A Impureza Da Minha Mao Esquerd - Henry Bugalho PDF

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A Impureza da Minha Mão Esquerda

Henry Alfred Bugalho


Nostalgia
A Impureza da minha Mão Esquerda

O Canhoto. Este é um dos nomes do diabo. E este era o meu apelido


na escola: o Canhoto.
Em uma sala com trinta alunos, eu era o único a escrever com a mão
esquerda. O único invertido. O único do avesso.
Você bate punheta com a canhota também? Me perguntavam. Eu ria,
mas não respondia. (Não, batia com a mão direita mesmo). No futebol,
ninguém me passava a bola.
Mas Garrincha era canhoto. Eu discutia depois da partida.
Que se foda o Garrincha! Você é o maior perna de pau.
Era um tipo de discriminação sutil e que eu nem sabia ser
discriminação. Não era o tipo de coisa que faziam com que as pessoas me
apontassem na rua, como ocorria com o Bambi, o bicha da minha turma; nem
que me batessem no recreio, como vi várias vezes com o Tiziu, aquele
“neguinho fedido” segundo os meus colegas; nem que levasse os meninos a
passarem a mão em mim, como com a Tati, a “vagabunda” que todos tinham
catado; nem que fosse motivo de piadas diárias, como a Rafa, que tinha a
mãe desquitada.
Já adulto, não perderia ofertas de trabalho por causa disto, nem
levaria uma dura da polícia, nem seria morto, nem preso, nem linchado. Ser
canhoto era um pecado leve num mundo repleto de pecados muitos maiores e
muito mais visíveis.
O meu problema de fato era entre eu, Deus e o diabo. O Canhoto-
mor.
Eu jurava que o diabo vivia debaixo da minha cama. Ouvia na missa
as histórias das tentações, de Jó repleto de chagas, da serpente no Paraíso e de
Satanás aprisionado por mil anos (Apocalipse 20:7). A minha credulidade
estúpida hoje me parece absurda, mas, naquele tempo, eu escutava o Canhoto
respirando e revirando-se embaixo da minha cama à noite. Revaza muitos
Pai-Nossos e incontáveis Aves-Marias, mas ele não se silenciava.
Às vezes, ouvia-o até sussurrando.
Você é como eu, decaído.
Mas eu não conseguia compreender como. Frequentava a igreja
todos os domingos, comia hóstia e me confessava. Tentava ser um bom filho,
lavando a louça até quando minha mãe não pedia. Não fazia nada para
incomodar ninguém.
Então, uma noite, o diabo embaixo da cama me ordenou.
É hora. Agora é o momento de me servir. E ele me deu todas as
instruções.
Levantei-me da cama e fui até a cozinha. Na gaveta, encontrei a faca
mais afiada, que meu pai usava para o churrasco com os amigos, segurei com
força o seu cabo em minha mão esquerda e caminhei até o quarto onde ele e
mamãe dormiam. Abri uma fresta na porta e os números vermelhos do
despertador digital era tudo que se via na escuridão. Era tarde. Meu pai
roncava e minha mãe se mexeu na cama. A palma da mão esquerda suando
na faca afiada.
Eu os amava? Mais ou menos. Eram meus pais, mas tínhamos nada
em comum. Ele, sempre muito distante e grosseiro; ela, uma pessoa fraca e
sem personalidade. Uma família disfuncional como todas as demais, foi o que
descobri muitos anos depois.
O Canhoto guiava a minha mão esquerda. Sabe-se lá por que queria
assistir-me vertendo o sangue dos meus, um holocausto ao Senhor das
Trevas.
Como teria sido o meu futuro se eu os houvesse matado naquela
noite?
A prisão e a desgraça, sem dúvida. E um remorso irreversível.
Quero pensar que isto foi um pesadelo freudiano, que, na verdade,
foi apenas um delírio, mas eu sei o quanto me segurei para não dar aqueles
passos quarto adentro e cravar a lâmina nos pescoços deles.
Não sou um assassino. Foi assim a longa conversa que tive com o
diabo ao retornar para a minha cama. Ele gargalhava lá embaixo, zombando
de mim.
Nunca mais apareceu.
No ano seguinte, o apelido de Canhoto deu lugar para o de Quatro
Olhos. Estava com miopia e todos zombavam dos meus óculos com grossa
armação preta. Depois me tornei o Nerd. Enfim, me tornei eu mesmo.
Mês passado, contei esta história para a minha esposa. Primeiro, ela
não acreditou em mim, mas, depois de ponderar por alguns instantes, ela me
disse.
Você está brincando, não está?
Não.
Você tem ideia de como isto é macabro?
Sim.
E não tocamos mais no assunto. Então, ontem, ela foi embora
levando consigo a nossa filha. Sem dizer nada. Mas entendi as razões e os
medos dela.
Eu sou o Canhoto. Eu sou invertido. Carrego dentro de mim este
pequeno, porém aterrorizante, pecado.

Fiorenzuola D’Arda
Agosto de 2017
Cotó descobre a liberdade

Num canto esquecido no quintal da minha vó, atrás das bananeiras,


agitava-se Cotó. Amarrado no chiqueiro com uma corda de varal, ele latia
desesperado, suplicando atenção, uma mão para afagá-lo.
Mas nós não chegávamos perto, e nem era por causa das sarnas e
carrapatos, ou da constante baba branca a escorrer, ou das demais perebas
que não víamos, era apenas para não sujarmos a roupa limpinha, que Cotó
insistia em macular com suas patas avermelhadas de terra.
Eu até gostaria de brincar com ele, desatar-lhe o nó que feria sua
garganta e vê-lo correndo livre pelo quintal, latindo de felicidade, não a
mendigar carinho, mas vovó não deixava. Nossa obrigação era apenas jogar a
vasilha com angu diante de Cotó e voltar pra casa.
À noite, Cotó chorava. Eu não podia vê-lo pela janela, mas escutá-lo
era uma dor no coração. Revoltei-me. De pijamas, deixei a casa, no escuro, e
fui até o cativeiro de Cotó. Ousei me aproximar e recebi patadas na altura do
peito e lambidas na cara, acarinhei-lhe o pescoço e o desprendi da amarra.
Cotó ficou como que paralisado, nunca havia sido livre antes, não entendia o
significado disto; a ausência de laço o amedrontava.
— Vai, Cotó, vai embora!
Mas o burro do cachorro apenas me olhava, pedindo carinho.
Foi quando tive a brilhante ideia, apanhei um pedaço de pau e
mostrei a Cotó:
— Pega, Cotó! — e arremessei o pau, o mais longe que pude.
Instintivamente, Cotó se precipitou atrás do brinquedo. Segundos depois,
retornava, objeto na boca, toco de rabo abanando.
— Vai, Cotó, pega! — e, com mais força, lancei a madeira, que
desapareceu na escuridão. Esperei alguns minutos, mas Cotó não voltava.
Finalmente, ele havia sentido o gosto da liberdade e fugira pelo mundo afora,
descobrindo coisas que nunca havia imaginado.
Na manhã seguinte, ouvi minha vó conversando com alguém na
cozinha:
— Era um cachorro desgramado mesmo!
Foi quando descobri que Cotó, na noite anterior, ao encalçar o pau,
havia corrido para a rua e acabou atropelado por um Fusca.
De libertador, passei a assassino. Daquele dia em diante, comecei a
entender Robespierres, Napoleões, Che Guevaras e Cristos; o fardo da
liberdade é monumental e dele jamais realmente nos libertamos.
O Moedor de Café

Não gosto de café. Não bebo. Nem uma única gota. E não se trata
apenas do gosto, até o cheiro me causa aversão.
Isto vem de longa data; lembro-me de quando eu era criança e, na
casa de amigos, na hora do lanchinho da tarde, as mães deles preparavam a
mesa e nos serviam, e da minha cara quando elas enchiam meu copo com
café.
— Não toma?
E eu negava com a cabeça. Então, elas rapidamente trocavam meu
copo por outro, enchiam-no com leite e novamente aquela expressão de
repulsa na minha cara.
— Também não toma?
— Só com Nescau — eu respondia, o que as obrigavam a procurar
no fundo de algum armário, resmungando, por aquele pote de Nescau ou
Toddy já vencido de tão velho.
Isto também me causava embaraços durante o tempo que morei na
Europa. Toda vez que eu recusava uma xícara de café colombiano — dizem
que é excelente — ou um cappuccino, imediatamente fulminavam-me com os
olhos, como se eu houvesse proferido alguma heresia e o papa estivesse
prestes a me excomungar por isto.
— Não gosto, porra, simples assim!
— Brasileiro que não gosta de café não existe — retrucavam.
“Eu existo, logo brasileiro que não gosta de café também”, lógica
elementar.
No entanto, paradoxalmente, um dos meus grandes prazeres quando
eu contava uns dez anos era, ao irmos para a casa de minha vó no interior,
moer café.
Talvez você nunca tenha visto um antigo moedor de café na vida, eu
mesmo não o teria se não fosse por causa destas viagens, mas o princípio é
simples: é um aparelho de ferro, fixo numa mesa, com uma entrada no topo
semelhante a um funil, uma manivela que aciona uma engrenagem para
triturar o café torrado, e uma abertura no fundo, de onde se recolhe o pó.
Então, toda vez que minha vó perguntava:
— Quem quer moer o café?
Eu logo erguia a mão, apanhava o bocado de grãos torrados e corria
para um galpão atrás da casa, onde ficava o moedor. Meus primos e primas se
deliciavam com este período de folga, porque durante a minha breve visita
eles se viam livres desta obrigação diária.
E era neste mesmo depósito que ficavam armazenadas sacas e mais
sacas de café, cuja existência nunca compreendi. Não sabia se eram para ser
revendidas, ou apenas para consumo próprio, mesmo que fosse impossível
para uma única família beber tanto café na vida.
Sozinho naquele depósito sujo, úmido, escuro, cheio de teias de
aranha e, pelo que meus primos me diziam, de onde era muito fácil sair
apinhado de piolhos, eu girava a manivela, imerso no cheiro de café torrado
que subia do moedor.
Este divertimento perdurou até uns treze anos, mas depois disto, eu
só continuei perfazendo-o porque não conseguia contrariar minha avó que, ao
abrir um sorrisão que quase arremessava sua dentadura pra fora, perguntava,
fitando-me:
— Quem quer moer o café?
E já antecipando minha resposta, ela me estendia o saco de café e,
constrangido, eu me via forçado a ir para o galpão moê-lo, não sem antes
ouvir os risinhos dos primos e os cochichos:
— Se ferrou!

Era aniversário de quatorze anos de um dos primos e toda a


vizinhança foi convidada para a casa da minha vó. Não era exatamente uma
superprodução de festa; minha vó sempre foi muito humilde — apesar de eu
ter ouvido que ela tinha umas quinhentas cabeças de gado pastando numa de
suas fazendas —, por isto, ela fazia questão de que tudo fosse muito simples.
As minhas tias assumiam o papel de quituteiras, enrolando
brigadeiros, beijinhos e fritando um punhado de coxinhas. Minha mãe, que
não tinha talento algum para a cozinha, organizava a piazada para os
preparativos: encher bexigas, arrumar as mesas no quintal, enxotava os
menorzinhos que filavam uns docinhos, ou mandava as primas para o banho.
Meu primo, que já emanava ares de adultos — um ralo bigode e, segundo ele,
um razoável chumaço de pentelhos —, achava toda aquela balbúrdia ridícula.
— Pô, mãe, eu não sou mais criança! Pra que bexiga?
Uma das provas de que ele não se sentia mais criança se via nas
convidadas; logo avistamos uma revoada de meninas chegando pela rua,
vindo em direção à casa de minha vó.
A presença de garotas, ainda mais garotas de nossa idade, atiçou toda
a molecada.
— É hoje que vou me dar bem! — cada um dizia para si, mesmo que
muitos não tivessem coragem de se aproximarem delas. Por outro lado, eu
ainda me sentia o mais inexperiente de todos ali, apesar de ser um pouco mais
velho do que eles. Quase todos os meus primos já haviam perdido a
virgindade, alguns com menininhas do sítio, outros com putas mesmo,
encorajados por seus pais. Apenas os mais novos, menores de doze anos, e eu
é que ainda estávamos na fila para sermos descabaçados.
O aniversariante veio até mim e me disse:
— Está vendo aquela ali? Diz que viu você na missa ontem. Vai lá,
rapaz, que ela é facinha.
— Sério?
— Sim. Todo mundo já traçou a Rafinha. É só chegar que ela dá.
E esta última frase foi fatal para mim. Minhas pernas começaram a
tremer e eu fiquei tão aterrorizado, que eu passei a vagar pelos cantos da
festa, só me expondo para ir catar uns salgadinhos.
Foi numa destas oportunidades que Rafinha me abordou.
— Oi? — ela molhou os lábios e mexeu no cabelo.
Não me lembro o que respondi, mas gaguejei e ela riu.
— Você é tão bonitinho — ela disse.
Quando percebi, já nos atracávamos atrás de uma árvore no quintal.
Eu não era o rapaz mais experiente do mundo, mas já havia pegado nuns
peitinhos antes. No entanto, logo estes meus poucos truques se esgotaram. Eu
estava muito excitado, mas não tinha muita certeza de até onde poderia ir.
Novamente, a iniciativa foi de Rafinha:
— Vamos pr’um lugar mais calmo?
E, num reflexo, pensei no depósito: lugar mais calmo não havia.
Foi naquele canto escuro, úmido, teias de aranhas — quiçá, piolhos!
—, atrás das sacas de café, que meu suor se misturou com o de Rafinha, que
pela primeira vez me senti dentro de uma mulher.
Há momentos que mudam a vida duma pessoa: de alguns deles não
nos lembramos, nem temos como: a data de nosso nascimento, nossas
primeiras palavras ditas, a primeira vez que nos espantamos diante do nascer
do sol, e talvez o dia de nossa morte, pois não sabemos se há algo para além
ou se é meramente o fim; mas há também aqueles inesquecíveis: o primeiro
dia na escola, aquele Natal no qual descobrimos que Papai Noel não existe, o
dia em que passamos no vestibular, a aquisição do primeiro carro, o
nascimento dos filhos, a morte de nossos pais... Eu e Rafinha, corpos nus
entrelaçados, é uma destas lembranças.
Eu me apaixonei por ela, adoeci de amor. Voltei para minha cidade e
tudo me trazia a memória daquela noite. Ao chegar em casa, depois da aula,
eu me jogava na cama, punha um CD de Johnny Rivers, e sonhava acordado,
angustiado, aborrecido, oprimido pela saudade. À noite, antes de dormir, o
desejo me consumia. As horas se arrastavam. Tinha de acordar cedo e o
relógio na cabeceira indicava três horas da manhã. Batia uma punheta
assistindo aqueles filmes eróticos da madrugada e, por mais aquele dia, eu
vivia sem Rafinha.
O passar dos meses foi uma eternidade. Só retornaria à casa de
minha avó para as férias do fim de ano. De julho a dezembro, um, dois, três,
quatro meses. Mas o tempo simplesmente havia parado e, no meu peito, uma
paixão como eu nunca sentira antes.
Minha mãe comprou as passagens de ônibus e pude respirar aliviado,
faltavam apenas mais alguns dias.
Chegamos à minha vó de manhã bem cedo. Todos acordaram para
nos receber, como era de praxe. Vovó preparou um café para a gente, leite
com Nescau pra mim, é óbvio! Meus primos também despertaram, olhos
cheios de remelas e marcas de travesseiro no rosto. Puxei um deles pelo
braço até o quarto e perguntei:
— E Rafinha, como ela está?
— Bem... acho.
— Eu preciso ver aquela menina de novo.
— Sai desta, moleque. Cata outra.
Mas eu não queria outra. Meu primo me tranquilizou:
comemoraríamos o aniversário de uma das primas e Rafinha também viria. O
repeteco prometia ser bom.
A festa foi organizada, a mesma baderna de antes, criançada
correndo pela casa, bexigas infladas e o cheiro de fritura. Os convidados
chegaram.
Contudo, tudo estava diferente.
Rafinha sequer olhava para mim. Eu forçava um encontro,
aproximava-me, mas era como se eu houvesse me tornado o homem-
invisível.
— Deixa disso, — me disseram — ela é só uma piranhazinha.
Então, eu não a vi mais. Perguntei aos primos e primas, mas ninguém
sabia onde ela estava. Fui até atrás da mesma árvore em que estivemos, e
nada. Decidi arriscar, por fim, o depósito.
Ouvi alguns ruídos vindos de dentro, gemidos abafados.
Estendi o braço e gentilmente entreabri a porta. Pela fresta, pude ver
Rafinha sentada sobre o balcão do moedor de café, vestido erguido até a
cintura, calcinha arriada até os tornozelos, e no meio de suas pernas, um
homem com a bunda exposta.
Dei um passo adiante e terminei de abrir a porta. O ranger fez com
que ambos olhassem em minha direção. O olhar do homem pousou sobre
mim, num misto de espanto, raiva e excitação.
— Tio? — perguntei, e antes que eu pudesse ter qualquer reação, ele
abandonou Rafinha com as pernas arreganhadas e veio com a benga
balançando até mim. Segurou-me com força pelo braço, fechou a porta e me
jogou contra a parede.
— Você não vai contar nada pra sua tia, senão eu te mato. Te mato!

Não gosto de café. Não bebo. Nem uma única gota. E não se trata
apenas do gosto, até o cheiro me causa aversão. Nunca gostei. Quando
criança chegava a passar vergonha por causa disto na casa de amigos. Mas
não era nojo, só não gostava. Mas hoje, toda vez que passo na frente de um
boteco e vejo aquele líquido preto escorrendo do bule, fumegando, e o cheiro
me alcança, não posso evitar de pensar em mim, em Rafinha, em sacas de
café, no pau meio mole de meu tio e num moedor de café.
Não consigo.
Não dá.

Nova York
05/12/2008
A máquina de fazer pães

Desde que me conheço por gente, vovó sempre fez pão caseiro,
quentinho, macio, cheiroso, que, quando saía do forno, já ia pra mesa e
comíamos com manteiga, que derretia na massa fumegante.
Ela começava a amassá-los logo após o almoço, depois os deixava
descansar, cobertos por uma toalha na despensa, para, por fim, enrolá-los em
pequenos pãezinhos e num grande pão para o café-da-manhã do dia seguinte.
Assim, à tarde, na hora do lanche das cinco, os pãezinhos já estavam
prontos e nos convidando com o cheiro que se esgueirava para fora da
cozinha e nos alcançava na varanda ou até mesmo nos quartos.
Era quando corríamos para a cozinha e encontrávamos a mesa posta,
o leite no bule, a barra da manteiga e os pãezinhos morenos nos aguardando.
Este era o ritual diário e esperado, o afazer vespertino de vovó,
antecedido pela feitura do almoço e sucedido pelo cuidado das galinhas e dos
porcos, ou pela preparação de sabão ou doce-de-leite no fogão à lenha.
No entanto, titio viajou aos Estados Unidos e, ao retornar, trouxe um
embrulho e o entregou a vovó:
— Trouxe de Miami para a senhora — ele disse.
Ela desempacotou o presente e retirou o mostrengo ovalado, branco,
e cuja função ninguém conhecia.
— O que é isto? — vovó coçou a cabeça.
— Uma máquina de fazer pães, mãe. É a última palavra em
novidade. Assim, a senhora não perde mais tempo. Basta pôr os ingredientes
ali dentro, que a máquina amassa, deixa a massa crescer e assa. Assim, a
senhora terá mais tempo para aproveitar a tarde.
— Hum... — vovó resmungou e abandonou o aparelho num canto no
balcão da cozinha. E continuou preparando e assando os pães como sempre
fizera.
Mas, um dia, minha tia chegou e fitou demoradamente a máquina.
Depois procurou pelo manual, leu as instruções e arriscou a receita mais
básica de pão.
A máquina entrou em funcionamento e, assim que os primeiros
chacoalhões e tremeliques dela surgiram, todos nós, primos, primas e tios,
reunimo-nos ao redor para vê-la atuar. Logo subiu um cheirinho de farinha
amassada, bastante semelhante ao de quando vovó preparava os pães.
Vovó também apareceu na cozinha e, descrente, assistia tudo
recostada no batente da porta, braços cruzados e cenho franzido.
— Duvido que saia alguma coisa que preste daí! — ela disse lá pelas
tantas, mas a máquina a desmentia, preparando uma massa macia e elástica,
muito bonita, segundo a minha tia.
Mais tarde, iniciou o último processo — assar o pão — e pudemos
sentir o cheirinho bom.
Quando a máquina apitou, avisando o final da feitura do pão, todos
corremos para averiguar o resultado e a prova foi a favor da máquina.
— É fácil de fazer, e o pão é uma delícia — asseverou titia — até
uma criança poderia fazer um pão deste jeito.
E para constatarmos esta possibilidade, apostamos que, no dia
seguinte, quem prepararia os pães seríamos nós, as crianças.
Como era o esperado, tudo correu bem e o pão ficou tão gostoso
quanto anteriormente.
A mesma cena se repetiu dia após dia, revezando-nos na feitura do
pão, mas podíamos sentir que havia uma ponta de inveja nas feições de vovó
toda vez que a máquina era posta em funcionamento. E não a vimos comendo
pão da máquina.
Às vezes, nós a encontrávamos sentada numa cadeira, voltada para
máquina em atividade, mãos entrelaçadas e um olhar de desespero, quase a
asserção de sua inutilidade naquela casa.
Vovó não mais preparava pães e, além disto, ela passou a
negligenciar outras atividades domésticas. Apenas observava a máquina
cumprindo uma tarefa que antes era sua.
Contudo, certa manhã, fomos acordados por gritos de titia.
— Um bandido! Um bandido entrou aqui em casa!
Assustados, fomos todos à cozinha e a encontramos toda revirada.
Panelas no chão, pratos e copos estilhaçados e, o pior de tudo, o bandido
havia levado a máquina de pães.
Titio apanhou uma espingarda (que não sabíamos que existia até
aquela data) e vasculhou os arredores para se certificar de que o bandido
havia realmente partido.
Ficamos todos muito amedrontados e a polícia foi chamada. Foi uma
grande comoção, vizinhos vieram e vários diziam que, daquele dia em diante,
não deixariam mais portas e janelas abertas, e que a vizinhança já não era tão
segura quanto antes.
A única que parecia aliviada era vovó, que graças ao ladrão havia
sido livrada do seu pior inimigo, a máquina de fazer pães. Mas titio não pôde
evitar de comentar:
— Não fique chateada, mãe, quando nós formos a Miami de novo, eu
compro uma nova máquina pra senhora.
Mas chateada ela não estava e, naquela tarde, ela havia sido
restaurada ao posto de padeira oficial da casa.
Só que, ontem, ao brincarmos de desbravadores da selva Amazônica
no pomar atrás da casa, sem querer, eu tropecei e caí em meio às bananeiras.
Foi quando percebi o troço branco que me atrapalhara, ali no chão, todo
quebrado. Sem dúvida, a máquina de pães já tinha visto dias melhores. Foi
então que concluí que nunca havia existido ladrão algum e que o sumiço da
máquina era pura e simplesmente um gesto de vingança.
Não contei a minha descoberta para ninguém, pois não quero
comprometer vovó. Mas hoje mesmo, nossos olhares se encontraram durante
o almoço e, maroto, fiz um sinal com a cabeça, em direção ao jazigo da
finada máquina de pães. Ela compreendeu e, mais tarde, me perguntou se eu
queria que ela preparasse algum doce especial.
Este será o vínculo da nossa cumplicidade e meu trunfo: amanhã,
pedirei para vovó fazer doce-de-leite, e no dia seguinte, goiabada, e quero
macarrão e pernil de porco no almoço de domingo. Tenho certeza que tais
pedidos, e muitos outros depois, serão realizados.

Nova York
18/02/2009
(Publicado originalmente como “The Bread Machine” na Blue Lake
Review, edição de maio de 2012)
O Galo Meu

Ele desfilava com imponência pelo quintal da minha vó: o meu galo.
O mais lindo de todos, alto, quase do meu próprio tamanho no auge de meus
oito anos, com uma penugem reluzente, o pescoço de um azul vivo e
brilhante, e esporas ameaçadoras como lâminas, mesmo sendo um galo
pacífico, até onde eu podia perceber.
Encantava-me o mundinho dos galináceos, todos se aglomerando
desesperadamente para comer a quirera que minha vó lançava ao ar, gritando:
— Cuti-cuticuticuti!
Vinham as galinhas e os pintinhos, redondinhos e amarelinhos, e
também os frangotes desengonçados. Mas o meu galo não, observava tudo de
longe, o dono absoluto do terreiro.
Ele não havia sido sempre meu galo, até que, num verão, fiz o
pedido:
— Vó, sabe aquele galo grandão?
— Sei sim.
— Dá ele pra mim?
— E o que você vai fazer com um galo, moleque?
— Cuidar dele.
— Então ‘tá certo.
Assim, daquele dia em diante, o galo mais lindo de todos havia se
tornado o meu galo. Batizei-lhe de Harrison, e era o meu dever jogar-lhe a
quirera:
— Cutu-cuticuticuti! Vem cá, Harrison!
E lentamente ele vinha, cheio de si, bicando a comida com soberbia.
Pensei muito no meu galo na viagem de volta para a cidade, repleto
de planos para as próximas férias. Existia coleira para galos? Assim eu
poderia exibir-me com ele pela vizinhança da minha vó, eu e o mais galo dos
galos, o Hulk Hogan dos galos, temível e grandalhão. A molecada e as donas
de casa se recolheriam ao ver-me caminhando com o galo ao meu lado,
atemorizados que ele pudesse se soltar da coleira e sair bicando e esporeando
a torto e a direito, muito mais perigoso do que qualquer cão de guarda.
Cogitei até a levá-lo a rinhas, eu do lado do ringue, dando instruções a ele, e
Harrison ganhando todas as pelejas. Mal sabia, naquele tempo, que isto era
crueldade animal, proibido por lei, nem que voava sangue e penas para todos
os lados. Nas brigas de galos de minha imaginação infantil, um deles sairia
com o olho roxo, enquanto o outro levantaria as asas em glória, assim como
nos desenhos animados, sem demasiado sofrimento nem mortes.
Com o passar das semanas, esqueci-me um pouco de Harrison e só
me ocorria a existência dele quando, ocasionalmente, comentava com os
colegas de escola:
— Sabia que eu tenho um galo? Acho que deve ser o maior galo do
mundo!
Mas a mente estava ocupada o bastante com as matérias da escola de
manhã e com os seriados japoneses à tarde. E, vez ou outra, eu desenhava o
meu galo, intercalando panteras, leões e super-heróis.
Retornei meses depois à casa de minha avó, chegando cedinho como
o habitual. Tomamos café da manhã e eu saí ao quintal, à procura por meu
galo, mas não o avistei. Nada estranho, reconheço, pois o quintal era enorme
e ele poderia estar vagando em meio às bananeiras e amoreiras. Certamente
apareceria para comer quirera mais tarde.
Mas não o vi depois, o que me perturbou.
— Não estou encontrando o Harrison — comentei com meu primo.
— Ninguém te contou? — vislumbrei um risinho maldoso — Ele
morreu...
— Sério?
— Sério.
Calei-me por um tempo, pensativo.
— E o que fizeram com ele?
— Como assim?
— Com o cadáver do Harrison?
— Teve canja ontem à noite, sabia?
— Foi?
— Era o seu galo.
Fiquei horrorizado. Era possível isto? Que desumanidade absurda!
Barbárie! Como assim jantar um galo de estimação? Quer dizer que agora as
pessoas deveriam comer seus cachorros quando estes morressem? Ou que um
jóquei deveria comer o cavalo que montava? Ou um falcoeiro a seu falcão?
Ou um dono de circo cearia o elefante ou o tigre quando estes passassem
desta para melhor?
Eu precisava confirmar esta história, poderia ser apenas uma
maldade do meu primo, e corri para falar com minha vó.
— É verdade que meu galo morreu?
— Morreu sim.
— E o que fizeram com ele?
— Comemos, ora bolas!
Para vovó, era simples pensar deste modo, ela que quebrava o
pescoço de um frango sem esforço algum, e deixava-o dependurado numa
trave, debatendo-se até esvair-se lhe a vida, mas, para mim, nada fazia
sentido. A ausência de Harrison, o galo dos galos, naquele quintal imenso era
devastadora, um vazio inexplicável.
Pois o meu galo havia sido o senhor absoluto do terreiro, e também a
canja da noite passada.

Buenos Aires
03/03/2012
A Alma da Capital

Minha coroa quase nunca falou sobre meu pai, e eu, em respeito ao
padrasto, que me criou como a um verdadeiro filho, também não tocava neste
assunto.
Conviver não é fácil, pois às vezes magoamo-nos uns aos outros sem
nem termos intenção.
No entanto, ao avisar minha mãe que me mudaria para Brasília para
assumir um cargo no funcionalismo público, os olhos dela se encheram de
lágrimas, ela segurou delicadamente minhas mãos entre as delas e me puxou
para a sala.
— Seu pai teria orgulho de você.
— Sim, eu sei...
— Promete que se cuida? Ouvi no rádio sobre os atentados nas
bancas de jornal. Os ânimos estão à flor da pele. Não vá se envolver com
politicagem, meu filho, nem com estes grupos radicais.
Eu ri, um pouco nervoso. Não entendia nada de política, nem me
interessava o comunismo, apesar de vários amigos da universidade terem
levado borrachada da cavalaria em protestos. Eu não estava nem aí para o
Figueiredo. A minha diversão eram os filmes do Chuck Norris, Bruce Lee e
James Bond, nada muito intelectualóide e Marx nunca havia dado as caras
por minhas prateleiras. Tudo que mais me importava era a minha garota, e eu
estava deprê pacas por deixá-la pra trás.
— Não se preocupe, mãe — respondi, enquanto ela me abraçava
com força.
— Sabe, foi lá que conheci seu pai...
— Em Brasília?!
— Sim, era um dos peões que ergueu aquela cidade, isto vinte anos
atrás. Vindo do sertão baiano, pele queimada do sol e olhos cor de grafite.
Um baita homem, eu lhe digo! Daqueles que parecia saído das histórias de
jagunços e cangaceiros. Muitos tinham medo dele, um sujeito calado e que
nunca sorria, trabalhando incansável do nascer ao pôr do sol. Meu noivo e ele
logo se tornaram os melhores amigos, unha e carne, como se diz. Na hora do
almoço, eu levava a marmita para os dois no canteiro de obra e seu pai falava
que, assim que juntassem um dinheirinho, ele e meu noivo abririam uma
sociedade no Rio de Janeiro e ficariam ricos. Aquela era a época dos sonhos,
meu filho, mesmo que todos nós estivéssemos comendo o pão que o diabo
amassou. É o progresso atropelando os fracos para que os fortes fiquem ainda
mais poderosos. Não estou certa de quando reparei que seu pai me olhava
com outros olhos, desejando-me, mas sei que também me apaixonei por ele.
Ninguém manda no coração, e todo o jovem é capaz de fazer loucuras
quando está apaixonado. Uma manhã, seu pai me chamou num cantinho e me
disse: “quero encontrar você mais tarde”. E foi na escuridão, no meio das
obras, no esqueleto do que viria a ser o Palácio do Planalto, que eu e seu pai
nos amamos, cheios de medo que os capatazes nos flagrassem.
— E o seu noivo?
— Não sabia de nada, a princípio. Até que os boatos começaram a
circular entre os peões e a notícia chegou aos ouvidos dele. Meu noivo era
pacífico, um santo, não quis acreditar no que escutava. Mas, uma noite, com
a pulga atrás da orelha, ele foi atrás de mim na construção e nos pegou juntos.
Um rebuliço! Seu pai puxou uma peixeira e só não matou o meu noivo
porque não deixei. Não queria nenhum morto por minha culpa, não sou
assim. Juntei minhas trouxas e fui de vez pra casinha de seu pai. Ele e meu
noivo não se falaram mais, apesar de trocarem olhares atravessados quando
se esbarravam. E eu morria de medo que por um ato de vingança eles ainda
se matassem. Seu pai se isolou ainda mais, todos o evitavam e ele virou um
homem amargo. Era no meu seio, na escuridão da noite, que ele sussurrava
para mim que me amava e que, quando possível, cairíamos no mundo e
seríamos felizes como casal nenhum jamais foi.
E minha mãe enxugou com um lencinho a lágrima que lhe deslizava
pela face.
— Já estava tudo certo e em uma semana partiríamos de Brasília
rumo a Salvador, onde um amigo de seu pai havia lhe arranjado um emprego.
Então o andaime onde trabalhava meu antigo noivo tombou. A amizade entre
eles falou mais alto e seu pai correu para acudir, segurando o amigo pelo
braço. “Não vou te soltar”, ele disse, mas os dois despencaram trinta metros
abaixo. Foi um milagre, muitos disseram, porque meu ex-noivo se salvou
ileso, nem um arranhão, enquanto seu pai caiu de cabeça e morreu no ato.
Uma semana antes de irmos embora, dá para acreditar?
— E o que aconteceu depois? — perguntei.
— Meu ex-noivo veio e me consolou. “Ele era um homem bom”, me
disse, “um verdadeiro amigo”. Eu respondi: “estou grávida... E o pai do meu
filho está morto. O que será da minha vida?”. Eu chorava. Aquele que havia
sido meu noivo se ajoelhou diante de mim e jurou: “vou cuidar de você até o
fim de seus dias. Confie em mim”. Parecia até cena de filme.
— Meu padrasto? — perguntei.
— Sim, filho, ele sempre cumpriu a promessa, nunca deixou de me
amparar e, com o tempo, voltei a amá-lo como antes. Viemos para o sul, você
nasceu e fomos muito felizes até agora.
A luz vermelha do entardecer atravessava as cortinas e iluminava o
rosto de minha mãe. Era a primeira vez que transparecia a dor íntima que ela
havia ocultado por tantos anos.
— E você pensa nele?
— Todo o santo dia. Nem todo o tempo do mundo apaga o
verdadeiro amor. E tem você, com o olhar profundo e cinzento do seu pai,
como um retrato vivo do homem que conheci vinte anos atrás. Ele era um
verdadeiro brasileiro, não daqueles que usam ternos e fazem leis, ou que
estão sentados em poltronas de couro fumando charutos. Era daqueles
brasileiros que põem a mão na massa, que erguem os prédios de luxo nos
quais jamais poderão habitar, que constroem as capitais onde trabalharão os
políticos que não dão a mínima pra gente simples como nós. Ele era a alma
do nosso país, e morreu trabalhando para nos dar um futuro.
No ônibus, a caminho para a capital, refleti muito sobre esta história.
Eu era jovem quando minha mãe me revelou este segredo e, desde então, vi o
fim da ditadura, meia dúzia de presidentes passarem pelo Planalto e
maracutaias e escândalos sem fim. No entanto, sempre que caminho pelas
ruas da cidade, penso que por aquelas veias corre o sangue do meu sangue,
daquela classe de heróis anônimos que são a argamassa do mundo, cujas
insignificantes vitórias cotidianas jamais serão contadas nos livros de
História. Como minha mãe havia dito: a alma de nosso país.

Perúgia
02/07/12
O Beijo

Se me virem com você, me matam. Ela me disse. São assim, me


odeiam, sou como uma prisioneira aqui.

O palácio hoje é um museu e a entrada custa o equivalente a dois


dólares. Seus interiores são exatamente como me lembro, como se
houvessem sido congelados em uma fotografia. Na minha frente, um guia
explicava tudo para um grupo de italianos e, quando chegamos ao salão de
jantar, comecei a tremer. Incontrolavelmente. Vinte e dois assentos e foi ali
onde me sentei, e foi naquele outro extremo, perto da ponta, onde ela estava
ao lado dos pais.
Meu pai havia sido designado cônsul para a região. Eu já estava
habituado a esta rotina de mudanças e também à solidão que me
acompanhava. Sempre deixando amigos para trás. Sempre num lugar novo.
Sempre recriando vínculos para depois perdê-los outra vez.
Era nisto que eu pensava quando o olhar dela se voltou para mim.
Nós, os dois únicos jovens naquele jantar repleto de autoridades, com garçons
de turbante e luvas brancas.

Os olhos dela eram de um verde opaco, mas que às vezes me


pareciam amendoados dependendo de como refletiam a luz. Eram verdes e
tristes. Vi neles a mesma solidão que havia em mim.

Numa outra sala, havia a prataria e as louças expostas em estantes.


Copos de cristais. E pensei qual daqueles copos ali haviam tocado os lábios
dela, e também se eram os mesmos daquele jantar. Serviram-nos pratos
estranhos — exóticos, alguns diriam — e eu não gostei.
Experimente este aqui, minha mãe disse, mas eu não quis. Não
queria estar ali.
Depois, o baile. Ela, num canto, cercada por tios e tias (supus). Eu,
no outro, sentado numa cadeira desconfortável. Os adultos dançavam uma
valsa vienense. Os músicos da orquestra pareciam cansados. Um deles tinha a
cara de um antigo vizinho nosso em Istambul. Simpatizei com ele. Quando
olhei de volta para ela, percebi que também me fitava. Corei e lancei um
sorriso sem graça, embora espontâneo. Ela deve ter sorrido também, mas não
pude ver em meio às pessoas que rodopiavam pelo salão de baile.

A ampla varanda estava repleta de turistas, muitos deles chineses


com viseiras, todos fotografando os jardins floridos e minuciosamente
cuidados.
Estava escuro na última vez que estive ali e apenas um lampião ou
outro iluminava as veredas.
Tinha saído para procurar um banheiro, mas me perdi em meio às
incontáveis salas. Parecia um labirinto e devo ter levado mais de meia hora
para reencontrar meu caminho. Um sussurro. Alguém me chamava para a
escuridão da ampla varanda que dava para um jardim que não podíamos
enxergar nas trevas.
Era ela.
Se me virem com você, me matam. Ela disse.
Não acreditei.
Hoje é meu aniversário, sabia? Dezoito anos. Dezoito anos e nunca
fui beijada. Dezoito anos e nunca deixei este maldito palácio. Então ela me
puxou contra si e me beijou com violência e desespero. Era como se quisesse
me devorar, tornar-se eu e fugir dali escondida sob a minha pele. Eu era livre
e ela não. Eu havia visto o mundo e ela não. Eu viveria e ela não.
Ela me soltou e percebi que chorava. Deslizei minha mão pelo rosto
dela (tinha algumas espinhas que só percebi naquela proximidade) e disse.
Tudo vai ficar bem. Todos passamos por isto. Não é fácil pra
ninguém.
Tenho de ir. Ela disse, mas eu a segurei pelo braço antes que
deixasse a varanda.
Feliz aniversário. Sussurrei, soltando-a enfim.
Fiquei sozinho ali fora, ouvindo as cigarras e sendo picado por
mosquitos enormes.

No dia seguinte, o país estava de luto. Bandeiras a meio mastro.


Ela havia sido encontrada morta em seu quarto, pulsos cortados.
Suicídio disseram os jornais.
Não consegui acreditar, pensando apenas no Me matam dito na noite
anterior. Me senti culpado. Havia sido o meu beijo da morte. Haviam nos
visto e, por isto, a mataram. Jamais deixei de pensar nisto e todos os meus
relacionamentos posteriores foram marcados pela sombra da tragédia. Eu
matava quem amava. Algumas delas morreram de fato (enviuvei aos trinta e
depois aos cinquenta e cinco), outras emocionalmente. O meu beijo da morte.

Entrei no quarto que havia sido dela. A primeira vez que entrava ali.
A cama onde ela havia se matado/havia sido morta.
Na parede, um retrato a óleo dela, com seus profundos olhos verdes.
Não sorria. Não tinha espinhas. Não parecia infeliz.

Atenas, junho de 2017


O doutor adevogado

O doutor apareceu pela primeira vez em casa numa noite de sábado,


entrou, acomodou-se na sala e acendeu um cigarro. De terno, gravata e gel
melequento no cabelo, e, de quando em quando, cofiava o bigodinho a la
Clark Gable.
Minha mãe, cheia de sorrisos, desapareceu no quarto para os
preparativos finais, enquanto eu o espiava desde a penumbra do corredor.
Muitos homens haviam passado por aquele sofá nos últimos meses,
muitos mesmo. Minha mãe parecia desesperada por encontrar um substituto
para meu pai, e errava de senhor em senhor, crente que algum deles aceitaria
uma viúva com um pirralho na barra da saia, e nos levaria para morar em
algum casarão ou numa cobertura de luxo.
Ao escutar o ruído da gaveta da penteadeira se fechando, corri para
minha cama e me cobri, fingindo que dormia. Mamãe veio, beijou a minha
testa e me desejou boa-noite.
— Vou sair para dançar, mas não volto tarde.
Uma lagrimazinha escorreu, mas ela não deve tê-la visto. Eu me
sentia tão fragilizado sozinho naquele apartamento. Bastava que ela saísse,
trancando a porta atrás de si, que era como se todas as proteções ruíssem e eu
houvesse sido lançado para a morte certa. A noite era silenciosa e
assustadora. Cada estalo nos móveis, cada ranger de porta, cada goteira, cada
assovio do vento ou miados de gatos nos telhados vários eram perigos mil.
Agora todos os bandidos, psicopatas e assassinos à solta pelo mundo
farejariam o meu medo e viriam me pegar. Eu estava só e desprotegido,
simplesmente porque a minha mãe baixota e magrela não estava por perto.
Ela também deveria se sentir desamparada e justamente por isto
ansiava tanto por um novo marido. Um macho para controlar o lar. Um braço
para proteger-nos tanto a ela quanto a mim.
Nada aconteceu, nenhum criminoso perigoso veio. Dormi, para
despertar apenas com o barulho do trinco e do toc-toc do salto alto de mamãe
nos tacos da sala.
Pela porta entreaberta do meu quarto, chegou até mim o odor de
perfume e cigarro, e os passos descompassados denunciavam que ela deveria
estar bêbada. Quis me levantar, mas tive medo. Mamãe ficava imprevisível
quando bebia, e podia sobrar para mim, que nada havia feito de errado.
Demorei muito para voltar a dormir, escutando-a tomando banho e
depois se jogando na cama. Tive muita pena dela, desejei que papai não
houvesse morrido tão novo. Odiei a morte, tão cruel e injusta!
Naquela noite, tive certeza que não veria mais aquele sujeito de
terno, gravata, gel e bigodinho ridículo, mas, no domingo seguinte, assim que
saímos da missa, minha mãe se agachou e, mirando-me com ansiedade, disse:
— Vamos almoçar com um amigo meu. Quero que você se
comporte. Jura pra mim?
Com o polegar, fiz o sinal da cruz sobre os lábios, e o doutor logo
surgiu com um carrão, daqueles de magnatas. No banco de trás, eu brincava
com o vidro elétrico, a primeira vez que via algo assim na vida.
— Não mexa, senão vai estragar! — minha mãe gritou, mas o senhor
interveio:
— Deixe o menino... Não tem problema.
Mas preferi obedecer à minha mãe, a autoridade máxima, pois havia
jurado que me comportaria.
Já no restaurante, fomos servidos e comemos em silêncio.
— O doutor Orlando é adevogado — disse minha mãe com toda a
pompa, adicionando uma vogal como ela sempre fazia quando queria
ressaltar a importância de algo: papai havia sido o pisicólogo e minha tia era
uma adiministradora.
— E você protege os bandidos? — perguntei, lembrando-me de um
filme de tribunal que havia assistido na noite anterior.
— Não — riu o doutor Armando — a minha área é Cível, não
Criminal.
— Ah — balbuciei, sem entender palavra, sendo fulminado pelo
olhar repreensivo de minha mãe. Mesmo assim, admirei o doutor, de terno até
no domingo, dia santificado de descanso. Devia ser importante e poderoso,
trabalhando até em finais de semana.
Voltei a ver o doutor adevogado em outras ocasiões e ele reapareceu
lá em casa, corretíssimo no sofá da sala, cigarro na mão e bebericando uma
taça de licor.
— Mãe, você vai casar com o doutor? — perguntei uma noite.
Ela sorriu com acanhamento, mexendo no cabelo.
— Não sei, querido... Ainda não decidimos.
— Será que papai aprovaria?
— Acho que sim... — ela se engasgou, talvez com vontade de chorar
— Ninguém nunca será como seu pai, mas a vida segue adiante. Não temos
escolha.
— Queria tanto que ele ainda estivesse aqui.
— Eu sei.
Então, o doutor Orlando se tornou uma presença habitual. Dormia
com minha mãe e eu podia até escutá-los rindo e gemendo no quarto dela.
Tive ciúmes, raiva e desejei que, na manhã seguinte, eu despertasse já adulto,
para pegar minhas trouxas e cair no mundo, sem ter de presenciar estas sem-
vergonhices. O que meu pai diria?
Por outro lado, fascinava-me muito o doutor, tão fino e imponente.
Cheguei até a sonhar em tornar-me um advogado quando crescesse, de terno,
gel, cigarro e bigodinho. E quando isto ocorresse podia até visualizar minha
mãe dizendo para os outros, cheia de orgulho de mim:
— Meu filho é um baita adevogado! Dos melhores!

Uma gritaria me despertou certa manhã.


Minha mãe discutia com o doutor Orlando, chamando-o de crápula,
pústula e cafajeste. Ele retrucou à altura e saiu batendo a porta.
Transtornada, ela entrou em meu quarto e foi direto até o armário, de
onde apanhou uma mala e nela lançou minhas roupas.
— Que foi, mãe? — cocei os olhos.
— Pegue suas coisas... Já!
Ela também arrumou as bagagens dela e, puxando-me pela mão,
levou-me até a rodoviária. Sentada no portão de embarque, ela desabou a
chorar, sem me explicar nada.
Meus avós nos receberam na casinha no interior e mamãe se trancou
no quarto por dias, saindo apenas para tomar banho e beliscar o almoço, mal
dizendo um ai.
Fui eu quem a encontrou inerte no chão gelado do banheiro, frasco
vazio de comprimidos na mão. Pálida, lábios arroxeados, sem respirar.
O doutor Orlando, o ilustre advogado, não havia roubado somente os
nossos bens, o apartamento, o carro e a poupança.
O que ele me tirou jamais poderei reconquistar.
Buenos Aires
03/04/12
Fissuras
Os trens da morte

Há setenta anos que meu avô não entrava em um trem.


Pense como se houvesse sido um sonho, zaide.
Um pesadelo! Ele respondia, prontamente.
Sim, um pesadelo. Pense como se houvesse sido um pesadelo.
Mais do que isto... Foi o mais terrível pesadelo que me ocorreu. O
mais terrível que ocorreu ao nosso povo.
Eu sei, eu sei, zaide.
Sempre que ele precisava viajar, ia de carro ou de avião. De trem,
nunca.
Levaram-nos como se fôssemos bois. Como se fôssemos porcos. E
sempre havia uma lagriminha em seus olhos ao dizer isto. Diziam-nos que
íamos trabalhar, mas eram trens que nos levavam para a morte. Mas não
havia o que fazer. Os que se recusavam a partir eram separados de suas
famílias e fatalmente teriam o mesmo fim.
Mas agora é diferente. Vai receber um prêmio. Eu disse a ele.
Meu avô escrevia. Memórias, contos, ensaios. O tema era
inevitavelmente o mesmo.
Não devemos esquecer. Para que não se repita.
Isto não vai acontecer outra vez. Jamais! Eu dizia, com muita
convicção.
Talvez sim, talvez não. Meu avô respondia. Como prever o futuro?
Como compreender a maldade humana? Se houvessem nos advertido naquele
tempo, não acreditaríamos que tal barbaridade fosse possível. Quem
imaginaria?
Ninguém. Eu respondia.
O mundo só teve uma visão do horror depois, quando as pessoas
começaram a falar, quando enfim rompemos a bruma de silêncio e
expusemos o que trazíamos na memória. As recordações também são uma
arma. No entanto, eu sei que nenhuma palavra, nenhum livro consegue
comunicar toda a extensão da tragédia. Pois uma coisa é viver, outra é
escrever, e todos os escritores do mundo estão, neste instante, lutando para
criar a ponte impossível entre experiência e relato. É um abismo terrível e
assustador, que nos encara nos olhos e sempre nos lembra que não
conseguiremos.
Ele havia escrito um romance. Seu único romance. Os Prisioneiros
da Terra Prometida. Ele começa assim.

Eles vieram à noite, enquanto dormíamos. Iam matar-nos todos, das


maneiras mais cruéis e inumanas concebíveis, mas, naquele momento, ainda
não o imaginávamos.

Este livro se tornou uma leitura obrigatória em nossa família. Todos


o lemos, os pais, tios, netos e primos. Era um testemunho de nossa história.
A princípio, alguns críticos a atacaram. “É um panfleto, sem
sutilezas, sem complexidade”, disseram.
Não é verdade. Ele se defendeu. Mas quando se fala de uma situação
extrema e absurda, não há meio termo nem imparcialidade. A realidade não
tolera que fiquemos em cima do muro. Deixo as sutilezas e a poesia para o
que observam de fora.
Mesmo assim, meu avô ia receber um prêmio muito importante pela
obra. Então, eu comprei duas passagens na primeira classe para nós.
Já é hora de enfrentar seus medos, zaide. Você virá de trem comigo.
Obrigado, mas assim não irei. Ele disse.
Naquela tarde, nós assistíamos ao noticiário. Sobre os acampamentos
ciganos derrubados pela polícia. Sobre os protestos antissemitas em Paris.
Sobre as deportações de marroquinos. Sobre as piadas maledicentes e
insensíveis sobre os tunísios mortos em um naufrágio na costa italiana.
Isto é o princípio. Disse meu avô. Não pensava que viveria para ver
tudo outra vez. Estou velho. Já não me resta muito tempo. Mas temo por você
e por suas irmãs.
Não vai acontecer outra vez. Jamais! Eu disse, já sem tanta
convicção. As coisas estavam mudando com a crise. As pessoas pareciam
estar mais irritadas, menos tolerantes, buscando por culpados.
Precisam de um bode expiatório. Disse meu avô. Essa é a origem de
todos os massacres, uma minoria que pague com seu sangue pelo ódio da
maioria.
Fomos ao centro para comprar-lhe um terno e um chapéu novo. O
barbeiro egípcio o barbeou. Eram amigos há quase cinquenta anos.
Então vai receber um prêmio? Perguntou o barbeiro.
Sim, sim... Respondeu meu avô, muito timidamente.
Sempre soube que você era genial.
Genial, eu? Não sou. Sou apenas um homem, nada mais do que isto.
Um homem que viveu e viu muitas coisas boas e outras terríveis.
Quando viaja? Perguntou o barbeiro.
Hoje à tarde, disse meu avô.
Até logo, meu amigo, e parabéns.
Vemo-nos segunda-feira, sem falta, para uma xícara de café. Disse
meu avô.
Eles se abraçaram.
Algumas pessoas não gostam que eu seja amigo de um mouro. Ele
disse para mim.
Eu sei. Já escutei algumas coisas.
Besteiras! Meu avô riu. Somos todos humanos. Nunca
compreenderam de verdade o que eu tentava mostrar-lhes. Uma pena... Uma
pena...
Mais tarde, na estação de trem, meu avô tremia um pouco.
Está com frio, zaide? Perguntei.
Está ventando. Ele disse.
Pois ponha um cachecol. Eu disse e tirei um da minha mala.
A dank.
Mas ele continuou tremendo. Eu sabia que não era frio. Era medo. A
primeira vez que vi medo nos olhos de meu avô, alguém tão extraordinário
que parecia saído de um filme de Hollywood.
Não se preocupe, zaide. Tudo ocorrerá bem.
Eu sei.
Nos alto-falantes da estação, anunciaram a chegada do trem.
Vou sentar-me um pouco. Ele disse, afastando-se para uns
banquinhos.
O trem se deteve na plataforma.
É bonito... Parece novo. Ele disse baixinho. É o nosso?
Sim.
Não vou, ele disse. Não posso.
Eu segurei suas mãos enrugadas e trêmulas entre as minhas.
Está tudo bem, vô. Não tem problema.
Gostaria de saber no que ele pensava e o que sentia. Meu avô lutava
contra si próprio. Lutava contra suas lembranças.
No trem, uma garota nos observava pela janela, ao lado de sua mãe.
Não tinha mais do que dez anos. Cobria a cabeça com um hijab. Ela acenou
para nós.
Tudo mudou, minha neta, mas não devemos nos esquecer nunca. Ele
disse, levantando-se.
De mãos dadas comigo, meu avô e eu embarcamos no trem.
A garota moura sorria.

Madrid, 2014
Janela pra Rua

Christiane não virá.


Da minha janela, acompanho o absurdo movimento noturno na rua:
táxis, automóveis, gente deixando o cinema, gente bebericando em bares,
casais abraçados, assim como eu e Christiane até dias atrás.
Acendo um cigarro, o último do maço, e deixo a brisa da noite roçar
minha barba. Tudo aqui dentro, na casa e no peito, e lá fora são recordações
dela.
Naquele mesmo cinema, eu a beijei pela primeira vez, e quantas
outras vezes depois. No restaurante do outro lado da rua, pus-lhe a aliança
nos dedos e brindamos com champanha. No sofá da sala, nossas desajeitadas
carícias; na cama, confidências que jamais depositei em outros ouvidos.
Mas descuidamos, não cultivamos bem o amor — a sorte grande que
tivemos na vida — e este frágil sentimento secou e morreu.
Já conhecia Linda antes, colega de faculdade; ao visitar minha mãe
enferma no interior, reencontramo-nos, jantamos juntos, ela me levou para
sua casa e ouvimos alguns discos. Não me recordo se Christiane e eu
havíamos brigado antes da viagem, ou se eu me imaginei discutindo com ela,
sempre por causa de alguma trivialidade cotidiana — a toalha molhada sobre
a cama, esquecer-me de baixar o assento da privada, espremer a pasta de
dente no meio do tubo e não no fim, calcinhas penduradas no registro do
chuveiro, detalhes que deixam de ser detalhes com o passar dos anos —, mas
Linda me seduziu (ou deixei-me ser seduzido) e dormimos juntos.
Tratei de apagar a memória deste deslize, como se isto fosse
possível. Semanas depois, Linda bateu à porta de casa, havia se mudado para
a cidade, queria minha companhia para jantar.
— Quem é? — Christiane me perguntou, saindo do banho.
— Uma amiga de juventude, gritei, convida-nos para jantar.
— Estou exausta, dor-de-cabeça, pode ir se quiser.
Eu não queria, porém Linda ameaçou revelar nosso caso à minha
esposa se eu não fosse. Convenceu-me. Coagiu-me, na verdade.
E as camadas de mentira começaram a se acumular, de hotéis a
hotéis com Linda, e eu me obrigando sempre a surgir com uma desculpa cada
vez mais elaborada para justificar minhas intermináveis escapadas noturnas.
Quantas vezes não tentei pôr um ponto-final, mas fui dissuadido
pelas ameaças de Linda?
Tomei coragem e telefonei para ela.
— Acabou. Não quero mais te ver.
Desliguei, para não ter de ouvir a resposta.
Meia hora depois, a campainha: era Linda.
Ela entrou, dependurou seu casaco no cabide e me beijou. Christiane
não estava. Seminus, conduzi Linda a meu quarto e, banhados pelas mesmas
luzes e sons desta mesma rua que agora fito, nos amamos.
— Você precisa ir... — sussurrei no ouvido dela — precisa ir agora.
— Não, não vou — Linda apoiava a cabeça sobre o antebraço, olhar
frio.
— Por favor — a voz súplice quase me falhou — a Chris logo estará
aqui, e dito e feito, pude ouvir a chave lutando contra aquela maldita
fechadura emperrada. Apanhei as roupas da Linda e as joguei sobre ela.
— Vai agora, puta que pariu!
Mas ela não moveu um dedo, deitada, nua, na cama minha e de
Christiane.
Desesperei-me, segurei-a pelo braço, chacoalhando-a e tentei arrastá-
la para fora, para algum lugar, para a sacada, para o armário, para qualquer
lugar. Ela se segurou nas barras de ferro da cabeceira, debatia-se, chutando-
me, grunhindo, resmungando.
Subitamente, Linda deixou de resistir, olhar fixo em algo atrás de
mim, risinho sardônico.
Uma eternidade transcorreu naquele simples movimento de girar o
pescoço e visualizar Christiane parada na porta, mão tapando a boca em
assombro.
Que explicação dar? Que explicação existe para uma mulher desnuda
e o marido só de cuecas na cama? Ganhei um concurso literário uma vez, mas
não, não sou tão criativo assim.
Christiane partiu naquela noite; Linda foi embora dois dias depois,
soube que para reatar um noivado com um moço da sua cidade.
Hoje, descobri o hotel onde Christiane está hospedada e enviei-lhe
um telegrama, implorando para que viesse e conversasse comigo.
Desde então, aguardo. Por horas, por longas e dolorosas horas.
O interfone toca e corro, tropeçando em chinelos e livros, para
atendê-lo.
— Tim? Sou eu.
Não me chamo Tim, suponho que o fulano tenha apertado o número
errado. Retorno à janela e reviro os bolsos à procura por outro cigarro,
lembro-me então que não há mais, bolsos tão vazios quanto tudo o resto.
Isto eu já imaginava, Christiane não virá.

Nova York
28/12/2007

(Publicado originalmente como “Street View Window” em The Fine Line,


edição n.º 4, 2012)
O Sorteio

Parabéns, Sra. Maria de Lourdes Ribeiro, você foi uma das


ganhadoras da promoção “Margarina Felice® me leva para um cruzeiro”.
Em breve, você receberá as passagens e as instruções sobre como proceder.

Com a carta chacoalhando entre os dedos, Maria de Lourdes ria,


chorava, dava saltinhos de emoção.
— O que é essa gritaria aí no corredor? A síndica perguntou, braços
cruzados, enquanto descia a escada.
— Eu ganhei, Dona Firmina, vou fazer um cruzeiro pro Caribe!
Maria de Lourdes respondeu com os olhos marejados. Este havia sido um dos
sonhos de sua vida. Desde que havia se casado, isto aos dezesseis anos, foram
poucas as vezes que ela havia deixado a cidade. O marido era um homem
muito ocupado; nas férias, o destino era o litoral. Uma vez, estiveram em São
Paulo para o enterro do cunhado, outra, no Rio de Janeiro para o réveillon, e
só.
O marido se aposentou e, um ano depois, morreu de ataque cardíaco.
A pensãozinha não deixava faltar nada, mas também não permitia luxos. Boa
parte se esvaía na farmácia com os caríssimos remédios para pressão alta que
Maria de Lourdes tinha de tomar, esta era a verdade. Mas jamais sobraria um
tostão para as viagens dos sonhos — ir para a Europa ou um cruzeiro pelas
Bahamas.
Então surgiu aquela promoção. Maria de Lourdes recortou os
códigos de barras duma centena de potes de margarina e arriscou a sorte. Mas
não contava muito com isto, nos bingos com as amigas, só tinha prejuízo,
enquanto algumas delas já haviam abocanhado alguns milhares de reais.
Aquela carta era o sinal de uma mudança, um marco, pela primeira
vez, Maria de Lourdes ganhava algo. Seu coração palpitava.
— Filha, estou indo pro Caribe, ela disse ao telefone.
— Que legal, mãe! Quando será isto?
— Ainda não sei, mas acho que em breve. Posso levar uma
acompanhante.
— Já pensou em alguém? A filha perguntou.
— Na minha filhota, é claro! Maria de Lourdes respondeu.
— Ih, mãe, as coisas estão corridas lá na empresa. Acho que não vou
poder tirar férias pelos próximos seis meses.
Mas, mesmo assim, a filha ajudou Maria de Lourdes com os
preparativos. Compraram uma mala enorme e alguns vestidos de veraneio.
— Vai que você conhece um velhão milionário, a filha dizia.
— Que isto! Seu pai é o único, Maria de Lourdes retrucava, com um
sorrisinho acanhado.
Isto não impediu que Maria tingisse os cabelos de um ruivo fogoso e
passasse uma tarde num spa.
— Um pouco fora do orçamento, mas uma extravagância, nesta
ocasião, não vai fazer mal, ela dizia para si.

Todas as manhãs, Maria de Lourdes acordava cedo e se sentava à


janela, espreitando a chegada do carteiro. Assim que o via contornando a
esquina, ela vestia o penoir e corria para baixo.
— Bom dia, Seu Vieira... — os olhinhos ansiosos o fitavam.
— Sinto muito, Dona Maria. Não tem nada pra senhora.
— Não tem problema, ela mentia, para depois retornar a seu
apartamento e continuar os preparativos, selecionando as calçolas mais
novas, decidindo quais sapatos levar, maquiando-se diante do espelho e
treinando alguns passos de valsa para dançar no salão do transatlântico.
Dentre as amigas, já havia convidado meia dúzia como
acompanhante, aliás tal convite havia se tornado fonte de ameaças — a
qualquer contrariedade ou pequeno desentendimento, Maria de Lourdes se
exaltava: “olha que não vou levar você comigo!”.
Algumas das amigas começaram a especular, passados dois meses e
nada das passagens, que este sorteio não era nada mais que um delírio de
Maria de Lourdes, talvez os primeiros sinais de demência.
— Este concurso não existe! Uma delas a desafiou, numa destas
discussões.
— Existe sim! Maria de Lourdes se defendeu, arrancando a carta do
bolso, já amassada e esfarelada, e a sacudiu diante do olhar invejoso da
amiga.
— Mas já são dois meses, Maria! Acho que eles se esqueceram de
você.
No entanto, Maria de Lourdes nem cogitava esta possibilidade. “Os
trâmites são mesmo lentos para este tipo de coisas”, ela se reconfortava. Na
mala, mal cabia um fio de cabelo e ela precisou da ajuda de um vizinho para
conseguir fechá-la. Nos próximos dias, com certeza, as passagens chegariam,
então seria um “cala a boca” para as amigas, Maria de Lourdes torcia.

Os meses se sucederam e nada. Maria de Lourdes mal saía de casa,


com medo de que o carteiro viesse e não a encontrasse, não comia por causa
da ansiedade, não conseguia dormir; imaginava-se no convés, vendo o vasto
horizonte adiante engolindo um sol vermelho, a brisa do mar roçando seus
cabelos — “preciso retocar a tintura”, ela pensava, pois o branco novamente
já aparecia — e o balanço constante e nauseante do barco.
— Amanhã, amanhã, ela resmungava, lutando para conseguir
adormecer, roendo as unhas, rangendo os dentes, chorando de raiva.

Numa tarde de segunda, a síndica e dois homens invadiram o


apartamento de Maria de Lourdes. Ela estava caída na sala, magérrima,
desacordada, encharcada na própria urina.
Após um fim-de-semana sem conseguir falar com a mãe, a filha de
Maria de Lourdes ligou para a síndica e para uma clínica de repouso.
Internaria sua mãe, antes que ela morresse sozinha naquele apartamento.
Na ambulância, Maria de Lourdes recobrou a consciência.
— Não, eu preciso voltar para casa! O carteiro vai trazer minhas
passagens para um cruzeiro! Vou para o Caribe... Levem-me de volta...
Levem-me de volta...

Realmente, o carteiro surgiu na manhã seguinte e depositou uma


carta na caixa de correio de Maria de Lourdes.

Sra. Maria de Lourdes Ribeiro,


Gostaríamos de nos escusar, por meio desta, por um equívoco
ocorrido em nossos bancos de dados. Seu nome erroneamente foi apontado
como um dos sorteados para a promoção “Margarina Felice® me leva para
um cruzeiro”. Como forma de compensação, enviaremos para seu endereço
uma caixa com nossos produtos, incluindo o lançamento Margarina Felice
sabor queijo cheddar.
Esperamos que nos desculpe por tal equívoco.
Nova York
20/07/2008
O Degenerado

Sou o que sou, pai. Foi o que ele me disse, com a minha espingarda
apontada pra cabeça dele.
Ninguém põe um filho no mundo para ter de matá-lo um dia.
Ninguém. Você cria, dá comida e teto, educação e tudo mais. Você quer que
ele viva, que seja feliz, que também tenha filhos e netos, e bisnetos, e que a
sua linhagem perdure por todo o tempo, assim como a incontável semente de
Abraão. Um filho é uma parte sua, com um nariz ou olhos que se assemelham
aos seus, a boca e o queixo da mãe, e as mãozinhas de alguém de outras
gerações. Filho é feito pra orgulhar os pais, pra justificá-los. Alguns falam em
vida após a morte, em Céu e Inferno, em reencarnação, mas, no fundo, não
acredito em nenhuma destas baboseiras: são apenas historinhas para arrastar
as carolas pra igreja, meter medo na gente e encher os bolsos dos padres.
Imortalidade pra mim é o sangue, é aquilo que se passa de pais pra filhos, que
perdurará mesmo depois que houvermos vestido o terno de madeira.
Eu não queria dar cabo à vida do meu menino, mas ele não me
deixava opção.
“Sou o que sou”, ele me dizia, e isto só confirmava sua sentença de
morte.
Ele odiava ir ao sítio. O extremo oposto de mim. Cresci no meio dos
bichos, dos cavalos, dos bois e vacas, das ovelhas e cabras. Meu pai era um
matuto, não lia nem escrevia, não gostava de música nem de vadiagem.
Botou neste mundão de Deus uma dúzia de filhos. Eu, o caçula, cresci nas
barras da calça deste homenzarrão de verdade, sem frescuras nem medo do
trabalho. Ele me ensinou tudo que sei, e me ensinou até mais do que ele
imaginava saber. Dizia que eu não devia ter medo de ir até as últimas
consequências, que palavra dada é palavra cumprida, que homem não chora e
que toda ação tem uma reação. Era um sábio da vida real, sem frufrus nem
filosofias. Ele morreu antes que eu me casasse, por isto, não viu quando
nasceu meu primeiro filho. Gostaria tanto de saber que conselho ele me daria
naquela hora crítica. Mato ou não mato este menino, senhor meu pai? Então,
ele coçaria a barbicha grisalha e, com a voz firme e baixa, meu pai me diria o
veredicto. E ele estaria certo, mesmo se estivesse errado. A vinda pro sítio
havia sido proposital. Só um estúpido mata alguém na cidade grande. Logo
chega a polícia e o leva algemado pra delegacia. Descem algumas bordoadas
em você e o jogam no xilindró com uma cambada de malandros, bêbados e
bandidos. E você apodrece naquele lugar por anos a fio à espera do
julgamento, e depois apodrece por mais uma década pagando por seu crime.
Sim, eu mataria meu filho, mas não pretendia ser preso. Por isto o trouxe pro
mato, pra longe dos outros, pra longe da mãe e da irmã, pra onde ninguém
ouviria o estampido, onde ninguém procuraria por uma cova, onde ninguém
suspeitaria de nada.
Ele relutaria, é evidente, porque odiava o sítio. Tinha nojinho do
barro e da lama, de carregar a lavagem pros porcos, dos cães sarnentos, do
casebre de madeira, dos pernilongões que nos devoravam à noite. Isto desde
pequeno, desde muito pequeno. Eu também queria ensinar a meu filho tudo
aquilo que meu pai me ensinou. Não tem nada de errado em ser um homem
simples, da roça, que planta e colhe o que come, que desce sem dó o
machado na nuca de um bezerro ou que mete a faca no coração de um porco
vendo-o sangrar até a morte, e depois comer o chouriço feito com o mesmo
sangue que você fez verter. Não tem nada de errado em acordar com o nascer
do sol, meter as botinas e o chapelão, montar num cavalo e cavalgar pelo
descampado. Isto é vida, isto é como todos os homens foram um dia na pré-
história do mundo. Por mim, moraríamos todos no sítio, com esta existência
simples e boa. Mas a mulher queria mais, queria o brilho das luzes da cidade,
dizia que ali não havia oportunidades e me perguntava que tipo de futuro
nossos filhos teriam naquele mato sem fim. Éramos dois jovens cheios de
sonhos e projetos, acreditei nela e comprei as promessas de felicidade na
selva de pedra. Mas, sempre que podia, eu retornava ao casebre no sítio, onde
eu respirava ar puro, como se fosse um peixe que volta pro rio. Nunca
consegui passar pro meu filho esta sensação. Para ele, o sítio era quase um
castigo, um lugar ermo, sem amigos, sem conforto, com bichos imundos e
mosquitos.
Ninguém é igual. Tentei me reconfortar. O mundo está mudando, os
outros me diziam. Os valores estão morrendo.
“Sou o que sou”, ele havia me dito, e talvez esta fosse a frase que ele
estava tentando me dizer durante todos estes anos, só não sabia como, ou
porque tinha medo de minha reação.
Ele era diferente de mim, sem dúvida. Mas também era diferente dos
outros meninos da idade dele. Não jogava futebol, nem tinha muitos amigos.
Vira e mexe, alguém o via andando com as garotinhas do bairro e um dos
vizinhos me disse que meu moleque seria o maior mulherengo da paróquia.
Encheu-me de orgulho isto, só de pensar que ele passaria o rodo na
mulherada. Pois macho que é macho é assim, tem mulher, uma chinoca e
ainda vai ao puteiro se sobrar energia. Inclusive, foi num puteiro que perdi
meu cabaço, e pra onde levei meu menino quando ele completou doze anos,
para iniciá-lo neste mistério da vida. Não deu certo, ele refugou e saiu
chorando do quarto, cinto desafivelado e limpando as lágrimas nas mangas da
camisa.
Que isso, ter medo de mulher, moleque? Perguntei a ele.
Não é assim que eu imaginava. Ele me disse.
Nunca é. Eu ri. Nunca é.
Mas o tempo haveria de resolver isto e eu estava certo que logo ele
arranjaria alguma namoradinha, ou cataria alguma caboclinha do sítio e a
levaria pra trás das jabuticabeiras e mandaria ver, honrando as bolas no meio
das pernas. Pois a natureza é sábia e segue seu curso. Se não é hoje, será
amanhã.
No entanto, não houve nenhuma namorada, nem caboclinhas. Meu
menino era tranquilão demais, passava mais tempo brincando com a irmã do
que qualquer outra coisa. Vez em quando, eu o via com uma das bonecas dela
no colo, usando pulseiras dela e até seus vestidos, mas minha mulher me
convencia. Ele só está fazendo companhia pra irmã, não tem maldade alguma
nisso. E ele continuava crescendo quase sem amigos, isolado num mundinho
só dele, apanhando dos coleguinhas na escola.
Nós nos afastamos quando ele entrou naquela idade da rebeldia,
quando tudo é culpa dos pais. Eu era o bronco, o bruto, o jumento ignorante.
E eu descia o cacete naquele garoto, metendo-lhe cintadas no lombo e
deixando-o de castigo por dias a fio trancado no quarto. Você vai aprender a
me respeitar! Eu dizia. Sou seu pai, ingrato desgraçado! A esposa tentava
intervir, apaziguar os ânimos, mas nosso lar havia se tornado um campo de
batalha.
Deixe estar. Um amigo me disse. Esta geração de hoje está perdida.
Seu menino vai quebrar a cara na vida, depois reconhecerá o valor do pai que
tem. Esta fase passa. Eu lhe garanto.
Então tentei me tornar um pai moderno, que não se preocupa com o
que os filhos fazem na rua até altas horas da noite. À mesa da cozinha, eu
ficava desperto até três ou quatro da madrugada, somente esperando o som da
chave na fechadura, para assim correr de mansinho ao meu quarto,
reconfortado porque meu filho havia retornado bem pra casa. Ele bebia e
fumava escondido, eu tinha certeza. A cidade o estava destruindo.
Você sabe o que seu filho anda aprontado por aí? Um conhecido me
perguntou, um dia. Estão falando que ele é uma bichinha.
Como assim? Perguntei, com o sangue me subindo à cabeça.
Parece que metade dos garotos da vizinhança já comeu o cu dele.
Aquela frase vinda assim, sem aviso, com uma crueza insensível,
tirou-me do sério. Enfiei a mão nas fuças deste fulano, lançando um dos
dentes dele pra bem longe. Tem de ter coragem de vir aqui chamar o meu
filho de viado! Eu gritei, enquanto outros me seguraram e apartaram a briga.
Mas a revelação bateu forte. Todo pai é cego, ou, melhor, todo pai prefere
não enxergar. Sempre soubemos que ele era meio diferente, lia poesia e
estava sempre choramingando pelos cantos. É melhor fingir que não está
vendo, pois nada o prepara para isto.
Você tem alguma coisa pra me contar? Perguntei a meu filho, num
domingo.
Notei que havia uma profunda tristeza nos olhos dele, mas, mesmo
assim, ele respondeu que não havia nada. Está tudo bem, pai.
Tem certeza disto? Insisti.
Pô, não enche! E ele fechou a porta do quarto na minha cara.
Foi naquela tarde que armei a primeira arapuca para desmascará-lo.
Planejei uma viagem ao sítio pro final de semana seguinte.
Não vou. Disse meu filho.
Vai sim. Toda sua família vai, por que eu deixaria você aqui
sozinho?
Só se me levar amarrado. Ele me desafiou.
Uma vez mais, a mulher quis ser a voz da razão. Se ele não quer ir,
deixe-o aqui. O que de ruim pode acontecer?
Concordei, fingindo contrariedade.
Ajeitamos a caminhonete com as malas e partimos na sexta à noite.
Meu filho ficava a sós em casa. Existe um ditado mais ou menos assim:
“quando o gato sai, os ratos fazem a festa”. Foi chegar ao sítio, deixar a
mulher e a menina, que entrei de volta no carro.
Aonde você vai? A mulher perguntou.
Não se preocupe... Já volto. E dirigi como um louco pra cidade.
Agora eu descobriria a verdade. Agora era a hora de o gato descobrir o que o
rato fazia.
As luzes de casa estavam acessas e já da calçada eu ouvia a música
alta. Entrei. Na sala, garrafas de cerveja, fumaça e roupas jogadas no carpete.
Fui direto pro quarto do garoto e escancarei a porta.
Nenhuma desconfiança se equipara à cena de encontrar seu filho
pelado na cama com outro homem. Isto é contra a natureza, contra a Bíblia,
contra a sociedade, pensei. Seus vermes nojentos! Berrei, enquanto investia
contra os dois. Expulsei a pontapés o namoradinho do meu filho, jogando-o
para fora de casa sem uma única peça de roupa no corpo. Depois, retornei
para dar em meu filho uma surra como nunca antes, nem depois.
De agora em diante, moleque, você vai me obedecer. São as minhas
regras, ou a rua. Ou você para com esta bichice, ou mato você! Entendeu?
Ele tinha apenas dezesseis anos e, aterrorizado diante da minha fúria,
concordou com tudo. Não contamos nada pra mãe dele, nem pra ninguém.
Aquela cena horrorosa, do meu filho nu na cama com outro, jamais
deixava a minha mente e nos afastou ainda mais. Eu não conseguia nem falar
mais com ele, juro que preferia que, naquela noite, ele houvesse partido por
conta própria para viver sua vida de imoralidade. Pois todas as vezes que ele
saía de casa para ir ao colégio ou encontrar amigos, eu pensava que ele
poderia estar aprontando alguma, e não dava para conviver com esta
desconfiança perpétua, principalmente quando outras pessoas vinham
espalhar mais boatos que meu filho era um maricas.
Ninguém quer ser pai do viadinho da cidade. Eu não queria esta
reputação.
Então, numa tarde, enquanto eu e ele assistíamos TV, observei
cuidadosamente meu filho. Ele não mudaria, não viraria homem de verdade
do dia pra noite. Eu tinha duas escolhas diante de mim: aceitá-lo tal qual, e
toda a família sofrer as consequências disto, ou pôr um ponto-final naquela
história.
Ponha seu casaco e venha comigo. Eu disse.
Pra onde? Ele me perguntou.
Cale a boca e me obedeça! Ordenei, e ele me seguiu. Entramos na
caminhonete e pegamos a estrada.
Pra onde estamos indo? Ele me perguntava, mas eu não conseguia
responder.
Estava anoitecendo quando chegamos ao sítio.
Espere por mim aqui fora. Ordenei.
Entrei no casebre, apanhei um lampião e minha espingarda. Acredito
que meu filho já soubesse qual seria o destino dele quando me viu retornando
com a arma. Ele empalideceu, erguendo as mãos unidas como se rezasse, mas
não deu um pio sequer.
Vai, anda! Eu disse.
Pra onde? Ele gaguejou.
Por aquela trilha ali.
Fazia frio e eu tremia um pouco. Meu garoto caminhava na frente,
tropeçando nos galhos e raízes do caminho. Depois de uns bons vinte minutos
na mata, mandei que ele parasse.
Ajoelhe! E ele me obedeceu, com uma passividade assustadora.
Pendurei o lampião numa árvore e me aproximei do meu filho,
encostando o cano da espingarda na nuca dele.
Juro que queria que tudo fosse diferente. Resmunguei.
Sou o que sou, pai. Esta foi sua única frase. Meu filho não suplicou
pela própria vida, não me pediu perdão, não argumentou, não falou mais
nada, somente isto.

Durante vinte anos, não deixei de pensar em meu filho um instante


sequer. A culpa consome. A culpa nos exaure.
Numa certa noite, minha esposa sentou-se diante de mim e, bastante
séria, disse-me.
Tenho algo muito importante para lhe contar. Sei tudo que você fez.
Dói muito pensar que você me privou do meu menino. Dói muito. Porém, faz
um tempo que ele me procurou e temos nos encontrado.
O nosso filho? Eu me levantei, com os olhos arregalados. Você tem
visto o nosso filho?
Ela o trouxe para me visitar alguns dias depois. Havia se tornado
uma mulher sem tirar nem pôr, cabelos compridos loiros, cílios enormes,
batom, maquiagem, vestido justo e peitos. Era casado com um italiano e
vieram num carro importado.
Meu filho entrou e me abraçou.
Você me disse para ir embora e ficar longe. Para nunca mais voltar.
Só que não consegui ficar distante. Só queria ser amada pelo que sou.
Foi no instante em que vi meu filho travestido de mulher, sentado na
sala ao lado do marido, e não me importei, que percebi como eu havia me
transformado. Quisera ter sido antes o mesmo homem que sou hoje. Teria nos
poupado de tanto sofrimento, de tanta mágoa.
Antes de partir, ao embarcar no carro, meu filho me abraçou e
sussurrou no meu ouvido.
Sou o que sou, pai. E me lançou um sorriso, mesmo que a tristeza
profunda ainda existisse em seu olhar.

Perúgia
27/10/12
A Metamorfose

Certa manhã, após sonhos inquietantes, Luís de Almeida Neto


despertou metamorfoseado num repugnante trabalhador braçal. Ao seu lado
na cama não havia nenhuma modelo capa da última edição da Vogue,
nenhuma ex-coelhinha da Playboy, mas sim Jurema, uma mulata descabelada
que o chacoalhava com desprezo e, talvez, até com um pouco de ódio.

Não acredito que você vai se atrasar de novo pro trabalho,


Claudomir! Andou bebendo de novo, seu desgraçado? Se você for despedido
mais uma vez, juro que vou me embora. Juro por Deus.
Luís, agora conhecido como Claudomir, se levantou e cambaleou até
a cozinha, ainda se adaptando àquele novo corpo bronzeado e àquelas mãos
grossas e calejadas.
Não tinha café na cama trazido por uma empregada. Era café preto e
pão com margarina, sempre sob o olhar severo de Jurema.
Seu bêbado desgramado… Ela sibilava.

Na porta do casebre, não havia nenhum Aston Martin, mas sim um


esgoto à céu aberto. Pelo que Jurema lhe dissera, ainda tinha de pegar três
conduções e o sol começava a despontar no horizonte.
Projetou-se para o interior do ônibus lotado, todos espremidos,
coagidos a enfrentar o sovaco alheio. Roubaram os dez reais que Claudomir
tinha no bolso, mas pelo menos deixaram os documentos.
No canteiro de obras, todo estabanado, Claudomir levou uma comida
de rabo atrás da outra do mestre-de-obras.
O que que tá acontecendo contigo hoje, homem? Tá parecendo uma
dondoca carregando estes sacos de cimento. Vai lá, cabra, apure nisto aí.
E Luís, agora chamado de Claudomir, trabalhou duro como nunca
antes na vida. Queria chorar. Queria ligar para o pai que agora devia estar nas
Bahamas em seu veleiro. Mas Claudomir não tinha papaizinho milionário, o
dele tinha sido morto numa troca de tiro entre polícia e traficantes, evento que
até foi noticiado nos jornais.
Na hora do almoço, sentou para comer sua marmita e lhe bateu uma
profunda tristeza.
Tá de bode, é? Um dos colegas de trabalho perguntou.
Você já sentiu como se estivesse vivendo a vida errada, como se
fosse outra pessoa e estivesse dentro de um corpo que não é seu? Claudomir
tentou expressar a estranha experiência, mas as frases lhe saíram
entrecortadas e confusas.
Todos os dias. Na verdade, sou o Brad Pitt, mas nasci no lugar
errado. O colega riu. Porra, Claudomir, cala esta tua boca e come! Desde
quando você deu para filosofar?
E a tristeza foi se aprofundando ao longo dia, até um ponto
insuportável. Claudomir se sentia pequeno, insignificante e vazio.

A primeira coisa que fez ao sair do serviço foi passar no boteco e


beber com os amigos. Chegou tarde da noite em casa e Jurema o recebeu com
aquela cara de cu.
O que foi, porra? Um homem não pode ter um pouco de alegria nesta
vida de merda? Ele gritou.
Cê não muda nada mesmo. Um dia, me perde e verá falta que faço.

E assim se transcorreu um mês. Claudomir acordando cedo, pão com


margarina, três conduções, trabalho duro na obra, marmita, aguardente e as
brigas, algumas violentas, com Jurema.
Então, algo mudou dentro de Claudomir, talvez a constatação do
inexorável destino que havia recaído sobre si. Ele jamais voltaria a ser Luís
de Almeida Neto, aquela era uma página virada em sua vida, talvez fosse até
um devaneio, talvez nunca houvesse sido outra pessoa de fato, mas sim e
sempre Claudomir Silva, aquele pobre diabo sem futuro. E esta dura
constatação foi libertadora. Se ele era aquilo e não havia solução, por que se
entristecer?
Assim, aos poucos, Claudomir foi se tornando cada vez mais
Claudomir, e a memória de Luís de Almeida Neto foi desvanecendo, até
sumir por completo. A metamorfose havia sido integralmente internalizada.
Então, numa noite de sexta-feira, Claudomir chegou à casa com um
ramalhete de flores.
São pra você, Jurema. Tinha uma coisa errada comigo aqui dentro.
Algum demônio tentando me convencer que isto aqui não era real. Mas ele se
foi…
Eles se amaram naquela noite como há muito não faziam.

Então, por um instante, Claudomir se deu conta de que, bem no


fundinho, ele era feliz. Uma felicidade oprimida e tímida, que surgia pelas
brechas do sofrimento, mas felicidade mesmo assim.
Felicidade apesar de.

2016
Seu Tomás vai ao parque

Me disseram que o contato com a natureza alivia o estresse. Porra, pai,


você anda muito tenso. Tá precisando relaxar um pouco. Vai tomar um pouco
de ar puro. Foi exatamente o que me disseram. Odeio natureza e odeio ar
puro. O meu negócio mesmo é concreto e ar poluído. Esta foi a desculpa que
inventei para mim mesmo há pelo menos uns vinte anos pra aguentar esta
bosta de vida na cidade grande. A gente inventa muitas desculpas pra tocar
em frente o suplício que chamamos de vida. Eu mesmo já inventei uma
porção delas. Foi assim que suportei por tanto tempo um casamento infeliz,
um emprego tedioso e até um pouco degradante na repartição, aquele
cachorro infernal que não para de latir no quintal, a assinatura do jornal que
sempre me esqueço de cancelar e que só fingia ler para dar uma de bem
informado mas que agora só serve para forrar o mijo do cachorro infernal
latindo no quintal, ou seja, todas aquelas coisas que vão nos definindo, que
não gostamos, mas das quais temos uma tremenda dificuldade de nos libertar.
Então peguei um sábado e fui ao parque mais perto de casa. Me sentei
num banco e apalpei os bolsos do casaco procurando um cigarro. Acabaram.
Fazia um frio da porra e uma criança feia não parava de me fitar.
Tá olhando o quê, sua diaba? Pensei, mas obviamente não disse.
As árvores balançavam ao vento e tinha uma meia dúzia de patos no
laguinho. Estava nublado.
O contato com a natureza alivia o estresse, foi o que me disseram.
Fazia um frio desgraçado e os cigarros haviam acabado. Era apenas isto que
eu sabia.

Alhama de Murcia
outubro de 2017
Cai o avião

Era o primeiro voo da vida da Dona Elvira. Ela que sempre teve
medo de avião. Mas agora era questão de vida e morte, ou melhor, só
de morte, pois havia morrido seu irmão que não via há mais de quinze
anos. Ia ao velório.
Assim que o avião decolou, já indicou problemas. As luzes de
emergência se acenderam, as máscaras de oxigênio despencaram sobre
a cabeça de Dona Elvira e a turbulência chacoalhava tudo com a
violência de um terremoto.
Há um silêncio sepulcral nestas horas. Ninguém grita. Ninguém
se move. Ninguém sequer pisca. Estática, paralisada, Dona Elvira quis
rezar, mas nem do Pai-Nosso se recordava.
Com o canto de olho, observou o passageiro ao lado que tentava
ler um jornal. De uma impassibilidade legendária. Do tipo que, numa
missão kamikaze, poderia arremessar um Zero contra um torpedeiro
americano.

Não quero morrer. Disse Dona Elvira, segurando na mão


daquele homem corajoso, muito mais jovem do que ela.
Quem quer? Ele perguntou.
Mas não tem medo? Todo este trem balangando prum lado e
pro outro e nós aqui vendo a morte nos zóio.
Não se preocupe. Não vai acontecer nada. O problema é a rota.
Faz muito vento neste trecho. Muita tempestade. Venho e volto neste
voo toda semana. No começo, é de arrepiar, mas depois se habitua.
É sempre assim? Perguntou Dona Elvira, sem conseguir relaxar.
Tem dias piores que outros. Hoje está tremendo bastante.
Então, sem mais nem menos, a turbulência parou. O sinal de
atar cintos se apagou e as comissárias voltaram a desfilar de um lado ao
outro.
Passou? Ela perguntou o homem.
Sim, passou.
Ufa, que alívio. E ela limpou o suor que lhe escorria pelas
têmporas. Sabe de uma coisa?
Não, não sei.
Na volta, venho de ônibus.
Logo após o enterro do irmão, Dona Elvira apanhou um ônibus
de volta pra casa. Chocou-se de frente com um caminhão. Todos os
passageiros morreram, mas o caminhoneiro saiu ileso.
Já o homem do avião continua fazendo todas as semanas aquela
rota. Às vezes, sabe-se lá por que, vêm-lhe à mente aquela senhora que
tanto temia a morte. Então ele gargalha sozinho com o jornal aberto no
colo.

Alicante
outubro de 2017
A Ceia dos Solitários

O primeiro Natal sozinho. Na memória, as festas de infância com


toda a família reunida. Peru. Árvore com luzes e bolas coloridas. O tio
fanfarrão fantasiado de Papai Noel, provavelmente bebadaço. A primaiada
correndo de um lado ao outro, e um que sempre acabava na reta da varinha de
marmelo da vó.
Mas hoje é Natal. O nascimento de Jesus. Alguém dizia, mas nem
isto servia para poupar das lambadas. Há quanto tempo isto? Dez, quinze
anos atrás.
O primeiro Natal sozinho. Papai já havia morrido há muito. Mamãe,
ano passado. Já morava fora e não fui ao velório. Minha irmã nunca me
perdoou. Até hoje não nos falamos.
O primeiro Natal sozinho. Está nevando lá fora de novo. Dizem que
este inverno será particularmente rigoroso, com mais nevascas previstas para
janeiro.
Cidade de merda. Murmuro em pensamentos vendo os flocos
brancos deslizando lentamente até a rua lá embaixo.
Pensei em voltar este ano, mas para quê? Os que não estavam
mortos, já haviam morrido por dentro. Os primos todos espalhados pelo país,
cada um em seus cantos, com suas respectivas famílias. Seria um Natal tão
triste lá quanto aqui.
Natal branco, como nos filmes, mas ninguém conta sobre a tristeza
que dá ao mergulhar na escuridão e no frio. Natal branco é morte, e muitos se
suicidam às vésperas do Natal.
Nasce o menino-Jesus, outros cortam os pulsos no chuveiro.
Não vou ficar aqui pensando em tais coisas. Hoje não. Porque não.
Visto meu casaco e saio porta afora, correndo escada abaixo e
encarando o vento gélido e atolando os pés em trinta centímetros de neve.
Há um bar a três quadras de casa. É pra lá que vou. Uma meia dúzia
de gatos pingados se perde na meia luz, alguns sozinhos nas mesas, outros
sozinhos no balcão. O que nos une é a solidão.
Peço uma Lager e o bartender logo enche o caneco. Dou um gole e,
quando pouso a bebida no balcão, meu olhar encontra o dela do outro lado.
Uma alemã típica, meio corpulenta, loura e rugas ao redor dos olhos
azuis. Tem uns vinte anos a mais do que eu, calculo. Não faz bem o meu tipo,
mas, mesmo assim, sorrio pra ela.
Sem hesitar, ela se levanta e senta-se ao meu lado, mas, por vários
minutos, não diz nada. Nem eu, sem reação, um pouco intimidado, confesso.
Este será o meu último Natal. Ela diz, por fim. O último.
Permanecemos quietos, eu com o “Warum?” entalado nas entranhas.
Me deram mais três meses apenas. Depois, acabou. Ela disse.
Era tão nova. Fitei-a com cuidado agora, quase descaradamente.
Sei o que você está pensando… Câncer. E ela deslizou a mão por
sobre o seio. Assim como a minha mãe. Ela disse.
Sinto muito. Respondi. Sinto muito…
Obrigada. Ela disse, repousando a mão dela sobre a minha.
Estremeci. Ela não fazia o meu tipo, e reconheço que tive um pouco
de medo, como se a morte estivesse pairando sobre nós dois naquele
momento.
Quer vir para a minha casa? Perguntei, num impulso, sem nem bem
entender por quê. Tinha pena, sem dúvida alguma, mas não havia sido apenas
isto.
E ela veio.

Não tenho nada para preparar para nós. Eu disse, abrindo os armários
da cozinha.
Qualquer coisa está bom. Ela respondeu, sentada no sofá da sala. Só
não queria ficar só. Esta é uma época muito triste, mas é muito pior quando
não temos mais ninguém. Onde está sua família?
No Brasil. Eu disse. Mas não quero falar sobre isto.
Preparei umas salsichas e um espaguete. Comemos em silêncio,
escutando o ruído delicado da neve na vidraça e os sons das bocas
mastigando.
Por que me trouxe pra cá? Ela perguntou.
Não sei. Acho que também não queria estar só esta noite.
Vai dormir comigo? Ela perguntou, e me desarmou.
Se quiser… Respondi.
Não quero. Não como um homem e uma mulher, pelo menos, mas
como pessoas, como os seres humanos que somos. Você podia simplesmente
se deitar comigo e me abraçar bem forte e sussurrar no meu ouvido que tudo
ficará bem, que eu não sofrerei, que o fim será plácido como um pôr do sol,
então eu adormecerei e este terá sido um bom dia; um dia a menos, um dia
mais próximo do fim, menos um dentre os noventa dias que me restam. Faria
isto por mim?
Eu a puxei pela mão até o meu quarto, sempre muito bagunçado,
com livros, meias e cuecas no chão; sem ordem nem propósito como a vida.
Você é apenas um rapaz… Ela disse. Ainda verá e viverá muitas
coisas estranhas. Esta noite terá sido apenas uma delas.
Nós nos deitamos um do lado do outro e eu a abracei por trás. Ela
puxou a minha mão para o seio dela – o do câncer, suponho – e ficamos
assim por sabe-se lá quanto tempo.
Ela adormeceu, então me levantei e fui para a sala levemente
iluminada pelas luzes de fora que atravessavam a vidraça.
Ainda nevava. Não estava mais sozinho. No quarto, dormia uma
mulher cujo nem o nome eu sabia. Ela morreria em breve. Eu morrerei um
dia. Tudo vai ficar bem. Sussurrei. Tudo vai ficar bem.

Alcalá de Henares
Dezembro de 2016
Tragédias
Amor maldito

Cristóvão abriu o portãozinho dianteiro e entrou. Abriu a porta de


casa e entrou. Abriu a porta do quarto e entrou. Estela, sentada na cama com
os olhos arregalados e as mãos unidas frente ao peito, deu um berro.
Você está de volta.
Sim, ele estava de volta. Bruxaria. Macumba, se preferirem. Coisa do
capeta.
Ele era um safado desgramado que durante todo o casamento (e até
antes, pra ser sincero, mas ela não sabia) havia corneado Estela até dizer
chega. Não havia mulher na vizinhança com quem Cristóvão não houvesse se
achegado ou dado em cima. Ele batia em Estela quando bebia; e batia nela
sóbrio também, mas só de vez em quando.
Quando vivo, tudo que Estela queria era que este filho de uma égua
batesse as botas.
Deus há de me livrar deste demônio sem coração. Ela rezava
ajoelhada diante da imagem da Nossa Senhora.
Então, Deus ouviu as preces dela e Cristóvão encontrou o fim do dia
pra noite. Pá, e caiu morto no meio da cozinha de casa na hora do café da
manhã.
Estela se viu livre do homem que fazia da sua vida um inferno. Nos
dias seguintes, decidiu trajar um vestidinho curto que exibia as coxas e
desfilava toda faceira pelo bairro. Se o Cristóvão a visse assim toda-toda,
nossa, nem quero pensar no que lhe faria.
Pois bem, passou dia, passou semana, passou mês. E foi batendo uma
tristeza doída no peito de Estela. O desgraçado fazia falta. Era um homem
bruto e burro, mas era o seu homem. O cartaz colado no poste era um
convite. TRAGO A PESSOA AMADA EM SETE DIAS.
Aí está. Disse Estela, que bateu à porta da bruxa.
Mas não posso trazer homem morto de volta. Ela disse. Só trago
gente viva.
Então é propaganda enganosa. Estela se levantou e deu um murro na
mesa. Vou te queimar com as minhas conhecidas.
Olha, minha filha, isto é magia das mais negras. Não é o tipo de
coisa com que se brinca. Se eu fizer isto pra você, tem que jurar que não dirá
que fui eu quem fez.
Juro. Disse Estela, e a bruxa operou o ritual.
Sete dias depois, Cristóvão abria o portãozinho, a porta de casa e a
porta do quarto.
Que alegria era a da Estela, com o coração pulando no peito com
violência. Seu homem havia voltado.
Só que a primeira coisa que Cristóvão fez foi meter-lhe um tabefe
nas fuças.
Eu estava te vendo, sua rapariga, mostrando estas coxas por aí e
rebolando pelas quebradas. Eu estava te vendo e te seguindo. Fui eu quem
sussurrou no teu ouvido diante daquele cartaz. Fui eu quem te lançou esta
ideia de me trazer de volta. Porque você é minha e sempre será.
O que dizem por aí é que Estela se matou por tristeza, que não
aguentou a saudade, que não conseguia viver sozinha. Mas tem gente que
insiste que viu o vulto saindo de madrugada, e andam dizendo que tinha
sangue lhe escorrendo das mãos.
Já a bruxa, faz tempo que não atende mais o telefone. Parece que se
mudou pra Bahia.

Perpignan
14/01/2017
A Mulher do Alfaiate
Inspirado na pintura La costurera de Diego Velásquez

Armando se abaixou para pegar as chaves e creeeec, as calças se


rasgaram de cima a baixo bem nos fundilhos. Naquela hora, ele amaldiçoou o
fato de não ter cumprido a promessa de ir à academia para perder os quilos
que ganhou depois de se casar. Algumas pessoas o olhavam, certamente
avistavam a cueca azul através do rasgo.
Ele retirou o paletó e, segurando as mãos atrás das costas, tentou
disfarçar. Embrenhou-se por algumas ruas menos movimentadas e se perdeu
numa parte daquela vizinhança que desconhecia. Muitas casinhas
residenciais, com muros baixos e cachorros bravos tentando atacar pelos vãos
dos portões. Ele avistou o cartaz dependurado na fachada de uma delas:

Alfaiate
Ternos sob medida
Fazemos pequenos reparos

Como não havia campainha, Armando bateu três palmas:


— Ô, de casa!
Por entre as cortinas na janela, uma mulher fez um sinal para que ele
entrasse.
Ele a encontrou costurando um vestido.
— O senhor pode aguardar um pouco? O meu marido já volta — o
alfaiate ia pelas manhãs ao Centro para comprar material.
— Desculpa, mas tenho um pouco de pressa, estava a caminho do
trabalho quando... — Armando se virou, mostrando o rasgo nas calças.
Ela riu, mas logo tapou a boca com as mãos.
— Vai, pode rir! Eu também estaria rindo se não fosse comigo — e
ele tentou dar uma gargalhada, mas soou tão artificial que pensou que até
poderia tê-la ofendido.
— Nisto eu posso dar um jeito, é só tirar as calças que resolvo num
minuto.
Ele procurou por um provador, ou um banheiro, mas ali só havia
cadeiras, uma mesa, a máquina de costura, linhas, alfinetes e outros
instrumentos de alfaiataria.
— Não precisa ter vergonha, tire as calças.
Se estivesse diante do marido, o alfaiate, não seria tão embaraçante.
Apenas três mulheres haviam visto Armando de cuecas: a mãe, a primeira
namorada com quem ele perdeu a virgindade e a esposa. Se você já esteve na
mesma situação que ele, tendo de tirar as calças diante de uma mulher
totalmente desconhecida, deve entender como ele se sentiu. Armando virou-
se de costas para ela, desafivelou o cinto e desceu as calças. Pelo reflexo da
janela, percebeu que a costureira o examinava. Muito constrangedor!
Sem se virar, ele estendeu as calças para ela.
— Agora, sente-se aí enquanto eu faço o reparo — e Armando
obedeceu, cruzando as pernas como uma moça, para não exibir suas partes.
Lentamente, a costureira passou a linha na agulha e começou a coser.
As mãos eram delicadas e brancas, o olhar sempre fixo no trabalho, a
respiração suave. A vergonha de Armando começava a passar e, pela
primeira vez, ele reparou como a costureira era bonita. Sua blusa tinha um
decote grande e ele podia ver as alças do sutiã e uma medalhinha da Nossa
Senhora sobre o seu colo. Uma recordação de infância: de sua mãe sentada na
sala, diante da TV, costurando as suas meias; uma memória tão singela que
Armando quase se levantou para abraçar a costureira. Dois anos que sua mãe
morrera. Mas logo lhe ocorreu outra cena: ele enfiando a mão dentro daquela
blusa, puxando os seios para fora e beijando-os, chupando-os, podia até
escutar os arfar de excitação da costureira enquanto a outra mão buscava
espaço por dentro da saia, pelo meio das pernas, puxando a calcinha para o
lado e penetrando-a lentamente. Ela gemia, gemia, gemia, e Armando teve
uma ereção.
— Pronto! — ela disse, entregando-lhe as calças, mas Armando não
queria, não podia se levantar — Aqui está.
Ainda sentado, ele a pegou, e dirigiu-lhe os olhos desesperados.
— Não vai prová-la? Ou vai embora apenas de cuecas? — ela riu.
Sem mais opções, Armando se ergueu e a costureira pode ver o que
ele ocultava. Ela recuou, assustada, como se visse uma surucucu ou uma
jararaca no mato. Depois se virou, fingindo que arrumava a mesa.
Ele não disse nada, apenas se vestiu, deixou o dinheiro na cadeira e
sumiu. Acredito que ele até corria, de tanto constrangimento.
No entanto, mais tarde, na hora de dormir, Armando voltou a pensar
na costureira, no colo branco, nos seios dela, em seus dedos penetrando-a, em
como ele a segurava nos braços, levava-a para um quartinho nos fundos
daquela casa, e transavam como cães, de quatro, ele puxando-lhe os cabelos
enquanto ela encarava-o com o canto dos olhos e lambia os lábios. A esposa
de Armando dormia ao seu lado, quase uma estranha para ele nestes últimos
anos, com quem não conseguia conversar, sem sexo há mais de três meses.
Ele até tentou despertá-la, roçando o pau duro contra ela, mas a esposa lhe
pediu para deixá-la em paz, até mandou que ele se fodesse por tê-la acordado.
Quando Armando apareceu novamente, na manhã seguinte, a
costureira não acreditou. A caminho do trabalho, ele se debateu contra esta
ideia, chegou a ensaiar a entrada no elevador da firma umas cinco vezes, mas,
por fim, retornou àquela região do bairro, à procura da casa do alfaiate. Ele
rasgou uma das mangas de sua camisa, como pretexto.
— Você não vai acreditar, mas tive outro probleminha hoje — ele
resmungou, bastante desconcertado. Armando mostrou-lhe a manga de
camisa rasgada.
— Não prefere esperar pelo meu marido? — ela disse. A presença de
Armando a perturbava.
— Não tenho tempo. Tenho de ir ao trabalho — e ele começou a tirar
a camisa. A respiração dela se acelerou. Ela mexeu nos cabelos e evitava fitá-
lo. Armando se aproximou e segurou suas mãos.
— Você é um anjo, sabia? — mas ela não respondeu.
Ele chegou mais perto e sussurrou no ouvido dela.
— Pensei a noite toda em você. Acho que estou enlouquecendo — e
beijou pescoço dela e mordiscou a orelha. A costureira estremeceu.
— Meu marido... Meu marido... — ela balbuciava, enquanto
enlaçava Armando num abraço.
Eles se beijaram e aquilo que Armando tanto imaginara nas últimas
horas se tornava realidade, no entanto, todo o tempo, mesmo enquanto ele a
penetrava de pé num canto da lavanderia, ela gemia.
— Meu marido... Ai, meu Deus, o meu marido!
Assim, todas as manhãs, antes de ir ao escritório, Armando passava
na casa do alfaiate para transar com a esposa dele.

— Vamos fugir — um dia a costureira sugeriu — Vou largar meu


marido, você deixa sua mulher e vamos ser felizes juntos.
— Jamais daria certo — ele respondeu, contrariado — Somos tão
diferentes. E você não é como minha mulher...
— Como assim?
— Não sei explicar... Você é apenas uma costureira — Armando
disse e, na mesma hora, se arrependeu.
— Apenas uma costureira? O que você quer insinuar com isto?
— Não foi o que quis dizer...
— Acha que não sou boa o suficiente para ser sua mulher? Sou
apenas uma coisa na qual você mete este seu pinto mole? — e ela apanhou
uma tesoura de costura, daquelas grandes, pretas, de ferro, e apontou para
Armando — Não sou mulher pra você?

O alfaiate encontrou a esposa morta num canto do quarto, toda


ensanguentada, os pulsos cortados. Nas mãos, apertando com uma força
imensa, a grande tesoura de costura e uma recordação de Armando, que,
naquele mesmo instante, chegava mutilado ao Pronto Socorro.
— Foi a costureira! — ele berrava — Queria apenas que ela
costurasse as minhas calças... As minhas calças!

Buenos Aires
03/08/2011
A Saia de Maria Rita

Na mesa de Jürgen havia uma foto dele em Porto de Galinhas.


Mais novo. Só dezoito aninhos então e uma porção de sonhos naquela
mochila que carregou por todo o país.
Ficou fascinado, aprendeu a arranhar o violão e prometeu: um dia
volto e abro uma pousada.
O que não aconteceu, evidentemente. Acabou a faculdade, foi
contratado pela Siemens e a memória do Brasil ficou resguardada apenas nas
fotografias e nas melodias que tirava no violão.
Isto até um colega o convidar para uma festa num galpão
escondido em Kreuzberg.
Vai estar cheio de mulatas. Ele havia dito.
Como você sabe? Jürgen perguntou.
Mas é evidente. Uma festa de brasileiros.

Fato: tinha algumas mulatas, a maioria já casada com alemães.


Haviam se conhecido no Brasil e eles as trouxeram para cá. Algumas deviam
ser putas, sem sombra de dúvida. Não que Jürgen tivesse algum problema
com isto. Havia se divertido pra caralho com os amigos da última vez que
estiveram em Amsterdã. Havia conhecido algumas putas brasileiras lá
também.
Os branquelos dançavam, sempre desengonçados, com as mulatas.
Samba. Pagode. Funk. Cerveja alemã e caipirinha.
No meio da roda, dançava Maria Rita, girando como um pião,
segurando com uma das mãos a barra da sua saia comprida.
Era a alma da festa. Solteira, nenhum alemão a tiracolo. Não tinha
cara de puta. Pelo contrário, era trabalhadeira, acordando às cinco da manhã
todos os dias. Camareira num hotel bacana. Para a grã-finada da Europa. De
primeiros-ministros a presidentes.
Viste, era o Hollande? Uma colega portuguesa a cutucou enquanto
passavam o aspirador no carpete daquele corredor interminável.
Quem? Maria Rita apertou a vista. Era meio míope, mas bem
pouco.
O presidente da França!
Ah. Não conhecia.
Queria ter visto o Lula ou a Dilma, os que tiraram da miséria
milhões de pessoas. Que lhe importava o presidente da França, que não lhe
havia feito nada? Aliás, detestava franceses, com aquela sovaqueira da porra.

O olhar de Jürgen, quarenta anos e engenheiro da Siemens, se


encontrou com o de Maria Rita, vinte e dois anos e camareira.
Ela procurava um alemão pamonha para chamar de seu
(problemas de imigração, sabe como é?), e ele por uma mulata brasileira para
chamar de sua (as alemãs são todas umas frígidas).
Se você acreditar em destino, dirá que foi isto. Prefiro pensar que
foi um encontro de interesses.
Não transaram na primeira noite, pois Maria Rita era uma mulher
que se dava o respeito, mas também porque Jürgen era meio lentão; talvez
optasse por se chamar de um "homem respeitador".
Ela se mudou para a casa dele algumas semanas depois. Não havia
sido convidada, simplesmente veio, mas Jürgen não se opôs. Mulher ordeira e
carinhosa. Estavam felizes.
Queria que conhecesse meus pais. Maria Rita jogou a ideia uma
noite, antes de irem dormir.
Jürgen varou a madrugada se revirando na cama. Ansiedade. Era
um pedido sério, de compromisso, mas também tinha a empolgação de voltar
para aquele lugar maravilhoso, uma explosão de vida e cores. O paraíso na
terra.

Saíram da escuridão e da neve berlinense para o tórrido verão


carioca.
Você se lembrou de passar filtro solar? Maria Rita perguntou a
Jürgen.
É claro. Ele resmungou, mas mentia. Havia se esquecido e, no
final do dia, já estava ardido e vermelho como um pimentão.
A família de Maria Rita o saudou como a um filho, beijando e
abraçando, com seus corpos suados e grudentos. Feijoada, churrasco e futebol
na TV.
E assim se passaram os primeiros dias.
Então, Maria Rita ficou calada e pensativa, sem aquela energia
vital e contagiante tão característica dela.
O que foi? Alguma coisa errada? Jürgen perguntou.
Nada. Só bateu uma tristeza.
E ele entendia bem esta melancolia dela, também sentiria falta
desta terra maravilhosa quando houvessem de partir de novo para a pátria fria
e opaca onde nascera.
Mas não era isto que afligia Maria Rita. Antes fosse.

Numa noite, quando Jürgen e Maria Rita subiam o morro de


braços dados após um lindo passeio por Copacabana, um grupo de rapazes os
cercou numa quebrada, todos moleques de quinze ou dezesseis anos, alguns
armados com pistolas e outros com fuzis.
Então apareceu o Zoião e agarrou Maria Rita pelos cabelos,
enquanto os demais meteram uns chutes no cu do branquelo.
Voltou é, vagabunda? Que coragem, heim!
Deixa a gente em paz. Ela disse, chorando.
Nada disso, mulé. Cê tá pensando o quê? Aqui quem manda sou
eu, porra, aqui eu sou a lei.
Maria Rita e Zoião haviam sido namorados alguns anos antes, mas
quebravam demais o pau. Ele batia nela, e tudo o mais. Maria Rita fugiu (ou
foi afugentada) para a Alemanha, enquanto Zoião cresceu e apareceu e se
tornou o dono do morro. E ela torcendo para que ele já estivesse há muito
morto, fuzilado pelo BOPE em alguma viela ou por alguma facção rival.
Este encontro só podia dar merda.
Jürgen não entendia palavra, mas não precisava ser nenhum gênio
para compreender que sua vida estava por um fio. Maria Rita e Zoião
gritavam. O cano do revólver em sua testa.
Vou morrer. Jürgen se recordou de sua viagem quase vinte anos
antes, e de como tudo lhe pareceu incrível e deslumbrante, até mesmo as
contradições e violências do país. Mas, agora, com as calças mijadas e todo
trêmulo, só queria voltar para sua terra opaca.

Retirou a foto da sua escrivaninha e não tocava mais violão. De


vez em quando, chorava sozinho no chuveiro sem nem saber bem por quê.
Talvez fosse o medo, a proximidade da morte, a constatação de quão frágil
era a sua existência, mas bem podia ser a recordação da mulata que deixou no
Brasil nas mãos de um bandido assassino, que havia apostado o futuro e a
felicidade dela para que ele pudesse estar ali, vivo, chorando no chuveiro. Era
o sacrifício de Maria Rita que doía mais.
Era isto.
O Fundo do Poço

Você se acostuma com o cheiro de bosta.


Penso que a gente se acostuma com qualquer coisa na vida. O pobre
mais desgraçado – morando no lixão, nas palafitas, sem um bocado de pão
pra pôr na boca – deve se acostumar, resignar-se talvez, com a sua vida; mas
o rico também. Acho que até carros importados e mansões na praia se tornam
triviais com o passar do tempo.
Foi uma farra. Voltei bebadaço para casa. ‘Tava puto da vida com a
Ritinha, ou melhor, ‘tava mesmo é puto com a minha sogra, aquela víbora
que não saía da minha casa e não parava de atazanar a Ritinha. Bastava eu
chegar em casa que dava de cara com a cobra, e mesmo quando ela não
estava por lá, eu podia sentir o cheiro do perfume barato dela, aquele odor de
velório que me dava vontade de vomitar.
Tua mãe ‘teve de novo aqui?
Como ‘cê sabe? A Ritinha perguntava.
Mas eu nunca respondia de tão nervoso que ficava com aquela
presença invisível em minha casa.
Naquela noite, o negócio foi pior. A velha estava lá e quis jantar com
a gente. Foi um inferno. Perguntou do meu emprego (ou melhor, da falta de
emprego) e de dinheiro. Ela sempre queria saber de dinheiro, e se faltava
comida, e se no dia em que a Ritinha engravidasse teríamos como alimentar
mais uma boca. E aquele perfume peçonhento empesteando os quatro cantos
da casa. Juro que até matava a véia se a Ritinha não fosse tão ligada na mãe.
Ela morria junto, acho. E eu morria junto da Ritinha também. Uma catástrofe
familiar.
A gota d’água foi quando ela falou que eu bebia demais, que eu era
um “alcoólatra”. Bati na mesa e saí gritando.
Pô, eu bebia sim, mas só nos finais de semana com os amigos. Às
vezes, às sextas à noite no arrasta-pé, e nos dias de jogo do Atlético, e
também quando estava meio tristonho. Mas não bebia tanto assim.
Certamente não era aquilo que a minha sogra me xingava.
Fui e enchi a cara como nunca antes. A cervejinha gelada e o papo
bom com os camaradas. Rimos muito e quase me mijei com uma das piadas
do Jorjão, aquele figuraça.
À uma da manhã, bebadaço, fecharam a birosca e tive de voltar. Por
mim, não ia. A Ritinha estava me dando uma fria ultimamente. Quase não
conversávamos mais, sem amorzinho gostoso, sem as nossas peles se tocando
de madrugada, segurando com gentileza os peitinhos pequenos dela e me
roçando em sua bunda.
Nada, e a culpa era daquela desgramada da mãe dela.
Vim caminhando pela noite escura, só com as estrelas salpicando as
trevas. O cheiro do mato e o capim alto raspando na minha perna. Aquele
vidão que eu não trocaria por nada neste mundo, mesmo a Ritinha insistindo
para irmos para Belo Horizonte, porque sonhava em ser secretária e ali, na
roça, nunca passaria de uma dona de casa. Aquela discussão habitual que me
enchia o saco (e que me fazia beber também).
Cantarolava uma canção que tinha ouvida no rádio e estava leve e até
um pouco feliz, mas, um passo em falso e perdi o chão.

Não sei como sobrevivi, como não quebrei o pescoço ou como não
quebrei nada no meu corpo: uma perna, umas costelas, a espinha. Caí de pé,
igual um gato, e afundei na água pútrida até o pescoço.
Já tinha ouvido muitas histórias de gente que caía nestes poços e
sempre foi muito motivo de piada nas rodas de cerveja.
Meu tio morreu assim. Contou uma vez o Pedrão.
Isto não tinha graça, mas quando alguém se arrebentava e era
resgatado e aparecia todo enrolado em ataduras como uma múmia e com
gesso e trupicando por aí, virava motivo de chacota.
Agora, quem seria razão de riso seria eu. Não me desesperei, a
princípio. Tentei subir pelas paredes, mas o barro úmido se soltava em blocos
entre os meus dedos e as raízes se partiam.
Socorro. Gritei. Alguém me ajude.
Mas quem passaria por aquele mato no meio da noite? Teria de
esperar amanhecer e, quem sabe, encontrar alguém para me dar uma mão.
Não dormi, meio reclinado na lama da parede, com aquele fedor de
bosta de vaca me nauseando. Jurei que, se Deus me resgatasse daquele poço,
se alguém surgisse para me salvar, eu nunca mais brigaria com a Ritinha, que
nunca mais beberia uma gota de cana, que nunca mais implicaria até com a
maldita da minha sogra. Pagaria promessa indo de joelho até Aparecida do
Norte. Prometi mundos e fundos. Alguém teria de ouvir as minhas preces lá
em cima, Jesus, a Virgem Maria, algum santo, algum anjo, alguma entidade
celestial.
O céu azul pelo círculo lá em cima. Era dia. Eu ainda estava vivo.
Ainda podia ser resgatado.
Ouvi um cachorro latindo e crianças rindo e gritando.
Ajuda, por favor! Socorro! Berrei outras vezes até me esgoelar. Elas
teriam de me ouvir.
Então avistei uma sombrazinha que se aproximou da borda do poço,
apenas uma silhueta me olhando desde lá em cima.
Caí neste poço! Preciso que alguém me tire daqui.
Mas não recebi resposta.
Aos poucos, fui percebendo mais nitidamente os contornos, a orelha
erguida e a silhueta latiu pra mim.
Ô seu cachorro de merda, traz alguém até aqui! Berrei outra vez.
Três latidos depois, o cachorro sumiu. As risadas das crianças
desapareceram. Apenas o silêncio, o cheiro de bosta, a água até o pescoço e
os dedos murchos.
Mais um dia se passou, e eu com fome e sede, com sono, com medo,
com vergonha.
Quanto tempo alguém pode sobreviver assim? Dias, semanas,
meses?
Gritei até perder a voz. Arranhei as paredes até perder as unhas. Me
debati até perder as forças.
E a imagem de Ritinha não me saía da mente, o cheiro do seu frango
ensopado com batatas, a sua pele lisinha e quente nas palmas das minhas
mãos grossas e brutas.
No terceiro dia, vi Deus.
No quarto, o diabo.
E, no quinto, me afoguei naquela água cheia de merda.

Ritinha nunca soube o que aconteceu comigo. Ainda hoje pensa que
fugi com uma amante. Ideia semeada e regada pela sogra, é claro.

Ploče
16/07/2017
O Muro

Um muro foi erguido entre eles. Um dia, despertaram e ele estava lá,
alto, cinzento e lúgubre, com arame farpado no topo.
Ele foi construído pelos homens no poder, por aqueles que não
aceitavam que gente com diferentes crenças e diferentes hábitos e diferentes
línguas pudessem conviver.
Então, elas encontraram um modo para se comunicarem.
Todas as manhãs, arremessavam para o outro lado uma pedra
embrulhada num papel.
E elas sempre concluíam suas cartas com as seguintes frases.
“Um dia, o muro cairá. Um dia, estaremos juntos outra vez. Nunca
me esquecerei de você”.

Alicante, outubro de 2017.

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