WILLIAM G. LYCAN - FILOSOFIA DA LINGUAGEM - Introduo

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1.

INTRODUÇÃO
SIGNIFICADO E REFERÊNCIA

Sinopse

Que certos tipos de marcas e ruídos têm significado e que os seres


humanos os apreendem sem sequer pensar sobre isso são factos
notáveis. Uma teoria filosófica do significado deve explicar o que é
isso de uma sequência de marcas ou ruídos ter significado e, mais em
particular, o que é isso em virtude do qual a sequência tem o signifi­
cado distinto que tem. A teoria deve também explicar como é possí­
vel os seres humanos produzirem e compreenderem elocuções com
significado, fazendo-o sem esforço algum.
Uma ideia comum é que as palavras e outras expressões linguís­
ticas mais complexas têm significado, porque estão em lugar de coi­
sas do mundo. Apesar de parecer senso comum e de ser atraente à
primeira vista, mostra-se bastante facilmente que esta teoria referen­
cial do significado é inadequada. Para começar, comparativamente
poucas palavras estão, na verdade, em lugar de coisas do mundo.
Além disso, se todas as palavras fossem como nomes próprios, ser­
vindo apenas para selecionar coisas individuais, não conseguiria­
mos, desde logo, formar frases gramaticais.

Significado e compreensão

Não há muitas pessoas que saibam que, em 1931, Adolf Hitler foi
aos EUA, no decurso da viagem visitou vários pontos de interesse,
teve, em Keokuk, lowa, um breve caso amoroso com uma senhora

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Filosofia da Linguagem

de nome Maxine, experimentou mescal (que o fez ter alucinações


com hordas de rãs e sapos que calçavam botinhas vermelhas e can­
tavam o Horst Wessel Lied), infiltrou-se numa fábrica de munições
perto de Detroit, encontrou-se secretamente com o vice-presidente
Curtis para tratar de futuros compromissos comerciais relativos às
peles de foca, e inventou o abre-latas elétrico.
Há uma boa razão para não haver muitas pessoas que saibam de
tudo isso: nada é verdadeiro. Mas o que há de notável é que agora
mesmo, conforme lia a minha frase de abertura — chamemos-lhe
frase 1 —, o leitor a compreendeu perfeitamente, esteja ou não dis­
posto a aceitá-la, e fê-lo sem o mínimo esforço consciente.
Notável, afirmei. Provavelmente, não lhe parece notável nem
surpreendente, mesmo depois de ter dado conta do facto. Estamos
tão habituados a ler palavras e frases e a compreendê-las ¡mediata­
mente, que nos parece quase tão natural como respirar ou comer ou
caminhar. Mas como compreendeu o leitor a frase 1? Não é por a
ter já visto; estou certo de que nunca na história do universo alguém
escreveu ou proferiu aquela frase particular, até eu o ter feito. Nem a
compreendeu por ter visto outra frase muito semelhante, pois duvido
de que alguém tenha alguma vez formulado uma frase remotamente
parecida a 1.
O leitor poderá dizer que compreendeu 1, porque fala português e
porque a frase está em português. Isso é, até certo ponto, verdadeiro,
mas limita-se a adiar um pouco mais o mistério. Como consegue
o leitor «falar português», dado que isso inclui conseguir formu­
lar e compreender não apenas expressões elementares como «Tenho
sede», «Cala a boca» e «Mais molho», mas também frases novas
como 1 ? Essa capacidade é verdadeiramente espantosa e muito mais
difícil de explicar do que a capacidade para respirar, comer ou cami­
nhar, que os fisiólogos já compreendem razoavelmente bem.
Uma pista é perfeitamente óbvia depois de alguma reflexão: 1 é
uma sequência de palavras, palavras portuguesas, que o leitor com­
preende individualmente. Assim, parece que o leitor compreende 1,
porque compreende as palavras que nela ocorrem e compreende algo
sobre o modo como essas palavras estão ligadas entre si. Como vere­
mos, esse é um facto importante, mas, para já, é apenas sugestivo.

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Introdução

Falámos até agora de uma capacidade humana: formular e com­


preender discursos. Mas considerem-se as próprias expressões lin­
guísticas, enquanto objetos de estudo em si:

2) w gfjsdkhj jiobfglglf ud.


3) E perigoso espalhar gasolina pela sua sala de estar.
4) Bom de fora pedante o um o o porquê.

As frases 1-4 são, sem exceção, sequências de marcas (ou de ruí­


dos, se forem proferidas em voz alta). Mas diferem radicalmente uma
da outra: 1 e 3 são frases com significado, ao passo que 2 e 4 são algara­
viadas. A frase 4 difere de 2 por conter palavras portuguesas individual­
mente com significado, mas as palavras não estão ligadas de modo a
constituírem uma frase, e, em conjunto, não querem dizer coisa alguma.
Certas sequências de ruídos ou marcas têm, então, uma caracte­
rística a um tempo de natureza rara e que precisa urgentemente de
explicação: significam algo. E cada uma destas sequências tem a pro­
priedade mais específica de significar algo em particular. Por exem­
plo, 3 significa que é perigoso espalhar gasolina pela sua sala de estar.
Assim, o nosso estudo filosófico da linguagem começa com os
dados seguintes:

— Algumas sequências de marcas ou ruídos são frases com


significado.
— Cada frase com significado tem partes que também têm
significado.
— Cada frase com significado significa algo em particular.
— Quem domina uma língua tem a capacidade de compreender
muitas das frases dessa língua, sem esforço e quase instanta­
neamente, e formula também frases do mesmo modo.

Todos estes dados precisam de explicação. Uma sequência de


marcas ou ruídos tem significado em virtude do quê? Em virtude do
quê, uma sequência dessas significa o que distintamente significa?
E, uma vez mais, como conseguem os seres humanos compreender
e formular discursos com significado apropriado?

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Filosofia da Linguagem

A teoria referencial
Há uma explicação atraente e de senso comum de todos os factos
anteriores — tão atraente, que as pessoas, na sua maior parte, pen­
sam nela quando têm por volta de dez ou onze anos. A ideia é que
as expressões linguísticas têm os significados que têm, porque estão
em lugar das coisas; o seu significado reduz-se a essas coisas. Deste
ponto de vista, as palavras são como etiquetas; são símbolos que
representam, designam, nomeiam, denotam ou referem itens no
mundo: o nome «Adolf Hitler» denota (a pessoa) Hitler; o substan­
tivo «cão» refere cães, tal como a palavra francesa «chien» e a alemã
«Hund». X frase «O gato sentou-se no tapete» representa um dado
gato a sentar-se num dado tapete, presumivelmente porque «o gato»
designa esse gato, «tapete» designa o tapete em questão e «sentou-
-se no» denota (se quisermos) a relação de se sentar. As frases espe­
lham, assim, os estados de coisas que descrevem e é desse modo que
significam essas coisas. Na sua maioria, é claro, as palavras estão
arbitrariamente associadas às coisas que referem; alguém decidiu
simplesmente que Hitler se chamaria «Adolf», e a inscrição, ou som,
«cão» poderia ter sido usada para significar qualquer coisa.
Esta teoria referencial do significado linguístico explicaria o sig­
nificado de todas as expressões em função de terem sido, de forma
convencional, associadas a coisas ou estados de coisas do mundo e
explicaria a compreensão que um ser humano tem de uma frase em
função de essa pessoa saber o que referem as palavras que a com­
põem. É uma perspetiva natural e atraente. Na verdade, pode parecer
obviamente correta, pelo menos até ver. E seria muito difícil negar
que a referência ou nomeação é a relação mais clara e habitual entre
uma palavra e o mundo. Contudo, ao examiná-la, a teoria referencial
enfrenta, desde logo, sérias objeções.

Objeção 1
Nem toda a palavra nomeia verdadeiramente ou denota um
objeto qualquer de facto existente.
Primeiro, temos os nomes de itens inexistentes, como Pegaso ou
o Coelhinho da Páscoa. «Pégaso» não denota coisa alguma, porque,

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Introdução

na realidade, não existe nenhum cavalo alado que esse nome denote.
(Discutiremos algo detidamente estes nomes, no Capítulo 3.) Ou
considerem-se pronomes de quantificação como o seguinte:

5) Ninguém viu a Marta.

Seria uma piada gasta tomar «ninguém» como se fosse um nome


e responder: «E onde é que ele a viu?» (Lewis Carroll: «“Por quem
passaste na estrada?” [...] “Por ninguém” [...] “Então é claro que
ninguém caminha mais devagar do que tu.”»1 E o poema de e. e.
cummings anyone lived in a pretty how town2 faz pouco sentido até
o leitor se aperceber de que cummings está a usar perversamente
expressões como «anyone» e «no one» enquanto nomes de pessoas
individuais.)
Segundo, considere-se uma frase simples sujeito-predicado:

6) O Raul é magro.

Apesar de «Raul» poder nomear uma pessoa, o que nomeia ou


denota «magro»? Não é um indivíduo. Não nomeia certamente o
Raul, mas descreve-o ou caracteriza-o (com justiça ou não).
Poderíamos sugerir que «magro» denota algo abstrato; por
exemplo, este e outros adjetivos poderiam referir qualidades de coi­
sas (ou «propriedades», «atributos», «particularidades», «caracterís­
ticas», etc.). Poder-se-ia dizer que «magro» nomeia a magreza em
abstrato ou, como Platão diria, O Próprio Magro. Talvez seja isso
que 6 diz: que o Raul tem ou exemplifica ou é um espécime da qua­
lidade da magreza. Nessa interpretação, «é magro» significaria «tem
magreza». Mas então, se tentarmos pensar no significado da relação
entre sujeito e predicado como uma questão de concatenar o nome
de uma propriedade com o nome de um indivíduo usando a cópula
«é», precisaríamos de uma segunda entidade abstrata representada
pelo «é», digamos, a relação de «posse», dado ser o indivíduo que
tem a propriedade. Mas isso, por sua vez, faria 6 significar algo
como «O Raul tem a relação de posse quanto à magreza», de modo
que precisaríamos de uma terceira entidade abstrata para ligar a nova

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Filosofia da Linguagem

relação de «ter» com o indivíduo original mais a relação e a proprie­


dade, e assim por diante — sem fim, para todo o sempre. (Quem fez
notar esta regressão infinita foi F. H. Bradley, 1930: 17-18.)
Terceiro, há palavras que são gramaticalmente substantivos, mas
que, intuitivamente, não nomeiam coisas individuais nem tipos de
coisas — nem sequer «coisas» inexistentes ou itens abstratos, tais
como qualidades. Quine (1960) dá os exemplos de «prol», «bei» e
«mor».* Por vezes, fazemos algo em prol de uma causa ou a nosso
bel-prazer, mas não como se um prol ou um bei fosse um tipo de
objeto que se pode levar a passear na rua por uma trela. Ou faz-
-se algo por mor da liberdade, mas um mor não é uma coisa nem
um tipo de coisa. (Eu nunca soube com certeza o que é um «imo»
ou um «conluio».) Apesar de serem substantivos, palavras como
estas não têm decerto significado por referirem tipos particulares de
objetos. Parecem ter significado apenas por mor de ocorrerem em
construções mais longas. Por si, dificilmente se pode afirmar que
signifiquem seja o que for, embora sejam palavras e até palavras
com significado.
Quarto, além dos substantivos, muitas outras partes do discurso não
parecem sequer referir coisas de qualquer género ou seja de que modo
for: «muito», «de», «e», «o», «um», «sim» e, já agora, «hei» e «ai!».
Contudo, claro que tais palavras têm significado e ocorrem em frases
que qualquer pessoa que fale competentemente português compreende.
(Nem toda a gente está convencida de que a teoria referencial
esteja assim tão decisivamente refutada, mesmo com respeito ao
último grupo, o das palavras que mais claramente não são referen­
ciais. Na verdade, Richard Montague (1960) dispôs-se a construir
uma teoria sofisticadíssima e muito técnica, na qual mesmo a pala­
vras como estas se atribui efetivamente referentes de um género
muitíssimo abstrato, e elas têm significado, pelo menos em parte,
por referirem o que supostamente referem. Teremos mais a dizer
sobre o sistema de Montague no Capítulo 10.)

«Sake», «behalf» e «dint», no original de Quine, foram adaptadas deste


modo na edição brasileira de Word and Object (Stein, Sofia [trad.]; Murcho,
Desiderio [trad.], Palavra e Objeto, Petropolis, Vozes, 2009). [N. do T]

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Introdução

Objeção 2
Segundo a teoria referencial, uma frase é uma lista de nomes.
Porém, uma mera lista de nomes não diz coisa alguma.

7) Frederico Marta Ireneu Filipa.

A sequência 7 não pode ser usada para asserir seja o que for,
mesmo que a Marta ou o Ireneu seja uma entidade abstrata e não um
objeto físico. Poder-se-ia supor que, se o nome de um indivíduo for
concatenado ao nome de uma qualidade, como em 8, a sequência
daí resultante teria um significado normal de sujeito e predicado,
afirmando que o Raul é magro.

8) O Raul magreza.

(No início da sua carreira, Bertrand Russell sugeriu que, ao


escrever uma lista de nomes dos géneros adequados de coisas na
ordem certa, formar-se-ia o nome coletivo de um estado de coisas.)
Mas 8 é, na verdade, agramatical. Para lhe dar um significado nor­
mal de sujeito e predicado, seria necessário inserir um verbo, como
em 9, o que daria origem, uma vez mais, à regressão de Bradley.

9) O Raul (tem/exemplifica) magreza.

Objeção 3
Como veremos e discutiremos nos próximos dois capítulos, há
fenómenos linguísticos específicos que parecem mostrar que o signi­
ficado não se esgota na referência. Em particular, os termos correfe-
renciais muitas vezes não são sinónimos; isto é, dois termos podem
partilhar o seu referente, mas ter diferentes significados — como
«Jorge Mario Bergoglio» e «o Papa», por exemplo.
Parece que devemos concluir que tem de haver pelo menos uma
maneira de uma expressão ter significado que não em virtude de
nomear algo, aplicando-se isto até possivelmente a algumas expres­
sões que realmente nomeiam coisas. Há várias teorias do significado
que vão além da teoria referencial, apesar de todas enfrentarem as

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Filosofia da Linguagem

suas próprias dificuldades. Veremos algumas delas e as respetivas


dificuldades na Parte II. Mas primeiro, nos próximos três capítulos,
examinaremos melhor a natureza do ato de nomear, da referência e
de noções semelhantes, em parte, porque a referência continua a ser
importante em si, apesar das inadequações da teoria referencial do
significado, e, em parte, porque uma discussão da referência ajudar-
-nos-á a introduzir alguns conceitos de que precisaremos ao avaliar
as teorias do significado.

Resumo

• Algumas sequências de marcas ou ruídos são frases com signifi­


cado.
• E um facto espantoso que qualquer pessoa normal consiga
apreender instantaneamente o significado de uma frase, mesmo
que seja muito longa e nova.
• Cada frase com significado tem partes que também têm signifi­
cado.
• Apesar de ser inicialmente atraente, a teoria referencial do signi­
ficado enfrenta várias objeções poderosas.

Questões

1. Consegue pensar em mais objeções à teoria referencial, tal


como foi formulada?
2. Serão as objeções 1 e 2 inteiramente justas, ou haverá répli­
cas plausíveis que o defensor da teoria referencial poderia
apresentar?

Notas

1 CARROLL, Lewis, Alice’s Adventures in Wonderland and Through


the Looking Glass, Londres, Methuen, 1978, p. 180. [Em português,

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Introdução

CaRROLL, Lewis, Gato, Margarida Vale de [trad.], As Aventuras de


Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho,
Lisboa, Relógio D’Água, 2000.]
2 CUMMINGS, e. e., Complete Poems, 1913-1962, Nova Iorque, Harcourt,
Brace, Jovanovich, 1972.

Leitura complementar

• Provavelmente o crítico mais persistente da teoria referencial é


Wittgenstein (1953: Parte I). Uma ofensiva wittgensteiniana mais
sistemática encontra-se em Waismann (1965a: Cap. 8).
• Em Frege (1892/1952a) e (1892/1952b), encontram-se argumen­
tos do género que subjazem à objeção 3.
• Wolterstorff (1970: Cap. 4) e Loux e Crisp (2017: Cap. 1) ofere­
cem mais discussões sobre a regressão de Bradley.

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