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Decolonizar o museu: Programa de desordem absoluta
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Decolonizar o museu: Programa de desordem absoluta
E-book285 páginas4 horas

Decolonizar o museu: Programa de desordem absoluta

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Sobre este e-book

"Negro é o modelo, branca é a moldura": assim Françoise Vergès resume a condição atual de boa parte dos museus e instituições culturais, em que saberes, objetos e produções artísticas de populações marginalizadas são expostos, narrados e rentabilizados em benefício da manutenção e ampliação do poder das elites brancas colonialistas. Neste livro, a pensadora propõe o desmantelamento da estrutura de tais instituições e sua substituição por outras formas de gerir, apresentar e distribuir as riquezas culturais que elas detêm, garantindo que a circulação desses artigos e dos conhecimentos a ele vinculados sejam mediados por um compromisso real com as populações por ele representadas. A esse novo sistema ela chama de pós-museu: "um espaço de exposição e transmissão que leve em consideração análises críticas de arquitetura e história nas artes plásticas; um lugar onde as condições de trabalho daqueles/as que limpam, vigiam, cozinham, pesquisam, administram ou produzem sejam plenamente respeitadas e onde as hierarquias de gênero, classe, raça, religião sejam questionadas".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de set. de 2023
ISBN9788571261273
Decolonizar o museu: Programa de desordem absoluta

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    Decolonizar o museu - Françoise Vergès

    FRANÇOISE VERGÈS

    DECOLONIZAR O MUSEU

    Programa de desordem absoluta

    TRADUÇÃO

    MARIANA ECHALAR

    Prefácio

    Tantas contas a ajustar e tão poucos efeitos. Tudo limpo, bem organizado.

    LOUISA YOUSFI, Rester barbare, 2022.

    Se a solidariedade é uma encarnação, é também uma projeção.

    KRISTINE KHOURI E RASHA SALTI, Past Disquiet, 2018.

    Não há espaço que não seja de seu tempo.

    BISI SILVA, apud HOUGHTON KINSMAN, In Profile: Bisi Silva. Frieze, 31 mai. 2017.

    O museu ocidental é aquele tipo estranho de lugar onde podemos encontrar no mesmo espaço quadros, objetos, móveis e estátuas de vários continentes e várias épocas, mas também milhares de restos mortais – crânios, ossos, cabelos. Essa instituição, associada à grandeza da nação, nasceu sob a sua forma atual no século XVIII¹ – o século das revoluções (entre as quais a Revolução Haitiana, muito frequentemente esquecida), quando o tráfico escravagista atingiu um pico inigualável e banqueiros, seguradores, armadores, proprietários de escravos² (mulheres e homens), capitães, negreiros e fazendeiros enriqueceram consideravelmente. A plantation escravagista era o centro de uma economia globalizada que abastecia os/as habitantes da Europa de açúcar, café, tabaco, especiarias e outras maravilhas; essas mercadorias alteraram radicalmente as preferências alimentares, assim como o status social e o modo de viver, acolher e representar. O século XVIII foi também o da consolidação do ideal de branquitude, que supostamente reunia em si beleza, razão e princípios de liberdade. Mas o museu ocidental conquistou verdadeiramente sua glória no século XIX, quando juntou ao seu acervo milhares de objetos de arte e restos mortais que soldados, oficiais, missionários, aventureiros, mercadores e governadores trouxeram com eles no fim das guerras imperialistas e de colonização. Esses objetos enriqueceram as galerias dos museus e garantiram à instituição um status indisputável: tornou-se impossível rivalizar com o alcance dos acervos dedicados à Ásia, África, Américas, Oceania, Europa e Caribe. Nada escapava.

    O museu realizou uma formidável inversão retórica, dissimulando os aspectos conflituosos e criminosos de sua história e apresentando a si mesmo como um depósito do universal, um guardião do patrimônio da humanidade, um espaço para ser cuidado, protegido e preservado de contestações, um espaço com status de santuário, isolado das desordens do mundo. Sua neutralidade é inquestionável. Ali, as pessoas falam baixo, os diálogos são desinteressados, não há excessos ou intemperança: greves, protestos e ocupações de funcionários são considerados de muito mau gosto.

    Contudo, há décadas o museu é contestado e questionado. Comunidades, nações e Estados exigem reparações e restituições. Em outubro de 2022, para denunciar a inação dos governantes diante da crise climática, ambientalistas escolheram o museu ocidental como local de atuação: sopa, purê e talco foram jogados em grandes obras da arte ocidental. Em 9 de outubro de 2022, dois militantes do movimento Extinction Rebellion colaram as próprias mãos no vidro que protege o Massacre na Coreia, de Picasso, exposto na National Gallery de Vitória, na Austrália; em julho do mesmo ano, em Florença, ativistas do Ultima Generazione se colaram a um quadro de Botticelli.³ Mas foi a ação de 14 de outubro, na National Gallery, em Londres, que desencadeou mais reações na mídia. Naquele dia, Anna Holland e Phoebe Plummer, ambas do coletivo Just Stop Oil, jogaram sopa de tomate nos Girassóis de Van Gogh e colaram as mãos na parede sob o quadro.⁴ Phoebe Plummer declarou em alto e bom som: O que vale mais: a arte ou a vida? A arte vale mais do que comida, mais do que justiça?.⁵ Nos dias seguintes, em Paris, Potsdam, Berlim, Haia, Madri e Camberra houve ações similares.⁶ O debate se concentrou na legitimidade do ato, na sua eficácia e relação com a desobediência civil, e na pertinência ou não de usar a arte para discutir o clima.⁷ Em 10 de novembro, cerca de cem representantes de grandes museus ocidentais manifestaram sua desaprovação: Os museus são locais onde há um diálogo entre pessoas de horizontes muito diversos, portanto são locais que contribuem para o intercâmbio societal. Por isso, as principais funções do museu – coleção, pesquisa, mediação e conservação – são mais essenciais e mais pertinentes do que nunca.⁸ Durante uma mesa-redonda organizada pela Qatar Creatives, Tristram Hunt, do Victoria and Albert Museum de Londres, manifestou sua preocupação com a linguagem niilista desses atos, dando a impressão de que não existe lugar para a arte em tempos de crise.⁹ Essas manifestações são um eco da declaração de 2002¹⁰ sobre a necessidade de termos museus universais, pois o universal é inatacável por princípio – e não é uma sopa de tomate que vai por isso em dúvida. E, no entanto, essas ações nos museus aconteceram ao mesmo tempo que, na vigésima sétima Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP27), realizada de 6 a 18 de novembro de 2022 em Sharm el-Sheikh, no Egito, os Estados ocidentais se mostravam de novo reticentes em aceitar a demanda dos países mais pobres de considerar responsabilidades e capacidades diferenciadas entre os países, para compensar perdas e prejuízos causados por séculos de capitalismo racial. Enquanto isso, as grandes companhias petrolíferas anunciavam lucros excepcionais – a tal ponto que, na França, os trabalhadores das refinarias de petróleo fizeram greve por aumento de salário de 20 de setembro a 27 de outubro de 2022, dado o lucro recorde da TotalEnergies em 2021¹¹ – e investimentos e projetos na África (Congo, Moçambique, África do Sul) eram duramente criticados pelas consequências negativas que terão para o meio ambiente e a sociedade. Em outras palavras, o foco na pertinência ou não das ações dos ativistas evitou que viessem à tona as relações entre o extrativismo industrial (petróleo, gás, carvão) e o extrativismo das obras que contribuíram para a riqueza do museu ocidental.

    As desigualdades estruturais de raça, classe e gênero que existem no museu são o reflexo das desigualdades estruturais globais criadas pela escravidão, pela colonização, pelo capitalismo racial e pelo imperialismo. A destruição de palácios e o embargo de suas riquezas, as pilhagens e os roubos sistemáticos e a narrativa de uma história da arte centrada na Europa contribuíram para dar recursos e uma aura inigualáveis ao museu. Sem a pilhagem dos tesouros artísticos europeus pelos exércitos napoleônicos, sem o roubo dos frisos do Partenon em 1802, sem o saque do Palácio de Verão pelos exércitos franceses, alemães e ingleses em 1860, ao norte da Cidade Proibida, em Pequim, sem o roubo dos bronzes do Benim em 1897 – para citarmos apenas algumas das pilhagens mais famosas que sucederam no mundo –, o museu ocidental não teria alcançado a glória que alcançou no século XIX e conserva desde então. Parafraseando Walter Rodney, podemos dizer que o museu ocidental contribuiu para o subdesenvolvimento do Sul.¹² Os pedidos de restituição de objetos remetem a uma longa história de expropriação que faz eco ao extrativismo como lógica do capitalismo racial.

    A definição da noção de propriedade privada no direito ocidental foi fundamental para legitimar o roubo. Tornando-se propriedade da nação, ou melhor, do povo europeu ou estadunidense, o objeto roubado, para ser devolvido, depende sempre de uma decisão judicial que o libere de sua qualidade de propriedade inalienável. Esse passe de mágica que transforma em propriedade legal de uma instituição ou indivíduo um objeto roubado, saqueado, comprado ou adquirido por meios desonestos desnuda a perversão do direito colonial. A genealogia patriarcal e colonial do direito de propriedade imposto ao mundo não europeu acabou fazendo que, para reclamar um objeto que lhes pertenceu, um grupo, uma comunidade ou um povo tenham de negociar sua devolução dentro do direito que os tomou de sua propriedade.

    Tudo isso demonstra, como se ainda fosse necessário, que o museu não é um espaço neutro, mas um campo de batalhas ideológicas, políticas e econômicas. O museu universal se vê como um refúgio ou santuário, mas parece muito distante de poder assumir esse papel, porque, para interpretá-lo, teria de reconhecer a parte que desempenhou na maneira como a ordem racista, patriarcal e extrativista do mundo se instituiu, e ter a determinação necessária para se insurgir contra ela. Nesse caso, será que o museu seria indefensável, no sentido dado por Aimé Césaire quando disse que a Europa é indefensável? No entanto, os museus se mobilizam, dialogam com os povos e as comunidades que foram espoliados de seus objetos, outros enfrentam as dificuldades impostas pela decolonização de seus acervos,¹³ e outros ainda convidam artistas, ativistas e pesquisadores para refletir e criar com eles.

    Mas a decolonização do museu ocidental é possível? Eis a pergunta que esta obra faz, a decolonização não se colocando nem como um argumento retórico nem como um novo elemento de linguagem (conforme o jargão da comunicação governamental), mas, para empregar uma expressão de Frantz Fanon da qual tentaremos explicitar o sentido, como um programa de desordem absoluta. Não basta expor obras decoloniais (quais seriam os critérios e quem os definiria?), diversificar o que é pendurado nas paredes, falar de preservação e conservação em um estado de guerra permanente contra subalternos e indígenas; temos de nos perguntar o que seria um pós-museu, isto é, um espaço de exposição e transmissão que leve em consideração análises críticas de arquitetura e história nas artes plásticas. É preciso criar um lugar onde as condições de trabalho daqueles/as que limpam, vigiam, cozinham, pesquisam, administram ou produzem sejam plenamente respeitadas; onde as hierarquias de gênero, classe, raça, religião sejam questionadas. A volta dos nacionalismos xenofóbicos, que estão reescrevendo a história da arte, o surgimento de novas formas de censura, a redução do financiamento público, que gera novas disparidades entre museus de um mesmo território ou entre Norte e Sul, e o papel dos multimilionários no mundo da arte criam um terreno de lutas duras e difíceis, às quais respondem em parte programações mais diversificadas, sobretudo em museus com ambição de ser universais. O capitalismo racial autoritário, a dependência de financiadores para criar, a ocupação e a destruição do patrimônio da Palestina, as atuais contrarrevoluções, tudo isso exige um rigor analítico e um salto de imaginação que uma instituição não pode assumir sozinha, especialmente enquanto seu funcionamento e sua economia não forem questionados. Mas longe de mim a ideia de rejeitar as múltiplas iniciativas de certos museus do Sul global e das periferias do Norte, pois elas trazem questionamentos férteis.

    Mesmo assim, não podemos negligenciar o papel cada vez mais importante dos multimilionários, que dispõem de um capital com o qual os museus não podem rivalizar e transformam estes últimos em clientes atados a uma relação de patronato – como mostrou recentemente o leilão na Christie’s de Nova York da coleção de Paul G. Allen, um dos fundadores da Microsoft, uma coleção digna de um museu. Essa coleção, que bateu o recorde de venda em leilões,¹⁴ chegando a mais de 1,5 bilhão de dólares (em 9 e 10 de novembro de 2022), cobria quinhentos anos de história: desde a clássica Madona do Magnificat de Botticelli (séculos XV-XVI) até obras de Wayne Thiebaud (2012). Alguns desses quadros alcançaram valores que surpreenderam até mesmo os especialistas.¹⁵ Um homem sozinho pode reunir uma coleção inacessível para um grande número de museus apenas para o seu prazer pessoal. E ainda pode coroar a sua reputação de grande colecionador com uma aura de generosidade desinteressada, já que os lucros da venda foram destinados a ações filantrópicas.

    Nesse contexto, as promessas sobre o diálogo e a civilidade, a juventude sem rumo ou o caráter sagrado da arte são absolutamente ridículas. Tentam limpar a história do museu de qualquer suspeita, de qualquer cumplicidade com o racismo e o imperialismo. Mas o que está mais amplamente em jogo nos movimentos que transformam o museu ocidental, dito universal, num terreno de contestação é a possibilidade de sua decolonização.¹⁶

    Introdução

    Encontrar nosso valor de metal, nossa lâmina de aço, nossas comunhões insólitas.

    SUZANNE CÉSAIRE, Le Grand Camouflage: écrits

    de dissidence, 1941–45.

    As convenções são a espinha dorsal da Realidade burguesa que queremos desossar […]. Oriundos da burguesia de cor francesa, que é uma das coisas mais tristes do mundo, declaramos […] perante todos os cadáveres administrativos, governamentais, parlamentares, industriais, comerciantes etc. que nós, traidores dessa classe, pretendemos ir tão longe quanto possível nessa traição. Cuspimos em tudo que eles amam e veneram, em tudo de que tiram alimento e satisfação.

    LÉGITIME DÉFENSE, 1932, apud LYLIAN KESTELOOT, Histoire de la littérature négro-africaine, 2001.

    A descolonização, que se propõe mudar a ordem do mundo, é, está visto, um programa de desordem absoluta. Mas não pode ser o resultado de uma operação mágica, de um abalo natural ou de um acordo amigável, escreveu Frantz Fanon em 1961.¹ Fanon se refere ao estado do mundo, e não apenas da Argélia, por cuja independência ele lutou, mas não viu. Desordem absoluta, porque só ela é capaz de acabar com uma ordem que é aquela da organização em nível global da opressão, da expropriação, do racismo e da exploração. A desordem não é o caos, mas a contestação daquilo que os poderosos chamam de ordem do mundo, um mundo que eles construíram e estão incessantemente fortalecendo, um mundo que eles prefeririam imutável, ainda que sua organização e funcionamento sejam continuamente contestados. Um de seus princípios é a promessa de progresso tecnológico e científico, seja qual for o seu custo. Um mundo da modernidade que se baseia na filosofia liberal dos direitos e acumulou bens e riquezas à custa do tráfico, da escravidão, da colonização e do capitalismo racial e patriarcal; um mundo que se sustenta em leis que se tornaram internacionais, criadas com base no direito do comércio marítimo colonial europeu, do direito da propriedade, das leis bancárias e securitárias e do sistema de plantation. Sua concepção de Estado liberal é monolíngue, as liberdades são outorgadas às minorias linguísticas, raciais, religiosas e culturais em função de seu respeito e adesão às normas. Direitos individuais foram estabelecidos, enquanto códigos negavam esses direitos aos subalternos. É um mundo de profundas desigualdades, cuja economia devastou povos, terras e mares, e hoje ameaça as condições de vida humanas e não humanas, especialmente no Sul global. Essas desigualdades estruturais são muito concretas e a industrialização dos países do Sul global é enganosa, pois, no contexto da divisão internacional do trabalho e do controle dos direitos de propriedade em escala mundial, bem como do controle capitalista dos centros nevrálgicos da indústria e da finança, o Sul não recebe os lucros do que produz: 1% da população mundial detém, hoje, mais de 70% da riqueza. Portanto, temos de desconfiar desse desenvolvimento ilusório: se a diferença que existia entre Norte e Sul no século XX praticamente desapareceu em termos de volume de produção, os centros mais ricos do capitalismo global continuam sorvendo a maior parte do valor e comandam as alavancas do capital monetário, bancário e financeiro. Reconhecer essas expropriações, essas devastações, essas explorações, essas diferenças abissais entre Norte e Sul que legitimam o apelo de Fanon é absolutamente necessário em uma obra dedicada à impossível decolonização do museu, pois este último existe devido a e dentro desse contexto.

    Desafiar a ordem do mundo

    Os defensores da ordem existente conseguiram transformar esse programa de desordem absoluta em uma ameaça existencial: rejeitar a ordem do mundo é condenar o planeta a um caos do qual ele nunca se recuperará. Eles se valem de exemplos: todas as promessas de um mundo novo terminaram em distopias, autoritarismo, ditaduras. Sonhar com um mundo diferente é de uma ingenuidade inqualificável, de uma falta de pragmatismo total. O medo do grande salto é uma de suas armas; enquanto isso, eles nos conduzem para o abismo. Contudo, temos de nos perguntar se esse programa de desordem absoluta continua válido, porque a ordem do mundo não é mais aquela do início dos anos 1960, quando foi proposto por Fanon – e os objetivos da Conferência de Bandungue (1955) e da Conferência Tricontinental (1966), assim como as independências, ainda eram cheios de promessas. De lá para cá, a globalização neoliberal, as reorganizações das alianças regionais e internacionais, as guerras imperialistas e a crise climática cobraram seu preço; os efeitos combinados e o impacto diferenciado sobre cada espaço tiveram consequências que exigem uma análise rigorosa para pensarmos uma estratégia de ação de médio e longo prazo. Então o que significa, nesse contexto, um programa de desordem absoluta? Qual a natureza dessa desordem? A decolonização que discutimos aqui não é o momento histórico da independentização das ex-colônias, mas a abolição de uma ordem perversa, marcada pela violência sistêmica, pelo estado de guerra permanente, pelas ocupações coloniais e militares (Palestina, Caxemira, Falkland/Malvinas, Assam), pela criação de enclaves onde os ricos se refugiam, onde grandes empresas praticam o extrativismo sob a proteção de soldados, policiais ou mercenários, por imensas plantations onde mulheres, crianças e homens são escravizados e o solo é contaminado, esgotado… Se houve progressos inegáveis na educação e na saúde na segunda metade do século XX, e se povos saíram da pobreza extrema, esses progressos foram rapidamente sabotados e ainda hoje são ameaçados por políticas de austeridade, privatização da saúde e da educação, impossibilidade de saldar dívidas, guerras, mortes diárias causadas por feminicídio e racismo, crise climática e pandemias. A divisão entre vidas que contam e vidas que não contam é mais explícita do que nunca, e o capitalismo, com a cumplicidade das democracias liberais, acomoda-se aos partidos fascistas e de extrema-direita. O planeta se tornou inabitável e irrespirável para bilhões de seres humanos. Mares, rios, florestas e animais de todas as espécies estão sendo literalmente asfixiados. A multiplicidade de ataques à dignidade e à vida causa uma sensação de impotência: como destruir a máquina? Como pará-la? Mas as lutas cotidianas pela liberdade e pela dignidade, contra o extrativismo e a guerra permanente, mostram que não há um dia sequer que protestos, manifestações e criação de refúgios e santuários, em diferentes lugares, não desafiem a ordem do mundo. A decolonização consiste em criar as condições da abolição necessária desse mundo.

    Não estamos falando de sonhar com um futuro tão distante que ele acaba se tornando abstrato nem de negar as lutas presentes. Muito pelo contrário. O programa de desordem absoluta nos instiga a nos informar sobre as lutas pela dignidade e pela vida, por mais pequenas e insignificantes que sejam essas lutas, a aprender com elas, a nos organizar e realizar um trabalho de imaginação urgente, resgatando utopias emancipatórias e pragmáticas e criando mais instituições pós-racistas, pós-patriarcais e pós-capitalistas. A tradição histórica das utopias emancipatórias em todos os terrenos – educação, cuidado, cultura, organização social e política – é um recurso inestimável, e as formas atuais iniciadas por coletivos, movimentos feministas, antirracistas e anti-imperialistas nas Américas, na Ásia, no Caribe, na África e na Europa oferecem novos modelos e modos de constituir família e comunidade, estudar, cuidar, cultivar, criar, instituir. Não estamos indefesos/as. Longe disso.

    O museu universal como instituição colonial

    Para destrinchar o que esse programa exige, resolvi explorar um produto do Iluminismo europeu e da curiosidade científica que nasceu das expedições coloniais e das descobertas de continentes distantes: o museu universal. Pelo poder de sedução que exerce sobre o resto do mundo, esse modelo se tornou incontornável. Meu argumento inicial é que é impossível decolonizá-lo se essa decolonização não fizer parte de um programa que inclua a construção de um mundo pós-racista, pós-imperialista e pós-patriarcal – um objetivo que não será resultado de uma operação mágica, de um abalo natural ou de um acordo amigável. Em outras palavras, os programas institucionais que se declaram decoloniais são ou uma roupagem, ou uma tentativa de sequestrar a teoria e a prática decoloniais para neutralizá-las, ou então uma iniciativa fadada ao fracasso, se não levar em conta a precariedade das condições de trabalho na própria instituição, suas hierarquias raciais e de gênero, de capacitismo e de classe, a origem de seus acervos, o direito de propriedade que dá legitimidade à expropriação e as desigualdades estruturais entre grandes e pequenos museus universais, entre Norte e Sul. As noções de decolonização e decolonialismo – usadas a torto e a direito – merecem ser esclarecidas a cada menção. A meu ver, essas noções não implicam um continuum perfeito entre o sistema colonial e a época contemporânea: esse ponto de vista apagaria as lutas anticoloniais, o período das independências, o trabalho relacionado ao ônus da representação, as lutas feministas, autóctones, queer, racializadas, e as revoltas, insurreições e revoluções que aconteceram desde os textos de Fanon.² A colonização continua sendo atualizada pelos processos de acumulação por expropriação – monopolização de terras e mares, superexploração de corpos não brancos sob a proteção de grupos armados e transferência de riquezas, em nível global, sob o regime das leis de comércio ditadas pelo Ocidente. Como sugeriu Aimé Césaire, essa persistência do colonialismo poderia ser descrita como um efeito de retorno: o racismo estrutural colonial ressurge inevitavelmente para se introduzir no direito, na literatura, nas artes, na política e na mentalidade europeia. Não existe inocência branca; o conforto da vida na Europa foi construído sobre o extrativismo e a exploração do Sul global, o que acabou beneficiando também as classes populares. Por isso, embora seja inegável que os/as europeus/eias contribuíram para o pensamento de certa concepção liberal dos direitos, da revolução anticapitalista, dos feminismos materialistas e marxistas, do antifascismo e de certa tradição pacifista, não aderimos à convicção de que a Europa foi o continente que definiu os melhores modos de emancipação, os verdadeiros direitos humanos e das mulheres, enfim,

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