Aos 7 e Aos 40 - Joao Luis Anzanello Carrascoza PDF
Aos 7 e Aos 40 - Joao Luis Anzanello Carrascoza PDF
Aos 7 e Aos 40 - Joao Luis Anzanello Carrascoza PDF
Sobre a obra:
Sobre ns:
Meu pai ficava o dia inteiro ausente, trabalhando. Viajava muito; s vezes
passava dias fora de casa. Aparecia l pelas oito da noite, cansado, sujo, mas
sorrindo. Quase sempre chegava fedendo a suor. Tinha que descarregar
mercadoria pesada. Eu e meu irmo gostvamos de nos sentar ao seu lado,
enquanto minha me servia o jantar. Ela esquentava a comida em banho-maria e
ele ia comendo po com azeite, perguntando pra gente como estvamos indo na
escola. Contava sobre o trabalho e, quando minha me no estava por perto,
perguntava se l embaixo j estavam crescendo pelos.
Depois que comia, sentava-se ao lado de minha me no sof. A gente ficava
at as nove horas, ligados na tev e na prosa deles: mais estudantes haviam
desaparecido, era um falso milagre econmico, o homem tinha mesmo chegado
Lua? Era bom ver que os dois se queriam, ns ali juntos, uma famlia assim
eu queria que fosse, sempre. Mas, de repente, j pra cama, o pai dizia, e, da em
diante, no tinha mais conversa, nem programa pra criana ver.
Numa manh de sol aconteceu comigo e com ele uma coisa, dessas que a
gente no fala nunca mais, mesmo depois de muitos anos aquilo fica em segredo.
Eu estava de frias, jogando bola com meu irmo no quintal, quando
ouvimos ele chamar. Falou se a gente no queria ir com ele trabalhar, j que no
estvamos fazendo nada mesmo, ia ser rpido. Eu logo pensei que minha me
devia ter falado que passvamos o dia desarrumando a casa e que as nossas
frias eram o tormento dela, e, portanto, que carregasse a gente com ele. Meu
irmo disse que ia ajudar o tio Zezo a consertar o telhado l na casa dele. Eu
falei, Eu vou. Gostava de sair com meu pai, ele ficava o tempo todo entrando e
saindo de armazns. Subimos na perua Kombi e meu pai gritou, Vamos voltar pro
almoo, minha me abanou a mo, sabia que ele prometia, mas nunca chegava
na hora.
Deu a partida e falou que amos num armazm, no demoraramos nada.
Falou que a me dizia que eu estava muito quieto, saa aos sbados sozinho, no
me juntava aos amigos. Ento, perguntou se eu tinha brigado com algum deles,
se algum tinha zombado de mim e por isso eu me isolara. Engoli seco, eu
gostava de falar besteira com meu pai, ouvir o jogo do Corinthians com a orelha
pregada no rdio, gritar filho da puta quando algum da zaga furava ou quando
um atacante perdia o gol, e aqueles assuntos me incomodavam. Meio
gaguejando eu disse que no, eu gostava mesmo de andar sozinho pelas ruas e, s
vezes, me encontrava com o Paulinho, o Lucas, a a gente ia tomar uma Coca-
Cola no Bar do Ponto, ele podia perguntar pro Seu Man que era conhecido dele.
Meu pai sorriu, satisfeito, seus olhos faiscaram, e ele tornou a dizer que se fosse
qualquer problema com amigo eu podia contar.
O sol das onze da manh batia no vidro da Kombi. Passamos pela igreja
matriz, pela sorveteria na rua Quinze, e, quando chegou numa esquina, meu pai
estacionou. Vamos l, ele disse, em meia hora a gente resolve o negcio. Desceu,
abriu a porta detrs, remexeu numas mercadorias que estavam ali espalhadas,
pegou a bolsa e fechou a porta.
Era um secos e molhados muito velho, com largas portas de madeira, um
casaro escuro e na hora eu gostei porque era meio estranho. A gente entrou e
todo mundo acenou pro meu pai. Os homens o cumprimentaram com abraos
fortes e tapas nas costas que estrondavam. Meu pai pediu um Guaran pra mim e
uma Caracu pra ele. Eu peguei o Guaran e fui circular pelo armazm. Tinha
um monte de coisas que eu gostava: mastigar amendoim cru, cuspir arroz
fazendo pontaria, mexer nas ferramentas e nos chapus. Os homens estavam
tratando de negcios e eu fiquei longe pra no atrapalhar. J tinha ido com meu
pai a muitos lugares e sabia que quando ele queria falar de negcio, no gostava
que eu ficasse por perto pedindo isso e aquilo.
O secos e molhados era um mundo, enorme, eu me perdi l dentro. Gostei
de circular de um canto a outro, mas j tinha quebrado um vaso, roubado um
punhado de quirela pra dar s pombas, tinha lido os rtulos de uma poro de
produtos e a conversa l no terminava. Percebi que as vozes se alteravam e
escutei a do meu pai apertada, mais baixa que as outras. No sei por que, em vez
de ver o que estava acontecendo, me escondi atrs das prateleiras e tentei ouvir o
que eles diziam. No entendi nada, mas pelo tom da conversa, percebi que meu
pai estava triste. Os homens gargalharam, assobiaram e no ouvi ele dizer mais
nada. Andei devagar, espreitando, ao redor dos sacos de acar e vassouras de
piaava, e vi meu pai encolhido, o sorriso longe de seus lbios, ento senti que os
homens estavam zombando dele. Me deu uma coisa por dentro, tive vontade de
quebrar os vidros e chutar as latas que vi pela frente. O dono do armazm,
cigarro pendurado na boca, sorriu, anotou qualquer coisa num saco de papel e
enfiou a caneta sobre a orelha. Tinha uma cara feia e, ao mesmo tempo, me deu
raiva e d dele. Vivia no meio daquele lugar que fedia a sabo e fumo enrolado,
e na certa estava querendo passar a perna na gente. Os outros homens coavam
o saco, bebiam pinga, comiam salsicha e arrotavam. Eu pensei, esses caras vo
passar mal, comendo essas porcarias. Mas ento eu fui junto do meu pai, at
pensei que ia ralhar comigo, mas ele me abraou e no disse nada. Os homens
silenciaram e logo comearam a discutir futebol. Devolvi a garrafa de Guaran
no balco e olhei com raiva pro dono. Acho que o homem percebeu, porque
ficou sem graa. Meu pai disse, Vamos, t na hora, e pagou a conta, o homem
ainda falou que no dava dessa vez, a mercadoria no era boa, que ele
compreendesse.
Samos. Antes de chegar na Kombi, olhei de rabo de olho e vi, surpreso, que
meu pai estava chorando. Na hora eu achei que seria melhor no olhar, at
procurei fingir, pra ele se controlar. Eu senti que ele se envergonharia se eu
percebesse. Andamos depressa, a grande mo dele no meu ombro, num toque
leve, um carinho resignado. Como quem no quer nada, fiz que estava atento ao
movimento das ruas, mas vi a dor cobrindo o rosto dele quando o sol cintilou em
seus olhos.
PARA SEMPRE
Naquele dia, o filho iria voltar, depois de uma longa viagem, embora
no fosse to longa assim, e ele, pai, esperava, com euforia (tamanha era a
sua intensidade, que ningum perceberia), a hora em que o menino
atravessaria a porta de sua casa, feito um sol, mais alto e belo e forte do que
da ltima vez, e, ento, se abraariam, quase como se estivessem recebendo
a si mesmos, iguais eles eram em muitos aspectos, e, sobretudo, l
em suas guas profundas, na ternura que sentiam (e na vergonha de
express-la, mesmo se com os dedos entre os cabelos), na ternura to
sincera, e, por isso, cortante!
Como no viviam juntos, era o menino e a me a semana toda, restava
ao pai apenas os sbados e os domingos, no dia a dia ele sentia saudade, e
ela s serenava quando se reviam o tempo de convivncia, apesar de
curto, era to feliz que at lhe doa , mas, antes mesmo de levar o filho de
volta casa da me, nas tardes de domingo, a saudade j voltava,
reinstalando-se no seu canto, como uma cicatriz, mostra.
Naquele dia, o menino retornava de sua mais longa viagem, o ms
inteiro fora da cidade, e ele, pai,
sentia-se todo vazio, pronto para se transbordar do filho, e faminto para
comer, avidamente, a sua presena.
A hora, enfim, chegara, depois de muitos dias se despejarem em
outros, misturando memrias frescas com antigas, no ritmo natural das
coisas vivas, to natural que ocultava a certeza de que, a qualquer hora,
poderia cessar, subitamente.
Tanto que, ao ver o filho porta do apartamento, seu corao comeou
a bater macio, como se enganasse o perigo que o impedia de se afogar
naquela felicidade.
O mundo lhe parecia simples, os reencontros
possveis,
nem se dava conta do milagre que o universo produzia para acontecer,
entre um homem e seu filho, uns atos banais.
Mas, se reconhecera aquele que sua frente aparecia, alguns traos
eram idnticos aos seus outros, menos aparentes, da me , surpreendeu-
se ao flagrar no menino, nitidamente, o homem que nele se prenunciava, e
tal foi o seu espanto, talvez por estar habituado a ver nos homens o menino
que continham, assim como via em si, sempre, o garoto que fora um dia
que o filho percebeu e perguntou, O que foi, pai?, e ele, de volta ao agora,
(era a saudade) respondeu, Nada,
e, ento, os dois se abraaram, timidamente, o amor maior do que esse
enlace.
Naquele dia, ele queria que o menino soubesse, como se fosse capaz de
entender que, abaixo das palavras ditas, h sempre outras, silenciadas, que
as desmentem, o quanto estava grato pelo seu retorno, e, por isso, s lhe
ocorreu perguntar como tinham sido aquelas frias, o que ele havia feito de
mais divertido, o que vira de bonito no stio do av, dizendo, com as palavras
de cima, o que desejava que dissessem as de baixo, e o menino, tambm
contente por estar de volta, por ter o pai que tinha, e o ter quela hora, ali,
mo, foi respondendo, Foram timas,
o banho de lama,
os passarinhos!,
aprendendo, sem notar de imediato, que ele fazia o mesmo, deixava
nas palavras de baixo o que sentia e, nas de cima, o que o pai queria ouvir, E
a cavalo, voc andou?,
Andei,
Nadou na represa?,
S uma vez,
O seu av est bem?,
Est,
e, nesse vai de perguntas e vem de respostas, foram se reacomodando,
o filho no filho dentro do pai, o pai no pai dentro do filho, at que se
coincidissem, para, em seguida, habituados muda cumplicidade, fossem
fazer as coisas menores o menino a levar a mochila para o quarto, o pai a
colocar na mesinha uns petiscos , enquanto as coisas maiores eram feitas,
imperceptivelmente, no vo delas.
Aquele dia, que antes era uma promessa, agora fabricava a realidade
no pai, ele flamejava, por ter junto de si o filho, ntegro, raiando depois de
sua muita ausncia, dava-lhe vontade de se alargar, de ser imoderado com a
vida, ao mesmo tempo que lhe era penoso, mais do que suportar a falta do
menino, deter esse sentimento que experimentava o instantneo regozijo.
Depois, enquanto o filho estava no banheiro, foi pegar o pequeno
pacote, um presente, guardado h semanas, o game que o menino sonhava,
e esse, antes de abri-lo, quando sala retornaram, s pelo tamanho e
formato, adivinhou o que era, e disse, Obrigado, obrigado, pai!
e o disse com tanta verdade, que parecia at um exagero para o
instante, ou para o tamanho da surpresa, mas, sem que soubesse, com essa
nfase, estava dando tambm ao pai uma ddiva, estava se dando a ele, e
era s o que o homem precisava e tudo o que o menino podia dar.
Sentaram-se no sof, diante da mesinha, e continuaram a conversar,
revezando-se em se servir do po, do queijo, da azeitona, os dois
apreciavam essa hora, de partilhar a refeio, quando, frente a frente,
comiam e falavam de si e do mundo, mais fcil era disfarar a outra fome,
e mais leve se tornava o peso de certos assuntos, Quando comeam as
aulas?,
Segunda-feira,
E a sua me?,
Ela t bem.
Enquanto se adaptavam, esse companhia daquele, vieram outros
assuntos, gerais ou s dos dois, e, pela comunho que urdiam com as
palavras, foram se deixando ser quem de fato eram, pai e filho de volta um
para o outro, esquecidos de que um dia no estariam mais ali, de que no
seriam, no minuto seguinte, os mesmos de agora.
Depois de algum tempo, as vozes se alternando
com o silncio, to juntos estavam que podiam
se dispersar,
e, assim fizeram, o filho ligou a tev, o pai foi jogar o lixo l fora e, ao
retornar e ver o menino espichado no sof, assistindo a um jogo de futebol,
alegrou-se, quietamente, o filho no agia mais como visita, a casa do pai era
tambm a casa dele.
Outros atos vieram lhes chamar vida, cada um, abastecido do outro,
j podia fazer, sem culpa, na sua aparente solido, o que o momento lhe
pedia, tomar banho o menino, ler a bula de um remdio o pai, ir
sacada o menino, pagar contas pela internet o pai, escolher um filme
para ver os dois, lado a lado,
os olhos sobrevoando a pgina do jornal.
Naquele dia, o sol, fiel sua agenda, se foi da cidade quase sem
pssaros, quando a lua, crescente, apontava no cu, para que eles fizessem
outras coisas, igualmente esquecveis, como so quase todas, mas que eram,
ento, as suas preferidas, pai e filho misturando as vidas, as palavras de
baixo ocupando o lugar das de cima.
Continuaram realizando, sob o mesmo teto, seus pequenos feitos, juntos,
ou individualmente, at que a noite chegou e, depois de comerem pizza, de
assistirem ao filme escolhido e comentarem uns fatos no intervalo
comercial, eles no tinham mais o que fazer, seno dar corda ao sono.
Ento, foram se deitar.
Durma bem, filho,
At amanh, pai.
De olhos fechados, no escuro, o homem ficou pensando em seu
menino.
Estava to perto, no quarto ao lado.
Podia ouvir o som suave de sua respirao.
Sentia o filho aceso, dentro de sua vida. Mas, sem saber porqu, a
saudade continuava crescendo nele, crescendo como a Lua l fora.
FIM
Com este livro, joo anzanello carrascoza chega maturidade de sua obra
literria. no apenas pela consolidao de um universo ficcional prprio de
personagens revisitados, alternncia do espao urbano com o campestre,
abordagem de relaes familiares e primeiras experincias mas por ousar uma
nova estrutura narrativa. aos 7 e aos 40 pode ser considerado o primeiro romance
do autor. em forma de duas histrias, acompanhamos o personagem aos sete e
aos quarenta anos. os captulos intercalados de cada fase da vida so
independentes entre si contam duas histrias , mas, ao mesmo tempo, esto
interligados pelos fatos da infncia que reverberam na fase adulta.
Carrascoza nasceu na cidade de Cravinhos, interior de So Paulo (sp).
Formou-se em comunicao social na Escola de Comunicao e Artes da
Universidade de So Paulo e trabalhou durante anos como redator publicitrio.
Em 1994, publicou seu primeiro livro, Hotel solido, com o qual venceu o
Concurso Nacional de Contos do Paran.
Recebeu outros prmios (Radio France Internationale, Jabuti e Ea de
Queiroz) e publicou mais de vinte livros, como O vaso azul (tica, 1998), Duas
tardes (Boitempo, 2002), O volume do silncio (Cosac Naify, 2006), Espinhos e
alfinetes (Record, 2010) e Aquela gua toda (Cosac Naify, 2012)[*], entre outros.
O volume do silncio, cuja apresentao do crtico literrio Alfredo Bosi,
ganhou uma edio espanhola (Baile del Sol, 2011). Aquela gua toda, ilustrado
por Ley a Mira Brander, recebeu o prmio da Associao Paulista de Crticos de
Arte (APCA) na categoria Contos Crnicas Reportagens, os prmios de Melhor
livro juvenil e Ilustrador revelao da Fundao Nacional do Livro Infantil e
Juvenil (FNLIJ) e foi selecionado para o catlogo White Ravens da Internationale
Jugendbibliothek Mnchen (Alemanha). Os direitos da obra foram vendidos para
a editora suia La Joie de Lire.
Alguns de seus contos tambm apareceram em antologias na Itlia, na
Frana, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Sucia, na ndia e pela Amrica
Latina.