PRATA, Antonio - Nu, de Botas PDF

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais
lutando por dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a
um novo nvel."

Sumrio

Gnesis
Bom menino
Mau menino
Al, Bozo?
Saturno Mercrio
Injustia
Cueca I
Cueca II
Indefectvel
frica
Ca Ce Ci Co u
Mulher pelada
Estimao
A perna do seu Dulio
Happy hour
Blowing in the Wind
Waldir Peres, Juanito e Plskei
Shakespeare nas dunas
Banhos
Sorvete e bala
Senhor da chuva
Presente dos cus
Patos
Pela janela

Ainda no estamos habituados com o mundo.


Nascer muito comprido.
Murilo Mendes

Gnesis

No princpio, era o cho.


No piso do quintal, ladrilhado com cacos de cermica vermelha, via um elefante de trs
pernas, um navio, um homem de chapu fumando cachimbo. Na manh seguinte, as
imagens haviam mudado: o homem de chapu era um bolo mordido; o elefante, parte de
um olho enorme a tromba, um clio ; o navio zarpara, deixando para trs apenas cacos
de cermica vermelha no piso do quintal.
Na sala, com uma tampa de Bic levantava os tacos soltos para espiar o que se escondia
embaixo: uma mosca morta, uma unha cortada, um grampo pequenos achados
arqueolgicos, estudados com percia atravs da lupa.
Deitado, a bochecha colada madeira, sentindo no rosto a brisa fria que sopra ao rs do
cho, espiava o vo escuro sob a cristaleira: a poeira formava tufos, matria-prima da qual,
acreditava, era feito o cobertor cinzento do mendigo da esquina. Tinha sua lgica: o
homem miservel coberto pela manta de p. S no compreendia como a sujeira se
transformava em tufo, o tufo em cobertor, e o cobertor ia parar em volta do mendigo. Mais
um mistrio, entre tantos deste mundo.
No princpio, eram as trevas.
Sentado no meio-fio, cavoucava com um graveto as fendas entre os paraleleppedos,
esperando encontrar petrleo, ossos de dinossauro, tesouros escondidos por piratas, runas
de extintas civilizaes. Enquanto a sorte no vinha, contentava-me em desenterrar
tampinhas enferrujadas, cascos de caramujo, fichas telefnicas; divertia-me desalojando
minhocas, formigas e tatus-bola.
No respeitava as minhocas: mal saam da terra, comeavam a se debater feito loucas.
Bicho aflito, mau exemplo.
No respeitava as formigas: indecisas, iam e vinham; burras, demoravam sculos para
entender que bastava contornar a barreira surgida no meio do caminho (meu cuspe) para
chegar l aonde quer que estivessem indo.

Toda reverncia aos tatus-bola.


Tocava-os de leve para v-los se fechar em suas esfricas armaduras, depois os rolava para
c e para l.
Um dia, talvez influenciado pela semelhana visual e fontica entre bolas e balas, tentei
comer um deles. Minha me (n)o(s) salvou na ltima hora, tirando-o da minha boca e
devolvendo-o terra ainda intacto.
No ficou registrado na crnica familiar se alguma vez, longe da superviso materna, eu
e os tatus-b(a)ola chegamos s vias de fato.
Morvamos numa vila: primeiro eu, meu pai, minha me e minha irm. Depois meu
pai se mudou, minha me casou de novo e minha meia-irm veio viver conosco. Tinha
tambm a Vanda, empregada, que morava num quartinho no fundo do quintal.
Eram vinte sobrados geminados, dez de cada lado da rua. No andar de cima, trs quartos
e um banheiro; no de baixo, sala, sala de jantar, cozinha e lavabo. L atrs, o quintal, a rea
de servio, o quartinho e o banheiro da Vanda. Na frente, a garagem e um pequeno jardim.
Nas vinte casas da vila viviam quinze crianas. O ncleo duro era composto por mim,
minha irm e minha meia-irm; o Henrique e a Margarida, irmos; o Rodrigo e a Giulia,
irmos; o Fbio Grande e o Fbio Pequeno que por um bom tempo acreditei serem
irmos, tambm. Quando os conheci, pensei: nada pode ser mais lgico, se a famlia gosta
de Fbio, que batize logo assim todos os filhos; ao se encontrar um Fbio pela rua, j se
sabe de onde e basta usar Grande, Pequeno ou Mdio, caso houvesse um filho do
meio pra diferenci-los. Fiquei bastante decepcionado ao descobrir, do alto dos meus
trs anos, que no s no eram irmos como sequer tinham qualquer lao de parentesco.
Nada me causou mais estranhamento, na infncia ou depois, do que visitar as casas dos
meus vizinhos primeiro e definitivo contato com a alteridade. As plantas dos sobrados
eram idnticas, mas a ocupao variava: na casa do Henrique, por exemplo, a televiso
estava onde deveria ficar a mesa de jantar, a mesa de jantar onde deveria estar o sof, o
quarto dele era onde, l em casa, ficava o quarto dos meus pais e vice-versa. Sem falar na
casa do Rodrigo, onde os pratos eram azuis. Como poderiam no saber que pratos so
brancos?
Tinha pena dos outros, hereges, vivendo errado.
Dentro, nossa casa era toda branca, mas por fora era de uma tonalidade meio marrom,
meio rosa. Um dia, perguntei minha me que cor era aquela.
Terracota.

No gostei. Senti que nosso lar era de alguma forma conspurcado por uma cor com terra
no nome.
Embora no tivesse escolhido a cor nem os mveis, os quadros ou tapetes, a casa era
mais minha que de qualquer outra pessoa: s eu via os desenhos no piso do quintal, o que
se escondia embaixo dos tacos, os tufos mgicos sob a cristaleira. Ali dentro, nenhum mal
poderia me atingir.
Um dia, brincando no cho da sala com meus carrinhos, ouvi um homem dizer na TV
que, no ano 2000, o mundo iria acabar.
Pena, pensei, sem tirar os olhos dos Matchboxes, no vou mais poder sair pra rua
e continuei a tratar dos meus assuntos.
No, no verdade que a casa era mais minha que de qualquer outra pessoa. Havia
uma rea fora do meu domnio: o quarto da Vanda, territrio independente, onde eu no
tinha o direito de entrar.
Vez ou outra, pela porta entreaberta, sentia o cheiro forte de perfume e a via na cama,
sob o lusco-fusco da televiso preto e branco, de bobes na cabea, pintando as unhas dos ps
e cantarolando a msica da novela das seis, numa postura relaxada que no levava para fora
dali.
Vanda vinha do interior de Minas Gerais e de dentro de um livro de Charles Dickens.
Sem dinheiro para cri-la, sua me a dera, com sete anos, a uma conhecida. Ao receb-la, a
mulher perguntou o que a garotinha gostava de comer. Anotou tudo num papel. Mal a me
virou as costas, no entanto, a fulana amassou a lista e, como uma vil de folhetim,
decretou: A partir de hoje, voc no vai mais nem sentir o cheiro dessas comidas!.
Vanda trabalhou l at os quinze anos, quando recebeu a carta de uma prima com uma
nota de cem cruzeiros, saiu de casa com a roupa do corpo e fugiu num nibus para So
Paulo.
Todas as vezes que eu ou minhas irms a importunvamos com nossas demandas de
criana mimada, ela nos contava histrias da infncia de Gata Borralheira, fazia-nos
apertar seu nariz, quebrado por uma das filhas da patroa com um rolo de amassar po e
nos expulsava da cozinha: Sai pra l, peste, e me deixa acabar essa janta!.
Minha me no gostava que nos referssemos a Vanda como empregada, preferia a
moa que trabalha l em casa. Eu estranhava: por que dizer a moa que trabalha l em
casa, se a todas as moas que trabalhavam nas casas dos outros, os vizinhos chamavam
empregadas?
***

Um dia, descobri que minha me trabalhava numa revista. Revistas, para mim, eram as
da Turma da Mnica, que eu folheava avidamente, desde muito antes de aprender a ler.
Minha me me explicou que a dela era diferente, uma revista para gente grande, mas que
era feita no mesmo prdio que as da Mnica. Animado, imaginei pilhas de Casco,
Cebolinha, Mnica e Magali de graa. Pedi que me trouxesse algumas no dia seguinte. No
dava, ela me explicou. Infelizmente, no era dona da editora, apenas empregada.
Que revelao! Imaginei-a fazendo almoo e caf numa enorme cozinha. Vislumbrei
seu quarto, no fundo de um quintal. Teria ela, tambm, uma TV preto e branco? Pintaria
as unhas, sentada na cama, de bobes na cabea, cantarolando msicas da novela? Como
seria sua vida, depois que saa de casa na Braslia branca e ia ser a moa que trabalha l na
editora? Que empresa incrvel devia ser aquela, que se dava ao luxo de ter minha me
como empregada.
Pai e me me beijavam, apagavam a luz: o mundo desaparecia. Como ter certeza de que
voltaria a existir? De que os dois no sumiriam no breu? Que garantia tinha de que no
seria levado pelos monstros que, vez ou outra, apareciam nos pesadelos eu, que ainda
no sabia o que eram monstros ou pesadelos?
J havia atravessado outras noites, mas no tantas para sab-las indubitavelmente
transponveis. (A experincia, para mim, ainda estava em fase experimental.) Para cruzar as
trevas, precisava de garantias, lembretes de outras viagens.
Ouvir uma histria conhecida: o mesmo enredo e, apesar de todas as dificuldades
enfrentadas pelo heri, o mesmo desfecho nos esperando, l no fim. Seu xito repetido me
sugeria a continuidade das coisas. Assim como ele, eu j tinha enfrentado o iminente fim
do mundo e depois acordado tudo haveria de dar certo.
Msica de ninar: os barulhos, mesma matria-prima do susto, agora domesticados.
Ritmo: fiador da continuidade, um, dois, manh, noite, trs, quatro, noite, manh. Rima:
parentesco entre palavras; balo, mo; ladrilhar, passar; preta, careta.
Nada me deixava mais tranquilo, contudo, do que os sons da mquina de escrever vindos
do quarto ao lado. Era meu pai, escritor, que trabalhava depois que todos haviam ido
dormir. O batuque no teclado, o ronco grave do rolo girando com o papel e a sineta do
carro tilintando ao ser devolvido posio inicial plim! me garantiam a presena de
um adulto, ali ao lado: se no ao alcance das mos, ao menos dos ouvidos. O ritmo catico,
mas contnuo como chuva no telhado , era ainda melhor do que a msica de ninar,
cadenciada, pois sugeria que mesmo em meio confuso poderia haver harmonia. Sob esse
cafun auditivo o mundo desaparecia, sem violncia, depois voltava a existir, quando eu
menos esperasse, iluminado: plim!

Primeira lio do incmodo: o calcanhar raspando na parte de trs do tnis e, pouco a


pouco, empurrando a meia para baixo. Eu tentava andar mais devagar, tentava pisar reto,
caminhar feito um rob, mas no adiantava: l ia a meia em sua inexorvel jornada rumo
planta do p.
Caso estivesse ocupado demais para tomar as devidas providncias, fugindo num pegapega, num esconde-esconde ou num duro ou mole, apenas me agachava num canto,
enfiava dois dedos dentro do tnis e, do jeito que desse se desse , puxava a meia um
pouco pra cima. Sabia que era uma ao paliativa, que muito em breve ela estaria toda
embolada l na frente e eu seria obrigado a seguir o protocolo: sentar-me num banco, tirar
os tnis, as meias, vesti-las e me calar novamente.
Terminada a funo, voltava ao pega-pega, ao esconde-esconde, ao duro ou mole,
gozando por alguns minutos da alegria do dever cumprido, como se tivesse acabado de
tomar banho, fazer a lio de casa ou comer um prato de legumes. Dez passos adiante,
contudo, mastigada pelo insacivel maxilar do tnis no calcanhar, l ia a meia descendo
outra vez: l ia eu, pequeno Ssifo, ladeira abaixo, ladeira acima.
Primeiras lies do pudor.
Eu no queria aquele cabelo cuia, cortado por minha me, l no quintal de casa. Queria
um cabelo curto, espetadinho em cima, ou que subisse num leve topete e depois fosse para
trs, como o dos heris nos filmes americanos.
Eu no queria aquela sacola de palha na qual carregava meu material escolar e os
ltimos eflvios das aspiraes hippies dos meus pais. Preferia uma mochila emborrachada,
com as da maioria dos meus colegas.
quela altura, contudo, no percebia que o cabelo e a mochila eram contingncias
perfeitamente contornveis, bastaria pedir para cort-lo ou para troc-la: eu era com aquele
cabelo, eu era com aquela sacola.
Eu e minha irm na banheira. Com a mo esquerda, nossa me regulava a torneira
quente, com a direita, misturava a gua. Meu pai sentou-se na borda, os dois abriram
sorrisos e minha me disse que tinham uma novidade: a partir da semana que vem ele iria
morar numa outra casa.
Minha me falou que no era para nos preocuparmos, mas eu no estava preocupado,
estava curioso: por qu? Meu pai falou que era muito normal, vrios pais moravam em
casas separadas. O pai do Fbio Grande, por exemplo. O pai da Marina, por exemplo. O pai
do Felipe, por exemplo. No muda nada, ela frisou, e que legal: de agora em diante,
alm dessa casa vocs vo ter outra, com outro quarto, outra cama, tudo igual, igualzinho
aqui. No bacana?

Fiquei embasbacado: como podia ser tudo igual, igualzinho? Seria uma rua inteira
idntica, com todas as casas dos vizinhos e plantas e paraleleppedos exatamente nos
mesmos lugares e os mesmos tatus-bola e tampinhas de garrafa enterradas entre eles? Mas
por que haveria de existir essa rplica da nossa vila em outro lugar? Quem seriam as
pessoas a habitar essa realidade paralela? Pessoas idnticas a ns ou pessoas diferentes que
viveriam com as mesmas roupas, entre os mesmos objetos? E se elas j estavam l, como
iramos aparecer, assim, do nada?
Vai saber. O mundo tinha dessas coisas. Na nossa escola estudavam Bianca e Beatriz, as
gmeas. Quem sabe fosse assim mesmo: de tudo, havia dois? Ou talvez meu pai tivesse
construdo uma cpia da nossa casa, numa rua diferente, porque era daquela forma que ele
gostava de morar? Fazia sentido. Eu tambm, se perguntassem como gostaria que fosse
minha casa, diria que assim mesmo mas com um tobog da janela do meu quarto para
uma piscina aquecida no quintal.
No. Ainda que ele tivesse construdo a cpia, no podia ser igual, igualzinho. Seria uma
casa nova, os tacos soltos estariam colados, a poeira embaixo do mvel no teria tido tempo
de se transformar em tufos; e como os pedreiros haveriam disposto os cacos de cermica no
cho do quintal de modo a formar os desenhos, se s eu os conhecia: o homem de chapu e
cachimbo, o elefante de trs pernas, o navio?
Mesmo sem entender, aceitei. J havia visto coisas incrveis, durante meus parcos anos
de vida: ms arrastando pregos, uma fogueira maior do que um carro, meu pai tirando
moedas do ouvido, uma mulher de mai, no circo, sendo serrada em quatro dentro de uma
caixa e reaparecendo inteirinha, depois; se tinha algo de que no poderia ser acusado de
ceticismo. Uma casa igual nossa, afinal, nem era to estranho assim. Alm do mais, por
que eles mentiriam pra gente?

Bom menino

O sol matinal entrava pela janela basculante, condensando o vapor nos azulejos e
dissipando pouco a pouco o cheiro de xampu. Com as calas arriadas at as canelas, prestes
a comear meu xixi, eu mirava no penico da Turma da Mnica. Ao lado, enrolada numa
toalha diante da pia, minha me escovava os dentes.
Eu gostava muito de observar minha me escovando os dentes pela manh: sua mo ia e
vinha, rpida e precisa, de cima para baixo, depois fazia movimentos circulares, sem
espirrar uma nica gota de espuma. To diferente de mim, que s sabia escovar na
horizontal e salpicava de branco a loua da pia, as torneiras, lambuzava o rosto inteiro.
Minha me era to hbil que conseguia at escovar os dentes e andar pela casa ao mesmo
tempo uma de suas faanhas que eu mais admirava. Com a mo livre, era capaz de
exercer outras atividades, como tirar as roupas sujas do cesto, pentear o cabelo ou guardar
uma toalha no armrio. Depois, voltava para a pia e cuspia com elegncia; a espuma saa
da sua boca unida e silenciosa, como uma bolinha de pingue-pongue. Eu imaginava que a
bola branca caa bem no meio do ralo, sem nem esbarrar nas bordas, mas sendo esse um
dos muitos eventos que aconteciam a mais de um metro de altura, tinha de resignar-me
especulao.
Assistir quele pequeno ritual de controle e delicadeza, no incio de cada dia, ajudava a
me acalmar. O mundo era vasto e assombroso, mas uma mulher capaz de escovar os
dentes, andar pela casa e ainda exercer outras atividades certamente tinha condies de me
proteger de todos os perigos, de modo que agrad-la e receber em troca seu sorriso era o que
mais me importava: bastava ver seus lbios se movendo, seus olhos se comprimindo, e a paz
era instaurada.
Estava tranquilo, portanto, ouvindo o som da escovao, sentindo o cheiro de xampu no
ar, prestes a comear meu xixi, quando surgiu a ideia. Chamar de ideia exagero, era
menos que isso, apenas um belisco da curiosidade na pana da harmonia: e se eu fizesse o
xixi fora do penico? Como seria o som no cho de azulejos? Seria diferente do som grave
do jato no plstico, que me lembrava um motorzinho, brrrrrrrrrr? Diferente ainda do
barulho que faria se mirasse em cima do tapete colorido? E se ficasse alternando entre o
penico, o azulejo e o tapete: poderia compor uma msica, como naqueles dias em que a

gente batucava com colheres em latas e garrafas na escola?


medida que ia percebendo as possibilidades ldicas do xixi fora do penico, ficava mais
animado: imaginava o lquido espraiando-se pelo cho, alterando sutilmente o reflexo da
luz na superfcie dos azulejos; pensava que o tapete encharcado iria mudar de cor e que se
quisesse poderia pintar s metade dele, ou fazer riscos em zigue-zague, como meu pai havia
me mostrado na areia da praia, nas ltimas frias. Quem sabe eu at sasse andando pela
casa fazendo xixi em tudo? Xixi no cho de tacos, xixi no revisteiro, xixi pelas paredes, xixi
escada abaixo e, embora soubesse que meus xixis eram pouco volumosos (suficientes
apenas para criar uma lmina amarelada sobre o desenho da Turma da Mnica), a imagem
que me vinha cabea era de uma potncia infinita, um jorro ininterrupto capaz de
encharcar o banheiro, afogar a casa, inundar o mundo.
Examinei o cho, o tapete, a parede, espiei minha me, que seguia escovando os dentes,
e s ento percebi, por baixo da empolgao, uma cosquinha de agonia. Algo me dizia que
sair fazendo xixi sem rumo poderia deix-la brava e aflita e deixar minha me brava ou
aflita era o que eu mais temia. Antes de pr em prtica os projetos que me pareciam
heterodoxos, costumava me perguntar: ser que a farei sofrer? Ser que ela brigar comigo?
Ou, do contrrio, me sorrir, satisfeita? Queria desistir, mas algo na ansiedade parecia
atrair-me: sugeria haver mais coisas a se buscar nesse lugar vasto e assombroso alm da
calma e da harmonia do sorriso da mame.
O xixi j estava quase saindo, podia at sentir o alvio chegando, quando a campainha
tocou. No susto, suspendi a misso. (Eu me orgulhava bastante deste autocontrole: mesmo
se j estivesse no meio do xixi, poderia interromp-lo, momentaneamente. No chegava aos
ps da capacidade de escovar os dentes e andar pela casa ao mesmo tempo, mas me divertia
e vrias vezes passava um tempo brincando com um jato intermitente no penico: segura,
solta, segura, solta, brrrrr, silncio, brrrrr, silncio, e assim me sentia no domnio do meu
corpo e senhor da minha vida.) Ainda escovando os dentes, minha me foi para o andar de
baixo atender a porta, deixando-me s naquela imensido de azulejos, com o pinto na mo
e um dilema na cabea: sorriso apaziguador ou frio na barriga?
Provavelmente, essa batalha j vinha sendo travada havia tempos, o anjinho e o diabinho
me soprando desde a vida pr-uterina suas sedues e reproches, quem sabe influenciando a
intensidade dos chutes no lquido amnitico ou os decibis do choro que antecedia as
mamadas, mas eram apenas as preliminares no campeonato da infncia, cuja final,
senhoras e senhores, se daria em instantes, e, dependendo do resultado, me classificaria em
posies opostas para a grande competio da vida adulta.
Caso ouvisse os impulsos aventureiros e ignorasse os limites do peniquinho, talvez me
atrevesse a saltar a rampa grande de skate aos nove, seria atacante e no goleiro no
primrio; perderia a virgindade antes do primeiro colegial, quem sabe fosse de carona at a
Patagnia aos vinte? Se, no entanto, dedicasse meus parcos mililitros Turma da Mnica e

ao sorriso da mame, deixaria a rampa grande para os maiores e me contentaria em ir e vir


com meu skate pela garagem, toparia ser goleiro nos campeonatos j que ningum o faria e
o professor solicitaria um voluntrio; perderia a virgindade s nos estertores da adolescncia
e, dali em diante, preferiria os caros da poltrona poeira da estrada.
evidente que naquela manh, com as calas na canela e o corao na garganta, eu no
sabia de nada disso. S intua pelo forte frio na barriga que algo importante estava para
acontecer. Ou no: pois assim que ouvi os passos no corredor, acompanhados pelo ronronar
quase inaudvel da escova indo e vindo nos dentes da minha me, sucumbi promessa do
sorriso e comecei a despejar no peniquinho os parcos mililitros do meu xixi, tomando
cuidado para que nem uma nica gota pingasse fora.
Ela terminou de escovar os dentes, cuspiu elegantemente no meio da pia, olhou para o
penico, onde a Turma da Mnica nos observava sob a fina lmina amarela, fez um carinho
mentolado em minha cabea e abriu o sorriso. No havia nada que me ameaasse; afinal,
eu era um bom menino, eu obedecia s regras e recebia a recompensa a ordem e a
harmonia voltaram a reinar sobre a terra e o esprito de Deus a pairar sobre a face das
guas.

Mau menino

Ignoro se peguei a faca na cozinha e fui at a garagem j com a ideia na cabea. Talvez,
sabe-se l por qu, estivesse perambulando pela casa com a faca na mo, fui parar na
garagem e, por curiosidade como quem enfia um grampo na tomada ou bolas de gude
num escapamento , resolvi golpear a parede. Sei que, quando dei por mim, estava ali,
admirando o pequeno risco branco, a reentrncia de massa corrida recm-surgida na grande
tela terracota. Um segundo antes ele no existia, agora parecia brilhar como um nico
Starfix na imensido de um quarto escuro.
Senti-me orgulhoso: ao chegar ao mundo, j o havia encontrado pronto, cabia a mim
somente descobrir do que era feito e como funcionava, olhando embaixo dos vos,
levantando os tacos, cavoucando a terra entre os paraleleppedos. Desenhos em papis,
colagens de sucata ou as esculturas de argila que fazia na escola no eram uma interveno
no mundo papis, sucata e argila no eram o mundo, eram coisas do mundo. Parede era
mundo, casa era mundo, e a satisfao por ter impresso nele minha primeira marca foi
tanta que no demorei a deixar a segunda, a terceira, a quarta, a dcima stima, a trigsima
nona e s quando cheguei esbaforido ao canto da garagem percebi o estrago: uma faixa de
trs metros de risquinhos brancos, a cinquenta centmetros do cho; uma Via Lctea de
destruio percorrendo, de ponta a ponta, a frente da nossa casa. Algo me dizia que, quando
minha me chegasse do trabalho e o farol da Braslia iluminasse aquela lambana, meu
frenesi esttico no seria capaz de atenuar sua ira: o mundo havia sido violado por mim, era
preciso repar-lo.
Corri at meu quarto e peguei o estojo de canetinhas. Tentei pintar as reentrncias com
o vermelho, o marrom, o rosa, mas nenhuma das cores batia. Experimentei tons
sobrepostos, vermelho com laranja, amarelo com roxo, rosa com cinza: nada, porm,
chegava perto da tal terracota. Pior: se antes o que se via ali era uma Via Lctea, agora
contemplava uma nebulosa, uma extensa mancha multicolor serpenteando pela parede.
Voltei ao quarto, peguei o tubo de Pritt. Tentei colar de volta as casquinhas de tinta
cadas no cho, mas elas se esfarelavam ao toque, a cola lambuzava a parede e, como se no
bastasse, as marcas das minhas mos ficaram impressas junto aos riscos feitos faca, como
uma assinatura. A desgraa era inevitvel. Sem opo, enterrei a faca no jardim e parti para

a clandestinidade.
A clandestinidade era um canto no lavabo, entre a pia e a parede. A porta, quando aberta,
projetava uma sombra sobre o vo, deixando-o ainda mais protegido. J havia recorrido
quele refgio em vrios esconde-escondes e, vez por outra, fugindo do banho: no seria
agora, no sufoco, que ele me deixaria na mo.
Apesar do frio e da umidade, estar ali era prazeroso: eu no fazia mais parte do mundo,
estava fora dele, observando-o pelas coxias, invisvel e onisciente. Assim permaneci por
algumas horas, o tique-taque de uma goteira marcando a passagem do tempo.
Anoiteceu. Ouvi o carro da minha me chegando garagem, o motor sendo desligado, a
porta batendo, mas no escutei o som habitual da chave no trinco ou os passos sala adentro.
Como eu temia, ela agora devia estar l fora, agachada diante da parede, aterrorizada com
meu ato de vandalismo, meu crime de lesa-ptria (lesa-mtria?). Primeiro, gritou meu
nome. Depois, chamou a Vanda. Vou ter que repintar a casa inteira! Vai custar uma
fortuna! Onde se enfiou esse menino? Vai ver s!
Eu ia ver s, mas s se, antes, elas me vissem o que nunca aconteceria, pois ao
escutar a voz irada da minha me, decidi levar a cabo a ideia que vinha ruminando desde
que compreendera a dimenso da minha obra na parede: permaneceria escondido para
sempre.
O.k., eu sabia que para sempre seria impossvel, em dois ou trs anos eu no caberia
mais entre a pia e a parede, mas at l j haveria encontrado uma forma de reparar meu
erro, fugir de casa ou, ao menos, me mudar definitivamente para um socavo.
Pensando bem, no era assim to ruim. Beberia gua da pia quando quisesse, me
alimentaria das mas e bananas roubadas da fruteira da cozinha, de madrugada. (Abrir a
geladeira estava fora de cogitao: a porta rangia, as garrafas se chocavam umas contra as
outras, eu acabaria acordando algum.) Se estivesse disposto a correr riscos, mais valia me
esgueirar at o quarto e resgatar uns Playmobils para brincar nos 24 ou 36 meses seguintes.
Enquanto divagava sobre meu futuro na clandestinidade, as duas seguiam me
procurando pela casa, me chamando vez aps outra e foi nas vozes de minhas
perseguidoras que, surpreendentemente, vislumbrei uma possvel salvao. Cada vez que
repetiam meu nome, a braveza ia minguando um pouquinho, dando lugar preocupao:
quem sabe, quando o desespero trouxesse para o seu lado a ltima gota de raiva, eu poderia
surgir em segurana? No seria a alegria por me verem vivo um habeas corpus, capaz de
faz-las esquecer os eventos relativos garagem? Impossvel ter certeza, mas era a nica
chance: Vanda comeou a ligar para os vizinhos, minha me foi me procurar na rua e
decidi que, quando ela voltasse, faria a dramtica apario.
Minutos mais tarde, minha me entrou pela sala quase chorando: No t l! Ningum
sabe. Ningum viu. Deus do cu!. Era chegado o momento. Respirei fundo, deixei as
pupilas se acostumarem luz vinda de fora e estava quase saindo do banheiro quando uma

palavra pronunciada por minha me me empurrou de volta ao esconderijo: talvez eu tivesse


superestimado seu amor por mim, talvez tivesse menosprezado seu apreo pela parede da
garagem ou, quem sabe, os dois juntos, o fato que eu havia ouvido claramente ela
estava prestes a chamar a polcia.
Eu conhecia a polcia pela TV: eles tinham cachorros treinados, lanternas, culos para
enxergar no escuro, era evidente que me encontrariam ali, depois achariam a faca enterrada
no jardim, me poriam algemas e me levariam para a cadeia. Melhor me entregar antes que
chegassem. Dizer que estava dormindo no lavabo, isso, que eu adorava dormir naquele
cantinho, bem fresco, que no tinha ouvido ningum me chamar. Quanto parede da
garagem: que que tem? Deixa eu ver Nossa, que que foi isso?! Ser que foi um gato, com
as unhas? Um gato grande consegue, u, ou dois gatos, um em cima do outro, sabia que
eles fazem isso quando querem arranhar mais alto? Fazem sim, eu juro, eu j vi mil vezes!
Me?

Al, Bozo?

Eu e o Henrique estvamos deitados na cama dos pais dele, os cotovelos enterrados no


grande colcho dgua, os queixos apoiados nas mos, os olhos vidrados no programa do
Bozo, em que trs cavalinhos mecnicos disputavam um preo numa pista em miniatura.
Pelo telefone, crianas faziam apostas e o vencedor levaria uma bicicleta BMX, da Monark.
O Henrique me perguntou quem iria ganhar: o preto, o branco ou o malhado? Ele no
queria saber quem eu achava que iria ganhar, mas qual dos trs de fato chegaria em
primeiro, como se eu, por ser um ano mais velho que ele, tivesse a chave de todos os
mistrios deste mundo. No me sentindo exatamente incomodado com aquela reverncia,
respondi, resoluto e blas:
O malhado, bvio.
Para minha sorte e maior sorte ainda de um tal Arthur, do Jardim Bonfiglioli, So
Paulo, que apostara pelo telefone , o malhado chegou em primeiro. Impressionado com
minha habilidade divinatria, Henrique decidiu que tentaramos a sorte na prxima
rodada:
Liga! Liga! Liga pro Bozo! Liga! ele repetia, apontando o telefone cinza na mesa
de cabeceira.
Hesitei. No se tratava de um procedimento simples, uma ligao. Era preciso decorar o
nmero, girar muitas e muitas vezes aquele pesado disco de plstico, com cuidado para no
escapar do dedo bem no final, mandando para a cucuia todo o esforo anterior; depois,
ainda tinha que falar com adultos mal-humorados, nem sempre pacientes e dispostos a
compreender as solicitaes balbuciantes de uma criana se eu j pensava duas vezes
antes de ligar para o trabalho da minha me e pedir que ela passasse no McDonalds na
volta para casa, imagina s para o maior palhao da Terra? No entanto, como o Henrique
no parava de insistir e eu no queria perder a pose, acabei discando o nmero que aparecia
na TV: 236-0873.
Na primeira vez, deu ocupado. Na segunda, na terceira e na quarta, idem. Na quinta,
chamou. Minha mo suava s de pensar em falar com o Bozo, ao vivo, e em ter minha voz
esganiada difundida para os quatro cantos do pas. E se a Vov Mafalda tirasse um sarro da
minha cara? E se Zeco, Lili ou Macarro imitassem meus S sibilantes? Foi com alvio,

portanto, que vi o programa terminar e estava prestes a desligar, a dizer que pena,
Henrique, no deu tempo, quando uma mulher atendeu. Mal respondi seu al, o
Henrique comeou a puxar minha camiseta e perguntar o que estava acontecendo, se era o
Bozo, se no era, com quem eu estava falando. Tampei o bocal e expliquei que uma
mulher havia atendido.
a Vov Mafalda? Pergunta se a Vov Mafalda!
A mulher disse que no, no era a Vov Mafalda, era s algum da produo, e depois
de alguns segundos de silncio, durante os quais ficamos matutando o que significaria
algum da produo, Henrique tomou a dianteira:
Pede pra falar com o Bozo! Chama o Bozo!
Fiquei nervoso. Pensei em fazer uso de minhas prerrogativas de mais velho e explicar ao
meu vizinho que a vida no era assim. Uma coisa era ligar para participar do programa,
outra completamente diferente era ligar fora do expediente e pedir para falar com o Bozo.
O Bozo no era como as nossas mes, para quem podamos telefonar a qualquer hora do
dia ou da noite pedindo quarteires com queijo e sundaes com calda de caramelo, mas
como eu no queria parecer covarde e ns j havamos telefonado
Eu queria falar com o Bozo, por favor.
A mulher da produo disse que o Bozo no podia falar. Claro, eu sabia. O programa
tinha acabado, ele j estava no camarim e por mais que eu tampouco fizesse ideia do
que fosse um camarim, entendi que era um lugar longe daquele telefone, onde ele no
conseguiria conversar conosco. Houve, porm, um murmrio, ela pediu um instantinho
e nos abandonou ali, pendurados por um fio preto e espiralado num abismo de expectativa.
At que a voz inconfundvel surgiu do outro lado da linha:
Al, amiguinho! Aqui o Bozo!
Foi eu dizer Al, Bozo pro Henrique comear a pular e a correr pelo quarto, gritando
O Bozo! o Bozo! O Bozo de verdade! Caramba! O Bozo!. Eu tambm estava eufrico,
o corao acelerado, as mos suadas, mas a alegria durou pouco e os sorrisos palermas
foram sugados de nossos rostos assim que ele nos perguntou:
Ento, amiguinho, o que voc quer?
Bem, no tnhamos pensado nisso. O plano era apostar nos cavalinhos, mas o programa
terminara, agora o Bozo estava na linha, algo precisava ser dito e no sabamos o qu.
Henrique levou as mos cabea, aflito. Tentei ganhar tempo:
Eu vi o programa Eu, eu torci pelo cavalo malhado. Ele ganhou!
Bozo agradeceu pela audincia, elogiou a performance do malhado, foi simptico o
tempo todo, mas percebi por seu tom de voz que esperava alguma coisa de nossa chamada.
Se minha me j dizia estar ocupada quando eu ligava para o trabalho dela, imagina s o
artista mais importante da televiso.
Eu olhava pro Henrique, o Henrique olhava pra mim e provavelmente continuaramos

nesse angustiante pingue-pongue mental at o Bozo desligar, se a Margarida, irm do


Henrique, no tivesse entrado no quarto.
O Antonio t falando com o Bozo! Ele t falando com o Bozo! disse meu vizinho,
e por um instante nossa glria prevaleceu sobre a aflio.
Eu era um ano mais novo que a Margarida e portanto a tratava com a mesma reverncia
que o Henrique a mim. s vezes, quando a chamvamos para brincar de esconde-esconde
ou pega-pega, ela nem sequer respondia, apenas levantava os olhos de sua pasta de papis de
carta, dava um bocejo entediado e voltava, em silncio, ao universo kitsch de tons pastel.
Agora, contudo, a situao era diferente, tnhamos o Bozo na linha e o poder em nossas
mos: a menina perdeu a pose, soltou trs guinchos e s no deu o quarto porque o
Henrique a segurou pelos ombros, explicando a urgncia: o que deveramos dizer?
Margarida, dando uma mostra de sua maturidade, soltou de bate-pronto:
Pede uma bicicleta!
Era um movimento ousado, mas, eu no podia negar, preciso. Para isso havamos ligado,
afinal de contas, por isso queramos participar da corrida de cavalinhos.
Bozo, eu quero uma bicicleta.
Dando mais mostras de seu desembarao nas coisas da vida, Margarida me soprou os
detalhes:
Uma BMX, da Monark, vermelha.
Repeti tudo, menos a cor: vai que ele s tinha azul ou verde? No seria por esse detalhe
que abriramos mo do brinde.
Bozo pareceu constrangido. Limpou a garganta. Explicou sempre me chamando de
amiguinho que no era assim que funcionava o negcio, voc tinha que participar de
alguma brincadeira e venc-la para ganhar os prmios. Fez ento uma pausa, cochichou
com algum, pediu um instante e sumiu. Estvamos mais uma vez pendurados no abismo
da agonia; os ventos da expectativa nos balanando entre o triunfo e o fracasso, congelando
nossos estmagos. Quando voltou, Bozo soltou, exultante:
Hoje seu dia de sorte, amiguinho! Temos uma bicicleta sobrando!
Margarida corria em crculos, soltando um uivo contnuo, Henrique dava saltos em
cima da cama, aterrissando de barriga sobre o colcho dgua, eu pulava no mesmo lugar,
repetindo Bicicleta! Bicicleta! Bicicleta!. A festa, contudo, terminou mais uma vez
abruptamente, assim que veio a prxima pergunta:
Amiguinho, qual o seu endereo?
No que no soubssemos nosso endereo: sequer tnhamos uma ideia precisa do que
fosse um endereo. Henrique disse que j ouvira falar algo sobre Juscelino Kubitschek,
mas eu sabia que a Juscelino era um lugar ali perto (uma avenida? Uma praa?) por onde a
gente passava quando ia para a casa da minha av, no a nossa rua. Margarida falou que
estvamos no Itaim, a gente mora no Itaim!, e como eu tambm j tinha ouvido essa

palavra l em casa, vrias vezes, disse ao Bozo, cheio de esperana, que a gente morava no
Itaim.
Bibi ou Paulista, amiguinho?
Ah, o mundo! Quando voc acha que est comeando a domin-lo, ele te passa uma
rasteira. Bibi ou Paulista? Quantas infinitas possibilidades haveria por trs daquelas
misteriosas palavras?
Margarida saiu para a rua em desabalada carreira, atrs de um adulto, enquanto eu e o
Henrique debatamos. Ele pediu para eu dizer que a casa dele era azul, era a nica casa
azul da vila, eu falei isso pro Bozo, mas o palhao me explicou que no adiantava muito
saber a cor da casa, sem saber a rua nem o bairro. Eu mencionei o supermercado Barateiro,
ali perto, mas foi s por desencargo de conscincia: sabia que a informao era to ou mais
vaga do que a cor da casa do meu amigo. Ouvimos Margarida correndo de volta, na escada,
mas a esperana durou pouco: a empregada tinha ido ao aougue e no havia nenhum
adulto l fora. Bozo disse que, nesse caso, infelizmente, no teria como mandar a bicicleta,
mas sugeriu que continussemos assistindo ao seu programa e tentssemos ligar de novo no
dia seguinte: quem sabe no participaramos da corrida de cavalos ou da batalha naval e
ganharamos algum prmio?
At mais, amiguinho!
Depois do jantar, eu e o Henrique nos encontramos na rua, os dois de banho tomado, ele
com o cabelo lambido para trs e o meu, tigela, penteado para o lado. Sentamos no meiofio, em frente casa dele. Com um graveto, comecei a desenterrar uma tampa de garrafa
entre os paraleleppedos.
A nossa rua chama Dona Alice falei, sem tirar os olhos do cho. A minha casa
a nmero 14, a sua a 16.
. E Itaim o nome do bairro disse ele. Itaim Bibi. Depois repetiu: Bi-bi
como se no acreditasse que aquelas duas slabas aparentemente inofensivas pudessem
ter uma parcela de culpa em nossa infelicidade.
Ficamos um tempo quietos. Raspei a tampinha na guia, para descobrir a marca por trs
da terra e da ferrugem Pepsi e ento ele me perguntou se eu sabia o que era um
bairro.
Todo mundo que mora perto, alguma coisa assim. Minha me explicou, mas eu no
entendi direito.
Devolvi a tampinha terra e a afundei com o calcanhar.
Passamos boa parte das tardes daquele ano no quarto da me do Henrique, de bruos, no
grande colcho dgua, os olhos vidrados na TV e as mos no telefone, mas s deu ocupado.

Saturno Mercrio

O quarto escuro, o casulo de cobertas, a planta do p deslizando pelos lenis,


semiconscincia e nenhuma demanda: perfeio quase uterina. Ento vinha um adulto
abrir a janela, dizendo olha s, Antonio, que dia lindo, t na hora de acordar, como se
palavras doces pudessem edulcorar o fato de estarem me expulsando do den horizontal e
me jogando no Purgatrio vertical, onde a vontade de comer brigadeiro seria solapada pela
obrigao de provar espinafre, meu espao no tanque de areia teria que ser disputado no
corpo a corpo com outras crianas algumas violentas, at, que no se furtariam a morder
e beliscar para garantir as partes que lhes cabiam naquele minifndio , as professoras
ficariam perguntando quantas perninhas tem o E, quantas corcovas tem o M, e a nica
corcova que importava a minha teria que ser levada de l pra c por frgeis
perninhas, duas apenas, sob a incessante gravidade de 9,8 m/s.
Diante desses e de todos os outros inconvenientes da viglia, no demorou para que eu
descobrisse uma maneira de adiar o mundo, um salvo-conduto para permanecer boiando na
irrealidade amnitica de minhas cobertas. Toda manh, voz adulta e ao primeiro raio de
sol a entrar pela janela, me virava de um lado pro outro na cama: no estava fugindo da luz,
mas testando o corpo, na esperana de encontrar, misturada s brumas do sono, uma
pontinha de febre, um comeo de gripe, qualquer mal-estar que me permitisse pronunciar,
com um langor calculado e aflito: Ai, t me sentindo mal.
Antes de me proclamar incapacitado para as exigncias do dia, no entanto, fazia-se
necessrio conferir se havia algum sintoma verdadeiro ou se eram s fumos da sonolncia a
amolecer os msculos e o entusiasmo, pois o que sasse da boca teria que ser provado pelas
axilas, sob o crivo imparcial do termmetro. Quantas manhs no fiquei ali deitado,
grunhindo, fazendo cara de farrapo humano, para acabar ouvindo as cinco palavras mais
frustrantes da infncia: Trinta e seis e meio.
Aps algumas tentativas malogradas, aprendi que havia enfermidades mais fraudveis
que outras e passei a optar por aquelas que no podiam ser delatadas pelo inclemente
mercrio: enjoo, dor de barriga, dor de garganta ou mesmo a alegao de algo difcil de
definir, mas fcil de simular, um vago e agudo mal-estar.
Claro que, para tais blefes, era preciso ter cara de pau e arte na encenao, coisa que

nem sempre meu recm-adquirido superego ainda no devidamente lasseado pelo uso
permitia. Em algumas manhs, porm, a melancolia vencia o pudor, eu mandava a
autocrtica catar coquinhos e executava toda a via-crcis de lamrias e tosses foradas,
caretas, contores, uma ida cambaleante at o banheiro e o pedido por favor, por favor
para ficar em casa.
Vez ou outra, para minha surpresa, funcionava. Minha me, no sei se por comprar a
mentira ou por preguia de investig-la, me deixava ali, fechava a janela, ia pro trabalho.
Eu cobria a cabea com o cobertor, aproveitava aquela rabeira de cansao com um prazer
subversivo e dormia o sono dos injustos do qual acordava, uma hora depois, remodo
pela culpa. Cerrava os olhos, tentava adormecer de novo, mas no dava, era preciso sair da
cama, tomar banho, vestir uma roupa, descer para a sala. Pensava nas outras crianas, na
escola, correndo no ptio. Pensava nas professoras, no dia seguinte, perguntando por que
que eu tinha faltado. Pensava na minha me, no trabalho, preocupada, e decidia que o
mnimo que eu podia fazer, em respeito a todos, era me comportar realmente como um
enfermo.
Enrolava-me numa manta de l, me sentava na frente da TV com uma xcara de leite
condensado e Nescau e passava o dia por ali, vendo carros explodirem, heris Transformers
lutarem contra macacos aliengenas, uma senhorinha de cabelo acaju ensinando donas de
casa a fazer estrogonofe com ricota em vez de creme de leite seu marido nem vai notar
a diferena.
Quando levantava para ir ao banheiro, mesmo que a Vanda estivesse l na cozinha de
onde vinham os reconfortantes sons da gua na pia, das louas sendo colocadas nos
armrios e o intermitente apito da panela de presso , eu caminhava lentamente,
arrastava os ps, no tirava a manta nem por um segundo, tentando convencer a mim
mesmo de que merecia aquele autodecretado feriado. S de noite, quando minha me
voltava do trabalho, eu me autorizava alguma melhora. Passou o dia todo a, enrolado no
cobertor, confirmaria Vanda. Mas agora j t melhor, eu diria, recebendo um sorriso e
um afago.
Na manh seguinte, faria um esforo enorme para sair da cama antes que os
pensamentos transgressores se formassem na minha cabea e se espalhassem pelo corpo. Na
escola, a professora perguntaria o porqu da falta. Eu diria que estava doente, nada de mais,
s um mal-estar. Ento sairia correndo para o tanque de areia, faria um castelo, cavaria um
buraco e deixaria enterrados os ltimos resqucios de culpa.

Injustia

Estava cavando um buraco quando reparei no Fbio Grande: com uma bacia de plstico,
ele tirava areia do tanque e ia enchendo um caixote de madeira, ao lado. Parei de cavar e
fiquei observando. At ento, para mim, tanque era buraco ou castelo. No sabia que podia
tirar areia dele, nem que era possvel, usando uma bacia, remanejar um volume to grande
o caixote cheio era quase como um tanque de areia paralelo. Fui at ele, empolgado:
Que que c t fazendo?! Que que c t fazendo?!
Fbio Grande me olhou com descaso:
C vai ver.
Ofereci ajuda, tentei pegar um pouco de areia com as mos e jogar no caixote, ele
recusou:
No assim que faz.
Magoado, voltei ao meu buraco, mas a curiosidade era maior do que o orgulho: no
tirava os olhos do caixote, pensando numa maneira de ser aceito na brincadeira. Depois de
uns minutos, Fbio Grande deu o trabalho por terminado. Ps a bacia no cho, esfregou as
mos para tirar a areia, me deu uma olhada de esguelha, s pra confirmar que seu pblico
estava atento, sentou em cima do caixote e anunciou, orgulhoso, a quem pudesse interessar:
um trem.
Caramba, um trem.
Vago ou locomotiva?
Ele no tinha pensado nisso. Hesitou.
Locomotiva, claro.
Era sensacional. A bacia, o caixote, agora uma locomotiva: coisa de gnio. E eu s tinha
aquele buraquinho? Mandei a vaidade s favas:
Posso brincar tambm?
No.
Por que no?
Porque o trem meu.
Dizendo isso, Fbio Grande espalhou a bunda e esticou as pernas sobre o caixote, de
modo a no deixar nem um cantinho para um segundo passageiro.

Nem parece um trem.


No, ?
Ele sorriu com o canto da boca, comeou a chacoalhar o corpo e fazer piu, piu,
piu. Eu queria andar no trem. Eu queria muito andar no trem do Fbio Grande. O
mundo era s trem, trem, trem, trem, trem: empurrei Fbio Grande para fora do caixote e
me sentei em seu lugar. Fiz piu, piu, olhei pra ele, vingativo e assustado, e, j sabendo
que minha glria duraria pouco, resolvi colocar potncia total, fiz tchuctchuctchuc,
piu, tchuctchuctchuc, piu, chacoalhando o corpo, mostrando pra ele como
que se brinca de locomotiva. Fbio Grande pegou a bacia do cho e a prxima coisa que eu
sei que estou sendo levado s pressas pra enfermaria, o sangue escorrendo pelo meu nariz
e fazendo um trilho, sobre o qual Fbio Grande vem seguindo, de olhos arregalados, Ele
que comeou! Ele que comeou!, eu chorando e apontando o caixote: Por que s ele pode
brincar no trem? Por que s ele pode brincar no trem?! Por que s ele pode brincar no
trem?!.

Cueca I

Meu ideal de vesturio era moletom, camiseta e botas: galochas vermelhas, azuis e
amarelas ou as botas de caubi que a me do Fbio Pequeno me deu na primeira vez em
que fomos sua fazenda. Se fizesse frio, conjunto de moletom e botas. Se fizesse calor,
short e botas. Quando havia piscina, sunga e botas. Mais de uma vez, aproveitando a
distrao dos adultos, sa pela casa nu, de botas.
Botas, afinal, eram a nica pea da indumentria de super-heri que voc podia vestir
sem estar fantasiado. Cal-las era como usar o cinto de utilidades do Batman, o escudo do
Capito Amrica ou como levar na canela, para qualquer eventualidade, um frasco da
poo mgica do Panoramix.
Recusava-me a vestir cala jeans. Dura, impedia o movimento; spera, roava nas pernas.
E o zper? E o boto? Pra que complicar tanto a vida, meu Deus?
Recusava-me a usar camisa. Para vesti-la e fechar todos aqueles botes, precisava de um
adulto, para tir-la e abrir todos aqueles botes, precisava de um adulto. E a gola, roando o
pescoo? Qual o propsito daquele suplcio?
Recusava-me a usar malha de l. Pinicava, coava, fazia o nariz escorrer e, ao limp-lo
na manga, ficava com a pele toda assada.
Recusava-me, sobretudo, a usar cuecas. Afinal, pra que servia aquela intil camada de
pano entre a pele e a deliciosa textura do moletom?
Havia certas ocasies, no entanto Natal, rveillon, festas de aniversrio , em que
minha me me obrigava a vestir tudo de ruim ao mesmo tempo: cala jeans, camisa de
boto, malha de l e at por qu, cus? cueca.
Nessas lamentveis manhs eu corria pela casa, me trancava no banheiro, me escondia
embaixo da cama, mas no tinha jeito: uma hora ela me alcanava, me pressionava, me
ameaava fsica e psicologicamente e, invariavelmente, eu terminava estirado no banco de
trs do carro, revirando-me no assento, olhos inchados, coando o pescoo e dando coices
no ar, para deixar bem claro a que ponto me sentia ultrajado dentro daquela engomada
armadura.
Na maior parte do tempo, porm, conseguia trajar-me de acordo com meus princpios:

botas, sempre; cuecas, jamais.


No aniversrio do Fbio Pequeno, a me dele arrumou uma Kombi e levou todas as
crianas da vila para um fim de semana na fazenda. Chegamos sexta noite, aps trs horas
de asfalto e mais uns quarenta minutos sacolejando por estradas de terra, mas no nos
abalamos: largamos as malas nos quartos e fomos correndo para a sala de jogos, uma antiga
cocheira afastada da casa e que, desde o relincho do ltimo cavalo, nos estertores da
produo cafeeira, cinquenta anos antes, no ouvia tamanha balbrdia: berros, estampidos,
estrondos, rangidos, guinchos, estalos, estrpitos e demais barulhos produzidos por um
endemoniado pebolim, disputado a trinta mos, com quatro bolas. A esbrnia, contudo,
estancou de imediato assim que a me do Fbio entrou, revelando:
Antonio, no tem cuecas na sua mala.
Fez-se um silncio de cadeia em vspera de rebelio. Fiquei to nervoso que acreditei
que o som de uma das bolinhas correndo pelas entranhas da mesa fosse a saliva que eu
acabara de engolir, arrastando-se pelo deserto de minha garganta. Ento a bola caiu na
gaveta e, ao seu impacto seco contra a madeira, explodiram as gargalhadas:
O Antonio no tem cueca!
O Antonio vai ficar sem cueca!
Olha s o Antonio! Sem cueca, sem cueca!
A questo no era tanto eu no ter cuecas quanto o meu nome estar, de alguma forma,
associado a elas. No sabamos exatamente o porqu, mas roupas de baixo eram um assunto
delicado e, portanto, nessa seara ningum queria fugir um milmetro norma. Se
dissessem que minhas cuecas eram grandes, todos ririam do mesmo jeito e eu deveria
provar que eram pequenas, se me acusassem de usar cuecas pequenas, eu me defenderia
dizendo que eram grandes, assim como se falassem que eu tinha cuecas vermelhas eu
juraria que as minhas eram todas brancas, e se comentassem que eu era um tipo estranho
que s usava cuecas brancas, afirmaria ter vrias coloridas. Como a acusao era de que
no havia cuecas na minha mala, a nica forma de desligar meu nome do tema era provar
que sim, obviamente, eu tinha cuecas e, portanto, a minha relao com tais peas do
vesturio era perfeitamente normal.
Decidido a reconquistar a honra, apontei um indicador para o alto, pus a outra mo na
cintura e lancei, do fundo do meu desespero, a seguinte declarao vaga, sem dvida;
falsa, decerto; mas imponente e, ao menos temporariamente, eficaz:
nada!
Com passos firmes, parti em direo casa, a me do Fbio me seguindo e as catorze
crianas atrs no caminho, at os cri-cris das cigarras pareciam caoar de mim.
Cercado por meus algozes, procurei nos bolsos da mala, entre as camisetas, dentro das
calas; remexi as roupas com tamanha obstinao que cheguei a acreditar que, mesmo no

usando cuecas, mesmo no tendo mais do que uma ou duas, perdidas no fundo de uma
gaveta, de onde s saam em Natais, Anos-Novos e outros infortnios do vesturio, bastaria
busc-las com bastante empenho para faz-las brotar do nada, como as moedas que meu pai
tirava da orelha.
No tem, Antonio, eu j procurei disse a me do meu amigo, enquanto as crianas
seguiam com o coro:
O Antonio no tem cueca! O Antonio no tem cueca! O Antonio no tem cueca!
Encurralado, apelei para o velho clich do criminoso pego em flagrante e exigi meu
direito a um telefonema. Na sala, diante dos olhos e ouvidos atentos do meu implacvel
jri, liguei para casa. Minha me atendeu. Do lado de l, ouvi aquele burburinho de jovens
pais se divertindo com os amigos num fim de semana sem os filhos: vozes, talheres, copos,
risos, um disco de jazz, baixinho, ao fundo. No dei nem oi:
Me, voc esqueceu de pr cueca na minha mala!
Ela riu e, com a voz amaciada por uma ou duas taas de vinho, disse o que eu receava
ouvir:
Filhote, voc no usa cueca.
Era um argumento irrefutvel, evidentemente, mas j que havia levado a farsa at ali, s
me restava ir adiante:
Por qu, me?! Por que voc esqueceu de pr cueca?!
Antonio, que que t acontecendo? Voc detesta cueca! T com saudade de casa,
isso?
Do lado de c, a me do Fbio se intrometia:
Deixa eu falar com ela.
No!
Escuta, querido, meu irmo t vindo pra fazenda amanh de manh, pede pra sua
me mandar as cuecas por ele. Me passa ela aqui, que eu combino!
Solta! Solta! eu repetia, apertando o telefone contra o corpo com tanta fora que
podia sentir a voz da minha me fazendo cosquinhas na pele:
Antonio, t a? Deixa eu falar com a me do Fbio. Antonio?
A me do Fbio:
Antonio, d aqui o telefone?
As crianas:
Sem cueca! Sem cueca! Sem cueca!
Cansada da negociao, a me do meu amigo partiu pra ignorncia: durante um tempo,
eu e a mulher lutamos pela posse do aparelho; fiz o que pude, mas ela era mais forte e
habilidosa do que eu, e l pelas tantas, com uma puxada e uma toro, conseguiu me
desarmar. As crianas se calaram para ouvir.
Oi, querida, tudo bom? Aqui, tudo timo, obrigada, s esse probleminha a, das

cuecas do Antonio, mas amanh o meu irmo t vindo pra c e


Pausa.
Ah, sei Ah, t certo
Pude ver minha desgraa entrando no telefone l de casa, percorrendo os fios da vila,
seguindo pelos postes de So Paulo, pegando a rodovia, chegando pela estrada de terra e
saindo pelos furinhos no ouvido daquela mulher. Era o fim; minha me, intimada como
testemunha de defesa, havia debandado para a acusao, estava confirmando as suspeitas de
todos, no havia cuecas na mala, no havia cuecas na minha vida, eu era um descuecado,
um incuequento, um ser absolutamente acuecal.
Claro, claro, entendi disse a me do Fbio antes de se despedir, desligar e abrir um
sorriso. o seguinte, pessoal
No esperei para escutar o fim da frase: sa correndo para o pasto, me agachei atrs de
um cupinzeiro e ali fiquei, se no me engano, at o fim da minha infncia.

Cueca II

Os adultos continuavam mesa, bebendo, falando e rindo, enquanto eu, metido num
canto sob o vo da escada, analisava, curioso, a cueca que tinha acabado de ganhar de
Natal. Conjecturava, mais especificamente, a respeito de uma pequena e retangular
incongruncia, costurada em seu elstico: uma etiqueta.
Durante meus primeiros anos de vida, a funo das cuecas foi um enigma. Pra que usar
uma sunga de algodo por baixo da cala, a apertar-nos o pinto, o saco e a bunda, se a todas
essas partes do corpo era to agradvel o toque macio do moletom? O mistrio arrastou-se
at o dia em que meu pai, ouvindo-me reclamar da etiqueta de uma bermuda, a me pinicar
as costas, sugeriu que eu vestisse uma cueca. Das trevas fez-se a luz. Ento era isso, claro:
elas existiam para nos proteger das etiquetas!
Como eram engenhosos os adultos: para cada doena um remdio, para cada problema
uma soluo, cada coisa no mundo tinha uma funo. Assim segui pensando at aquele
Natal, quando abri o pacotinho de plstico e fui novamente engolfado pela noite da
ignorncia: se me dessem um cachorro com etiqueta, tudo bem; um carro com etiqueta,
numa boa; um caqui, sem problemas: mas uma cueca, cuja funo era exatamente
Decidido a resgatar a lgica perdida, fui at a mesa de jantar, cavei uma brecha entre
meu tio e minha me e, crente de que a etiqueta falaria por si, coloquei a cueca no meio da
mesa. Minha me a pegou, esticou, olhou de um lado, do outro, olhou pra mim:
Que que foi, Antonio?
A etiqueta, me!
T vendo, e da?
U, a cueca no pra etiqueta no pinicar?
Os adultos riram, mas no me intimidei:
Se no pra proteger da etiqueta, pra que que serve a cueca?
As risadas cessaram e depois de um breve silncio todos comearam a palpitar ao mesmo
tempo.
Serve pra no prender o pinto no zper disse uma tia.
pra deixar tudo juntinho e no ficar balanando de um lado pro outro sugeriu
meu av.

pra proteger opinou um primo.


Prender no zper? Mas e quando usava moletom ou short? Deixar tudo juntinho? Mas o
legal era que aquilo balanava, u. Proteger o pinto? Do qu? De quem? E se de fato algo
ou algum resolvesse atac-lo, cobri-lo com aquela fina camada de algodo no me parecia
a melhor estratgia. (Uma cueca de ao, como a de uma armadura, seria muito mais til
e, pensando bem, muito mais legal.)
No podia aceitar aquelas respostas, tanto por serem ruins quanto por serem muitas:
cada coisa neste mundo tinha uma explicao e eles no sabiam me dar a da cueca. Na
volta ao vo da escada, passei pela cozinha, peguei uma tesoura e, encolhido em meu
rinco, cortei rente costura a fonte da minha angstia. Agora a etiqueta no me causaria
incmodo algum. Algo mais sutil, porm, passaria a me pinicar, daquela noite em diante:
se eles no sabiam nem a funo da cueca, como confiar no resto?

Indefectvel

quela altura da vida ainda no estava claro se eu era ou no capaz de controlar o


mundo com o poder da mente, mas como a experincia me dava tantos exemplos para
acreditar que sim como para desconfiar que no, no custava nada tentar: assim que vi pela
janela o posto se aproximando, fechei os olhos, me concentrei e torci para que o pai do
Henrique encostasse ali: Para, para, para, para, para, para. A telepatia, porm, no surtiu
efeito: o carro passou zunindo pela concha da Shell, que, dado o meu aperto, mais parecia
uma enorme tampa de privada me acenando sarcasticamente pelo vidro traseiro, enquanto
nos afastvamos em alta velocidade.
Estvamos a caminho do stio do Henrique e eu tinha duas urgncias:
1. Fazer coc.
2. Evitar a todo custo que qualquer um naquele carro descobrisse que eu precisava fazer
coc.
O item dois era a minha prioridade.
Na idade adulta, os assuntos relacionados s necessidades fisiolgicas no so mais o
pice da infmia. No que o tema deixe de ser nojento: o leque das possveis aes
desabonadoras que se amplia. Voc pode roubar, subornar, chantagear, praticar o
matricdio, o parricdio, o fratricdio ou qualquer dos inmeros cdios disponveis, pode
ser um adepto da pedofilia, da zoofilia, da zoopedofilia, pode descobrir, durante uma festa
da firma, que suas fotos se divertindo com uma cabritinha caram na internet e, no exato
momento em que se serve de mais um canap, esto circulando pelos celulares dos colegas
de trabalho. De modo que uma meno ao coc se torna apenas uma indiscrio, no
mximo um pequeno constrangimento. Aos quatro anos, contudo, a situao diferente.
Assim como a respeito das cuecas, paira sobre as coisas que se faz no banheiro uma
nuvem carregada de ridculo, que, ao menor passo em falso, pode trovejar, relampejar e
desaguar na sua cabea. (Bem, no exatamente na cabea e no apenas desaguar.)
Pra comeo de conversa, voc nem tem certeza de que todos fazem coc ou se aquele
s um defeito seu e de mais meia dzia de infelizes, como um nariz que escorre, uma
orelha de abano ou a estranha capacidade que seu pinto tem de, vez ou outra, no meio de
uma aula, no tanquinho de areia ou no colo da me de um amigo, ficar duro e comprido.

Minhas irms eu sabia que faziam coc. Meu pai, tambm. Mas o que dizer sobre minha
me? Minha professora? O Super-Homem? O Bozo? Eles faziam coc?
Sem dvida, se eu pedisse para o pai do meu amigo parar num posto e explicasse a razo,
o Henrique, a Margarida e as minhas irms ririam de mim, me apontariam seus dedos e
gritariam: Hahahaha, ele quer fazer coc! Ele quer fazer coc!. Quem sabe, at, eles e as
outras crianas que estariam no stio me dariam algum apelido como Cocnio ou
Tonicoc ou Toni Cocozeiro, a histria chegaria ao colgio, eu e meu coc atravessaramos
toda a vida escolar de mos dadas.
No. Melhor ficar quieto, insistir mais um pouco nos duvidosos poderes da telepatia,
secar o suor das mos na mochila a que me agarrava e tentar disfarar o sufoco cantando
baixinho as msicas que a me do Henrique puxava com as crianas: O jipe do padre fez
um furo no pneu, um furo no pneu/ o jipe do padre.
Depois de uma hora de Jipe do padre, Vomitaram no trem e Margarida roubou po
na casa do Joo, descobri que a fora da mente podia ter pouca influncia nas decises do
motorista, mas ao menos sobre as prprias entranhas exercia algum controle, pois
chegamos ao stio sem que eu precisasse revelar meu segredo ou que, terror dos terrores,
ele se revelasse sozinho. Quando o pai do Henrique puxou o freio de mo, disfarcei meu
aperto num falso grito de euforia, abri a porta, saltei do carro e sa correndo casa adentro.
Em minha utopia sanitria, assim que ultrapassasse o batente veria um banheiro e
estaria salvo, mas dei com os burros ngua, ou melhor, longe dela: topei com uma sala
enorme, de p-direito altssimo e sem nenhum indcio de privada por perto. L do outro
lado, a quilmetros de distncia, havia um corredor. Corri at ele. Tinha umas quatro
portas de cada lado ou talvez fossem quarenta. Uma a uma, as abri: quarto de casal,
quarto com beliches, quarto com selas de cavalo, quarto de TV, sala de jogos, sala vazia e
com cheiro de mofo, sala cheia de livros. S na ltima porta, l no fim, quando j estava
considerando me esconder dentro de um armrio e fazer coc ali mesmo como
saberiam que fui eu? , achei o banheiro.
Entrei. Tranquei a porta. Que bela viso! Ali, a um metro de mim, a privada, branca e
pura como uma nuvem no meio de um cu azul. Meu alvio foi to grande que, quando
me dei conta, tinha feito coc nas calas.
***
Estava no stio do Henrique, de p na porta de um banheiro, e tinha duas urgncias:
1. Livrar-me do coc em minha cueca.
2. Evitar a todo custo que qualquer um naquela casa descobrisse o que acabara de
acontecer.
O item dois era a minha prioridade.
Se, durante a infncia, o coc era o topo da infmia, o coc na cala era o topo com uma

escadinha em cima. Aos quatro anos, voc tem poucas atribuies: no derrubar ou quebrar
nada, no botar na boca objeto ou substncia que no tenha sido previamente aprovado por
um adulto, no meter o dedo em nenhum buraco que no tenha sido previamente aprovado
por um adulto, no morder ningum e, acima de tudo, no fazer xixi na cama ou coc na
cala. a isso que voc se dedica, como um bombeiro se dedica a apagar incndios e um
cachorro a abanar o rabo. Um fracasso nessa rea , portanto, um fracasso total se fosse
possvel ser demitido da infncia por justa causa, estaria a uma bela razo.
Fechei e tranquei a porta. Era preciso raciocinar com calma. No era assim to grave,
afinal. Enquanto permanecesse ali dentro, ningum saberia do segredo escondido em
minha cueca. Se algum batesse, diria que estava escovando os dentes. Se preciso fosse, at
escovaria os dentes, para disfarar.
Antes de mais nada, tinha que averiguar a gravidade da situao. Com muita frieza,
afastei os elsticos da cala e da cueca e as abaixei, minimamente. Como um pssaro
acomodado em seu ninho, um coc me observava. Pelo menos era um s. E duro. No
havia cado ou escorrido pelas pernas.
Motivado por aquele sopro de otimismo, me pus a pensar num plano de ao. O certo
seria tirar a cala, a cueca, enrolar as mos e os braos em papel higinico at ficar
parecendo uma mmia, iar o coc, deposit-lo na privada, desenfaixar os braos, jogar fora
o papel, lavar a cala e a cueca, me limpar, tomar banho e botar uma roupa limpa. Mas
como executar todas aquelas tarefas, se at me limpar sozinho, depois de um coc normal,
j era um pequeno desafio? Se mesmo um banho era um procedimento cercado de
mistrio: toda aquela complicao das torneiras, a quente e a fria, que deveriam ser
equalizadas para que a gua no me gelasse nem me queimasse a espinhela, coisas que s
adultos sabiam fazer? Alm do qu, assim que ouvissem o barulho do chuveiro, os pais do
Henrique estranhariam, bateriam na porta, me obrigariam a abri-la e eu seria descoberto.
No, eu no podia ser descoberto, ningum podia me descobrir, meu medo do
descobrimento era tanto, e tantas vezes a palavra rondou minha cabea, que fez brotar de si
uma sada, uma ideia que me pareceu no apenas lgica como bela, em sua simples
engenhosidade: se o importante era no ser pego e era impossvel me livrar daquele coc, o
jeito era escond-lo. Ou melhor, abaf-lo.
Abri a mochila e tirei de l todas as roupas que minha me havia mandado. Por cima da
cala, vesti uma sunga. Por cima da sunga, dois shorts, e, sobre os shorts, quatro calas de
moletom. Olhei-me no espelho, rechonchudo como o boneco da Michelin, mas orgulhoso:
meu plano era perfeito. Parecia to inteligente e havia sido executado com tal esmero que
eu no entendi como, mal sa do banheiro, os adultos o descobriram.
Enquanto eu saltitava pela grama, nu como um prisioneiro se protegendo do suplcio do
esguicho, cheguei concluso de que os adultos eram capazes de usar a telepatia,
habilidade que eu, quela altura da vida, ainda no tinha desenvolvido. Claro: s assim

poderiam ter enxergado, mal bateram os olhos em mim, o segredo que eu escondia por trs
das roupas e do sorriso indefectvel.

frica

Se voc for sempre reto aqui, sabe aonde chega?


Aonde?
Na frica.
Mentira!
Srio. Meu tio que me contou.
Eu e o Fbio Grande ficamos um tempo calados, os ps na areia e os olhos no horizonte,
recordando tudo o que j havamos visto em livros, filmes e programas de televiso sobre o
Continente Negro.
Tem leo na frica eu disse.
Tem girafa tambm.
E rinoceronte.
Depois de mais alguns segundos de silncio contemplativo, o Fbio props:
Vamos l?
Estvamos na ilha de Itaparica, com a famlia do meu vizinho. Fbio ia pra l todo ano.
Sabia subir em coqueiro e pegar siri com a mo, andava descalo na areia sem queimar o
p e dava cambalhota na gua sem tampar o nariz: me passava segurana suficiente,
portanto, para que eu topasse a expedio transatlntica.
No sabamos a que distncia estvamos de nosso destino o tio do meu amigo havia
dito apenas que indo sempre reto aqui dava na frica, sem entrar em maiores detalhes ,
ento resolvemos nos precaver: passamos em casa para pegar as pranchas de isopor e, aps
vinte minutos e um rolo inteiro de fita-crepe, conseguimos colar uma garrafa de Lindoia na
frente de uma delas. Tudo pronto.
Estava claro que ultrapassar as ondas seria a parte mais difcil: se consegussemos vencer
aquela espessa barreira de espuma, o resto da jornada a se julgar pela aparente calma do
mar aberto seria bico. Enquanto Fbio decidia, compenetrado, o melhor lugar para
atravessarmos a arrebentao, ao seu lado, quieto, eu aguardava instrues.
Entramos na gua no ponto escolhido, saltei sobre a prancha e comecei a bater os braos
freneticamente. Fbio me aconselhou a descer e irmos andando at onde desse p, evitando
assim uma precoce assadura nos mamilos. Obedeci. Chegamos ao fundo, subimos nas

pranchas e passamos a remar com os braos. A primeira onda se aproximou e Fbio tentou
me explicar, s pressas, a tcnica do joelhinho, procedimento usado pelos surfistas para
passar a arrebentao. Parecia simples, na teoria, e assim que a onda nos alcanou, tentei
imit-lo, mas algo no saiu exatamente conforme o planejado: foi como se eu tivesse sido
jogado dentro de uma betoneira cheia de mingau; o mundo ficou bege e confuso, girei
muitas vezes, ralei o ombro no fundo, entrou gua no meu nariz, areia na boca e, quando
dei por mim, estava sentado no rasinho, com os olhos ardendo e uma franja de sargao
tapando a viso.
No demorou e o Fbio apareceu com a minha prancha. A garrafa dgua tinha ido
embora, levando consigo todo o aparato de fita-crepe e uma quantidade razovel de isopor.
Breve debate: voltar para a casa e prender nova garrafa dgua dessa vez com fita isolante
ou seguir adiante? Humilhado com o meu caldo, insisti para seguirmos em frente:
tnhamos acabado de chupar picols e no pretendamos mesmo passar muito tempo na
frica era ver uns lees, elefantes e rinocerontes e voltar a tempo pro lanche. O Fbio
concordou e, antes de retomarmos os trabalhos, me ensinou, com calma, os procedimentos
relativos ao joelhinho.
Voltamos arrebentao. No capotei, como da outra vez, mas tampouco atravessava as
ondas feito uma foca; cada uma que vinha me arrastava alguns metros para trs. Eu lutava
bravamente, contudo. De tempos em tempos nos olhvamos, cmplices como soldados
avanando sobre territrio inimigo. At que, depois de uma eternidade, com os olhos
vermelhos, a barriga ralada e os mamilos em chamas, o que parecia impossvel aconteceu:
passamos a arrebentao. Estvamos em mar aberto. A calma e o silncio aumentaram a
ansiedade: a frica, que ali da praia poderia ser apenas um sonho, era agora quase tangvel.
Algumas braadas e estaramos na savana. Quando eu contasse na escola, ningum iria
acreditar.
Antes de seguirmos adiante, breve debate sobre o que fazer para nos protegermos da
fauna hostil. Como nenhum de ns se lembrava de ter visto imagens dos grandes felinos no
mar, parecia seguro observar lees, leopardos e panteras de dentro dgua. Quanto aos
tubares, o combinado foi manter os ps para cima e bater os braos rapidamente a
prancha de isopor se encarregaria de proteger nossos troncos.
Aos poucos, fomos deslizando azul adentro. Os sons da praia foram ficando cada vez
mais distantes: o frescobol, a buzina do sorveteiro, vozes de crianas, a matraca do vendedor
de tapioca, algum que gritava Fbio! Antonio! Antonio! Fbio!. Opa.
Com gua nos joelhos, a me do meu amigo andava de um lado pro outro, abanando os
braos. Parecia muito alterada. Estava acompanhada pelo tio do Fbio, a av e mais uma
meia dzia de banhistas. Todos nos acenavam. Ser que algo de grave havia acontecido em
terra? Talvez ela estivesse brava por termos pegado a fita-crepe sem pedir. Ou seria a garrafa
de Lindoia?

Notei, ento, que alguns surfistas entravam no mar e vinham remando vigorosamente
em nossa direo. Era bvio: ao nos verem cruzar a arrebentao e seguir reto,
compreenderam nosso projeto e decidiram vir junto. Fbio me sorriu, eu sorri de volta e
ficamos ali, olhando pro horizonte e esperando os retardatrios para seguir com a
expedio.

Ca Ce Ci Co u

Dentre as inmeras estranhezas do mundo, mais esta: havia coisas com vrios nomes e
nomes com vrias coisas.
Exemplos de coisas com vrios nomes:
Carro, automvel, Braslia.
Privada, vaso, trono.
Rosto, cara, face.
Exemplos de nomes com vrias coisas:
Manga: a fruta e o pedao da roupa usado para limpar o nariz quando no h adulto por
perto.
Como: a palavra que uso para perguntar Como liga?, Como joga?, Como faz?, mas
tambm o que fao quando almoo, janto, tomo caf da manh.
Barata: um bicho que na praia voa e na cidade no e tambm o preo de uma coisa
quando no t cara.
Cara: o rosto, o preo de uma coisa quando no t barata e o jeito que meu pai chamava
os amigos: e a, cara?
***
No bastasse essa confuso, havia tambm coisas com nomes que podiam ser
pronunciados em certos lugares, mas em outros, no. Bumbum, por exemplo, estava
liberado por toda parte. Bunda era permitido na casa do meu pai e da minha me, mas no
na escola ou na casa da minha av. Existia ainda uma terceira palavra, curtinha e de
aparncia inofensiva, que no deveria ser pronunciada jamais, nem na casa do meu pai,
como j ficou bem claro na primeira vez em que a ouvi.
Estvamos no meio de uma aula de artes, concentrados, aprendendo a cortar argila com
barbante, quando uma voz esganiada e sarcasticamente empolada surgiu l no corredor,
cantando Jingle Bells.
Logo entendi de quem se tratava. Caio era um repetente do pr que andava com os

cabelos despenteados, os cadaros desamarrados e um ranho constante descendo pelo buo


evidentes statements contra o statu quo. No incio daquele ano, ele havia jogado um
abacate por cima do muro da escola, atingindo o carro de um vizinho. No ano anterior,
embora nada tenha sido provado, foi sobre ele que recaram todas as suspeitas quando o
aparelho mvel da Catarina, sumido havia alguns dias, apareceu embaixo de uma folha de
couve, semienterrado no hmus do minhocrio. Eu tinha medo do Caio, mas um pouco de
pena, tambm. Supunha que pelo menos parte de sua inadequao se devesse ao batismo:
afinal, era ou no mau augrio vir ao mundo com a queda no nome?
Conforme a voz foi se aproximando da classe, reparamos que a verso do nosso colega
para a cano natalina era ligeiramente diferente da que conhecamos: Jingle bells, jingle
bells, acabou o papel/ no faz mal, no faz mal, limpa com jornal/ o jornal t caro, caro pra
chuchu. Neste ponto, o professor fez uma cara de pnico, largou o bloco de argila e o
barbante sobre a mesa e saiu voando em direo ao corredor, mas j era tarde: a cabeorra
do garoto surgiu, emoldurada pelo batente da porta, e, com um sorriso de maluco no rosto,
como se olhasse para todos e para ningum ao mesmo tempo, ele gritou ento como
que eu fao pra limpar meu [pausa dramtica] cu?!.
Enquanto o professor sumia escola adentro, levando o Caio pelo brao, eu matutava
sobre aquela misteriosa palavra: to curta e to forte. Levaria mais ou menos um ano para
que a ouvisse novamente e, quando aconteceu, foi ainda mais esquisito que da primeira
vez.
Era o ltimo dia de aula do Jardim II e a professora nos informou com a devida
solenidade que no semestre seguinte, no pr, aprenderamos a ler e escrever.
Passei as frias ansioso. Fazer colagens com sucata, modelar cinzeiros de argila, batucar
em latas de Nescau, pintar a mo com guache e estamp-la em folhas sulfite eram
atividades muito prazerosas, verdade, mas j estava mais do que na hora de entender o que
diziam os livros, as placas, os outdoors e as fachadas da cidade sem precisar do auxlio de
um adulto.
No dia em que as aulas comearam, almocei rpido e fiquei apressando minha me:
tinha medo de me atrasar para a escola e, chegando l, descobrir que todos haviam
aprendido a ler e escrever, menos eu. Ao entender a razo da minha ansiedade, ela riu,
explicou que a alfabetizao era um processo complexo e demorado e no seria arruinado
por sua sobremesa.
Ela tinha razo. Aps semanas de esforo, eu no s continuava incapaz de escrever uma
nica frase como sequer estava muito seguro em relao s letras. Nunca sabia quantas
perninhas pr no E, quantas corcovas tinha o M sem falar na porcaria do W, um M de
ponta-cabea que a professora dizia no servir para nada e, portanto, devia existir s para
nos confundir.

Que o M era uma consoante e o E uma vogal, isso eu sabia. Ns aprendemos primeiro as
vogais, depois as consoantes, e agora estvamos misturando. Essa parte at que era
divertida. A professora perguntava: M e A?, e ns respondamos, em coro: Ma!. M e
E?: Me!. M e I?: Mi!. M e O?: Mo!. M e U?: Mu!.
Quando surgia alguma palavra da juno da vogal com a consoante Mu, por exemplo,
o som que a vaca faz , a gente achava muito engraado e dava risada, feliz da vida,
percebendo que o nosso esforo no era em vo e que, de letra em letra, talvez uma hora
realmente aprendssemos a ler e escrever.
Cada vez que amos comear a srie com uma nova consoante, eu tentava antecipar as
palavras que poderiam surgir. D e A formavam D, L e E formavam L, L e I formavam
Li E foi essa prtica antecipatria que me fez tremer quando a professora comeou a
srie do C. C e A?, ela perguntou, e enquanto todos respondiam Ca! s consegui pensar
que chegaria a vez do U e a classe gritaria, em unssono, a slaba proibida.
Seria possvel que nossa professora estivesse nos levando beira do precipcio e, l
chegando, nos encorajasse a saltar? Ou ser que no pr as represses se afrouxavam,
liberando costumes e termos vetados ao pessoal do Jardim II? Pouco provvel, se mesmo
bunda, aparentemente mais light, seguia na ilegalidade.
C e E?, perguntou a professora, e, apesar da tenso, me esforcei para responder com os
outros: Que!. Para minha surpresa, ela fez no com a cabea. Explicou-nos, ento, que a
srie do C era um pouco diferente: Com algumas letras, o C tem som de Q, como C e A,
Ca, mas outras vezes ele tem som de S. C e E, por exemplo, Ce. E C e I Ci.
Brilhante! Eles haviam mudado a srie do C para evitar o palavro. Eu sabia que os
adultos no deixariam um problema daqueles passar. Quando chegasse o momento de
respondermos o som de C e U, diramos, imaculados e felizes: u. E por que colocar o som
de S no E e no I, se nem Que nem Qui eram palavres? Ora, para disfarar. Se a srie
fosse Ca, Que, Qui, Co, u, todo mundo ia perceber o disfarce na ltima slaba, como
algum fantasiado de arbusto no meio de um descampado e, como resultado, a palavra
proibida viria imediatamente conscincia. J misturando os sons desde l detrs, ou seja,
inserindo mais umas moitas no cenrio, a censura passaria despercebida, integrada,
orgnica.
Tranquilo, deixei-me levar pela srie do C: C e I?, e a gente gritou Ci!. C e O?:
Co!. Ento chegou a hora da verdade, a hora da vogal derradeira, aquela para a qual toda
a srie do C havia sido prudentemente alterada: C e U?, perguntou a professora
surpreendentemente calma para quem caminhava em campo minado. Com medo de que
algum ignorante no tivesse sacado a prudente adulterao da srie do C e, com um mau
passo, fizesse tudo voar pelos ares, me adiantei e falei bem alto: u!. Pronto! A catstrofe
havia sido evitada, depois viria a srie do D, sem nenhum acidente vista e com vrias
possveis palavras, como Dado, Dedo e Dida, que era o apelido de uma colega de classe:

estvamos salvos.
Perdido nas possibilidades da prxima consoante, imaginando se a Dida ia ser chamada
frente da classe, como havia acontecido com a Babi, na srie do B, demorei a perceber que
a professora fazia um no com a cabea, olhando para mim. A srie do C s tem som de S
com o E e o I, Antonio: Ca, Se, Si, Co e meu Deus, ela vai dizer, ela vai dizer,
ela Cu ela disse. Diante da sala lotada, em alto e bom som, como se fosse Lu,
Mu ou Ju, ela disse: Cu.
Minha perplexidade no pde reverberar por muito tempo, pois mal a palavra saiu de sua
boca, a professora tratou de emendar: que nem em Cuidado, Acusado, Curioso, Cuco,
Baiacu, Curitiba, achando que bastaria embrulhar o termo proibido entre outras slabas
para escond-lo da gente.
A srie do D veio na sequncia. A professora chamou a Dida l na frente, pediu pra ela
mostrar os dedos, perguntou se a Dida gostava de jogar dados e se no achava o Didi e
o Ded muito engraados, mas no prestei ateno. Pensava no Caio, no mais com medo
ou pena, mas com admirao. Um aluno fala cu e veementemente repreendido; meses
depois, a professora repete a palavra na frente da classe e sai ilesa. Talvez o melhor mesmo
fosse sair arremessando abacates por cima dos muros, enterrando aparelhos no minhocrio
e cantando obscenidades pelos corredores, sem se importar com o cabelo despenteado, os
cadaros desamarrados, o nariz escorrendo, as perninhas do E, as corcovas do M, o mistrio
do W, a moral e os bons costumes.
C e U: Cu.

Mulher pelada

Toda sexta-feira, l pelas seis e meia da tarde, meu pai aparecia para nos buscar. Assim
que dobrava a esquina, dava duas buzinadas curtas: era o sinal para que pegssemos nossas
mochilas e corrssemos para a rua.
Geralmente amos a algum restaurante ou bar, onde ele encontrava os amigos e a
namorada e nos esbaldvamos misturando Coca-Cola com Sukita, comendo frango
passarinho com batata-frita e mandando pra cucuia, em meia hora, toda a harmonia
nutricional que minha me havia conquistado, a duras penas, ao longo da semana.
Nas pocas em que meu pai tinha alguma pea em cartaz, costumvamos passar pelo
teatro antes ou depois do bar, para que ele checasse a bilheteria, conversasse com os atores,
visse o pblico entrando, ou, caso o espetculo j tivesse comeado, aferisse o xito da noite
pelo nmero de pipoqueiros na calada.
Quando eu tinha uns cinco anos, estreou Besame mucho no Cultura Artstica. Foi o
maior sucesso do meu pai coisa para trs, quatro pipoqueiros , mas eu no o
considerava um homem realizado: muito pelo contrrio. que, aos olhos de uma criana,
aquele teatro, embora um marco arquitetnico paulistano, era incapaz de competir com a
exuberncia kitsch das casas de strip adjacentes. Que apelo tinha um painel de pastilhas do
Di Cavalcanti diante de neons em forma de danarinas de canc, levantando e abaixando
as pernas, bocas abrindo e fechando, luas cheias, crescentes e minguantes, cometas
espichando as caudas, estrelas acendendo e apagando? O que podia o projeto modernista de
Rino Levi entre fachadas imitando castelo medieval, gruta rochosa e chal alpino, com
portas espelhadas, douradas, prateadas, forradas de couro preto, branco ou vermelho? Por
aquelas portas pude ver de relance, uma ou duas vezes, os palcos esfumaados, o pisca-pisca
da luz estrobo, as prateleiras repletas de garrafas coloridas e, assim, confirmar a suspeita de
que o teatro do meu pai era o estabelecimento mais desanimado da regio.
Eu morria de vontade de saber mais sobre aquela Disneylndia noturna, mas no abria a
boca, com receio de magoar meu pai, lembrando-lhe da simplicidade de seu teatro. Uma
noite, contudo, ao sairmos do Cultura Artstica, com o nariz colado no vidro de trs do
carro e os olhos hipnotizados pelos neons, a curiosidade venceu o pudor e perguntei: por
que aqueles teatros eram to mais incrementados que o dele? Por que o dele, mesmo

fazendo tanto sucesso, no investia em luzes e decorao, adequando-se ao nvel da


vizinhana? Sem aparentar nenhum ressentimento, meu pai explicou que as casas por trs
dos luminosos no eram teatros, mas bares. Estranho. Eu conhecia muitos bares; o que
tornava aqueles to diferentes dos outros, em que comamos frango passarinho com
batatas fritas e misturvamos Coca com Sukita? Com a maior naturalidade, meu pai
respondeu: Mulheres peladas.
Fiquei bastante intrigado. Do alto de minha meia dcada de existncia, mulher pelada
no evocava nada alm da imagem de minha me entrando ou saindo do banho, de touca
na cabea e toalha na mo, cheiro de xampu no ar, gotculas de vapor nos azulejos. Bem,
talvez a fumaa vista pelas portas entreabertas fosse vapor dos chuveiros em que as tais
mulheres se banhavam, mas algumas questes maiores permaneciam sem resposta: o que
levaria mulheres a tomar banho num bar? Por que permaneceriam peladas depois da
ducha? Qual seria a graa de comer frango passarinho com a bunda de fora?
A explicao do meu pai s aumentou minha confuso: as mulheres peladas estavam l
porque homens que no tinham namorada apareciam especialmente para v-las. De novo,
impossvel ligar causa e efeito: por que um homem sem namorada ia querer ver uma
mulher pelada? Ainda mais num bar?
Enquanto rumvamos para o restaurante, subindo a Consolao, fiquei imaginando os
tais sujeitos solitrios, com cabelos desgrenhados e barbas por fazer, a bebericar tristemente
seus chopes enquanto mes nuas iam e vinham com toalhas enroladas na cabea, parando
eventualmente entre as mesas para, apoiando o p no assento de uma cadeira, passar cera
depilatria.
Incapaz de visualizar tamanho despautrio, pedi a meu pai que nos levasse a um bar de
mulher pelada na prxima sexta. No dava, ele disse, eram proibidos para crianas. Ento,
pela primeira vez naquela noite, alguma lgica apareceu: a proibio deveria ser para evitar
que vssemos os tais homens sem namorada, sofrendo em meio ao vapor, aos neons e s
toucas de banho. Aceitei a situao com certo alvio, at: o teatro do meu pai no era, afinal
de contas, o estabelecimento mais triste da regio.
S quase vinte anos mais tarde atravessei uma daquelas portas espelhadas: as mulheres
eram diferentes do que eu havia imaginado, mas os homens estavam l, bem como eu os
havia pintado.

Estimao

Mais uma madrugada em que a rua acordou com o berreiro. No comeo, parecia aquela
primeira exploso do pranto de um beb, desesperada, possante, espcie de motor de
arranque do choro, mas em vez de o urro diminuir, pausado por soluos e tomadas de ar,
mantinha a intensidade: era como se uma velha estivesse sendo esganada diante de um
megafone embora tal suposio fosse por demais improvvel para ocorrer a qualquer um
dos vizinhos que, s dez pras seis da manh, sentados em suas camas e de olhos arregalados,
se perguntavam que cazzo estaria acontecendo.
L em casa, embora tristes, nada temamos: sabamos tratar-se apenas de Getlio, nosso
papagaio deprimido. J fazia uma semana que a cena se repetia, sempre mesma hora:
minutos antes de o sol nascer o bicho tentava o suicdio atirando-se do poleiro, mas, com a
pata presa a uma correntinha, ficava girando de cabea para baixo, debatendo-se e
compartilhando com o bairro sua gutural infelicidade. Esse, alis, o nico som produzido
por suas cordas vocais, desde que viera morar conosco, trinta dias antes: nada de louro,
currupaco, Salve o Corinthians ou Ouviram do Ipiranga. De dia, fechava-se em seu
silncio; casmurro, esquivava-se de nossos carinhos com bicadas e pescoes. De noite,
dormia; at que, aos primeiros raios de sol
Eu e minha irm no nos conformvamos com o comportamento do Getlio. No
depois de tudo o que havamos feito: quase um ano de labuta diria junto minha me, a
fim de minar suas resistncias e quebrar sua promessa de nunca mais nos dar um animal de
estimao. Sua relutncia no era sem razo: nosso histrico com os bichos era to
tenebroso que no seria absurdo pensar que a famlia sofresse de alguma maldio; que
nossa casa, como nos filmes de terror, houvesse sido construda em cima de um cemitrio
indgena de animais e que os espritos de velhas antas, preguias e lobos-guars estivessem
se vingando em nossos gatos, tartarugas, pintinhos e, ultimamente, no Getlio pobre
Getlio, que agora girava de ponta-cabea, esgoelando-se a meio caminho entre a cermica
vermelha e os dedos rseos da aurora.
Tudo comeou com um pintinho, cuja passagem pela Terra, de to breve, no lhe
rendeu sequer um nome: chamava-o de pintinho mesmo, se que o chamei de qualquer

coisa nas poucas horas em que convivemos. Veio num momento conturbado: minha me
parecia doente, havia engordado muito, reclamava de enjoos e dor nas costas, mas, para
minha surpresa, visitas apareciam animadas, acariciavam sua barriga como se fosse uma
ddiva dos deuses, lhe davam presentes e parabns. Uma noite, escutei uns barulhos, minha
me sumiu por uns dias, e, quando voltou, trazia no colo um beb, dizendo que eu havia
ganhado uma irmzinha.
Eu achei estranho, nunca tinha pedido irmzinha nenhuma e tampouco entendi como
aquele beb que no falava, no andava e nem sabia jogar futebol poderia ter para
mim alguma utilidade. Se houvessem me consultado eu teria pedido uma vitrolinha,
daquelas pilha, que tocavam discos coloridos; mas como nunca me perguntavam antes de
fazer as coisas, tive que aceitar a nova realidade: dividir meu quarto e meus pais com uma
irmzinha.
Como se no bastasse, um ms depois de o beb chegar em casa, passaram a me mandar
a um estabelecimento cheio de outras crianas, algumas de m ndole e mesmo violentas,
que no pensavam duas vezes antes de morder ou arranhar para ganhar espao no tanque de
areia ou surrupiar um giz de cera. Pior: se em casa eu tinha uma me s para mim (e, v l,
para a irmzinha), na escola ramos cerca de quinze meninos e meninas lutando pela
ateno de uma nica mulher.
Numa segunda-feira de manh, depois de aguentar calado uma semana de humilhao,
revoltei-me. Agarrei-me ao p da cama, chorei, praguejei: daqui no saio, daqui ningum
me tira! Foi ento que me apareceram com o pintinho. Chantagearam-me: se quisesse
brincar com ele, tinha que largar do p da cama, tinha que ir para a escola, tinha que
engolir o choro e fingir que nada havia acontecido. Ele era amarelo, pequenininho, andava,
piava, saltava, sem necessidade de pilha, corda ou frico. Aquilo sim era um presente.
Passei o dia inteiro com o pintinho, na escola. Carregava-o na mo, no bolso do
moletom, dentro da manga; dava-lhe gua, miolo de po e, na hora do lanche, quando
ningum estava olhando, lhe ofereci um pouquinho de Coca-Cola e goiabada. De noite,
entrei no quarto dos meus pais e o depositei sobre o edredom, inerte: No funciona mais.
Como eu era muito novo para ter qualquer entendimento sobre a morte e sem saber
que aquele seria o primeiro de uma srie de infortnios envolvendo nossos bichos de
estimao , o mau funcionamento do pintinho no chegou a me abalar. J sobre o
falecimento de nosso segundo animal, alguns anos mais tarde, no posso dizer o mesmo.
Era uma tartaruga de aqurio. Ou de bacia, para ser mais exato, pois era numa bacia azul
que ela morava, encostada parede da rea de servio, no fundo do quintal logo abaixo
do poleiro onde, anos mais tarde, Getlio tentaria, repetidamente, sair da vida e entrar para
a histria. Assim como o pintinho, no tinha nome. Alimentava-se de alfaces ou da
gosma verde em que se transformava a alface depois de algumas horas boiando na gua
morna, sob o sol.

Uma manh, no sei se por pena da pobre dieta da tartaruga ou se movido por uma
dessas curiosidades irresponsveis xixi fora do penico, faca na parede , resolvi dividir
com ela meu chiclete. Ao voltar da escola, dei com a tartaruga no fundo da bacia, de
barriga para cima, imvel como o pintinho sobre o edredom. Desconfiei que meu Ploc
tivesse algo a ver com aquilo e a culpa vez ou outra batia, no silncio do quarto, ao deitarme para dormir, mas desapareceu por completo no Natal daquele ano, quando eu e minha
irm, depois de muito insistirmos para ter um cachorro, ganhamos um gato.
O gato foi batizado por minha irm: Alfredo homenagem a um antigo amor do
Jardim I, por quem ela, agora no Jardim II, ainda arrastava uma asa. Ao entregar-nos o
bicho, minha me fez um breve discurso sobre responsabilidades e deveres. Disse que
teramos que cuidar dele, dar comida e gua, limpar o xixi e o coc na caixa de areia, botar
talco antipulgas de tempos em tempos. Claro que, encantados com o bichinho, no dia 24
de dezembro juramos limp-lo com a prpria lngua, se preciso fosse mas no foi: uma
semana depois de o levarmos para casa e sob condies bastante suspeitas, o gato sumiu.
Eu e minha irm estvamos jantando, j de pijamas, quando nossa me chegou do
trabalho. Entrou com o carro na garagem, como de costume, mas em vez de desligar o
motor, deu marcha a r e voltou para a rua. Uns dois minutos mais tarde, irrompeu
esbaforida sala adentro, tirou-nos da mesa ainda mastigando, nos colocou no banco de trs
da Braslia e, cruzando todos os faris verdes, amarelos e vermelhos que encontrou pelo
caminho, embicou na garagem da nossa av. Pediu que esperssemos. Entrou na casa,
depois saram as duas, travando o dilogo menos convincente que j havia presenciado em
meus quatro ou cinco anos de vida: Ai! Que cabea, a minha, mame! O livro que voc
pediu, esqueci! Agora vou ter que ir l em casa buscar. Vai l, busca o livro que eu cuido
das crianas. Quem quer bolo?! Quem quer Coca? Quem quer ver televiso?. Umas duas
horas depois, minha me voltou (sem livro algum), ns fomos embora e nunca mais vimos
o Alfredo.
Aps uma semana, ele foi oficialmente dado como desaparecido. Gato assim mesmo,
disse minha me, consolando-nos. Vai ver ele conheceu uma gatinha e foi morar na casa
dela. Vocs no se preocupem, deve estar muito bem, onde quer que ele se encontre!.
S fomos compreender o sentido metafsico de suas palavras muitos anos mais tarde,
numa noite de rveillon, quando, embalada por trs ou quatro taas de champanhe, ela
confessou ter atropelado o gato ao entrar na garagem. A estratgia traada e executada em
seguida visava muito mais nos proteger da viso do bicho moribundo do que salv-lo, pois
na meia hora em que minha me demorou para levar-nos casa da minha av e voltar,
Alfredo ficou agonizando atrs de um vaso de pacov, onde ela achou por bem escond-lo.
Ao tir-lo dali, levou-o at um veterinrio 24 horas, que, declarando a situao
irremedivel, terminou o servio com uma injeo letal de cloreto de potssio.

***
Movida pela culpa, poucos dias depois de ter atropelado nosso gato e ainda o tachar de
fujo, nossa me voltou do trabalho com outro gatinho no colo. Minha irm quis batiz-lo
de Alfredo agora, imagino, mais em homenagem ao gato desaparecido do que ao antigo
amor , mas constatou-se que o bicho era fmea e, portanto, o nome foi descartado. Ficou
se chamando Alfreda.
Dali em diante, o som de minha me chegando do trabalho mudou um pouco.
Ouvamos o carro se aproximando, os freios chiando levemente, uma rpida buzinada, trs
piscadas de farol, e s ento ela entrava na garagem.
Os meses seguintes foram o mais longo perodo de felicidade que tivemos com um
animal de estimao. Uma utpica ilhota de harmonia em meio a um mar de tormentas.
Alfreda no engasgou com chicletes, no morreu atropelada, no tentou o suicdio nem
parou de funcionar misteriosamente. Pouco antes de fazer um ano, contudo, apareceu com
a patinha quebrada. Normal, pensamos, acontece nas melhores famlias. Eu e minha irm,
inclusive, torcamos para quebrar algum osso e ter um brao ou perna engessados. Quem
sabe, na falta de fraturas prprias, no poderamos levar a gata escola e pedir aos colegas
para rabiscarem no gesso?
Fizemos questo de ir com nossa me ao veterinrio. (Anos mais tarde, saberamos
tratar-se do mesmo profissional [sic] que havia ajudado Alfredo em sua fuga.) O sujeito
levou a gata para uma sala e, vinte minutos mais tarde, em vez de traz-la com a patinha
imobilizada, jogou em nosso colo a notcia de que Alfreda sofria de uma doena
degenerativa incurvel. O clcio consumido no chegava aos ossos, que ficariam cada vez
mais frgeis. Teramos que sacrific-la. Choramos, gritamos No! e Alfreeeeeeda! e
minha irm chegou a dizer que, se fossem dar uma injeo letal na gata, que dessem nela
tambm, pois dali pra frente sua vida perderia o sentido.
Minha me perguntou ao homem se no havia possibilidade de levarmos Alfreda para
casa, at que morresse de morte natural. Com um sorriso no canto da boca ele respondeu
que, se quisssemos, poderamos tentar, mas era melhor cri-la num aqurio, pois seus
ossos se quebrariam um a um, at que ela se transformasse numa gelatina e morresse de
fome.
(Ainda hoje, vez ou outra, lembro-me desse homem, de seu sorriso e da palavra
gelatina escorrendo por sua boca. Fico em dvida se ele escolheu veterinria devido ao
dio por animais ou por crianas. Espero que, ao longo de todos esse anos, ele tenha tido
alguma epifania e mudado profundamente sua forma de estar no mundo, ou que se
encontre, ao lado do pintinho, da tartaruga, de Alfredo e Alfreda, num lugar melhor.)
Na volta para casa, enquanto minha irm se jogava no cho, agarrava-se s rvores,
abraava postes e usava outras tcnicas melodramticas que fariam corar um autor de

novela mexicana, minha me jurou nunca mais nos dar animais de estimao. A promessa
durou dois anos, at que Getlio cruzou, literalmente, nosso caminho.
Numa esquina pela qual passvamos todo dia, de casa para a escola, surgiu um senhor
vendendo papagaios. Aproveitava-se do farol fechado e ia andando por entre os carros,
quatro ou cinco louros sobre os ombros, todos falando ao mesmo tempo: Corinthians!,
Parrrmra!, So Paulo!, Al, Terezinha!. Alguns at cantavam marchas de carnaval
como Olha a cabeleira do Zez, A jardineira e sucessos do rdio.
Durante seis meses, minha me viveu sob fogo cruzado: de um lado, eu e minha irm
pedindo um papagaio; do outro, o vendedor, que j sabia nossos nomes e fazia os pssaros
repeti-los quando o carro parava por ali. A gota dgua foi no dia em que o senhor,
descobrindo ser aniversrio da minha irm, fez a meia dzia de papagaios cantarem em
coro o parabns a voc. Ao comear o pique, pique, minha me j estava com o piscaalerta ligado, estacionando sobre a calada, tentando se convencer de que papagaio nenhum
poderia dar mais trabalho do que aquelas duas crianas emburradas, atormentando-a noite
e dia. Depois de alguma negociao, comprou-nos o que parecia ser o mais bonito:
chamava-se Getlio, segundo o vendedor, e no iramos nos arrepender de nossa escolha.
O homem deu rpidas indicaes sobre como criar o bicho. Explicou que as asas eram
cortadas, para que ele no fugisse voando, mas que por via das dvidas era bom prend-lo
ao poleiro (quinze cruzeiros), com uma correntinha (cinco cruzeiros). Deveramos
aliment-lo com sementes de girassol (dois cruzeiros), frutas (ele no vendia) e trocar a
gua duas vezes por dia. Quanto fala, nos garantiu: Isso a no precisa nem se preocupar!
Ele fala pelos cotovelos! e a nenhum de ns ocorreu, na empolgao, o detalhe de que
papagaios no tm cotovelos. Tchau, Getlio!, disse o senhor, Tchau, Getlio!,
respondeu o bicho e foram as ltimas palavras que ouvimos sair de seu bico.
Nos primeiros dias acreditamos na explicao de nossa me: o mutismo de Getlio era
resultado de uma fase de adaptao. Lembra quando voc comeou na escola, Antonio?
Lembra que voc no gostou? Agora acostumou, no acostumou? Ento, com o Getlio
tambm assim. Ele morava l com os amigos dele, agora t aqui em casa, t estranhando
um pouco, mas logo, logo ele t falando, vai ver s.
Pois Getlio no s no se acostumou como foi ficando cada vez mais soturno. Cuspia
as sementes de girassol por todo o quintal, entornava o potinho de gua, picotava o jornal
sob o poleiro. Pior era seu olhar, um olhar de psicopata, como o de um desses caras que, se
aparecem no metr, fazem todo mundo se afastar dos trilhos.
Uma semana depois de chegar em casa, Getlio parou de comer. Recusava as sementes,
no queria saber da banana, deu pra fazer coc no mamo. Suas penas estavam feias, seu
corpo, magro: parecia um pssaro resgatado no mar aps vazamento de leo em pster do
Greenpeace.

Chegamos a parar na esquina, a caminho da escola, para consultar o vendedor. Ele veio
com o mesmo papo da minha me: fase de adaptao. Em breve, o papagaio cantaria
Eduardo e Mnica de trs pra frente. Quanto greve de fome, no soube o que fazer.
Sugeriu que varissemos os alimentos, at encontrarmos algum que lhe apetecesse.
No dia seguinte, Vanda entrou correndo em casa, exultante. Depois de horas oferecendo
a Getlio uma degustao mais variada do que o banquete de um sulto, conseguira
finalmente acertar seu paladar. Voamos para o quintal e encontramos o papagaio com o
bico todo branco, a cara enfiada numa tigela de sorvete de creme.
Dois dias de sorvete melhoraram bastante o aspecto do Getlio: ele j no parecia mais
um pssaro resgatado num mar de leo apenas tirado de um tubo de PVC no fundo da
mala de um traficante de animais. (Dadas as condies anteriores, acredite, era uma
sensvel evoluo.) Chegamos a nos animar, a adaptao havia comeado mas as 48
horas de alegria no passavam do canto do cisne: e o canto que soou na madrugada no era
nada belo. Na virada da segunda para a terceira noite aps o incio da dieta da baunilha,
acordamos com os terrveis berros, pela primeira vez. Corremos para o quintal e demos
com o papagaio se debatendo, de pernas para o ar. Foi preciso dez minutos, uma tampa de
panela e uma luva trmica para que minha me conseguisse coloc-lo de volta no poleiro.
Ele caiu, disse a Vanda, tentando nos acalmar e ns fingimos acreditar. Enchemos
um pires de sorvete de creme e fomos dormir, torcendo para que ela estivesse certa, mas o
olhar de Getlio um olhar de facnora, como um desses caras que, se entram no avio,
fazem todo mundo pensar em desistir da viagem sugeria que a explicao talvez no
fosse to simples.
No era: na madrugada seguinte, l fomos ns, de novo, esbaforidos e sonolentos,
resgatar o bicho de mais um suicdio frustrado. E na seguinte tambm, e na outra, e na
outra depois da outra, at que da stima vez, quando a rua acordou assustada com a gritaria,
imaginando tratar-se de uma velha sendo esganada diante de um megafone, minha me
anunciou que a situao era insustentvel: teramos que nos livrar de Getlio. Aceitamos o
infortnio, resignados. Talvez fosse maldio, talvez estivssemos profanando um
cemitrio indgena, a nica certeza era que o bairro no podia ficar refm das tendncias
depressivas de nosso papagaio.
Vanda o levou para a chcara da prima, l pros lados de Barueri. Um ms depois,
segundo nos contou, Getlio no s falava os nomes dos seis filhos da mulher Jeremias,
Isaas, Oseias, Zaqueu, Esdras e Vanderson como imitava o Chacrinha, cantava A
jardineira e sabia de cor a escalao da Portuguesa em 1954.
Foi nossa ltima experincia com animais de estimao.

A perna do seu Dulio

Era domingo e eu estava extremamente emburrado. Vinha esperando a semana inteira


pelo especial de um ano do Bambalalo, com novos quadros, convidados especiais e um
minibugue camuflado para o grande vencedor da gincana; a, quando j tinha at arrumado
meu canto do sof, posicionado as almofadas preferidas, pegado a mantinha de l e estava
indo preparar a xcara com Leite Moa e Nescau, gozando por antecipao as duas horas de
paz e glicose, minha me chega penteando o cabelo e diz que vamos sair: aniversrio do
seu Dulio.
E por acaso eu conhecia algum Dulio?! Ela explicou tratar-se do pai do marido da
minha tia, e que naquele dia ele faria aniversrio. Eu expliquei que Bambalalo era meu
programa predileto e que naquele dia ele tambm faria aniversrio. Minha me sentou-se
ao meu lado e deu incio intil ttica de instigar meu interesse, a mesma que usava para
me convencer a comer coisas verdes e pastosas ou tomar xarope para tosse: Olha que legal,
o seu Dulio vai fazer oitenta anos! Sabe quanto oitenta? Todos os dedos das duas mos
abertas uma, duas, trs, quatro, cinco, seis, sete, oito vezes!.
O frentico abrir e fechar de dedos podia servir para me fazer um cafun, se ela quisesse,
ou preparar massa de biscoito, mas no ajudaria em nada a me convencer de que conhecer
uma pessoa muito velha fosse mais interessante do que assistir corrida de saco na piscina
de bolinhas, o pega-pega de olhos vendados ou ver o vencedor recebendo o Fapinha de
pintura camuflada, que eu vinha cobiando a semana inteira diante da TV.
Reagi, como sempre fazia naquelas ocasies, elevando meu descaso ltima potncia.
Olhei por cima do seu ombro, mudei de canal com o controle remoto, me esquivei de um
carinho. Ao dar-se conta de que no seria enfocando no seu Dulio que conseguiria me
ganhar, tentou fisgar meu interesse de outra forma: disse que l ia estar cheio de crianas da
minha idade. Cus, como podia uma pessoa to inteligente no entender que poucas
situaes me apavoravam mais do que a ameaa de chegar a um lugar novo cheio de
crianas da minha idade?
Invariavelmente, elas j se conheciam e recebiam este intruso com a hospitalidade
reservada aos forasteiros em filmes de Velho Oeste. Se amos brincar de esconde-esconde,
elas sabiam os melhores lugares para se enfiar, e tinha sempre um mais velho que salvava o

mundo vez aps outra e eu acabava eternizado na condio de pegador. Uma hora algum
aparecia com uma bola, gritava bobinho!, quando eu ia ver j estava no meio de um
crculo, correndo de um lado pro outro, sem ar e com um n na garganta, ouvindo ol!.
Isso quando o desconforto ficava s dentro da legalidade, pois no eram raros delinquentes
que brincavam perigosamente com estilingues, me apontavam espingardinhas de chumbo
ou zarabatanas e me obrigavam a pegar brigadeiros para todo mundo.
Muito injusto. Tinha me comportado a semana inteira, passado as tardes na escola
fazendo desenhos de giz de cera, colando potes de Danoninho, me esmerando para executar
da melhor forma possvel todas as atividades propostas pelas professoras e, bem no
domingo, meu dia de descanso, Bambalalo Especial de aniversrio, era aquilo que eu
recebia?
Chorei, esperneei, bufei, enfiei a cabea debaixo da manta e me fechei num casulo de l.
Minha me abandonou a seduo e resolveu me pegar pela culpa. Explicou que o seu
Dulio tinha me visto nascer, tinha me pegado no colo, pequenininho. Grande coisa, eu
no me lembrava de ter nascido, no havia pedido que ele me pegasse no colo, problema
dele. Minha me tentou me descobrir, eu esperneei mais ainda, comecei a atirar as
almofadas no cho, gritei no vou! No vou! No vou!, at que ela abandonou todas as
tcnicas de persuaso e baixou o bom e velho: menino-engole-esse-choro-voc-vai-epronto.
Fui no banco de trs da Braslia, encolhido e de olhos fechados, requentando um
choror, torcendo para que ela se virasse, me visse e pensasse, caramba, acho que dessa vez
a gente exagerou, o Antonio t sofrendo de verdade, melhor voltar e deix-lo assistir ao
programa dele, mas nos breves momentos em que abri os olhos para conferir, ela no
estava prestando ateno. Estava, na verdade, concentrada numa conversa com meu
padrasto: melhor no, ela dizia, se a gente avisa, reala. Deixa acontecer naturalmente,
, pode ser, bom, de qualquer forma o seu Dulio deve saber como lidar com essas coisas,
no de hoje, n. No entendi o que eles diziam nem me interessei, s pensava que no
dia seguinte, na escola, todo mundo ia estar falando sobre a corrida de saco na piscina de
bolinhas, ia comentar sobre a criana que ganhou o Fapinha e se ela mereceu mais que a
outra e eu no poderia opinar, porque estava na festa de um homem cuja maior qualidade
era ter tantos anos quanto todos os dedos das duas mos abertas oito vezes. Que emoo.
Chegamos. Era aquela coisa de sempre: um monte de parentes e outros adultos mais ou
menos conhecidos mexendo no meu cabelo, na minha bochecha e na minha barriga,
dizendo que eu estava grande e bonito. Uma mulher ruiva e muito perfumada me deu um
beijo babado na testa e disse que tinha me visto nascer ela me viu nascer, o seu Dulio
me viu nascer, eu devia ter sido parido diante de uma arquibancada, s podia ser. Um gordo
cruzou a sala, me levantou e ficou repetindo, com bafo de cerveja, alternando olhares entre
mim e meu padrasto: corintiano?! corintiano?! Hein, corintiano?! Diz: corintiano,

ahn?!. Fui salvo por minha tia, a nora do tal Dulio, que veio l de dentro, me tirou das
garras do gordo e perguntou se eu queria um guaran. No seria m ideia, todo aquele
berreiro tinha me deixado com a garganta seca. amos caminhando em direo cozinha,
mas no meio da sala minha me me puxou pelo brao, vem dar oi pro seu Dulio, depois
voc toma guaran.
O seu Dulio estava sentado numa poltrona, num dos cantos da sala. Era mesmo velho
pra burro. Tinha os cabelos todos brancos e um monte de pintinhas no rosto. Minha me o
beijou. Parabns, seu Dulio! Depois, meu padrasto apertou sua mo. Oitenta, hein, seu
Dulio! Daqui a pouco noventa, j!
O velho ficou falando umas coisas sobre fazer oitenta anos, eu fiquei olhando pra ele,
fingindo que ouvia, mas a minha cabea estava longe, l na sala de casa, assistindo
Bambalalo e provavelmente por l ficaria at o final daquela tarde se meus olhos no
tivessem, acidentalmente, ido parar na perna esquerda do aniversariante ou melhor,
num pedao da poltrona onde deveria estar sua perna esquerda. Olhei uma vez, olhei duas,
olhei trs. Longos segundos se passaram at que eu pudesse aceitar o que via: a perna
esquerda do seu Dulio no existia.
Que coisa espetacular. Se a minha me tivesse perguntado: O que voc prefere, assistir
Bambalalo ou conhecer um homem sem perna?, claro que eu ficaria com a segunda
alternativa. Lembrei-me do homem que vira no circo, um dia, botando uma mulher de
mai numa caixa e a serrando ao meio. Seria seu Dulio aquele homem? Teria ele cortado
a prpria perna? Como? Ser que ele conseguia tirar e recolocar a perna sempre que
quisesse? Onde guardava a perna, quando no a usava? Numa gaveta do quarto, no
banheiro, na rea de servio, junto bicicleta? Conseguiria ele remover tambm outros
membros?
Minha me me cutucou: , Antonio, no vai dar oi pro seu Dulio?. Como no? Oi,
seu Dulio! Cad sua perna?! Minha me me olhou com uma cara estranha. Achei que ela
no tivesse ouvido o que eu acabara de dizer. Falei ainda mais alto: Olha! Olha! Ele s
tem uma perna! Me! Me! Cad a perna do seu Dulio?. Todos na sala fizeram silncio,
at o gordo com bafo de cerveja, que narrava aos meus tios um gol do Casagrande no
ltimo domingo.
Ningum mais se empolgava com aquela situao? Ser que no haviam percebido?
Seria o primeiro dia em que o seu Dulio saa sem a perna? Uma surpresa que preparou
para a festa de oitenta anos, uma mgica, e eu havia sido o nico a notar?
O silncio foi quebrado pelo prprio Dulio. Ele me fez sentar no brao da poltrona e
me contou a histria inteira, respondendo a todas as perguntas que eu lhe fazia. Explicou
que a perna fora cortada por causa de uma doena, mas que eu no deveria me preocupar,
era uma doena que s dava em velhos. A operao aconteceu num hospital. No, ele no
precisou ir de bermuda, porque no hospital voc fica pelado e te do uma camisola. Sim,

uma camisola, mesmo para os homens. Depois de vesti-la, mdicos deram-lhe uma injeo
no brao e ele dormiu, de um jeito que voc no sente dor e no acorda nem se pularem na
sua barriga. Os doutores pegaram facas e um serrote e serraram veja bem, serraram! a
perna do seu Dulio. A que vem a parte mais estranha: depois de tirarem a perna, no
puseram um band-aid enorme, nem vrios, nem esparadrapo, no: eles o costuraram, com
agulha e linha, da mesma forma que minha me costurava pedaos redondos de couro nos
joelhos dos meus moletons. A cor da linha era preta e seu Dulio no soube dizer se poderia
ser azul, verde ou vermelha, caso ele assim preferisse.
Queria passar a tarde inteira ali, sentado no brao da poltrona, seguindo com a
entrevista, mas minha me logo me ps no cho e me mandou para o quintal, onde
estavam as outras crianas. Nem foi to ruim. Brincamos de esconde-esconde, fui pego s
uma vez e no havia delinquentes com estilingues ou espingardinhas de chumbo.
No dia seguinte, na escola, mal se falou sobre o Bambalalo: s queriam saber da minha
histria com o homem de perna cortada. O nico que no se interessou foi o Walter, do
pr: deu de ombros e disse que ter a perna cortada no era nada de mais; toda noite, antes
de dormir, a av dele tirava os dentes e gengivas e punha dentro de um copo dgua. Claro,
ningum acreditou e ficou evidente que o Walter s queria roubar a ateno.

Happy hour

Meu ritual nos fins de tarde era sempre o mesmo: descia da perua escolar, corria pra
casa, largava a mochila embaixo da escada, tomava banho, vestia uma roupa confortvel,
me aboletava no sof e, enquanto a Vanda preparava o jantar, assistia a Spectreman.
A srie japonesa, exibida pela TVS, mostrava as aventuras de um super-heri dourado
defendendo a Terra de improvveis invasores: dois macacos aliengenas um loiro
platinado, o chefe, e, au naturel, seu desajeitado ajudante. A cada episdio os smios vindos
do espao traziam, sabe-se l de onde, monstros diferentes para ajud-los a subjugar a
humanidade: dinossauros, insetos gigantes, moluscos mutantes e outras criaturas que,
depois de apavorar os moradores de Tquio, estraalhar algumas casas e prdios de
maquetes nada convincentes e dar muito trabalho ao Spectreman, acabavam perdendo a
batalha e explodindo sim, mesmo que atingidos somente por socos e pontaps, os
monstros explodiam, algo que no fazia sentido sequer aos olhos de um garoto de cinco
anos de idade.
O programa terminava sempre com o macaco loiro ensandecido, espinafrando o
ajudante, socando o painel de controle do disco voador e jurando que da prxima vez
Spectreman no o deteria: a Terra seria sua! Sua! Sua! Ento, entorpecido pela prpria voz,
o gorilo oxigenado se esquecia das recentes derrotas, esfregava uma mo na outra, como
convm a um bom vilo trash, e sua gargalhada malvola reverberava pelas caixas de som
da nossa Telefunken 29 polegadas.
Era assim, vendo lulas gigantes se contorcerem em chamas e besouros de seis metros
pisotearem casas de isopor, ao cair da noite, que eu ia deixando para trs as obrigaes de
cada dia, me esquecia das tarefas da escola, superava eventuais picuinhas do recreio e
entrava no clima da cama, qual me recolheria no muito depois do jantar.
Naquela tarde, contudo, quando desci da perua, dei com a me do Henrique me
esperando na calada: Vanda tivera que sair s pressas para visitar a prima no hospital, e eu
deveria ficar na vizinha at minha me voltar do trabalho. Tudo certo, eu convivia com
aquela famlia desde que me conhecia por gente e, apesar do leve incmodo que a quebra
da rotina sempre traz, no me importei.

Henrique acenou para mim do sof. Estava de banho tomado, o cabelo lambido para
trs, assistindo a um desenho animado, na Record. Retribu o cumprimento e me sentei a
seu lado. A me dele foi para a cozinha e ficamos ali, quietos, vendo algum bicho perseguir
outro bicho por uma sala, derrubando mveis, quadros e bibels, fazendo os tins! e
tuns! e boings! e clashs! correspondentes.
Era chato pra caramba, mas, por educao, esperei alguns minutos at a hora em que,
pelos meus clculos, deveria estar comeando o Spectreman para perguntar se o
Henrique no preferia o meu programa. Hoje no passa Spectreman, ele disse, sem me
olhar. Estranhei a frieza e, sobretudo, a ignorncia do meu vizinho a respeito de um
assunto que qualquer garoto brasileiro conhecia de trs para a frente: a grade de nossos
mseros sete canais de televiso. Passa sim, Henrique! Passa todo dia. Vai, bota l! Ele
continuou srio, sem me encarar. No agora, ainda falta um pouquinho. Ah! Se voc
sabe que falta um pouquinho, voc sabe que passa hoje! Silncio. Henrique?! Por que c
t me enrolando?! Vai, pe no 4! Sem alternativa, ele soltou um suspiro, me olhou de vis,
pegou o controle e apertou o boto.
Mal haviam entrado os crditos iniciais a frentica msica tema comendo solta,
Spectreman voando, rolando pelo cho, dando socos e chutes, vrios monstros explodindo
, a me do meu amigo disparou l da cozinha, secando as mos num pano de prato, e s
parou quando conseguiu colocar-se, ofegante, entre nossos olhos e a televiso: No, no,
no, no: nem pensar!.
Aquela histrinica apario, compreendi, era exatamente o que o Henrique tentava
evitar se fazendo de sonso, segundos atrs. Foi ele! Ele que mandou pr a! E se ele te
mandar pular pela janela, Quique, voc pula?! A mulher jogou o pano por cima do ombro
e, olhando pro filho, mas claramente se dirigindo a mim, pontificou: J falei que esse
programa muito violento! Tem monstro, tem luta, no faz bem! Vamos ver uma coisa
mais adequada?. Ento, virando o pequeno disco no painel do aparelho, foi mudando de
canal at chegar a um desenho na Gazeta ou na Manchete: Pronto, olha a: Pinquio.
Agora sim, programa de criana!. Dito isso, pegou o controle da mo do filho, meteu num
bolso do avental e sumiu cozinha adentro.
No que em casa vivssemos um regime totalmente livre dos antolhos da censura. Se,
diante da minha me, eu pusesse no programa do Gugu, por exemplo, recebia um olhar de
asco e a pergunta num tom em que j estava mais do que implcita a resposta :
Guguuuuu?! Tem certeza de que voc quer ver Guguuuuu, meu filho?!. minha irm,
por sua vez, eram dedicadas doses iguais de escrnio sempre que ousava externar o sonho de
ser Paquita. Proibio direta, contudo, como eu acabara de ver, com imposio de
programao e expropriao do controle remoto, eu jamais havia experimentado, e o
cerceamento da liberdade me pareceu muito mais violento do que qualquer pepino-do-mar
com duas bocas comendo arranha-cus em miniatura, mas fazer o qu? Naquele lar a

televiso estava onde deveria ficar a mesa de jantar, a mesa de jantar onde deveria estar o
sof, o quarto dele era onde, l em casa, ficava o quarto dos meus pais e vice-versa eram
de se esperar alguns costumes brbaros.
O sol se pe. Numa pequena cabana quase coberta pela neve, diante de uma lareira,
Pinquio e dois homens mal-encarados observam uma azeitona sobre a mesa. Um dos
feiosos, um homem grande, gordo e com a barba por fazer, levanta uma machadinha e,
com golpes certeiros, parte a azeitona em trs. o ltimo alimento disponvel na cabana e,
por causa do frio, tero de esperar at o dia seguinte para sair em busca de mantimentos.
Pinquio vai pegar sua parte da refeio, mas o outro homem, um magrelo de bigode
fininho, tipo um irmo raqutico do Capito Gancho, a toma para si: Boneco de madeira
no come!. O gordo gargalha, Pinquio leva as mos ao estmago vazio e, enquanto os
malvados mastigam, de boca aberta, Henrique me olha, apreensivo.
A noite cai rapidamente, no desenho e na vila. A fome cresce, a nevasca s engrossa e a
situao encrespa: agora, alm de faltar alimentos, a lenha chega ao fim. Com mil diabos,
precisamos alimentar esse fogo!, brada o ladro de azeitonas, dando um tapo na mesa.
Peguem tudo o que for de madeira e tragam aqui para perto da lareira, seus inteis!,
ordena, cofiando o bigode e espichando um olhar pouco alvissareiro para cima do boneco
falante.
Aos poucos, so dadas s labaredas os ps da mesa, as tbuas do tampo, as cadeiras, depois
um ba, o tapete e o abajur. O fogo, contudo, esmorece. Pinquio treme de frio. Eu e o
Henrique nos encolhemos, no sof. E agora, o que vamos queimar?!, pergunta o gordo.
Meu vizinho se volta para mim: quer que eu o acalme, diga para ele ficar tranquilo, que
nada ir acontecer, mas estou to aflito quanto ele e, sentindo-me uma vtima naquela
histria, lhe nego qualquer cumplicidade.
Com a machadinha, os homens arrancam o batente da porta, depois a moldura das
janelas. Logo se vo as tbuas do piso e as ripas do forro. Por fim, tiram a maaneta e,
enquanto as chamas consomem os ltimos resqucios de madeira inanimada disponveis na
cabana, encaram Pinquio com olhos lbricos. O magrelo sorri: Bem, eu ainda estou
vendo lenha por aqui. Eu vou l fora!, gagueja o boneco falante. Eu vou at a cidade
mais prxima e trago lenha! Os homens se entreolham e riem. Eu juro! Eu trago lenha e
trago mantimentos, tambm! Queijo e leite e Basta!, berra o malvado. Voc jamais
iria sobreviver nevasca, seu pobre-diabo! Os palitos das suas pernas iriam congelar e partir
ao meio antes que completasse a primeira lgua! Voc s serve para uma coisa! Longa
pausa. Alimentar esse fogo! Close na machadinha. Intervalo.
Henrique salta do sof, para na minha frente: Que que vai acontecer, Antonio?! Que
que vai acontecer?!. Perco a pacincia que, durante anos, mantive diante daquelas
perguntas: Eu no sei, Henrique! Eu nunca vi esse desenho, caramba! Como eu vou

saber?!. Desconsolado, ele volta pro lugar dele e se cobre com uma almofada, deixando s
a cabea de fora. Ficamos os dois calados, sem saber se torcemos para que as propagandas
terminem depressa, antes que os malvados faam o pior, ou no acabem nunca. Feliz ou
infelizmente, depois de um anncio da Fbrica de Mveis Brasil cujo humor negro,
naqueles infinitos armrios em pinho, cerejeira, compensado e ip, no nos passa
despercebida , o desenho recomea.
Os bandidos marcham na direo do Pinquio, que vai andando para trs na mesma
cadncia. O magrelo vai na frente, com um brilho sanguinrio nos olhos, o gordo logo
atrs, batendo a machadinha na palma da mo. Close na machadinha. Close no Pinquio.
Close em mim e no Henrique. Pinquio no tem mais como ir para trs. Ns tambm no.
Ele se encolhe. Ns tambm. Seus olhos lacrimejantes refletem a lmina da machadinha, a
lmina reflete as chamas da lareira. Prepare-se para arder no inferno, boneco falante!,
ameaa o franzino. Pelo menos frio voc no vai mais passar!, completa o gordo,
levantando a machadinha e
Hora do jantar!, berra a me do meu vizinho, l da porta da cozinha, apontando o
controle para a TV e desligando-a num clique. Henrique grita, j chorando: Liga! Liga!
Ele vai matar o Pinquio! Ele vai matar o Pinquio! Liga! Liga! Liga!. Num pulo, ligo a
TV pelo aparelho, mas antes de a imagem se firmar na tela a mulher a desliga de novo,
pelo controle, vem at a sala, nos pega pelos braos e nos leva para a mesa.
Henrique chora por uns quinze minutos, me perguntando repetidamente o que
aconteceu, se mataram o Pinquio, se o lanaram vivo ao fogo, se o partiram em
pedacinhos, antes de incendi-lo, Por que eles no queimavam a machadinha? Ainda tinha
o cabo da machadinha!, a me dele o manda sossegar o facho e comer o brcolis, eu
espalho a comida de um lado pro outro, com o garfo, fazendo valer meu direito
constitucional de permanecer calado, acalentando um nico desejo: que mais tarde,
durante a noite, uma lula de seis metros aparea na janela daquela mulher, arrebente o
vidro com seus tentculos e a devore inteirinha, sem que Spectreman mexa sequer um de
seus dedos dourados para salv-la.

Blowing in the Wind

No era o tpico programa que meu pai fazia com a gente nos fins de semana, mas talvez
estivesse cansado de peas infantis, restaurantes lotados ou de dar milho para as pombas da
pracinha, por isso resolveu nos levar ao pico do Jaragu: pra ver a cidade inteirinha l de
cima.
Minha irm ia colada janela da esquerda, minha meia-irm da direita, e eu ia deitado
no banco de trs, com as pernas esticadas por cima do encosto e a cabea pendendo entre os
bancos da frente, prxima ao freio de mo. Hoje em dia, se a polcia para um carro e flagra
uma criana nessa posio, o motorista deve perder a carteira, talvez at a guarda dos filhos,
mas estvamos na primeira metade da dcada de 80: no se usava cinto de segurana nem
protetor solar, pessoas no andavam por a com garrafinhas dgua, como se fosse o elixir da
vida eterna, fazamos cinzeiros de argila para os pais nas aulas de artes e o colesterol era
apenas uma vaga ameaa de gente paranoica, como a CIA ou a KGB, de modo que eu
seguia feliz e contente, estrada acima, entretido com as rvores passando l fora, de cabea
pra baixo.
Foi minha irm quem viu primeiro ou, pelo menos, pensou ter visto: l ela
chupando o pinto dele!!!. Minha meia-irm passou por cima de mim e grudou a cara na
janela: Ah! Que nojo! Chupando o pinto!. Eu levantei o mais rpido que pude, mas s
cheguei a tempo de ver uns vultos numa Variant bege, cinco metros pra trs, parada no
acostamento. As duas, no entanto, juravam ter enxergado direitinho: o cara pelado no
banco do motorista, a mulher abaixada, a chupar-lhe o pinto. Ns trs comeamos a pular e
gritar, como chimpanzs amotinados. Chupando o pinto!, Hahahaha!, Chupando o
pinto dele!, repetamos, sem acreditar que havamos passado to prximos daquele evento
inencaixvel na ordem geral das coisas. Era como ter presenciado a passagem de um disco
voador, a apario de um fantasma ou dado de cara com um leo no canteiro central de
uma avenida. A gritaria continuou at o momento em que meu pai, com a naturalidade de
quem discute amenidades com senhores de cinquenta anos e com a perspiccia
pedaggica de uma criana de cinco , nos perguntou: O que que tem?.
At aquele ponto de minha vida, chupar pinto no tinha nenhuma relao com a
realidade concreta, muito menos com a sexualidade. A frase chupa meu pinto! pertencia

ao terreno das ofensas, ao jargo do futebol, como prensada da defesa, sada Bangu e
vou te encher de porrada esta sim uma ameaa que poderia ser cumprida, embora
raramente fosse. Chupar o pinto era metafrico, como cospe e sai nadando ou vai ver se
eu estou na esquina, e jamais tinha passado por nossas cabeas que algum de fato se
envolvesse em tal atividade e por que se envolveria?
No sei do que vocs to rindo tanto, continuou meu pai. Meti o corpo entre os bancos
da frente e gritei, querendo crer que talvez ele no tivesse escutado direito: Ela tava
chupando o pinto dele! O pin-to!. Meu pai moveu a cabea de um lado pro outro, como se
fosse incompreensvel nosso alvoroo: Antonio, chupar pinto uma coisa muito normal. E
saudvel. Todo casal faz isso.
Acreditem: era s o comeo. O pior, o que subverteu todo o arcabouo conceitual
construdo em meus primeiros anos de vida, o que, caso estivesse num desses aparelhos de
ressonncia magntica, faria com que fogos de artifcio fossem vistos nos dois hemisfrios
do meu crebro, o que, dada a intensidade de emoes, provavelmente fixou toda a histria
em minha cabea, desde a posio em que me encontrava no banco da Braslia at a cor do
cu quando chegamos ao mirante, l no alto, viria a seguir: Normal, sim. A Snia chupa
meu pinto. A sua me chupa o pinto do marido dela. Sua av chupa o pinto do seu av. A
tia Lurdes chupa o pinto do Augusto, a sua professora, a Carla, chupa o pinto do Nelson,
ah!, os homens que namoram homens, ento, como o Miltinho e o Ivan, chupam muito o
pinto um do outro, porque eles so homens e no tm xoxota, enfim, todo mundo que
namora faz isso. E muito gostoso. No tem por que rir. Uma breve pausa; gran finale:
Pinto pele, pessoal!.
Chegamos ao pico do Jaragu. Eu olhava So Paulo l longe, sob o cu cinzento, e s
conseguia pensar que por trs de cada janela, dentro de cada carro, debaixo de cada teto,
atrs de cada porta havia pessoas que chupavam ou eram chupadas; meus ps se apoiavam
sobre a crosta de um planeta onde 2,5 bilhes de seres humanos colocavam os pintos dos
outros 2,5 bilhes na boca. Talvez fosse o vento, ou a memria tenha inserido o udio sobre
a imagem a posteriori, mas a trilha sonora que eu ainda ouo, acompanhando aquela
fotografia da minha cidade vista de cima pela primeira vez o som de um canudo do
tamanho de um prdio puxando o ltimo gole de um lago de milk-shake:
sssccchhhhhlllllllllllluuuuuuuuurrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrp.
Na volta, ningum abriu a boca, mas assim que o carro parou em frente nossa casa,
descemos correndo e invadimos a sala com os olhos esbugalhados quase to
esbugalhados quanto ficaram os de minha me, meu padrasto e mais uns dois casais de
amigos, que tomavam vinho e conversavam, ouvindo um LP do Joo Gilberto: Me! Me!
verdade que voc chupa o pinto dele?!. E ela, me?! Ela chupa o pinto dele?! A vov
chupa o pinto do vov?! A minha av tambm, pai?! A minha av tambm chupa pinto?!
Todo mundo?! Todo mundo chupa pinto?! Me, me, quando eu crescer eu tambm

vou ter que chupar pinto?! Com que idade?! Com que idade comea a chupar pinto?!

Waldir Peres, Juanito e Plskei

De incio, todos na rua tinham o mesmo poder aquisitivo e os bens per capita se
resumiam a uma bicicleta, uma bola de futebol e uma caixa onde se misturavam
Playmobils, peas de montar e outras quinquilharias. Com o lanamento do lbum de
figurinhas da Copa de 82, contudo, percebemos uma ligeira diferena na distribuio de
renda: uns recebiam cinco pacotinhos por dia, outros tinham direito a dez, mas nada que
ameaasse nosso equilbrio socioeconmico. No fim das contas, sofrendo com a escassez
das mais raras Scrates, Maradona e Paolo Rossi e desprezando as repetidas
Waldir Peres, Juanito e Plskei , todos aprendamos a lei da oferta e da procura e
compreendamos os prazeres e as durezas da classe mdia. At o dia em que o Rodrigo
apareceu com o jipe de controle remoto.
O pai do Rodrigo, meu vizinho da esquerda, era tenista. Dos doze aos dezenove, levou
tudo o que disputou e os entendidos diziam que ele seria um dos maiores jogadores da
histria, mas no seu vigsimo aniversrio teve um acidente de moto, machucou o ombro e
nunca mais pde competir. Desde ento, passava os dias em casa, fumando maconha e
escutando rock progressivo. A famlia era sustentada pela mulher, fonoaudiloga. Nenhum
dos vizinhos botou muita f, portanto, quando o pai do Rodrigo os chamou, um a um, para
falar de negcios.
Toda noite, durante uma semana, a cena se repetiu. Ele recebia o possvel scio na sala
de TV, oferecia uma cerveja e puxava um papo sobre futebol, que parecia ser apenas
aquecimento para o assunto principal. Ento, como quem no quer nada, perguntava ao
vizinho se tinha visto o jogo do Corinthians, no domingo anterior. Qualquer que fosse a
resposta, emendava: Pois eu no vi, mas vou assistir agora. A expresso de curiosidade do
interlocutor era a deixa para que subisse o pano uma toalha velha, sob a qual se escondia
um objeto retangular, prateado, em cima da televiso: Isso aqui um aparelho de
videocassete, explicava, apontando a novidade recm-trazida dos Estados Unidos por seu
cunhado. Grava programas e roda filmes que voc pode comprar ou alugar em qualquer
esquina, hoje, nos Estados Unidos. A demonstrao comeava pelo jogo do ltimo
domingo, passava por uns trechos de Star Wars e tinha o clmax, apropriadamente, em
Garganta profunda, trazido pelo cunhado na mesma viagem. Em pouco tempo, dizia,

todo mundo vai ter um videocassete. Todo mundo! E qual o tipo de filme mais lucrativo
dessa indstria? perguntava o ex-tenista, abanando-se, no muito discretamente, com a
capa da fita porn. Se cada um dos vizinhos entrasse com 10 mil cruzeiros (o preo de uma
geladeira, na poca), abririam uma locadora de filmes adultos e, em um ano, jurava,
estariam ricos.
Nenhum dos moradores da rua topou. Uns por pudor, outros porque a ideia vinha de um
cara que passava os dias chapado, no sof de casa, ouvindo Jethro Tull e solando guitarras
imaginrias. Uma noite, naquela semana, ouvi o pai do Henrique, meu vizinho da direita,
comentar com a mulher: At que legal a traquitana, mas coisa de gringo, vai por mim,
por aqui essa moda no pega.
O pai do Rodrigo, contudo, no se abalou: conseguiu dinheiro com o cunhado, pegou
mais algum do banco, convenceu a esposa a vender o carro e abriu a locadora. Seis meses
depois, quando chegou o Natal, ainda no estava rico, mas j tinha dinheiro suficiente
para, por exemplo, dar ao filho um jipe de controle remoto, 4 4 abalando assim, pela
primeira vez e definitivamente, a paridade socioeconmica entre os meninos da rua.
No dia 25 de dezembro, enquanto os adultos comiam os restos do peru de Natal, as
crianas estreavam pelas caladas os presentes recebidos na vspera. Eu estava concentrado,
tentando desencaixar o cabelo de um Playmobil, quando surgiu o zumbido o barulho
que faria uma abelha, caso tivesse o tamanho de um gato. A um metro de ns, encarandonos como um animal prestes a dar o bote, estava o jipe, de uns quarenta centmetros. Foi
um pouco para trs, fez uma curva para a esquerda e comeou a nos circundar. Quando
voltou ao ponto de partida, o Rodrigo apareceu detrs de uma rvore, com o controle
remoto na mo e um indisfarvel orgulho no rosto. Veio andando at ns, a ponta da
lngua no canto da boca, fazendo o jipe dar uns cavalos de pau. Chegando nossa frente,
tirou os olhos do controle, nos encarou com infinita superioridade e disse apenas:
americano.
Contemplamos o brinquedo por um bom tempo, enquanto o Rodrigo contemplava o
poder do brinquedo sobre ns. Foi o Henrique quem teve coragem de fazer a pergunta que
estava na cabea de todos ali: Posso brincar?. Era a deixa pela qual o Rodrigo esperava:
No, voc no sabe, vai quebrar. Dito isso, virou as costas e saiu andando pra casa, o
carrinho ao lado, acompanhando seu passo, como um cachorro bem treinado. O jipe seria
um evento isolado na rua, apenas a ascenso social de uma das famlias, que logo se
mudaria para outro bairro, deixando para trs algumas lembranas e uma ponta de inveja,
se o pai do Henrique no estivesse tambm, por aquela poca, comeando a ganhar
dinheiro.
O pai do Henrique era professor universitrio, mas tinha abandonado a faculdade dois
anos antes para tocar uma loja de tapetes herdada do av, libans. No comeo, penou para
entender como a coisa toda funcionava, quase teve que fechar, mas, depois de um ano

ralando, as vendas comearam a melhorar, ele abriu uma filial num shopping novo, na
Zona Norte, e o primeiro sinal da prosperidade chegou rua seis meses depois do Natal do
jipe, no aniversrio do Henrique.
Era um fim de tarde, em junho. Eu e o Rodrigo disputvamos no bafo uma figurinha do
Fillol, goleiro da Argentina, enquanto os outros nos observavam, de p ou sentados nos
bancos de suas bicicletas. Foi quando ouvimos o zumbido, muito mais alto que o do jipe do
Rodrigo era o barulho que fariam trs abelhas se tivessem o tamanho de trs gatos.
Quando nos viramos, demos com o Henrique, de culos escuros e farda bege, montado
numa motinho eltrica, cpia fiel daquela usada pelos CHiPs, os guardas rodovirios do
seriado. Sem dizer nada, acelerou e passou reto por ns. Foi at o jardim no fim da rua, que
chamvamos de Mato, depois voltou, altivo e sereno como os patrulheiros Jon Baker ou
Frank Poncherello, no programa da televiso. O Rodrigo fingiu que no era com ele, mas
quando bateu na figurinha, Fillol ficou colado ao suor de sua mo.
Dali em diante, ningum mais queria saber do jipe, s pensvamos em andar na moto
dos CHiPs. s vezes, o Henrique deixava um de ns dirigi-la, mas s s vezes, e mesmo
assim ficava correndo ao lado: No acelera muito, seno quebra!, Cuidado com o
buraco!, S at a rvore, depois devolve!.
O reinado do Henrique durou vrios meses e no parecia ameaado antes do Natal, mas
no comeo dos anos 80 a indstria porn ia de vento em popa: j em setembro, portanto,
numa quarta-feira sem nada de especial, veio a resposta do Rodrigo.
Era por volta do meio-dia e realizvamos o servio fnebre do Fonseca, periquitoaustraliano do Ernesto, um menino ruivo que morava no incio da rua. Periquitosaustralianos no tinham o status de cachorros e gatos, nem mesmo de tartarugas ou
hamsters, e o Ernesto havia organizado a solenidade menos por apego ao pssaro, que
amanhecera duro no fundo da gaiola, do que pelas possibilidades ldicas do enterro. O
funeral seguia a p da casa do Ernesto at o Mato, uns quarenta metros adiante, onde nos
esperava uma pequena cova, j aberta com gravetos e palitos de sorvete, num canteiro de
violetas. O defunto ia numa caixa de sapato, a moto do Henrique fazendo as vezes de
rabeco. O Ernesto caminhava ao lado, com a mo no guido, controlando a velocidade
uma regalia que o Henrique lhe havia concedido, no sei se por respeito sua condio de
enlutado ou como garantia para que o finado fosse na motoca.
J estvamos quase chegando ao Mato quando o murmrio eltrico da motinho foi
solapado por um ronco alto, to alto que seria intil tentar compar-lo ao zumbido de
abelhas, ainda que fossem grandes como tigres: o que ouvimos era o estrpito inconfundvel
de um motor a exploso. O fretro estancou, nos viramos e demos com o Rodrigo, de
capacete e luvas, a bordo de um minibugue Fapinha, vermelho. (Dizer que o minibugue
estava para a infncia como a Ferrari est para a idade adulta um equvoco, porque depois
de crescidos nem todos nos interessamos por carros, mas no havia um nico menino entre

os cinco e os dez anos que no sonhasse com um Fapinha; no exagero, portanto, ao


afirmar que no existiu nem existir objeto mais cobiado por todos os homens nascidos na
dcada de 60 do sculo passado.)
Bastava ao Rodrigo passar ao lado do enterro e j seria suficiente para acabar com os dias
de glria da motoca do Henrique, mas ele queria mais, ele vinha amargando a derrocada de
seu jipe e a imagem do outro pra cima e pra baixo vestido de CHiPs fazia mais de trs
meses: no s deu carona a todos na traseira do carrinho, quase arriando o minibugue
recm-tirado da loja, como ofereceu o banco do passageiro para levar Fonseca, o experiquito. Henrique foi atrs, sozinho em sua moto, respirando a fumaa. Depois disso,
andou quieto por semanas, chutando pedregulhos, quebrando gravetos, partindo minhocas
e esmagando formigas. Ele sabia que a competio tinha chegado ao fim. O que seu pai
poderia comprar? Um mini-helicptero? Um minissubmarino? No havia mais para onde
ir, o teto fora atingido: o nico caminho a trilhar, a partir de agora, era para baixo.
No dia 23 de dezembro, depois do jantar, o Henrique apareceu l em casa, ansioso. Eu
ainda estava mesa e minha me havia acabado de ir para a cozinha, levando os pratos.
Tenho um plano, ele cochichou, olhando l pra dentro, com medo de ser ouvido, e fez
um sinal para que o seguisse at a rua.
Paramos em frente casa do Rodrigo. Eu lembrei ao Henrique que nosso vizinho estava
viajando. Tinha ido com a famlia passar o Natal em Bariloche. Rodrigo sorriu de leve.
Por isso mesmo, disse, pegando um cabo de vassoura escondido nuns arbustos e
apontando a porta da casa: uma armao de ferro com quatro retngulos de vidro opaco,
dispostos um sobre o outro. Se a gente quebra, d pra entrar. No entendi. O espao sem
o vidro seria suficiente para que nos esgueirssemos para dentro da casa, mas jamais para
que trouxssemos o bugue. No o bugue, ele murmurou, entre os dentes. S ento
compreendi: o que meu amigo pretendia era um ataque de efeito moral. Havia perdido a
guerra, sabia disso, e a vingana seria capturar, um ano aps o incio das hostilidades, o
estopim do conflito, seu maior smbolo, que nos aguardava no segundo andar, no fundo de
um armrio no quarto do Rodrigo: o jipe de controle remoto. Talvez Henrique o
escondesse embaixo de sua cama, talvez o destrusse a marteladas e enterrasse os restos no
Mato, no sei: o importante era roub-lo.
Tive medo de participar e ainda mais medo de tentar impedi-lo e parecer covarde, de
forma que fiquei ali, parado, enquanto ele investia contra o vidro da porta, usando o cabo
de vassoura como arete. Da primeira vez, no aconteceu nada. Da segunda, tampouco.
Ento ele recuou at a calada, tomou impulso e, a sim, conseguiu o que queria. Ou
quase: pois assim que o vidro se espatifou em milhares de caquinhos, o barulho reverberou
pela rua e samos correndo, cada um para sua casa. No sei bem como, mas fomos
descobertos, enquadraram-me como cmplice e o conserto da porta foi rachado entre os
meus pais e os do Henrique.

No ms seguinte, a famlia do Henrique, com lojas de tapetes espalhadas por toda a


cidade, mudou-se para uma cobertura no Morumbi. No muito depois, Rodrigo e os pais
tambm partiram, para uma casa com piscina no Jardim Amrica tinham ento sete
locadoras porns em So Paulo, duas no Rio e outra em Braslia.
Uma semana aps a mudana do Rodrigo, apareceu na rua um corretor de imveis,
acompanhado por um casal. Mostrou a casa aos possveis compradores e, ao sair, o vi
escondendo a chave no quadro de luz. Tarde naquela noite, sem acordar meus pais,
escapuli da cama, peguei a chave e entrei na casa vazia. Cruzei a sala, no escuro, para no
chamar a ateno dos vizinhos, subi a escada, fui at o quarto do meu amigo e abri o
armrio onde ficava o jipe. Sabia que a probabilidade era mnima, quase nula, mas o que
custava?
Encontrei um p de meia azul, um Playmobil careca e algumas figurinhas da Copa de
82: duas do Waldir Peres, trs do Juanito e dezessete do Plskei.

Shakespeare nas dunas

Frias de vero, minha me e meu padrasto alugaram uma casa em Arraial do Cabo para
passarmos o ms de janeiro. Na vspera da viagem, arrumaram as malas, fizeram uma
grande compra de supermercado e mandaram besuntar o Passat verde-musgo com leo de
mamona suposta proteo contra a maresia que, at hoje, no sei se era uma
particularidade da nossa famlia ou uma dessas bizarrices comuns no final do sculo XX,
como passar Coca-Cola na pele antes de tomar sol ou fazer polichinelos nas aulas de
educao fsica. Na manh seguinte, com o porta-malas lotado, a lataria viscosa e os
nimos exaltados, pegamos a estrada.
Nossa casa ficava no alto de uma encosta, bem diante do mar. Tinha um quintal com
pomar atrs, e uma varanda na frente, sombreada pela copa de uma amendoeira centenria.
Todos os dias acordvamos cedo, tomvamos caf da manh na mesinha embaixo da
amendoeira e, depois de uns cinco minutos ziguezagueando pela trilha do morro,
chegvamos praia, com as dunas de areia branca s para ns, meia dzia de forasteiros e
os pescadores. Armvamos o guarda-sol, abramos as cadeiras e esteiras e ali ficvamos,
quase at o anoitecer.
Nas infinitas manhs, enquanto minha me e meu padrasto liam, eu e minhas irms nos
dedicvamos s tpicas atividades de criana na praia: nadvamos, rolvamos na areia
(chamvamos de fazer croquete), construamos castelos, cavvamos buracos,
realizvamos autpsias nos baiacus inchados trazidos pelo mar. L pelas trs, meu padrasto
fechava o livro: E a, quem quer uma birita?. Caminhvamos at uma birosca de pau a
pique, comamos pastis, eles bebiam caipirinha e ns, Fanta Uva.
No finzinho da tarde, havia o arrasto. Eu e meu padrasto ajudvamos a puxar a rede
bem, ele ajudava, eu s ficava por ali, agarrado velha corda azul, fingindo que meus
pequenos msculos faziam alguma diferena na luta dos homens contra o mar. Quando a
rede chegava, carregada um borbulhante lago prateado, refletindo os ltimos raios de sol
, recebamos uma ou duas tainhas por nossa contribuio e amos para casa, ass-las.
Depois de jantar, eles nos liam alguma histria dos irmos Grimm ou do Monteiro Lobato
e capotvamos, para acordar cedo no dia seguinte e comear tudo de novo.
Por mais divertidas que fossem nossas atividades praianas, um ms muito tempo e era

inevitvel que em algum momento fssemos visitados por aquele implacvel companheiro
da infncia: o tdio. No final de uma manh, l pela terceira semana, cansados do mar, da
areia, dos croquetes, pastis, picols e barrigas dos baiacus, nos encarapitamos sob o
guarda-sol e, emburrados, pusemos em prtica a nica estratgia que conhecamos para
espantar a infelicidade: azucrinar a vida dos adultos at que eles nos trouxessem alguma
soluo.
Minha me props que caminhssemos at as pedras, que fizssemos um castelo, disse
at que poderia ler algo dos irmos Grimm ou do Monteiro Lobato, mas o tdio tem uma
bunda imensa: quando assenta as ndegas sobre nossas cabeas, achata toda a
circunferncia do mundo conhecido; para escapar de seu adiposo domnio, s encontrando
alguma atividade indita, em mares nunca dantes navegados. Conhecendo intuitivamente
o antdoto, minha meia-irm bateu os olhos no livro que seu pai tentava ler e perguntou o
que era. Romeu e Julieta, ele disse, e no o deixamos mais continuar a leitura: Sobre o que
? Por que eles no podiam casar? Onde fica Verona? D pra chegar de carro? E de barco?
Pra que lado? antes ou depois da frica?.
Simplificando um pouco a linguagem, meu padrasto nos resumiu o comeo da histria:
as famlias rivais, a festa fantasia, o filho dos Montquio, a jovem Capuleto, o amor
proibido. Em cinco minutos, aps mais de uma hora de lamrias, havamos ficado quietos
e atentos. No sei se instigado por nosso interesse ou simplesmente temeroso de que
voltssemos ao tdio profundo, meu padrasto resolveu abandonar a verso resumida e
comeou o livro pelo comeo inserindo, aqui e ali, algumas notas de rodap.
Daquele dia em diante, quando voltvamos da birita, entupidos de Fanta Uva e pastel,
sentvamos nas esteiras e, at o sol se pr, ouvamos a continuao da histria. Mais tarde,
ao nos deitarmos na cama, no queramos saber de feijes encantados ou das reinaes de
Narizinho: s nos interessava o futuro do casal.
Hoje, acho que entendo o porqu do nosso interesse por Romeu e Julieta. Filhos de pais
recm-separados, no nos eram nada distantes, perdidas no sculo XVI, situaes como
amor impossvel, relaes inconciliveis, a casa dos Montquio e a casa dos
Capuleto. Por mais civilizados que tivessem sido os divrcios do meu pai e da minha me,
do meu padrasto e de sua ex-mulher, em algum lugar devamos nos solidarizar com dois
jovens cujas vidas eram afetadas pelas rixas de seus antecessores. Ou, talvez, nem
precisssemos ir to longe. Afinal: o que a infncia seno uma sequncia de desejos
cerceados pelos adultos?
Os dias foram se passando e ns fomos ficando cada vez mais ligados ao livro. Para
alongar a narrativa, minha me e meu padrasto se aprofundavam em detalhes, descreviam
roupas e cenrios, cantarolavam as msicas dos bailes, assoviavam os pios dos passarinhos,
inventavam comidas, animais e plantas da floresta. Embora percebssemos a artimanha e
reclamssemos s vezes pula, pula, isso sobre!, eu dizia , eles conseguiram levar

Romeu, Julieta e as trs crianas firmes e fortes at o fim das frias.


No penltimo entardecer, subimos para casa com o corao na boca: o mundo tramava
contra o amor proibido, Romeu havia sido obrigado a fugir para Mntua, Julieta estava
prometida a Pris, mas o plano do frei Loureno era excelente! Daria moa um falso
veneno, que a faria parecer morta. Romeu a encontraria no jazigo dos Capuleto, a
acordaria do sono profundo, fugiriam para longe de Verona (Arraial do Cabo, talvez?) e
seriam felizes para sempre. No era assim, afinal, que terminavam as histrias?
Eis o que se perguntavam meu padrasto e minha me, vez aps outra, naquela insone
noite de vero. Como sair da arapuca em que haviam se colocado? Deveriam profanar
Shakespeare, censurando o final, fazendo, talvez, com que a carta de Julieta chegasse a
Romeu via pombo-correio, em vez de viajar no bolso de um emissrio? Cometeriam um
hediondo anacronismo colocando ao lado da sepultura um providencial orelho, cujo
toque, no momento em que Romeu erguesse a adaga, mudaria, deus ex machina, os rumos
da histria? Ou o correto seria seguirem fiis ao enredo, Shakespeare Shakespeare, a arte
est acima de tudo, no se pode esconder a verdade das crianas, e, no fim das contas, elas
sairiam fortalecidas da experincia?
Lembrem-se, era o incio dos anos 80. Maio de 68 estava mais prximo de ns que a
obrigatoriedade de cadeirinha para bebs no banco de trs dos carros, a discusso, portanto,
sobre o que seria mais danoso s crianas a violncia da histria ou da mentira entrou
noite adentro, escorando-se em Harold Bloom e Paulo Freire, Bakhtin e Piaget, Nietzsche,
Freud e sabe-se l mais quem. J estava amanhecendo quando chegaram a uma concluso.
Pela ltima vez, tomamos caf sob a amendoeira, descemos a trilha at a praia,
cruzamos as dunas, armamos acampamento. L pelas trs, depois da birita, como de
costume, sentamos em volta dos dois, prontos para ouvir o aguardado final de Romeu e
Julieta.
No lembro quem contou, se minha me ou meu padrasto. Lembro de um frio polar
no estmago, de um claro no cu, do mundo revolto como as entranhas de um baiacu.
Minha irm mais nova perguntava, lvida, ainda sem acreditar, me, me, que que
adaga?!, minha meia-irm caminhava a esmo, no! Romeu! No! Julieta!, os
adultos atrs, atarantados como vaqueiros no estouro da boiada, mas olha, as famlias
fizeram as pazes!, olha, s uma histria, de mentirinha! Quem a quer um picol?!.
Mortos! Mortos!, gritvamos, rolando pelas dunas, areia grudando no rosto, pequenos e
trgicos croquetes pranteando o casal de Verona, que morria junto ao ltimo sol daquele
vero.

Banhos

Passei boa parte das frias da infncia em Lins, cidade do interior onde moravam meus
avs paternos. Como Lins fica a 430 quilmetros de So Paulo, no seria incorreto dizer
que passei boa parte das frias da infncia dentro do carro, indo ou voltando de Lins.
Da cidade, guardo poucas lembranas: o piche do asfalto, derretido pelo sol, a terra
vermelha, o cheiro das centopeias embaixo das pedras do jardim e o cheiro de naftalina nas
roupas de cama. J da estrada, das infinitas horas que separavam a nossa casa da dos nossos
avs, recordo de muita coisa.
O comeo da viagem era sempre animado. Eu e minha irm, que no vamos nosso pai
durante a semana, falvamos sem parar sobre os acontecimentos mais importantes dos
ltimos dias: Eu t com dois dentes moles!, A tia Carla t grvida!, O Cau muito
burro, ele desenhou um homem com o bigode em cima do nariz!.
Quando sossegvamos um pouco, meu pai contava uma ou outra novidade. Dizia que
tinha falado com a nossa av e ela havia feito a gelatina de canela, que esse ano o prespio
estava ainda mais caprichado, com uns boizinhos e vacas que o meu av tinha mandado
fazer em Bauru, e a gente ficava ali, vendo o mato passar borrado pela janela e imaginando
o que faria primeiro quando chegasse, se corria para o prespio ou atacava as gelatinas.
Quatrocentos e trinta quilmetros, contudo, so quatrocentos e trinta quilmetros, de
modo que mais cedo ou mais tarde aquele nosso velho amigo, o tdio, se aboletava no
banco de trs. Com as vozes arrastadas, perguntvamos: Pai, falta muito?. Sabamos a
resposta, mas no nos importvamos. Queramos justamente ouvi-lo dizer quanto faltava,
pois meu pai tinha inventado uma unidade de medida muito mais interessante do que
quilmetros, horas ou minutos para quantificar a durao de uma viagem: Acho que
faltam uns dezesseis banhos.
Fazamos uma cara sria, como convm a viajantes escolados, e perguntvamos: De
chuveiro ou banheira?. Banheira. E caprichado, de lavar atrs da orelha e entre os dedos
dos ps. Ento comevamos a simular os banhos, ao mesmo tempo que os narrvamos,
desde o momento de tirar a roupa at pentear os cabelos. Pelo retrovisor, ele fiscalizava
cada passo: T entrando!, dizia minha irm. Na banheira vazia?! Tem que encher! A
manivela do vidro direito era a gua quente, a do vidro esquerdo, a fria. Enquanto o vento

entrava no carro, testvamos a temperatura da gua, mexendo os ps no vo entre os


bancos. Esfrega mais essa cabea, filha! Quero ver fazer espuma! Fecha o olho, filho, no
vai deixar entrar sabo!
O banho s era considerado terminado quando estivssemos limpos, vestidos e
penteados. Alongar o processo era fcil, sempre faltava esfregar as costas, passar creme
rinse, limpar embaixo das unhas ou pera, no vai fechar o zper dessa cala?! para nos
manter ocupados por mais alguns quilmetros. O problema era quando ele errava a conta,
j estvamos na entrada da cidade e ainda tnhamos que tomar trs ou quatro chuveiradas.
Nessas ocasies, fazamos o chamado lava a jato, mtodo expresso de assepsia em que era
permitido lavar o corpo com a espuma do xampu e recomear o processo sem ter que se
vestir de novo. Uma ou outra vez ele chegou a estacionar o carro na esquina da casa da
nossa av, depois de seis horas de viagem, para que terminssemos de secar os cabelos com
nossas toalhas imaginrias.
Ento chegvamos, corramos casa adentro, comamos as gelatinas e vamos as
melhorias do prespio. Mais tarde, antes de dormir, tomvamos banho de verdade, com
gua e sabonete: um banho chato, que parecia alongar-se por muito mais quilmetros que
os do banco de trs no carro do nosso pai.

Sorvete e bala

Eu e a minha irm deveramos passar julho inteiro em Lins, mas no fim da primeira
semana meu pai apareceu para nos buscar. Chegou no meio do almoo e, no entanto, nem
o nosso av nem a nossa av pareceram surpresos. Quisemos saber o porqu da volta
repentina, e ele perguntou: Quem quer tomar um sorvete em Bauru, no caminho pra So
Paulo?!.
Depois da sorveteria, pegamos a estrada e ele comeou com um papo esquisito: Sabe,
nem todos os bandidos so maus. Alguns roubam porque no tm dinheiro pra comer. E
por que eles no arrumam um emprego pra ganhar dinheiro? Porque eles no sabem
fazer trabalho nenhum, eles no foram pra escola, que nem vocs e eu. E por que os pais
deles no puseram eles na escola? Porque os pais deles tambm no foram pra escola,
ento a nica forma que tm de conseguir comida roubando coisas dos outros e
vendendo. O que eles fazem errado, claro, mas no por maldade. Um dia, se todo
mundo puder estudar e tiver pais e mes legais, no vo mais existir esses ladres. Pausa.
Por outro lado, algumas pessoas so ms. Existe gente no mundo capaz de fazer coisas
muito ruins sem se importar com nada, e eu no sei explicar por qu. Longa pausa. Ento
meu pai nos contou que, na vspera, uns bandidos tinham entrado na fazenda do Fbio
Pequeno. O Fbio se assustou e saiu correndo. Um ladro atirou. A bala entrou pela barriga
e saiu pela coxa.
Ele vai ficar bom?, perguntou minha irm. Vai!, garantiu meu pai, com um pouco
mais de certeza do que seria aconselhvel para nos deixar tranquilos.
Algumas horas depois, paramos num posto. Meu pai foi ao balco, pegar os mistos e as
Cocas, eu e minha irm ficamos na mesa, olhando os carros passarem na estrada. Quando
ele voltou, ela quebrou o silncio:
verdade que, depois que a gente morre, a gente vai pro cu?
Meu pai tirou os pratos da bandeja, colocou-os nossa frente, botou canudinhos nas
Cocas.
Olha, ningum sabe direito. Cada um diz uma coisa. Tem gente que diz que a gente
vai pro cu, sim.

Pro cu, onde? Onde passa o avio?


Mais pra cima, filha.
Onde os astronautas vo, de foguete?
Depois, bem depois.
onde mora o Deus?
, por ali, dizem.
Minha irm deu um gole na Coca e retomou o questionrio:
E se construir um foguete muito, muito, muito grande, d pra ir at l?
No, no d. Nem pra ver com telescpio. um cu muito, muito longe.
Eu no estava convencido daquele papo celeste:
E que mais?
Que mais o qu?
Que mais que dizem que acontece quando a gente morre?
Tem gente que diz que sua alma sai do corpo e voc nasce de novo.
Minha irm:
Que que alma?
o pensamento. O pensamento sai do seu corpo e entra num beb que estiver
nascendo bem naquela hora.
Em outra casa?
Em outro pas, at.
Eu no quero! No quero que o meu pensamento nasa em outra casa, em outro pas!
Calma, filhota. Ningum sabe se verdade. E se voc nascer de novo, voc no
mais voc, voc nem lembra de nada da vida passada, o que dizem.
Mas no o seu pensamento?
e no . No sei, complicado.
Ficamos mais um tempo em silncio, mastigando nossos mistos e o imbrglio
metafsico.
Que mais? perguntei.
Que mais que dizem?
.
Dizem que talvez sua alma no nasa de novo num beb, mas num bicho ou at
numa planta. Na prxima vida voc pode ser gato, elefante, at samambaia, no legal?
No! protestou minha irm. Eu no quero ser samambaia!
U, quem disse que voc no foi samambaia na sua ltima vida?
Eu ri, apontei o dedo para a cara dela.
Samambaia! Samambaia!
Os dois me olharam, srios, como se s eu no percebesse que o momento no era para
esse tipo de brincadeira. Calei-me. Minha irm retomou a sabatina:

E voc, acredita em qu?


Sob nossos olhares atentos, meu pai terminou de mastigar, engoliu, tirou duas folhas do
guardanapeiro, limpou a boca:
Em nada.
Minha irm ficou inquieta.
Como assim, em nada? Quando morre, acontece o qu?
Acaba.
E pra onde vai o seu pensamento?
Sabe quando voc t dormindo e no t sonhando? Ento, assim. No precisam
fazer essa cara! No ruim, no, porque voc no sente dor, nem frio, nem saudade, nem
fome, nem nada. E voc no tem que fazer lio de casa, nem tomar banho, nem comer
comida que no gosta.
Mas voc nunca mais pode brincar, nem ver a sua me, nem ningum!
, filha, s que voc no sabe, porque voc no pensa nem sente mais. Olha s, vocs
no precisam se preocupar com isso, o Fbio Pequeno vai ficar bom, vocs ainda so muito
pequenos e s vo morrer quando forem bem, bem, bem, bem velhinhos.
Minha irm continuava aflita.
Voc no criana. Eu no quero que voc morra. Promete que no vai morrer?
Filhota
Promete? Promete pra mim que nunca, nunca vai morrer?
Meu pai ficou um tempo quieto. Ps o sanduche de volta no prato, segurou as nossas
mos e respondeu, convicto:
Eu prometo que vou fazer o possvel, pode ser?
Respondemos juntos:
Pode.
***
Na noite em que chegamos de Lins, fui casa do Henrique. O Rodrigo j estava l.
Fizemos um tnel com as almofadas e ficamos brincando com os nossos carrinhos.
Falvamos muito sobre vrios assuntos, menos sobre aquele que nos afligia. At que, mais
de uma hora depois de nos encontrarmos, perguntei se eles achavam que o Fbio Pequeno
iria morrer. Sem olhar para mim nem parar de brincar, o Rodrigo respondeu:
Tomara que morra, aquele chato!
O Henrique riu.
Nos meus dias mais otimistas, acredito que o sarcasmo era a nica chave possvel para
que duas crianas de seis anos pudessem lidar com um evento to violento. A voltagem de

suas cabeas era mais baixa que a da notcia, e para evitar uma sobrecarga era preciso
desligar o disjuntor emocional antes de fazer a conexo.
Nos dias pessimistas, penso que talvez fosse o contrrio. Os dois j eram seres humanos
formados, capazes de presenciar a tragdia alheia sem vnculos afetivos. No gostavam
mesmo do Fbio Pequeno e dava na mesma se, nos prximos dias, ele morresse ou no.
Brincamos um pouco mais no tnel, calados, ento eu disse que tinha que voltar pra
casa, peguei os meus carrinhos e fui embora.
Dez dias depois, o Fbio Pequeno chegou do hospital. Fomos visit-lo, todas as crianas
da vila. Ele nos recebeu de pijama, deitado no sof, tomando sorvete. Em torno dele, papis
de presente se misturavam a caixas de remdio. Embora fosse dois anos mais novo do que
eu, parecia um velho sbio, em sua convalescena.
Contou-nos menos com a dor do trauma do que com o cansao de quem repete a
mesma histria que na hora o tiro no di, voc s sente uma coisa quente entrando.
Depois, sim, que nem um belisco bem forte. Disse que os ladres eram muito burros,
acharam que ele ia fugir mesmo tendo levado o tiro: amarraram-no a uma cama, puseram
um colcho em cima e uma televiso em cima do colcho, mas ele no conseguia nem
andar. O colcho at que no foi ruim, porque um tempo depois de amarrado ficou com
muito frio, sentiu uma moleza, um formigamento, a dormiu e s acordou no hospital,
quatro dias mais tarde.
Minha irm quis saber se ele tinha sonhado durante o sono. Ele no se lembrava, s
sabia que quando acordou estava meio engraado, por causa da anestesia, queria falar e no
conseguia ele e a me riram bastante nessa hora.
Eu perguntei se haviam tirado a bala de dentro dele, ele disse que a bala tinha
atravessado e sado pela coxa. O Henrique quis saber se tinham achado a bala no cho; ele
disse que no. Algum perguntou se ele ia querer guardar a bala, caso a achassem. Fbio
no soube responder. Eu disse que, quando tiraram um berne da minha cabea, o levei para
casa, mas minha me no me deixou guard-lo. O Fbio quis saber o que fiz com o berne e
senti uma ponta de orgulho por meu berne causar algum interesse em algum que acabara
de levar um tiro. Joguei na privada. Mas ele tava vivo? Eu expliquei que no, ele tava
morto, num vidrinho com lcool. Ah, entendi, disse o Fbio, ento a me dele decretou
que por hoje j estava bom, ele precisava descansar, e fomos embora.
Eu estava assistindo TV. Ao telefone, Vanda conversava com a cozinheira do Henrique,
toda excitada: o Opala dos pais do Fbio Pequeno tinha sido encontrado num terreno
baldio em Carapicuba e acabara de chegar vila. Ela saiu correndo para v-lo. Fui atrs.
Ela colou a cara no vidro e ficou espiando o interior. Perguntei o que ela estava fazendo.
Sem interromper o escrutnio, me explicou que procurava marcas de cigarro, manchas de
bebida, essas coisas. Que coisas? Bandido assim, eles no to nem a pra nada, quando

roubam um carro, apagam o cigarro direto no banco, vo comendo e bebendo, derrubando


tudo, limpando as mos em qualquer lugar porque eles no foram pra escola, nem os
pais deles? Vanda me olhou como se eu fosse uma aberrao, depois soltou uma breve
gargalhada e retomou a busca.
Um ms depois de o Fbio Pequeno voltar do hospital, fui almoar em sua casa. mesa,
ele me contava detalhes da fisioterapia a que estava sendo submetido, trs vezes por
semana: era numa piscina ali perto da vila e usava umas boias compridas e coloridas que
no existiam no Brasil, mas que seu tio trouxera l dos Estados Unidos. Perguntou me se
podia ir ao quarto peg-las para me mostrar. Come primeiro, depois voc mostra, disse
ela, tocando um sininho. Da cozinha, surgiu a empregada, trazendo uma bandeja cheia de
travessas. Eu no conhecia aquela mulher e perguntei pela Mrcia, a antiga cozinheira. A
me do Fbio ficou sria e seu marido disse que a Mrcia no trabalhava mais l. Eu quis
saber por qu, eles se olharam e depois de um tempo o pai do Fbio Pequeno respondeu:
Ela pediu demisso e voltou pra Bahia.
Enquanto as crianas se escondiam pela vila eu contava at cinquenta, o rosto apoiado
nos braos, os braos apoiados num poste. A uns metros de mim, encerando um carro, o
motorista do Henrique conversava com a cozinheira do Rodrigo:
Ser, ?
Mas claro, meu filho! Aquela ali nunca prestou, no. S pode ter sido ela.
Parei de contar e, por entre os braos, fiquei espiando a conversa.
No sei, no disse ele, passando a flanela num retrovisor. Do jeito que
apertaram a Mrcia na delegacia, era pra ter confessado.
Naquela noite, em casa, perguntei Vanda o que significava terem apertado a Mrcia.
Eles perguntam se voc conhece os ladres, se foi voc quem deu o endereo. Se voc
diz que no, eles te batem, torcem seu brao, afogam sua cabea num balde, at voc
confessar.
Eu quis saber por que eles desconfiavam da Mrcia, por que bateram nela, por que
afogaram a cabea dela num balde. A Vanda disse que isso no era da conta dela nem da
minha, me mandou assistir televiso e foi arrastando os chinelos de volta cozinha.

Senhor da chuva

Primeira srie, escola nova. Em lugar da balbrdia do tanque de areia, a geometria das
quadras poliesportivas; em vez do cho protegido por linleo, a aspereza do concreto; pelas
paredes, as slabas no eram mais do b--b, mas da tabela peridica; os desenhos feitos
com as mos sujas de guache davam lugar aos diferentes tons dos pases e estados, na
cartografia ainda incompreensvel do novo mundo ao qual acabvamos de ser admitidos.
De tudo, o que mais me impressionou foi o laboratrio. Os tubos de ensaio, potes de
vidro, serpentinas, substncias coloridas e nauseabundas faziam daquela parte do colgio
um elo entre o passado e o futuro, entre a bruxaria dos contos de fada e a cincia (no
menos mgica) das reaes qumicas. A sala de azulejos brancos era ao mesmo tempo uma
cmara hiperbrica, destinada a nos trazer com segurana das obscuras profundezas da
infncia terra firme do primrio, e tambm um mdulo lunar, capaz de nos levar s
altitudes impensveis dos milagres cientficos Jetsons, Frankensteins, Star Wars.
Se o cu era o limite para minhas expectativas, imagine meu entusiasmo ao saber que
iramos comear direto por ele: segundo nos informou a professora de cincias no fim do
primeiro dia de aula, na manh seguinte aprenderamos a fazer chuva.
Quase no dormi naquela noite. Olhando pro teto, imaginava nuvens pretas do tamanho
de travesseiros cruzando o laboratrio, relmpagos de trinta centmetros carbonizando lpis
e derretendo borrachas, os meninos assoprando os ps-dgua pra cima das meninas, elas os
abanando de volta, com os estojos; vislumbrei tors, com o dimetro de chuveiros,
empapando os cadernos e fazendo mingau do po Pullman em nossas lancheiras.
De jaleco branco e com a devida solenidade na voz, a professora perguntou: O que
preciso pra fazer chuva? Algum sabe?. De cara, imaginei um caldeiro de bruxa, olhos de
sapo, lnguas de cobra, asa de morcego, mas logo reprimi essas anacrnicas referncias.
Sabia que os instrumentos agora eram outros, mais adequados alta evoluo tecnolgica
da primeira srie. Pensei em ferramentas de cientista maluco: misturas vermelhas, azuis e
verdes, borbulhantes, soltando fumaa e escorrendo para fora de tubos de ensaio; bolas de
vidro cruzadas por descargas eltricas; mquinas com mil botes, alavancas, manivelas e
antenas, soltando bipes e shhhhhjjjjfffffs e fascas bem diante de nossos narizes.

Para minha surpresa, a professora pegou um vidro do tamanho de um pote de maionese e


uma mangueira com uma chama na ponta, no muito maior que a de um isqueiro Bic: A
gente s precisa disso aqui, : calor e gua. S? Nem uma pitada de um p secreto, tirado
com luva cirrgica de um pote com a clssica imagem da caveira cruzada por ossos e a
palavra PERIGO!?
Tentei racionalizar minha frustrao: varinhas de condo tampouco eram objetos muito
complexos e todos sabamos de seus poderes, no? Claro: tanto fazia a simplicidade dos
instrumentos, contanto que produzissem a tempestade.
Sob orientao da professora, acendemos a chama (o bico de Bunsen), enchemos com
gua o pote (bquer) e o colocamos sobre o fogo. Ela pediu para que tampssemos o
recipiente com uma lmina de vidro. Fiquei ressabiado. Desse jeito, como a nuvem preta
vai sair do pote? A chuva no vai sair, me respondeu ela, vai acontecer todinha a
dentro.
Segunda frustrao, segunda racionalizao: aparentemente, no teramos cumulus
nimbus grandes como travesseiros e sim, no mximo, do tamanho de caixas de fsforo, mas
beleza: quem sabe, ao final do dia, cada um poderia levar sua chuva para casa, como um
broto de feijo no algodo ou um pintinho ganhado numa feira do Anhembi? Eu deixaria a
minha nuvem na mesa de cabeceira; os pequenos relmpagos iluminando o quarto escuro e
a gua caindo sobre um copo, do qual eu beberia caso tivesse sede no meio da noite. Ser
que com o tempo essas nuvens cresciam, como os brotos de feijo e pintinhos? E, ao
ganharem corpo, subiriam como bales de gs hlio, indo fundir-se a seus pares no alto do
cu?
Enquanto a gua esquentava, a professora nos contou o que veramos a seguir: de forma
clara e compreensvel, explicou o processo de ebulio, evaporao, condensao.
Enquanto falava, vamos a gua borbulhar, o vapor tomar o cilindro de vidro, as gotas se
formarem na tampa e carem de volta no fundo. Pronto!, disse ela, A est! Vocs
acabaram de fazer chuva!
Nenhum trovo? Nenhum relmpago? Nem mesmo um ventinho a balanar as
persianas do laboratrio? S uma goteira atravs do vidro embaado? Como podiam
chamar aquilo de chuva? O pior que eu entendi perfeitamente como: o mundo era um
bquer, o sol era o bico de Bunsen, os rios, lagos e oceanos eram aqueles dois dedos de
gua. Eu havia mordido o fruto da rvore da Cincia do Bem e do Mal e tinha sido expulso
do den, no existiam mais bruxas nem drages, poes mgicas ou varas de condo, e a
natureza cabia num pote de maionese.

Presente dos cus

Havia dois tipos de me. As que, como a minha, passavam a serenidade de uma cama
feita, o respeito de uma mesa posta. Sob a superviso de uma dessas avalistas da ordem e da
paz, eu podia dormir na casa de um amigo e at viajar com a famlia dele num fim de
semana, pois sabia que logo ali, no quarto ao lado, estava uma embaixadora do pas
maternidade, em meio aos perigos da terra estrangeira. Havia outras mes, porm, que
desde cedo me despertavam sentimentos ambguos. Mes loiras. Mes ruivas. Mes de
calas justas. Mes de botas de couro. Mes com grandes brincos dourados, muito perfume
e batom. Essas mulheres tinham algo de subversivo que eu no conseguia apreender
como se pudessem, antes do almoo, abrir um armrio e dizer: Olha quantos chocolates,
Antonio, vem comer esses chocolates comigo, vem?. Diante delas, no me sentia protegido
ou cuidado: sentia-me tentadoramente desamparado.
A me do Arthur era do segundo tipo. A primeira vez que a vi foi no aniversrio de seis
anos do meu colega. A festa teve palhao, cama elstica e at um mgico tirando leno do
ouvido e pomba da cartola, mas eu no despreguei os olhos daquela me, de suas unhas dos
ps pintadas de vermelho, de suas sandlias com tiras que subiam pelas panturrilhas em
direo a uma minissaia de couro preta.
L pelas tantas, eu estava com trs amigos no playground do prdio e ela veio nos
chamar para cantar o parabns. Antes de sair, fez um carinho no meu cabelo. A brisa de
perfume, somada ao movimento do gira-gira, me deixou meio tonto, sem saber se queria
agarr-la pelas pernas ou me esconder do outro lado do brinquedo provavelmente, as
duas coisas ao mesmo tempo.
Mil novecentos e oitenta e seis foi um ano temtico, o ano do cometa Halley. Claro, teve
a Copa do Mxico o pnalti do Zico pra fora, a bola da Frana batendo na trave, nas
costas do Carlos, e entrando, desclassificando o Brasil , mas todos sabamos que aqueles
eram eventos menores, glrias e fracassos quadrienais e terrenos, incomparveis ao
acontecimento septuagenrio e interestelar, para o qual eu e boa parte dos quase 5 bilhes
de habitantes do planeta passamos a fazer contagem regressiva assim que 85 foi chegando
ao fim.

Imagine: voc mal abandonou o mundo das bruxas e drages l no fundo, sobrevive a
pequena esperana de, um dia, voar como o Super-Homem ou os amigos do ET e te
dizem que um cometa vai cruzar o cu. Voc ainda no sabe o que um cometa, mas o
predicado basta para te deixar morto de curiosidade: algo vai cruzar o cu, e ser de noite,
e poder ser visto em todos os cantos da Terra. Ento te explicam o que um cometa a
que voc mal pode acreditar: uma gigantesca bola de fogo que viaja pelo cosmos como
um caubi solitrio, um Gernimo sem tribo, arrastando sua cabeleira flamejante pelos
ignotos confins da Via Lctea, voltando s a cada 76 anos. Uma dessas visitas coincide com
um feriado no meio da sua primeira srie: como no se sentir grato aos cus por aquele
presente?
Quando a data foi se aproximando, no havia outro papo na escola seno o cometa.
Onde v-lo? Como? Com quem? O Felipe ia com a famlia para Ubatuba: o pai dele tinha
comprado um telescpio americano que enxergava at os anis de Saturno. A me da
Cntia estava organizando uma excurso a um observatrio em So Carlos. O Cau ia com
o av para o Chile: veriam a passagem do topo de uma montanha to alta que quase
queimariam as pestanas. A famlia do Arthur tinha um stio em Monte Verde. Era um
lugar ermo, no meio da floresta, sem luz eltrica e to escuro que, quando o Halley
surgisse, projetaria nossas sombras na grama. Se eu quisesse, podia ir junto.
Na sexta, fui de mala para a escola e, no fim da tarde, a me do Arthur apareceu para nos
pegar. Eu no a via desde aquele aniversrio, dois anos antes. O cabelo agora era preto e as
unhas, violeta. Fumava uns cigarros fininhos, de filtro branco, e as bitucas manchadas de
batom transbordavam no cinzeiro do painel. O cheiro de tabaco e perfume, somado
fumaa que transformava o carro numa pequena sauna, lembrava os camarins que
frequentvamos nas estreias das peas do meu pai ou seriam os inferninhos da regio?
Chegamos a Monte Verde numa noite de cu limpo e sem lua, mas o Halley s daria o
ar de sua graa na segunda-feira: em meio ao breu, viam-se apenas estrelas e espordicos
vaga-lumes. Passei o fim de semana perturbado, dividido entre a promessa celeste e certa
presena telrica. Lembro da me do meu amigo no caf da manh, vestindo baby-doll, um
robe de seda preto e pantufas com pompom. (Hoje, enquanto escrevo, percebo o quo
improvvel esse figurino de femme fatale, mas foi assim que minha memria vestiu
aquela mulher e assim que ainda a vejo, uma Lauren Bacall fazendo um tostex no fogo.)
Lembro de ficar beira da piscina, aguardando o momento em que ela entrasse na gua
para ento jogar uma moeda l no fundo e mergulhar, admirando aqueles ps de unhas
pintadas atravs das lentes embaadas dos meus culos de natao. Lembro da noite de
domingo, eu e o Arthur deitados na grama fria, as vozes e risos dos adultos l longe, na casa,
nossos olhos pregados ao cu, imaginando a hora em que o cometa o cruzaria como um
peixe dourado num pequeno aqurio redondo.

Ao entardecer da segunda-feira, descemos para a piscina e nos sentamos nas


espreguiadeiras, sem acreditar no que estvamos prestes a presenciar: depois de 76 anos
algures, o lone ranger voltava para nos visitar. Quando os ltimos raios sumiram detrs da
montanha e o breu nos abraou, erguemos os olhos em busca da labareda, mas no vimos
nada alm do polvilhado de estrelas e do piscar intermitente de um vaga-lume.
O.k., eu j tinha um pequeno currculo de gozos adiados: brinquedos que vinham sem
pilha, sorveterias fechadas, figurinhas repetidas, lees e tigres que, justo na hora da minha
visita ao zoolgico, resolviam dormir atrs de uma pedra. Nessas horas, era preciso fazer o
que se fazia quando no havia mais nada a se fazer: esperar. E assim fizemos: esperamos,
esperamos, esperamos, at que, depois de uns quarenta minutos sem que nem uma
pontinha da juba amarela despontasse por trs da inaudita rocha celeste, a me do Arthur
resolveu pegar a luneta l na casa. Talvez tivessem exagerado. Talvez o Halley no fosse
visvel a olho nu. Atravs das lentes, contudo, veramos o cometa tal qual o conhecamos
das propagandas, camisetas, desenhos animados, outdoors, rtulos de achocolatados e
demais imagens que, havia mais de um ano, inundavam nosso cotidiano e nossa
imaginao.
Ela voltou com a luneta numa mo e uma taa de vinho na outra. Deu um gole, apoiou
a taa numa mesinha, acendeu um cigarro, deitou-se na espreguiadeira e ali ficou,
fumando e escrutinando o cu. Ento, depois de alguns minutos anunciou, sem grande
animao: Achei. Com um sorriso condescendente, nos avisou para no esperarmos
grande coisa: a brasa do seu cigarro era mais emocionante.
O cometa, como saberamos pelos jornais no dia seguinte, estava passando muito longe
do sol. Sem o calor, sua cauda que, ao contrrio da propaganda enganosa, era de gelo,
no de fogo no havia se formado. O Halley era apenas um pontinho borrado, uma
estrela um pouco maior do que as outras, um leo sem juba, ano e banguela.
Vem ver, filho, disse a me do Arthur, deitando-o em seu colo e apontando as lentes na
direo correta. Nossa, muito idiota, ele resmungou, parece o algodozinho do
cotonete, ento me passou a luneta. Pus os olhos no buraquinho e, deitado em minha
espreguiadeira, mirei na direo que a me do Arthur apontava, mas no consegui ver
nem mesmo a cabea de cotonete: a luneta era grande, pesada e cada mnima oscilao de
minhas mos eram milhes de anos-luz para cada lado.
Vem c, deita no meu colo, disse a me do Arthur e o cometa que eu no via no cu
apareceu, feito de fogo e de gelo, na boca do meu estmago. Era como se aquela me
finalmente tivesse aberto o armrio e dissesse: Vem, Antonio, vem comer esses
chocolates. No precisa, respondi, to nervoso que seria incapaz de focar a Lua, se Lua
houvesse, mas quando dei por mim ela j havia me feito levantar e, delicadamente, me
deitado em seu colo. Senti a presso dos seus peitos nas minhas costas e sua respirao na
minha nuca. Ela ps a luneta sobre meu olho direito e, colando o rosto ao meu, acertou a

posio: ali estava o Halley, a decepcionante cabea de cotonete no meio das caspinhas de
estrelas; ali estava eu, pairando a alguns metros do cho, sentido o corpo leve e pulsante,
como se, levitando, subisse devagarinho rumo Via Lctea.
T vendo agora?, me perguntou a mulher, com seu hlito de vinho, cigarro e perfume.
Ainda no. Onde?, respondi, grato aos cus por aquele presente.

Patos

Estvamos andando de bicicleta, na vila: eu, o Fbio Grande e um primo dele, Augusto,
dois anos mais velho que a gente. A brincadeira era seguir em velocidade pela calada e,
usando como rampa a pequena elevao da guia rebaixada para o meio-fio, saltar para a
rua. O Augusto conseguia subir bastante e, no ar, dava uma viradinha na roda da frente,
como que desdenhando da gravidade. Eu, medroso, mal passava da altura da guia e assistia,
todo reverente, ousadia do garoto.
Quando nos cansamos, fomos at o Mato e nos sentamos na mureta. Ficamos um
tempo quietos, retomando o flego, quebrando gravetos e observando sem muita ateno
uma trilha de savas. O primo do Fbio Grande ento cuspiu pro lado, limpou o suor do
buo na manga da camiseta e, sem qualquer razo aparente, mencionou as tais revistas de
sacanagem: disse que tinha uma coleo delas em sua casa e perguntou se queramos ver.
Eu nunca tinha ouvido falar em revistas de sacanagem, mas pelo nome deduzi do que
se tratava: uma publicao, provavelmente ilustrada, dedicada arte de sacanear os outros.
Como fazer cama de gato, passar rasteira, amarrar os cadaros dos colegas durante a aula,
preparar peido de veia com ingredientes que voc encontra na cozinha, esse tipo de coisa.
No era muito a minha praia, mas no queria parecer covarde e disse que sim, claro,
gostaria muito de ver a coleo.
Animado, o Augusto passou a comentar as fotos. Falou de uns homens que fodiam as
mulheres e gozavam na cara delas. Imaginei umas moas tropeando nos cadaros
amarrados por eles ou sentando em almofadas com som de pum, enquanto os homens se
acabavam de rir na cara delas. Ele mencionou a porra escorrendo pela boca e pensei
naquelas balas com recheio de anilina, a tinta azul descendo pelo queixo. S quando
comeou a falar das tetas que eram chupadas e de um metendo por trs (metendo o
qu? Por trs de onde?) percebi que no fazia a menor ideia do que eles estavam falando e
me manifestei.
Augusto riu, Fbio Grande o acompanhou embora parecesse to perdido quanto eu.
Quando a paz se restabeleceu, o primo do meu vizinho explicou, com ar de superioridade,
o contedo das revistinhas: homens e mulheres fazendo sexo. Muitos homens, muitas
mulheres, muito sexo, de todas as maneiras que voc pudesse imaginar.

Fiquei duplamente curioso. Primeiro: para que serviam revistas com fotos de pessoas
fazendo sexo? Segundo: por que eram chamadas de sacanagem? primeira pergunta,
Augusto respondeu laconicamente: Porque legal de ver, u!. Para a segunda, no tinha
explicao, disse apenas que era assim que o pessoal do prdio se referia a elas e ponto.
Depois de ouvirmos, quietos, uma breve explanao sobre o coito e suas inmeras
variaes, o Fbio pediu que o Augusto nos trouxesse uma daquelas revistas no prximo fim
de semana. Impossvel, disse o primo: a coleo era fruto de um complexo esquema de
distribuio que, se descoberto, acabaria com a alegria de todos os moradores de dez a
quinze anos do prdio e custaria, provavelmente, o emprego do seu Olacir, o porteiro. Se
quisssemos ver as tais fotografias, teria que ser in loco.
No outro domingo, com o argumento no inteiramente falso de que iramos ao
apartamento do Augusto conhecer o videogame americano que ele tinha ganhado de Natal,
conseguimos convencer a me do Fbio Grande a nos levar at l.
Durante boa parte da tarde seguimos o script oficial, atirando com pistolas cor de laranja
em patos que saam de trs de uns arbustos, na TV. Em qualquer outra situao, seria um
programa interessante. Naquele dia, contudo, pareceu-me a brincadeira mais idiota da
Terra. S umas duas horas mais tarde, quando a me do Augusto disse que ia dar uma
passada na Marli, do 22, pra pegar uma receita de torta mousse de limo, que pudemos
mirar em nosso verdadeiro alvo.
Entramos no quarto do Augusto, trancamos a porta, ele arrastou a cadeira da
escrivaninha at a frente do armrio, subiu e abriu o socavo. L do fundo, tirou uma mala
toda puda e, de dentro dela, um bolo de revistas fininhas, no maiores do que meus gibis
da Turma da Mnica. Sem preliminares, o garoto abriu uma delas na foto central e botou a
mulher, de pernas escancaradas, bem na nossa cara.
Surpreendente.
O que eu sabia, at aquela tarde, sobre o rgo sexual feminino? Em teoria, que se
tratava de um orifcio, um buraco onde o papai punha o pinto e deixava uma sementinha.
Na prtica, por j ter visto minhas irms e primas peladas, sabia que o tal orifcio
culminava num risquinho, discreto e rechonchudo. Portanto, esperava no mximo um
risquinho maior, uma vez que nas adultas tudo era maior, mas nada alm de um risco,
uma fenda entre as pernas, cercada por discretas bochechas latitudinais e coberta, segundo
boatos, por alguns pelos.
O que o Augusto me mostrava, contudo, ia totalmente contra as expectativas e mais,
contra a lgica. No se via buraco, no se via sequer o risquinho, viam-se encostas, fiordes,
arrecifes, cordilheiras. Onde, nas meninas, havia design nrdico, nas mulheres aflorava a

obra de um escultor barroco. Eu sabia que seria surpreendido, mas havia me preparado para
os sustos e perigos do tnel, da queda, do vazio. Do precipcio esperado, nem um sinal: mas
as bordas, meu Deus!
Enquanto virava as pginas, o primo do Fbio fazia comentrios com uma estranha
agressividade: Olha s como ele fode essa aqui!, Eles to mandando ver na ruiva!,
Olha que vagabunda, essa loira! Toma, loira vagabunda!. Era como se o sexo fosse uma
luta dos homens contra as mulheres e ele narrasse, orgulhoso, a vitria de nosso time.
Depois de alguns minutos de sacanagem, tomei coragem e fiz a pergunta que, boca
pequena, me sussurravam aqueles grandes lbios: as xoxotas das nossas mes, das nossas tias
e professoras tambm eram como aquelas? Estaria eu, havia tanto tempo, lidando com
adultas amveis e aparentemente inofensivas sem saber que traziam entre as pernas
purpreas anmonas, violceas caravelas? Augusto riu da minha cara, Fbio o imitou. Eu,
nervoso, ri tambm. Claro que no!, disse o primo: aquelas mulheres das revistas eram
umas arrombadas!. Elas iam trepando muito e com todo mundo, por isso perdiam as
pregas e ficavam assim, arregaadas. As mulheres normais, ele me garantiu, tinham
apenas um risco, coberto de pelo.
Quando a me do Augusto voltou com a receita da torta mousse de limo, j nos
encontrou diante da TV, com as pistolas nas mos e os olhos arregalados, tentando nos
concentrar nos patos que surgiam detrs dos arbustos.

Pela janela

Quando, l pelo fim do primeiro semestre, a caminho da perua, Marina emparelhou


comigo e, sem me olhar nem mudar o passo, me entregou o papelzinho dobrado como
se ela fosse uma combatente da Resistncia Francesa e adivinhasse em mim um
simpatizante, talvez interessado em comparecer prxima reunio clandestina , descobri
que a amava e que era correspondido.
Descobri no exatamente o termo. Afinal, bastaram alguns dias na escola nova para
saber que sentia algo por ela: s no entendia bem o qu uma vontade de sentar ao seu
lado na classe; uma tendncia a me meter atrs dela na fila do bebedor, mesmo sem
nenhuma inteno de beber gua; um prazer misterioso em espi-la de longe, no ptio,
comprando o lanche na cantina, pulando elstico, fazendo um rabo de cavalo antes de
entrar na queimada.
Nesses momentos de proximidade ou tocaia, eu oscilava: numa hora, me sentia calmo e
leve como se imerso numa banheira de gua quente; logo depois, contudo, um vento frio
me lambia dos ps ao cocuruto e se ela percebesse aquela minha mania, aquela estranha
fixao? O que iria pensar de mim? E se todos percebessem? O que iriam pensar de mim?
Passei os quarenta minutos na perua com a mo fechada, o bilhete amassado ali dentro,
as conversas, risos e gritos das outras crianas entrando por um ouvido e saindo pelo outro,
meu corao parecendo um lambari na ponta no anzol: as sstoles regidas pela glria de me
saber correspondido, as distoles pelo pnico de ser descoberto.
Mas que havia de to terrvel para ser descoberto? O que havia de vergonhoso, afinal, no
amor? Eu no sabia. Talvez uma ligao ntima com um indivduo do sexo oposto
significasse traio ao grupo dos meninos, uma atitude muito pouco mscula, como se eu
estivesse desistindo do futebol para brincar de bonecas ou pular amarelinha. Talvez a
traio no fosse de gnero, mas etria: namorar era coisa de adultos ou adolescentes e,
portanto, trazer aquele n no peito revelaria uma pretenso ridcula. No saber o que eu
temia me deixava ainda mais temeroso, de forma que s quando me vi em casa, sozinho,
no fundo do quintal, tomei coragem e abri o bilhete.
Desenhado a lpis, no alto do pequeno retngulo, um avio. Do meio do avio se abria
uma porta e, por ali, jorravam flores, pintadas a canetinha. L embaixo, de braos abertos e

sorrindo, um menino recebia a chuva colorida. Ao lado: Antonio, voc muito legal.
Assinado: Marina.
Tarde da noite, depois de muitos esboos e com uma lanterna sob o lenol para no
acordar minhas irms, consegui acabar a resposta. Ocupando quase toda a superfcie de
uma folha de papel sulfite, fiz um circo, com listras azuis, vermelhas e brancas no toldo.
No alto, o letreiro: Grande Circo Marina. Embaixo, direita, uma flechinha e a
indicao: Abra.
Na outra pgina, grampeada primeira, fiz o interior da tenda. Em cima de um
tamborete, no meio do picadeiro, uma bailarina. Em seu collant: Marina. Em torno dela,
um mgico, dois palhaos, um leo, uma foca e um elefante bradavam em bales de HQ:
Marina!. De ponta-cabea, em pleno ar, trapezistas gritavam: Marinaaaa!. Na plateia, o
pblico segurava cartazes: Viva a Marina!, Eu Marina!, Vai, Marina!. Num canto
da arquibancada, fiz um garoto sentado: um aviozinho numa mo, uma flor na outra e,
para no haver chance de equvoco, uma flecha indicando: Eu. Em cima dele, um balo:
Marina, voc tambm legal. Assinado: Antonio. Fui dormir em xtase.
Acordei em pnico. Disse minha me que no me sentia bem, estava enjoado, talvez
com febre ou gripe ou dor de barriga. Quer dizer: estava enjoado E com febre E gripe E dor
de barriga. Que tal se eu no fosse pra escola? Ela tomou minha temperatura, olhou no
fundo dos meus olhos e, com um sorriso indeciso entre o cmplice e o acusatrio, me
mandou pro banho.
Passei a manh aflito, andando pela casa, secando as mos suadas na cala de moletom.
No almoo, s mexendo a comida de um lado pro outro no prato, fiquei imaginando
pequenos eventos que, com uma boa vontade dos deuses, me impediriam de ir escola. E
se a perua quebrasse a caminho de casa? E se, melhor, ela se envolvesse num acidente, um
acidente grave, pegasse fogo? Duvido que teria aula se a perua explodisse.
O telefone tocaria, seria uma professora. Chamaria minha me. Diria que, em respeito
s vtimas, as aulas daquela tarde estavam sendo suspensas. Da semana inteira, alis. Os
professores deveriam se reunir nos prximos dias para decidir se valia a pena continuar com
a escola, depois da tragdia. Talvez fosse o caso de ir procurando vagas para mim e minhas
irms em outras instituies de ensino. Eu j estava pensando em que desculpas inventar
para no ter de ir ao enterro dos meus colegas onde, evidentemente, Marina estaria
esperando a minha resposta quando a perua buzinou, em frente de casa. Fiz todo o
trajeto agarrado mochila, como se ela fosse transparente e a carta, em luz neon, pudesse
anunciar a todos minha vergonhosa condio.
Entrei na classe e a Marina j estava em seu lugar, prximo porta, ao lado da Titina.
No tive coragem de encar-la bastariam nossas pupilas se cruzarem, eu temia, para que
fssemos desmascarados , mas reparei, de soslaio, que ela interrompia o papo com a
amiga e me seguia com os olhos, abrindo um sorriso apreensivo e esperanoso. Continuei

andando at o outro lado da sala, sentei no fundo e, ao longo do dia, fiz de tudo para no
me virar para a porta: me concentrei na lousa, na professora, na janela e no telhado da
cantina, logo abaixo; organizei obsessivamente o estojo, pondo e tirando lpis, canetas,
borracha e apontador de suas pequenas cintas elsticas, at que ficasse parecendo um estojo
arrumado pela me no primeiro dia de aula; depois o desarrumei com o mesmo afinco,
pondo a borracha no lugar do apontador, o apontador no lugar da borracha, lpis e canetas
virados um para cada lado, at ficar parecendo o estojo de um repetente um minuto antes
das frias.
O sinal do recreio tocou. Sa correndo, me enfiei num futebol na ltima das quadras e
no subi para a classe at que j estivessem todos sentados e a aula prestes a comear. A
expresso da Marina, que eu ainda captava nos arrabaldes do meu campo de viso, havia
evoludo da apreenso esperanosa para um fatalismo sombrio. Ao seu lado, a Titina
parecia tentar acalm-la, falando baixinho e de tempos em tempos olhando para mim.
Por mais duas aulas, mantive o pescoo firme e os olhos apontados para a frente, como
um cavalo em parada militar, at que o sinal da sada tocou. A Marina se levantou para ir
embora e, de p, l do outro lado da classe, me encarou por uns bons quinze segundos
uma eternidade durante a qual permaneci abaixado, simulando alguma dificuldade para
guardar as pastas na mochila. Quando ela finalmente saiu da classe, contei at cinquenta, e
s ento sa tambm.
Arrastei-me em direo perua, me sentindo o pior dos seres humanos. Pior do que no
dia em que convenci o Henrique a abrir um sapo com uma enxadada, pra ver como era
dentro. Pior do que no Natal em que arranquei, lenta e meticulosamente, todo o papel de
parede do lavabo da minha tia. Pior at do que quando, naquele mesmo Natal, a culpa pelo
papel de parede recaiu sobre um primo de trs anos, incapaz de se defender e cujo choro,
inconformado, foi interpretado pela famlia como inequvoca confisso. Nesse estado
deplorvel eu entraria na Kombi, chegaria em casa e pediria minha me para me trocar
de escola, no fosse uma mo me puxando pela camiseta, quase rasgando a gola em meu
pescoo. Virei e dei com a Titina: A Marina t te esperando atrs do brinquedo. Era uma
ordem e eu obedeci.
Cheguei ofegante. Olhei em volta: s havia ns dois. No dissemos nada, pus a mochila
no banco, abri, entreguei a carta, vi os olhos da Marina emergirem do fundo de um
pntano e serem inundados pelo sol, sa correndo.
Foi uma noite estranha. Por um lado, sentia meu corpo boiando naquela banheira
morna e a banheira planando em cima das nuvens , mas, como num desenho
animado, assim que percebia o vazio embaixo dos meus ps, despencava no abismo.
Na manh seguinte, outra vez, ensaiei o golpe do no estou me sentindo bem, mas se
j no funcionara na vspera, agora, reincidente, que no iria colar. Na perua tentava me

acalmar: eu j havia feito a minha parte, respondendo o bilhete, certo? No se esperava de


mim qualquer atitude. Era s chegar l e agir naturalmente. A Marina no seria louca de
contar para todo mundo, de colar meu desenho na lousa, preg-lo no mural de cortia ou
algo do gnero. O maior perigo era que a informao chegasse aos meninos, mas como
chegaria? Eram mundos estanques, opostos, havia um muro de desprezo e hostilidades
entre ns.
Como na vspera, quando cheguei a Marina j estava em seu lugar, ali na frente. Ela me
sorriu, fiz que no era comigo: mirei a janela, atravessei a sala como um alazo em Sete de
Setembro e me sentei no fundo. O dia foi passando, ela de um lado, eu do outro: vimos um
fssil de peixe na aula de cincias; treinamos o uso do S, do X e da cedilha, em portugus;
jogamos handebol na educao fsica, logo depois do recreio.
A ltima aula era de matemtica. A professora distribuiu umas peas de madeira:
cubinhos, barrinhas, plaquinhas e o cubo. A barrinha era composta por dez cubinhos,
colados. As plaquinhas, por dez barrinhas; e o cubo, por dez plaquinhas. A professora
pediu que formssemos grupos de quatro. Com medo de que a Marina me chamasse e, na
frente de outras duas pessoas, tocasse no assunto proibido, me associei correndo aos
meninos mais prximos, juntamos as mesas e o trabalho comeou. Na lousa, as perguntas
foram escritas. Se tirarmos trs cubinhos de uma barrinha, quantos cubinhos sobram?,
Se uma barrinha tem dez cubinhos, quantos cubinhos tm duas barrinhas?, Quantos
cubinhos tem um cubo menos sete cubinhos?, assim por diante.
Ao ver que os alunos mais previdentes ou afobados j iam guardando o material em suas
mochilas e que a aula se aproximava do fim, fui tomado por uma sbita tranquilidade: o
pior havia passado, a cada dia estaramos mais longe dos bilhetes, menores seriam as
chances de que algo desse errado, em breve eu poderia voltar minha rotina de admirador
secreto, de observador distante ento a Titina se levantou.
Enquanto caminhava em nossa direo, torci para que fosse apenas entregar os exerccios
professora, mas ela passou direto pelo meio da classe e seguiu caminhando. Concentreime nos cubinhos, nas barrinhas, no cubo, disse alguma coisa sobre a resposta da questo
trs, sugeri que refizssemos a conta, como se o trabalho fosse um buraco no qual eu
pudesse enfiar a cabea, fugindo da Titina e do que quer que ela pretendesse comigo.
Infelizmente, minha estratgia saiu pela culatra: vendo-me to entretido no exerccio,
em vez de entregar em mos o bilhete que trazia, largou-o em cima da minha mesa e saiu
andando. Meus olhos alcanaram o pequeno retngulo de papel junto com os dos meus
colegas, e, percebendo a curiosidade em seus rostos, fiz a primeira coisa que me passou pela
cabea ou melhor, que no me passou: num reflexo dos mais irrefletidos, arremessei o
bilhete pela janela. Os trs deram um salto e se debruaram sobre o beiral, j alardeando
aos quatro ventos: A Titina mandou uma cartinha pro Antonio! O Antonio jogou a
cartinha fora!. Num pulo, meti meu corpo entre eles, antes que o resto da classe chegasse

para assistir minha desgraa e ali estava ela, sobre o telhado da cantina, a um metro de
ns. Para meu azar, ou talvez por castigo dos deuses, o papelzinho cara meio aberto: do
lado de fora, quarenta olhos famintos conseguiam ler:
De: Marina
Para: Antonio
Dentro, do lado direito, exposta visitao pblica:
Quer namorar comigo?
Sim
No
Talvez. Vou pensar.
Todos gritavam e gargalhavam, mas eu no era capaz de ouvir nada, s via as goelas
escancaradas, os dentes, as lnguas e os dedos apontando ora para mim, ora para Marina.
Na frente, a professora batia o apagador na lousa, gesticulava, aflita, e eu lia Silncio!
Silncio!, em seus lbios. L do outro lado, a Titina me encarava com dio e a Marina
chorava. Eu preferiria que fosse um choro de raiva, que ela me xingasse ou me agredisse,
que sua ira desabasse sobre a minha cabea como os cus nos piores temores do Asterix,
pois j estaria a o incio de minha punio e com ela a esperana de um dia, l adiante,
quem sabe, a absolvio, mas no: era um choro manso, triste.
O sinal tocou. A Titina recolheu o material da amiga, pegou-a pela mo e saram
apressadas pelo corredor. Eu pensei em ir atrs, mas o que poderia argumentar em minha
defesa, agora que o estrago havia sido feito, que a classe uivava como num motim de
piratas, que dez garotos, com meio corpo para fora da janela, tentavam pescar com rguas e
compassos o pedido de namoro para, quem sabe, preg-lo no mural, para col-lo em minha
testa ou para que fosse anexado aos autos do meu processo, no dia do juzo final?
Naquela noite, tive pela primeira vez um sonho que se repetiu at o fim da infncia, me
seguiu pela adolescncia e ainda hoje, vez ou outra, volta para me visitar. Eu acordo, saio
de casa, pego a perua, deso na escola, cruzo o ptio, subo a escada, entro na classe, paro
diante dos meus colegas e fico ali, em p, pelo que parece ser muito, muito tempo, todos
me olhando em silncio e eu esperando o momento em que se daro conta do que,
surpreendentemente, demoram tanto a perceber: que eu estou nu; nu, de botas.

MARIO PRATA E LUIS GES

ANTONIO PRATA nasceu em So Paulo, em 1977. Tem dez livros publicados, entre
eles Meio intelectual, meio de esquerda (crnicas) e Felizes quase sempre (infantil,
ilustrado por Laerte), ambos pela Editora 34. Escreve roteiros para televiso e cinema
e mantm uma coluna no jornal Folha de S.Paulo, aos domingos.

Copyright 2013 by Antonio Prata


Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua
Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Capa
Alceu Chiesorin Nunes
Foto de capa
John Smith/ Corbis/ Latinstock
Preparao
Leny Cordeiro
Reviso
Valquria Della Pozza
Carmen T. S. Costa
ISBN 978-85-8086-851-7

Todos os direitos desta edio reservados


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