A Menina Que Conversava Com o Verão

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A menina que conversava com o Verão

Sally Nicholls
EU SOU MOLLY. MOLLY ALICE BROOKE NO REGISTRO DA
ESCOLA. SE VOCÊ É UMA AMIGA, OU ALGUÉM DA MINHA
FAMÍLIA, ENTÃO SOU MOLL TAMBÉM. SE VOCÊ É UM ADULTO
NA MINHA FAMÍLIA, O QUE, NO MOMENTO, É MUITO
COMPLICADO, ENTÃO SOU XODÓ, MOLLY-MÔ, CACHINHOS OU
DOCINHO. NA MINHA ESCOLA ANTIGA, EU ERA MOLLY-MOP. NO
NATAL, FUI UM ANJO E O DONO DE UM ALBERGUE.

NOMES SÃO IMPORTANTES. TODO MUNDO TEM, A NÃO SER


BEBÊS RECÉM—NASCIDOS, TALVEZ, VIRA-LATAS, OU AS
PESSOAS QUE SE ESQUECERAM QUEM ELAS SÃO. MESMO VIRA-
LATAS E PESSOAS COM AMNÉSIA POSSUEM NOMES. SÓ QUE
ESQUECERAM.

AGORA, O MEU HOMEM, ELE NÃO TINHA NOME NENHUM.


1
A estrada romana

Chove enquanto subimos a ladeira na volta da escola. Chuva repentina


e forte; começa e logo passa. Hannah põe a mochila na cabeça e pula entre
as poças.
– Em casa, nunca precisamos caminhar na chuva. Em casa tinha sempre
alguém para ir nos buscar. De carro.
– Ninguém viria de carro só para nos pegar no fim da rua – eu digo.
Hannah sempre acha que tem razão. Conversar com ela me dá a
sensação de discussões mal-acabadas, brigas que sei que deveria ter ganho.
Se mamãe e papai estivessem aqui não teriam vindo de carro, subindo uma
ladeirinha de nada só para não deixar a chuva nos molhar. Só nos pegavam
na escola porque era uma escola boba, muito longe de casa, do outro lado
da cidade.
– Além do que, tínhamos que esperar no clube da escola até um deles
sair do trabalho. E depois tínhamos que ir ao supermercado. E se
tivéssemos aulas de piano ou de ginástica, então comíamos no carro. Um
lanche pronto, numa caixa. E...
– Pelo menos um vinha – disse Hannah. – Um se importava.
Um quer dizer mamãe.
– Mas o Vô se importa – eu digo, mas não sei se Hannah me ouve. Ela é
um ano e meio mais velha que eu, mas parece que ocupa um milhão e
meio de vezes mais espaço.
As árvores nos jardins das casas, no topo da estrada, balançam como se
estivessem falando sobre nós duas. Só que árvores não falam. Olho para
elas por cima do ombro, as folhas inclinadas com o peso das gotas, e corro
atrás de Hannah.
Ela empurra a porta da lojinha do Vô. Para no meio do caminho e se
sacode, a água se espalhando sobre o pão e os biscoitos, deixando marcas
escuras nos jornais sobre a prateleira.
– Detesto este lugar! – diz ela, bem alto.
Entro, miudinha, atrás dela. Eu não detesto este lugar. A lojinha do Vô e
da Vó. É pequena, escura e com tudo misturado e sem ordem nenhuma.
Vende um montão de coisas que eu não vejo em um supermercado comum.
1 2
Vende bolos Eccles e mapas da Ordnance Survey , marmelada caseira,
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tudo ao lado de coisas de todo dia, como cereais Coco Pops e detergente
líquido. Tem um refrigerador com garrafas de leite com JONES e ENTLY
escrito com caneta de feltro, só para evitar que as pessoas levem para casa
a garrafa errada. Você também pode encomendar coisas exóticas – mangas
ou queijo ricota – se não se importar em esperar pela entrega, só que a
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maioria não espera, vai direto para o Tesc’s . Em um canto, tem uma
portinha com grade, onde era o correio e em outro canto tem cestas com
batatas e cebolas. Tudo tem um cheiro bom, amigo, pé no chão, um cheiro
só seu: jornais, água sanitária e terra.
A Vó está atrás do balcão, escrevendo em livros de contabilidade
enormes. Ela levanta os olhos e seu rosto fica tenso.
– Hannah Brooke! Tenha um pouco de juízo! Pare de pingar no meio do
corredor. Vamos – diz ela, quando Hannah não se move. – Suba e ponha
uma roupa seca no corpo.
Hannah bate o pé no chão.
– Não! – ela grita e seu rosto mostra sinais de que vai chorar. – Quero ir
para casa – diz ela, ridiculamente.
A Vó não compra a briga, como Mamãe teria feito, mas dá para ver que
ela está cheia de raiva. Ela sai de trás do balcão, põe a mão no ombro de
Hannah e a empurra pela porta para dentro da cozinha, onde o Vô amassa o
chá e assovia.
– Para o quarto – diz a Vó para ele. – Roupas limpas. Agora. – Vira-se e
volta para dentro da loja.
Hannah faz uma cara feia. O rosto está rosado e branco de frio e
manchado de azul da tinta escorrida da mochila molhada de chuva. Dá
para sentir a vontade de armar uma briga se inflando nela.
– Quero que você morra no meio de um campo!– Ela grita para a porta e
para as costas da Vó. E sobe os degraus correndo.
Eu e o Vô ficamos parados na cozinha. O Vô esfrega o rosto, do mesmo
jeito que papai faz. Respira fundo – posso ver sua barriga subindo, sob o
tecido xadrez desbotado da camisa. A camisa tem manchas feias amarelas
no colarinho e nos punhos. As camisas de papai são sempre engomadas e
brancas; é só abotoá-lo até o pescoço e lá vai ele, todo trancado, seguro e
indo a lugar nenhum. Mas meu Vô viveu uma guerra; assim, ele usa as
roupas até apodrecerem.
– Tudo bem, minha neta?
Digo sim com a cabeça.
– Você não quer que eu morra no meio de um campo, quer?
Digo não com a cabeça.
– Não preste atenção no que Hannah diz – eu aconselho. – Ela sempre
foi assim. Papai deveria ter deixado ela em um orfanato ou qualquer coisa
parecida, em vez de mandá-la para cá. Ela teria gostado disso, eu imagino
– continuo, cheia de virtude –, já que ela não quer morar aqui.
O Vô chega perto e toca no meu ombro.
– Não, não – diz ele, de uma maneira casual. – Ninguém vai botar
ninguém no orfanato.
E por que não? Já que papai nos trouxe para cá, ele poderia nos ter
levado para qualquer outro lugar.
Passo pela porta de trás da lojinha até o corredor e subo a escada. A
lojinha faz parte da casa do Vô e da Vó; assim, os cômodos são meio
bagunçados: a cozinha fica embaixo, ao lado da sala de estoque, mas a sala
de estar fica lá em cima. À noite, quando estou na cama, o brilho da
televisão faísca sobre a parede do corredor de cima e as risadas dos
programas se misturam aos meus sonhos. Tudo aqui é mais escuro e mais
velho. Nada combina com nada. O sofá antigo da nossa casa de Newcastle
fica ao lado da poltrona vermelha de encosto alto com pés de leão. Numa
estante de madeira escura, com vidro nas portas, dividem o espaço um
volume de culinária de Delia Smith, um Dick Francis e livros antigos de
capa de tecido com letras douradas e prateadas na lombada.
O meu quarto aqui era o da Tia Meg, quando ela tinha a minha idade.
Tem um papel de parede horrível amarelo com um quadro de gente grande
pintado com uma árvore e, em um canto, uma pia amarelada que não
funciona. Algumas coisas minhas estão aqui – meu antigo ursinho
Humphrey, meus melhores livros, meus pincéis e tintas. O resto, que é
quase tudo, ainda está em casa, porque não vamos ficar aqui para sempre;
só até papai se ajeitar. Quem sabe quando?
Tiro minhas roupas secas do armário – jeans e meu macio suéter
amarelo – mas não visto. Abraço a roupa e fico parada em frente à janela
olhando o jardim. A chuva faz ta-ra-ta-tá no telhado e escorre pelo vidro
da janela. As árvores urram com o vento entre elas, como se agora
brigassem, em vez de apenas conversarem.
“Escute!” – diria mamãe, se ela estivesse aqui agora. “Esta é uma
dessas noites com o capeta dentro dela.”
E não seria uma coisa ruim – o capeta dentro da noite –, seria, sim, uma
coisa excitante. Mamãe adorava tempestades de trovões e chuva. Se
estivesse aqui agora, vamos dizer, se estivéssemos passando uns dias com
a Vó e o Vô, um feriado ou coisa assim, todo mundo estaria lá fora a pisar
nas poças. Quem sabe até a Hannah, também.
Ainda não escureceu, mas dá para sentir que a noite não vai ter muita
graça. O céu está cheio de ódio e as árvores estão urrando como se prontas
a matar alguém. Parada sozinha em frente à janela, eu quase acredito que o
capeta está dentro da chuva.
E dentro, a casa está pronta para brigar, também. Escuto a Hannah no
quarto ao lado, chorando. Escuto a Vó lá embaixo, sua voz alta e cheia de
raiva, e o Vô tentando apaziguá-la.
Ponho a roupa e deito na cama, cobrindo a cabeça com o cobertor e a
colcha de retalhos antiquada. Pego meu livro e começo a ler, tentando não
prestar atenção à solidão que é se sentir sozinha numa casa cheia de
barulho. Estou lendo o Three Cheers, Secret Seven, que é o oitavo livro da
série. Quando terminar esse, só vou ter mais seis e, então, terei lido todos
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os Famous Five e os Secret Seven que existem .
Lá fora, a chuva enfraquece, e começa a escurecer.
– Molly? Está aí?
Hannah está parada na porta, ainda com as roupas molhadas. Duas
manchas escuras aparecem nos ombros dela, marcas da água que escorreu
de seus cabelos, molhando seu suéter.
– Vamos – diz ela. – Rápido, antes que eles descubram.
– Vamos aonde?
– Shhh. – Hannah pega meu braço e me puxa para a beira da cama. –
Vamos para casa. Vamos fugir.
Fico tão surpresa com isso que, por um instante, apenas pisco os olhos
para ela. Porque isso é algo muito mais parecido com o que eu faria do que
ela. Li tantos livros sobre gente que foge. Hannah lê apenas revistas como
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a Girl Talk ou a Top of the Pops . Ela não tem idéia do que fazer numa
situação dessas.
– Hei, pare de me puxar, Hannah. Precisamos preparar uma mochila.
Sacos de dormir, comida, um canivete, pasta de dente...
– Para onde acha que vamos? – diz Hannah. – Para o Ártico? Não
precisamos de nada disso. A gente apenas caminha até Hexham e pega o
trem.
Tem um mapa enorme de condado de Northumberland no topo da
escada. Hannah e eu contamos os quilômetros na antiga estrada romana.
– Onze, doze, treze, quatorze. Quatorze quilômetros! Podemos caminhar
isso! Vamos!
Ela me arrasta pela escada. Quero protestar, mas não quero que a Vó
escute. Hoje não é uma noite para fuga. Lá fora, a noite está escura e
furiosa.
– Não podemos caminhar quatorze quilômetros – eu digo. – Hannah, vai
levar uma eternidade. São muitos quilômetros. Por que não deixamos para
ir amanhã de manhã?
– Vamos fugir agora – diz Hannah.
Ela me puxa pelo braço e eu quase caio.
– E o Vô? Hanaah? O que será que vai fazer quando descobrir que
fugimos?
– Quem se importa? – retruca Hannah. Ela solta minha manga e começa
a procurar seu casaco no armário. Ouço o rádio tocando na cozinha e o
chiado da gordura das lingüiças que o Vô está fritando.
– Hannah?
– Que foi?
– E papai?
Hannah para, um braço já dentro do casaco.
– Que tem papai?
– Será que ele não vai nos mandar de volta para cá?
Silêncio. Olho para Hannah. Ela está parada, completamente quieta, o
casaco pendurado em um braço.
– Não me importo com o que papai vai fazer. E não me importo com o
que ele tiver para dizer. Não vou ficar aqui nem mais um minuto. – E ela
abre a porta e o vento molhado invade o pórtico, e corre para o escuro da
noite.
Hesito por um momento, mas logo corro atrás dela.
Na rua, o ar está frio e molhado, cheio do aroma dos pingos gelados da
chuva. O vento sopra e empurra o capuz do meu suéter contra a minha
nuca. Meu casaco ficou pendurado no cabide e atrás de mim a porta bate e
se tranca. Estamos fora e não podemos voltar.
– Hannah! – eu grito. – Hannah! Espere por mim!
Alguém responde, mas não sei de qual direção. À minha esquerda, a
estrada se curva pelos campos na direção da charneca. À minha direita, a
estrada segue para o vilarejo, faz uma curva ao longo da praça e passa pela
ponte de pedra em arco, passa a igreja, a escola e o pequeno pub com a
placa que balança, escrito Full Moon, com o desenho de um homem na lua.
Será que é para o lado direito passando pelo vilarejo que se chega a
Hexham? Hannah saberia, mas eu não sei. Resolvo ir para o lado esquerdo,
me afastando do vilarejo.
Está escuro. Muito mais escuro do que ficava onde eu morava.
Nenhum poste. Nenhuma lanterna. Tenho que sentir cada passo, os braços
abertos, prontos, caso tropece; mal vejo para onde estou indo. Piso no
meio de uma poça.
– Hanaah!
Abaixo a cabeça, aperto os olhos contra a chuva e vou tropeçando pela
estrada. O vento açoita as árvores e joga com violência os pingos de chuva
no meu rosto. Tropeço de novo e quase caio. É o capeta na noite – o capeta
na tempestade. O capeta nas árvores. Paro de caminhar. Não quero ir para
Hexham sozinha. Não sei nem como chegar lá. Para falar a verdade,
quanto mais eu ando, mais convencida fico de que Hannah seguiu para o
lado contrário.
Ou talvez tenha voltado para a casa do Vô e me deixado aqui sozinha.
Está tão escuro e tão chuvoso que fica difícil saber quanto andei. A lua
brilha no céu; brilho de um polegar entre as nuvens escuras e rápidas. A
estrada fica mais estreita, as árvores e as beiras altas ficam mais perto. As
árvores esticam seus galhos longos como dedos, uivando sobre a minha
cabeça.
– Não estou com medo – eu digo bem alto.
Porque agora ouço alguma coisa se aproximar. Alguém. Passos. Passos
de alguém correndo, se aproximando de mim. Meu coração pula. Quem
poderia estar aqui fora numa noite selvagem como esta? Sozinho, sem
uma lanterna? É o capeta – sei que é. Viro-me e subo aos trancos no
barranco ao lado da estrada, escorregando e quase caindo na lama. Não vai
dar tempo. Vou estar no meio da estrada quando ele chegar. Respiro em
fôlegos sôfregos e acho que vou começar a chorar. Tem algo sinistro nas
passadas rápidas – ruídos negros na noite escura – que faz meu coração
parar de bater. Mas agora estou quase alcançando a cerca viva. Agarro um
galho de espinheiro, os espinhos se pregam no meu suéter e nos meus
dedos. Seguro a respiração.
E então ele aparece. Uma forma escura, inclinada e correndo. É um
homem, baixo e forte. Está tão perto que ouço sua respiração estancar na
garganta.
E ele passa, continuando pela estrada abaixo, se aproximando do
vilarejo. Só então me dou conta de outros barulhos – uma corneta, depois
outra corneta, e mais uma. Aproximam-se. Cavalos. Cães latindo, uivando.
É assim que latem cães em meio a uma caçada, quando farejam sua presa.
O homem que corre também ouviu. E olha para trás. Seu rosto é branco
no meio da escuridão, e molhado de chuva. Ele não usa sapatos, nem
camisa. Posso ver seu peito arfando. Posso sentir agora quanto ele está
amedrontado. Quem é ele? Quem o persegue?
E então chegam os cães. Passam por mim cheios de fúria e o atacam.
São enormes, mais lobos do que cães. Ele cai, levantando os braços para
proteger o rosto. E agora chegam também os caçadores, formas escuras em
cavalos grandes. O caçador líder para e ergue a cabeça, e eu preciso cerrar
os dentes para suprimir o grito. Ele tem chifres entre os cabelos, esgalhas
longas saindo dos lados de sua cabeça. Escondo-me ainda mais dentro do
arbusto até os galhos espetarem minhas costas e os espinhos rasgarem meu
suéter. Não me veja. Não me veja. Não veja.
O líder caçador se empina sobre o seu cavalo alto. Levanta a corneta
negra de caçador para os lábios e sopra uma nota clara e única. Eu aperto
os olhos bem fechados e... eles desaparecem.

*
Não movo um músculo. Fico de olhos fechados. Ainda sinto o cheiro
dos cavalos e dos caçadores, mas os barulhos se foram. Tudo o que escuto
é meu coração e a cadência rápida e chorosa de minha respiração, ar
entrando-e-saindo-entrando-e-saindo. E a chuva. Eles ainda devem estar
aqui, devem, devem estar...
Ouço um ruído. Um ruído minúsculo, alguma coisa se mexendo, uma
pedrinha rolando. Abro os olhos. A estrada está vazia. Os cavalos, o
homem, os cães –, todos foram embora. Mas alguma coisa ainda está aqui,
se arrastando na estrada.
Os arbustos de espinheiro não foram feitos para se segurar. Têm muitos
espinhos e não têm galhos suficientes. Eu me mexo e rolo de novo para a
estrada, enlameando as pernas e as costas. Ao tentar me equilibrar, acabo
caindo para a frente sobre alguma coisa. Algo – alguém morno.
Grito. Grito e grito e mãos se aproximam e seguram meus ombros,
mãos mornas, vivas.
– Sssh. Sssh. Ssssh.
A voz é forte e baixa em meio à chuva. Arrasto-me para trás,
aterrorizada, e as mãos me soltam.
– Ninguém vai machucar você. Ssssh.
Não é o caçador. É o outro. O homem caçado.
De repente, começo a chorar, um choro engasgado, com soluços que
me sacodem inteira. O homem caçado se senta e me olha. Posso ver
através da escuridão que ele é jovem, que seu rosto está molhado com suor
e chuva, que ele tem cabelos com cachos.
– Pronto – diz ele com sua voz baixa. – Ninguém se machucou, ninguém
vai machucá-la.
– Você está machucado – eu digo.
E ele está. Suas pernas foram mordidas pelos cães-lobos. O sangue
escuro escorre e ensopa o tecido rústico de suas calças, chuva, tecido e
sangue. Os soluços começam a me sacudir de novo e eu olho para longe.
– Ninguém está machucado – diz ele de novo. Ele olha para mim. –
Você está longe de casa? – respondo que não com a cabeça. – Então vá
para casa. Não deveria estar longe de casa de noite. Sua mãe não lhe disse
isso?
– Minha mãe morreu – eu digo, e começo a chorar de novo.
Ouço um barulho na estrada, arbustos se partindo. Fico tensa, apertando
a barriga para segurar as lágrimas. O homem agarra meu braço e funga o
ar como um animal pressentindo perigo.
Um farfalhar nos arbustos, e um pássaro levanta voo; um corvo, eu
penso, as asas batendo avidamente e desaparece. O homem solta aos
poucos meu braço e eu começo a soluçar, pressentindo como devo parecer
boba, lágrimas e ranho escorrendo pelo rosto coberto de lama.
O homem caçado se inclina para mim.
– Vá para casa – diz ele de novo, só que agora com mais urgência. –
Você quer que o caçador selvagem lhe encontre?
Estou tão assustada que não respondo. Ele segura meu braço.
– Vá para casa. Vá segura. Mas vá agora.
Só nós dois ali no escuro, apenas nós dois no mundo inteiro. Não quero
deixá-lo, mas também não quero ficar ali. Levanto-me de qualquer jeito e
desço a estrada para casa.
2
O homem de lugar nenhum

Não ando muito, quando vejo a luz de uma lanterna e ouço uma voz
chamando.
– Molly! Molly!
– Vó!
Corro até ela.
– Molly!
Ela me abraça, depois me empurra e me sacode; não com força, mas o
suficiente para me deixar chocada.
– Por que você fugiu desse jeito? Será que já não temos o suficiente
com que nos preocupar?
– Mas eu não...
Começo a dizer e começo a chorar, tudo ao mesmo tempo. E a Vó me
abraça.
– Pronto, pronto. Shhh. Não chore. A vovó encontrou você.
Mas eu me lembro.
– Vovó! Tem um homem.
Ela me olha de frente.
– Um homem?
– Ele está machucado. Olhe.
Sei exatamente onde ele está, perto do arbusto de espinheiro.
A Vó põe a luz da lanterna na direção que estou apontando. Só vemos a
estrada vazia.
– Você não está inventando histórias de novo, Molly?
– Não! Olhe! Venha que vou lhe mostrar!
Eu puxo ela para perto.
– Molly, se acalme. Devagar. Onde está ele?
– Aqui!
Agarro a mão dela e direciono a luz da lanterna. Ali está o arbusto de
espinheiro e as marcas na lama quando caí do barranco, mas nenhum
homem. Corro tentando ver para onde ele foi.
– Ei! – eu chamo. – Cadê você?
– Moll – diz minha vó. – Molly! Volte aqui. Volte e conte o que está
acontecendo.
Corro de volta para perto dela.
– Tinha um homem, um homem estranho, sem sapatos e sem camisa,
correndo pela estrada e então apareceu uma caçada do nada, uma caçada
de verdade, com cães – lobos na verdade – e um homem com chifres que
cresciam dos lados de sua cabeça. E os lobos atacaram ele e eles teriam
me atacado também, só que fiquei escondida. Mas então eles
desapareceram, os caçadores e todo mundo, a não ser ele, e ele conversou
comigo e me disse para ir bem e ir segura e ir agora, então eu fui e então...
– E então ele desapareceu – diz a Vó – ou virou um bule de chá?
– Sim – eu digo. – Quero dizer, não. Ele apenas desapareceu. Mas
estava aqui! Olhe!
Arranco a lanterna das mãos dela e ilumino o canto da estrada onde ele
estava.
– O que estou olhando? – diz a Vó, irritada.
– Aqui! Não, aqui. Não, espere, foi aqui em algum lugar, eu sei – puxo
ela para mais perto. – Ali! Olhe, é sangue! Foi aqui que ele estava!
Fica difícil, na escuridão, dizer onde acaba a chuva e a lama e
começam as manchas de sangue. A Vó olha para baixo com seus olhos
míopes.
– Pode ser – diz ela, finalmente. – Pode ter sido uma raposa por aí
matando coelhos. Vamos para casa agora, Moll. Não tenho mais idade para
fica ensopada assim.
– Mas o homem – eu digo. – Ele está machucado!
– Se ele não está mais aqui – diz a Vó –, então não pode estar tão
machucado assim. E se tiver juízo, já deve ter ido para casa também. De
qualquer forma, vamos para casa e contar ao Vô e para a Hannah que já
encontrei você.
Então a Hannah acabou voltando. Devia ter sabido que ela não teria
fugido. Sinto-me traída, de repente, da minha aventura e do meu momento
de ser aquela com bom senso. Agora sou a menorzinha, fazendo a coisa
errada de novo.
Vovó me dá a mão.
– Você acha que estou inventando, não acha? – pergunto a ela. Eu
costumava inventar histórias, quando era pequena, mas não faço mais isso.
– Eu? Tenho coisas muito mais importantes para me preocupar.
O que não quer dizer que ela realmente acredite em mim.
3
Pensamentos noturnos

O Vô está subindo a estrada quando nos vê.


– Molly-mô – diz ele. – O que aconteceu? Ela...
– Ela está bem – diz vovó, antes que eu possa responder. – Mas poderia
ficar melhor com um banho de banheira; olhe só para ela.
O Vô me leva para o banheiro sem dizer mais nada. Enche a banheira.
Depois me põe na cama, no meu quartinho estreito, com um prato de
lingüiças frias e batatas amarelas e duras. Senta na cama ao meu lado e
espera até eu terminar de comer. As cortinas foram fechadas e escondem a
noite, mas eu também não quero olhar. Não gosto de pensar sobre o que
ainda está lá fora.
– Logo arrumamos suas coisas – diz Vovô. – Pegamos uns quadros de
seu quarto e penduramos aqui e pronto, não é?
– Hummm – respondo. Papai prometeu que ficaríamos aqui por apenas
uma visita. Colocar quadros na parede dá a impressão de que vamos ficar
para sempre.
– Seu pai vem no sábado – diz Vovô. – Que bom, não é?
– É.
– Bom, então. Ele afaga minha mão, constrangido. – Você me diria, não
é, se houvesse alguma coisa lhe incomodando, Molly-mô? Hannah, a
escola... ou outra coisa qualquer?
– Hummm – respondo, de novo. Me aconchego na cama. Vovô suspira.
– Está bem. – Ele se levanta e me dá um beijo na testa. – Durma bem,
meu amor.
Depois que ele vai, eu fico deitada de costas, olhando para o teto. Sobre
minha cabeça, a chuva bate no telhado. Lembro do homem caçado, sua voz
na escuridão, dizendo: “Ninguém se machucou, ninguém vai machucá-la.”
Fico imaginando onde estaria ele agora. Se achou um lugar seco para
dormir, ou em vez disso, o caçador o encontrou.
E me lembro de suas mãos me segurando, de como eram delicadas.
Lembro a gentileza na sua voz, dizendo. “Shhh. Ninguém vai machucá-la.
Shhh.”
4
O mundo de acordo com os livros

Só tem uma coisa neste quarto de que eu gosto: o parapeito da janela. É


grande e largo e, se eu me sentar nele com um livro e fechar as cortinas
nas minhas costas, posso fingir que estou em um lugar secreto e ninguém
no mundo vai me descobrir.
Sempre fui doida por ler. E tenho lido muito mais desde que viemos
para cá e paramos de ter aulas de teatro, de ginástica e de piano o tempo
todo. Tem uma estante cheia de livros no corredor, livros que eram de
papai e da tia Meg quando crianças. Realmente antigos, capa dura, como o
Peter Pan e o Swallows and Amazons, de Arthur Ransome, que é um livro
sobre crianças aventureiras e vários livros sobre escoteiras. Já conheço
quase todos, porque sempre os leio quando venho visitar meus avós.
Gostaria de viver dentro de um livro. O mundo funciona melhor dentro
de um livro. Se você vai a um piquenique, o sol sempre brilha. Se alguma
coisa é roubada, você pode desvendar o crime apenas pensando muito. Se
alguém está para morrer, basta ligar que a emergência salvará a pessoa. É
sempre óbvio quem é bom e quem é mau e as crianças podem acampar em
lugares desertos ou ir ao Polo Norte ou podem ser detetives de fama
mundial com apenas dez anos de idade.
Tudo é muito mais simples nos livros. Nos livros, pais perdidos
sempre voltam do mundo dos mortos e quem é mau sempre acaba
derrotado. O sol sempre brilha no seu aniversário e as coisas acabam bem
no final.
5
Um rosto assim

– Você está inventando – diz Hannah.


Estamos descendo a rua a caminho da escola.
– Você sempre diz isso. Por que sempre diz isso? Ele era de verdade.
Ele estava lá sim.
– Porque é sempre inventado. Tudo o que você diz que viu. É isso ou
você está ficando louca. – Ela me olha cheia de dúvida. – Você está
ouvindo vozes? Elas lhe dizem o que fazer? Mate a Vó, Molly, Mate
eeeela...
– Cale a boca. – Levanto a mochila sobre os ombros. – Se não fosse por
você, eu não estaria lá. Por que voltou para a casa do Vô e me deixou
sozinha, hein?
– Não teríamos conseguido chegar à casa do papai, você sabe – diz
Hannah, com sua voz de irmã mais velha, como se tivesse sido tudo minha
idéia. Ela corre para a escola antes que eu tenha tempo de responder, e eu
sigo atrás.
Como dá para saber se alguma coisa é real? Sombras na parede, ruídos
na noite, formas que se movem e que podem ser tanto ratos como
homenzinhos, ou, simplesmente, a imaginação. O homem da noite passada
parecia real. Mas sonhos também parecem reais. Sonhos são reais?
– Vamos! – grita Hannah na minha frente.

Nossa escola é pequena – um prédio quadrado de tijolos com um


parquinho do tamanho de um selo e um campinho mal cuidado do outro
lado da rua. Só tem uma sala de aula e uma mesa redonda para todo mundo
sentar. Tem apenas uma classe com oito alunos.
Estamos atrasadas. Os outros já estão lá dentro. Sascha – que tem seis
anos – está parada na frente da gaiola de um hamster, chorando.
– Eu só queria passar a mão no pelo dele!
Todo mundo está olhando para Josh e Matthew, que estão deitados de
barriga, embaixo da Mesa da Natureza, gritando:
– Estou vendo ele!
– Não deixe ele escapar!
Josh e Matthew são como Hannah. Eles ocupam um espaço enorme. São
irmãos. Estão sempre com Alexander, que está inclinado sobre a mesa,
também gritando.
– Não – assim não! Tente encurralá-lo...
Alexander é um pouco gordinho. Seu blusão da escola está torcido em
um ombro e já tem uma mancha de suco de laranja no peito. Seus pais
trabalham para a Universidade de Northumbria. Ele é daqueles meninos
que sabem mais do que devem sobre os romanos.
– Não, olhe...
Josh e Matthew o ignoram. Somente Oliver, que tem quatro anos e é o
menor de todos na escola, se vira e olha para ele; o rostinho rosado, os
olhos castanhos e uma boca molhada e vermelha mordendo o punho de seu
suéter.
E só resta Emily. Emily não está caçando o hamster. Emily tem cabelos
loiros e olhos azuis. E sapatos brilhantes prateados. Emily está perto da
bandeja de água, olhando para fora da janela.
Do lado de fora, o céu está cinza.
Vai chover de novo.
– Então! – exclama Mrs Angus, que chegou da cozinha. – Joshua
Haltwhistle, saia de baixo da mesa neste instante! Quero dizer, agora
mesmo!
– Peguei!
Josh desliza de debaixo da mesa com as mãos em bojo, os cabelos
cobertos com pedacinhos de cogumelos da Mesa da Natureza.
– E o que pensa que está fazendo? – pergunta Mrs Angus para Josh, que
parece indignado.
– Estamos ajudando, Miss! Sascha deixou o hamster escapar!
Mrs Angus o ignora. Mrs Angus é a assistente de professora, mas é
muito dura.
Sascha chora mais alto, pressentindo o apuro. Sinto uma mão no meu
ombro. Olho e vejo Miss Shelley parada atrás de mim na porta,
observando.
– Eu creio que hoje é um bom dia para uma excursão, vocês não acham?

Nunca soube que havia escolas tão pequenas como esta. E esta então é
muito mais confusa do que a minha escola antiga. Estudamos muito mais
Arte do que Matemática. Além disso, fazemos um monte de excursões.
Hoje, vamos à igreja.
No pórtico, Miss Shelley entrega a todo mundo uma prancheta e pede
que façamos um desenho.
– Achem algo que fale a vocês e façam alguma coisa com isso. Os
meninos abrem a boca para discutir, mas ela não deixa. – Se não
descobrirem nada excitante, então podem fazer esquetes de cobre. Todo
mundo precisa de mais lápides roxas. Agora vão! Vão! Os lápis de cera
estão na caixa.
Miss Shelley é bem jovem. Tem cabelos loiros e usa saias longas e
pretas que farfalham quando caminha. Ela parece uma bruxa. Uma bruxa
boa, que faz poções para o bem, usando flores e árvores. Ela é linda.
Ela gosta de coisas que falam a você. Eu não me importo. Gosto da
igreja. É escura e fechada e tem o cheiro de poeira pisada e pedra antiga.
Fico imaginando se papai e tia Meg estiveram aqui com sua escola e
desenharam alguma coisa que “falou” a eles.
Os meninos caminham pelo corredor do meio.
– Olha! Homem morto!
– É uma estátua!
É Josh e Matthew. Hannah olha zangada para eles pelas costas.
– Bobo – diz ela, mas é ignorada. Ela não procura algo para desenhar.
Fica parada na frente de outra estátua, observando os meninos.
Sigo atrás deles no corredor do meio, passando meus dedos na madeira
dos bancos. Eles têm pequenas portas talhadas com folhas de hera na
madeira escura.
No meio da igreja encontram-se duas colunas de pedra. No topo de cada
uma tem um rosto esculpido em pedra. Um homem. Ele tem olhos grandes
e um rosto longo e largo. Tem folhas que saem de seu rosto e cabelos.
Parece inteligente e selvagem, como um deus antigo ou um duende de
conto de fadas. Não parece do tipo que se possa achar numa igreja.
É o homem caçado.
Paro e fico olhando. O homem da noite passada não tinha folhas, mas
tinha os mesmos olhos, o mesmo nariz; a mesma curvatura arredondada
sobre as faces. É definitivamente ele.
– Este é o meu homem!
Estou tão surpresa que digo isso em voz alta. Os meninos param de
deslizar nas estátuas de pedra e olham para mim. Olho para Miss Shelley.
– Aquele homem! Foi ele que eu vi ontem à noite, sendo caçado.
– Ele estava no meio de uma coluna? – pergunta Josh. Matthew dá uma
risadinha de desprezo.
– Ele tinha folhas saindo do nariz?
– Claro que não!
Emily se aproxima agora e me observa com seus olhos calmos.
– Ele estava fugindo, ontem à noite!
– Você não pode tê-lo visto ontem à noite – diz Josh. – Este cara já está
ali faz muitos anos. Ele deve ter, vamos ver, pelo menos mil anos. Seria
um fantasma.
Quero dar um murro nele.
– Quem é você para saber, Josh Haltwhistle? Você estava lá? Como
pode saber quem ele é?
– Ele é o Homem Verde – diz Miss Shelley.
Ela está parada no corredor, a saia preta balançando e mesclando-se à
sua sombra; então, não se sabe onde uma começa e a outra termina. Os
meninos ficam quietos. Até Hannah fica curiosa.
– Ele é da Bíblia? – pergunta Alexander, meio em dúvida.
Miss Shelley ri. A magia se quebra.
– Não exatamente – responde ela. – Homem Verde é o nome para um
rosto assim – feito de folhas ou com folhas ao redor. Ele aparece em
igrejas antigas e em lápides. Ninguém sabe por quê.
– Lápides? – pergunto.
– Sim – diz ela. – O Homem Verde está ligado ao ciclo de morte e
renascimento. Ele é colocado em túmulos como símbolo de esperança.
– Mas as pessoas não renascem, miss – diz Alexander.
– Não freqüentemente – diz Miss Shelley. Ela parece tão linda ali, que
eu fico toda encantada. – Vejam, o Homem Verde é um deus antigo – de
um tempo antes que a maioria das pessoas pudesse ler e escrever. Por isso,
não sabemos nada sobre ele. As pessoas acham, porém, que ele deve ter
sido o deus do verão – ou da primavera. Compreenderam?
– Entendi – eu digo. Atrás dela. Emily pende a cabeça para um lado,
atenta.
– Então – continua Miss Shelley –, imaginem que ele seja como um ano.
Nasce na primavera, cresce com todos os seus poderes no verão, fica fraco
no outono e morre no inverno. Por isso, você tem o período do ano em que
nada cresce. A terra está morta. Mas uma coisa maravilhosa acontece. A
primavera vem de novo e o mundo renasce.
Ela fala como se isso fosse uma coisa maravilhosa. Um homem sendo
destruído pelos lobos, maravilhoso! Não consigo imaginar algo mais
horrível. E para isso acontecer ano após ano, enquanto o mundo girar. Meu
pobre homem caçado.
– Isso é horrível! – eu digo. – Por que ninguém faz nada para parar isso?
Ninguém pode parar isso? E ele nasce de novo como a mesma pessoa?
Hannah diz:
– É uma lenda, Molly.
Atrás dela, Josh dá risada cobrindo a boca com a mão. Miss Shelley
sacode a cabeça.
– Nunca se deve rir de coisas que não se compreende – diz ela. – Se não
tiver cuidado, elas podem acabar rindo de você.

Quando os outros se espalharam, me sentei em um dos bancos, fechei a


portinha e fiquei com os pés no banco e a prancheta nos joelhos. Desenhei
o homem da coluna. Ele tinha um corpo de galhos e as mãos de folhas.
Tinha olhos grandes, mas não tinha boca.
Desenhei homens sobre cavalos com cães e cornetas. O maior era Josh e
o segundo maior, Matthew. Eles tinham sorrisos vermelhos e espadas com
sangue pingando. Estavam perseguindo o homem feito de folhas. Uma
menina com cabelos claros e sapatos brilhantes observava. Ela poderia ser
Emily, mas poderia ser outra pessoa. Ela não incentiva e também não
chora.
– Muito bonito, Molly! – diz Mrs Angus, quando passa pelo banco.
6
Emily

Se eu pudesse ser qualquer um no mundo, incluindo uma estrela pop, ou


7
a Rainha da Inglaterra, eu seria a Emily . Emily usa um diadema rosa com
estrelas e um par de elásticos na forma de unicórnios, tem uma mãe, um
pai e um irmãozinho que moram todos juntos numa fazenda. Tudo ela
combina, coisa que nunca acontece se você mora com seu avô e metade
das suas coisas está em Newcastle.
– Emily – Hannah diz – é um tédio, a pessoa mais sem graça que já
conheci. A mais sem graça em toda a Inglaterra. No mundo inteiro!
Só que Hannah está errada. É verdade que Emily não fala muito. Ela
quase nunca fala na sala de aula e no recreio fica sentada no banco só
olhando, ou deixa o Josh mandar nela.
Ela pode não falar muito, mas pensar, ela pensa. Às vezes, na aula, ela
parece que vai dizer algo, ou olha para Miss Shelley como se estivesse
escutando, pensando ou imaginando. Tento mostrar que eu também estou
pensando e imaginando, mas não sei se ela me entende. Não sei se eu sou o
tipo de pessoa com quem alguém como a Emily faria amizade. Não sou
pequena, nem loira – tenho cabelos curtos, pretos e cacheados, que estão
sempre fazendo nós, e olhos tão escuros que são quase pretos.
– Você é minha cigana feiticeirazinha – diz meu Vô, o que é legal, mas
não significa nada além das fronteiras do país de meu Vô.
7
Subindo a estrada

Depois da aula, subo a rua na minha bicicleta, brincando.


Brincar aqui não é a mesma coisa que em casa. Em casa, eu vou e
chamo minha melhor amiga Katy, ou minha segunda melhor amiga, Chloe,
e vamos jogar peteca na rua, ou fazemos uma cabana no jardim da casa da
Chloe, ou jogamos no computador da Katy ou qualquer coisa assim.
Na casa do Vô não tem ninguém, só a Hannah, e quase nunca brincamos
juntas em casa. Aqui, tudo o que fazemos é brigar e quase fugimos. Assim,
hoje estou sozinha.
Pego a bicicleta e primeiro desço a ladeira; três vezes, para dar sorte.
Depois pedalo ladeira acima, do lado contrário, para longe do vilarejo, na
mesma direção que fui na noite passada.
Quando chego perto do lugar com os arbustos de espinheiro, paro. Tem
manchas escuras na grama que a chuva não lavou. Fico arrepiada, mas
sinto alívio, também.
– Está vendo! – digo para um Josh imaginário –, ele era real.
O Josh imaginário fica impressionado.
Muito cuidadosamente, olho para a sujeira de novo. Ele estava deitado
em um tipo de buraco, que se encheu de água da chuva, só que a água está
manchada com pingos de algo vermelho escuro quase preto e pegajoso,
como tinta. As manchas não estão apenas onde o meu estranho estava
deitado. Tem muito mais manchas no barranco ao lado da estrada. É uma
trilha, como as migalhas no conto João e Maria. Lá vão eles, pingo aqui,
pingo ali, pingo para a direita, passando pela placa que diz
PROPRIEDADE PRIVADA e continuando numa trilha onde nunca passei
antes.
Desço da bicicleta e olho para a placa. PRIVADO quer dizer PERIGO e
NÃO ENTRE e INVASORES SERÃO PROCESSADOS.
Mas quero encontrar o homem de novo. Quero provar ao Josh, à Hannah
e à Vó que eles estão errados. Quero saber, com certeza, que ele não foi
invenção minha, porque, às vezes, invento coisas e, às vezes, esqueço o
que é real e o que não é. Como inventar que a casa está pegando fogo, até
que chego a ver a fumaça passando por baixo da porta do meu quarto.
Além disso, quero saber quem são os caçadores e como podem ter
desaparecido no meio do nada, e por que o meu homem tem seu rosto
esculpido numa coluna de igreja.
Faço uma careta feia para a placa: a testa enrugada, os lábios cerrados,
as sobrancelhas arcadas. Não me importa se ficar em apuros. Passar por
um campo que pertence a alguém não é tão ruim quanto abandonar suas
filhas, e foi isso que papai fez com a gente. E não foi punido, logo...
Esta parte do caminho tem uma cobertura de árvores que crescem de
cada lado. Parece um túnel vivo, cheio de ferrugem. As folhas estão
começando a ficar vermelhas nas beiradas e farfalham acima de mim; as
árvores passam segredos, uma para as outras. O sangue ainda é aparente
aqui, também. Se os caçadores voltaram de onde desapareceram, aposto
que levaria apenas cinco segundos para aqueles lobos farejarem a sua caça.
Mas será que eles conseguiriam pular um portão? Porque tem um no
caminho, com um campo cheio de vacas, o chão batido e a lama com
marcas das patas das vacas voltando para a ordenha. O portão está
fechado, mas lá, no campo, tem uma pequena casa de pedra, com um
telhado arruinado. É uma cabana para os cortadores de madeira. Ou a
cabana de uma bruxa. É exatamente o tipo de lugar em que alguém pode se
esconder se outros estiverem tentando machucá-lo.
Subo no portão e pulo para o outro lado. Meus sapatos da escola estão
cheios de lama, como, também, minhas meias e minhas pernas.
Continuo andando. A casa não é exatamente uma casa. É um celeiro.
Tem uma porta antiga de celeiro, com duas partes, a de cima que abre com
um ferrolho diferente, para que os cavalos (ou as vacas) possam olhar. A
madeira está carcomida e a parte de cima da porta não existe mais.
Olho para dentro através da porta estragada. Tem uma pilha de madeira
e uns sacos de cimento, cinzas no lugar em que alguém acendeu uma
fogueira, mas, no resto, está vazio. Metade do telhado já ruiu.
Não tem ninguém dentro. Não sei se estou aliviada ou decepcionada.
– Olá? – eu digo. – Olá? Sou eu. Molly. É Molly.
Ninguém responde.
– Por favor – eu digo para a pilha de madeira e para o céu. – Por favor,
esteja aqui. Por favor, não esteja morto.
E então, uma forma escura contra a parede se move.
– Estou aqui – diz ele.
8
Um homem no celeiro

Ele não está morto. Está encostado na parede, com as pernas abertas.
Não parecem estar sangrando, mas é difícil dizer porque ele está deitado
na parte sombreada, a parte ainda coberta pelo telhado. Estou na parte com
o sol, que tem apenas um buraco entre as vigas, com as nuvens e o céu.
Seu rosto está escondido nas sombras. O que posso ver claramente é a sola
de um pé descalço, que está esticado na minha direção; branco e duro,
coberto de lama.
De repente, me faltam as palavras.
– Você chegou em casa bem? Eles não encontraram você?
Confirmo com a cabeça.
– Então, está tudo bem – diz ele, e inclina a cabeça para um lado,
fazendo careta, como se aquele movimento doesse.
Aproximo-me.
– Você não tem sapatos?
– Não.
E também não tem uma capa. Agora que estou mais perto, posso ver
que ele está nu da cintura para cima. Posso ver os músculos de seu peito,
salientes sob a sua pele morena.
Os músculos do meu pai não são tão salientes quanto os dele.
– Você precisa de alguma coisa? – pergunto. – Comida? Ajuda?
Ele encosta a cabeça na parede e sorri. É um sorriso bonito. Meio
cansado, mas satisfeito.
– Não – ele responde.
Isso me lembra o jeito que mamãe costumava me olhar, meio
adormecida, quando eu subia na sua cama nas manhãs de domingo, quando
era pequena. Cheguei mais perto dele. Não tinha certeza se acreditava no
que ele dizia. No caminho, fiquei quase convencida de que ele era o deus
que a Miss Shelley falou, mas agora, que estou aqui, tenho minhas
dúvidas. E se ele for apenas um homem, que esteja sofrendo como mamãe
sofreu?
Se ninguém o ajudar, será que ele morre também?
– Você é real? – pergunto, de repente.
Ele estira a mão.
– Toque.
Pego a sua mão. A pele é dura e morna. As unhas estão quebradas e
seus dedos cobertos de lama seca e outras coisas.
– Real – diz ele.
Seu rosto é exatamente como o rosto na igreja – faltam apenas as
folhas. Ele é moreno, cabelos cacheados, com mechas vermelhas e
alaranjadas que reluzem quando o sol as iluminam. Está usando uma calça
feita de material grosso que faz pregas como se fossem rugas, como a pele
do rinoceronte no livro Just so stories, do Rudyard Kipling. Chegam ao
meio das pernas. Estão rasgadas e com furos feitos pelos caninos dos
lobos, cobertas de lama e sangue fedorento, mas se eu piscar e olhar para
longe, quase posso esquecê-las.
– Seu rosto está na igreja – eu digo.
Ele não parece surpreso.
– Está? – diz ele e olha para mim com o mesmo olhar bondoso. Depois
fecha os olhos, e dorme.
Fico ali por um tempo, observando, mas ele não se move. Levanto,
bem devagar, sem fazer barulho, volto para a porta. Quando me viro para
olhar, ele não está mais lá.
9
Realmente real

Fico sentada em cima do portão, olhando para o céu. Realmente real!


Analisando a situação, no estilo do Famous Five, há duas possibilidades.

1. Ele é real, mas é uma pessoa comum, sem mágica. Eu deveria (provavelmente)
ligar para o número de emergência, chamar uma ambulância, como nos ensinaram na
escola, para que venham salvá-lo. Vou ficar famosa em todos os jornais – Menina
salva um homem ferido. Pode ser até que ganhe uma medalha.

2. Ele é uma coisa completamente diferente – o Homem Verde e o deus antigo da


igreja. E qualquer coisa pode acontecer agora.

O Vô está atendendo uma fila de fregueses quando entro na lojinha. A


Vó não está em lugar nenhum. Hannah está na cozinha, ajoelhada em umas
das cadeiras. Está praticando sua assinatura em letras elaboradas e roxas:

HANNAH BROOKE
HANNAH DIANA BROOKE
HANNAH DIANA WATSON-BROOKE
HD BROOKE
HDB.
HANNAH

– Hannah. Hannaaah.
Ela se vira um pouco, embora esteja de costas para mim. Ela fez de
todos os pontos finais e dos pingos de seus cis’ pequenos corações.
– Hannaah.
Pego no seu braço.
– Eu o encontrei. O homem da igreja – o deus que a Miss Shelley
mencionou na igreja. Aquele que tem de morrer para fazer o inverno. Sei
onde ele está. Podemos ir até lá e salvá-lo!
Hannah puxa o braço de volta.
– Me deixe em paz – diz ela. – Estou ocupada. Não tenho tempo para
essas brincadeiras.
– Hannah, não estou brincando. É sério, é sério mesmo. Encontrei o
homem. Ele está ferido. Podemos ajudá-lo!
Hannah olha para mim com uma faísca de interesse.
– Eu prometo, prometo de verdade. Honestamente. Juro... juro pela vida
de papai.
– Sabe que não é para jurar – diz Hannah, mas põe a caneta na mesa. –
Primeiro me mostre. Depois, se ele for de verdade, contamos ao Vô.

Eu vou na frente e Hannah vem atrás. Sei que deveria ficar preocupada
a respeito do homem, mas, na verdade, estou muito empolgada com a idéia
da missão de resgate. Fico pensando se não deveríamos ter trazido algo
para fazer curativos ou, pelo menos, aspirina.
– Precisamos pular um portão – digo a Hannah. – Ele está no celeiro.
Ali!
– Você não disse nada sobre lama! – exclama Hannah. Ela não pula na
lama, como eu (meus sapatos da escola não poderiam ficar mais
enlameados). Ela vai pelas pontas, se equilibrando nas pedras. – Ui!
Chego primeiro ao celeiro. Ele está lá; dormindo no mesmo canto. O
sol se moveu e agora tem um raio de luz que vem do buraco no telhado
iluminando seu rosto. Ele parece um Jesus de cabelos cacheados.
– Olá – eu sussurro. Ele pisca para mim.
– Ai! – o piso dentro do celeiro é mais baixo do que o batente da porta e
Hannah tropeça e pisa em uma tábua. Escorrega e se segura em mim. –
Que lugar é esse?
– É aqui que ele está – e aponto. – Olhe.
– Onde? – pergunta Hannah. – O que é que você está mostrando?
Eu olho. Ele desapareceu.
10
Mamãe

Quero mamãe esta noite. Quero contar a ela sobre o homem no celeiro.
Quero levá-la até lá e dizer: “Um homem estava aqui e depois não estava.
Ele é real?”
“O mundo é um lugar estranho e maravilhoso, Molly-mô.” É isso que
ela diria.
– O mundo é um lugar estranho e maravilhoso – murmuro, mas isso só
me faz sentir ainda mais sozinha.
Da minha cama, posso ver a luz no corredor. Escuto as vozes rindo na
televisão. Eu poderia ir até lá e conversar com a Vó e o Vô, poderia contar
para eles, dizer que caçadores passaram pelo vilarejo ontem à noite, e
depois desapareceram. Poderia dizer que há um homem no celeiro e minha
professora disse que ele vai morrer. E que eu vou salvá-lo, mas eu não me
movo.

O nome de mamãe era Diana Eleanor Brooke. Ela morreu no dia oito de
agosto. Tinha trinta e nove anos, o que soa muito velha, mas não é. Não
quando se compara com a Vó, que tem sessenta e nove e o Vô, que tem
setenta e quatro.
Minha mãe era a pessoa mais linda do mundo inteiro, provavelmente.
Mais linda até que a Miss Shelley. Tinha cabelos longos e claros e olhos
verdes de bruxa e um nariz arrebitado com sardas, que é uma coisa que
nenhum adulto tem. Nem Hannah, nem eu nos parecemos com ela. Quando
eu era pequena, costumava desejar que meus cabelos negros e cacheados
se transformassem em loiros e lisos, para que, assim, quando crescesse,
me parecesse com ela; mas nunca aconteceu. A única coisa que temos em
comum são as sardas. Ela era a única pessoa adulta que eu conheci com
sardas. Mas ela não era de jeito nenhum como uma pessoa adulta. Era
adulta com coisas, como o horário de ir para cama e escovar os dentes,
mas era como uma criança com outras coisas, como árvore de Natal e
fogos e fadas. Ela acreditava em fadas. Achava que uma vez chegou a ver
uma, quando era menor que eu. Só que foi por um momento, da janela de
um carro; assim, ela nunca teve certeza. Eu quase acredito em fadas,
também. E gosto de árvores de Natal, sorvete de banana e de pular as
ondas na praia, como ela gostava.
Mamãe é a pessoa que quero comigo agora. Ela é a pessoa para quem
quero contar sobre o meu homem. Ela jamais pensaria que eu estava
fazendo brincadeiras, ou que estava inventando, como a Vó e a Hannah
pensam. Ela saberia o que fazer. Ela... Não sei o que ela faria, mas sei que
acreditaria em mim.
11
A flor e a árvore

Assim, estou sozinha. Mas tudo bem. Quando volto para casa, da escola,
vou direto para a cozinha. A lojinha é um lugar melhor para ir, mas a Vó
está lá e, de qualquer maneira, ela notaria se alguma coisa estivesse
faltando. A cozinha é o lugar do Vô e ele é muito menos observador. Pego
uma sacola da gaveta e encho com coisas. Maçãs. Pão. Suco de laranja.
Um pacote de presunto. Uma lata de feijão cozido, uma latinha de pêssego,
uma lata de sopa de tomate com arroz. Um garfo. Fósforos.
Se ninguém quer saber de ajudá-lo, isso não quer dizer que eu não
possa.
Tem amoras crescendo nas cercas vivas da estrada. Tem mais árvores se
transformando nas cores de outono – tons de amarelo e laranja. Parece que
alguém pegou um pincel e pintou o mundo com uma mistura de tintas.
Os barrancos estão cobertos com os galhos secos de cerefólios do
campo. O ar ficou mais fresco e mais frio. Tem o cheiro de folhas, grama,
terra molhada.
Quando entro no celeiro, ele está lá. Está acordado. E se moveu. Da
última vez, estava encostado na parede, mas agora está encolhido em um
canto, longe do vento.
– Olá – eu digo.
Ele levanta a cabeça quando entro.
– Molly, não é? – ele diz. – Fiquei pensando se você voltaria. – Ele
estende a mão e eu venho e me sento ao lado dele.
Na luz da tarde, posso ver suas pernas com clareza. Seu estado é
terrível. Posso ver as manchas e as mordidas, até os pés. Tem um cheiro
forte, como se alguma coisa estivesse apodrecendo, e as moscas sobem
pela sua calça estranha. Olho para longe.
– Está doendo? – pergunto.
Ele boceja e sacode a cabeça de novo.
– Devo chamar uma ambulância? Alguém que possa ajudar?
– Uma ambulância não me encontraria – diz ele.
Sentamos ali, quietos, olhando a poeira dançar na luz do sol que penetra
pela porta.
– Eu trouxe umas coisas. Achei que você... quero dizer, se você quiser...
Não precisa aceitar, se não quiser.
Coloco a sacola na frente dele. Ele olha para ela, inquisitivo, e tira uma
latinha de pêssegos. Vira a lata para cima e para baixo, cheira. Sua boca
faz um movimento engraçado para o desenho e ele põe a lata no chão.
– É bonita – diz ele. – Obrigado.
– É uma latinha de pêssegos! – eu digo. —Você não sabe o que um
enlatado?
Ele me olha, expectante. Arranco a tampa e abro a latinha para ele.
– Olhe. São pêssegos.
Ele enfia um dedo sujo dentro do xarope e toca o dedo na língua,
cauteloso. Eu fico olhando. Um olhar de surpresa passa pelo seu rosto e ele
ri alto.
– É doce!
– Você pode comer. Trouxe um garfo – olhe.
Mas ele não quer o garfo. Enfia os dedos no xarope e come as fatias de
pêssego sem mastigar, o líquido escorrendo pelo queixo. Não sei o que a
Vó diria sobre comer com as mãos sujas como as dele, mas ele parece
contente.
Ele sacode a cabeça quando mostro o resto da comida na sacola.
– Está bom. Já é suficiente. Obrigado.
– Não está com fome? – pergunto, e ele diz que não com a cabeça.
Fico matutando sobre isso, quando percebo outra coisa. Tem alguma
coisa crescendo no chão ao lado dele. Uma árvore. Uma árvore bebê. Uma
mudinha.
Ela é quase tão alta quanto ele. E tenho quase certeza de que não estava
lá da última vez.
– De onde veio a árvore?
Ele olha para cima; levanta a mão e toca nos galhos acima de sua
cabeça. Ela cresce – juro – se esticando como se quisesse se enrolar nos
seus dedos. Ele desce a mão e o galho novo a acompanha.
E percebo outras coisas. Vejo a grama crescendo ao redor de seus pés,
onde não havia grama antes. E a hera subindo pelas paredes – muito mais
densa atrás dele. Será que sempre foi assim? Ou...
Ele vê que eu estou olhando e ri. Mostra suas mãos. Estão vazias. Ele
sopra nelas e alguma coisa começa a crescer, do nada. Uma semente. Uma
mudinha verde. Folhas. Uma flor. Uma campânula azul.
– Para você – diz ele, e me dá a flor.
Seguro a campânula azul com muito cuidado na palma da mão. Tenho
medo que ela possa desaparecer se eu me mexer.
Ele fica olhando para mim. Parece contente. E se encosta na parede.
– Não – diz ele – não preciso da sua comida.
12
Jack

Quando volto, Jack está trabalhando no nosso jardim. Paro no portão e


fico olhando.
Jack mora ao lado da lojinha, com a Ivy. Ivy é meio maluca. Ela fica o
dia inteiro de chinelos e um chapéu com flores rosas. Não é para ela ir
além do jardim, mas, às vezes, ela escapa e sai andando pela rua e Jack
tem de trazê-la de volta para casa. Uma vez, eu vi quando ela escapou e
corri atrás dela e a trouxe de volta. Jack estava na cozinha e disse para ela:
“Ei, moça, para onde estava indo desta vez?”. Ela olhou para ele e sorriu
um sorriso enorme sem dentes e disse: “Estava indo ao circo!”
Eu gosto da Ivy, mas gosto mais do Jack. Jack é homem, mas é ele
quem faz a comida e limpa a casa. Ele até dá banho na Ivy na banheira. Ele
me contou. Jack e meus avós dividem um jardim enorme e Jack é quem
toma conta dele.
Jack descansa o queixo no cabo do ancinho quando me vê e acena.
– O que há, pica-pau?
– Nada – respondo, subo e me sento no topo do portão. Jack volta a
trabalhar com o ancinho.
– Tenho uma flor – conto a ele.
– Tem?
– Uma campânula azul.
A flor está no meu bolso, se ele quiser ver, mas ele não pede. Continua
trabalhando.
– Então é uma campânula azul muito corajosa – diz ele – para crescer
em outubro.
– Ela é mágica – eu digo. – Um homem fez ela crescer do nada.
Jack fica calado. Continua fazendo pilhas de folhas com o ancinho.
– Você não acredita em mim, não é? – Mas você acredita em mágica?
Jack para.
– Está vendo aquelas árvores? – ele aponta. Eu digo que sim. – Fui eu
que as fiz crescer do nada. – Ele ri. – Existe mais magia em árvores do que
em truques de mágica – diz ele, por fim.
13
Um pedido ao Deus Carvalho

Vou para dentro de casa. Fico pensando um pensamento. Não é um


pensamento muito grande. Fica bem lá no fundo da minha mente; tão
pequeno que não tenho coragem de trazê-lo à tona ou até mesmo pensá-lo
de verdade, apenas um jeito de pensar de lado, no cantinho. Porque se eu
pensar direito, ele pode se esmigalhar para o nada, do jeito que acontece
com certas coisas quando você mostra para alguém.
E este é o pensamento: se o homem no celeiro é um deus, e se ele pode
trazer o verão e fazer coisas crescerem do ar e faz tudo aquilo que um deus
do verão faz, o que mais ele pode fazer?
Não quero dizer superpoderes, ou jóias, ou palácios de fadas. Não quero
nenhuma dessas coisas. Meu desejo é muito simples e fácil. Será que ele
pode fazer meu pai nos querer de volta? Será que pode trazer minha mãe
de volta?
14
Momentos não preciosos

Ele mexe com a minha cabeça, esse homem. Quando vou vê-lo, acabo
me esquecendo de tudo que quero perguntar – como Quem é você? – e fico
distraída pelos seus pés descalços e pelas folhas de hera.
Nem sei como se chama. Se eu fosse um dos Famous Five, já teria
resolvido o mistério.
É claro que, se eu fosse um dos Famous Five, então ele seria um
contrabandista, um cigano ou um detetive disfarçado, mas tudo bem.
No sábado, no café da manhã, faço uma lista com todas as perguntas
que quero fazer, começando com Qual é o seu nome? e assim por diante,
como Você é realmente um deus pagão? até chegar a O que mais você sabe
fazer além de fazer árvores crescerem? E será que você pode me ensinar
para que eu possa fazer isso também?
– Posso sair? – pergunto ao Vô, mas ele diz que não.
– Hoje não, meu bem.
O que tem hoje? Mais um dia com a tia Meg, ou com uma das amigas
de mamãe? Ou será que vamos “brincar” com meus primos, que são
meninos e estão no colégio e gostam de computadores e futebol e de olhar
para a gente como se o gato tivesse engolido a língua deles?
– Seu pai vem hoje, meu bem. Lembra?
Ah. Papai.
– Molly Alice – diz a Vó, colocando a faca no prato. – Não faça essa
cara. Você quer ver seu pai, não quer?
– Quero – respondo. Arranho a mesa de plástico com a unha. – Claro
que quero.
– Mas eu não – diz Hannah. E espeta o garfo no meio do ovo cozido,
olhando brava para o Vô.
Ele olha para longe.

Toda vez que papai vem, eu fico ansiosa para vê-lo e toda vez é
horrível.
Estamos parados no estacionamento. Hannah está emburrada em um
canto do carro, com seu fone de ouvido e a música no volume máximo.
– Ah, meu bem – diz papai. – Vamos comer alguma coisa.
– Me deixe em paz.
Papai está abaixado ao lado da porta do carro. Dá para ver que ele não
sabe o que fazer. Mamãe, geralmente, é quem conversava e brigava na
família.
Estou parada ao lado de papai, olhando para dentro do carro. Para mim,
parece que estamos aqui há horas. Queria que ele dissesse para Hannah o
quanto ela está sendo infantil. Alguém (não eu) teria de dizer.
– Não podemos deixar ela no carro, papai? Estou com fome.
– Ah, vê se cresce – rosna Hannah, como um tigre diria, eu imagino – e
não se meta nos negócios dos outros.
Papai se afasta. Abre a boca, mas logo fecha de novo. Ergue-se e
caminha para o outro lado, sem olhar para nenhuma de nós.
Eu corro atrás dele. Hannah se comporta como um monstro toda vez
que saímos com papai. Da última vez, ele nos levou para ver o castelo de
Harry Potter em Alnwick e ela cantou Eu sei uma música que vai deixar
você louco durante todo o passeio. E da vez anterior, quando fomos à
praia, ela jogou areia no banco dele e em todos os sanduíches só porque
ele disse que não podíamos comer peixe com batata frita.
E hoje, nem sair do carro ela quer.

Encontro papai na fila da lanchonete. Era para irmos ver um casarão


antigo com jardins. Eu não sei por quê. Papai detesta jardins. E o único
casarão antigo de que eu gosto é o Newby Hall, porque lá tem barcos de
pedalar e uma tirolesa.
Toco no ombro de papai para ele ver que estou ali. Ele me dá um sorriso
rápido, mas que desaparece imediatamente.
– O que você quer comer? – ele pergunta. – Tem sanduíches ali, olhe.
Vá e escolha um.
Não é para menos que ele não nos quer por perto, se tudo o que
acontece quando ele vem é briga. Vou e pego na geladeira um sanduíche de
queijo que parece de plástico, com um pegajoso picles no meio. E está
frio.
Papai acha uma mesa longe da janela, como se não se importasse com
Hannah. Mesmo assim, fica olhando por cima do ombro na direção do
carro. Não é justo. Este é meu dia com papai, tanto como o dela.
Pego um cubinho de açúcar do açucareiro e mordo um pedaço. Fico
esperando ele reclamar, mas ele nem nota.
– Não podemos deixar a Hannah em casa da próxima vez? – pergunto,
para ele poder olhar para mim. – Ela é sempre tão odiosa.
Papai esfrega o rosto com as mãos.
– Hannah não é odiosa – diz ele –, nem mais nem menos do que você ou
eu. Ela está... – ele hesita, como se tivesse tentando achar uma maneira
legal de dizer “odiosa”. – Bom – ele diz –, isso não é fácil para ninguém.
Quando se esfrega o rosto, quer dizer que se está cansado. Será que
papai está cansado? Não sei. Ele é mais velho do que os pais de outras
crianças que eu conheço. E mais feio. Seus cabelos são ralos e estão
ficando grisalhos nas pontas, seu rosto é todo achatado e torcido, como o
de um cão pug.
– Não sei o que você viu nele – resmungava a Vó para mamãe, quando
ela estava irritada com ele. E mamãe se inclinava na mesa, seu rosto
brincalhão, e dizia:
– Ele me fez rir, é claro.
De repente, desejo ardentemente que ele fique comigo.
– Talvez devêssemos ir morar com você – disse. – Aí a Hannah não
seria tão odiosa o tempo todo.
– Quem me dera, meu bem, quem me dera – diz papai. Mas seus olhos
não ficam vivos quando ele diz isso.
– Mas nós podemos – eu digo e me aproximo dele. – Não me importa o
tanto que você trabalhe. Hannah e eu podemos nos virar. Podemos até
cozinhar para você e tudo mais. Posso cozinhar. Sei fazer chá, café e
bolinhos de chocolate e menta, sopa e feijão com torrada e sanduíches. E
isso é suficiente para se viver.
Mas papai nega com a cabeça.
– Não, meu bem – ele diz. – Não vamos começar esta discussão de
novo. Você não pode ficar em casa sozinha e a Hannah também não.
Especialmente à noite. E com meu trabalho, não posso garantir que vou
estar sempre lá.
É enormemente injusto. Um monte de crianças da idade de Hannah fica
em casa sozinha. E tem crianças que tomam conta dos pais, se eles usam
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cadeira de rodas ou coisa assim. Vi no programa do Blue Peter .
– Você pode contratar uma babá – eu digo. – Eu não me importo. Ou
uma governanta, ou podemos ir para um clube depois das aulas – muita
gente faz isso.
– Moll – diz papai, começando a se irritar. – Não vamos brigar sobre
isso agora. Não se pode exigir que uma babá venha de última hora, que é o
tempo que posso avisar. E não se pode ficar em casas de governantas
durante a noite.
Sinto um frio na espinha.
– Mas vamos voltar a viver com você – eu digo. – Você prometeu! Não
podemos viver com o Vô para sempre.
Papai fecha os olhos e eu paro, assustada. Ele está indo embora de novo.
Será que ele me deixaria aqui do mesmo jeito que deixou a Hannah?
Seguro a respiração, mas aí ele abre os olhos de novo.
– Para sempre não, meu bem – diz ele. – Não posso ter vocês comigo
nesse momento, Moll. Não tenho nem condições de tomar conta de mim
mesmo. Uma vez que eu encontre outro trabalho, então vamos ver.
Fico com raiva por ele ter-me assustado tanto e por estragar o meu dia
feliz. Não é justo. Pais devem sempre querer que suas filhas se divirtam.
– Então ache um outro trabalho! – eu digo. – Não é só preencher um
formulário e fazer uma entrevista ou qualquer coisa? Deve levar uns cinco
minutos! Não leva semanas e semanas e semanas assim!
– Estou tentando – diz papai. – Realmente estou, meu bem.
– Então, tente mais. Todo mundo tem empregos. Não é difícil assim!
Papai deixava mamãe maluca porque não brigava com ela e está
fazendo a mesma coisa comigo, agora. É como se houvesse um muro ao
redor dele que não deixa nenhuma palavra atravessar.
– Vamos – diz ele. – Vamos voltar para Hannah. Vamos ver se ela vai
nos deixar entrar no carro.
No carro, o rosto de Hannah está franzido, como se estivesse fazendo
um esforço enorme para não chorar. Papai lhe entrega um pacote com um
sanduíche de queijo e ela pega sem dizer nada. Ele dá partida no carro e
voltamos para o vilarejo.
Quando chegamos na casa do Vô, Hannah sai do carro a toda velocidade
e corre para dentro. Papai dá de ombros, tristemente, como se não
soubesse o que fazer. Um pai tem de saber dessas coisas! É para isso que é
pai!
– Vamos, meu bem – diz ele, com a voz triste, colocando a mão no meu
ombro. Eu saio e corro para dentro de casa, passo o Vô e subo as escadas.
Às vezes, sei exatamente como é ser Hannah porque, às vezes, detesto
o papai também.
15
Papai

Há duas razões por que não moramos com papai.


A primeira é o seu trabalho. Papai é jornalista, o que quer dizer que as
pessoas, isto é, seu chefe, ficam ligando para ele dizendo: “Precisamos
acompanhar um acontecimento em Coventry, com pressa.” E lá vai ele até
9
Coventry para descobrir que acontecimento era aquele e acaba não
voltando para casa até bem tarde, às vezes depois que já tínhamos
dormido.
A segunda razão é que depois que mamãe morreu, papai adoeceu
também. Começou a trabalhar o dobro do tempo e a chegar muito mais
tarde todas as noites (tia Rose estava tomando conta da gente, assim ele
podia nos deixar em casa). E, algumas vezes, ele chegava em casa e ficava
olhando para o nada e não respondia quando a gente falava com ele. Se
isso já é uma coisa assustadora por parte de um mendigo pior ainda, duas,
três até quatro vezes pior se a pessoa que está fazendo isso é o seu próprio
pai. E tia Rose fazia todas as coisas importantes, como comprar comida,
mas as outras coisas, como aulas de piano e sapatos para a escola,
acabaram esquecidas. Um dia, a Vó veio ficar com a gente, porque a tia
Rose tinha que ir tomar conta de seus próprios filhos, e o pai começou a
chorar, ali no meio da cozinha. A Vó me mandou para fora, mas eu fiquei
escutando mesmo assim. E ouvi ela dizer: “Você sabe que podemos ficar
com as meninas, Toby.”
E quando Vovó disse aquilo, foi como se houvesse duas partes de mim.
Uma que ficou contente – porque eu gosto da Vó, especialmente do Vô, e
também porque era como uma aventura empolgante morar no campo com
eles, assim tipo ser evacuado com um crachá no pescoço. Mas a outra
parte de mim sabia que a única razão para ser tão empolgante era porque
nunca aconteceria. Porque eu não queria acreditar, realmente, que um pai
como o nosso, um pai bom, que nos amava e que não nos prendia em
armários ou esquecia de nos dar de comer, jamais poderia nos abandonar.
Mas foi isso o que ele fez.
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Uma garoa cheia de perguntas

Depois que papai foi embora, desci e fiquei parada na porta da lojinha.
Chovia de novo. Não uma enxurrada, mas uma chuvinha fina, fria, com
gotas prateadas no meio; tão fina que você quase duvidava que estava
chovendo. Era aquela chuva que escorrega do telhado e desliza na manga
da minha camisa quando ponho o braço para fora.
– Um chuvisco – eu falo alto.
– Uma garoa – diz o Vô. – A garoa é mais fina. Garoando. A garoa
garoando.

– Posso sair? – pergunto. – Descobri onde está o homem – aquele que


sumiu para o nada. Ele está escondido numa cabana. E faz crescer flores.
– Pode ir – diz o Vô. Ainda não sei se ele acredita em mim. – Mas pelo
menos tente não se molhar.
– Eu gosto de ficar molhada.
– Então está bem, meu cachinho doce – diz o Vô. Ele vem e fica parado
atrás de mim na porta. Ficamos olhando a chuva.
– Não fique com raiva de seu pai. Ele está fazendo o que pode.
Viro o rosto para ele, surpresa. Ele me dá um beijo na testa.
– Pode ir – diz ele. – Pode ir procurar o seu homenzinho. Antes que eu
mude de idéia.

Tudo parece diferente no meio de uma garoa. É como um nevoeiro. As


árvores mais distantes estão quase invisíveis. Abro a porta do celeiro bem
devagarzinho.
– Olá?
Ele está lá.
Mudou de lugar de novo. Teve que mudar. Sua árvore cresceu. Não é
mais uma muda; é uma árvore de verdade. Os galhos no alto já passam da
parede quebrada. Está cheia de folhinhas, todas cobertas com gotinhas de
garoa. Folhas de carvalho, como nuvens em um desenho.
A hera cresceu também. Tomou a metade da parede de trás. Pequenas
flores amarelas estão crescendo do chão. Ele está sentado, encostado no
tronco da árvore. Ele parece alegre e estranho com um jeito selvagem – no
entanto parece mais velho do que antes. Não sei o que concluir sobre ele.
Em casa, acho que ele seja um mendigo ou um fugitivo da lei ou algo
assim, mas aqui

eu realmente acredito que ele é um deus, como a Miss Shelley disse.

Tiro minha caderneta e começo a perguntar do começo.


– Como é seu nome?
Ele não entende.
– Eu, por exemplo, me chamo Molly. Quem é você?
– Eu não tenho um nome como Molly – diz ele. – Por que deveria ter?
Ele não diz isso com raiva, como a Hannah diria. Mas sim com
curiosidade. Como se realmente não entendesse o que quero saber.
A próxima pergunta na minha lista é: Você é o deus do verão? Mas o
problema é que, agora, aqui, não tenho coragem de perguntar. Tento outra
coisa.
– Quantos anos você tem?
Se ele é o deus da Miss Shelley, então ele nasceu apenas na primavera.
– Sou mais velho que uma bolota de carvalho.
– Você viu o inverno?
– Um inverno? Por quê? Você perdeu um?
– Logo vai chegar um e você vai ficar com frio.
Ele me olha com o olhar mais carinhoso que já vi.
– Não fico com frio.
Descanso meu queixo em cima dos joelhos e abraço as pernas. Sou eu
que estou com frio. Mesmo aqui, embaixo do telhado, a chuva ainda me
pega quando o vento sopra.
– Por que é que ninguém mais pode vê-lo? Por que você fica sumindo?
– Você se importa? – diz ele. – Não quero preocupar você.
– Eu...
Não sei o que dizer. Ele estira a mão e toca na minha mão. Eu dou um
arrepio.
– Não quero que eles me descubram – diz ele.
– Os caçadores?
Ele não responde.
– Você está tomando cuidado – diz ele –, não está? As noites estão
ficando mais longas. O Rei Azevinho está ficando mais forte...
– O Rei Azevinho. Quem é ele? – pergunto, mas já sei da resposta. – Ele
é o homem no cavalo, não é? Aquele que era o líder da caça? Aquele que
está atrás de você?
Mais uma vez, ele fecha os olhos.
– Não fique assustada. – Não quero assustá-la.
– Ele pode me machucar, não pode?
– Claro que sim – ele se mostra surpreso de eu perguntar isso. – Talvez
fosse melhor você não vir mais. Não quero que ele machuque você...
– Ele machucaria?
Ele não responde.
– Ele quer machucar você – eu digo –, não quer?
Meu homem me observa sem se mover, encostado na árvore.
– Sim – diz ele. – Ele quer me machucar.
Ficamos em silêncio. Estou cheia de incertezas, misturadas com
apreensão. Será que ele vai ficar sentado aqui, esperando que o Rei
Azevinho apareça? Será que não vai fazer nada?
– Você não pode usar sua magia nele?
– Magia?
– É. Como você fez com a minha flor.
– Sua flor se formou por ela mesma.
– Pode fazer outras coisas se formarem por elas mesmas? – pergunto,
esperançosa.
Ele começa a rir e a risada se transforma em tosse, uma tosse feia,
molhada. E eu me assusto. Parece que ele não consegue parar de tossir,
mas, por fim, ele para.
– Você está bem? – pergunto.
Ele sacode a cabeça. Fico pensando se devo ir embora, mas ele segura
minha mão, como se para eu ficar com ele.
– Você pode fazer tanta coisa – eu digo.
Estou pensando em todas as coisas que acontecem na primavera: as
celidônias nos campos atrás da casa do Vô, os filhotes de pássaros-pretos
com os bicos abrindo e fechando nos seus ninhos na ameixeira, as teias
prateadas de aranha na grama de manhã. – Pode... – começo e paro. – Você
é quem faz os filhotes de animais nascerem?
Ele levanta a mão de novo, conscientemente, deixando a palma para
cima. Imagino que ele vá fazer algo para mim – um ratinho, talvez, ou um
esquilo. Gostaria de ter um esquilo. Ele deve ter adivinhado o que eu
estava pensando, porque olha para mim e seus olhos estão sorrindo.
– Não se pode fazer um bebê sem uma mãe, não é mesmo? – diz ele,
brincando. A hera se desenrola da palma da mão e sobe pelo braço. Ele
fica com a mão aberta, olhando.
Os músculos do peito se enrijecem. Eu olho para o chão.
– Você pode fazer a mãe também? – pergunto, bem baixinho – Você
pode fazer alguém voltar a viver para mim se eu pedisse? Minha
professora me disse que seu rosto é usado em lápides, é isso? Você é o
deus do renascimento, ela me disse. Então, se alguém está morto, você
pode fazê-lo voltar a viver? Pode?
Ele não me responde. E quando olho de novo, não está mais ali.
17
Longa distância

Papai telefona à noite.


– Está tudo bem, meu amor? – quer saber.
Faço que sim com a cabeça, e então lembro que ele não pode me ver.
– Sim – respondo.
– Sinto muito por ter sido tão rude, meu bem. – A voz soa cansada,
como se o resto dele estivesse em outro lugar. – Estou fazendo o que
posso.
– Eu sei – encosto a cabeça na parede. – Também sinto muito.
– Vamos ficar de bem?
– Vamos.
Silêncio. Bato os saltos do sapato contra o degrau da escada, esperando
que ele diga alguma coisa.
– Como foi sua tarde hoje, boa? – diz ele, por fim.
– Fui ver o meu homem – conto a ele. – O homem que eu conheci. Ele
vive numa cabana, como em um livro, porque está se escondendo dos
caçadores que estão tentando matá-lo. Ele pode criar coisas do nada, como
árvores, flores, poções mágicas.
– Parece muito útil – diz papai. – Quem sabe você não pode me
apresentar a ele da próxima vez que eu for lhe visitar.
– Talvez – digo, mas duvido. – Só que ele não deixa ninguém mais vê-
lo, só eu. Ele fica invisível.
– Tudo bem – diz papai. E dá uma risadinha, embora não saiba o que ele
está achando engraçado.
Hannah aparece na porta da cozinha.
– Jantar! – ela grita.
Cubro o aparelho com a palma da mão.
– Quer falar com papai?
Hannah diz que não com a cabeça e desaparece.
– Tenho de ir – eu digo.
– Está bem – diz papai, e respira fundo. – Me dá um beijo?
Beijo meus dedos e toco no telefone.
– Aí. Pegou?
– Espere... Sim... Não, não. Ah, agora sim! Peguei!
– Agora é sua vez.
– Ok – papai diz. Posso ouvir seu sorriso. – Enviando agora. Pronta?
Fecho os olhos bem apertados e espero para que o beijo viaje de
Newcastle pela linha de telefone. O beijo passa pelos fios e corta o espaço.
E chega explodindo pelo aparelho de telefone e cai na minha face com um
sshplat.
– Recebeu? – papai pergunta.
– Recebi sim.
– Então pode ir.
E agora sua voz soa triste. Desligo o telefone, porque não quero ouvir.
18
Folhas douradas e reis

As folhas nas árvores estão mudando de cor; vão de verde para amarelo
e caem do céu. Lá em casa é o mesmo, só que a gente não percebe, porque
não tem tanto assim. Tem frutos na roseira das cercas vivas e as amorinhas
vermelhas dos arbustos de espinheiro, um frio cortante no ar e as folhas
caídas na grama para a gente pisar.
Numa manhã na escola sopra um grande vento. Vamos para fora tentar
pegar as folhas que caem das árvores para o chão da rua. Pegamos as
folhas e levamos para colocar entre as páginas de dicionários e Atlas. Na
quarta-feira, tiramos as folhas para plastificá-las e fazemos móbiles com
elas para pendurar no teto. Mrs Angus – que parece saber muito sobre
árvores – nos ensina o nome em latim, coisa que nunca aprenderíamos na
nossa escola antiga. Carvalho – Quercus robur. Freixo-europeu – Fraxinus
excelsior. Espinheiro – Crataegus monogyna.
Gosto de pensar que estes são os nomes verdadeiros das árvores; o
nome amigo que usaríamos se um dia ela falasse conosco. Quercus Robur
soa engraçado e simpático. Fraxinus excelsior soa corajoso, como um
cavalheiro. Crataegus Monogyna dá um pouco de medo, uma velha e
carrancuda árvore-bruxa com dedos longos e vermelhos.
Não falamos sobre o azevinho, o que é bom, porque não quero nada
sobre o Rei Azevinho no meu caderno. No entanto, pergunto sobre ele para
a Miss Shelley.
– O Rei Azevinho? Onde ouviu falar sobre ele?
– O homem contou para mim sobre ele. Você lembra – eu lhe contei. A
estátua na igreja, que eu conheci.
Do outro lado da mesa, Josh cochicha alguma coisa para Matthew e
Matthew finge se engasgar. Miss Shelley os ignora.
– Ah, bem – diz ela. – Bom, o Rei Azevinho é um outro arquétipo
pagão. Ele é o oposto do Rei Carvalho – que é outro nome para o seu
Homem Verde. O Rei Carvalho reina na primavera e no verão e o Rei
Azevinho reina no outono e no inverno.
Então o meu homem é o bom e o Rei Azevinho é o mau.
– Eles lutam entre si? – pergunto. – É isso que oposto quer dizer – que
são inimigos?
– Algo assim – diz Miss Shelley. – Olhe, Molly, é mais complicado do
que isso. Existem muitas lendas...
O Rei Azevinho, porém, não é uma lenda! Por que será que ninguém
entende isso? Ele é uma pessoa de verdade e está caçando o meu homem.
O Homem Verde ou o Rei Carvalho ou o que for que ele se chama.
Miss Shelley me observa. E a Emily também, do outro lado da mesa.
– O Rei Azevinho o mata – eu digo. – Ele mata, não mata? O Homem
Verde morre, é isso que você quer dizer. Então o Rei Azevinho o mata, não
é?
– Em algumas versões da lenda – diz Miss Shelley. – Sim. O Rei
Azevinho e o Rei Carvalho lutam no meio do inverno e o Rei Azevinho
vence o Rei Carvalho.
Cerro os lábios, tão rígidos como as raízes do carvalho.
– Molly? – diz Miss Shelley.
Olho para ela.
– Ele vem com caçadores como numa caça? – pergunto.
– Caçadores?
– Uma caça selvagem? O Rei Azevinho tem um grupo de caça
selvagem?
– Ah, a caça selvagem – diz Miss Shelley. – Todo tipo de gente fazia
caça selvagem, Molly. Wodan e Odin, Herne, é claro – o demônio em
algumas versões. O Rei Artur em outras. Até mesmo o seu Homem Verde
também é um líder, em algumas histórias.
– Ele não lidera! Ele não!
Matthew faz um estalo de desprezo com a boca. Por trás de Miss
Shelley, Josh está fazendo giros ao lado do ouvido. Louca.
– Pare com isso – eu digo. Miss Shelley pula de susto.
– Molly!
– É o Josh! – eu digo.

No recreio, Hannah me encurrala.


– Por que você tem de fazer isso? – diz ela, me empurrando contra o
muro do parquinho. – Por que você tem de ficar falando de caças e deuses
idiotas? Todo mundo acha que você é louca. Sabe disso, não sabe? Se você
tiver que inventar histórias, então pelo menos invente uma que faça
sentido.
– Não é uma história – exclamo, furiosa. Hannah me olha com ódio.
– Vê se cresce – diz ela, ao me soltar e se afastar.
Sinto as lágrimas se formando no fundo dos meus olhos. Hannah era
para ser minha irmã. Irmãs devem proteger uma a outra.
– Mamãe teria acreditado em mim – grito para ela.
Ela não olha para trás.
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Um aneurisma na família

Um aneurisma é uma doença que acontece às vezes com as pessoas. É


quando a parede de uma das veias fica danificada e o sangue entra na
parede e faz uma bolha, que cresce e cresce até explodir dentro da pessoa e
ela morre.
Um aneurisma pode acontecer com qualquer um a qualquer momento –
até mesmo crianças podem ter, embora tia Rose diga que é muito
improvável que eu ou Hannah tenhamos. Ela diz que isso acontece
raramente, muito raramente. E também porque a maioria de quem tem é
de idade. Assim, das pessoas que conheço, o Vô é quem mais pode ser
acometido por um, porque ele é o mais velho.
O que quer dizer, então, que ele vai ser a próxima pessoa que eu amo e
que vai morrer.
Um aneurisma é o que aconteceu com mamãe. Foi por isso que ela
morreu. Ela nos deu tchau no portão da escola e depois entrou no carro.
Foi embora e, meia hora depois, estava morta. Nós fomos as últimas
pessoas a vê-la com vida.
É provável que, se fôssemos médicos, ou os Famous Five, ou se
soubéssemos sobre aneurisma, teríamos percebido alguma coisa estranha e
a teríamos salvado. Dá para pensar que, se uma pessoa está para morrer
dali a meia hora, suas filhas perceberiam. Mas não percebemos nada.
Quando aconteceu, telefonaram para o papai no trabalho, mas ele não
ligou para a gente. Só descobrimos quando saímos das aulas e a Vó estava
parada esperando por nós. De qualquer maneira, ela já estava morta.
Assim, nunca pudemos dizer adeus.
20
Um homem na estrada

Chute. Chute. Chute. Subo a estrada, chutando as folhas. Você não sabe
do que está falando, Hannah. Nem você, Josh Haltwhistle fedorento.
Chute. Nem você, papai. Poderia nos levar de volta, se quisesse. Sei que
poderia.
Faço a curva... e paro.
Ele está lá. Um homem alto, farejando a estrada. Eu me escondo na
cerca viva. Ele está de costas para mim, olhando para a trilha que leva à
cabana do meu homem. Está tão perto que posso até atirar uma pedra e
acertá-lo. É o caçador. O Rei Azevinho.
Por trás da cerca viva, observo. Na luz do dia, ele parece metade
humano, grosso e curvado, baixo, com ombros estranhamente erguidos, e
pernas que mais parecem as de um touro do que as de um homem. Está
usando uma espécie de capa, mas as pernas estão cobertas de pelos grossos
e escuros, como os de um fauno. Seu rosto, quando ele se vira para olhar
para a estrada, é bastante humano, embora mais achatado e mais largo do
que um rosto normal, e seus chifres já sumiram. Ele tem o mesmo... jeito
selvagem que o meu homem. Parece alguém que acabou de sair de uma
lenda, não o tipo que você vê na lojinha do meu avô entrando para comprar
selos.
Devagar, dou passos para trás. Ele está olhando para a trilha, para o
campo onde se encontra o meu homem. Será que ele sabe que meu homem
está lá? Por que ele não vai atrás dele? O que está esperando?
Arrasto-me como um índio pela estrada e faço a curva. Tem outro
campo ali. Subo no portão, pulo e, então, começo a correr.
O campo dele deve ficar atrás deste. Atrás ou ao lado. Passo por baixo
do arame elétrico e olho ao redor. Este campo é maior, mais longo, cheio
de buracos, com grama amarela cheia de lama e árvores finas. Não tenho
certeza se este campo vai acabar naquele em que o meu homem está. Acho
que o campo dele fica... ali.
Atravesso, com as galochas se atolando na lama. Quando chego ao
muro, paro.
É este o campo certo. As árvores se movem de um lado para o outro,
como se um furacão estivesse soprando.
Chego me atropelando no celeiro.
– Homem! Homem!
Ele não está.
– Homem!
Corro para fora do celeiro e dou a volta ao redor, caso ele esteja se
escondendo. Não está.
– Homem!
Corro de volta para o celeiro. Ele sumiu. Não está em nenhum dos
cantos nem se escondendo atrás dos sacos ou do entulho no canto. Seu
carvalho se mexe, as folhas alaranjadas caindo como pingos do focinho de
um cão. As folhas cobrem meus pés até o calcanhar.
– Homem!
Corro de novo para fora.
– Molly...
Ele está de pé contra a parede, segurando o batente da porta. Está
tremendo como a árvore lá dentro, tremendo tanto que acho que ele vai
cair.
– Ele está aqui! Na estrada! O Rei Azevin...
Pego na sua mão e ele aperta meus dedos tão forte que acho que meus
ossos vão quebrar.
– Não fale – diz ele. – Shhh.
Posso sentir como ele está tenso. Posso sentir a tensão na sua mão e
isso me assusta. Este não parece o meu deus forte de madeira.
– Ele está vindo para pegar você? – murmuro para ele. Ele me olha e
toca meu braço.
– Não – diz ele. – Ainda não.
Ainda não.
– Me ajude – ele pede. Não compreendo o que ele quer dizer de início,
mas logo põe um braço nos meus ombros e então percebo.
Ele se apoia em mim e eu o seguro. É mais pesado do que imaginei: um
peso trêmulo e quente contra o meu braço. Seu odor é pungente e eu cubro
o nariz. Juntos – passo a passo – voltamos para dentro do celeiro.
Uma vez lá dentro, ele cai sobre as folhas ao redor do carvalho, que
tremula uma vez e para. Agora o carvalho é uma árvore de verdade, com
os galhos alcançando o furo no telhado. Ele deita a cabeça no tronco e
fecha os olhos. Sei que está pálido sob sua pele bronzeada. Os cortes nas
suas pernas estão fétidos. Posso ver os machucados roxos e pretos na sua
pele e uma mistura horrível de sangue seco e pus ao redor das feridas e nas
suas calças rústicas.
Percebo que estou tremendo também.
– Por que ele não vem agora? – pergunto. – Por que ele está atrás de
você? O que você fez para ele?
Ele abre os olhos.
– Me diga! Me diga agora! Não me deixe de novo.
Ele sacode a cabeça contra o tronco da árvore.
– Fique aqui! Não vá embora! Por que ele não vem agora?
– O sol...
– O que tem o sol a ver com isso?
Quero sacudi-lo. Sua pele tem uma cor cinzenta, um azul-
esbranquiçado ao redor dos lábios.
– Não – ele diz.
– Não o quê?
– Não posso mais ficar aqui – diz ele, e começa a sumir, a desaparecer.
Eu seguro firme, mas ele some, me deixando com nada além do carvalho e
das folhas secas.
A árvore treme e fica quieta.

Na estrada, o homem-coisa – o Rei Azevinho – está parado de pé na


beira da trilha, como se tivesse acabado de sair de um mundo realmente
mágico. Vejo as folhas caírem da árvore acima dele. Ela está mais despida
do que as outras da estrada. A grama ao redor de seus pés de patas está
branca com a geada; bem grossa onde ele está parado e menos ao se
afastar dele. Enquanto observo, gotas de água caem de um galho da árvore,
translúcida e gelada. Eu me arrepio. Ao meu redor, está ficando escuro.
21
Deméter

Como pode um deus controlar o tempo? Eu conheço outra história sobre


o inverno. É a história de uma deusa grega, cuja filha some. Num minuto,
ela estava brincando na floresta, no outro, tinha sumido.
A deusa andou o mundo inteiro em busca da filha, cujo nome era
Perséfone. Ela ficou tão triste que tudo parou de crescer. As folhas caíram
das árvores. As flores que saíam do chão secavam de volta à terra. Nada
crescia e ninguém tinha nada para comer, e todo mundo ficou faminto.
Um dia, quando ela estava procurando perto de um rio, a deusa encontra
o cinto da filha no chão. Pega o cinto e começa a chorar de novo. E ao vê-
la chorar, a cabeça de uma mulher sai da correnteza do rio. É uma ninfa
aquática.
– Mulher – diz a ninfa –, pare de chorar. Sua filha é a Rainha do Mundo
Avernal. Hades, Senhor dos Mortos, a roubou e casou-se com ela.
Quando a deusa escuta isso, ela pula e voa direto para Zeus, que é o
Rei dos Deuses e o pai de Perséfone.
– Zeus – diz ela, curvando-se à sua frente –, peço-lhe que me ajude. Me
ajude a salvar minha filha.
Mas Zeus está furioso. Está furioso porque nada cresce, porque seus
súditos estão morrendo.
– O que você tem contra meu irmão, O Rei do Mundo Avernal? –
pergunta ele. – Perséfone é tão boa rainha quanto a minha esposa é aqui.
(A Perséfone casou-se com seu tio. Mas esse tipo de coisa era muito
comum entre os deuses gregos; assim, ninguém ligava muito para isso).
A mãe de Perséfone continua chorando e suplicando. E no fim, Zeus
relenta.
– Ela pode ficar livre – diz Zeus –, mas somente se ela não tiver comido
nenhum fruto do Mundo Avernal.
A deusa então se levanta, sorrindo de alegria, mas Zeus é quem ri por
último, porque Perséfone tinha comido oito sementes de romã do jardim
de Hades; assim, ela tem de ficar.
No entanto, Hades não quer que sua esposa fique triste. Desta forma, ele
faz um acordo. Perséfone pode passar seis meses com sua mãe na Terra e
seis meses com ele no Mundo Avernal. E assim os gregos pensavam que
era

por isso que havia verão e inverno – inverno porque a mãe de Perséfone
ficava triste por sua filha ir embora, e, verão, porque ela ficava contente de
vê-la de novo.

Gosto dessa história. Acho que é verdade, que a tristeza em alguém faz
as coisas escuras e frias, mas a alegria deixa tudo mais claro e brilhante.
A mãe de Perséfone chama-se Deméter. Ela é a deusa do amor materno
e das plantas que crescem.
22
O rei das castanhas-da-índia

No fim da estrada que leva à escola, tem um castanheiro-da-índia


enorme. Hoje, na escola, os meninos trouxeram um monte de castanhas.
– Professora, as castanhas se abriram!
– Professora, podemos ir catar castanhas?
– Professora, é educacional!
Na minha escola antiga, as castanhas não eram educacionais. Elas eram
violentas e competitivas e Se Você Não Pode Jogar Um Jogo Sem
Violência, Então Não Pode Jogar de Jeito Nenhum. Aqui, porém, Miss
Shelley nos leva até o castanheiro na hora do recreio e catamos quantas
castanhas podemos carregar. Josh e Matthew pegam um monte, um
batalhão

de castanhas. Alexander pega três – as maiores que ele acha.

Na sala de aula, aprendemos sobre as castanhas. Seu nome completo é


castanha-da-índia, mas elas não podem ser torradas na fogueira. São
sementes. Tem uma pequena faísca de vida dentro delas, adormecida até a
primavera. E aquelas que caem no lugar certo, quando chega a primavera,
são transformadas em mudinhas. E as mudinhas crescem até se tornarem
novos castanheiros-da-índia. Ou pelo menos foi isso que Miss Shelley nos
explicou.

Nenhum dos meninos presta atenção em sementes e árvores. Na hora do


almoço, todos correm para a Mesa de Arte e começam a brigar para ver
quem vai pegar as chaves de fenda e as furadeiras. As coitadas das
castanhas são enfiadas e penduradas em cordões e levadas para fora, para
serem destruídas. A castanha de Alexander é destroçada por Matthew. A de
Matthew é destruída por Josh. E a de Sascha também, o que é muito
injusto, porque Sascha só tem seis anos. Mas Mrs Angus disse que Josh
tinha de deixá-la jogar; então, é, de fato, culpa dela.
A castanha de Josh é tricampeã. A castanha de Josh ganha de todas. Ela
destroça a segunda castanha de Alexander e mais duas de Matthew. Agora
ela vira hexacampeã.
Josh anda pelo parquinho procurando castanhas para destruir.
– Você tem uma castanha? – pergunta ele para mim. Digo que não.
Minhas castanhas não foram furadas e estão sãs e salvas no meu bolso.
– Você tem uma? – pergunta ele para Hannah.
Hannah está sentada no banco no fundo do parquinho. Está escutando o
iPod do meu pai como se não ligasse a mínima para o que os outros fazem.
Ela tira os fones de ouvido e faz Josh perguntar de novo.
– Castanha – diz Josh. – Você tem uma?
– Castanhas são para crianças – diz Hannah. Josh fica vermelho.
– Você furou a sua – ele retruca. – Eu vi.
Hannah se levanta. As sandálias de plataforma a deixam mais alta que
Josh.
– Então vamos jogar – diz ela.
Josh foi o primeiro a atacar todas as outras castanhas, mas Hannah não
lhe dá chance. Ela tirou a castanha e está pronta para a batalha. Josh abre a
boca, mas logo fecha.
Hannah estreita os olhos. Puxa para trás a castanha e a solta no ar. A
castanha de Josh balança para trás, mas não sofre nada.
Agora é a vez de Josh. Ele faz uma careta e puxa o cordão. Poing! Mas
a castanha de Hannah também não sofre nada.
Hannah se prepara de novo. Desta vez, quando ela bate na castanha de
Josh, um pedacinho dela voa. Ela pode bater mais uma vez. Um pedaço
enorme da castanha de Josh se quebra. A castanha se desprende do cordão
e cai. Hannah ganhou.
– Pronto – diz ela.
O rosto de Josh fica vermelho, parecido com o de Sascha, quando ela
estava prestes a chorar ao vê-lo quebrar a sua castanha.
– Ladrona – diz ele. – Você roubou. Você deve ter roubado!
No portão da escola, Oliver está tocando o sino. Dingdong, dingdong,
dingdong.
– Na fila, todo mundo! – chama Mrs Angus.
– Ladrona! – resmunga Josh.
Hannah apenas olha, com aquele olhar especial de fúria que tem. Nem
se dá ao trabalho de responder. Apenas pega o iPod e entra na fila.
Josh faz cara de zangado.
– Sua irmã é uma ladrona – diz ele. – E você é uma idiota.

Alexander está no fim da fila com sua última castanha. É a melhor de


todas, uma castanha-rei, grande e brilhante.
– Não jogue com a Hannah – eu digo. – Ela acaba ganhando.
Alexander olha para a sua castanha com carinho.
– Não vou jogar com mais ninguém – diz ele. – Vou plantar a castanha
como a Miss Shelley falou. Depois vou ter um castanheiro somente meu.
Olho para a castanha de Alexander.
– Mas ela tem um furo.
– E daí? Eu tiro o cordão.
– Será que pode crescer com um furo no meio?
Alexander dá de ombros.
– Talvez nasçam castanhas já com o furo no meio.

Quando volto para o meu quarto, tiro as castanhas e as ponho


enfileiradas no parapeito da janela. São quatro. Tinker, Tailor, Soldier,
Sailor. Deito a cabeça no parapeito e fico olhando de lado para as
castanhas. Poderia fazer furos e deixar Hannah destruir todas. Ou posso
plantá-las e deixá-las se transformar em castanheiros-da-índia na
primavera.
23
Vazio

Volto para o celeiro naquela tarde. Chamo e chamo, depois vou para
fora e chamo; volto para o celeiro e chamo de novo.
Ele não responde.
Ele não vem.
Ele também sumiu.
24
Em estado de terror

A chuva cai em enxurradas nas janelas e desce em grandes rios a


ladeira. Meus cabelos estão ensopados e grudados na cabeça enquanto luto
para descer a ladeira. Já virou um riacho. O riacho de Molly.
A Vó está atendendo o Jack quando entro na lojinha.
– Ela é uma menina mimada – ela está dizendo. – Não sei quanto
tempo...
Ela para de falar quando me vê.
– E onde você estava, menina?
– Lá fora. Na minha bicicleta.
– Está bem. Agora tire suas galochas. Não leve a lama pela casa toda. E
não acorde o seu avô!
Ela não diz nada por eu estar toda molhada. Ou o porquê de eu ter
ficado lá fora por tanto tempo, tanto

que o dia já está quase escuro e o céu está cinzento, escuro e chuvoso.

Tiro as galochas no corredor. Escuto um barulho da cozinha. Coisas


quebrando.
– E a outra, então... – vovó está dizendo.
Hesito. Mais barulho de pratos quebrando na cozinha. Abro a porta e
paro. O chão está cheio de vidro quebrado e cacos de tigela e pratos.
Hannah está em pé em cima de uma cadeira com a cabeça dentro do
armário de cima. Quando ouve eu entrar, vira-se com as mãos abraçando a
caçarola grande do Vô.
– Hannah!
Hannah olha para mim com seu olhar mais afiado, daqueles que diz
não-tente-me-impedir-senão... Ela segura a caçarola de vidro no ar e deixa
cair.
Grito e pulo. Cacos da caçarola se espalham pelo chão.
– Hannaaah! Pare com isso! O que está fazendo?.
– Quero ir para casa – diz Hannah. Ela diz isso com muita calma. E
pega uma caneca da prateleira.
– Hannah! – é a voz da Vó que entra na cozinha.
Ela fica parada na porta ao meu lado por um instante, apreciando a
destruição. De repente, ela já está do outro lado da cozinha segurando
Hannah pelo pulso e arrancando a caneca das suas mãos. Depois, dá um
tapa no rosto dela.
Hannah fica sem ar. Ninguém jamais nos bateu, nunca, não importa o
que estivéssemos fazendo. Pode até ser ilegal. A Vó segura Hannah pelos
punhos e Hannah luta para se livrar dela, a cadeira sacudindo contra o
armário.
– Parem! – eu grito. – Parem!
E então o Vô chega. Ele corre e coloca as mãos na cintura de Hannah,
para evitar que ela caia.
– Chega – diz ele. – Agora chega. Chega.
– Olhe! – vovó exclama, mostrando a ruína que ficou a cozinha. – Olhe
o que ela fez!
– Estou vendo – diz vovô. – Eu sei. – ele fala como se estivesse
acalmando um animal selvagem. Olha para Hannah, ainda se equilibrando
na cadeira. Seu rosto está branco, com uma mancha vermelha no lugar em
que a mão da Vó a atingiu. – Hannah, vá para o seu quarto – ele manda.
Hannah não se move.
– Ela me bateu. Ela me bateu.
– Eu sei – diz vovô. Ele levanta a mão. – Agora pronto. Chega.
Conversamos depois.
Ele empurra Hannah para a porta e Hannah sobe, ainda estupefata,
como se ainda não acreditasse.
Eu ainda estou parada na porta. Espero o Vô dizer alguma coisa para
mim, perguntar se estou bem, se tive alguma coisa a ver com a quebra de
pratos, mas ele não diz nada. Ele vai até a Vó e a abraça.
Vovó está quase chorando.
– Não dá mais – ela está dizendo. – Não agüento mais. Não peça para eu
continuar, porque não agüento mais.
O Vô tenta abraçá-la, mas ela bate as mãos contra seu peito, o rosto
avermelhado.
– Não me toque – diz ela. – Não! Não posso mais!
Quero que o Vô olhe para mim. Não quero ser ignorada. Mas esta não é
minha casa: é a casa do Vô e da Vó e o Vô está alisando os braços da Vó.
Eu não teria coragem de tocá-la do jeito que ela está toda quente e furiosa,
dizendo “Eu sei, eu sei, meu bem”, e, de repente, fico assustada. Não sou
bem-vinda aqui. Então, vou sentar na escada e desejar com toda a força
que haja guarda-roupas mágicos ou fadas madrinhas para ficar invisível e
estar o mais longe possível dali.
Na cozinha, posso ouvir a Vó falando alto e o Vô, bem baixinho. O Vô
diz: “Se é isso que você quer fazer”, e a Vó diz: “Alguém tem de fazer”.
Ela empurra a cadeira e se levanta. Pega o telefone e começa a falar. Sei
que está falando, mas não consigo ouvir o quê ou com quem. Fico
pensando se vamos ser mandados para a casa da tia Meg ou da tia Rose e
se vou ter que dividir um quarto com meninos crescidos e horríveis, meus
primos, ou bebês que bagunçam tudo, ou se vou passar minha vida inteira
vivendo em um cantinho da família dos outros.
Não quero ir para o meu quarto – quero mesmo é que o Vô me encontre
ali sentada e veja quanto estou triste e miserável. Ouço o barulho de
panelas na cozinha e a chuva ainda açoita as janelas. No rádio está
começando a música da novela The Archers. Sinto as lágrimas crescendo
dentro dos meus olhos. Estão fazendo o jantar sem mim.
É a Vó que me encontra por fim. Ela sai da cozinha com as mãos
cheias de jornais com cacos de vidro e me vê.
– Molly Alice! O que você está fazendo aí?
– Não sei – respondo.
– Não adianta ficar aí sentada, sentindo pena de si mesma – diz a Vó. –
Vamos, levante-se ou vai pegar um resfriado.
Mamãe jamais teria dito uma coisa dessas se tivesse me encontrado na
escada, no escuro. Minha mãe também ficava com raiva – ela derramou
um prato de espaguete na cabeça da Hannah uma vez –, mas ela sempre
pedia desculpas depois, e aí tomávamos sorvete ou outra coisa para
mostrar que tínhamos ficado de bem. E falávamos sobre as coisas: o que eu
fiz, o que ela fez, o que ambas faríamos dali em diante. Mamãe gostava de
falar. Ela nunca me deixaria sentada nos degraus a noite toda. Meu pai
também não. Provavelmente. Sinto as lágrimas de novo e me viro para que
ela não pense que estou sentindo pena de mim mesma. Mas, ao mesmo
tempo, quero que ela veja, sim. Para que saiba exatamente o mal que está
me fazendo.
– Vamos – diz vovó. – Vamos, levante-se. Levante-se, Molly – e eu
aperto os lábios, mas as lágrimas escorrem dos meus olhos, descem pelas
minhas faces e não tem nada que posso fazer para pará-las.
– Oh... – diz vovó. – Oh, meu bem. Não chore, não. Vovó sente muito.
Venha, meu amor.
Ela me leva para a cozinha e me senta na cadeira. Vovô tira os olhos da
tábua de cortar legumes.
– Molly? O que foi? Está tudo bem?
Não, eu quero dizer, não dá para ver? Mas a Vó não me deixa
responder.
– Ela está cansada, só isso – diz a Vó. – Não é uma coisa boa ficar
ouvindo a Vó e o Vô discutirem, não é?
Esfrego os olhos. Só porque estou chorando, não quer dizer que gosto
de ser tratada como uma menininha de cinco anos. O Vô me dá uma
olhada rápida, mas não diz nada. Continua cortando as batatas. Vovó
prepara uma xícara de chá numa caneca de bebês com desenhos de
coelhinhos. Seguro a caneca e fico olhando o Vô fazer a comida e a Vó
enxugar as mãos em um pano de prato.
– Conversei com seu pai – diz ela, abruptamente. Levanto a cabeça e
quase derramo o chá na saia.
– Vamos voltar para casa?
– Ele vai ficar com vocês duas por um fim de semana – diz vovó. – E aí
vamos ver como vai ser.
– Este fim de semana? – pergunto. Sinto uma dorzinha no fundo do
estômago. Era para eu ficar alegre, sei que era. Mas tudo o que lembro é o
que se passou da última vez que estivemos em casa. Lembro o olhar vago
com que papai nos olhava, como se estivesse esquecido de quem éramos.
E como Hannah o perturbou tanto que ele se transformou em uma pessoa
que eu mal conhecia, alguém que podia simplesmente desligar a parte que
nos amava. E desta vez não tem uma tia Rose. Só vamos ser nós três.
Estou com medo, logo percebo que é isso.
– Está contente? – pergunta vovô. De repente, ele se parece tanto com
papai. Não havia percebido antes. Como papai, embora papai não seja tão
encurvado e a pele do Vô seja mais pálida e mais enrugada; dá para ver a
pele solta e flácida por cima dos ossos. Ele é todo branco, meu Vô; branco,
com cabelos ralos, olhos claros e úmidos, como se a vida o tivesse lavado
e encolhido parte dele. Fico imaginando se a mesma coisa pode acontecer
com papai. A vida passar e levá-lo para longe da gente, para sempre. Sim.
Pode acontecer.
– Um fim de semana inteiro com seu pai! – diz vovô.
Cerro os lábios e respondo com um gesto de cabeça. Um fim de
semana inteiro com papai. É o que quero, mais do que qualquer coisa no
mundo. Sacudo a cabeça para cima e para baixo, tentando não chorar.
25
Solstícios e Equinócios

Chegou o Halloween. Na escola, fazemos um mural. Uma bruxa com


meias de listras pretas e laranjas, um vampiro com uma gravata de
borboleta roxa e uma múmia feita de papel higiênico roubado do armário
de limpeza.
– Se as faxineiras perguntarem, não tem nada a ver comigo – diz Miss
Shelley, enquanto Mrs Angus sacode a cabeça e finge que não vê.
Fazemos lanternas de abóboras com as bocas cortadas em serrote e os
olhos chineses. Miss Shelley fecha as cortinas e enfileira as lanternas no
parapeito da janela. Elas parecem incrivelmente arrepiantes.
– Na época medieval – diz ela —, o costume era talhar os nabos, em vez
de abóboras. Para afugentar os maus espíritos.
– Eles faziam isso todo dia – pergunta Alexander, mostrando sua
inteligência de novo – ou somente no dia das bruxas?
– Apenas durante o dia das bruxas. As pessoas acreditavam que em
certas noites do ano as barreiras entre os mundos enfraqueciam. Coisas –
estranhas – podiam atravessá-las.
– Legal – diz Josh. – Vamos chamá-las!
No entanto, Mrs Angus diz que precisamos esperar até estarmos na
escola secundária antes que possamos fazer esse tipo de coisa.
– Que tipo de coisa atravessava? – pergunta Matthew.
– Ah, fantasmas, espíritos – diz Miss Shelley. – Sua caça selvagem,
Molly. O dia das bruxas era uma das noites em que eles costumavam
cavalgar.
– Quando mais? – pergunto. – Em que outras noites eles aparecem?
Miss Shelley move os fios claros dos cabelos para trás das orelhas. Na
meia luz, ela se parece tanto com minha mãe.
– Solstícios e equinócios – diz ela. – No dia mais longo e no dia mais
curto do ano. E nos dias em que a noite e o dia são exatamente iguais.
Vinte e dois de setembro era o equinócio do outono. As noites ficam cada
vez mais longas e mais escuras de agora até o solstício de inverno.
Na sala escura, com as cortinas fechadas e as lanternas de abóboras
iluminadas, até os meninos ficam calados. Tenho um arrepio. Vinte e dois
de setembro.
Será que foi o dia que o caçador apareceu? Será que virão esta noite?

10
Quando o Vô sugere para irmos pedir doces nas casas , Hannah
resmunga:
– Quantos anos você acha que eu tenho? Vovô fica decepcionado.
– Moll? – diz ele para mim.
– Eu já sou grande para fazer isso, Vô – eu digo, embora não seja, e
Hannah também não. Em casa, até mesmo o pessoal da escola pública
colocava uma máscara só para ganhar doces. Mas não quero sair sozinha
se o Rei Azevinho estiver no seu cavalo por aí.
Vovô tenta não demonstrar sua decepção.
26
De volta para casa

Sexta à noite. Papai deve vir nos buscar, mas está atrasado. Hannah e eu
estamos prontas e esperando na sala. Hannah chuta a perna do sofá com
seu salto. Dum—du-dum—du-dum—du-dum.
– Ele já chegou?
– Está chegando – diz vovó. – Para que essa pressa? Por que não liga a
televisão?
Hannah fica mudando de canal, mas não escolhe nenhum. E começa a
ligar e desligar a TV, assim os personagens na novela Neighbours
aparecem e desaparecem, agora sim, agora não, agora sim, agora...
– Chega – diz vovó. – Hannah!
Hannah se levanta e corre para a janela.
– Ele chegou?
Não chegou.
Seguro o livro na frente do rosto, tão perto que as letras se emaranham
e se separam, palavras se misturando com outras, até que nada faz sentido.
Sei que devia me sentir alegre, porque estamos voltando para papai, mas
não me sinto. Não sinto nada.

Quando ele chega, está todo constrangido. Ele inclina a cabeça para o
lado e nos olha de esguelha.
– Olá – diz ele. – Estão prontas?
Eu confirmo e Hannah diz:
– Estamos prontas faz muito tempo – e não demonstra um pingo de
alegria ao vê-lo.
Ficamos calados no carro. Por fim, Papai diz:
– Ouvi dizer que você está causando problemas – e dá uma risada
nervosa.
Hannah diz:
– Não – o que é totalmente ridículo, porque a Vó já contou a papai
exatamente o que aconteceu.
Eu digo:
– Eu não fiz nada. Hannah quebrou metade da cozinha do Vô e tivemos
que comer as lingüiças nas tigelas de cereal.
– A Vó me bateu – diz Hannah.
– Pelo jeito, você mereceu – diz papai.
– Mas ela me bateu – diz Hannah.
– Foi mais como um tapa – eu digo.
Sei exatamente o que Hannah está pensando. Conheço aquela expressão
no seu rosto. Ela está pensando: “Mamãe ficaria furiosa com isso. Mamãe
sabia ficar furiosa de uma maneira que papai não sabe.”
– O que você quer que eu faça a respeito? – diz ele. Dá sua risada
nervosa de novo. – Você mora com sua avó agora. Se vai sair quebrando
tudo que ela tem, ela tem todo direito de punir você.
– Ela não tem o direito de me bater – diz Hannah. – Além disso, ela está
me fazendo pagar por tudo. Você é nosso pai! Por que não manda ela
parar?
Papai está concentrado no trator à sua frente.
– Não – diz ele, irritado. – Não tem nada mais a ver comigo.
Hannah e eu ficamos boquiabertas. Agora sou eu que quero bater nele.
– Se não tem nada mais a ver com você – diz Hannah, por fim –, então
por que está nos levando para casa para passar o fim de semana?
Um bom tempo passa, tanto que acho que papai não vai responder.
Mas, finalmente, ele responde, sem olhar para a gente.
– Porque sua avó me pediu.

Nossa casa não parece mais nossa casa. Tem um cheiro de mofo que não
me lembro de ter sentido antes. Cheiro de meias sujas, quartos de janelas
fechadas. Tem canecas mofadas e outras coisas em cima da mesa, e, no
chão, ao lado do sofá, pratos com pontas de pizza velhas e duras, com
caldo de feijão grudado neles. Uma pilha de cartas e jornais, com outras
coisas em cima do console no corredor. A lixeira da cozinha está com
tanto lixo que não dá mais para abrir a tampa. Papai deve ter desistido de
abri-la, mas não se deu ao trabalho de esvaziá-la. Tem um saco de lixo
pendurado na porta de um dos armários cheio de lixo, também.
– O que aconteceu com esta casa? – pergunta Hannah.
Papai não responde.
Meu quarto está uma bagunça também, mas foi assim que deixei.
Alguém – a tia Rose, talvez – lavou todas as roupas sujas, mas o resto das
minhas coisas eles simplesmente puseram em cima da minha
escrivaninha. O quarto já parece que pertence a outra pessoa. Pego
Humphrey da minha mochila e ponho em cima da cama, não para me dar
conforto, apenas para ter alguma coisa que ainda sinto pertencer a mim. Só
quando vejo a estante de livros é que sinto que o lugar é meu. Meus livros!
Tracy Beaker e o meu antigo Winnie the Pooh! Quero pegar e ler todos de
novo. Quero saber quantos livros papai vai me deixar levar para a casa da
Vó.
Não acho que vamos mais nos mudar para cá.
– Molly. Molly!
Hannah está encostada na porta do quarto.
– O que foi?
– Ele nem arrumou a casa para a gente. Tem resto de comida
embolorado dentro da geladeira, entre outras coisas.
Provavelmente, deveríamos limpar a casa para ele. Provavelmente, isso
é parte daquilo que é o tomar-conta-de-seus-pais que as crianças no
programa do Blue Peter fazem. Provavelmente, precisamos limpar a casa
para o papai, se é que queremos voltar a morar com ele.
– Você quer arrumar a casa? – pergunto. Hannah faz um gesto de
desprezo.
– Quero um chá – diz ela. – Venha.
Papai está sentado na frente da televisão. Ele não se importa com a
sujeira. Está assistindo a um jogo de cricket.
– Papai. Papai. Papai!
– O que é?
– O que vamos comer?
Papai esfrega os olhos.
– Podemos comer batata frita, eu acho. Ou ovos, talvez...
Seguimos atrás quando ele vai à cozinha. De jeito nenhum meu pai teria
deixado a casa neste estado em tempos normais. De modo geral, ele é
sempre mais arrumado do que mamãe; é ele quem brigava com ela por
deixar os livros abertos, marcas de lama nos degraus ou por trazer
pedrinhas e conchas da praia, deixando o monte na mesa do corredor para
logo se esquecer delas.
– Para que precisamos de mais tranqueira nesta casa? – ele dizia,
olhando para o monte de algas marinhas.
E mamãe dizia: “Oh, as meninas vão fazer um quadro!” Ou então: “Esta
pedra achamos naquela caminhada em Dorset – você se lembra? Não pode
jogar fora!”
E papai fingia que estava com raiva e dizia: “Como é que vou me
lembrar? É exatamente igual às outras pedras! Se continuarmos assim,
vamos acabar morando em uma cabana de praia!”
E mamãe e eu dizíamos ao mesmo tempo: “Então vamos!”
Ainda tem um punhado de conchas, amonídeos e pequenos vidros
rolados do mar sobre a janela da cozinha, mas uma aranha fez uma teia
entre eles. Papai abre a porta da geladeira e olha para dentro como se
tivesse um jantar completo escondido lá dentro (não tem). O que tem são
coisas apodrecendo no fundo da gaveta de legumes e um pimentão coberto
de mofo. E o cheiro é horrível.
– Por que você não joga essas coisas fora? – Hannah quer saber.
– Desculpe?
– Olhe esse pimentão apodrecido cheio de fungos. Por que ainda está aí
dentro?
– Oh...
Papai pega o pimentão e toca na tampa da lixeira. A tampa não cede.
Ele olha para o pimentão por um momento e depois o põe de volta na
geladeira.
– Que tal uma pizza?– ele pergunta.
Eu não digo nada.

Hannah está toda animada por causa da pizza. Ela fica pulando e
dizendo que quer pão com alho e asa de frango e Coca-Cola, e será que ela
pode ligar para a pizzaria?
– E sorvete de morango – diz ela para o homem no telefone. Papai abre
a boca para discordar, mas não diz nada. Parece muito cansado para
reclamar.
– Eu pedi sorvete – diz Hannah. – Você ouviu?
– Ouvi – diz papai. – Eles disseram quanto tempo vai levar?
No livro O que Katy fez, de Susan Coolidge, Katy toma conta da casa
sozinha. Ela, pelo menos, é organizada. Eu volto para a cozinha e tiro as
crostas de pizza do prato. Tento enfiá-las no saco de lixo pendurado na
porta do armário. O saco cai e derrama restos de comida no chão.
Papai aparece na porta.
– O que está fazendo?
– Nada. O saco de lixo caiu do armário.
Papai esfrega o rosto.
– Pensei que você ia fazer comigo igual a Hannah. Venha, meu bem.
Deixe isso para lá. A pizza já deve estar chegando.
Sigo atrás dele. Aposto que Katy nunca teve este problema.
Na sala, Hannah está assistindo Os Simpsons com os pés sobre a mesa.
Eu sento no canto de uma poltrona. Se mamãe estivesse aqui, não
estaríamos esperando por pizza e assistindo televisão. Estaríamos fazendo
coisas próprias de uma família.
– Papai – eu digo.
Ele não olha.
– Papai. Podemos jogar Monopoly?
Hannah se endireita no sofá.
– Sim! – ela diz. – Podemos? Posso ser o banqueiro? Posso jogar com o
cachorrinho?
– Não – diz papai, sem deixar de olhar para a televisão. E ele nem gosta
dos Simpsons.
– Aaaah, por que não? – pergunta Hannah.
– Porque a pizza vai chegar daqui a pouco.
11
– Vamos jogar baralho, vamos jogar Mentira ? – eu peço.
– Não.
– Depois da pizza?
– Não.
Enfio o dedo no buraco da poltrona. Sei que o que vou dizer é errado,
mas como está tudo errado mesmo.
– Mamãe deixaria.
Hannah prende a respiração. Papai não se move. Continua olhando para
a TV como se não estivesse me ouvindo.
– Mamãe teria jogado Monopoly. E teria feito um jantar de verdade.
Você não comprou nada para o café da manhã! Mamãe não teria ficado
sentada aí como...
– Sua mãe está morta.
– Eu sei que ela está morta! Você acha que eu não sei disso? Mas pelo
menos ela teria sido boazinha com a gente! Ela teria pelo menos nos
olhado na cara! Não ficaria aí sentada sem fazer nada! – agora estou
chorando, um choro de verdade, com soluços e lágrimas. – Eu queria que
você estivesse morto e mamãe, viva. Mamãe não nos abandonaria.
Papai se levanta, tão de repente, que acho que ele vai bater em mim,
meu pai querido vai bater em mim.
– Isso é ridículo – diz ele.
Um soluço fica preso na minha garganta.
– Não sei o que sua avó está querendo com isso – ele diz. – Não sei o
que vocês estão querendo com isso. Fingindo que podem voltar a morar
aqui.
Hannah fica tensa.
– Não vamos? – eu digo.
– Não.
O tempo para.
– Sinto muito eu não estar morto – diz papai. – Se estivesse, esta
situação teria se resolvido de vez.
O que ele diz é tão assustador que não dá nem para chorar. Papai
também não está chorando, mas seu rosto treme por baixo da pele.
– Vou ligar para a sua avó – diz ele, e sai da sala, passando por mim do
mesmo jeito que a Hannah faz.
A campainha toca. Hannah está me olhando feio.
– Muito obrigada mesmo – ela diz – por ter estragado tudo!
Ela corre da sala e vai atrás de papai. A campainha toca de novo. É o
entregador de pizza.
– Você pediu pizza? – pergunta ele.
Não respondo. Não paro de chorar.
– Você pode chamar seu pai ou sua mãe para mim? Alguém tem de
pagar a conta.

Papai está no computador lá em cima. Seus olhos estão abertos e ele


fita a tela, mas as mãos não se movem.
– Papai – eu digo –, papai, precisamos de dinheiro para pagar a pizza.
Ele não se move. Posso ver a carteira no seu bolso, mas não me atrevo
a pegá-la.
– Papai – eu digo –, a pizza chegou. Papai.
Eu me aproximo e vejo que ele está chorando.

No sábado de manhã, o Vô joga quatorze jogos de Mentira em seguida


conosco. Mas isso não ajuda em nada.
27
Órfã

Se você tem apenas o pai ou a mãe vivo, como Hannah e eu, porque
mamãe já morreu, então você é uma órfã. Sempre pensei que teria de ser
ambos os pais mortos, mas pode ser um ou os dois.
Ser órfã soa grandioso, como o Harry Potter ou a Mary do Jardim
Secreto. Hannah e eu deveríamos estar morando em um orfanato, como a
12
Tracy Beaker , ou em uma esquina de rua, com furos nas botas e nada
para comer. Ser órfã não é nada assim.
Ser órfã soa muito dramático, mas, na verdade, não é. Você se acostuma
com tudo. Você se acostuma a morar na casa dos outros e não ter suas
coisas, a estar longe das amigas, ou de seu pai, e a estudar numa escola
minúscula e estranha em que ninguém fala com você, e Josh e Matthew
riem de você o tempo todo. Você se acostuma com as brigas constantes da
Hannah com a vovó e a ter um pai que está sempre longe e de não saber
nunca se você vai viver aqui para sempre ou se vai voltar para casa
amanhã.
Você pode até se acostumar com o vazio na sua vida onde antes havia
alguém. Um vazio onde você pensava que aquela pessoa iria viver ali para
sempre, mas um dia essa pessoa sai, sem olhar para trás, ou dizer adeus, e
some para sempre.
28
Novembro

O Vô nos leva de volta para a casa dele. Durante o caminho inteiro, fico
esperando que a Vó esteja com muita raiva da gente e penso que o Vô,
também, porque ele diz: “Não foi culpa delas, Edie” assim que entramos
em casa.
Vovó passa a mão entre os cabelos.
– Sei que não foi – diz ela, com desagrado. Olha para Hannah. – Então,
mocinha – diz ela –, pelo jeito vamos ter você aqui por mais um tempo.
Vamos ver então se pelo menos deixamos a cozinha inteira, não é?

Hannah não quebra mais nada. É novembro agora e as noites estão


aumentando. Cada dia fica escuro mais cedo. Se o meu homem tinha
razão, isso quer dizer que o Rei Azevinho fica cada vez mais forte. Desde
que voltamos da casa de papai, tudo parece mais pesado e cinzento. Ate o
céu parece pesado – nuvens cinzentas, com um céu cinzento por trás.
Papai nos visita apenas duas vezes em novembro. E não fica muito
tempo – acho que tem medo do que a Vó possa dizer para ele. Os dois
quase não se falaram desde aquele nosso fim de semana com ele. Ele não
nos leva para nenhum lugar interessante. Em vez disso, fomos comer peixe
com fritas na praia em Alnmouth uma vez e fazer uma longa caminhada
pelo vilarejo uma outra vez – a mesma caminhada chata que fazemos com
meus avós.
Hannah não briga e não quebra nada, mas fica totalmente apática.
Quando papai fala com ela, ela se afasta. Duas vezes, quando saímos
juntos, ela começou a chorar sem nenhuma razão.
Eu não choro. Não é que perdoei papai, mas não posso dizer isso para
ele. Não depois do que aconteceu da última vez. Não posso. Pais devem
amar suas filhas, não importa o que elas façam, mas talvez aquela parte de
papai tenha sido danificada, se ele pode nos mandar de volta depois de
apenas uma briga. Agora já pensou se brigamos um dia e ele vai embora
para Newcastle para nunca mais voltar?
Começo a sonhar com o Rei Azevinho. Ele está farejando ao redor da
casa à noite. Está trazendo o inverno. Manda pingos de gelo pela chaminé
e a geada sobe pelas paredes da casa. Ele sopra pelas frestas das portas e
bate no vidro da minha janela. Está tentando entrar.
Eu leio muito. Acabei todos os livros da série Secret Seven e começo
uma série de mistérios. Vovó reclama do custo de ter de encomendar
tantos livros para mim e por que eu não tiro os livros da biblioteca. Mas eu
já li todos os livros da Enid Blyton e todos os da Jacqueline Wilson da
biblioteca de Hexham; então, o que posso fazer? Eu ajudo o Vô na lojinha.
Cresço um pouquinho. Chega dezembro.
29
Sino de magrela

Os cartões de Natal começam a chegar. Hannah e eu escrevemos cartões


para todo mundo na escola.
– E papai? – eu pergunto.
– Pais não recebem cartões de Natal – diz Hannah. Ela está escrevendo
sem parar, com a cabeça inclinada sobre o cartão. Espio por cima do seu
ombro.
Caro Josh,
Espero que você tenha um Natal totalmente terrível. Espero que você
não ganhe absolutamente nada, mas sei que você vai ganhar, você vai
ganhar UM PEDAÇO DE CARVÃO do Papai Noel, o que vai fazer você
CHORAR, porque você ainda acredita em Papai Noel. Infelizmente, Josh,
ele não existe.
In—FELIZ NATAL
E UM
Miserável (PRÓSPERO) ANO NOVO
Com muito ódio

Hannah

– Você não vai mandar esse cartão! – eu digo.


– Mas é claro que vou – diz Hannah. Ela põe o cartão dentro do
envelope, lambe as pontas e escreve SEGOCO no verso.
– Selado com Gosma de Coco – diz ela. – Ou Cocô, talvez...
– E papai – eu peço. – Vamos enviar um cartão para papai? Ele sempre
manda um para a Vó e para o Vô.
– A Vó, o Vô e papai não moram no mesmo teto – diz ela. – Não é? E
nós devíamos estar morando com papai, só que não estamos. E não
queremos que ele pense que está tudo bem; assim, não vamos mandar
cartões de Natal para ele, porque não se manda cartão de Natal para as
pessoas com quem se mora, ou se devia morar. Entendeu?
– Entendi – respondo.
Hannah fica satisfeita.
– Certo – diz ela, e começa a desenhar bostinhas no envelope.

Fico meio que esperando que papai nos mande um cartão de Natal, mas
ele não manda, nem mesmo para o Vô e a Vó.
Vai saber o que entender com isso!

Pensei que Josh fosse ficar com raiva quando recebesse o cartão da
Hannah, mas ele deu risada.
– Agora leia o meu – diz ele.
Todo mundo se aproxima de Hannah e ela começa a ler.

Querida Hannah Banana


Bate o sino, pequenino, sino de magrela,
de magrela como a Hannah, cheia de ramela.
Hoje à noite o pai dela embaixo da janela
com a Page Three bela felizes a trepar

JOSH The Boss


Feliz Natal, Joyeux Noel, Fröhliche Weihnachten,
Feliz Navidad
A venda deste cartão auxilia a organização Salvem as Crianças

Sinto um friozinho na barriga quando leio o cartão.


– O que é Page Three? – pergunto.
– É a página depois da dois – diz Matthew, rindo.
– Idiota – diz Hannah. – É a página três no jornal The Sun. Tem sempre
uma mulher nua nela.
Hannah não fica com raiva por causa do cartão. Ela o lê de novo e
sorri. Depois coloca o cartão no seu estojo de lápis.
Fico me perguntando se jamais vou entender minha irmã.

A chegada do Natal traz outras coisas para me preocupar. Pergunto ao


Vô:
– Vamos ter meias na lareira, não vamos?
– Claro que sim – diz vovô. Ele está abrindo uma caixa de latas.
– Ponha estas latas na prateleira, está bom, meu bem? Assim posso
dizer ao Papai Noel como você foi boazinha.
Ponho as latas de qualquer jeito na prateleira e volto para perto do
balcão. Tem um adesivo na caixa registradora com um código de barra
inútil. Fico tentando arrancá-lo sem deixar a marca da cola. Sei que Papai
Noel não é real. Sei que é a mãe da gente.
– Só que nossas meias estão na casa de papai.
– Ele vai trazê-las.
Puxo o adesivo tentando não deixar marcas na caixa registradora.
– Ele vem passar o Natal, não vem?
A Vó está pendurada no topo da escada, decorando as prateleiras de
cima com enfeites de Natal. Ela olha para mim, as mãos cheias de enfeites
brilhantes.
– Molly Alice – diz ela. – Que pergunta é essa? Mas é claro que ele
vem. Para onde iria?
Mesmo assim, ainda estou preocupada.
Temos uma árvore de Natal de verdade, vinda da pequena fazenda dos
pais da Emily. Já tem um monte de presentes embaixo – muito mais do
que o normal.
– Presente de quem está com pena – diz Hannah. – Tente fazer uma
cara mais triste da próxima vez que alguém vier visitar e podemos ganhar
até mais.
Também temos mais gente para dar presente este ano. Vamos mais
uma vez à Hexham com a tia Meg. Eu compro:
13
Para a Vovó: um vidro de chutney todo sofisticado e um ímã de
geladeira escrito Avós são perfeitas, na esperança de que ela se toque.
Para o Vovô: uma gravata borboleta com bolinhas roxas para fazê-lo rir.
Para Hannah: um saco de pancadas para ela bater, em vez de bater em
mim e em Josh.
Para o Papai: uma moldura com a foto tirada na escola, no ano passado
para que ele não esqueça quem somos.
Compramos também uma bruxinha com meias listradas para Miss
Shelley e uma caixa de bombons para Mrs Angus porque, como Hannah
diz, “Se você der doce para os adultos, eles abrem e oferecem para todo
mundo. Então não escolha estes – eu não gosto de caramelo. Compre este
aqui”.
Tenho um montão de dinheiro guardado, porque não tem nada para
comprar por aqui, a não ser doces, e doces o Vô nos dá de graça. Compro
um gorro de lã e uma caixa de chocolates com Papai Noel para o meu
homem – só no caso de ele aparecer.
30
Quadros na terra

Viro a chave na fechadura bem devagarzinho, para não fazer barulho.


Vovó está na lojinha e ela tem ouvidos afiados. Não me deixam sair
sozinha depois que escurece, o que quer dizer que não posso sair mais à
noite, porque escurece tão cedo.
Abro a porta; devagar, devagar. Ouço os risos na loja e escapo debaixo
do nariz deles, empurrando a porta por trás. Livre!
Estou com a lanterna e a chave extra no bolso. Além disso, não estou
indo muito longe. Só quero deixar os presentes de Natal para o meu
homem – caso ele volte.

A lua brilha acima dos morros, pálida e fina, com um anel de gelo ao
redor. O céu tem um tom azul profundo e escuro. Não estou com medo.
Vejo a camada fina de geada na grama e sinto uma espécie de mágica de
bruxas no ar e no céu, o que me deixa empolgada. É o tipo de noite de que
minha mãe e eu gostamos mais.
A casinha dele adquire um ar misterioso sob o céu de névoas. Como se
escondesse um segredo. Meu coração começa a bater mais rápido. Ele
pode ter retornado, por que não? Só para o Natal? Não. Não pode.
O celeiro está vazio. As raízes do carvalho se espalham pelo chão e seu
cume espeta o furo no telhado quebrado do celeiro, os galhos alcançando o
céu aberto. Vou e toco na árvore. Está fria. A madeira é seca e escura.
Será que ele morreu? Não sei.
Ponho os presentes no chão e me sento em um saco de cimento.
Descanso a cabeça nos joelhos e abraço as pernas.
– Queria tanto que você voltasse – eu digo–, de onde quer que esteja.
Nada acontece. Começo a arranhar o chão com o canto afiado de uma
pedra. Tento desenhar uma lua cheia, mas ela parece apenas um círculo.
Faço então um rosto, com chifres e olhos redondos. Fica uma coisa boba.
Faço dos chifres, folhas, que crescem da cabeça. Faço galhos se
esticando do lugar onde deveria ser o nariz, se ele tivesse um nariz.
Acima de mim, os galhos do carvalho tremulam.
Desenho uma lápide ao redor do rosto. Embaixo do túmulo, faço uma
mulher com cabelos longos. Faço os cabelos crescerem até ela ficar
enterrada sob os fios, como a Bela Adormecida.
Parece que ela foi apagada por linhas. Ou como se fosse enterrada
viva.
– Será que um morto pode voltar para uma visita? – pergunto, em voz
alta.
O carvalho treme. Os galhos se movem em um complicado movimento
de boas-vindas ou de aviso. Uma mão aparece e cobre a minha.
– Quem está morto? – ele pergunta.
31
Dois reis

Ele! É ele. Está meio sentado, encostado na árvore, sombras cinzentas


cobrem seu rosto.
– Você voltou!
Estou tão contente, que me esqueço da timidez. Pulo e o abraço, do
jeito que posso, por ele ter as costas contra o tronco da árvore.
– Onde você esteve?
Ele não responde. Eu me afasto.
E, pela primeira vez, o vejo claramente.
Sua aparência é terrível. Seu rosto está muito mais magro do que eu me
lembro, com bochechas sugadas e manchas escuras sob os olhos. Sua cor é
um branco acinzentado horrível. Fica difícil de dizer, no escuro, onde ele
termina e a árvore começa.
E está tremendo.
– Você está bem? – pergunto. E como ele não responde, acrescento: – O
que há de errado com você?
Ele se sacode. Toco sua mão. Está gelada.
Ele ainda está coberto apenas com as suas calças estranhas. Tiro meu
casaco e cubro seu peito. Ele não se move.
– Não pode ficar aqui – digo. Posso não saber muito, mas isso eu sei.
Ponho meus braços ao redor dele e tento levantá-lo. Ele respira com
esforço e grita, e eu paro, sem saber o que fazer.
– Você precisa vir comigo. Tem de vir.
– Não – diz ele. E põe a mão no meu braço.
– Mas...
Ouço um barulho que vem da porta atrás de mim. Viro-me muito
rápido para dar tempo de sentir medo e prendo a respiração por um
instante.
É o Rei Azevinho.
Está parado na porta. É muito maior do que eu me lembro – mais alto,
mais forte, também.
A luz se reflete na geada, no batente onde ele põe a mão. Mordo os
lábios. Será que ele me seguiu? Será que fui eu que o trouxe aqui? Será
que é minha culpa de novo?
Olho para o meu homem, o meu Rei Carvalho. Ele move sua mão
sobre a minha e me dá um leve aperto. Está tremendo de frio, mas ainda
pode falar.
– Ainda não – diz ele.
O Rei Azevinho não responde. Fita-me com seus olhos negros.
– Não deveria estar aqui – diz ele.
– Deixe ela em paz – balbucia o meu homem. Por que é isso mesmo,
apenas um balbucio. Sua mão ainda treme por cima da minha.
– Vá para casa – diz ele.
– Não – eu sussurro.
No celeiro é silêncio, a não ser pela sua respiração dolorida.
– Olhe – diz ele, enquanto eu me aproximo, tentando compreender suas
palavras. – Você me perguntou uma vez... sobre trazer alguém que morreu
de volta – ele treme. Eu seguro firme a sua mão. No escuro do celeiro,
suas palavras têm um significado sinistro e, de repente, sinto medo. – Para
você – diz ele – eu posso...
– O que você quer dizer? – pergunto. – O que pode para mim? O que
você vai fazer?
Será que vai trazer minha mãe de volta? Como? Como um zumbi? Um
fantasma? De verdade? O terror toma conta de mim, tão súbito como água
numa enxurrada.
– O que você vai fazer?
Atrás de mim, o Rei Azevinho se mexe, o gelo rachando no batente da
porta. Meu homem se enrijece. Aperta minha mão.
– Vá para casa – diz ele.
Eu aperto sua mão também. Não sei o que dizer. Eu te amo? Soa bobo e
muito dramático. Vai ficar tudo bem com você? E se não ficar, o que vou
fazer? Chamar a polícia?
E o que ele quer dizer com “ainda não”? Quanto tempo mais ele vai
durar?
Pego a pedra com o canto afiado com que estava desenhando. O Rei
Carvalho, o Homem Verde, solta minha mão. O homem-monstro dá um
passo para o lado, dando espaço para eu passar. Acho que o meu homem
olha para cima, mas está tão escuro que fica difícil saber com certeza. Ele
está na parte sombreada do celeiro; sua forma cinza que se funde com o
tronco da árvore; na escuridão, não se sabe onde uma começa e a outra
termina.
Passo com cuidado pelo Rei Azevinho. Estou tremendo. Nem ele, nem o
meu homem se movem. Estou segurando a pedra fria na palma da mão. Se
eu jogasse a pedra nos seus olhos, será que ele ficaria cego? Será que a
pedra o mataria?
Estou perto dele na porta. Seu odor animalesco me envolve. Tudo o
que preciso fazer é levantar meu braço e atirar.
Mas não atiro. Continuo andando, atravesso a porta e o momento
passa. Paro e deixo a pedra cair na lama e, de repente, me vejo correndo,
uma menina sob o vasto céu escuro, atravessando correndo o campo já tão
familiar, correndo para casa.
32
Loki

Vou contar uma coisa sobre deuses. Você pode pensar que todos os
deuses são bons – sabe como é, o deus do vinho pode ficar embriagado de
vez em quando, ou o deus da matemática pode ser um tédio, mas não são
realmente maus ou coisa assim. É que, sabe como são essas coisas, se você
é o deus da matemática, então você tem de falar o tempo todo sobre
divisões, frações e multiplicações. Mas a gente precisa de todos os deuses
diferentes, mesmo os deuses das frações, ou da chuva, ou das calcinhas,
porque, se não fosse assim, não teria ninguém para pedir ajuda quando se
está lutando com um problema de matemática. Ou quando não se acha
nem ao menos uma calcinha na gaveta.
Bom. Talvez seja o que você pense, mas não é verdade. Porque existem
alguns deuses que são só maldade. Tem o Loki, por exemplo, que é um
deus dos Vikings que sai por aí fazendo coisas ruins sem uma razão
qualquer, como matar outros deuses só por diversão, e depois se recusa a
chorar, para que o tal deus morto não renasça jamais. Ele era tão mau que
os outros deuses o amarraram numa caverna subterrânea e puseram uma
serpente venenosa em cima da cabeça dele e agora a serpente pinga o
veneno sobre ele o dia inteiro e a noite inteira e a mulher dele tem de ficar
em pé com uma vasilha juntando o veneno. E quando a vasilha está cheia,
ela precisa esvaziá-la, e o veneno pinga na cabeça de Loki e ele se sacode
tanto que a Terra inteira treme, e é por isso que acontecem os terremotos.
Ou pelo menos é isso que os Vikings achavam.
E isso prova que nem todos os deuses são bonzinhos. Alguns deuses
podem matar outros deuses e fazer com que eles jamais renasçam. Só por
diversão.
33
Dormindo e acordando

Durante toda a noite, eu fiquei entre dormir e acordar. Foi aquele tipo de
noite em que você acha que não dormiu nada, mas deve ter dormido,
porque para onde teria ido à noite?
O deus da caça bate à minha porta.
– Ainda não – eu grito. – Ainda não!
Mas, “agora”, diz ele, e continua batendo na porta com força e o vento
sopra dentro do quarto, espalhando tudo pelo ar – as revistas na loja, as
latas caem das prateleiras – e eu estou escondida atrás da porta e ele está
de pé com seus pés de patas, olhando. E minha mãe está lá também,
levantando-se de seu túmulo, um esqueleto muito querido com calças
jeans e com longos fios de cabelos loiros.
E então grito e grito e, de repente, o Vô está lá, então devo ter sonhado,
e ele está dizendo:
– Pronto. Pronto. Está tudo bem. Estou aqui.
E sinto seus braços me abraçando e estou chorando e digo:
– Ele está vindo! Ele está vindo!
E o Vô me abraça e me balança, com muito carinho, muito mais
carinho que a Vó, e diz:
– Pronto, não chore. E eu fico pensando: “se eu contar sobre o Rei
Azevinho, será que ele poderá salvar o meu homem?” E imagino que se eu
sair agora, no meio da noite, posso chegar até antes que o Rei Azevinho e,
de alguma maneira, salvá-lo. Mas a noite é escura e profunda e o vento
açoita os vidros da janela, depois se acalmando por completo, só para
começar tudo de novo, e o Vô dizendo, “Pronto, pronto”, do mesmo jeito
que o homem na estrada, e os chifres crescem da sua cabeça e as folhas
crescem de suas orelhas e nariz e ele é um gigante acima de mim, tão alto
como o carvalho no celeiro, sacudindo na brisa, e meus olhos se fecham e
estou caindo no sono de novo, antes que possa fazer qualquer coisa.
34
Medo

Sei que deveria voltar para o celeiro, mas não volto.


Vou assistir ao concerto do Seaman’s Mission Carol Service, que é um
coral de marinheiros, com a Vó, porque sempre vamos, em homenagem ao
meu bisavô, que era da Marinha. Vou ver meu primo Tom representar uma
irmã feia na pantomima de sua escola. Fico ajudando o Vô a pendurar
todos os cartões de Natal para ficar tudo pronto para a chegada de papai.
Sei que deveria voltar lá, mas não vou.
35
O ano morre no meio da noite

É a última semana de aulas na escola e quase não fazemos lições.


Cantamos canções de Natal (com Hannah e Josh cantando as versões
sujas) e ensaiamos a peça de Natal. Estamos fazendo uma versão moderna
14
da Natividade . Em casa, nunca havia papéis suficientes para todo mundo
e acabávamos sendo anjos ou pastores extras, mas aqui todo mundo, a não
ser Maria e José, fazem dois papéis. Eu sou um anjo com asas de papelão e
também um dono de albergue.
– Sim – eu digo. – Vocês podem dormir na extensão, que é minha
garagem.
Queria muito que o Vô tivesse uma extensão-garagem em que meu
homem pudesse ficar. Ele também é um deus, como Jesus.
Hannah e Josh são Maria e José. Coitado do pequeno Jesus. Josh é um
encanador, em vez de carpinteiro, porque carpinteiros não são
suficientemente modernos.
– Mas como você vai ter um bebê?! – diz ele para Hannah. – Ainda não
nos casamos.
– É tudo de que você precisa saber – diz Hannah. – Ele é filho de Deus,
evidente, não é?

No último dia de aula, cortamos a frente dos cartões de Natal já usados


para fazer calendários. Quem será que vai ganhar o nosso este ano, vovô
ou papai? Decido dar o meu para quem a Hannah não der o dela, mas não
deixa de ser triste. Nossos calendários ficam sempre pendurados um ao
lado do outro na porta da geladeira da nossa antiga cozinha. Olho para a
Hannah, para ver se ela está triste como eu, mas ela está ocupada, pondo
chifres e um rabo em um Joseph de um cartão de Natal, e não parece se
importar.
No recreio, está muito frio. Tem gelo na parede onde há sombra. Os
meninos começam a deslizar no gelo e logo todo mundo está deslizando
também, até mesmo Emily. Hannah e Josh tentam empurrar um ao outro.
Depois que eu quase caio duas vezes, vou procurar um lugar para deslizar
no gelo bem longe deles.
De repente uma lembrança me vem à cabeça, de uma vez quando faltei
às aulas para ir ao dentista. Eu e mamãe estávamos voltando para o carro
quando vimos uma pista de patinação ao ar livre no centro da cidade.
– Vamos patinar – disse ela, e fomos. No começo, fiquei segurando na
beirada, sem saber o que fazer, mas mamãe segurou minha mão e me
puxou e ficamos fazendo giros pela pista cada vez mais rápidos, até
ficarmos com tanto calor e rindo que acabei me esquecendo de ficar com
medo.
E depois que me lembro disso, não quero mais deslizar. Fico agachada
no frio olhando os outros.
Imagino se o meu homem já está morto.
Matthew vem e enfia gelo dentro do meu casaco.
Eu sinto que vou chorar, que é uma coisa que não se devia sentir quando
é o último dia de aula e apenas quatro dias antes do Natal.
A tarde é um pouco melhor. Fazemos a peça e todos os pais vêm assistir.
Na verdade, são apenas nove pessoas, o Vô e a Vó, Miss Shelley e a Mrs
Angus, mas um dos nove é papai; então, não me importo que sejam tão
poucos. Ele chega com o Vô e a Vó e quando eu vejo seu rosto torto, deixo
escapar a respiração que eu não percebi que estava segurando e me dá
aquele arrepio de surpresa que sempre tenho quando o vejo – que ele
continua o mesmo, que ele não ficou mais longe de nós desde a última vez
que o vi. E todos dizem que gostaram da peça e dão risada nos momentos
certos e tem chá, café e suco com pastéis doces de frutas cristalizadas
depois.
O espetáculo era para ter terminado com a peça, mas Miss Shelley
começa a conversar com papai sobre nós. Ela conta a ele sobre os poemas
de Vikings que escrevemos para o nosso tema. Então, Hannah se levanta e
lê em voz alta um que ela escreveu.

Vikings
De Hannah Brooke

Os Vikings
Tinham prazer
Em saquear
E velejar
Vencendo os mares
De muitos lugares.

Raptavam donzelas
Todas tão belas
Não por terror,
Mas por prazer.

Bebiam cerveja
Com gritos ferozes
Como você.

Ah, eu não seria tão triste


Se fosse um Viking!

Depois Josh e Matthew lutam kick boxing. E Alexander toca O Boneco


de Neve no piano da escola. Ele não queria tocar, mas sua mãe o obrigou. E
Emily dança alguns passos de balé, porque ela faz aulas de balé.
É de se pensar que Sascha e Oliver fossem muito pequenos para fazer
qualquer coisa, mas eles se levantam e cantam canções infantis com a Mrs
Angus, e Sascha conta uma história longa e confusa sobre uma fada que
parece não terminar nunca. Assim, só faltou eu.
Mrs Angus diz:
– Por que você não mostra a seu pai um de seus desenhos?
Só que desenhos não é coisa que se usa em show de talento. Eles são do
tipo vamos-dar-a-Molly-alguma-coisa-para-fazer-para-ela-não-se-sentir-
deixada-de-lado, e eu não quero fazer isso.
Assim, me levanto na frente de todo mundo. Ponho as mãos para trás e
os pés para frente, como a Emily fez quando dançou seu bale, e recito:

Soem, sinos selvagens

Soem, sinos selvagens, soem a céu aberto


Luz efêmera, nuvens de açoite;
Pois o ano morre dentro da noite:
Soem, sinos selvagens, podem deixá-lo morrer.

Soem para trazer o novo, soem para apagar o velho


Soem, sinos alegres, no meio da neve:
O ano se vai, partir ele deve:
Soem para trazer a verdade, soem para levar o falso.
Soem e levem a dor que aflige a mente
Da saudade dos que partiram para sempre
Soem para longe a discórdia entre ricos e pobres
Soem para despertar a união de toda humanidade

Que é um poema escrito por Lord Alfred Tennyson, que mamãe me fez
decorar para o Natal do ano passado. Quando eu termino, ninguém bate
palmas, como fizeram para os outros. Todo mundo fica quieto por um bom
tempo. Volto para o meu lugar ao lado de papai e ele põe o braço sobre
meus ombros. Então, devo ter me dado bem. Mrs Angus, então, vai ao
piano e começamos a cantar as canções de Natal e de início de ano.
Cantamos Noite Feliz e Sino de Belém e uma sobre as janeiras, que é
uma tradição antiga de cantar as canções de Natal.
Miss Shelley pergunta:
– Algum pedido?
E Emily diz:
– Quero cantar A Hera e o Azevinho.
Assim cantamos esta também

Oh, o nascer do sol


O correr dos veados
O toque alegre do órgão
O canto doce do coral

Quando saímos está escuro e pequenos flocos de neve caem do céu,


como em um livro de contos. É tão lindo que me dá vontade de chorar. As
pessoas voltam para seus carros, saudando umas às outras com “Feliz
Natal! Feliz Natal!” e eu seguro a mão do Vô para não escorregar no gelo e
desejo com fervor que seja Natal para sempre.
36
Gelo

No entanto, quando chegamos em casa, eu me lembro do homem no


celeiro, e uma vez que me lembro, não consigo tirá-lo da cabeça. Olho
pela janela para a neve caindo e me lembro da metade descoberta de seu
telhado – a neve deve estar cobrindo o chão bem no lugar onde ele estava.
Uma pessoa pode morrer congelada numa noite como esta. Até mesmo
um deus.
Papai está embaixo na cozinha com a Vó, tomando chá. Chego até a
porta e quase entro, mas paro. Não creio que eles sairiam atrás de um
homem – que não acreditam que existe – no meio de uma noite como esta.
Volto para a sala. Hannah está assistindo à novela Neighbours com sua
mão enfiada numa caixa de chocolates.
– Hannah.
– O que é? – e quando eu não digo nada. – O quê?
– O meu homem. No celeiro.
– Já vem você de novo – Hannah se joga para trás no sofá e fecha os
olhos. – O que tem ele? – pergunta ela, dramática, a cabeça jogada para
trás.
– Está nevando.
– Talvez as fadas possam tricotar um cobertor para ele.
Torço a barra de meu pulôver, torço e torço.
– Hannah, por favor.
– Por favor o quê?
– Venha comigo. Para ter certeza de que ele está bem.
– Molly – Hannah faz sua voz de adulta. – Amigo imaginário não sente
frio, sabia?
Ela volta sua atenção para a televisão.
– Mas ele não é imaginário! – Hannah não se move. – Ele pode morrer.
Ela aumenta o volume. Eu agarro o controle remoto. Ela berra.
– Molly! Pare com isso!
– Você está é com medo – eu digo. – Está com medo porque se você
vier comigo, vai ver que ele é real e vai ver que estava errada, e não quer
sair porque está escuro e está com medo de ver um cadáver, porque é isso
que ele vai ser, e...
– Você é realmente pirada – diz Hannah. – Acho que precisa saber disso.
Ela dá um suspiro profundo e dramático e se levanta.
– Se ele não estiver no tal celeiro, então não vamos sair procurando por
ele, concorda?
– Concordo.
Desço os degraus atrás dela. Ela atravessa a cozinha.
– Molly e eu vamos brincar na neve – diz ela. – Onde está a lanterna?
– Oh... – diz papai. – Bom... Dá para ver que ele não está querendo nos
deixar sair no escuro, mas também não quer proibir de brincarmos juntas.
– Está... – ele para. – Não vá muito longe, está bem?
– Claro que não – diz Hannah. Ela olha para ele com sua expressão de
maior desprezo.

Está gelado. Eu ponho as mãos nos bolsos e fico perto de Hannah.


– É esse o caminho? – ela pergunta. Liga a lanterna e ilumina com um
raio difuso um metro à nossa frente.
– Por aqui.
– Vamos, então.
Ainda neva. Tanto que já está cobrindo o chão. Penso na neve cobrindo
o meu homem e me arrepio.
A noite tem um ar estranho. As árvores estão balançando, fazendo
ruídos. Como murmúrio de vozes. Chego mais perto de Hannah e acabo
por empurrá-la sem querer.
– Ai!
– Desculpe.
– Onde devemos virar?
– Tem um portão na cerca viva.
– Onde?
– Fica por aqui – aqui!
Seguro a mão de Hannah e direciono a luz da lanterna. Hannah dá
gemidos exasperados e passadas sonoras na direção do portão. Eu corro
atrás dela.
– Como é que ele abre?
– A gente pula. Hannah – as árvores...
– Puxa! Tem neve em cima dele. Não consigo ver nada.
Atrás de mim, ouço algo que parece com risadas.
– Hannah...
– Vamos.
O portão já está coberto de neve e está gelado. Eu escorrego quando
vou descer e caio na lama congelada. E dói.
Hannah está na minha frente, uma sombra atrás do facho da lanterna.
– O que foi isso? – sua voz soa assustada. Hannah nunca tem medo.
– O quê?
– Ali – tem alguma coisa ali.
– É a cabana dele. Lembra?
Está muito escuro dentro do celeiro. A neve cobre o chão e a sombra
formada pela árvore e os sacos no canto.
Não tem ninguém lá dentro.
– Satisfeita? – diz ela. – Agora podemos voltar?
A neve bate no telhado. E cai nas minhas costas.
– Olá – eu sussurro.
Ninguém responde.
– Ele provavelmente está numa festa com as fadas – diz Hannah. –
Vamos embora.
Vou até o canto que era dele no celeiro. Está escuro como breu.
Tropeço em algo que jaz no chão.
– Moll?
Ajoelho. Ele está de costas para o chão. A neve cobre suas pernas e sua
barriga. Os olhos estão fechados. Ele está tremendo tanto que chego a
ouvir o tiritar de seus dentes.
Toco no seu braço. Está frio como gelo.
– Hannah – eu digo baixinho.
E então ela o vê.
Por um longo, longo momento, ela não diz nada. E, então, fica furiosa.
– Sua menina boba, tola!
Eu olho.
– Por que você não disse a ninguém que ele estava aqui? Ele poderia ter
morrido! Por que não chamou uma ambulância ou o Corpo de Bombeiros?
– Mas eu disse! Eu contei para você! Contei para papai e para o Vô...
– Você não nos disse que ele era de verdade.
Ela corre para fora do celeiro. Eu corro atrás dela.
– Para onde você vai?
– Para onde acha que eu vou?
– Não me deixe aqui!
– Você acha que eu me importo com você?
Ela corre na minha frente, pisando em neve e em grama congelada. Eu
corro atrás, tentando alcançá-la.

Todo mundo está na cozinha quando abrimos a porta com alvoroço.


– Tem um homem no meio da neve – diz Hannah.
O Vô se levanta.
– Na neve? Está ferido?
– Não sei – diz Hannah. Agora que estamos aqui dentro, ela não está
mais com raiva. Começa a tremer.
– Está vivo – eu digo. Corro para papai e puxo na sua manga. –
Precisamos ir salvá-lo.
– Onde é que ele está? – pergunta vovó. – Calma, Moll. Fale devagar.
– Chamamos uma ambulância? – pergunta papai. –Vocês ainda estão
com a lanterna? – pergunta vovô.
– É o homem de Molly – diz Hannah. Todo mundo para de falar.
– O homem de Molly? – vovó diz.
– Ele estava lá o tempo todo – diz Hannah.
– Molly? Você estava conversando com uma pessoa de verdade?
– Claro que estava. Eu não disse para você?
– Espere aí – diz papai. – O quê – de quem estamos falando aqui? O
homem invisível que faz as flores crescer? Ele é real? Você estava
visitando um homem de verdade no bosque? – ele olha para vovó. – E você
estava deixando ela ir?
Eu pego a mão dele. É óbvio agora que somos de responsabilidade do
meu pai de novo, mas não tenho tempo para descobrir o que isso quer
dizer. Alguma coisa mudou, eu sei que mudou. Ninguém podia vê-lo antes.
Então, por que agora podem?
– Depressa – eu digo. – Venha ver.
37
Tempestade

Vamos todos juntos. O Vô, papai, Hannah e eu. A noite está mais
escura. A neve está caindo mais grossa e o vento começou a soprar forte.
Papai e o Vô não querem que eu venha, mas eu não quis ficar para trás.
Alguma coisa sacudiu o meu pai de sua dormência de não brigar, não falar.
Nunca o vi tão furioso.
– Você não fala com estranhos – diz ele. – Nunca. Que parte de nunca
você não entende?
– Ele não é um estranho! – eu digo. – Somos amigos.
– Não – diz papai. E bate a mão com força na mesa. – Pelo amor de
Deus, Molly! Você não entende como isso é importante?
Começo a chorar.
– Ei – diz vovô. – Toby. Ele põe a mão no braço de papai. – Vamos
esperar para ver, hein? Ver o que achamos lá.
Mas papai puxa o seu braço para longe.
– Você não tem nenhum direito de se intrometer nesta conversa – diz
ele para o Vô. – Nada! Eu ainda nem comecei a dizer o que penso de você.
Agora que comecei a chorar, não tem como eu parar.
– Ele está doente – eu digo. Não me atrevo a olhar para papai. – Ele está
doente e pode estar morrendo e tudo o que vocês fazem é brigar.

Então agora estamos aqui, caminhando pela neve. As árvores fazem


barulho, como vozes. Depressa, depressa, ou vai ser tarde demais. Estou
tão assustada que quase não consigo respirar.
Tenho um peso no coração, enorme, como se algo estivesse errado. Tem
uma coisa estranha a respeito desta noite. O mundo não se encaixa. As
beiradas se movem. Se não chegarmos logo lá, alguma coisa terrível vai
acontecer.
Depressa, dizem as árvores.
Papai e o Vô estão tentando abrir o portão. O Vô consegue abri-lo. Que
estranho, o tempo todo eu estive pulando um portão que pode ser aberto.
Corro pelo campo.
– Molly, espere – grita o Vô, mas não paro. Tropeço pela neve na
direção do celeiro.
Agora.
Ouço um baque. Trovão. O relâmpago rasga o céu em dois. Estamos no
olho da tempestade mais uma vez.
Caio para dentro do celeiro pela porta. O relâmpago brilha de novo e,
por um momento, vejo uma imagem – dois homens, um alto e chifrudo, de
pé, o outro deitado com o rosto para o chão. O homem de pé está com seu
punho erguido no ar. Tem alguma coisa desumana na sua quietude e na
maneira como o outro jaz. Logo o relâmpago apaga e o celeiro está vazio,
a não ser pelo estrondo do trovão ao meu redor.
Sei, sem a mínima sombra de dúvida, que o meu homem não está mais
aqui. Fico aterrorizada. Aí a tempestade desaba.
38
Nevasca

Estou rodeada pela neve açoitada pelo vento. Tem neve acima,
embaixo e ao meu redor, como neblina.
Muito alto, você não pode passar por cima.
– Homem! – eu grito. – Homem! Sou eu! É Molly!
Ouço vozes no vento e formas. Formas altas acima de mim, depois
sendo levadas para o nada. Coisas com asas e olhos.
Muito baixo, você não pode passar por baixo.
– Homem!
Muito largo, você não pode atravessar.
– Volte!
Eu sei onde ele está.
– Por favor!
Cheguei tarde demais.
Ele está morto, e é minha culpa.
Agora choro e tremo. Tem formas negras ao meu redor, dando risadas
no vento. É o deus de chifres, o Rei Azevinho, ou coisa pior. As criaturas
que Miss Shelley disse que atravessam quando as barreiras entre os
mundos enfraquecem. Fantasmas, espíritos e bestas de pernas enormes e
coisas que fazem ruídos na noite.
Outras vozes chamam.
– Molly! Molly!
Sinto o gelo nos meus pulmões. Não consigo respirar.
– Molly! Cadê você?
Aparece o facho de uma lanterna e formas na escuridão.
Tropeço, cega com a noite. Criaturas dão risadas em meio ao vento,
pegando meu casaco, arranhando minhas mãos, agarrando meus dedos. O
ar está muito fino esta noite.
As criaturas estão atravessando os mundos.
– Molly!
Eu me afasto com força das criaturas que me pegam e me puxam os
cabelos, e agora outra coisa está se enrolando nos meus dedos. São galhos.
Mãos de árvore, seus galhos se inclinam e me seguram.
– Molly! Cadê você?
Estou segura nos braços-galhos das árvores. Mãos escuras se
aproximam e tocam minha face. Eu não me movo. Quase não respiro. A
neve e o frio se foram. Aqui e agora me sinto segura. Segura e intocável.
– Aqui está ela!
Os braços de galhos somem. Eu caio com meu rosto na neve. Estou
chorando sem parar.
– Molly, meu amor, o que foi?
É papai. Grande e escuro e nervoso. Estou chorando tanto, que quase
não consigo vê-lo.
– Mamãe! – eu soluço. – Quero mamãe!
– Moll, Molly, meu bem...
– Quero mamãe!
– Molly-mop...
Tento me afastar. Grito e dou chutes.
– Não! Eu quero mamãe! Quero mamãe!
Ele me levanta nos braços e me carrega na escuridão da noite.
39
O fim do mundo

Estamos exatamente no meio da noite. Os policiais já se foram. Não


encontraram nada, nem mesmo pegadas na neve que cai sem parar. Eu
disse para a Vó que não encontrariam, mas ela chamou a polícia assim
mesmo. Já é tarde da noite. A não ser por mim, todo mundo já adormeceu.
Humphrey e eu estamos na cama de Hannah. Hannah está na minha
cama, que era onde papai deveria dormir, mas ele está no meu colchão, no
chão. Foi idéia da Vó.
– A criança precisa do pai – disse ela. – É óbvio. – E ela põe a mala
dele aos seus pés. Papai não discute. Fica sentado comigo no colo, o
queixo tocando minha cabeça, me segurando tão forte que sinto a borda de
seu relógio pressionando minha cintura.
Tudo está ao contrário e de cabeça para baixo.
Papai está dormindo no chão ao lado da minha cama. Está de costas
para mim, mas ouço sua respiração.
Está escuro. A única luz vem da lâmpada na mesinha de cabeceira. Um
círculo de luz suave, dourada; longas sombras de um cinza alaranjado se
formam na parede e, do outro lado da janela, escuridão.
O vento ainda sopra forte e a neve continua caindo. Acho que chove
também, se é que se pode ter chuva e neve ao mesmo tempo. É como estar
no meio de uma nevasca. É como se fosse o fim do mundo.

Não consigo dormir. Não consigo parar de pensar. E se ele não era o
deus da Miss Shelley? E se ele era apenas um homem comum?
Hannah e eu deveríamos ter feito alguma coisa. Alguma coisa para
salvá-lo. Se eu fosse mais velha – se eu fosse melhor –, se eu fosse
mamãe, ou papai, ou Hannah, ou o vovô...
Se eu fosse uma dessas pessoas, eu teria feito alguma coisa. Se eu
fosse qualquer outra pessoa que não eu, eu o teria salvado. Ele não tinha
ninguém. Só eu. E eu não fiz nada.
40
Dentro e fora

Fico deitada de costas olhando para o teto.


Escuto ruídos contra a janela. A neve bate no vidro, molhada e pesada. –
Mamãe – eu sussurro, mas ela não está aqui. Sei que não está, mas se eu
fechar os olhos posso quase imaginar que ela está perto – talvez no quarto
ao lado, ou no chão, perto de papai. Esta noite, tudo é tão estranho. Talvez
se eu disser exatamente as palavras certas ou fizer exatamente a coisa
certa no momento certo, ela volte para mim.
Levanto da cama, embrulhada na colcha de retalhos feia e antiquada. Os
degraus rangem a cada passo meu – crique, crique, criiiique. Apalpo a
parede com as mãos para não cair.
O piso da cozinha está gelado, mesmo através das meias. Vou até a
porta e olho pela janelinha. Tudo o que vejo é escuridão e a neve
dançando, até o fim.
– Moll?
É Hannah. Seu rosto é vermelho e branco no escuro.
– O que você está fazendo?
Ela se aproxima de mim.
– Olhando.
Está muito escuro no jardim. As árvores estão se movendo com o vento;
posso ouvir seu rangido.
Esta é a noite mais longa do ano. O meio absoluto do inverno.
– Moll – diz Hannah –, está frio. Volte para o quarto.
Mas hoje a noite é diferente. O Homem Verde se foi e isso muda tudo.
– Venha – diz Hannah. – Vamos subir.
Eu não dou um passo.
– O que foi isso? – pergunta com a voz alta e assustada. – Molly!
Eu ouço também. Tem alguma coisa lá fora.
Um barulho. Não é da neve, não é do vento, é outra coisa, como um
murmúrio. E tem luz também – não é de lanterna, é mais fraco. O que é?
É...
– Moll – diz Hannah. – Tem algo ali! – ela puxa meu braço, mas eu me
solto.
E então a vejo. Ela está parada no meio da neve, claro como o dia. Ela
não parece um fantasma. Parece totalmente real. Tão real que eu penso em
abrir a porta para deixá-la entrar.
Ela fica parada, sorrindo para nós, muito normal, apenas sorrindo
através do vidro. Mas logo desaparece.
41
Quietude

Do lado de fora, o mundo está quieto. Dentro, estamos aconchegadas,


juntas na minha cama, dedos frios dos pés apertados contra as pernas frias,
os braços entrelaçados, embrulhadas em um monte de cobertores e
edredons.
– Você a viu? – pergunta Hannah, mais uma vez.
– Vi – respondo.
– Era real? – pergunta ela. – Era mamãe?
– Era. Acho que sim.
Estamos quietas, pensando. Hannah se move ao meu lado, embaixo do
edredom.
– Molly?
– Hummm?
Estou observando a sombra das cortinas na parede. Uma sombra é algo
real? É um fantasma?
– Você não se importa? – pergunta Hannah.
E isso importa?
– Me importo com o quê?
E o frio? Estou pensando. O frio é uma coisa real? Ou a noite? A gente
não pode tocá-los. Mas existem.
– Viver aqui. Com a Vó.
– Claro.
– Você nunca diz.
Penso um pouco.
– Não podemos voltar e viver com papai – digo por fim. – Mesmo se ele
quisesse, não poderíamos.
Hannah se cobre com a colcha.
– Mas outros pais podem – diz ela. – Mães. Mamãe poderia, não
poderia? Então ele pode. Se realmente tentar, ele pode. É que ele
simplesmente não quis.
De repente, estou cansada. Cansada de mamãe ter ido embora e papai
morar longe e de tudo ser tão complicado. Cansada de tentar compreender
tudo. Descanso a cabeça no ombro dela.
– Será que isso é verdade mesmo? – eu digo.
Hannah não responde por muito, muito tempo.
– Hannah?
Ela se vira e esfrega o rosto na minha face.
– Não – diz ela. – Na verdade, não.
Ficamos caladas. É a noite mais longa do ano. Ficamos deitadas na
cama, esperando o dia amanhecer.
42
Papai (quase) fala comigo

– Moll – diz papai, se ajoelhando no chão ao meu lado. – Está ouvindo,


Moll?
Estou sentada enrolada em um cobertor na poltrona grande do Vô. Estou
assistindo Um Conto de Natal dos Muppets, comendo torrada com queijo e
sopa de tomate. É como estar doente, a mesma sensação ruim.
– Havia... – ele para, depois começa de novo. – Havia realmente alguém
na neve?
Digo que sim com a cabeça.
– Meu homem.
– Moll... – Papai começa, mas não continua. Dá para ver que ele está
sofrendo para dizer alguma coisa para mim. – Não acho que o seu homem
era assim de verdade – ele diz, por fim. – Era? Hummm? Não real

como... – ele me olha como se esperasse que eu completasse a frase, mas


fico calada. – Real como Papai Noel é real – ele continua. – Ou o Coelho
da Páscoa. Assim?

– Real é real – eu digo.


– Sim, eu sei, mas... os policiais procuraram ontem à noite. Moll, não
tinha ninguém lá. Eu acho... É... é como numa história. Dá a impressão que
é real – mas não acontece de verdade.
– Mas aconteceu – eu digo, inutilmente. – Aconteceu.
Fico esperando ele discutir comigo. Mamãe teria discutido. A Vó teria
simplesmente me ignorado. O Vô teria me dado um beijo e dito que me
amava de qualquer jeito. Mas pai simplesmente abre e fecha a boca, como
se não pudesse colocar o pensamento em palavras.
43
Dia de Natal

É cedo. Muito cedo. Ainda está escuro.


Manhã de Natal, a meia aos pés da minha cama está cheia; dá para ver.
Quero saber o que tem dentro, mas fico com receio de olhar. Receio
porque papai não sabe como funciona a meia de Natal, como mamãe sabia.
Será que ele sabe que tem de ter uma laranja? E nozes ainda com casca? E
dinheiro de chocolate e caixinha de bombons? Será que ele sabe que tem
de ter sempre um livro e um bichinho de pelúcia?
Lá fora parou de nevar, mas ainda tem uma camada fina de neve sobre
os telhados das casas. É um Natal branco. Normalmente, isso seria a coisa
mais incrível do mundo, mas agora parece apenas vazio. Como se o mundo
inteiro soubesse que o meu homem não está mais lá. Tenho medo que este
vazio tome conta do Natal e estrague tudo. Natal é muito importante para
ser estragado.
Pego a minha meia e vou para o quarto de Hannah. Ela ainda dorme,
deitada de bruços, seu rosto afundado no travesseiro. Eu sacudo seu
ombro.
– Hannah. Han-nah.
Ela geme.
– É Natal.
Hannah se vira e esfrega os olhos.
– Tem presentes?
– Um monte.
Hannah não se importa se as coisas não estão certas, contanto que haja
presentes. Ela espalha o conteúdo de sua meia e começa a rasgar o papel
de presente. Tem um cachorrinho de pelúcia, uma caixinha de bombons,
um CD... mas eu não agüento mais esperar.
E no fim está tudo em ordem. Não sei se papai comprou as coisas ele
mesmo, ou se a Vó, ou uma das minhas tias ajudou, mas tudo bem. Todas
as coisas que deveriam estar na meia, estão. E mais: um livro de capa dura
da Jacqueline Wilson (mamãe sempre comprou as edições de bolso), um
caderninho de anotações com uma capa de unicórnio e com adesivos
também de unicórnio, um kit para uma pulseira de amizade e um DVD do
Jardim Secreto, que a tia Rose deve ter comprado por engano, ou será que
quer dizer que vamos voltar para casa, porque o Vô não tem um aparelho
de DVD?
E o melhor é o montinho de coisas no fundo da fronha, coisas do
catálogo da Unicef, que é como meu pai sempre compra os presentes de
Natal. São as coisas mais comuns do mundo – como uma camiseta com
uma pomba desenhada, ou um quebra-cabeça, ou um livro de receitas de
comida típica do mundo inteiro. Hannah quase nem dá atenção para o que
ela ganha. Mas eu fico com os meus bem pertinho de mim, porque sei,
com certeza absoluta, que todos eles são presentes de papai.

E chega o Natal.Ganho presentes de todo tipo de pessoas, gente que


normalmente não dá presentes para mim. Ganho presentes até de pessoas
que eu não sabia que existiam – a tia-avó June, que é a irmã de meu avô e
que cria gatos – Terry e Maggie, que eram os nossos vizinhos quando eu
era bebê –, de alguém chamada Linda, que nem mesmo papai sabe quem é.
– Quem são essas pessoas? – pergunta Hannah.
– São pessoas que têm carinho por você – diz papai, mas Hannah não
parece satisfeita.
– Vou ter de escrever cartões de agradecimento para todo mundo? – diz
ela, mostrando um frasco de espuma de banho. – Até para coisas assim?
– No ano que vem – diz vovó – eu não vou me incomodar de comprar
um presente para você, se é assim que vai se comportar.
– Eu gostei do seu presente – diz Hannah, bem rápido.
Eu ganhei patins de roda do Vô e da Vó, mas Hannah ganhou dinheiro,
que é o que ela mais gosta.

Depois que abrimos todos os presentes, ficamos quietos na sala. Está


escuro, a não ser pelas luzes da árvore de Natal, que brilha em um canto,
com pontinhos coloridos refletidos nos enfeites. Não acho que exista outra
coisa mais bonita no mundo que uma árvore de Natal.
Hannah está sentada no chão arrumando seu monte de presentes de
novo. Hannah não consegue ficar sentada por um minuto. O Vô está
inclinado em sua poltrona observando papai. A Vó está bebendo o seu
xerez de Natal, observando o Vô, que, por sua vez, nos observa.
Esta é minha família, eu penso. Fecho os olhos apertados para guardar a
imagem na minha mente. Lembro do Rei Azevinho que ainda está lá fora.
Vá embora, eu penso, o mais alto possível. Não venha pegar esses. Eles
são meus. Não venha pegar mais nada que pertença a mim.
44
Você me deve um ursinho

Chega o Ano-Novo. Papai volta para casa. No ano passado, eu teria


esperado que ele nos levasse para casa com ele, mas este ano não ficaria
surpresa se ele fosse embora sem ao menos se despedir.
Mas ele parece se importar. À noite antes de partir, ele ensina Hannah e
eu a jogar pôquer, e fica acordado até a meia-noite jogando conosco por
notas promissórias de mentirinha escritas em folhas de papel. Ele é melhor
com os jogos do que com a conversa sobre o que é real e o que não é. No
fim, ele perde tudo, nos deixando com um monte de pedaços de papel,
prometendo para mim um ursinho, um junco chinês e uma espada de luz,
e, para Hannah, uma mansão, uma Mercedes e um milhão de libras.
Quando vou para a cama, ele me ergue e me abraça forte.
– Tudo bem, Molly minha? – diz ele.
Eu enlaço as pernas na cintura dele e ponho a cabeça no seu ombro.
– Você me deve um ursinho – eu digo.
– Eu lhe devo muito mais que isso – diz ele, que me põe de volta no
chão e desce as escadas, e eu fico matutando sobre o que ele disse. Quando
acordo de manhã, ele já foi embora.
Voltamos para a escola. Terminamos o projeto dos Vikings e
começamos a fazer pontes. Miss Shelley diz que não é para reclamarmos,
porque não Foi Idéia Dela e, pelo menos, nos dá alguma coisa para fazer
com as caixas de cereais.
Continua frio. Não o frio gostoso de neve e granizo. Um frio chato,
cinza, miserável.
Não vejo mais o Rei Azevinho. Talvez porque ele não precise mais
voltar, porque saiu vitorioso.
Volto ao celeiro uma vez, antes que papai vá embora. Procuro lá dentro
e ao redor. Chamo por ele com todos os nomes que conheço. Rei Carvalho,
Homem Verde. Não chamo muitas vezes. Pareço boba, chamando por
alguém que não está ali.
Quando paro de chamar, vou até a árvore. Está morta. A madeira está
pálida, descascada e arranhada. Tem um brilho molhado e está cheia de
musgo apodrecido. Parece que tem uns quinhentos anos.
Olhando para ela, acho difícil lembrar que acredito em coisas vivas que
podem voltar do mundo dos mortos. Quase não acredito, olhando para ela,
que jamais foi viva.

E de volta ao mundo real, ninguém notou que tudo mudou. Josh e


Hannah continuam sendo Josh e Hannah. Emily ainda é a Emily e papai
ainda é papai. Ele continua com as visitas, nos leva para sair, embora
agora pareça fazer um esforço maior.
– Olhe – ele diz –, trouxe um presente. – E me dá uma revista ou um
Kinder ovo ou um calendário de Advento que ele comprou na liquidação.
– Obrigada – eu digo, e ele pende a cabeça para um lado.
– Então – ele diz. – Moll. Não é o fim do mundo.
Eu fico calada.
Vovô continua sendo vovô. Quando voltamos da escola, ele olha para
nós de seu canto no caixa.
– Como foi a aula?
– Horrível – resmunga Hannah, e vai batendo os pés para a cozinha,
para comer os biscoitos que já passaram da data de validade.
– Realmente horrível? – pergunta vovô, e eu descanso os braços no
balcão e ponho a cabeça no meio.
– Não tão mal – eu digo, e ele me dá um afago no ombro.
– E que tal se você me ajudar a arrumar as prateleiras com o estoque
que chegou? – ele diz – Ou passar o pano no chão – ou levar aquelas caixas
para fora – ou tomar conta do caixa enquanto eu vou preparar uma xícara
de chá? Eu digo que sim com a cabeça e vou fazer o que for que ele deixou
para mim; contanto que eu possa ficar aqui perto dele.
Enquanto eu trabalho, dou com ele olhando para mim.
– Não tão mal mesmo? – ele vai dizer, às vezes, como se eu estivesse
escondendo um segredo enorme e terrível. Eu não digo para ele que não
preciso de um segredo enorme e terrível. As coisas que ele conhece já são
suficientemente terríveis.

Então janeiro se transforma em fevereiro, e eu subo a ladeira da escola


para casa com o vento nos cabelos, e o frio nos meus dedos, e fico
pensando se vou me sentir assim para sempre.
45
Candelária

Hoje, quando entramos na sala de aula, Miss Shelley está na frente do


quadro com aquele jeito que, eu sei, quer dizer que hoje não vamos estudar
matemática.
– Hoje – diz ela – é um dia muito especial. Alguém pode me dizer por
quê?
Os meninos levantam a mão.
– É seu aniversário!
– É o aniversário da Mrs Angus!
– Vai ter festa!
– Vamos fazer uma excursão!
– Vamos todos para casa!
Eu não quero ir numa excursão e minha casa é muito longe. Espero que
a gente faça alguma coisa com arte. Alguma coisa calma e relaxante, com
água ou contas coloridas, ou com lápis de cera de cores pastéis.
– Não – diz Miss Shelley. – Hoje é a Candelária.
– O que é candelária, professora? – pergunta Matthew.
– Candelária, também chamado de candelária, é o dia exatamente na
metade entre o solstício de inverno e o equinócio da primavera – diz Miss
Shelley. Ela olha para as expressões bobas na cara de todos (mas a minha
não! Eu me lembro disso!) e ri. – De uma certa maneira, é o primeiro dia
da primavera. Na época romana, as pessoas costumavam fazer uma
procissão pelas ruas com velas e tochas. Levavam as velas para as igrejas
para serem abençoadas.
– Tochas? – perguntou Matthew, como se os romanos tivessem tochas
elétricas, com baterias.
– Tochas de fogo, seu burro – diz Hannah.

Miss Shelley nos divide em grupos e fabricamos velas a manhã inteira.


Geralmente somos três grupos: meninos, meninas e os pequenos. Isso
acaba com Hannah mandando em Emily e em mim. Mas hoje Miss Shelley
pôs Hannah com Josh e Matthew e Emily e eu com Alexander.
É uma mudança boa não ficar no grupo com a Hannah. Ouço ela discutir
com os dois por causa da tesoura.
– Mas você nem estava usando!
– A tesoura é minha!
Emily, Alexander e eu olhamos um para o outro, tímidos.
Miss Shelley entrega papelão para prepararmos os moldes e cera em
pó grosso e cordões brancos e macios para o pavio.
Emily faz velas em forma de cones. Um monte de velas em forma de
cones.
A vela de Alexander é como um foguete. Usando o rolo de dentro de um
papel higiênico com um cone feito de papelão pregado com fita adesiva,
ele faz o molde e depois fica olhando para ela por uma eternidade.
Eu ainda não tinha conversado com Alexander de verdade. Ele sempre
acompanha Josh e Matthew, mas acho que é porque não tem outros
meninos na escola.
Gosto do molde de foguete de Alexander. E acho que gosto de
Alexander. Por isso, eu digo:
– O que foi?
Alexander coça a nuca. Depois diz:
– São as aletas. Ele precisa de aletas. Que possam ficar por dentro.
Olhamos para a vela.
– Você pode usar papelão – diz Emily, com sua voz suave.
– Precisam ser de cera – diz Alexander. – Uma vela de cera vermelha,
com aletas de cera azul.
– Então faça mais formas – eu digo. Chego perto para mostrar a ele. –
Com massa de modelar. Depois, quando a cera ficar firme, você tira a
massa de modelar e cola as aletas à vela de foguete. Assim!
Parece que as aletas do foguete feitas de massa de modelar funcionam.
Todo mundo só tem formas de papelão, a não ser a gente. Emily faz um
molde de massa de modelar na forma de peixe e outro na forma de um
cachorro. Eu faço moldes que devem parecer flores, só que não saem do
jeito que deveriam ser. É legal. É quase como ter amigos.
– Olhem só o Alexander! – Matthew exclama, ao passar por nossa mesa.
– Fazendo florzinhas com as meninas!
Alexander enrubesce todo.
– Não estou!
E depois passa o resto da aula grudado à sua vela de foguete, só para
não parecer que está conversando comigo e com a Emily.

Derretemos a cera e colocamos nos moldes. E enquanto a cera


endurece, aprendemos matemática, fazemos pontes de transporte e
decoramos o ciclo da água (mais uma vez). Quando está chegando a hora
de ir para casa, Miss Shelley apaga as luzes e acendemos nossas velas.
Velas de foguetes, velas de arco-íris e velas desenhadas com grafite. Uma
mesa inteira iluminada de pontinhos de luz amarela.
Fecho os olhos. Mesmo com eles fechados, posso ainda ver as chamas
difusas de cor laranja das velas. Pontinhos de luz na escuridão.
46
Fogueiras e magia

Quando chegamos em casa, Jack, nosso vizinho, está acendendo uma


fogueira.
Fico olhando. A fumaça tem um aroma gostoso de madeira. O ar está
penetrante e o céu de um azul tão claro e tão imenso e vazio que quase
machuca, com apenas uns poucos fios de nuvem no horizonte.
– Gosta da fogueira? – pergunta Jack, e eu digo sim com a cabeça.
Gosto de Jack. Gosto do fogo. Gosto de ver como certas coisas se
transformam quando as colocamos no fogo. Os saquinhos de batata frita
queimam com uma chama grande e depois derretem para o nada. Tábuas
ficam queimando por muito tempo, como se estivessem em dúvida se
deveriam queimar, mas, então, quando começam, ficam queimando e
queimando. Troncos fazem traques. Madeira molhada chia e solta fumaça.
E as folhas da cerca viva fazem um som de pop, pop, bem alegre.
– Problema em dobro, é um trabalhão – diz Jack. – O fogo queima,
borbulha o caldeirão. Bruxinha que você é.
– Isso mesmo – eu digo –, vou fazer um feitiço. Dobro, dobro, dobro – e
dou a volta na fogueira no sentido anti-horário. É mágico.
– Não venha fazer feitiço em mim! – diz Jack.
– Estou fazendo um feitiço para o tempo! – eu digo. – Um feitiço para
trazer a primavera de novo.
– Ah – diz Jack. Ele atiça o fogo com a ponta do graveto. – A primavera
vem sem que ninguém faça qualquer feitiço.
– Logo?
– No tempo certo – diz Jack, e joga o graveto no fogo.
47
Alianças forjadas no barro

Na escola, o projeto com as velas ainda não terminou. Agora temos de


fazer suportes de velas de barro. Somos o mesmo grupo de antes.
Matthew dá um gemido, profundo e dramático.
– Por que não podemos trocar de grupo, professora? Por que temos de
ficar no grupo dela?
– Porque – responde Mrs Angus – está na hora de você aprender a tratar
uma dama.
Josh e Matthew acham isso muito engraçado.
– Cuidado – Josh diz, dengoso, para Hannah. – Você não pode mexer no
barro. Você é uma dama. Você pode se sujar.
– Cale a boca, bobão – diz Hannah.

Alexander, Emily e eu fazemos juntos um grande suporte de velas.


– Um candelabro – diz Alexander.
Ele rola a palavra na língua como se fosse algo mágico. Gosto da idéia
de uma palavra ser mágica. Então começo a falar para ele as melhores
palavras que conheço. Noturno. Luminescência. Malevolência. Lavadilha.
Alexander, filho de professores que adoram os fortes romanos, está
mais do que apto para o desafio.
– Tristimania – diz ele.
Emily e eu olhamos para ele.
– Isso não é palavra.
– É sim! – diz Alexandre. – Quer dizer estar triste.
Nós duas ficamos em dúvida. Mas Alexander ainda não terminou.
– Oscitar – diz ele. – Quer dizer bocejar. Ou defenestrar – quer dizer,
jogar alguém pela janela.
Começo a rir.
– Não tem uma palavra para se jogar alguém pela janela!
– Tem sim – diz ele. – Defenestrar. E porcino – gordo como um porco.
E...
– Você está inventando!
– Não estou – diz ele todo magoado. – Tenho um livro em casa com
palavras assim.
Agora Alexander e eu olhamos para Emily. Ela abaixa a cabeça,
olhando para a argila.
– Sua vez – diz Alexander.
Emily não diz nada. E vira o rosto para longe.
– Não precisa ser uma palavra longa – eu digo, para ajudá-la.
– Suã! – diz Alexander, para mostrar a ela.
– Fuã.
– Bambu.
– Cabrum.
Emily sorri, um sorriso leve, tímido, como um hamster rosa enfiando o
nariz para fora de sua casinha.
– Faísca – diz ela.
– Brilho – diz Alexander.
– Milho.
– Pilho, cílio, trilho...
– Me dê!
Do outro lado da mesa, Hannah e Josh estão brigando de novo. Josh está
escondendo a faca de cortar argila nas costas. Hannah dá um pulo para
pegá-la e Josh tropeça para trás, rindo.
– Me dê!
– Uma dama não precisa de faca – diz Josh. – Facas são para meninos.
Uma menina pode se cortar.
Matthew dá uma risadinha soluçante.
– Eu corto para você – diz Josh. – Mostre o que quer cortar e eu corto.
Só...
No outro canto, no lado da mesa onde estão os menorzinhos, Sascha
grita. Mrs Angus se vira, mas não tem tempo de impedir que Hannah
pegue o candelabro de Josh, na forma de dragão (com chamas que se
despregam) e o jogue nele, acertando bem no meio da cara.

Hannah está no maior apuro do mundo.


– Eu que comecei, professora – diz Josh, mas Miss Shelley não quer
nem saber.
– Hannah sabia muito bem o que estava fazendo – diz ela, e faz Hannah
escrever linhas, como uma aluna da era vitoriana.

Eu não devo atirar o barro.


Eu não devo atirar o barro.
Eu não devo atirar o barro.

– Desculpe – diz Josh, baixinho, enquanto esbarra nela. Ele está com
barro na frente de sua blusa e pregado nos fios de cabelo e nos ouvidos,
15
onde o sabão não alcançou. Ele parece um goblin . Hannah não diz nada,
mas abre um sorriso cheio de triunfo.

No recreio, Alexander vai brincar com Matthew e Josh, mas fica


olhando para trás para mim e Emily. Josh o ignora. Está fazendo uma bola
com o resto do gelo que acha na beira do parquinho. Quando Hannah sai,
ele grita, “ei, mulher do barro!” E atira a bola de gelo nela.
A bola atinge o lado do casaco de Hannah. Ela fica totalmente parada,
depois, sai em disparada atrás de Josh e enfia os restos do gelo dentro do
seu casaco e ele grita.
– Ei, sai pra lá, sua doida!
Mas ele está rindo e Hannah, também. Fico olhando, tentando entender
se eles agora são amigos ou inimigos, porém não consigo chegar a uma
conclusão.
48
Sob o Luar

De noite eu pego minhas castanhas da janela. Elas diminuíram e


ficaram enrugadas, pretas e duras. Me lembram as pedras e pedacinhos de
madeira que mamãe costumava juntar e fico contente de ter trazido um
pedacinho de mamãe para o meu quarto. Sento na janela com uma
castanha em cada mão e tento sentir a faísca de vida que Miss Shelley
disse haver. Imagino que seja como uma semente enterrada dentro das
camadas da castanha. Fico espetando a castanha para apressá-la.
– Depressa – eu digo para elas, na minha mente. – Acordem. Cresçam.

Quando durmo, sonho. Sonho que tem alguém no jardim. É um menino


e não tem roupa no corpo. Observo suas costas nuas iluminadas pela lua.
Está ajoelhado na neve, tremendo. Tremendo não, seu corpo inteiro se
sacode. Está ali, ajoelhado, inclinado com os braços protegendo o peito,
tremendo e tremendo e olhando ao redor como se nunca tivesse visto a
geada, ou as árvores, os jardins, a lua.
Eu me ajoelho na cama e enfio a cabeça atrás da cortina para observá-
lo. A lua é enorme e brilhante. O céu está repleto de estrelas. A geada
reluz nos galhos das árvores. Não tem absolutamente nada fazendo
barulho, a não ser o menino, respirando e tremendo. Tudo mais está
quieto.
O menino estira as mãos e olha para elas. Vira-as para cima e para baixo
no luar, como se nunca tivesse visto mãos. Olha para a minha janela e eu
me escondo atrás da cortina, para que ele não me veja. Estou tremendo.
Sei exatamente quem ele é, do jeito que só sabemos em sonhos. É o meu
homem, meu deus verde, que voltou como menino. Estou assustada, mas
também animada. Ele deveria estar morto, mas não está. Ele voltou.
Abro as cortinas um pouquinho e espio. Ele se levanta e caminha pelo
jardim. Parou de tremer. Tem quase a mesma altura que eu. Ele toca nos
galhos das árvores e eles tremem ao toque de seus dedos. Ele se ajoelha
embaixo de uma árvore no fundo do jardim e toca na grama, aqui, ali e
acolá.
O que está fazendo? Grudo o rosto no vidro para tentar ver melhor,
mas está escuro, e muito longe.
Agora ele está parado embaixo de uma árvore, olhando para a grama em
que tocou. Será que tem alguma coisa ali agora? Não sei com certeza. Ele
se vira e olha para cima, para minha janela de novo, um menino nu, lindo,
na luz do luar. E, de repente, ele desaparece.
49
Campânulas brancas

Na manhã seguinte, quando levo as migalhas para os passarinhos, noto


as pegadas na grama congelada. Elas começam no meio do gramado e
continuam na beira do canteiro. E aí param.
No gelo embaixo do carvalho, onde o menino estava agachado na noite
passada, tem pequenas flores. Campânulas brancas.
– Quem diria! – exclama Jack, sorrindo para mim da janela de sua
cozinha. – Foi você que fez essas florzinhas, sua bruxinha?
Eu pisco para ele. E não digo nada.
– Você nunca viu uma campânula branca? – pergunta ele.
Não respondo. Toco nas flores com muito cuidado, só para ter certeza
de que são de verdade.
50
Felicidade

No caminho para a escola, estou cantando.


– Tem canto no deserto, tem risos no céu...
– Pare de cantar – diz Hannah.
– Não – eu canto. – Não, não. Ei... ei, Hannah? Você já teve um sonho
que se tornou realidade?
– Teve o quê?
– Você já sonhou com alguma coisa que depois aconteceu?
– Já – disse Hannah. – Sonhei com uma irmã que não parava de cantar,
assim, eu agarrei... – e ela pula. Normalmente eu teria gritado, mas hoje
eu apenas dou risada e me solto. E começo a correr descendo a ladeira.
Hannah corre atrás de mim e me agarra pelo casaco.
– Você não me pega nunca – eu canto. – Nunca, nunca.
Eu me solto de novo e desço a ladeira até chegar à escola.
Não me lembro da última vez que ri tanto com a Hannah.

Durante o dia inteiro na escola, fico procurando vestígios de sua


aparição. Novas flores, crescendo onde não havia nenhuma antes, novos
brotinhos de grama, folhas novas nas árvores. Nada.
Logo que chego em casa, vou direto ao jardim. Procuro por ele em
lugares escondidos, até mesmo nos lugares bobos onde ele jamais poderia
se esconder. Não o acho em lugar nenhum.
Do outro lado do jardim, Jack enfia a cabeça pela janela de sua casa.
– Perdeu alguma coisa? – pergunta.
– Você viu um menino? – eu grito. – Do meu tamanho, sem roupas.
Jack ri.
– Ó, ó – diz ele. – Quem é – Alexander ou um dos irmãos Haltwhistle?
– Nenhum deles – eu digo. – Um menino especial. Ele é mágico, eu
acho.
– Entendo – diz Jack. – Bom, se eu encontrar qualquer menino mágico,
sem roupas, eu aviso você.
Volto ao celeiro, mas o celeiro está do mesmo jeito que estava durante
todo o inverno. Vazio.
– Olá! – eu chamo. – Menino? Sou eu – Molly.
Não faço idéia se ele se lembra de mim. Afinal de contas, agora ele é
uma pessoa completamente diferente. Não que faça muita diferença. Ele
não está lá mesmo.
Sento em um saco de cimento e fico pensando onde posso procurar
mais. Ele pode estar em qualquer lugar. Isso se realmente existir. Talvez
fosse mesmo um sonho.
Mas então olho para cima e vejo. Seu carvalho.
Sinto a felicidade tomando conta de mim. Vou até a árvore e toco no
tronco; a árvore que eu pensei estar morta. Toco nas partes verdes do
tronco, em que a madeira nova está começando a aparecer entre a casca
velha.
51
O incrível menino de ponta-cabeça

Estou tão alegre e empolgada que não dá para ir para casa.


Vou para o bosque atrás das casas, onde fica o albergue da juventude.
Não é uma floresta de verdade, como a Floresta Proibida ou o bosque com
o poste de luz dos Contos de Nárnia. Não é o tipo de bosque em que um
deus pode se esconder. Está cheio de troncos mortos e de hera, de poças de
lama, de urtigas, e só leva dez minutos para atravessá-lo de um canto a
outro.
Mas não consigo pensar em outro lugar onde ele possa estar.
– Menino? (bem baixinho) Menino?
E lá está ele.
Está pendurado de cabeça para baixo em uma árvore. Está com calças
que achou em algum lugar – marrom, de folhas, do tipo que usa o Peter
Pan. Talvez as tenha feito usando magia. Está usando uma coroa de hera,
mas não parece uma menina. A coroa está toda grudada no seu cabelo, que
é mais selvagem do que eu me lembro; longos cachos desalinhados, que se
espalham em todas as direções.
– Este lugar é muito legal! – ele diz.
Ele é exatamente da mesma altura que eu. Acho que os olhos são da
mesma cor de antes, mas são diferentes. Os olhos do meu homem eram
carinhosos – os deste menino são mais como os de Josh, quando ele está
empolgado com alguma coisa.
– Você se lembra de mim? – pergunto.
O menino aperta os olhos.
– Claro que me lembro – diz ele. – Você estava no jardim ontem à noite,
não estava? Estava escondida, mas eu vi – é por isso que sei quem você é.
Mordo o lábio. Não sei bem se isso conta como alguém se lembrar de
mim.
– De onde você veio?
– De algum lugar – diz ele. – De um lugar onde você nunca esteve.
– Você era... – hesito, não sei como dizer isso educadamente. – Você se
lembra do que aconteceu? No Natal?
– Claro – diz ele. Mas não parece ter certeza. – Por que está me fazendo
tanta pergunta? Quem é você?
– Sou Molly. Molly Brooke.
Ele continua olhando com dúvida.
– Você parece uma dessas pessoas-de-casa, mas você não é uma pessoa-
de-casa, é?
– Sou – eu digo –, mas sou sua amiga também.
– Todo mundo é meu amigo – ele ri para mim, de ponta-cabeça. – Olhe
– ele estira a mão e um raminho verde começa a se desenrolar de seus
dedos, entrelaçando-se na sua mão e sobe pelo braço. – Você sabe fazer
isso, pessoa Molly Brooke?
– Não. Não, não sei. – mordo o lábio. – Você sabe que nem todo mundo
é seu amigo, não sabe? Você se lembra do Rei Azevinho?
– Claro – diz ele, distraído. Ele se balança no galho e se solta e toca no
chão com as mãos. – Olhe! – diz ele, ainda de cabeça para baixo, se
equilibrando nas mãos. – Você pode fazer isso?
– Posso. Na verdade, posso. Você precisa se lembrar do Rei Azevinho.
Ele tentou matar você! E ainda está atrás de você! Tem de ter cuidado...
– Cuidado, cuidado – diz o menino. – Quem tem medo do Rei
Azevinho? Eu tenho trabalho para fazer.
Ele caminha até mim com as mãos, depois desce os pés para o chão.
Agacha-se na grama, tocando-a com a ponta dos dedos. Pequenos brotos
verdes começam a sair da terra. As flores aparecem, campânulas, frágeis,
brancas.
– Você pode fazer isso? – ele pergunta.
Não respondo. Estou olhando para suas calças. São feitas de raízes de
planta marrons entrançadas. Dá para ver suas pernas através delas. São
pernas lisas, morenas e fortes, porém marcadas com cicatrizes antigas,
profundas e brancas. Cicatrizes daquelas que ficam depois de uma
mordida de cachorro. Ou de um lobo.

Corro no último pedaço de rua antes da minha casa. Aos meus pés vejo
brotos na beirada das cercas vivas; são narcisos que logo vão se abrir.
Acima de mim, um céu azul e frio. Quando entro na cozinha, meu pai está
lá. Ele começou a aparecer sem avisar desde o Natal. Está tomando chá e
jogando guerra de dedos com a Hannah.
– Um, dois, três, quatro. Eu declaro uma guerra de polegar. Guerra de
Polegar!
Guerra de Polegar é coisa de papai – eu e mamãe somos muito ruins no
jogo. A Hannah joga muito bem. Ela se ajoelha na cadeira, torcendo até
não poder mais o braço de papai. Não sei se ela é assim tão forte ou se
papai está deixando ela ganhar.
– Ei, ei, cuidado, meu bem – ele diz. Levanta os olhos e me vê. – Oi,
Molly! Onde estava?
– No bosque – eu digo. – Eu vi...– começo e paro
– Viu quem? – quer saber Hannah. Seu rosto está vermelho, com fios de
cabelos grudados na testa. – Josh?
– Ninguém – eu digo. Sento do outro lado do papai. – Só árvores e
coisas assim. Posso jogar?
– Vamos escolher alguma coisa que todo mundo possa jogar juntos. Que
tal baralho?
52
Emily na pista de gelo

O aniversário de Emily é em fevereiro. Ela não convida todo mundo


para sua festa, como Matthew fez. Ela só convida a mim e Alexander.
– E a gente? – pergunta Matthew.
Emily sacode a cabeça. Seus olhos ficam grandes e redondos.
– Não seja mal educado – diz Mrs Angus. – Emily pode convidar quem
quiser. Não me surpreende que ela não queira vocês lá, depois do que
vocês fizeram com ela.
Matthew e Josh estavam mostrando Kung fu para Hannah ontem. Só que
para Josh não bastava a coisa de conflito sem armas. Ele pegou a cadeira
de Emily e bateu na cabeça de Matthew. Na hora em que Emily ia sentar-
se nela.
Eu não digo nada para Emily quando recebo o convite, mas não consigo
parar de sorrir, durante toda a aula de soletração e tabelas.

A festa é de patinação no gelo.


– Vocês já patinaram alguma vez? – pergunta a mãe de Emily para nós
no carro.
– Uma vez – eu digo.
Emily já sabe patinar. Ela desliza direto para a pista e começar a girar.
Parece uma bailarina.
– Venham, vocês dois! – diz a mãe de Emily para mim e Alexander.
Alexander parece muito nervoso. Segura-se nas beiradas e desliza aos
poucos. Até eu posso fazer melhor que isso. Eu deslizo para a frente, aos
poucos, com os braços abertos. Emily patina ao meu redor.
– Empurre dos lados com seus pés – ela diz. – Assim, olhe.
Eu tento e vou para a frente. Emily segura minha mão.
– Vamos mais rápido – diz ela. Sei que vou cair. Sei. Mesmo assim,
empurro os pés e parece que tudo dá certo.
Emily na pista de gelo é completamente diferente da Emily de todo dia.
Ela fala, como uma pessoa normal. Nós damos uma volta inteira na pista e
voltamos para pegar Alexander, que ainda se agarra às beiradas.
Seguramos uma mão dele cada uma e o levamos.
– Ó – diz ele. – Não estou gostando. Não estou gostando.
– Nem mesmo rápido?
– Rápido de jeito nenhum! – diz ele, e cai.
Ele sai com o irmão mais novo de Emily para comprar batatinhas fritas.
Emily e eu damos mais uma volta. Emily me mostra como patinar para
trás e eu quase consigo. E só caio duas vezes durante todo o tempo.
– A sua saia de patinar é linda, Molly – diz a mãe de Emily. Ela também
sabe patinar. Minha saia é a vermelha que Mamãe fez para mim. –
Combina muito bem com seus cachos escuros.
– Detesto meus cabelos – eu digo. – Eu queria ter cabelos loiros.
– Eu queria ter cabelos cacheados – diz Emily.
Mais tarde, vamos comer batata frita na lanchonete e eu ensino a Emily
o jogo de espião que mamãe jogava comigo, em que a gente tem de
adivinhar quem, ao redor, é o espião disfarçado. A velhinha curvada e
cheia de rugas com batom rosa definitivamente é – senão como uma
pessoa tão pequena e enrugada ia querer patinar no gelo?
– A não ser que ela seja uma extraterrestre – diz Emily, e nós duas
caímos na risada.
– Emily, se comporte – diz a mãe de Emily, mas ela sorri para mim e
Alexander. – Que bom que a Emily conheceu vocês dois. Ela teve
dificuldade no início da escola.
– A escola é horrível – diz Alexander. Olho para ele, surpresa. Achei
que ele gostava da escola. Achei que todo mundo, a não ser eu (e talvez
Hannah) gostasse. E na verdade, tem um monte de coisas de que gosto na
escola.
Miss Shelley, as aulas de Arte e Natureza, jogar jogos juntos e brincar
com Emily e Alexander e...
– ...se ela quiser?
A mãe de Emily olha para mim.
– O quê? – pergunto.
– Eu disse que você parece ter gostado de patinar – diz ela.
– Gostei sim.
– Pois é, a Emily vem aqui toda quarta-feira. É meio chato para ela
sozinha. Seria muito legal se você pudesse vir, isso se sua avó não se
importar.
Emily se endireita na cadeira.
– Sim! – exclama ela. – Venha, venha, venha!
– E você também, é claro, Alexander – diz a mãe de Emily, mas
Alexander faz cara de assustado.
– Você quer? – pergunta Emily. – Você vem, não vem?
Fico calada. Estou pensando – sobre ter amigos. Sobre aprender a girar
e patinar bem rápido. Se eu puder ser uma patinadora de gelo quando
crescer, então não me importarei de não ter cabelos loiros. Ou talvez se eu
fosse uma artista, ou tomasse conta de uma lojinha como a Vó, ou
escrevesse livros, livros sobre toda a magia do mundo, fico imaginando, e
sinto as minhas bochechas esticarem, formando um sorriso tão grande que
meu rosto inteiro sorri.
– Sim, gostaria muito – eu digo.
53
Uma flor para março

Vejo coelhinhos no jardim do Vô. Vejo-os em meio à luz de fim de


tarde, quando vou guardar a bicicleta na casinha. Olhos vivos, orelhas
longas e um rabinho branco. E estão atrás do canteiro de legumes do Jack.
Março chegou. Chuva e grama molhada no começo, algumas poucas
folhas nos carvalhos. Um dia depois da festa de Emily, encontro os
primeiros narcisos embaixo da árvore no jardim. Narcisos-Emily.
Papai traz três açafrões roxos em um vaso.
– Um para você. Um para Hannah e um para sua avó, por tomar conta
de vocês.
– E o Vô? – pergunta Hannah. – O Vô é quem faz tudo.
Talvez tenha sido o meu menino do bosque quem fez estes açafrões.
Será que ele é o deus das lojas de jardinagem também? E se não é, quem é,
então? Será que ele é quem faz todas as flores do mundo? Ou será que
existem deuses do verão diferentes na Austrália, na África, nas Américas?
Quanto espaço ele cobre – a Grã-Bretanha toda ou só o condado de
Northumberland?
Vejo mais que coelhinhos no jardim. Tem algo alto que se move entre
as sombras das árvores.
É ele. Está alto – quase tão alto como o meu primo Tom, que joga
futebol no seu colégio. Seu rosto está diferente também, mais maduro e
alongado. Tem músculos e braços morenos fortes. Mas os olhos ainda são
os mesmos.
– Molly – diz ele. – É Molly, não é?
Ele beija a mão e me sopra um beijo. Sinto o beijo tocar minha face e
alguma coisa cai na minha gola. É uma flor. Uma florzinha vermelha.
– Obrigada – eu digo.
Ele tem uma coisa pendurada no ombro – uma cometa, talvez, um arco,
ou um coldre com flechas, não consigo ver direito. Será que foi ele que
fez? O ar está parado, sem vento nenhum, mas as árvores se movem ao
redor dele e os coelhos levantam as cabecinhas e espiam.
– O Rei Azevinho – eu digo –, ele ainda está aqui. – Eu tenho certeza de
que está – sei que ele não se foi. Às vezes, quando estou na rua, vejo as
árvores sacudirem ao vento, e sei que não sou eu ou meu homem verde que
as move. Sua presença está no ar como uma pergunta esperando resposta.
– Deixe ele para lá – diz o menino, que agora é quase um homem. Ele
acena para mim e logo some, me deixando com a florzinha vermelha, e eu
me pergunto se ele realmente estava ali.
54
Vovó

Agora toda quarta-feira, Emily e eu vamos patinar no rinque. Temos


aula com um monte de outras crianças – a maioria meninas. Nós
conversamos com outras meninas, mas nós duas somos Melhores Amigas,
eu e ela.
Emily quer ser fazendeira, como seu pai. Ou uma atriz, ou dançarina,
ou, talvez, uma patinadora de gelo, mas ela não consegue se decidir.
– Podemos comprar um rinque de patinação! – diz Emily. – Podemos
vender botas de patinar e comida da minha fazenda e jornais de seu pai.
– Podemos escrever nosso próprio jornal!
– Podemos escrever uma peça e eu poderia fazer um dos papéis – diz
Emily.
Eu ainda não tinha encontrado ninguém que gostasse tanto de histórias
e de imaginar coisas como eu, a não ser minha mãe, mas mãe é mãe, e não
conta. Temos tantas coisas para falar que ainda estamos conversando
quando chegamos em casa. A mãe da Emily conversa com a Vó e então
combinamos tudo.
– Não teria importância se a nossa loja nunca vendesse nada – diz
Emily –, porque teríamos a fazenda e numa fazenda ninguém nunca morre
de fome.

Depois que Emily vai embora, Vovó vem para a cozinha e fica parada
na porta com sua caneca de café.
– Vocês vão ter tempo suficiente para tudo isso? – pergunta ela,
referindo-se aos nossos planos.
– Claro – eu digo.
Vovó dá um estalo de língua.
– Não é que vamos fazer tudo este ano – explico. – Talvez uma parte.
Mas, por exemplo, leva muito tempo para alguém se tornar uma
patinadora com categoria para disputar uma olimpíada.
– Hummm. – Vovó me olha com um jeito estranho. – Quanto tempo já
faz que vocês duas estão aqui? Quatro meses?
Eu conto.
– Setembro, outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março.
Sete meses!
– Sete – vovó diz, surpresa. – O que os pais de vocês estão pensando,
me diga?
Respondo, me sentindo humilhada:
– Como eu vou saber?
– Humm – diz vovó. – Eu acho que está na hora de eu ter uma conversa
com seu pai novamente. Isso já foi longe demais.
Todos os músculos do meu pescoço enrijecem. Agora que já me
acostumei a ficar aqui, será que ela vai nos mandar embora de novo? Será
que ninguém, nos quer por perto?
– O que quer dizer? – pergunto. E quando ela não responde. – Vovó? O
que você vai fazer?
– Eu? – diz vovó. – Eu vou para Londres.
E ela termina de tomar seu café de um gole só.
55
Kew Gardens

É tarde. Hannah e eu estamos sentadas na escada esperando papai


chegar.
– Você acha que a Vó não nos quer mais aqui? – pergunto.
Hannah está desenhando um coração partido no joelho de seu jeans.
– O Vô ainda quer – diz ela, meio que para me dar conforto.
Barulho de carro na rua. Alguém bate na porta. Pulamos e vamos abrir.
É papai.
– Aconteceu alguma coisa? – diz ele. – Está tudo bem com vocês?
– Vovó vai para Londres! – eu digo.
Papai pega minhas mãos, mas não tem oportunidade de dizer nada,
porque a porta da Vó abre e a Vó aparece empurrando uma mala. Vovô
vem atrás, vestido no seu casaco e boné, carregando uma mala verde e
grande.
– Mamãe! – diz papai.
Vovó abre um sorriso.
– Toby! – diz ela. – Finalmente! Estava pensando que você não iria
aparecer nunca.
Papai solta minhas mãos.
– Mamãe, o que está se passando?
– Vamos para Londres – diz vovó. – Já era tempo de a gente tirar umas
férias.
Papai parece confuso.
– Mas... – ele começa. – Vocês poderiam ter perguntado...
– Poderíamos – diz vovó. – E estamos. Voltamos quinta-feira.
Ela começa a descer a escada – bamp – bamp – bamp – bamp, como o
Christopher Robin puxando a mala atrás dela.
Papai fica parado sem reação, só olhando.
– Mas...– diz ele, e eu quero rir do seu jeito todo confuso. – Vocês estão
levando as meninas?
Vovó para.
– Realmente, Toby, cadê o bom senso que lhe ensinei? É claro que não
vamos levar as meninas. Arthur vai me levar para ver o Museu de Vitória e
Albert... em Knightsbridge... e talvez Kew Gardens. Há anos não visito o
Kew Gardens.
– Mas... – diz papai.
– Você não precisa abrir a lojinha – diz vovó –, mas se decidir fechá-la,
então, por favor, deixe um aviso na vitrine dizendo que vamos voltar
sexta-feira. E as meninas precisam estar na escola às nove. Amanhã elas
têm educação física, mas tenho certeza de que elas podem muito bem lhe
informar sobre os detalhes. Venham, minhas gatinhas. Quero um abraço de
despedida.
Ela abraça Hannah e depois me abraça.
– Divirta-se – ela cochicha e me solta antes que eu possa pedir para ela
ficar.
Quando o Vô me abraça, eu me agarro a ele.
– Vocês vão voltar, não vão?
O Vô me aperta.
– Claro que vamos – ele cochicha. – Sua Vó quer apenas que seu pai
passe mais tempo com vocês. Só isso.
Fico abraçada a ele, porque me lembro do que aconteceu da última vez.
– Vocês voltam na quinta-feira?
– Quinta – diz vovô –, prometo.

Dentro de casa, eu tenho certeza de que vai ser como naquele fim de
semana horrível em Newcastle, só que desta vez o Vô não vai estar perto
para nos salvar. Papai não sabe o que fazer. Ele fica parado no corredor,
seu rosto esquisito e feio todo torcido, completamente impotente.
– Vocês duas sabem o que deu neles? – pergunta ele, por fim.
– Quem se importa? – diz Hannah. – Você quer uma xícara de chá?
Ela faz o chá em um bule, do jeito que Vovô faz. Eu me sento bem
pertinho do papai. Fico pensando: se eu o amar com toda a minha força,
será que poderia convencê-lo a ficar?
– Você vai ficar aqui?
– Vou ter de ficar, não é? – diz ele. – Sorte que eu tenho tantas férias
acumuladas.
Ele me afaga os cabelos. Depois olha ao redor, provavelmente satisfeito
de estar em uma cozinha limpa.
– O chá está ótimo, Hannah.
56
A volta

No outro dia de manhã, papai nos acorda. Ele está usando uma camisa
xadrez do Vô e o avental da loja da Vó.
– Acorda, acorda, acorda – diz ele, batendo com a colher numa panela.
Esfrego os olhos.
– Mas são sete e meia – resmunga Hannah do outro quarto. – Não temos
que acordar ainda.
– Não têm? – diz ele, surpreso. Em casa, nós tínhamos de acordar a
tempo de ir de carro para a escola. Aqui, é só subir a rua.
Ele preparou a mesa para o café. Comprou mais um presente para mim:
Coco Pops da lojinha. Quando eu morava com mamãe e papai, eu só
16 17
gostava de Coco Pops, mas agora eu gosto de Frosties e Weetabix e
ovos, quando o Vô faz.
– Molly não gosta mais desse aí – diz Hannah. – E eu também não como
mais cereal. Como torradas, como a Vó.
Papai não lava os pratos, como o Vô. Ele deixa tudo na pia, junto com
as xícaras da noite passada. É óbvio que ele não se importa mais em
manter as coisas limpas e arrumadas, como eu lembro que ele fazia. E às
dez para as nove, quando Hannah diz “Você tem de mandar a gente ir para
a escola,” ele olha no relógio e diz: “Então podem ir”, sem perguntar se
pegamos nossos livros e estojos ou o modelo da ponte de transporte de
Middlesbrough em papel-maché.
No jardim da frente, paramos e nos olhamos.
– Papai voltou! – eu digo.
– Mas não para sempre – diz Hannah. – Mas também não tem nenhuma
Vó fedorenta para ficar mandando na gente! – e ela desce correndo a
ladeira, com a mochila sacudindo nas costas.

Quando voltamos para casa, ele está na lojinha, vendendo selos para o
pai de Alexander.
– Boa tarde! – diz ele. – Quer um ovo? – e joga um ovo de chocolate
Cadbury’s para cada uma de nós.
– Você está alegre – diz Hannah. E ele está. Ele faz pão caseiro do
mesmo jeito que fazia antes, que também acaba não subindo no forno da
Vó, mas tem o mesmo sabor peguento que sempre tinha em casa.
Quando chega quinta-feira, já estamos acostumadas a tê-lo só para nós.
É um choque pensar que ele logo vai voltar para casa.
Depois das aulas, antes do Vô e da Vó chegarem, eu ajudo papai na loja.
Arrumo as novas latas e outras coisas nas prateleiras. Passo o pano no
chão. Vendo picolé de frutas para Sascha e para sua irmãzinha.
– Se eu fosse a sua Vó – diz papai —, eu lhe daria um trabalho.
Ele parece tão feliz que eu arrisco perguntar de novo:
– Você não quer ficar aqui?
Papai me abraça.
– Queria muito ficar, mas não posso tomar o lugar de sua avó na loja.
Eu tenho meu próprio trabalho. Você sabe disso.
Encosto a cabeça na barriga dele.
– Então a gente não pode ficar com você.
– Não.
– E agora somos a responsabilidade da Vó.
– Bem – ele me abraça mais forte. – Talvez um pouquinho minha,
também.
Olho para cima.
– Se você tivesse outro trabalho, então poderia nos levar de volta?
Ele não responde por um longo tempo.
– Você quer voltar?
Eu digo que sim com a cabeça.
– Eu... – ele para, mas logo continua. – Eu posso não acertar as coisas,
às vezes.
– Eu também não acerto sempre as coisas – digo. – Eu erro o tempo
todo, mas você não se importa, não é?
– Oh, Moll – diz papai –, nunca. Nunca. Nunca.
– Então.
Papai fica em silêncio.
– Tem um trabalho que vai aparecer – diz ele. – De Assistente de Editor.
Trabalhando para alguém que eu conheço da Universidade. Fica do outro
lado da cidade, mas as horas são melhores. E vocês podem se virar
sozinhas por algumas horas depois da escola, não podem?
– Sim! – eu digo. – Aceite!
– É apenas um talvez – diz papai. – Pode ser que eu não consiga. Você
entende, não é, Moll? Não é nada definitivo.
– Você vai conseguir – eu digo. – Você vai, não vai?
– Não sei – diz papai, e me aperta com força, tanto que sinto minhas
costelas esmagando meus órgãos.
– Não conte para ninguém – diz ele –, mas acho que sim.
57
O caçador da meia noite

Então papai está resolvido. Agora só mais um para resolver. Se a Vó


pode dar um jeito em papai, será que eu não posso dar um jeito no Rei
Azevinho?
Na noite em que papai vai embora, não consigo dormir. Fico acordada
ouvindo o Vô e a Vó andando no andar de baixo. Ouço também as pessoas
rindo no rádio e o Vô cantando enquanto lava as canecas de chá e a Vó
fazendo a contabilidade e perguntando ao Vô: “Você sabe por que todo
mundo, de repente, resolveu comprar cotonete?”
Se eu enfiar a cabeça entre as cortinas, posso ver um crepúsculo de
profundo azul, com uma única estrela pendurada no céu, acima dos
morros. Abraço Humphrey e descanso o queixo na cabeça dele. Está um
silêncio perfeito. Está perfeitamente quieto. Ninguém lá fora. Até que o
vejo.
Está parado nas sombras, olhando para a loja. É ele. O deus de chifres,
o Rei Azevinho. Fico sem fôlego ao vê-lo assim tão perto.
Tem o mesmo corpo troncudo, o rosto forte, achatado como o de um
animal. Mas parece mais velho, mais escuro. E está parado, sem o cavalo
que tinha antes. Parece menos homem e mais animal. Curvado e agachado
contra a parede.
Não sei por que ele está aqui, mas não me preocupo agora, porque agora
o meu homem está aqui, ele vem da direção do vilarejo em um cavalo
cinza. Quando o Rei Azevinho o vê, ele se vira e corre, cabisbaixo, o corpo
rente ao chão, iluminado intermitentemente pelas luzes dos postes.
Meu homem para o cavalo e olha em direção à casa. Eu enfio a cabeça
para fora da janela.
– Ele foi por ali!
Meu homem sacode a cabeça. Está mais velho. Agora é um homem de
verdade.
– Venha! – ele diz. – Venha e participe da caça!
Hesito, apenas por um momento. Saio da janela e começo a procurar
meus sapatos embaixo da cama.
Não tenho tempo de me vestir. Pego o casaco do cabide e visto por cima
do pijama. Sinto uma agitação no peito, onde fica o coração, abro a porta
do quintal e saio. Sempre quis fazer isso, sair sozinha no meio da noite.
Nunca entendi como o pessoal do Famous Five se atrevia a sair. Mas esta
noite não tenho medo. Esta noite tem um homem sobre um cavalo alto.
Esta noite, a lua está redonda e prateada. Esta noite, o ar está cortante, frio,
o céu de um azul profundo, com aquela única estrela a brilhar sobre os
morros e estou saindo sem ninguém saber e dá vontade de cantar.
Ele me espera perto do muro. Ele não usa sela ou arreio – parece
alguém que acabou de roubar um cavalo de um campo. Talvez tenha
roubado. Está usando o que acho que seja uma capa, mas quando me
aproximo vejo que é uma pele de veado. Uma pele de veado de verdade,
com as quatro patas penduradas, mas sem cabeça. Está amarrada no seu
pescoço pelas patas dianteiras e o resto cobre suas costas. Tem um odor
pungente, assustador e excitante, tudo ao mesmo tempo.
– Venha – diz ele, e estira a mão.
Eu só estive em cima de um cavalo uma vez antes e nem era um cavalo
mesmo, era um pônei. Porém, não sinto medo. Subo no muro e meu
homem se inclina e me ergue, me segurando por baixo dos braços. Tem um
momento em que estou lutando para subir e ele tentando me levantar,
agarro a crina do cavalo e logo fica tudo bem, e aqui estou eu, em cima do
cavalo, na frente dele.
Olho para ele, olho para a casa e dou risada.
– Olhe – diz ele, e me mostra uma coisa. É uma corneta – daquelas que
você sopra e parecem chifre de animal. A parte mais estreita, na ponta,
parece ser feita de ouro, mas a parte longa e curvada vem de um animal.
Não sei que tipo de animal.
– Posso? – pergunto, e ele diz que sim com a cabeça.
Ponho os lábios ao redor da cometa e sopro, mas só sai um barulho
cortado. Meu homem ri. Ele pega a corneta e a segura com um braço negro
e sopra.
Um som maravilhoso sai da cometa – Turaaaaaá! Turaaaaá! Turaaaaá!
– é uma chamada para caça e um aviso sobre o desafio, tudo ao mesmo
tempo. O cavalo se espevita nas patas dianteiras e os braços do meu
homem me seguram firmes pela cintura, e ele sopra na cometa de novo –
Turaaaaaá! Turaaaaá! – e seguimos.
Descendo a ladeira, as patas do cavalo vão cascalhando na estrada, com
o vento nos meus cabelos e o braço de meu homem ao redor do meu peito,
e meus dedos agarrados à crina do cavalo. Agora estamos indo mais rápido
que as fadas, mais rápido que as bruxas, mais rápido que uma montanha
russa e tobogã, mais rápido que patinar no gelo ou andar de bicicleta;
muito mais rápido que o pônei gordinho de Chloe. Pulamos uma cerca
viva e meu homem sopra a cometa – Turaaaaaá! Turaaaaá!
Percebo, então, que não estamos sozinhos – um monte de sombras
pulam a cerca viva, coisas vivas, baixas, ferozes, quentes – cães com
pernas negras e dentes brancos. Outros caçadores também. Estão ao nosso
redor e atrás, caçadores selvagens, e eu olho para trás para o meu homem e
vejo uma sombra de chifres crescendo de sua cabeça. De repente, sinto
medo. Já estive aqui antes. Lembro disso, da noite, da caça selvagem e do
homem caçado, só que, desta vez, meu homem não é a caça, ele é o
caçador.
Os caçadores zarpam à frente dentro da noite. Os cães uivam. Meu
homem atiça o cavalo para a frente. Pulando as cercas vivas, galhos e
folhas me arranham as pernas e rasgam minha roupa.
– Pare! – eu grito – pare! –, mas ele apenas ri. Está diferente
novamente; mais selvagem, mais perigoso. Agarro com todas as forças na
crina do cavalo e aperto as pernas ao redor da sua barriga. O Rei Carvalho
ainda me segura, mas está rindo agora e atiçando os cães. Se eu cair, vou
ser esmagada pelas patas do cavalo e – me dou conta com um medo súbito
– ele não voltará para me ajudar. Ou nem mesmo perceberá que não estou
mais com ele.
Quero que ele pare. Quero dizer para ele que mudei de idéia, que é para
ele parar de perseguir o Rei Azevinho. Estou assustada. Tudo está
misturado na minha cabeça – quem é bom, quem é mau, quem está certo,
quem está errado. Não há mais nada a fazer, além de me segurar na crina
do cavalo e esperar pelo fim, qualquer que seja ele.
Continuamos cavalgando pelos campos, através da noite. Acima de nós,
as estrelas rodopiam no céu. Embaixo, o mundo gira. O inverno acabou. É
o equinócio da primavera e esta noite um novo reinado se inicia.
Os cães uivam. Já encontraram sua presa. Um homem, correndo. Eles
descem a ladeira como a água escura de uma enxurrada, em tremenda
velocidade, e o cercam. Ele põe uma mão sobre o rosto, mas cai, acuado
pelos cães, e vejo que seus chifres sumiram, é apenas um homem; então,
grito, grito, e o meu homem fez seu cavalo estancar e está observando,
apenas observando, sem fazer nada...
e aí...
e aí tudo acaba.

O mundo fica quieto. A caça terminou. Não tem mais ninguém ao redor,
a não ser nós – eu e o Rei Carvalho com chifres no nosso cavalo, e o Rei
Azevinho prostrado na grama, uma mão ainda cobrindo a cabeça. Está
sangrando, mas vivo. Olha para nós. Não fala.
Estou chorando, as lágrimas escorrendo pelas faces. Estou chorando
porque pensei que o Rei Carvalho era bom e o Rei Azevinho era mau, mas
não é tão simples assim. Porque se queremos o verão, o inverno tem de
morrer, e se queremos o inverno, então é o verão que deve morrer.
18
Perséfone precisa voltar para o mundo abaixo da terra verde, porque o
mundo precisa continuar girando, porque o Rei Azevinho e o Rei Carvalho
precisam lutar e um deve derrotar o outro.
Meu homem – e agora ele é o caçador de chifres, o líder da caça
selvagem –, meu homem senta ereto em seu cavalo alto. Não diz nada para
o Rei Azevinho e não diz nada para mim. Olha para baixo, para seu
oponente prostrado na grama. Puxa a crina e faz o cavalo se virar. Galopa
para o vilarejo, me levando de volta para casa.
58
Conversando com Miss Shelley

Na escola, estou cansada. Miss Shelley está falando sobre pontes


suspensas, mas suas palavras flutuam acima de minha cabeça como água e
não consigo captá-las. A ponte que ela desenhou no quadro está presa ao
chão, então como pode ser suspensa?
Pisco os olhos quando Alexander tenta me fazer assinar um abaixo-
assinado para que ponham batatas fritas de volta no lanche da escola.
– Para vocês não tem problema – diz ele –, vocês comem batata frita em
casa. Meus pais nunca me dão sequer uma batatinha frita! E não é que
batata frita não tenha vitamina. São batatas, não são? Batatas são
praticamente nosso prato nacional. Eu estou sendo proibido de uma
experiência cultural valiosa!
– Temos um prato nacional? – pergunto, e Alexander sacode a cabeça e
vai procurar Emily.
Quando o sinal toca para o recreio, Miss Shelley me chama.
– Está tudo bem, Molly? – ela pergunta.
Acho muito estranho que, depois de tudo o que aconteceu este ano –
mamãe morrendo, papai nos abandonando, meu homem morrendo e
voltando a viver – ela escolher exatamente hoje para perguntar se está tudo
bem comigo.
– Sim... – eu digo, e depois de uma pausa: – Miss Shelley, você se
lembra da caça selvagem?
– Lembro.
– É uma coisa boa? Ou ruim?
Miss Shelley esconde um fio de cabelo atrás da orelha. E olha para
mim atentamente.
– Sabe, Molly – diz ela –, nunca fui capaz de decidir de uma maneira ou
de outra.
– As lendas não dizem?
– Ah, as lendas – diz ela. – Eu não confio nas lendas. Elas nunca
chegam a um acordo. De um dia para o outro mudam – ela afaga a nuca
com a mão. – O equinócio de primavera foi ontem à noite.
– Foi?
– Foi – ela olha para mim e, de repente, começa a rir. – Não faça essa
cara de preocupada, Molly! Eles não voltarão até o dia de Beltane, que é o
início do verão pastoral. E eles não machucaram você, ou machucaram?
– Eles... você quer dizer que eles existem?
– Prefiro não opinar – diz Miss Shelley, com seriedade. – Todas as
questões que não dizem respeito à divisão, à multiplicação ou à construção
artificial de estruturas de ligação de um ponto a outro devem ser
direcionadas pelo questionador às formas pagas ou religiosas de própria
escolha.
O sol acentua as sardas em seu nariz e, por um instante, ela se parece
tanto com mamãe que me dá um aperto no coração.
– Por outro lado – ela continua —, você pode ir dar uma olhada na
sujeira que os cavalos deixaram na estrada. A escolha é sua.
59
Uma brincadeira que parei de brincar

E agora o verão chegou. Céu azul – às vezes –, sandálias e vestido


xadrez de uniforme de escola, o sol quente a ponto de podermos deixar
nosso casaco em casa. Margaridas se espalham na grama, os dentes-de-
leão se esticam das rachaduras do asfalto e a margarida e a dedaleira
crescem nas beiradas da estrada.
Papai obtém o emprego em Newcastle. Vamos voltar a morar com ele
assim que ele conseguir vender nossa casa, provavelmente no fim do
semestre da escola, é o que Vovô nos conta. Papai faz uma oferta para uma
casa pequena e diferente, numa fileira de casas do outro lado da cidade,
uma casa com um jardim longo, cheio de dentes-de-leão e um grande
plátano com um balanço de pneu. Tem uma escola para mim no fim da rua
e uma escola secundária difícil, com um time de hóquei e um clube de
jovens, e aulas de guitarra para Hannah.
– Estava na hora! – diz a Vó, mas o Vô se faz de ocupado, preparando o
jantar, e não diz nada.
– Vocês não vão sentir saudade da gente? – pergunta Hannah, e a Vó dá
um estalo com a língua.
– Assim já é querer demais, não? – diz Vovó. Mas depois de ver a cara
que Hannah faz, ela diz: – Talvez um pouquinho. Ficamos acostumados a
ter vocês aqui bagunçando a casa.
– Vocês têm de vir passar as férias de meio do ano aqui – diz Vovô, e
Hannah diz que sim.
Na escola, podemos ir brincar de novo no campinho e fazemos uma
briga de brincadeira com a grama cortada. Os mais novos fazem um ninho
com a grama para a Barbie, para os bonequinhos da Família Sylvanian e
para os Action Men. Às vezes, eu e Emily os ajudamos, embora não
tenhamos mais idade para esses jogos infantis.
Quando não estamos brincando com os menorzinhos, ficamos juntos
nós três: eu, Emily e Alexander. Subimos nas árvores à beira do campinho
e compartilhamos segredos. Emily conta que seu pai vai ensiná-la a dirigir
o trator, porque você não precisa de uma carteira de motorista se você
dirige na sua própria fazenda, e ele vai ensinar a nós dois, também, quando
formos visitá-la. Alexander nos conta como ele odeia jogar futebol, porque
os outros meninos sempre o deixam de goleiro e ele sempre deixa as bolas
entrarem no gol.
– Como é viver com seus avós? – ele pergunta para mim, e eu torço o
nariz.
– É bom morar no campo – eu digo. – Mas sinto saudade de papai.
– Como é viver sem mãe? – pergunta Emily, com sua voz suave. Eu
penso um pouco.
– Solitário – eu digo –, mas agora vai ser melhor, porque papai vai
voltar. Porém, ainda é solitário.
– Agora você tem a gente – diz Emily, mas não é a mesma coisa.
Quando não estamos trocando segredos, fazemos planos. Vamos
escrever um livro – fundar um clube –, construir uma casinha numa
árvore. Ficamos excitados quando pensamos no verão. Emily, então, diz:
– Mas Molly não vai mais estar aqui. Ela vai para Newcastle.
– Venho visitar – eu digo. Porém, quem sabe quando isso vai ser?
Vamos para Newcastle no fim de semana, duas vezes. A casa não está
tão limpa como eu me lembro, mas o pimentão mofado sumiu. Papai nos
leva ao pub para conhecer um amigo que é dono de um jornal e que nos
deixa perder todo o seu dinheiro nas máquinas de jogar. Vamos patinar no
gelo e fazemos um passeio pelo parque e pegamos caramujos e gravetos,
como fazíamos com mamãe, enquanto tentamos lembrar como era morar
juntos os três.
– No fim do semestre – diz papai –, vamos voltar a morar juntos.
E eu fico acordada na claridade das noites de verão, observando as
sombras na parede que fazem o meu móbile de folhas e tento imaginar
como será ter minha casa de novo.
Acontecem tantas coisas que não tenho tempo de pensar no meu
homem. Ele parece ter desaparecido por enquanto. E o verão vai passando
e ele vai ficando cada vez mais distante, como alguém que eu inventei ou
uma brincadeira que parei de brincar. Fui ao celeiro uma vez depois da
caça selvagem, mas ele estava vazio. Metade da parede desmoronou e não
dá mais para alguém viver nele.
60
Fim

No entanto, chego a vê-lo novamente.


É meu aniversário em maio. Vamos à Floresta de Kielder passar o dia.
Papai, Vovô, Vovó, Hannah, Emily, Alexander e eu. Jamais seria perfeito,
mas é suficiente.
O mundo parece que sabe que é meu aniversário. O céu está azul de um
canto ao outro, com nuvens fofas como lã. A floresta está cheia de
pássaros e folhas verdinhas, com raios de sol entre os galhos. Meu
presente da Tia Meg é uma saia de adulto com contas e pequenos espelhos.
E é quase do mesmo verde que as árvores. Ela me faz sentir como algo
mágico, não exatamente humano.
Fazemos o piquenique ao lado de um riacho. Hannah está deitada na
grama lendo uma revista, mas Emily, Alexander e eu vamos brincar na
água. Esguichamos água em Hannah e ela dá um gritinho. Esguichamos de
novo e ela corre para o riacho e nos molha.
Logo Hannah vai deixar a escola primária para sempre. Vai ser mais
adulta do que é agora. É legal que ela brinque conosco enquanto ainda
podemos tê-la junto.
Depois do lanche, o Vô e a Vó sentam embaixo da árvore e o resto
brinca de pega-pega. Papai tem de contar. Ele corre atrás da gente pela
grama e na beira da floresta. Chegamos o mais perto possível dele,
atiçando, e, depois, corremos antes que ele possa nos pegar.
Papai corre atrás de mim, mas eu corro e ele pega Emily, Emily pega
Hannah e Hannah pega Alexander, e Alexander corre atrás de mim.
Estou explodindo de felicidade. É meu aniversário e ninguém consegue
me pegar. Corro para dentro da floresta, depois dou uma volta para
confundir Alexander. A luz dentro da floresta está difusa e misteriosa e o
ar tem um aroma de verde, casca de árvore e musgo. Sinto a terra afundar
sob minhas sandálias e a brisa batendo na minha saia. Atrás de mim,
Alexander desistiu e começa a perseguir Emily, mas eu continuo correndo.
Percebo um movimento à minha frente. Pés que correm, ou dançam.
Árvores se mexem. Corro a toda velocidade para uma clareira e logo faço
parte da dança.
É exatamente como durante a tempestade, quando as árvores me
seguraram, mas desta vez elas dançam. Posso sentir a alegria tremulando
entre elas. Sou erguida, rodopiada e passada entre os galhos, que me
levantam e me rodopiam também. As formas se movem – sombras,
dançarinas em riso, quase humanas.
Colocam-me no chão de novo. Ponho os pés no chão meio sem jeito e
quase caio. Sinto duas mãos tomarem as minhas, fortes e quentes. Levanto
os olhos e me deparo com os olhos do dono daquelas mãos.
É ele. Seus cabelos estão volumosos, encaracolados e castanhos. Suas
calças são marrom esverdeadas, como as árvores. Uma coroa de folhas e
flores amarelas cobre uma orelha. Seu rosto sorri, mas seus olhos são os
mesmos que sempre foram, profundos, castanhos, bondosos.
Ele pega minha mão e me leva para o meio da clareira. Ele dança
comigo, devagar e com delicadeza. Ao nosso redor, as árvores inclinam e
balançam. O ar está repleto de aroma de flores e folhas. Até os raios do sol
parecem dançar.
Ele se inclina, sem tirar olhos de mim, e solta minha mão. Sei o que
vai acontecer e fico olhando sem piscar, para não perder o momento, mas
ele dá um rodopio e some.
Fico parada, sem fôlego, as folhas verdes nos meus cabelos, a luz do
sol fazendo círculos ao meu redor. Estou sozinha.
Atrás de mim, entre as árvores, Emily, Alexander e Hannah estão me
chamando. Entre as vozes, reconheço a de papai, profunda, conhecida,
cheia de risos.
Fico ali parada por um longo momento, no meio da clareira, um braço
ainda estirado na minha frente.
Mas logo me viro e corro de volta para brincar.

Agradecimentos

Agradeço a Nicola Bowerman, que foi a primeira a falar sobre o mito


do Rei Carvalho. E a Christina Oakley Harrington, da Treadwell’s Books,
por ter me aconselhado que toda história é contada e recontada, e por me
mostrar as direções que outras pessoas tomaram com esta história.
Obrigada à Tara Button, pelas inúmeras tardes escrevendo em cafés, e ao
Tom Harris, por sua compreensão em me deixar levar um laptop nas férias
e por outros traumas relacionados ao trabalho de escrever. E também pelas
repetidas vezes em que consertou o computador, além de sua boa vontade
geral.

Muito obrigada a todo mundo, real e virtual, que me ouviu reclamar e


falar sem parar, e àqueles que falaram para os amigos sobre meus livros
ou que leram as versões ainda em processo de produção. Obrigada à minha
editora, Marion Lloyd, por dizer coisas boas sobre o manuscrito e depois
mostrar maneiras em que poderia ser melhorado. Obrigada a Caro
Humphries, Phil Hoggart e Emma Wiseman, por me deixarem fingir de
Cinderella e pagarem meu aluguel cozinhando papa de lentilha. E obrigada
a todos na Scholastics, por terem surgido, como uma fada-madrinha, e
transformado tudo para mim.

1. Eccles: pequeno bolo redondo de massa folhada com manteiga e passas corinto coberto
com açúcar demerara.
2. Mapas da Ordnance Survey: Agência de mapeamento nacional para a Grã-Bretanha, e
um dos maiores produtores de mapas.
3. Coco Pops: Cereal da Kelloggs cujo mascote é um macaco.
4. Tesc’s: Grande rede de supermercado.
5. Premiada coleção de livros da autora Enid Blyton.
6. Girl Talk e Top of the Pops: Revistas destinadas ao publico juvenil.
7. Se eu pudesse ser realmente qualquer um, incluindo uma pessoa de mentirinha, então
eu seria a Pippi Meialonga, porque ela mora sozinha com um cavalo, um pote de ouro e
um macaco chamado Senhor Nelson. Se alguém tenta fazer com que ela faça uma coisa
que não quer, como, por exemplo, ir viver com outra pessoa, ela simplesmente pega eles e
carrega para o fim do jardim e os deixa lá. E geralmente eles acabam indo embora.
8. Blue Peter: Programa de televisão para crianças, produzido pelo canal inglês BBC.
9. Não são sensacionais. São coisas como uma pessoa ganhar a competição do banheiro
mais limpo, ou hospitais que não gastam o dinheiro em coisas que devem gastar.
10. É uma atividade infantil tipicamente norte-americana do dia das bruxas em que
crianças vão de casa em casa, pedindo por iguarias (geralmente doces), perguntando doces
ou travessuras? (trick-or-treating).
11. Mentira (em inglês Cheat ou Bullshit): é um jogo em que o participante tem que
descartar suas cartas, sem mostrá-las aos oponentes, dizendo que está jogando ou blefando
a respeito. Quando o oponente achar que é um blefe ele deve dizer “mentira”. O jogador,
então, deverá mostrar as cartas. Se forem as que ele falou, a pessoa que duvidou ficará
com todas as da mesa, se não, ele ficará. Ganha quem descartar todas primeiro.
12. Tracy Beaker: personagem de livro infantil britânico publicado originalmente em 1991,
escrito por Jacqueline Wilson e ilustrado por Nick Sharratt.
13. Chutney: condimento de paladar agridoce, picante (forte ou suave), ou ainda uma
mistura dos dois, originário da índia.
14. Natividade: Peça tipicamente apresentada em diversos países representando o
nascimento de Jesus.
15. Goblin: criaturas geralmente verdes que se assemelham a duendes.
16. Frosties: Cereal matinal da kellogg’s.
17. Weetabix: Tipo de empanado de frango.
18. Perséfone: divindade grega, filha de Zeus e de Deméter, deusa da colheita.

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