII, à criação de artes locais. A contribuição dos germanos
limita-se praticamente à ourivesaria e às artes do metal. O esmalte cloasonado é utiliza-
do para decorar os objectos de luxo, simples fíbulas e coroas votivas.

Na Península Ibérica desenvolve-se, a partir do século VII, uma arquitectura original.


Esta pode ser comparada, por vezes, com os edifícios sírios e bizantinos do século VI.
Igrejas, como a de San Pedro de la Nave, apresentam uma planta que tem uma divisão
do espaço interior destinada a facilitar a cobertura do edifício. A escultura da época das
invasões desenvolve-se em três domínios: sarcófagos, mobiliário de igreja e capitéis. A
importação de Roma de sarcófagos, é substituída pela produção local, na qual predomi-
na a decoração gravada. Na Itália lombarda a escultura alarga-se ao mobiliário da igreja.
Esta escultura caracteriza-se pelo emprego do mármore, o talhe em bisel, o baixo-relevo
inspirado na Antiguidade e adaptado ao gosto do tempo, o entrelaçamento, os motivos
orientais e a decoração animalista. Na Gália, as esculturas do Hipogeu das Dunas, tal
como em Itália certos relevos de Aquileia, revelam a diversificação da produção, que se
transforma localmente e evolui para a Idade Média.

Os manuscritos ilustrados da Itália ultrapassam os Alpes e influenciam a Inglaterra e a


Irlanda. Da confluência desta corrente e do que subsiste das produções autóctones nasce
a arte estilizada da iluminura irlandesa (Livro de Durrow). Por arte carolíngia entende-
se a arte da corte de Carlos Magno, sobretudo até à morte de Carlos o Calvo. O retorno
às formas clássicas, a continuidade dos temas decorativos merovíngios, com a adopção
de elementos irlandeses e a assimilação de ideias provenientes de Bizâncio e do Oriente,
caracterizam este período. No domínio arquitectónico, a arte carolíngia construiu igrejas
com pórticos e torres de fachada. O monumento mais importante é a capela palatina de
Aix-la-Chapelle, construída por Carlos Magno, com planta octogonal. O modelo de
mosteiro é o de Saint Riquier, com o claustro situado no lado sul da igreja, estando esta
dotada de duas grandes torres nas extremidades de uma nave muito curta. As cabeceiras
das igrejas ganham complexidade ao adoptarem criptas inferiores e superiores destina-
das à liturgia do culto das relíquias (Saint-Germain, em Auxerre). Na época carolíngia,
a iluminura de manuscritos é importante: Fulda, Aix-la-Chapelle, Reims.

2. A arte românica. - Só conhecemos a arquitectura religiosa pré-românica do século X


através de edifícios pouco importantes, com nave e abside rectangulares, sendo esta de
dimensões mais pequenas. Uma excepção é a igreja abacial de Cluny II. A Ile-de-France
História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 72/90
possui alguns edifícios interessantes, construídos cerca do ano mil, entre os quais a igre-
ja abacial de Saint-Germain-des-Prés. Esta última teve um papel importante na difusão
da primeira escultura românica e das formas arquitectónicas da torre sineira-pórtico.

A palavra "românico" é um termo arbitrário. Foi introduzido no século XIX e parece es-
tar relacionado com a "România", na qual encontra a sua difusão geográfica, e com a
arte romana, de que é suposto derivar.

No cruzamento da arte carolíngia e da arte românica, a arquitectura otaniana permanece


fiel aos modelos pré-cristãos. As grandes igrejas com transepto, frequentemente regular,
e tecto com madeiramento são iluminadas por grandes janelas. Os suportes que separam
a nave das colaterais estão dispostos em alternância regular. A igreja otaniana herda da
época carolíngia o gosto pela dupla abside, que não demora muito a constituir um maci-
ço ocidental, como o de São Pantaleão em Colónia.

A primeira arte românica produz, da Itália setentrional à Catalunha um tipo de edifício


religioso característico. Com pedras desbastadas a martelo e sob a influência das cons-
truções de tijolos, estes edifícios são construídos com um aparelho regular muito peque-
no. Uma ou várias naves estão coroadas por uma ou várias absides semicirculares, com
ou sem transepto saliente. As paredes são muito grossas, os suportes sólidos e as jane-
las, raras e estreitas. Os edifícios estão cobertos por uma abóbada de berço sobre fre-
chais, na nave principal, e por abóbadas de arestas, nas laterais. O pavimento da abside
é por vezes elevado, para deixar espaço para uma cripta.

Durante a primeira metade do século XI, assistimos a tentativas isoladas de decoração


das fachadas e dos capitéis em lugares muito afastados geograficamente: decorações ge-
ométricas nos vales do Aisne, capitéis de estuque em Saint-Remi, nos quais aparece a
figura humana; esforços semelhantes podem ser encontrados na Normandia e no Loire.

A partir do último terço do século XI a arte românica surge na Europa ocidental total-
mente constituída. Inteiramente abobadada, a igreja é reforçada por contrafortes e inva-
dida por uma importante decoração esculpida, que se desenvolve sobretudo à volta do
portal, na igreja e no claustro. O tipo mais conhecido de igreja românica é o que está re-
lacionado com as rotas de peregrinação para Santiago de Compostela. A igreja está divi-
dida em três ou cinco naves, em que a central tem uma abóbada de berço sobre frechais
e as laterais abóbada de arestas. Os apoios são pilares e suportam o peso do edifício.
Tribunas muito amplas encimam o conjunto.

História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 73/90


Relacionada com a construção arquitectónica, a escultura cobre o edifício a partir do iní-
cio do século XII. Capitéis historiados e frisos ornamentam o monumento. Entre os
grandes temas estão o Apocalipse de João, a Ascensão de Cristo e o Juízo Final. Quanto
ao claustro, a sua decoração compreende cenas do Antigo e do Novo Testamento, ciclos
hagiográficos e profanos, imagens inspiradas pelos bestiários, decorações florais, perso-
nagens de pé ocupando um pilar ou uma coluna.

Sem ter o brilho da época carolíngia, os manuscritos iluminados da época românica são
muito importantes. Na Inglaterra, as escolas de Winchester impõem-se. Outros centros,
não menos ilustres, produzem manuscritos de valor: Cluny e Roma.

3. A arte gótica. - O termo "gótico" define um estilo que tem o seu pleno desenvolvi-
mento no Norte de França nos séculos XII e XIII. No entanto, certos monumentos ante-
riores já apresentam, isoladamente, as características dos edifícios do século XIII. As
soluções técnicas que a arte gótica vai utilizar, como o arco de volta quebrada e a abó-
bada de cruzaria ogival, já tinham sido ensaiadas nos edifícios românicos. O que muda
com o progresso técnico e a estandardização do trabalho arquitectónico é o espírito da
sociedade e os poderes económicos, político e religioso que a dirigem.

A fachada ocidental de Saint-Denis (anterior a 1140) apresenta a primeira realização do


portal gótico. As estátuas-colunas (Chartres) substituem as figuras humanas alojadas
nos largos vãos da época românica: as figuras integram-se, através da coluna, na arqui-
tectura da fachada. Um novo tipo de catedral de quatro níveis de altura difunde-se entre
a Champagne e a Flandres. Notre-Dame de Noyon, apresenta um transepto muito im-
portante e arredondado. Mais sóbria do que a de Noyon, a catedral de Laon permanece o
edifício mais típico da arte gótica, cujo culminar surge em Notre-Dame de Paris. Quatro
colaterais acompanham a nave principal, prolongando-se em redor do coro num duplo
deambulatório. O edifício é cortado por um transepto não saliente.

A nave da catedral de Chartres tem três andares, um trifório de tipo contínuo e janelas
altas e amplas. A planta é muito elaborada: três naves, vasto transepto com colaterais e
coro com nave lateral dupla e deambulatório com capelas radiantes.

A fórmula arquitectónica da catedral de Chartres é seguida em Reims. A catedral de


Burges. tem cripta, colaterais duplas que se prolongam, sem transepto, um duplo deam-
bulatório com capelas radiantes afastadas umas das outras.

O culto mariano é um dos aspectos essenciais da iconografia gótica, com os portais con-

História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 74/90


sagrados à coroação da Virgem. Nas regiões setentrionais, o vitral substitui a pintura
mural nas igrejas. Florescem os estilos locais e as tendências diversificam-se. No século
XIII, faz a sua aparição em Chartres um estilo considerado clássico, com os vitrais de
Carlos Magno. Em meados do século, a Sainte-Chapelle evidencia um estilo mais rápi-
do, ágil e flexível. O vitral influencia a miniatura durante o século XIII, com as suas co-
res vermelhas, o azul escuro e a abundante utilização do ouro.

Na viragem para o século XIV fazem-se sentir duas tendências na construção das cate-
drais góticas. A primeira situa-se na continuidade das experiências anteriores e é
exemplificada pela catedral de Clermond-Ferrand. A segunda procura uma unidade es-
pacial interior, para a qual contribui a iluminação, que penetra abundantemente no edifí-
cio graças ao alargamento das aberturas. É uma arquitectura ligeira, no seio da arte radi-
ante (Estraburgo). Na Inglaterra, o estilo decorado (York) multiplica as nervuras, intro-
duzindo-lhes uma decoração esculpida que as cobre. O Sul de França, a Espanha (Bur-
gos, Léon) e a Itália seguem vias diferentes.

No século XIV a estatuária domina, com Virgens com o Menino em alabastro e em pe-
dra, e painéis de retábulo, que se difundem por toda a Europa. A ourivesaria evolui. O
interior dos edifícios ganha uma decoração esculpida policroma (retábulos, púlpitos,
gradeamentos de coro). Proliferaram os artistas de corte e as encomendas privadas. A
Espanha beneficia dos contactos com a França, atenuados nas zonas orientais pela in-
fluência italiana. Na Itália, Nicola Pisano mostra toda a força da Antiguidade nos púlpi-
tos monumentais de Pisa e de Siena. A arte gótica da Toscana é representada por Gio-
vanni Pisano e Andrea Pisano (portas do baptistério de Florença). A pintura é dominada
pela obra de Giotto, em Pádua e Assis. A monumentalidade, a qualidade do tratamento e
o seu estilo dão a Giotto um lugar à parte na história da arte.

O último período da arte gótica é conhecido com o nome de gótico flamejante. A arqui-
tectura caracteriza-se pela diversificação e complexidade das plantas e pela multiplica-
ção das nervuras das abóbadas e arcos. Os pilares simplificam-se e o exterior do edifí-
cio, com uma grande profusão de flechas e pináculos, torna-se espectacular e sobrecar-
regado. A Inglaterra desenvolve um estilo particular dito perpendicular (Cambridge).
No plano iconográfico, os temas preferidos são o Cristo Sofredor, A Virgem da Pieda-
de, a Descida da Cruz e a Deposição no Túmulo.

No domínio pictórico destacam-se os manuscritos de horas iluminados. No Norte, Van


Eyck impõe um realismo que contrasta com o luxo do gótico internacional. O gosto pelo
História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 75/90
pormenor e os estudo sobre a perspectiva e a luz acentuam a impressão de riqueza cro-
mática. A sua tradição é prosseguida por Van der Weyden e H. Memling. Este estilo fla-
mengo estende-se à França e ao Sul. Um dos pintores que conheceram maior sucesso,
tanto no século XV como no século XX, foi Jerónimo Bosch, contemporâneo de Botti-
celli. O conteúdo religioso dos seus quadros, que é um reflexo da sociedade em que
vive, e a força dos seres monstruosos que pinta (Jardim das Delícias) contrasta com as
formas do Renascimento italiano contemporâneo.

IV. - As artes não ocidentais

1. A arte bizantina. - Em Ravena, capital ocidental do império de Justiniano, podemos


seguir a evolução das formas arquitectónicas, assim como da arte figurativa do mosaico,
ao longo dos séculos V e VI. A basílica de S. Vital é o exemplo mais importante. A arte
bizantina encontra-se plenamente ilustrada em Santa Sofia, edifício que possui um an-
dar de tribunas e cúpulas notáveis. Após o período iconoclasta a produção de imagens
fica concentrada em Constantinopla, na Grécia (mosaicos de Santa Sofia em Tessaloni-
ca), em Kiev (Santa Sofia) e na Capadócia (igrejas de Gõreme). Os mosaicos da igreja
de Dafni abrem a via a um maneirismo que aparece fora dos limites do Império: na Sicí-
lia normanda (Monreale) e em São Marcos de Veneza. A partir do século XIII e até à
queda do Império, a arte bizantina desenvolve-se de maneira diversa em cada região. Na
arte bizantina, as artes sumptuárias e os ícones (pinturas religiosas em painéis de madei-
ra) revestem-se de uma importância singular.

2. A arte do Islão. - A arte islâmica apresenta específicos que se mantêm ao longo dos
séculos. A arte islâmica, que se manifesta da Península Ibérica à China, não é unitária,
porque assimila as tradições artísticas de cada região: na utilização da cor, na decoração
figurativa dos palácios e nos balneários sumptuosos, nas iluminuras exclusivamente ge-
ométricas, vegetais ou epigráficas, nas mesquitas; no uso da luz. A mesquita é o edifício
mais característico, centro de oração e da vida quotidiana. A planta típica possui um pá-
tio de entrada rodeada de pórticos, prolongado por uma grande sala de oração, no fundo
e no eixo da qual se encontra o mihrab. A mesquita faz-se notar na cidade graças ao mi-
narete, cuja evolução arquitectónica pode ser traçada através dos séculos. A arquitectura
dos túmulos e dos mausoléus é muito importante. Uma arte islâmica particular desen-
volve-se na África negra.

História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 76/90


3. A arte da Ásia Oriental. - Contentamo-nos em descrever rapidamente três tradições
artísticas: a da índia, a da China e a do Japão. Na arte distinguem-se cinco grandes eta-
pas: de formação, de plenitude autóctone, islâmica, mogol e de colonização e indepen-
dência. A religiosidade, as normas de estética próprias e a função desempenhada pelo
simbolismo e pela astrologia na iconografia são os seus elementos principais. Após um
período de relações com a civilização mesopotâmica e depois da incursão helénica, a ín-
dia desenvolve os estilos de Gândara e de Matura. Os monumentos construídos, as stu-
pas, são adaptadas ao budismo. A arte situa-se, então, na zona do Ganges e ao sul do
Indo. O período da dinastia Gupta é um momento de maturidade e de monumentalidade,
com escultura erótica e pinturas murais que ornamentam a arquitectura rupestre. Os síti-
os rupestres de Elefanta testemunham o papel da escultura, que atribui uma importância
privilegiada às figuras femininas. A partir do século XI, acentua-se o desmembramento
da arte indiana, com o aparecimento dos tipos regionais. A arquitectura muçulmana in-
troduz a cúpula.

A arte chinesa cobre um período imenso. Às fases mais antigas correspondem os pri-
meiros estilos dos Chang, vasos zoomorfos que contribuem para a difusão do estilo ani-
malista e para o gosto pelos adereços. A época dos Reinos Combatentes assiste ao surgi-
mento da escultura. A época Han acentua as trocas com o Oeste: os vasos, os bronzes
pequenos, as figurinhas em terracota, as pedras cinzeladas e a arte da laca são eminente-
mente decorativos. Nas épocas Wei e Suei a arte budista penetra na China e, na época
Tang, a conquista da Ásia Central provoca a influência da arte iraniana, nomeadamente
na cerâmica e na decoração dos espelhos. A difusão da arquitectura budista leva à pro-
fusão de mirantes e torres de vigia e à adaptação das stupas a pagodes. As épocas Song
e Yuan revelam a evolução do taoismo e o lugar cada vez maior que a pintura tem, na
cerâmica, na escultura e, sobretudo, nos rolos. A tradição pictórica chinesa, tem uma
história autónoma no decurso dos períodos Ming e Qing.

A civilização chinesa influencia a arte do Japão nas épocas Asuka e Hakuho, e introduz
a estatuária budista. O mundo dos mosteiros contribui desde o início da época de Heian
para a originalidade nipónica, que coincide com a ruptura com a China e a valorização
da escrita enquanto arte gráfica. A civilização da época Fujiwara assiste à fixação do
tipo dos Budas e às séries de pinturas hieráticas cobertas a folha de ouro. A época Ka-
makura caracteriza-se pelas ilustrações de livros de temas populares e lendas budistas.
A época Muromachi assiste à influência da pintura chinesa de aguarela, através da esco-

História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 77/90


la de pintura de Kano. No domínio arquitectónico, destacamos os templos zen, as vilas
dos imperadores, os pavilhões para a cerimónia do chá e os jardins. Os séculos XVII e
XVIII são dominados pelos começos da estampagem e pela evolução das oficinas de
pintura. As relações com o estrangeiro dão a conhecer os mestres da estampagem, cujas
produções se tornam uma fonte de influência para a arte ocidental.

4. A arte americana, africana e oceânica. - No México e na América Central, os Mai-


as possuem uma arquitectura e um urbanismo muito elaborados, com pirâmides, tem-
plos e palácios. A sua escrita hieroglífica possui um elevado valor decorativo. Entre os
conjuntos urbanos, os de Teotiacão apresenta a arquitectura das grandes pirâmides em
andares, com o santuário no cimo, e a existência de edifícios de planta rectangular. A ci-
vilização azteca caracteriza-se igualmente pelo realismo da escultura monumental e a
sua estreita dependência da arquitectura, pelo trabalho dos metais preciosos, pelas más-
caras com incrustações de pedras coloridas e pelos códices. Na América do Sul, as civi-
lizações andinas da Colômbia e do Equador são eclipsadas pelo esplendor dos Incas,
cuja arte surpreende pela grandiosidade e pelo urbanismo.

O estudo da arte africana deriva em simultâneo da etnologia e da história da arte e inspi-


rou fortemente a arte ocidental moderna. O nosso conhecimento é ainda fragmentário e
progrediu sobretudo no domínio dos objectos esculpidos, que se referem directamente
aos ritos da vida quotidiana e religiosa. A arquitectura e a escultura, muitas vezes efé-
mera, são menos conhecidas. As actividades plásticas não se limitam à representação es-
cultórica, mas alargam-se igualmente à pintura do corpo e ao fabrico de objectos guer-
reiros. Entre os grandes povos criadores figuram os Dogon do Niger, com máscaras, es-
tátuas humanas e tecelagem artística. No norte da Costa do Marfim, os Senufo são gran-
des produtores de esculturas, nomeadamente em torno dos temas da mulher que trans-
porta um cesto à cabeça, da mulher sentada e do cavaleiro. No antigo Daomé, as insígni-
as dos dignitários, os objectos religiosos e a escultura de estátuas e de tronos são as
principais produções. O bronze é trabalhado na região do Níger e do Benim. O conti-
nente africano compreende inúmeros povos produtores de arte e características estilísti-
cas muito variadas, que testemunham a evolução das técnicas, a utilização preferencial
da madeira e a fabricação de objectos essencialmente funcionais. Os mesmos dados po-
dem ser aplicados à arte do continente oceânico, feita de objectos usuais, rituais, mági-
cos e religiosos.

História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 78/90


V. - Renascimento, Barroco e Classicismo

A arte atinge durante o Renascimento um prestígio semelhante ao das outras actividades


intelectuais. O artista e o seu trabalho são admirados e o mecenato domina as artes. O
retorno ao passado permite a recuperação da latinidade e do helenismo, através dos mo-
delos arquitectónicos dos edifícios antigos. Em Florença, durante o século XV (Quat-
trocento), Cosme e Lourenço de Médicis fazem da cidade um nova Atenas. Donatello e
Brunelleschi são os precursores do Renascimento.

Brunelleschi instala na catedral florentina uma cúpula inspirada no Panteão de Roma, ao


passo que as igrejas de S. Lourenço e do Espírito Santo recuperam as formas da basílica
antiga. As portas do baptistério de Florença, de Ghiberti, são um dos primeiros grandes
empreendimentos da escultura do Renascimento italiano. A harmonia e a grandeza dra-
mática orientam a obra de Donatello. A pintura de Fra Angélico, de Filippo Lippi, de
Botticelli e de Leonardo da Vinci evidenciam o triunfo do Quattrocento toscano.

Fora de Florença, a Itália vibra numa febre de criação. Em Veneza, Bellini; na Úmbria,
Piero della Francesca são referências do Renascimento. Este torna-se efectivo durante o
século XVI (Cinquecento) romano, sob os pontificados de Júlio II e Leão X. A basílica
de S. Pedro do Vaticano, de Bramante, evidencia a inspiração que os monumentos anti-
gos propicia aos arquitectos do Renascimento. A força de Miguel Ângelo exerce-se na
obra de S. Pedro, depois de ter concebido em Roma a Praça do Capitólio e o palácio
Farnese. No Norte da Itália brilha a obra de Paládio, cujos tratados de arquitectura vão
contribuir para a difusão da arquitectura "antiga" na Europa.

Quatro grandes figuras marcam a pintura do século XVI italiano: Rafael, Miguel Ânge-
lo, Giorgione e Ticiano. Os dois primeiros desenvolvem a sua actividade principalmente
em Roma: de Rafael podemos citar as galerias do Vaticano e a sua deliciosa série de
Madonas; de Miguel Ângelo, os frescos da Capela Sistina; Giorgione e Ticiano criam
um estilo veneziano que se prolonga com Veronese e Tintoreto.

Fora de Itália, o Renascimento teve manifestações: a arquitectura dos castelos-palácios


franceses (Fontainebleau), a pintura dos grandes mestres do Norte: Durer e Holbein.

O fim do Renascimento é marcado por um movimento artístico refinado: o maneirismo.


Em meados do século XVI, pintores inspirados por Miguel Ângelo quase já formam a
primeira geração barroca. No domínio da escultura, este momento é representado por
Jean de Bologne e Cellini. Vasari publica em 1550 as Vidas dos artistas italianos.
História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 79/90
O século XVII assiste ao desenvolvimento de um movimento artístico chamado barro-
co, dominado pela irregularidade, pela fantasia e pelo excesso de decoração. O barroco
torna-se a expressão artística da Contra-Reforma. Está presente no plano urbanístico de
Roma de Sisto V e expande-se com Bernini.

A difusão do barroco pela Europa é muito diversificada no domínio da pintura. Às obras


de Caravaggio vem juntar-se a série de pintores espanhóis, flamengos e franceses: El
Greco, Velásquez, Rubens, Rembrandt, Vermeer.

Na obra de Caravaggio percebemos a dinâmica criadora da nova maneira de fazer em


relação ao maneirismo: os jogos do claro-escuro, que acentuam o efeito dramático, gra-
ças a uma iluminação lateral muito forte, dão a estas obras uma dimensão que se traduz
rapidamente num caravaggismo europeu (Rembrandt, Ribera).

Rubens, formado em Itália no início do século XVII, criador de uma escola flamenga
inspirada nos venezianos, é um dos maiores pintores de todos os tempos. Em contraste
com a pintura intimista e torturada de El Greco, Rubens traduz a vida em toda a sua
efervescência, com o emprego sumptuoso da cor e das formas contrastadas. Próximo de
Rubens, Van Dyck deixou retratos aristocráticos. Rembrandt faz de Amsterdão o grande
centro da arte holandesa. Pintor da luz fluida e difusa, contribui para o desenvolvimento
de uma pintura que ilustra a vida rural e urbana, os retratos de grupo e as paisagens.

Em Espanha, com o arquitecto Churriguera, o barroco atinge uma riqueza ornamental


extraordinária e uma liberdade muito grande na interpretação dos estilos greco-romanos.
A Espanha deu artistas como El Greco (O Enterro do Conde de Orgaz), Ribera, Muril-
lo, pintor de Virgens e de Meninos, e Velásquez, que dirige um olhar incisivo e genial
ao seu tempo (Vénus ao Espelho, As Meninas).

A este barroco, que associa a arquitectura e a pintura e conta entre as suas criações com
as populares igrejas da Alemanha Meridional, opõe-se o classicismo francês de Luís
XIV, com o arquitecto Mansart e o pintor Le Brun. A racionalização e o despojamento
da arquitectura clássica encontram-se na fachada da colunata do Louvre. O grande em-
preendimento arquitectónico do reinado é o palácio de Versalhes, com projecto de Le
Vau e Hardouin Mansart e jardins de Le Nôtre. Para além de Versalhes, as fórmulas
barrocas aplicam-se, com reserva, na Igreja dos Inválidos de Paris.

A arte do século XVIII encontra-se delimitada por duas tendências: o rococó e o neo-
classicismo. O rococó é o estilo ornamental da Regência e do reinado de Luís XV. A

História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 80/90


novidade é a riqueza decorativa dos interiores. Por isso mesmo, o rococó surge como
um estilo mais ligado às artes decorativas do que à arquitectura. A divisão interior dos
espaços em numerosos compartimentos permite a multiplicação dos efeitos e dos deta-
lhes, nomeadamente nas madeiras pintadas e douradas. Esta arte valoriza os elementos
da decoração e do mobiliário: tapeçarias dos Gobelins, porcelanas de Sèvres.

A pintura europeia da primeira metade do século XVIII possui dois centros criadores
principais: França e Veneza. Watteau é o intérprete das cerimónias galantes e das festas
campestres, Boucher é o mestre da pintura histórica e da felicidade sensual. A escola ve-
neziana brilha com a fantasia de Tiepolo e com as paisagens de Canaletto.

Após o barroco e o rococó, a Europa volta-se para a Antiguidade, numa reacção neo-
clássica. Este movimento surge da Itália e é caracterizado pelo escultor Canova, que tra-
ta, segundo o gosto da época, grandes temas da escultura grega. A fórmula neoclássica
encontra em França, com Luís XVI e, depois, com Napoleão, um terreno privilegiado: o
Panteão, o Arco do Triunfo e a Madalena. Este estilo, que gerou o Museu Britânico, a
Porta de Brandeburgo, prolifera mais tarde nos Estados Unidos (Capitólio).

A Inglaterra encontra um estilo nacional no século XVIII com Gainsborough, um dos


criadores do paisagismo moderno. O fim do século XVIII e o início do seguinte são
marcados por Constable, que terá um papel determinante no nascimento do realismo e
do impressionismo, através da paisagem e da tradução dos efeitos da luz e da cor.

A passagem para o romantismo percebe-se em Goya. Este, que foi um pintor rococó
(cartões de tapeçarias), evoluiu como retratista crítico, tomando-se cronista do seu tem-
po. As guerras inspiram-lhe os famosos Desastres da Guerra e 2 e 3 de Maio. Na mes-
ma época, David, pintor da Revolução e do Império, contribui para o neoclassicismo
com uma das suas obras (O Juramento dos Horácios) e marca a arte de Ingres.

VI. - A arte do século XIX

O período compreendido entre a Revolução Francesa e a I Guerra Mundial é rico em ex-


periências e corresponde a uma forte expansão da actividade artística. O primeiro perío-
do revolucionário, até ao fim do século XVIII neoclássico, caracteriza-se pelas ideias
utópicas do Iluminismo (David). É a época do estilo Império, sob Napoleão, das sequên-
cias da lógica construtiva de Soufflot e dos projectos americanos, com realizações como
a Casa Branca. Para além das criações arquitectónicas e pictóricas já mencionadas, so-

História da Arte – A Periodização e os Domínios da História da Arte 81/90


bressai na Alemanha a obra de Schinkel, que marca a chegada de um gosto novo de re-
descoberta da Idade Média e busca das origens nacionais de cada país. A Inglaterra fora
pioneira neste domínio, porque Walpole mandara construir uma casa gótica em 1753.
Esta tendência neogótica tem o seu culminar no romance de Victor Hugo Nossa Senho-
ra de Paris, em the Seven Lamps of Architecture, de Ruskin e nos trabalhos de Viollet-
le-Duc, restaurador de Notre-Dame.

A pintura romântica encena temas novos, monumentais, históricos ou imaginários. No


fim do primeiro terço do século XIX, Ingres e Delacroix representam os dois pólos da
sociedade. O primeiro, do lado do poder burguês, o segundo, como mestre da imagina-
ção e da liberdade. Os quadros históricos de Delacroix, profundamente dramáticos, co-
locam a pintura ao serviço dos ideais de liberdade (A Liberdade Guiando o Povo).

Durante a segunda metade do século XIX, a arquitectura encontra-se liberta de acade-


mismos e de restrições estilísticas e insere-se num eclectismo que funde os estilos mais
antigos com as novas funções das construções. Assim, a arquitectura do ferro, funcional
ou utilitária nos mercados centrais e nas gares, pode dar um toque progressista aos edifí-
cios que mantêm ainda uma imponência clássica (Biblioteca de Santa Genoveva, pavi-
lhão do Jardim Botânico, em Paris). A arquitectura metálica basta-se a si mesma (Crys-
tal Palace, Torre Eiffel). A ponte de Brooklyn em Nova Iorque e a Ópera de Paris, de
Garnier são, deste ponto de vista, exemplares.

Entre eclectismo e realismo, a escultura e a pintura marcam a viragem da segunda meta-


de século. François Rude exprime-se na Marselhesa do Arco do Triunfo. Rodin, o mais
conhecido dos escultores desta época, cria uma escultura lírica, toda em volumes, que
exprime tanto os sentimentos, como as ideias (O Pensador, O Beijo).

A partir de meados do século, a pintura deriva em direcção a um realismo que é, inicial-


mente, naturalista, com paisagistas como Rousseau e Millet, para atingir em seguida a
defesa das classes mais desfavorecidas. Millet, com As Respigadoras, mas sobretudo
Courbet colocam a sua arte ao serviço da denúncia das injustiças humanas. O Almoço
na Relva, de Manet, e Mulheres no Jardim, de Monet, anunciam a pintura moderna.

A segunda metade do século é marcada pelo nascimento do impressionismo. Esta pintu-


ra pretende transmitir as transparências e as luminosidades e pode ser relacionada com o
realismo, graças à obra de Manet. O movimento avança com Monet, Renoir, Degas e
Cézanne. O impressionismo não penetra em todos os meios, como é disso testemunho a
obra simbolista de Chavannes. Uma segunda etapa do simbolismo é ilustrada por Redon
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e os Nabis, entre os quais se destaca Maurice Denis.

Três pintores tiveram um papel determinante nas tendências artísticas do século XX:
Cézanne, Van Gogh e Gauguin. Na valorização das construções pelo primeiro inspira-se
o cubismo. Da expressividade impulsiva e colorida de Van Gogh nasce o expressionis-
mo. Gauguin tem um papel essencial na generalização do gosto pelos temas exóticos.

VII. - A arte contemporânea

Entre os movimentos do início do século XX, o expressionismo assume a herança do


simbolismo e das secessões da Europa Central. A vontade de exprimir a vida interior e
os dramas colectivos do século rege os artistas deste movimento. O expressionismo es-
palhou-se pela Áustria e Europa Setentrional.

Com uma menor carga social, o fauvismo, que exalta a cor pura, é o equivalente em
França do expressionismo. Matisse renuncia à perspectiva e reduz a pintura a linhas e
superfícies, que são apenas um contraste de cores. Partindo de Cézanne e Gauguin, Ma-
tisse intensifica os aspectos formais para acentuar a expressão.

Na escultura, verifica-se a reacção a Rodin com as geometrizações de Biegas, o regresso


ao talhe directo e a simplificação formal, que se vêem em Picasso.

O cubismo nasce da tendência para simplificar as linhas e as formas e para tornar mais
geométricas as figurações. Este desenvolve-se em duas direcções, para a representação
da natureza com elementos geométricos, ou para a abstracção pura, uma revolução na
pintura atribuída a Picasso (As Meninas de Avinhão). Entre as consequências do cubis-
mo figura o orfismo, palavra criada por Apollinaire para designar uma pintura que seria
apenas cor. Igualmente próximo da estética cubista, o futurismo, movimento literário e
artístico italiano definido por Marinetti: deseja integrar a pintura e as produções indus-
triais, colocando a tónica no maquinismo e no seu movimento.

Com a Primeira Guerra Mundial, o movimento Dada representa uma vontade de ruptura
com a tradição. Na Suíça, Aip; na Alemanha, Max Ernst representam os diferentes cen-
tros de difusão do movimento. O estilo e a arte não são conceitos que interessem estes
artistas, cujo movimento colectivo visa, em primeiro lugar, provocar o espectador. Para
além da experiência Dada, aparece o suprematismo de Malevitch, ao qual se opõem as
tendências construtivistas-produtivistas. Numa linha neoplástica de massas limitadas
por linhas verticais e horizontais, situa-se, na Holanda, Mondrian.

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Entre as duas guerras, um dos pontos mais altos atingidos pelas novas tendências mani-
festa-se na escola de artes Bauhaus, que integra as artes menores nas artes maiores. Nos
objectivos da Bauhaus figura a renovação da arquitectura, do design e do mobiliário ur-
bano. As investigações em arquitectura do período entre as duas guerras, que encontra-
ram nos Estados Unidos um enorme campo de aplicação, são celebrizadas pelos arqui-
tectos ligados à Bauhaus, pela obra de Le Corbusier e pela obra do nórdico Aalto.

Picasso participou na maioria dos movimentos artísticos da primeira parte do século,


criando um estilo e uma expressão próprios, por entre todas as tendências. No período
entre as duas guerras, depois de ter aderido ao realismo (naturezas mortas e cabeças),
deixa-se influenciar pelo mundo do bailado (arlequins, músicos), mas com uma conti-
nuidade cubista. A sua obra maior é Guernica. Fundador do cubismo, Picasso teve um
papel importante, embora passageiro, no surrealismo. As suas incursões na escultura re-
novaram também totalmente a sua prática, da assemblage à utilização do metal.

O surrealista de Breton abre caminho a um movimento pluridisciplinar, que recupera,


relativamente ao movimento Dada, o sentido da forma e confere à obra de arte dimen-
sões novas. Na Itália, a pintura metafísica de Chirico encontra eco num artista que aban-
dona o futurismo, Carrà. Pertencem ao surrealismo, acompanhando artistas saídos de
outros movimentos (Arp, Ray, Ernst), as novas gerações (Miró, ,Masson, Dali).

A arte abstracta, que nasce entre 1910 e 1920, conheceu inúmeras variantes, entre elas,
os núcleos Círculo e Quadrado e Abstracção-Criação. Na Polónia, W. Strzeminski em-
preende uma crítica do suprematismo para criar o unismo e faz telas quase monocromá-
ticas. Depois da II Guerra Mundial, o expressionismo abstracto, movimento conhecido
igualmente com o nome de action painting, reúne grandes artistas sem unidade estilísti-
ca nas suas criações, mas com preocupações próximas: Pollock, Kooning. Os Estados
Unidos ganham então um lugar de primeiro plano no desenvolvimento da arte contem-
porânea, por um lado, graças à emigração de inúmeros artistas e homens de letras e, por
outro, graças aos novos mercados que aí se desenvolvem.

Na Europa, as reacções contra a abstracção geométrica tornam-se sistemáticas. No qua-


dro das correntes informais, é necessário mencionar o grupo CoBrA, com artistas prove-
nientes de Copenhaga, Bruxelas e Amsterdão. Entre estes encontram-se Appel, Cons-
tant. Em Barcelona, do grupo Dau al Set surge a obra de Tàpies.

Da nova abstracção americana reteremos a economia das formas, a regularidade da su-


perfície, a simetria e a importância da cor. No início dos anos cinquenta, novas formas
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de prática artística fazem apelo aos rituais e à magia: environment, happening. Abando-
nando os objectos e as formas, a relação directa com o público é criada através das idei-
as e dos actos. O momento principal do happening situa-se cerca dos anos sessenta. Es-
tes movimentos dão origem à performance, aos events e à body art.

A obra de Rauschenberg e a de Jasper Johns são uma antecipação da pop art, termo que
visa tomar em consideração a cultura popular da sociedade de consumo. A partir dos
anos sessenta, e em paralelo com estes movimentos anglo-saxónicos, surge em Paris o
novo realismo. Entre os numerosos artistas que dele fazem parte figuram Spoerry (qua-
dros-embuste), Arman (acumulações de objectos) e Christo (assemblages, depois emba-
lagens) apresentam um trabalho mais directamente escultural.

Os Estados Unidos acolheram inúmeras experiências em arquitectura desde a última


guerra. O racionalismo e o funcionalismo dominam a obra de Mies Van der Rohe, com
os apartamentos de Lake Shore Drive. No entanto, por outro lado, a função dinamizado-
ra e a sedução cultural de Le Corbusier continuam a marcar o século XX através da obra
do seu aluno Niemeyer, em Brasília. A arquitectura orgânica, que tende a utilizar mate-
riais como a madeira, o tijolo e a pedra, face ao poder do betão armado, encontra em
Aalto e Frank Wright os seus mestres. A arquitectura contemporânea ocidental é intro-
duzida no Japão por Kenzo Tange. Para citar apenas duas tendências entre as que mar-
caram a arquitectura do pós-guerra, podemos evocar o movimento que defendeu, na In-
glaterra, a utilização dos materiais em bruto e, nos Estados Unidos, o neoclassicismo de
Khan, que influenciou bastante as novas gerações de arquitectos.

Os anos setenta identificam-se com a arte minimal, a arte conceptual, a landart e a arte
pobre. A arte minimal refere-se a experiências escultóricas e pictóricas que traduzem as
formas com a ajuda de materiais industriais simples; trata-se de uma luta pela percepção
imediata da obra e contra o ilusionismo da escultura tradicional e a interpretação. Cerca
de 1968, os artistas procuram o desaparecimento do objecto na obra de arte, em favor do
conceito e da arte efémera; interessam-se pela arte como ideia. A arte conceptual adopta
os novos meios técnicos como o gravador, a dactilografia, as fotocópias. Usam-se cená-
rios naturais para experimentar a land art. Esta escolhe como lugar de experimentação
espaços naturais, de preferência o mar, a montanha. A arte pobre, que utiliza materiais
humildes ou pobres (plantas, cordas, terra), em oposição aos produtos manufacturados.

A luta contra a noção de vanguarda artística caracteriza as atitudes pós-modernistas dos


anos oitenta. Para além da retorno ao passado expressionista dos artistas alemães, gera-
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se em Itália um movimento de recuperação da história da cultura. Este retorno à história
caracteriza igualmente a arquitectura pós-modema, cheia de referências eruditas.

VIII. - Um domínio novo: a história da fotografia

Entre as novas disciplinas dos estudos de história da arte, figura a história da fotografia,
não apenas enquanto técnica utilizada por numerosos artistas, pintores e escultores, des-
de o século passado, mas igualmente enquanto técnica criativa com desenvolvimento
autónomo. Iniciada por Niepce, a verdadeira fotografia só aparece quando Daguerre in-
troduz o daguerreótipo. O inventor da fotografia em negativo/positivo é Talbot, que in-
troduz o calótipo e com ele a possibilidade de obter diversas provas a partir do mesmo
negativo. A placa de vidro com colódio não cede o seu lugar no mercado senão à placa
seca de gelatino-brometo. Dois tipos de fotógrafos trabalham no século XIX: por um
lado, os artistas retratistas, como Nadar, os fotógrafos de arte cujas investigações são
paralelas às dos pintores; por outro, os fotógrafos retratistas que se multiplicam em to-
das as cidades. Os domínios de estudo da história da fotografia são imensos: a fotografia
documental; o fotojornalismo; a fotografia a cores; a fotografia de arquitectura; a foto-
grafia publicitária. A história da fotografia é igualmente uma história de grandes artis-
tas: de Hausmann, Atget, Man Ray e Kertesz.

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3 - A HISTÓRIA DA ARTE HOJE

I. - Instituições, centros de investigação e congressos

Algumas instituições: o Conselho Internacional dos Museus (ICOM), o Conselho Inter-


nacional dos Monumentos e dos Sítios (ICOMOS), a Associação Internacional dos Crí-
ticos de Arte e o Comité Internacional da História da Arte (CIHA).

II. - Museus, exposições e conservação do património

Os museus abarcam diversos domínios: museus de Belas-Artes, museus de história, mu-


seus de ciências e técnicas, museus do ar e do espaço. Os esforços realizados para apre-
sentar o património ao público intensificam-se sob a égide dos ecomuseus, ou museus
instalados no ambiente natural da actividade humana, e dos museus de cultura científica
e técnica. A própria ideia de museu regista uma extensão ilimitada, desde o museu de
arquitectura até aos que enquadram cada actividade, como o exército, o correio, os
transportes, a publicidade, etc. Os estudos de sociologia aplicados aos museus multipli-
cam-se, tal como os debates sobre a natureza e os usos destes. As grandes exposições
tornaram-se um fenómeno de sociedade e um campo de interesses económicos.

Para além de exposições sobre a obra de um artista, encontramos exposições destinadas


a apresentar uma colecção; as exposições técnicas; e, por fim, exposições síntese sobre
um período. As exposições são acompanhadas de catálogos, verdadeiros livros de arte.

A noção de património artístico alarga-se. São inventariados e protegidos, com medidas


de classificação, não apenas as obras e os monumentos da Antiguidade e da Idade Mé-
dia, mas também as criações mais recentes.

III. - As publicações sobre a arte

Para além dos dois grandes repertórios internacionais, o Repertório de Arte e Arqueolo-
gia e o Repertório Internacional da Literatura de Arte, a maioria dos países possui bi-
bliografias nacionais. Aos catálogos de exposição, que constituem um género novo de
publicação sobre a arte e dos quais já falámos, devemos acrescentar os catálogos dos
museus. Os historiadores da arte publicam habitualmente as suas investigações especia-
lizadas em revistas. Entre aquelas que tiveram uma maior continuidade figura a Gazette
des Beaux-Arts.

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IV. - As ciências auxiliares da história da arte

Como ciências auxiliares da história da arte, aparecem, em primeiro lugar, as diferentes


formas de história, seguindo-se a arqueologia. A filologia, a heráldica, a numismática, a
sigilografia são outros domínios em que o historiador da arte pode obter informações. A
epigrafia e a paleografia são necessárias para compreender as inscrições e os textos es-
critos. A arquivística em geral permite orientar a pesquisa nos arquivos. A iconografia,
que associa os textos às imagens para interpretar estas últimas, exige conhecimentos
culturais provenientes de diferentes disciplinas. A etnologia, a antropologia e a sociolo-
gia são indispensáveis, de acordo com a especialização de cada um.

V. - Os fundos documentais

As bibliotecas e os arquivos constituem os principais fundos documentais para o estudo


da obra de arte. Todos os arquivos interessam ao historiador da arte, desde logo os nota-
riais, os livros de contas, os inventários por falecimento e até os arquivos dos leiloeiros,
por exemplo. Os arquivos dos arquitectos, tal como os arquivos privados de pintores e
fotógrafos são de acesso mais difícil. A fotografia constitui umas das fontes de docu-
mentação mais importantes para o historiador da arte.

VI. - As novas tecnologias

A história da arte tenta utilizar a informática para tratar o volume de informações cada
vez maior de que dispõe. O contributo da ciência para a história da arte já foi assinalado
há muito tempo no que diz respeito à restauração e às análises laboratoriais. Os exames
técnicos para o estudo dos quadros efectuam-se por observação da superfície (luz rasan-
te, fotografia, microscópios, raios) e em profundidade (raios X), na esperança de desco-
brir dados seguros para a autentificação ou atribuição. Actualmente, o trabalho de labo-
ratório tornou-se muito especializado e continua a aperfeiçoar-se.

VII. - O estudante face aos estudos e à investigação

Em História da arte o aluno é confrontado com a elaboração de mestrado e a publicação


de artigos. O mais importante é, em primeiro lugar, a escolha do assunto; em seguida,
surge a dificuldade mais temível que é aprender a usar a documentação, tanto as fontes
antigas como a bibliografia moderna. O método de investigação é amplamente determi-

História da Arte – A História da Arte Hoje 88/90


nado pela personalidade de cada um, mas o êxito depende, antes de mais, do rigor do
questionário e do uso adequado das informações. Para bem fixar o ponto de partida, o
aluno deve procurar definir o contexto histórico e sociocultural, depois, descrever de
modo preciso o objecto de estudo e realizar uma análise iconográfica e estilística sobre
ele que possa conduzir às conclusões cronológicas, e situar a obra num contexto cultural
mais amplo. O conteúdo do assunto determina o plano, que deve ser simples, lógico e
harmonioso e que deve incluir uma documentação científica sobre a qual se deve apoiar
a "tese" propriamente dita. Esta documentação pode ser composta por peças justificati-
vas ou documentos de arquivo, eventualmente por um catálogo crítico e, em qualquer
caso, por uma bibliografia e por um dossier fotográfico. O mercado para a carreira de
historiadores da arte é amplo: leiloeiros, antiquaristas e galerias de arte, editoras, mece-
nato, jornalismo, guias-conferencistas, restauração, actividades na Cultura e no Turismo
em geral.

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CONCLUSÃO

A História da arte continua dividida em tendências e escolas. A preocupação com as co-


lecções foi substituída pelos catálogos e pelo arquivo informático das obras. As institui-
ções de salvaguarda multiplicam-se e os museus transformam-se para substituir a sua
missão singular de conservação por atitudes pedagógicas de difusão da cultura histórica
e artística. Enquanto as duas principais tendências, formal e social, mantêm os seus
adeptos, outras investigações tendem a renovar a disciplina. Esta adquiriu um lugar, en-
quanto disciplina autónoma, libertando-se progressivamente da história e da filosofia,
com as quais era muitas vezes associada nos programas.

Recentemente o debate incidiu, especialmente em França, não tanto nas diferenças entre
História da arte e História, ou mesmo entre História da arte e Crítica de arte, mas nas
que separam a História da arte da Arqueologia. A História da arte surgiu a alguns como
uma ciência aristocrática, encarregada de analisar o belo, o gosto de uma certa classe so-
cial, ao passo que a Arqueologia permitiria penetrar na vida dos mais humildes, graças
às investigações sobre a cultura material. A História da arte apresenta diferentes facetas
e pode abranger todas as abordagens do campo histórico. Para além disso, pode compre-
ender um aspecto do imenso campo da criação humana, o trabalho de natureza artística
ou artesanal, pelos seus próprios meios, seguindo os seus próprios métodos de aborda-
gem. Com a importância crescente dos media, a arte atinge um público cada vez mais
amplo e o gosto colectivo forma-se estudando a disciplina. Entre as disciplinas históri-
cas, a História da arte é a que teve uma curva de crescimento mais acentuada: publica-
ções de inéditos, edições, documentação de obras, monografias de monumentos e de ar-
tistas, catálogos críticos, estudos sobre as influências e as relações artísticas, abertura ao
grande público e ao mundo actual. Hoje em dia, a História da arte é uma ciência que se
interessa por todos os períodos, por todas as artes e que acompanha a História. Toma em
consideração todos os suportes e todos os meios de expressão de todas as épocas. Já não
é sensível apenas às questões de atribuição, datação e interpretação iconográfica, mas
contribui igualmente para a compreensão das condições da criação, do financiamento,
do processo de encomenda, das técnicas e da execução da obra de arte e, como é óbvio,
da percepção desta pelo público a que se destina.

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