A Impureza Da Minha Mao Esquerd - Henry Bugalho PDF
A Impureza Da Minha Mao Esquerd - Henry Bugalho PDF
A Impureza Da Minha Mao Esquerd - Henry Bugalho PDF
Fiorenzuola D’Arda
Agosto de 2017
Cotó descobre a liberdade
Não gosto de café. Não bebo. Nem uma única gota. E não se trata
apenas do gosto, até o cheiro me causa aversão.
Isto vem de longa data; lembro-me de quando eu era criança e, na
casa de amigos, na hora do lanchinho da tarde, as mães deles preparavam a
mesa e nos serviam, e da minha cara quando elas enchiam meu copo com
café.
— Não toma?
E eu negava com a cabeça. Então, elas rapidamente trocavam meu
copo por outro, enchiam-no com leite e novamente aquela expressão de
repulsa na minha cara.
— Também não toma?
— Só com Nescau — eu respondia, o que as obrigavam a procurar
no fundo de algum armário, resmungando, por aquele pote de Nescau ou
Toddy já vencido de tão velho.
Isto também me causava embaraços durante o tempo que morei na
Europa. Toda vez que eu recusava uma xícara de café colombiano — dizem
que é excelente — ou um cappuccino, imediatamente fulminavam-me com os
olhos, como se eu houvesse proferido alguma heresia e o papa estivesse
prestes a me excomungar por isto.
— Não gosto, porra, simples assim!
— Brasileiro que não gosta de café não existe — retrucavam.
“Eu existo, logo brasileiro que não gosta de café também”, lógica
elementar.
No entanto, paradoxalmente, um dos meus grandes prazeres quando
eu contava uns dez anos era, ao irmos para a casa de minha vó no interior,
moer café.
Talvez você nunca tenha visto um antigo moedor de café na vida, eu
mesmo não o teria se não fosse por causa destas viagens, mas o princípio é
simples: é um aparelho de ferro, fixo numa mesa, com uma entrada no topo
semelhante a um funil, uma manivela que aciona uma engrenagem para
triturar o café torrado, e uma abertura no fundo, de onde se recolhe o pó.
Então, toda vez que minha vó perguntava:
— Quem quer moer o café?
Eu logo erguia a mão, apanhava o bocado de grãos torrados e corria
para um galpão atrás da casa, onde ficava o moedor. Meus primos e primas se
deliciavam com este período de folga, porque durante a minha breve visita
eles se viam livres desta obrigação diária.
E era neste mesmo depósito que ficavam armazenadas sacas e mais
sacas de café, cuja existência nunca compreendi. Não sabia se eram para ser
revendidas, ou apenas para consumo próprio, mesmo que fosse impossível
para uma única família beber tanto café na vida.
Sozinho naquele depósito sujo, úmido, escuro, cheio de teias de
aranha e, pelo que meus primos me diziam, de onde era muito fácil sair
apinhado de piolhos, eu girava a manivela, imerso no cheiro de café torrado
que subia do moedor.
Este divertimento perdurou até uns treze anos, mas depois disto, eu
só continuei perfazendo-o porque não conseguia contrariar minha avó que, ao
abrir um sorrisão que quase arremessava sua dentadura pra fora, perguntava,
fitando-me:
— Quem quer moer o café?
E já antecipando minha resposta, ela me estendia o saco de café e,
constrangido, eu me via forçado a ir para o galpão moê-lo, não sem antes
ouvir os risinhos dos primos e os cochichos:
— Se ferrou!
Não gosto de café. Não bebo. Nem uma única gota. E não se trata
apenas do gosto, até o cheiro me causa aversão. Nunca gostei. Quando
criança chegava a passar vergonha por causa disto na casa de amigos. Mas
não era nojo, só não gostava. Mas hoje, toda vez que passo na frente de um
boteco e vejo aquele líquido preto escorrendo do bule, fumegando, e o cheiro
me alcança, não posso evitar de pensar em mim, em Rafinha, em sacas de
café, no pau meio mole de meu tio e num moedor de café.
Não consigo.
Não dá.
Nova York
05/12/2008
A máquina de fazer pães
Desde que me conheço por gente, vovó sempre fez pão caseiro,
quentinho, macio, cheiroso, que, quando saía do forno, já ia pra mesa e
comíamos com manteiga, que derretia na massa fumegante.
Ela começava a amassá-los logo após o almoço, depois os deixava
descansar, cobertos por uma toalha na despensa, para, por fim, enrolá-los em
pequenos pãezinhos e num grande pão para o café-da-manhã do dia seguinte.
Assim, à tarde, na hora do lanche das cinco, os pãezinhos já estavam
prontos e nos convidando com o cheiro que se esgueirava para fora da
cozinha e nos alcançava na varanda ou até mesmo nos quartos.
Era quando corríamos para a cozinha e encontrávamos a mesa posta,
o leite no bule, a barra da manteiga e os pãezinhos morenos nos aguardando.
Este era o ritual diário e esperado, o afazer vespertino de vovó,
antecedido pela feitura do almoço e sucedido pelo cuidado das galinhas e dos
porcos, ou pela preparação de sabão ou doce-de-leite no fogão à lenha.
No entanto, titio viajou aos Estados Unidos e, ao retornar, trouxe um
embrulho e o entregou a vovó:
— Trouxe de Miami para a senhora — ele disse.
Ela desempacotou o presente e retirou o mostrengo ovalado, branco,
e cuja função ninguém conhecia.
— O que é isto? — vovó coçou a cabeça.
— Uma máquina de fazer pães, mãe. É a última palavra em
novidade. Assim, a senhora não perde mais tempo. Basta pôr os ingredientes
ali dentro, que a máquina amassa, deixa a massa crescer e assa. Assim, a
senhora terá mais tempo para aproveitar a tarde.
— Hum... — vovó resmungou e abandonou o aparelho num canto no
balcão da cozinha. E continuou preparando e assando os pães como sempre
fizera.
Mas, um dia, minha tia chegou e fitou demoradamente a máquina.
Depois procurou pelo manual, leu as instruções e arriscou a receita mais
básica de pão.
A máquina entrou em funcionamento e, assim que os primeiros
chacoalhões e tremeliques dela surgiram, todos nós, primos, primas e tios,
reunimo-nos ao redor para vê-la atuar. Logo subiu um cheirinho de farinha
amassada, bastante semelhante ao de quando vovó preparava os pães.
Vovó também apareceu na cozinha e, descrente, assistia tudo
recostada no batente da porta, braços cruzados e cenho franzido.
— Duvido que saia alguma coisa que preste daí! — ela disse lá pelas
tantas, mas a máquina a desmentia, preparando uma massa macia e elástica,
muito bonita, segundo a minha tia.
Mais tarde, iniciou o último processo — assar o pão — e pudemos
sentir o cheirinho bom.
Quando a máquina apitou, avisando o final da feitura do pão, todos
corremos para averiguar o resultado e a prova foi a favor da máquina.
— É fácil de fazer, e o pão é uma delícia — asseverou titia — até
uma criança poderia fazer um pão deste jeito.
E para constatarmos esta possibilidade, apostamos que, no dia
seguinte, quem prepararia os pães seríamos nós, as crianças.
Como era o esperado, tudo correu bem e o pão ficou tão gostoso
quanto anteriormente.
A mesma cena se repetiu dia após dia, revezando-nos na feitura do
pão, mas podíamos sentir que havia uma ponta de inveja nas feições de vovó
toda vez que a máquina era posta em funcionamento. E não a vimos comendo
pão da máquina.
Às vezes, nós a encontrávamos sentada numa cadeira, voltada para
máquina em atividade, mãos entrelaçadas e um olhar de desespero, quase a
asserção de sua inutilidade naquela casa.
Vovó não mais preparava pães e, além disto, ela passou a
negligenciar outras atividades domésticas. Apenas observava a máquina
cumprindo uma tarefa que antes era sua.
Contudo, certa manhã, fomos acordados por gritos de titia.
— Um bandido! Um bandido entrou aqui em casa!
Assustados, fomos todos à cozinha e a encontramos toda revirada.
Panelas no chão, pratos e copos estilhaçados e, o pior de tudo, o bandido
havia levado a máquina de pães.
Titio apanhou uma espingarda (que não sabíamos que existia até
aquela data) e vasculhou os arredores para se certificar de que o bandido
havia realmente partido.
Ficamos todos muito amedrontados e a polícia foi chamada. Foi uma
grande comoção, vizinhos vieram e vários diziam que, daquele dia em diante,
não deixariam mais portas e janelas abertas, e que a vizinhança já não era tão
segura quanto antes.
A única que parecia aliviada era vovó, que graças ao ladrão havia
sido livrada do seu pior inimigo, a máquina de fazer pães. Mas titio não pôde
evitar de comentar:
— Não fique chateada, mãe, quando nós formos a Miami de novo, eu
compro uma nova máquina pra senhora.
Mas chateada ela não estava e, naquela tarde, ela havia sido
restaurada ao posto de padeira oficial da casa.
Só que, ontem, ao brincarmos de desbravadores da selva Amazônica
no pomar atrás da casa, sem querer, eu tropecei e caí em meio às bananeiras.
Foi quando percebi o troço branco que me atrapalhara, ali no chão, todo
quebrado. Sem dúvida, a máquina de pães já tinha visto dias melhores. Foi
então que concluí que nunca havia existido ladrão algum e que o sumiço da
máquina era pura e simplesmente um gesto de vingança.
Não contei a minha descoberta para ninguém, pois não quero
comprometer vovó. Mas hoje mesmo, nossos olhares se encontraram durante
o almoço e, maroto, fiz um sinal com a cabeça, em direção ao jazigo da
finada máquina de pães. Ela compreendeu e, mais tarde, me perguntou se eu
queria que ela preparasse algum doce especial.
Este será o vínculo da nossa cumplicidade e meu trunfo: amanhã,
pedirei para vovó fazer doce-de-leite, e no dia seguinte, goiabada, e quero
macarrão e pernil de porco no almoço de domingo. Tenho certeza que tais
pedidos, e muitos outros depois, serão realizados.
Nova York
18/02/2009
(Publicado originalmente como “The Bread Machine” na Blue Lake
Review, edição de maio de 2012)
O Galo Meu
Ele desfilava com imponência pelo quintal da minha vó: o meu galo.
O mais lindo de todos, alto, quase do meu próprio tamanho no auge de meus
oito anos, com uma penugem reluzente, o pescoço de um azul vivo e
brilhante, e esporas ameaçadoras como lâminas, mesmo sendo um galo
pacífico, até onde eu podia perceber.
Encantava-me o mundinho dos galináceos, todos se aglomerando
desesperadamente para comer a quirera que minha vó lançava ao ar, gritando:
— Cuti-cuticuticuti!
Vinham as galinhas e os pintinhos, redondinhos e amarelinhos, e
também os frangotes desengonçados. Mas o meu galo não, observava tudo de
longe, o dono absoluto do terreiro.
Ele não havia sido sempre meu galo, até que, num verão, fiz o
pedido:
— Vó, sabe aquele galo grandão?
— Sei sim.
— Dá ele pra mim?
— E o que você vai fazer com um galo, moleque?
— Cuidar dele.
— Então ‘tá certo.
Assim, daquele dia em diante, o galo mais lindo de todos havia se
tornado o meu galo. Batizei-lhe de Harrison, e era o meu dever jogar-lhe a
quirera:
— Cutu-cuticuticuti! Vem cá, Harrison!
E lentamente ele vinha, cheio de si, bicando a comida com soberbia.
Pensei muito no meu galo na viagem de volta para a cidade, repleto
de planos para as próximas férias. Existia coleira para galos? Assim eu
poderia exibir-me com ele pela vizinhança da minha vó, eu e o mais galo dos
galos, o Hulk Hogan dos galos, temível e grandalhão. A molecada e as donas
de casa se recolheriam ao ver-me caminhando com o galo ao meu lado,
atemorizados que ele pudesse se soltar da coleira e sair bicando e esporeando
a torto e a direito, muito mais perigoso do que qualquer cão de guarda.
Cogitei até a levá-lo a rinhas, eu do lado do ringue, dando instruções a ele, e
Harrison ganhando todas as pelejas. Mal sabia, naquele tempo, que isto era
crueldade animal, proibido por lei, nem que voava sangue e penas para todos
os lados. Nas brigas de galos de minha imaginação infantil, um deles sairia
com o olho roxo, enquanto o outro levantaria as asas em glória, assim como
nos desenhos animados, sem demasiado sofrimento nem mortes.
Com o passar das semanas, esqueci-me um pouco de Harrison e só
me ocorria a existência dele quando, ocasionalmente, comentava com os
colegas de escola:
— Sabia que eu tenho um galo? Acho que deve ser o maior galo do
mundo!
Mas a mente estava ocupada o bastante com as matérias da escola de
manhã e com os seriados japoneses à tarde. E, vez ou outra, eu desenhava o
meu galo, intercalando panteras, leões e super-heróis.
Retornei meses depois à casa de minha avó, chegando cedinho como
o habitual. Tomamos café da manhã e eu saí ao quintal, à procura por meu
galo, mas não o avistei. Nada estranho, reconheço, pois o quintal era enorme
e ele poderia estar vagando em meio às bananeiras e amoreiras. Certamente
apareceria para comer quirera mais tarde.
Mas não o vi depois, o que me perturbou.
— Não estou encontrando o Harrison — comentei com meu primo.
— Ninguém te contou? — vislumbrei um risinho maldoso — Ele
morreu...
— Sério?
— Sério.
Calei-me por um tempo, pensativo.
— E o que fizeram com ele?
— Como assim?
— Com o cadáver do Harrison?
— Teve canja ontem à noite, sabia?
— Foi?
— Era o seu galo.
Fiquei horrorizado. Era possível isto? Que desumanidade absurda!
Barbárie! Como assim jantar um galo de estimação? Quer dizer que agora as
pessoas deveriam comer seus cachorros quando estes morressem? Ou que um
jóquei deveria comer o cavalo que montava? Ou um falcoeiro a seu falcão?
Ou um dono de circo cearia o elefante ou o tigre quando estes passassem
desta para melhor?
Eu precisava confirmar esta história, poderia ser apenas uma
maldade do meu primo, e corri para falar com minha vó.
— É verdade que meu galo morreu?
— Morreu sim.
— E o que fizeram com ele?
— Comemos, ora bolas!
Para vovó, era simples pensar deste modo, ela que quebrava o
pescoço de um frango sem esforço algum, e deixava-o dependurado numa
trave, debatendo-se até esvair-se lhe a vida, mas, para mim, nada fazia
sentido. A ausência de Harrison, o galo dos galos, naquele quintal imenso era
devastadora, um vazio inexplicável.
Pois o meu galo havia sido o senhor absoluto do terreiro, e também a
canja da noite passada.
Buenos Aires
03/03/2012
A Alma da Capital
Minha coroa quase nunca falou sobre meu pai, e eu, em respeito ao
padrasto, que me criou como a um verdadeiro filho, também não tocava neste
assunto.
Conviver não é fácil, pois às vezes magoamo-nos uns aos outros sem
nem termos intenção.
No entanto, ao avisar minha mãe que me mudaria para Brasília para
assumir um cargo no funcionalismo público, os olhos dela se encheram de
lágrimas, ela segurou delicadamente minhas mãos entre as delas e me puxou
para a sala.
— Seu pai teria orgulho de você.
— Sim, eu sei...
— Promete que se cuida? Ouvi no rádio sobre os atentados nas
bancas de jornal. Os ânimos estão à flor da pele. Não vá se envolver com
politicagem, meu filho, nem com estes grupos radicais.
Eu ri, um pouco nervoso. Não entendia nada de política, nem me
interessava o comunismo, apesar de vários amigos da universidade terem
levado borrachada da cavalaria em protestos. Eu não estava nem aí para o
Figueiredo. A minha diversão eram os filmes do Chuck Norris, Bruce Lee e
James Bond, nada muito intelectualóide e Marx nunca havia dado as caras
por minhas prateleiras. Tudo que mais me importava era a minha garota, e eu
estava deprê pacas por deixá-la pra trás.
— Não se preocupe, mãe — respondi, enquanto ela me abraçava
com força.
— Sabe, foi lá que conheci seu pai...
— Em Brasília?!
— Sim, era um dos peões que ergueu aquela cidade, isto vinte anos
atrás. Vindo do sertão baiano, pele queimada do sol e olhos cor de grafite.
Um baita homem, eu lhe digo! Daqueles que parecia saído das histórias de
jagunços e cangaceiros. Muitos tinham medo dele, um sujeito calado e que
nunca sorria, trabalhando incansável do nascer ao pôr do sol. Meu noivo e ele
logo se tornaram os melhores amigos, unha e carne, como se diz. Na hora do
almoço, eu levava a marmita para os dois no canteiro de obra e seu pai falava
que, assim que juntassem um dinheirinho, ele e meu noivo abririam uma
sociedade no Rio de Janeiro e ficariam ricos. Aquela era a época dos sonhos,
meu filho, mesmo que todos nós estivéssemos comendo o pão que o diabo
amassou. É o progresso atropelando os fracos para que os fortes fiquem ainda
mais poderosos. Não estou certa de quando reparei que seu pai me olhava
com outros olhos, desejando-me, mas sei que também me apaixonei por ele.
Ninguém manda no coração, e todo o jovem é capaz de fazer loucuras
quando está apaixonado. Uma manhã, seu pai me chamou num cantinho e me
disse: “quero encontrar você mais tarde”. E foi na escuridão, no meio das
obras, no esqueleto do que viria a ser o Palácio do Planalto, que eu e seu pai
nos amamos, cheios de medo que os capatazes nos flagrassem.
— E o seu noivo?
— Não sabia de nada, a princípio. Até que os boatos começaram a
circular entre os peões e a notícia chegou aos ouvidos dele. Meu noivo era
pacífico, um santo, não quis acreditar no que escutava. Mas, uma noite, com
a pulga atrás da orelha, ele foi atrás de mim na construção e nos pegou juntos.
Um rebuliço! Seu pai puxou uma peixeira e só não matou o meu noivo
porque não deixei. Não queria nenhum morto por minha culpa, não sou
assim. Juntei minhas trouxas e fui de vez pra casinha de seu pai. Ele e meu
noivo não se falaram mais, apesar de trocarem olhares atravessados quando
se esbarravam. E eu morria de medo que por um ato de vingança eles ainda
se matassem. Seu pai se isolou ainda mais, todos o evitavam e ele virou um
homem amargo. Era no meu seio, na escuridão da noite, que ele sussurrava
para mim que me amava e que, quando possível, cairíamos no mundo e
seríamos felizes como casal nenhum jamais foi.
E minha mãe enxugou com um lencinho a lágrima que lhe deslizava
pela face.
— Já estava tudo certo e em uma semana partiríamos de Brasília
rumo a Salvador, onde um amigo de seu pai havia lhe arranjado um emprego.
Então o andaime onde trabalhava meu antigo noivo tombou. A amizade entre
eles falou mais alto e seu pai correu para acudir, segurando o amigo pelo
braço. “Não vou te soltar”, ele disse, mas os dois despencaram trinta metros
abaixo. Foi um milagre, muitos disseram, porque meu ex-noivo se salvou
ileso, nem um arranhão, enquanto seu pai caiu de cabeça e morreu no ato.
Uma semana antes de irmos embora, dá para acreditar?
— E o que aconteceu depois? — perguntei.
— Meu ex-noivo veio e me consolou. “Ele era um homem bom”, me
disse, “um verdadeiro amigo”. Eu respondi: “estou grávida... E o pai do meu
filho está morto. O que será da minha vida?”. Eu chorava. Aquele que havia
sido meu noivo se ajoelhou diante de mim e jurou: “vou cuidar de você até o
fim de seus dias. Confie em mim”. Parecia até cena de filme.
— Meu padrasto? — perguntei.
— Sim, filho, ele sempre cumpriu a promessa, nunca deixou de me
amparar e, com o tempo, voltei a amá-lo como antes. Viemos para o sul, você
nasceu e fomos muito felizes até agora.
A luz vermelha do entardecer atravessava as cortinas e iluminava o
rosto de minha mãe. Era a primeira vez que transparecia a dor íntima que ela
havia ocultado por tantos anos.
— E você pensa nele?
— Todo o santo dia. Nem todo o tempo do mundo apaga o
verdadeiro amor. E tem você, com o olhar profundo e cinzento do seu pai,
como um retrato vivo do homem que conheci vinte anos atrás. Ele era um
verdadeiro brasileiro, não daqueles que usam ternos e fazem leis, ou que
estão sentados em poltronas de couro fumando charutos. Era daqueles
brasileiros que põem a mão na massa, que erguem os prédios de luxo nos
quais jamais poderão habitar, que constroem as capitais onde trabalharão os
políticos que não dão a mínima pra gente simples como nós. Ele era a alma
do nosso país, e morreu trabalhando para nos dar um futuro.
No ônibus, a caminho para a capital, refleti muito sobre esta história.
Eu era jovem quando minha mãe me revelou este segredo e, desde então, vi o
fim da ditadura, meia dúzia de presidentes passarem pelo Planalto e
maracutaias e escândalos sem fim. No entanto, sempre que caminho pelas
ruas da cidade, penso que por aquelas veias corre o sangue do meu sangue,
daquela classe de heróis anônimos que são a argamassa do mundo, cujas
insignificantes vitórias cotidianas jamais serão contadas nos livros de
História. Como minha mãe havia dito: a alma de nosso país.
Perúgia
02/07/12
O Beijo
Entrei no quarto que havia sido dela. A primeira vez que entrava ali.
A cama onde ela havia se matado/havia sido morta.
Na parede, um retrato a óleo dela, com seus profundos olhos verdes.
Não sorria. Não tinha espinhas. Não parecia infeliz.
Madrid, 2014
Janela pra Rua
Nova York
28/12/2007
Sou o que sou, pai. Foi o que ele me disse, com a minha espingarda
apontada pra cabeça dele.
Ninguém põe um filho no mundo para ter de matá-lo um dia.
Ninguém. Você cria, dá comida e teto, educação e tudo mais. Você quer que
ele viva, que seja feliz, que também tenha filhos e netos, e bisnetos, e que a
sua linhagem perdure por todo o tempo, assim como a incontável semente de
Abraão. Um filho é uma parte sua, com um nariz ou olhos que se assemelham
aos seus, a boca e o queixo da mãe, e as mãozinhas de alguém de outras
gerações. Filho é feito pra orgulhar os pais, pra justificá-los. Alguns falam em
vida após a morte, em Céu e Inferno, em reencarnação, mas, no fundo, não
acredito em nenhuma destas baboseiras: são apenas historinhas para arrastar
as carolas pra igreja, meter medo na gente e encher os bolsos dos padres.
Imortalidade pra mim é o sangue, é aquilo que se passa de pais pra filhos, que
perdurará mesmo depois que houvermos vestido o terno de madeira.
Eu não queria dar cabo à vida do meu menino, mas ele não me
deixava opção.
“Sou o que sou”, ele me dizia, e isto só confirmava sua sentença de
morte.
Ele odiava ir ao sítio. O extremo oposto de mim. Cresci no meio dos
bichos, dos cavalos, dos bois e vacas, das ovelhas e cabras. Meu pai era um
matuto, não lia nem escrevia, não gostava de música nem de vadiagem.
Botou neste mundão de Deus uma dúzia de filhos. Eu, o caçula, cresci nas
barras da calça deste homenzarrão de verdade, sem frescuras nem medo do
trabalho. Ele me ensinou tudo que sei, e me ensinou até mais do que ele
imaginava saber. Dizia que eu não devia ter medo de ir até as últimas
consequências, que palavra dada é palavra cumprida, que homem não chora e
que toda ação tem uma reação. Era um sábio da vida real, sem frufrus nem
filosofias. Ele morreu antes que eu me casasse, por isto, não viu quando
nasceu meu primeiro filho. Gostaria tanto de saber que conselho ele me daria
naquela hora crítica. Mato ou não mato este menino, senhor meu pai? Então,
ele coçaria a barbicha grisalha e, com a voz firme e baixa, meu pai me diria o
veredicto. E ele estaria certo, mesmo se estivesse errado. A vinda pro sítio
havia sido proposital. Só um estúpido mata alguém na cidade grande. Logo
chega a polícia e o leva algemado pra delegacia. Descem algumas bordoadas
em você e o jogam no xilindró com uma cambada de malandros, bêbados e
bandidos. E você apodrece naquele lugar por anos a fio à espera do
julgamento, e depois apodrece por mais uma década pagando por seu crime.
Sim, eu mataria meu filho, mas não pretendia ser preso. Por isto o trouxe pro
mato, pra longe dos outros, pra longe da mãe e da irmã, pra onde ninguém
ouviria o estampido, onde ninguém procuraria por uma cova, onde ninguém
suspeitaria de nada.
Ele relutaria, é evidente, porque odiava o sítio. Tinha nojinho do
barro e da lama, de carregar a lavagem pros porcos, dos cães sarnentos, do
casebre de madeira, dos pernilongões que nos devoravam à noite. Isto desde
pequeno, desde muito pequeno. Eu também queria ensinar a meu filho tudo
aquilo que meu pai me ensinou. Não tem nada de errado em ser um homem
simples, da roça, que planta e colhe o que come, que desce sem dó o
machado na nuca de um bezerro ou que mete a faca no coração de um porco
vendo-o sangrar até a morte, e depois comer o chouriço feito com o mesmo
sangue que você fez verter. Não tem nada de errado em acordar com o nascer
do sol, meter as botinas e o chapelão, montar num cavalo e cavalgar pelo
descampado. Isto é vida, isto é como todos os homens foram um dia na pré-
história do mundo. Por mim, moraríamos todos no sítio, com esta existência
simples e boa. Mas a mulher queria mais, queria o brilho das luzes da cidade,
dizia que ali não havia oportunidades e me perguntava que tipo de futuro
nossos filhos teriam naquele mato sem fim. Éramos dois jovens cheios de
sonhos e projetos, acreditei nela e comprei as promessas de felicidade na
selva de pedra. Mas, sempre que podia, eu retornava ao casebre no sítio, onde
eu respirava ar puro, como se fosse um peixe que volta pro rio. Nunca
consegui passar pro meu filho esta sensação. Para ele, o sítio era quase um
castigo, um lugar ermo, sem amigos, sem conforto, com bichos imundos e
mosquitos.
Ninguém é igual. Tentei me reconfortar. O mundo está mudando, os
outros me diziam. Os valores estão morrendo.
“Sou o que sou”, ele havia me dito, e talvez esta fosse a frase que ele
estava tentando me dizer durante todos estes anos, só não sabia como, ou
porque tinha medo de minha reação.
Ele era diferente de mim, sem dúvida. Mas também era diferente dos
outros meninos da idade dele. Não jogava futebol, nem tinha muitos amigos.
Vira e mexe, alguém o via andando com as garotinhas do bairro e um dos
vizinhos me disse que meu moleque seria o maior mulherengo da paróquia.
Encheu-me de orgulho isto, só de pensar que ele passaria o rodo na
mulherada. Pois macho que é macho é assim, tem mulher, uma chinoca e
ainda vai ao puteiro se sobrar energia. Inclusive, foi num puteiro que perdi
meu cabaço, e pra onde levei meu menino quando ele completou doze anos,
para iniciá-lo neste mistério da vida. Não deu certo, ele refugou e saiu
chorando do quarto, cinto desafivelado e limpando as lágrimas nas mangas da
camisa.
Que isso, ter medo de mulher, moleque? Perguntei a ele.
Não é assim que eu imaginava. Ele me disse.
Nunca é. Eu ri. Nunca é.
Mas o tempo haveria de resolver isto e eu estava certo que logo ele
arranjaria alguma namoradinha, ou cataria alguma caboclinha do sítio e a
levaria pra trás das jabuticabeiras e mandaria ver, honrando as bolas no meio
das pernas. Pois a natureza é sábia e segue seu curso. Se não é hoje, será
amanhã.
No entanto, não houve nenhuma namorada, nem caboclinhas. Meu
menino era tranquilão demais, passava mais tempo brincando com a irmã do
que qualquer outra coisa. Vez em quando, eu o via com uma das bonecas dela
no colo, usando pulseiras dela e até seus vestidos, mas minha mulher me
convencia. Ele só está fazendo companhia pra irmã, não tem maldade alguma
nisso. E ele continuava crescendo quase sem amigos, isolado num mundinho
só dele, apanhando dos coleguinhas na escola.
Nós nos afastamos quando ele entrou naquela idade da rebeldia,
quando tudo é culpa dos pais. Eu era o bronco, o bruto, o jumento ignorante.
E eu descia o cacete naquele garoto, metendo-lhe cintadas no lombo e
deixando-o de castigo por dias a fio trancado no quarto. Você vai aprender a
me respeitar! Eu dizia. Sou seu pai, ingrato desgraçado! A esposa tentava
intervir, apaziguar os ânimos, mas nosso lar havia se tornado um campo de
batalha.
Deixe estar. Um amigo me disse. Esta geração de hoje está perdida.
Seu menino vai quebrar a cara na vida, depois reconhecerá o valor do pai que
tem. Esta fase passa. Eu lhe garanto.
Então tentei me tornar um pai moderno, que não se preocupa com o
que os filhos fazem na rua até altas horas da noite. À mesa da cozinha, eu
ficava desperto até três ou quatro da madrugada, somente esperando o som da
chave na fechadura, para assim correr de mansinho ao meu quarto,
reconfortado porque meu filho havia retornado bem pra casa. Ele bebia e
fumava escondido, eu tinha certeza. A cidade o estava destruindo.
Você sabe o que seu filho anda aprontado por aí? Um conhecido me
perguntou, um dia. Estão falando que ele é uma bichinha.
Como assim? Perguntei, com o sangue me subindo à cabeça.
Parece que metade dos garotos da vizinhança já comeu o cu dele.
Aquela frase vinda assim, sem aviso, com uma crueza insensível,
tirou-me do sério. Enfiei a mão nas fuças deste fulano, lançando um dos
dentes dele pra bem longe. Tem de ter coragem de vir aqui chamar o meu
filho de viado! Eu gritei, enquanto outros me seguraram e apartaram a briga.
Mas a revelação bateu forte. Todo pai é cego, ou, melhor, todo pai prefere
não enxergar. Sempre soubemos que ele era meio diferente, lia poesia e
estava sempre choramingando pelos cantos. É melhor fingir que não está
vendo, pois nada o prepara para isto.
Você tem alguma coisa pra me contar? Perguntei a meu filho, num
domingo.
Notei que havia uma profunda tristeza nos olhos dele, mas, mesmo
assim, ele respondeu que não havia nada. Está tudo bem, pai.
Tem certeza disto? Insisti.
Pô, não enche! E ele fechou a porta do quarto na minha cara.
Foi naquela tarde que armei a primeira arapuca para desmascará-lo.
Planejei uma viagem ao sítio pro final de semana seguinte.
Não vou. Disse meu filho.
Vai sim. Toda sua família vai, por que eu deixaria você aqui
sozinho?
Só se me levar amarrado. Ele me desafiou.
Uma vez mais, a mulher quis ser a voz da razão. Se ele não quer ir,
deixe-o aqui. O que de ruim pode acontecer?
Concordei, fingindo contrariedade.
Ajeitamos a caminhonete com as malas e partimos na sexta à noite.
Meu filho ficava a sós em casa. Existe um ditado mais ou menos assim:
“quando o gato sai, os ratos fazem a festa”. Foi chegar ao sítio, deixar a
mulher e a menina, que entrei de volta no carro.
Aonde você vai? A mulher perguntou.
Não se preocupe... Já volto. E dirigi como um louco pra cidade.
Agora eu descobriria a verdade. Agora era a hora de o gato descobrir o que o
rato fazia.
As luzes de casa estavam acessas e já da calçada eu ouvia a música
alta. Entrei. Na sala, garrafas de cerveja, fumaça e roupas jogadas no carpete.
Fui direto pro quarto do garoto e escancarei a porta.
Nenhuma desconfiança se equipara à cena de encontrar seu filho
pelado na cama com outro homem. Isto é contra a natureza, contra a Bíblia,
contra a sociedade, pensei. Seus vermes nojentos! Berrei, enquanto investia
contra os dois. Expulsei a pontapés o namoradinho do meu filho, jogando-o
para fora de casa sem uma única peça de roupa no corpo. Depois, retornei
para dar em meu filho uma surra como nunca antes, nem depois.
De agora em diante, moleque, você vai me obedecer. São as minhas
regras, ou a rua. Ou você para com esta bichice, ou mato você! Entendeu?
Ele tinha apenas dezesseis anos e, aterrorizado diante da minha fúria,
concordou com tudo. Não contamos nada pra mãe dele, nem pra ninguém.
Aquela cena horrorosa, do meu filho nu na cama com outro, jamais
deixava a minha mente e nos afastou ainda mais. Eu não conseguia nem falar
mais com ele, juro que preferia que, naquela noite, ele houvesse partido por
conta própria para viver sua vida de imoralidade. Pois todas as vezes que ele
saía de casa para ir ao colégio ou encontrar amigos, eu pensava que ele
poderia estar aprontando alguma, e não dava para conviver com esta
desconfiança perpétua, principalmente quando outras pessoas vinham
espalhar mais boatos que meu filho era um maricas.
Ninguém quer ser pai do viadinho da cidade. Eu não queria esta
reputação.
Então, numa tarde, enquanto eu e ele assistíamos TV, observei
cuidadosamente meu filho. Ele não mudaria, não viraria homem de verdade
do dia pra noite. Eu tinha duas escolhas diante de mim: aceitá-lo tal qual, e
toda a família sofrer as consequências disto, ou pôr um ponto-final naquela
história.
Ponha seu casaco e venha comigo. Eu disse.
Pra onde? Ele me perguntou.
Cale a boca e me obedeça! Ordenei, e ele me seguiu. Entramos na
caminhonete e pegamos a estrada.
Pra onde estamos indo? Ele me perguntava, mas eu não conseguia
responder.
Estava anoitecendo quando chegamos ao sítio.
Espere por mim aqui fora. Ordenei.
Entrei no casebre, apanhei um lampião e minha espingarda. Acredito
que meu filho já soubesse qual seria o destino dele quando me viu retornando
com a arma. Ele empalideceu, erguendo as mãos unidas como se rezasse, mas
não deu um pio sequer.
Vai, anda! Eu disse.
Pra onde? Ele gaguejou.
Por aquela trilha ali.
Fazia frio e eu tremia um pouco. Meu garoto caminhava na frente,
tropeçando nos galhos e raízes do caminho. Depois de uns bons vinte minutos
na mata, mandei que ele parasse.
Ajoelhe! E ele me obedeceu, com uma passividade assustadora.
Pendurei o lampião numa árvore e me aproximei do meu filho,
encostando o cano da espingarda na nuca dele.
Juro que queria que tudo fosse diferente. Resmunguei.
Sou o que sou, pai. Esta foi sua única frase. Meu filho não suplicou
pela própria vida, não me pediu perdão, não argumentou, não falou mais
nada, somente isto.
Perúgia
27/10/12
A Metamorfose
2016
Seu Tomás vai ao parque
Alhama de Murcia
outubro de 2017
Cai o avião
Era o primeiro voo da vida da Dona Elvira. Ela que sempre teve
medo de avião. Mas agora era questão de vida e morte, ou melhor, só
de morte, pois havia morrido seu irmão que não via há mais de quinze
anos. Ia ao velório.
Assim que o avião decolou, já indicou problemas. As luzes de
emergência se acenderam, as máscaras de oxigênio despencaram sobre
a cabeça de Dona Elvira e a turbulência chacoalhava tudo com a
violência de um terremoto.
Há um silêncio sepulcral nestas horas. Ninguém grita. Ninguém
se move. Ninguém sequer pisca. Estática, paralisada, Dona Elvira quis
rezar, mas nem do Pai-Nosso se recordava.
Com o canto de olho, observou o passageiro ao lado que tentava
ler um jornal. De uma impassibilidade legendária. Do tipo que, numa
missão kamikaze, poderia arremessar um Zero contra um torpedeiro
americano.
Alicante
outubro de 2017
A Ceia dos Solitários
Não tenho nada para preparar para nós. Eu disse, abrindo os armários
da cozinha.
Qualquer coisa está bom. Ela respondeu, sentada no sofá da sala. Só
não queria ficar só. Esta é uma época muito triste, mas é muito pior quando
não temos mais ninguém. Onde está sua família?
No Brasil. Eu disse. Mas não quero falar sobre isto.
Preparei umas salsichas e um espaguete. Comemos em silêncio,
escutando o ruído delicado da neve na vidraça e os sons das bocas
mastigando.
Por que me trouxe pra cá? Ela perguntou.
Não sei. Acho que também não queria estar só esta noite.
Vai dormir comigo? Ela perguntou, e me desarmou.
Se quiser… Respondi.
Não quero. Não como um homem e uma mulher, pelo menos, mas
como pessoas, como os seres humanos que somos. Você podia simplesmente
se deitar comigo e me abraçar bem forte e sussurrar no meu ouvido que tudo
ficará bem, que eu não sofrerei, que o fim será plácido como um pôr do sol,
então eu adormecerei e este terá sido um bom dia; um dia a menos, um dia
mais próximo do fim, menos um dentre os noventa dias que me restam. Faria
isto por mim?
Eu a puxei pela mão até o meu quarto, sempre muito bagunçado,
com livros, meias e cuecas no chão; sem ordem nem propósito como a vida.
Você é apenas um rapaz… Ela disse. Ainda verá e viverá muitas
coisas estranhas. Esta noite terá sido apenas uma delas.
Nós nos deitamos um do lado do outro e eu a abracei por trás. Ela
puxou a minha mão para o seio dela – o do câncer, suponho – e ficamos
assim por sabe-se lá quanto tempo.
Ela adormeceu, então me levantei e fui para a sala levemente
iluminada pelas luzes de fora que atravessavam a vidraça.
Ainda nevava. Não estava mais sozinho. No quarto, dormia uma
mulher cujo nem o nome eu sabia. Ela morreria em breve. Eu morrerei um
dia. Tudo vai ficar bem. Sussurrei. Tudo vai ficar bem.
Alcalá de Henares
Dezembro de 2016
Tragédias
Amor maldito
Perpignan
14/01/2017
A Mulher do Alfaiate
Inspirado na pintura La costurera de Diego Velásquez
Alfaiate
Ternos sob medida
Fazemos pequenos reparos
Buenos Aires
03/08/2011
A Saia de Maria Rita
Não sei como sobrevivi, como não quebrei o pescoço ou como não
quebrei nada no meu corpo: uma perna, umas costelas, a espinha. Caí de pé,
igual um gato, e afundei na água pútrida até o pescoço.
Já tinha ouvido muitas histórias de gente que caía nestes poços e
sempre foi muito motivo de piada nas rodas de cerveja.
Meu tio morreu assim. Contou uma vez o Pedrão.
Isto não tinha graça, mas quando alguém se arrebentava e era
resgatado e aparecia todo enrolado em ataduras como uma múmia e com
gesso e trupicando por aí, virava motivo de chacota.
Agora, quem seria razão de riso seria eu. Não me desesperei, a
princípio. Tentei subir pelas paredes, mas o barro úmido se soltava em blocos
entre os meus dedos e as raízes se partiam.
Socorro. Gritei. Alguém me ajude.
Mas quem passaria por aquele mato no meio da noite? Teria de
esperar amanhecer e, quem sabe, encontrar alguém para me dar uma mão.
Não dormi, meio reclinado na lama da parede, com aquele fedor de
bosta de vaca me nauseando. Jurei que, se Deus me resgatasse daquele poço,
se alguém surgisse para me salvar, eu nunca mais brigaria com a Ritinha, que
nunca mais beberia uma gota de cana, que nunca mais implicaria até com a
maldita da minha sogra. Pagaria promessa indo de joelho até Aparecida do
Norte. Prometi mundos e fundos. Alguém teria de ouvir as minhas preces lá
em cima, Jesus, a Virgem Maria, algum santo, algum anjo, alguma entidade
celestial.
O céu azul pelo círculo lá em cima. Era dia. Eu ainda estava vivo.
Ainda podia ser resgatado.
Ouvi um cachorro latindo e crianças rindo e gritando.
Ajuda, por favor! Socorro! Berrei outras vezes até me esgoelar. Elas
teriam de me ouvir.
Então avistei uma sombrazinha que se aproximou da borda do poço,
apenas uma silhueta me olhando desde lá em cima.
Caí neste poço! Preciso que alguém me tire daqui.
Mas não recebi resposta.
Aos poucos, fui percebendo mais nitidamente os contornos, a orelha
erguida e a silhueta latiu pra mim.
Ô seu cachorro de merda, traz alguém até aqui! Berrei outra vez.
Três latidos depois, o cachorro sumiu. As risadas das crianças
desapareceram. Apenas o silêncio, o cheiro de bosta, a água até o pescoço e
os dedos murchos.
Mais um dia se passou, e eu com fome e sede, com sono, com medo,
com vergonha.
Quanto tempo alguém pode sobreviver assim? Dias, semanas,
meses?
Gritei até perder a voz. Arranhei as paredes até perder as unhas. Me
debati até perder as forças.
E a imagem de Ritinha não me saía da mente, o cheiro do seu frango
ensopado com batatas, a sua pele lisinha e quente nas palmas das minhas
mãos grossas e brutas.
No terceiro dia, vi Deus.
No quarto, o diabo.
E, no quinto, me afoguei naquela água cheia de merda.
Ritinha nunca soube o que aconteceu comigo. Ainda hoje pensa que
fugi com uma amante. Ideia semeada e regada pela sogra, é claro.
Ploče
16/07/2017
O Muro
Um muro foi erguido entre eles. Um dia, despertaram e ele estava lá,
alto, cinzento e lúgubre, com arame farpado no topo.
Ele foi construído pelos homens no poder, por aqueles que não
aceitavam que gente com diferentes crenças e diferentes hábitos e diferentes
línguas pudessem conviver.
Então, elas encontraram um modo para se comunicarem.
Todas as manhãs, arremessavam para o outro lado uma pedra
embrulhada num papel.
E elas sempre concluíam suas cartas com as seguintes frases.
“Um dia, o muro cairá. Um dia, estaremos juntos outra vez. Nunca
me esquecerei de você”.