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Suma Gramatical
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E-book914 páginas11 horas

Suma Gramatical

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Sobre este e-book

A Suma Gramatical da Língua Portuguesa é uma gramática com dois importantes diferenciais: tem amparo em escritores não literários e fundamento filosófico, dirigindo-se tanto ao interessado em conhecer melhor sua própria língua, quanto ao estudioso que pode beneficiar-se de uma abordagem teórica pouco comum. um gramático de sólida formação aristotélico-tomista, ou seja, um autor firmemente comprometido com o rigor lógico, com a precisão conceitual e com a clareza da linguagem
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de jul. de 2024
ISBN9788580334036
Suma Gramatical

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    Suma Gramatical - CARLOS NOUGUÉ

    Copyright © 2015 Carlos Nougué

    Copyright desta edição © 2015 É Realizações

    editor

    Edson Manoel de Oliveira Filho

    produção editorial, capa e projeto gráfico

    É Realizações Editora

    preparação de texto e revisão

    William C. Cruz

    produção de ebook

    S2 Books

    Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

    É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Eireli

    Rua França Pinto, 498 · São Paulo SP · 04016-002

    Caixa Postal: 45321 · 04010-970 · Telefone: (5511) 5572 5363

    [email protected] · www.erealizacoes.com.br

    Folha de rosto

    A Paulo Sérgio e a Rosa Clara,

    e a Maria Augusta.

    ¡Cuántas veces el ángel me decía:

    "Alma, asómate ahora a la ventana,

    verás con cuánto amor llamar porfía"!

    Lope de Vega

    Não é coisa de qualquer homem impor nomes, mas de um nominador. E este é, ao que parece, o legislador, que naturalmente é entre os homens o mais raro dos artesãos.

    Sócrates / Platão

    A linguagem é figura do entendimento: e assim é verdade que a boca diz quanto lhe manda o coração e não outra coisa.

    Fernão de Oliveira

    A pena é língua da alma; quais forem os conceitos que nela se engendraram, tais serão seus escritos.

    Dom Quixote

    A gramática de uma língua é a arte de [escrever e pois de] falar corretamente, isto é, conforme ao bom uso.

    Andrés Bello

    A prevenção mais desfavorável [...] é a daqueles que julgam que em gramática as definições inadequadas, as classificações malfeitas, os conceitos falsos carecem de inconveniente, desde que, por outro lado, se exponham com fidelidade as regras a que se conforma o bom uso. Eu creio, contudo, que essas duas coisas são inconciliáveis; que o uso não pode expor-se com exatidão e fidelidade senão analisando os princípios verdadeiros que o dirigem, porque uma lógica severa é indispensável requisito de todo e qualquer ensino.

    Andrés Bello

    A gramática é a arte de levantar as dificuldades de uma língua; mas é preciso que a alavanca não seja mais pesada que o fardo.

    Antoine Rivarol

    Amo-te, ó rude e doloroso idioma, / Em que da voz materna ouvi: meu filho!

    Olavo Bilac

    Sumário

    Capa

    Créditos

    Folha de rosto

    Dedicatória

    Citação

    Apresentação

    Prólogo

    Primeira parte: língua, linguagem, gramática

    I. Fala e linguagem

    II. A diversidade de línguas

    III. Definição de língua

    IV. A escrita

    V. Se a arte da Gramática o é só da escrita ou também pode vir a sê-lo da fala

    VI. O sujeito da Gramática e a definição desta

    VII. A que serve imediatamente e reflexamente a Gramática

    VIII. A que serve mediatamente a Gramática

    IX. A que serve ultimamente a Gramática

    Segunda parte. notícia histórica da língua portuguesa

    I. Origem próxima

    II. A chegada do latim à Península Ibérica

    III. A romanização da Península

    IV. A época visigótica

    V. A dominação moura

    VI. A formação do primeiro português

    VII. As etapas do português

    VIII. A língua portuguesa no mundo atual

    Terceira parte. fonemas e letras na língua portuguesa atual

    I. Fonema e letra

    II. O aparelho fonador e os fonemas

    O aparelho fonador

    III. Visão mais sistemática dos fonemas da língua portuguesa

    IV. A sílaba

    V. Os encontros

    VI. Tonicidade e atonicidade

    VII. Palavras de acentuação viciosa

    VIII. Grupo acentual e palavras essencialmente átonas

    IX. Posição das palavras essencialmente átonas

    X. Os vários sistemas ortográficos da língua portuguesa

    XI. O que pensar das reformas ortográficas

    XII. O atual sistema ortográfico

    Quarta parte: morfologia, ou tratado da forma das palavras (na língua portuguesa)

    I. O que é morfologia em gramática

    II. As classes gramaticais

    III. A palavra, unidade significativa mínima

    IV. Como se formam as palavras

    V. A formação de novas palavras

    Quinta parte: outros paradigmas e primeiros empregos das classes gramaticais

    Nota prévia: um primeiro quadro das classes gramaticais e suas funções sintáticas

    I. O substantivo

    II. O adjetivo

    III. Os pronomes

    IV. Os numerais

    V. Os artigos

    VI. Os verbos

    VII. Os advérbios

    VIII. As preposições

    Sexta parte: sintaxe geral

    I. Oração e frase

    II. Os termos da oração: as funções sintáticas

    III. As espécies de orações

    Sétima parte: regência verbal e crase

    I. Definição de regência

    II. Regência de alguns verbos

    III. A crase

    Oitava parte: concordância nominal e concordância verbal

    I. As duas espécies de concordância

    II. Concordância nominal

    III. Concordância verbal

    IV. A flexão do infinitivo

    Nona parte: colocação dos pronomes pessoais átonos

    I. Preâmbulos

    II. A colocação dos pronomes pessoais átonos

    Décima parte: pontuação

    I. Definição de pontuação

    II. Os sinais de pontuação

    Agradecimentos

    Notas

    Apresentação

    Desembargador Ricardo Dip [ 01 ]

    Há uma cena no filme Life of Brian (1979), dirigido por Terry Jones, em que a personagem central, Brian (vivido por Graham Chapman), se põe a pichar os muros de Jerusalém: "Romanes eunt domus (o que se pretendia era escrever Romanos, ide para casa). Um centurião surpreende Brian e coage-o a corrigir, passo a passo, o mau uso do latim, concluindo-se com a sentença Romani ite domum", que o centurião impõe a Brian escreva cem vezes sobre os muros da cidade. Menos evidente do que o objetivo de espancar a pedagogia contemporânea do latim e, segundo alguns críticos, desfiar uma sequência de blasfêmias, calha que a cena retrata uma liberdade expressiva entre os romanos, que, sem embargo, não implica a transigência com a perversão do idioma, porque isso importaria na ruptura de uma relação cara aos romanos − e cara até porque se revestia de um suposto caráter divino −, qual a que se dá entre o nomen e o numen. Ou seja, na essência de cada coisa entendiam os romanos encontrar-se um numen (traduza-se livremente: o mistério, o ignoto) − e Cícero dirá que "tudo está regido e governado pelo numen dos deuses" −, numen que se descobre mediante o proferimento do nomen. Por isso, conhecer o nomen de dada coisa, entre os romanos, é descobrir-lhe o mysterium, é revelar − diz Alfredo Di Pietro, em Verbum Iuris − "el secreto divino ínsito en la cosa".

    Essa relação nomen-numen explica em larga medida o cuidadoso formalismo romano. Estar na posse do nomen (desvelador do numen) do deus impetrado por seu próprio e misterioso nome era condição para o êxito das invocações. A certo Valerius Soranus, por exemplo, consta imposta a pena de crucifixão ao ter proferido, em alta voz, o nomen urbis atrativo da proteção dos romanos, o que permitira sua impiedosa evocatio pelos inimigos de Roma. Noutro exemplo, S. Agostinho, na Cidade de Deus, refere-se ao episódio de Marcus Attilius Regulus, prisioneiro dos cartagineses, que morreu para ser atentamente fiel à palavra que empenhara: fidelidade ao nomen é fidelidade ao numen, fidelidade não apenas à realidade das coisas desveladas de seu mistério, mas fidelidade ainda ao próprio homem que, exatamente pelo nomen, chega à revelação do mysterium. O numen de cada coisa, assim, corresponde a um nomen, a um canto numinoso ou encanto que lhe é próprio, de tal sorte que se possa compreender a profundidade metafísica e epistêmica desta sentença de Afonso Botelho: ser, em canto ser.

    Essa verdadeira garantia de integridade da relação nomen-numen exige-se quer num plano psicológico − para o qual basta referir as lições de Robert Brennan, em sua Psicologia Geral: todo aquele que inventa ou emprega uma linguagem deve estar conscientemente inteirado da significação de fatos, situações, relações e, assim, sucessivamente, antes de poder usar um meio, falado ou escrito, para expressar seus estados mentais −, quer noutro, de domínio social, porque a linguagem não é só, nem primeiramente, uma atividade humana isolada, senão um meio informativo, re-presentativo e de expressão na vida humana política (i.e., na polis).

    A linguagem não está a serviço do pensamento solitário − a que já aludira Paul Bourget, nos Ensaios de Psicologia Contemporânea. A decadência da literatura, dizia Bourget, não é mais do que um aspecto análogo ao da decadência social, uma e outra provenientes de uma anarquia egótica − ou, agora, melhor acaso se diga: de um niilismo −, em que uma radical independência dos indivíduos destrói o conjunto: a unidade do livro decompõe-se, para dar lugar à independência da página; a página decompõe-se, para dar turno à independência da frase; e a frase, para dar vez à independência da palavra. Se com Aristóteles, no livro da Política, pode admitir-se que a linguagem existe para fazer manifesto o bem e o mal, o justo e o injusto, e que é a comunidade dessas coisas o que constitui a família e o Estado, corre-se grave perigo social quando a linguagem se torna independente de normas, anárquica, niilista, meio azótica, meio hebraica − para remontar aos tempos de Neemias (Neemias 13,24). O caos do nomen é o caos do numen: "words are symbols of ideas about reality" (Miriam Joseph), e a ruptura do liame nome-coisas, entregue a linguagem a uma suposta liberdade do falante, parece acusar que a razão está posta em agonia, tal a diagnose, referindo-se à information déformante, de um valoroso libelo de Marcel de Corte (L’Intelligence en Péril de Mort).

    À realidade das coisas − em certo sentido, uma realidade fechada, enquanto assim proposta ao conhecimento humano − dirige-se a realidade aberta da pessoa humana, uma realidade que, inacabada, tem de construir-se em meio (ou melhor, com apoio) da realidade de todas as coisas e das pessoas com que é vocacionada a conviver: nenhuma construção pessoal pode marginar-se da informação, da representação e da expressão do real também no domínio político (vide, a propósito, Xosé Manoel Domínguez, Psicología de la Persona). Mas, no ambiente da polis, o niilismo de regras − incluído o egotismo no uso das palavras, ou seja, uma babelização − é a negação do próprio contacto com o real.

    Nesse estado de coisas, é um marco de justificável esperança ler, já ao princípio desta Suma Gramatical da Língua Portuguesa, de Carlos Nougué, que não se haja de abandonar as palavras à solta, que não caiba conformar-se com o caos da lingua derelicta, com que les mots sont les maux:

    DEIXADA À DERIVA, sem regras que a dirijam, como hoje querem muitos que, porém, o mais das vezes defendem sua tese sem nenhuma deriva, a língua seria como as águas de um rio, puro fluxo, ao ponto de não poder falar-se duas vezes como a mesma língua.

    A Gramática é conhecimento regulativo (ou normativo), bem por isso uma arte (em sentido analógico) mais diretamente voltada à produção do literal e, de algum modo limitado, ainda à da linguagem falada: dirá Nougué, arte estritamente normativa da escrita; a Gramática, com efeito, ou há de ser antes de tudo a arte da língua escrita, ou não será propriamente Gramática, averbando que a escrita é a parte das línguas que de si mais capacidade tem não só de conservar-se, mas de conservá-las.

    Arte por semelhança, em virtude de sua analogia com as artes em sentido próprio (os hábitos produtivos de índole racional), a Gramática é uma das sete artes ditas liberais, um saber − a exemplo da Lógica, saber este que a subalterna proximamente −, por certo aspecto, especulativo (na medida, bem o observou Leopoldo Eulogio Palacios, em que apenas se produz diretamente pela razão), mas, por outro, prático (secundum quid speculativum, secundum quid practicum), e que, à vista de seu fim (quantum ad finem), prepondera como saber prático (magis practicum quam speculativum). Porque, como arte que é, prossegue Nougué, a Gramática não há de ter corpo teórico senão para servir estritamente a seus fins (artísticos), assim como a teoria musical não pode servir senão à prática da composição e à da execução musicais.

    Contando-se ao lado da Lógica (ou Dialética) e da Retórica entre as chamadas artes sermocinales − as artes lógicas ou do trivium −, a Gramática é um saber intimamente ligado à Lógica, porque não é possível o discurso humano sem a palavra. Poderia pensar-se numa linguagem própria da Lógica (e ela, com efeito, permeia as várias Lógicas simbólicas), mas o desenrolar natural do pensamento exige uma linguagem ordinária, por meio de palavras que informem, representem e expressem o mundo interior não apenas aos especialistas em determinada metalinguagem lógica.

    A Gramática é um saber (sobretudo o da escrita, que é signo da fala, observa Nougué) que comunga dos fins da Lógica, quais sejam a retidão (ou consequência) e a verdade do pensamento. Os efeitos da Gramática são, de pronto, imanentes ao próprio intelecto, e estão voltados a realizar os fins fruídos da Lógica, na medida em que, como visto, bem escrever e, mais limitadamente, bem falar importam em bem julgar e bem discursar, equivale a dizer, em ser formalmente reto e materialmente veraz nas proposições e argumentações.

    Essa comunidade teleológica não implica, todavia, absorção da Gramática pela Lógica (ou, por outra, a identificação de seus objetos: a palavra e o pensamento). Isso já se avista de aquela, a Gramática, servir também, e de algum modo, à Poética e à Retórica (o que bem assinalou Nougué), e pode pôr-se em evidência com o ingresso no que José Miguel Gambra designou como câmara sagrada da analogia: o árduo tema dos conceitos análogos. É que as palavras − e as sentenças, inclusive − padecem, se não de uma equivocidade tendencial, de uma irresistível vocação analógica (que o uso e abuso das metáforas mostra amplamente). Só por meio de uma pouco menos do que inimaginável linguagem analítica absoluta seria possível sonhar − mas, acaso, ao modo de um pesadelo (o inferno é o reino da monotonia) − o conforto de conceitos sempre unívocos. A Gramática tem aí seu papel de crisol, discriminando, no uso recolhido, as acepções das palavras.

    A subalternação próxima de um saber a outro não inibe a subordinação remota ou indireta que provenha de um primeiro saber subalternante subpor-se a outro. E é assim, para que a Lógica − e com ela a Gramática − não se destrua de irrealismo, que a Metafísica deve constituir-se por ciência primeira e subalternante de ambas: da Lógica, diretamente, da Gramática, de modo remoto. E nisso está Nougué.

    Carlos Nougué completou sua Suma. Obra de gramático. Obra de consagrado lexicógrafo. Obra teórico-prática de um professor experienciado, que nos indica deva a Gramática ensinar-se:

    normativamente, tendo sempre em vista aquilo a que se ordena;

    desde a infância (com a necessária gradação no decorrer do tempo);

    paralelamente à leitura dos melhores autores;

    e ao exercício constante da escrita;

    mas obra também de um filósofo prudente, de alguém acostumado a leituras árduas e que não se deixa abater pelas tempestades periféricas: vai às profundezas, em busca de fundamentos últimos aos quais possa discretamente arrimar sua arte regulativa, a da palavra.

    Estamos, enfim, diante de um pensador.

    Prólogo

    _------__1245 I _------__%$@!

    Deixada à deriva, sem regras que a dirijam, como hoje querem muitos que, porém, o mais das vezes defendem sua tese sem nenhuma deriva, a língua seria como as águas de um rio, puro fluxo, ao ponto de não poder falar-se duas vezes como a mesma língua.

    Isso, no entanto, é pura negação do óbvio: é parte intrínseca de toda e qualquer língua ter regras; é o dique ou comporta sem a qual ela de fato fluiria e fluiria sem nenhuma permanência. E, com efeito, pai algum, mãe alguma, se dotados ao menos do ínfimo senso natural de cuidado e educação da prole, deixarão de corrigir o filho se ele disser algo errado. Se o pequeno disser, por exemplo, zinza em vez de cinza, tal pai e tal mãe não haverão de calar-se nem, muito menos, de deleitar-se com mais essa novidade de uma permanente deriva linguística.

    E de fato os propugnadores da tese da língua sem regras não conseguem ver que sem esta nem sequer se poderia propor sua tese – simplesmente porque nem sequer haveria nenhuma língua. Bem sabemos que se retrucará: Mas as línguas mudam constantemente... Impossível negá-lo. Todavia, mudam em duplo sentido: no primeiro, corrompendo-se, não raro até ao desaparecimento; no segundo, progredindo.

    Corrompem-se mais aceleradamente quando, entre fiapos de civilização, há apenas as regras intrínsecas da Linguagem: essa é a razão por que as línguas ágrafas tendiam (e tendem) incessantemente à desordem de seus próprios paradigmas e de seu quadro fonético. Menos impetuosamente quando, em meio a uma verdadeira civilização universal (ou tendente à universalidade), se tem a escrita com sua arte própria e especial, a Gramática. – Mais ainda, neste último caso podem tender até a grande estabilidade: foi o que se deu com o latim ao tornar-se língua altamente normatizada e ordenada à Ciência e à Sabedoria. [ 02 ]

    Progridem, por outro lado, mediante sobretudo a escrita e sua Gramática, já quando fecham um novo paradigma, [ 03 ] já quando criam e incorporam a seu léxico palavras que expressem novas concepções da realidade. [ 04 ] E tanto mais progredirão quanto mais cultivadas forem, ou seja, quanto mais se valerem delas e as aprimorarem verdadeiros mestres. Foi o caso, por exemplo, de Platão e de Aristóteles com respeito ao grego antigo: não só lhe deram todo um conjunto de novas palavras para significar os mais profundos conceitos científicos, mas, pela necessidade mesma de fazer servir a língua à Filosofia, contribuíram ainda para o aprimoramento de seus paradigmas casuais. [ 05 ]

    Naturalmente, o conceito de Linguagem e o de língua, bem como muitos outros implicados ou supostos na arte da Gramática, requerem um aprofundamento científico impossível de dar-se nos marcos de um prólogo. [ 06 ] Fique já estabelecido aqui, contudo, que, sem fatores que se sobrepusessem às regras implícitas da Linguagem, sairíamos do sul do Brasil com uma língua e, ao chegar ao norte dele, depararíamos com outra – para não falar dos países lusófonos de além-mar.

    Limitemo-nos ainda, aqui, ao estado da língua em nosso país. Por um lado, sim, é verdade que ao menos os gaúchos e os nortistas com algum grau de escolaridade se entendem uns aos outros. Isso porém não implica que sejam, propriamente falando, senhores da Gramática da língua portuguesa, porque tal mútuo entendimento não resulta senão das regras implícitas da Linguagem reforçadas pelos meios de comunicação modernos e por meros rudimentos gramaticais escolares. Explique-se.

    Antes de tudo, um apanhado histórico. Com a consolidação, entre o século xiv e o xvi, dos estados absolutistas e o consequente fim da exclusividade do latim como língua de civilização, as antigas línguas locais da Europa viram-se progressivamente na necessidade de contar com gramática própria. Não contavam, contudo, ao contrário do latim, com tradição escrita (nem falada) de serviço à Ciência e à Sabedoria. Cingiam-se a servir, havia dois ou três séculos, à Literatura e à Retórica (e aqui e ali ao Direito), razão por que as diversas gramáticas que iam surgindo não só se erguiam exclusivamente sobre a Literatura e, em menor grau, sobre a Retórica – no sentido de extrair suas regras dos textos dos melhores literatos e dos melhores oradores –, mas, consequentemente, se ordenavam sobretudo a elas – no sentido de preparar os moços em particular para a arte poética e para a arte oratória.

    Isto teve um preço: o beletrismo, o atrelamento da Gramática ao carro da Literatura, ou seja, às necessidades dos literatos. [ 07 ] Resultado: as gramáticas que iam surgindo e aperfeiçoando-se não buscavam com suficiente empenho fechar quanto possível paradigmas, e compraziam-se na multiplicação das exceções. Não podia ser diferente, uma vez que o reino do literário e ainda o do oratório não são de todo normatizáveis pelo gramatical.

    Pois bem, esta situação perdurou, quase inalteravelmente, até meados do século xx, quando começou a transtornar-se pelo surgimento da Sociologia e, sobretudo, da Linguística. A partir de então, os gramáticos, com as defesas já minadas por seu próprio beletrismo, foram sucumbindo de algum modo ao lema de que as línguas deveriam ser deixadas à deriva, como dissemos no início. Podemos constatá-lo, em algum grau, em parte considerável das gramáticas da segunda metade do século passado para cá; e agora já se passa de atrelar a gramática ao carro do literário e do oratório a atrelá-la ao carro dos falares do povo. Mas dispor de uma arte gramatical falha, como o era a beletrista, é patentemente menos daninho que não dispor de nenhuma arte gramatical, porque, como visto, sem esta a língua tende mais impetuosamente à corrupção e ao desaparecimento.

    No Brasil, a situação agravou-se, ainda, com o surto desenvolvimentista da década de 1970. Mediante uma reforma do ensino [ 08 ] que não visava senão a atender a tal surto, separou-se a faculdade de Filosofia da de Letras, (com o que se tirou totalmente à Gramática as luzes superiores da Lógica), [ 09 ] suprimiu-se o curso clássico, eliminaram-se do currículo escolar o Latim e o Francês, privilegiaram-se umas Ciências ditas exatas [ 10 ] e um Inglês ordenados estritamente ao técnico-comercial – e restringiu-se o ensino da Gramática à transmissão de regrinhas e macetes que capacitassem para a aprovação em concursos e vestibulares. Passados tais exames, com aprovação ou sem ela, nada mais natural que se deixassem para trás tais artinhas atormentadoras.

    Estamos ainda no bojo desse processo, que parece já atinge patamares alarmantes. E dizemos alarmantes porque, se tão precário ensino da Gramática, aliado aos efeitos dos media modernos, é capaz de ao menos momentaneamente assegurar que gaúchos e nortistas se compreendam uns aos outros na fala, não é nem de longe, porém, capaz de efetivamente formar ninguém para a escrita – o que com tristeza se pode verificar, em larga escala, em nosso próprio meio acadêmico. E a Gramática, com efeito, ou há de ser antes de tudo a arte da língua escrita, ou não será propriamente Gramática. Ademais, a escrita é a parte das línguas que de si mais capacidade tem não só de conservar-se, mas de conservá-las. É fato evidentíssimo que, por exemplo, o grego ático de um Platão ou o latim romano de um Cícero não nos teriam chegado se não fora a escrita; assim como também é fato evidente que não é senão em razão da escrita que podemos dizer, com toda a propriedade, que o português do Brasil e o de certas regiões dos demais países lusófonos são a mesma língua.

    Mais que isso, todavia: o que, combinado com a ação dos media, o ensino gramatical rudimentar propicia nos dias de hoje não é mais que uma trivial compreensão entre gaúchos e nortistas, porque de fato não só desaparece em geral a capacidade de escrita, mas a mesma capacidade de discurso mais articulado e mais profundo – o que, ainda infelizmente, também se manifesta em ampla escala no mesmo meio acadêmico. Pois o que por reflexo propicia mais cabalmente o bem falar é o ler bons autores e o bem escrever, tudo o que, por sua vez, não é propiciado senão pelo ensino não rudimentar da Gramática.

    _------__1245 II _------__%$@!

    Mesmo porém no limitado âmbito deste Prólogo, não basta apontar determinado estado calamitoso e suas causas: é preciso dizer ainda, ao menos sumariamente, a) a que se ordena a Gramática; e, em razão disso, b) em que deve fundar-se, c) como deve considerar-se, d) como deve fazer-se, e) como deve ensinar-se.

    A Gramática ordena-se:

    antes de tudo, a constituir-se justamente como a arte da escrita;

    como porém a escrita é signo da fala, a normatizar (dentro de certos limites) a esta, servindo assim à sua arte, a Linguagem; [ 11 ]

    superiormente, a servir à arte-ciência da Lógica e pois à Ciência e à Sabedoria;

    e também, afinal, à Poética e à Retórica, as quais, todavia, por sua mesma índole e por seus mesmos princípios e fins, só se cingirão mais ou menos estritamente a ela e suas regras. [ 12 ]

    Deve fundar-se:

    antes de tudo, nos melhores escritores não literários (filósofos, jurisconsultos, historiadores...) e, naturalmente, nos gramáticos enquanto são bons escritores;

    mas também, em justa medida, nos melhores oradores e nos melhores literatos;

    e ainda nas melhores traduções ao português.

    Deve considerar-se:

    como arte, que, como toda e qualquer arte, tem seu corpo teórico, dotado de princípios próprios, mas iluminado por princípios de outras ciências, superiores;

    como arte que é, todavia, não há de ter corpo teórico senão para servir estritamente a seus fins (artísticos), assim como a teoria musical não pode servir senão à prática da composição e à da execução musicais.

    Deve fazer-se:

    como arte estritamente normativa da escrita e, insista-se, dentro de certos limites, também da fala;

    para tal, deve ter sempre em vista a manutenção e o fechamento de paradigmas;

    consequentemente, deve formular regras as mais simples e de abrangência o mais ampla possível – o que implica esquivar, ainda quanto possível, as exceções;

    e, por razões metodológico-didáticas, deve expor-se em espiral ou, mais propriamente, em hélice. Explique-se.

    A Gramática tem de ocupar-se, por exemplo, das letras, das demais partes formadoras das palavras e das palavras enquanto divididas em classes gramaticais; e, em princípio, as letras deveriam anteceder na exposição às demais partes das palavras, e tais partes às classes destas. Todavia, não é conveniente falar, na seção do uso do hífen, de prefixos antes que se saiba o que estes são, ou de locuções antes que se estude como se formam as palavras; assim como tampouco o é falar de sufixos nominais ou de sufixos verbais se ainda não se sabe o que são os nomes e os verbos. Por isso, o uso do hífen, que comumente se expõe antes do estudo da formação das palavras, seguir-se-á aqui a este. Por sua vez, a definição e as principais propriedades das diversas classes gramaticais se exporão antes do estudo da formação das palavras, mas tornarão a tratar-se depois deste: antes de tudo, para a ordenação das palavras de tais classes em paradigmas tanto segundo sua respectiva significação como segundo as partes de que se compõem; e, depois, para sua ordenação a um correto uso. E assim para todos os demais casos.

    e.    Deve ensinar-se:

    normativamente, tendo sempre em vista aquilo a que se ordena;

    desde a infância (com a necessária gradação no decorrer do tempo);

    paralelamente à leitura dos melhores autores;

    e ao exercício constante da escrita.

    Pois bem, nunca nos esqueceremos de ter ouvido certa vez, com estupor, uma professora universitária de Língua Portuguesa perguntar aos alunos: Para que a Gramática? Era pergunta retórica, que trazia implícita sua resposta: Para nada. Deixemos a língua seguir sua deriva. Não é essa, obviamente, a nossa resposta, senão esta: Para fazer que nossa língua seja rio, sim, mas rio que graças aos diques e ao curso que lhe dêmos ajude a atingir a foz da Sabedoria.

    _------__1245 III _------__%$@!

    Não obstante, a Suma Gramatical da Língua Portuguesa não deixará de topar com árduos obstáculos para o atingimento de seus fins.

    Antes de tudo, não só o já referido descrédito em que vem caindo a Gramática, mas o próprio e crescente desuso, entre as mesmas camadas mais instruídas, da leitura dos melhores autores.

    Depois, e em decorrência do dito anteriormente, a imensa pressão das derivas coloquiais, que tomam cada vez mais o falar da própria gente mais instruída e, com isso, abrem um abismo cada vez mais largo entre este falar e as normas gramaticais.

    Também a já muito difundida concepção de que a Gramática deve nivelar-se, digamos, por baixo, ao contrário de destinar-se a um público culto ou que queira e possa sê-lo e que, portanto, possa valer-se cabalmente dela, seja para a própria escrita, seja para estudos superiores, seja para o magistério em qualquer grau (com as devidas adaptações). [ 13 ]

    Apraz-nos muito certa passagem do gramático Napoleão Mendes de Almeida. Conta nela, pouco mais ou menos, que certa vez viu um pedreiro sair à procura de trabalho. À volta, provavelmente algo entristecido, disse-lhe este que não encontrara nada: "Não vagas". Perguntou-lhe o gramático onde aprendera a dizer o castiço haver em lugar do corrente ter. Resposta: Estava escrito num cartaz.

    Pois nesta historieta se cifra, esplendidamente, algo implícito à afirmação de que a Gramática deve destinar-se a um público culto ou que o queira e possa ser: assim como só se fala bem graças ao estudo da Gramática, à leitura dos bons autores e ao exercício da boa escrita, assim também os que não queiram ou não possam fazê-lo falarão tão mais corretamente quanto mais o fizerem os que o queiram e possam. [ 14 ]

    O último obstáculo é a chamada Nomenclatura Gramatical Brasileira (a N.G.B.), instituída em 1959 pelo então governo da República mediante portaria. Seu texto foi integralmente elaborado por uma comissão composta de gramáticos e filólogos de gabarito: Antenor Nascentes, Clóvis do Rêgo Monteiro, Cândido Jucá (filho), Carlos Henrique da Rocha Lima e Celso Ferreira da Cunha, os quais por sua vez contaram com a assessoria dos igualmente competentes Antônio José Chediak, Serafim Silva Neto e Sílvio Edmundo Elia. Leia-se o preâmbulo da portaria:

    Ü "Portaria nº 36, de 28 de janeiro de 1959

    O Ministro do Estado da Educação e Cultura, tendo em vista as razões que determinaram a expedição da Portaria nº 152, de 24 de abril de 1957, e considerando que o trabalho proposto pela Comissão resultou de minucioso exame das contribuições apresentadas por filólogos e linguistas, de todo o País, ao Anteprojeto de Simplificação e Unificação da Nomenclatura Gramatical Brasileira, resolve:

    Art. 1º – Recomendar a adoção da Nomenclatura Gramatical Brasileira, que segue anexa à presente Portaria, no ensino programático da Língua Portuguesa e nas atividades que visem à verificação do aprendizado, nos estabelecimentos de ensino.

    Art. 2º – Aconselhar que entre em vigor:

    a. para o ensino programático e atividades dele decorrentes, a partir do início do primeiro período do ano letivo de 1959;

    b. para os exames de admissão, adaptação, habilitação, seleção e do art. 91, a partir dos que se realizarem em primeira época para o período letivo de 1960."

    Veja-se pois que não se tratava de lei imperativa, mas de ato que antes recomendava e aconselhava. E, conquanto seja inegável que já há meio século ela se vem impondo algo consuetudinariamente, também o é que peca ao menos por simplismo e insuficiência, o que foi dito, posteriormente, até por alguns de seus mesmos signatários – todos os quais, por outro lado, em grau variado, nunca a seguiram de todo. Pois bem, não a seguimos sempre que insuperavelmente implique equívoco, conquanto tampouco deixemos de segui-la sempre que se coadune com os justos princípios ou possa de algum modo adaptar-se a eles – porque assim procedendo evitamos o mais possível rupturas com o já tradicional. [ 15 ]

    _------__1245 IV _------__%$@!

    Seria ocioso dizer, por fim, que nenhuma gramática tem o condão de esgotar os assuntos relativos à normatização de uma língua. Por isso, nossa Suma Gramatical da Língua Portuguesa deverá ter permanente continuidade em outros lugares.

    _------__1245 I _------__%$@!

    FALA E LINGUAGEM

    1.1. Fosse o homem por natureza um animal solitário, bastar-lhe-ia pensar para ter notícia ou conhecimento intelectual das coisas. Mas não o é, senão que, em decorrência de sua mesma natureza intelectual, é também um animal político ou social, razão por que seus conceitos, suas proposições, suas argumentações – tudo isso mediante o qual ele conhece e compreende a realidade ou pode ordená-la na medida de suas possibilidades – hão de ensinar-se ou manifestar-se aos demais e aprender-se ou receber-se deles. Tal se dá mediante signos de tais concepções, de tais proposições, de tais argumentações – são as palavras orais, as proposições orais, as argumentações orais, tudo isso que, precisamente, permite aos homens conviver entre si. Trata-se da necessidade da fala, que resulta, assim, de uma intenção significativa e comunicativa.

    ù Pelo que se acaba de dizer, já pode aquilatar-se o problema que a variedade de línguas implica.

    1.2. Mas, para que alcance o fim para o qual é necessária, a fala requer uma arte que a ordene a ele – e esta arte é a Linguagem. [ 16 ]

    1.3. A Linguagem, ademais, tende a refletir em suas construções a própria constituição da realidade. [ 17 ] É o que se dá com as diversas classes de palavras, as quais expressam de alguma maneira as dez categorias ou gêneros máximos do ente, [ 18 ] a saber: a substância e seus nove acidentes: quantidade, qualidade, relação, ubiquação, quando, situação (ou posição), posse (ou habitus), ação e paixão (ou ser paciente de uma ação). [ 19 ] Não é difícil notar que a classe do substantivo exprime as substâncias ou os acidentes tratados como substâncias; que o adjetivo corresponde à qualidade – e à relação, à situação, à posse, etc., entendidas a modo de qualidade; que o verbo expressa, propriamente, a ação e a paixão, mas também a posse entendida como ação de possuir, etc.; e que o advérbio não só se ocupa do quando e da ubiquação, mas se aplica a qualquer forma passível de receber mais ou menos, ou seja, de ter certas modalidades.

    _------__1245 II _------__%$@!

    A DIVERSIDADE DE LÍNGUAS

    2.1. Não é este o espaço para investigar aprofundadamente por que há diversidade de línguas, a qual porém resulta de uma como incapacidade da Linguagem de sustentar, de algum modo, a unidade de sua obra. [ 20 ] E, se aderimos firmemente à tese da monogênese não só da Humanidade mas da mesma linguagem, [ 21 ] deve partir-se aqui, não obstante, da evidência de que há tal diversidade – e de que se perde no tempo o momento em que começou a dar-se.

    2.2. Como antecipado, a diversidade das línguas vai a contrapelo da finalidade precípua da fala. Sim, porque, se a fala decorre da natureza intelecto-social do homem e, pois, de sua necessidade de intercomunicação, a diversidade linguística pelo menos dificulta o atendimento desta; mas o mais das vezes o impede – se não se conta com a atuação de intérpretes (outrora chamados línguas) ou tradutores. Com efeito, entre línguas de um mesmo ramo linguístico, ainda pode dar-se alguma compreensibilidade mútua, como de fato se dá entre as línguas do ramo latino, entre as do germânico ou entre as do eslavo. Não assim, porém, entre línguas de ramos remotos nem, muito menos, entre línguas de troncos distintos.

    ù Desse modo, por exemplo, alguma compreensibilidade mútua se dá entre os falantes do português, os do espanhol e os do italiano – e, conquanto menos, os do francês, em verdade uma língua neolatina que, todavia, conservou muito de seu substrato germânico, o frâncico. Ainda alguma compreensibilidade mútua (ínfima) pode dar-se entre os falantes das línguas neolatinas e os do inglês, mas isso porque este não é puramente do ramo germânico: tem longa história de influência do latim e, sobretudo, do francês.

    ù Tal compreensibilidade mútua, todavia, é de todo impossível se se trata de línguas de troncos diferentes, como o são, por exemplo, o português – do tronco indo-europeu [ 22 ] e do sub-ramo latino –, o húngaro – do tronco uraliano e do ramo fino-ugriano –, o árabe – do tronco camito-semítico e, ele mesmo, ramo deste – e o chinês – do tronco sino-tibetano e, ele mesmo, ramo deste. Entre os falantes destas línguas não haverá alguma compreensibilidade senão mediante gestos e sinais, o que em certo sentido faz recuar a linguagem um pouco na direção do animal.

    2.3. E tal mútua incompreensibilidade se deve não somente a que as mesmas coisas se nomeiem diferentemente nas diversas línguas, mas também, e em alguns casos sobretudo, às seguintes razões.

    2.3.1. O homem pode articular grandíssimo número de fonemas; entre eles, as línguas selecionam alguns, mas nem sempre os mesmos. Assim, para começar pelo mais próximo, o espanhol tem um j que o português não tem, enquanto o português tem ditongos nasais não presentes em nenhuma outra língua neolatina. O árabe, por sua vez, é dotado de fonemas faringais com que nem sonham os neolatinos, enquanto o italiano mantém consoantes geminadas, de todo ausentes do âmbito ibérico e do âmbito gálico. Já os falantes das línguas boxímanes, da África meridional, convertem estalos da língua em fonemas. E assim por diante.

    2.3.2. Do ângulo das partes das palavras e das construções sintáticas, a variedade é ainda maior, muito maior.

    2.3.2.a. Enquanto algumas línguas se valem abundante e pleonasticamente de desinências nominais [ 23 ] (port. a menina morena, os livros importantes, etc.), outras, que em geral as perderam, são obrigadas a recorrer à altura: são as línguas tonais, como o chinês e até algumas variantes populares do espanhol, as quais, pela perda geral da desinência de plural s, têm de recorrer à altura ou tom para distinguir las puertas de la puerta.

    ù E veja-se o curioso de certo modo de falar do interior brasileiro: nele, em vez de dizer-se Que animais bem cuidados! ou Oi, minhas filhas, indica-se já de início o plural geral: Ques animal bem cuidado! e Ois, minha filha.

    2.3.2.b. Por outro lado, enquanto nas línguas latinas há para os verbos desinências modo-temporais e número-pessoais (eu estudava, tu estudavas, ele estudava, nós estudávamos, vós estudáveis, eles estudavam), não assim em numerosíssimas línguas.

    ù E dá-se até o caso, no inglês moderno, de o mesmo s que serve de desinência nominal de plural servir também de desinência verbal de terceira pessoa do singular do presente, enquanto as demais pessoas, incluídas as do plural, perderam a sua (exemplo: I sing, you sing, he sings; we sing, you sing, they sing).

    2.3.2.c. Ademais, enquanto algumas línguas indicam a função sintática das palavras mediante terminações casuais – são as línguas declináveis, como o grego clássico, o latim, o alemão, etc. –, outras – como a maioria das neolatinas e o inglês – o fazem grandemente por meio da ordem frasal.

    2.3.2.d. Aos lusófonos nada nos parece mais natural que a concordância do verbo com o sujeito (e, como veremos no devido lugar, devem limitar-se hoje os casos admissíveis de silepse). Em grego, não obstante, era não só permitido mas usual fazer concordar o singular das formas verbais com o plural dos nomes neutros.

    2.3.2.e. E não nos deixa de surpreender a seguinte palavra do nootka, língua indígena aglutinante da ilha de Vancouver: inikw-ihl-’minih-’is-it-’i, isto é, ‘os antigos lumezinhos em casa’ ou ‘os lumezinhos que antes ardiam em casa’. [ 24 ] Ou esta do fox, língua algonquina do vale do Mississippi: eh-kiwi-n-a-m-oht-ati-wa-ch (i), isto é, ‘então eles todos fizeram(-no) fugir deles’. [ 25 ]

    2.4. E, com efeito, línguas há que têm artigos, enquanto outras não os têm; umas há que têm advérbios, enquanto outras expressam o mesmo que os advérbios mediante partes morfológicas prefixadas ao verbo; umas há que dependem sintaticamente de conectivos (preposições e conjunções), enquanto outras, em geral declináveis, os dispensam ao menos parcialmente. Mas nada disso implica dizer que as línguas não são essencialmente o mesmo. São-no

    porque todas são obras da Linguagem, ou seja, todas são igualmente fala ordenada artisticamente a seu fim significativo-comunicativo;

    porque todas hão de contar não só com palavras, mas com orações perfeitas, que se compõem forçosamente de duas partes: sujeito e predicado; [ 26 ]

    e porque todas hão de expressar de alguma maneira, como vimos, os dez gêneros máximos do ente.

    _------__1245 III _------__%$@!

    DEFINIÇÃO DE LÍNGUA

    3.1. Já temos condições a esta altura de dar a definição de língua. Mas, em decorrência, também é este o lugar de investigar o que faz que o falado nos diversos países lusófonos se digam a mesma língua, ou se o são apenas em certo sentido; e se o que se fala no nordeste do Brasil e o que se fala no sul deste são pura e simplesmente a mesma língua, ou dialetos seus. E façam-se as mesmas perguntas a respeito do inglês, do russo, do espanhol, do francês... É questão em torno da qual muito já se escreveu e se debateu, e à qual, a nosso ver, só rara vez se respondeu satisfatoriamente.

    3.2. Língua é, propriamente, como obra da Linguagem, um todo composto de determinados fonemas e de determinadas palavras que se combinam segundo certas regras para significar nossas concepções mentais e comunicá-las aos demais, o que implica compreensibilidade geral. É pois acidental que a Linguagem não tenha podido manter a unidade de sua obra, e é ainda de algum modo acidental que as línguas sigam variando. Não há impedimento essencial de que houvesse uma só e mesma língua.

    ù Observação. Disse-se acima que a língua é um todo. Mas há diversas espécies de todos; e, quanto ao que nos interessa aqui, note-se que num todo substancial (como o é, por exemplo, qualquer animal) as partes (órgãos, membros, etc.) não têm nenhuma operação independente do mesmo todo, porque o todo substancial é absolutamente algo uno. Mas num todo como o universo – que é um todo de ordem e de harmonia, e que não constitui algo pura e simplesmente uno – as partes têm, sim, operações próprias, ainda que ordenadas entre si: posso agora mesmo continuar a digitar ou deixar de digitar este texto independentemente do movimento dos astros, ainda que sem este movimento não pudesse haver vida em nosso planeta. Pois bem, a língua compara-se antes ao universo que ao animal, isto é, antes a um todo de ordem e de harmonia que a um todo substancial. Com uma grande diferença, porém: o universo é um todo natural, enquanto a língua é um todo artificial, como dito já e como se repetirá ao longo de toda esta Suma.

    3.3. Mas, levando em conta a mesma definição acima, podemos dizer que o falado no Brasil pelas classes com certo grau de escolaridade e pelas influídas por estas é a mesma língua, e que a pequena diversidade fonética, vocabular e sintática que se dá pelo país afora, entre essas classes, constitui falares.

    ù Observação. Naturalmente, também o falado no Brasil e o falado em Portugal por essas classes são a mesma língua, e a diversidade fonética, vocabular e sintática entre eles também constitui falares – ainda que, quanto ao fonético, a diferença já não seja tão pequena: por exemplo, algum escolho inicial oferece aos brasileiros o alto grau de consonantização ou redução vocálica do português lusitano. [ 27 ]

    3.4. Tratar-se-á pura e simplesmente de línguas diversas se implicarem incompreensibilidade mútua. Podem todavia dar-se línguas que não o sejam pura e simplesmente, mas só segundo algo ou enquanto algo.

    3.4.1. Se se dá incompreensibilidade na fala em algum grau em razão de mudanças fonéticas mais acentuadas, mas a língua escrita permanece substancialmente a mesma – o que sucede, por exemplo, entre certas zonas lusófonas –, então há de dizer-se que só segundo a escrita se trata propriamente da mesma língua, língua de que tais falas distintas e em algum grau mutuamente incompreensíveis podem ter-se como dialetos.

    3.4.2. No interior de umas mesmas fronteiras pode haver não só diversidade de falas em algum grau mutuamente incompreensíveis, mas também uma espécie de língua franca, que alguns ou todos falam e todos entendem e talvez escrevam. Em situações assim, tais falas são comumente considerados dialetos com respeito à língua franca, que não se diz língua senão precisamente enquanto é franca.

    3.4.3. Pode dar-se, ainda, e dá-se de fato, que falantes de línguas em algum grau mutuamente incompreensíveis as considerem ou dialetos de uma mesma língua, ou até absolutamente a mesma língua – e isso sem língua franca nem escrita que as unifiquem, mas por quaisquer razões raciais, históricas, políticas, etc. Neste caso, portanto, tratar-se-á de dialetos ou de língua tão somente segundo alguma(s) de tais razões.

    3.4.4. O caso mais complexo é o das chamadas várias etapas de uma mesma língua. Com efeito, se se considera o português medieval, ver-se-á que não só sua escrita não é para nós, falantes atuais do português, muito mais compreensível que a do espanhol de hoje, mas também sua fala, provável ou presumivelmente, não nos seria muito mais compreensível que a do espanhol contemporâneo. E não poderia ser de outro modo, se, além de conter palavras que não contém o português atual, mas sim o espanhol contemporâneo, [ 28 ] continha outros vocábulos, outras desinências e outros torneios sintáticos também de todo desaparecidos do português de hoje, neste às vezes substituídos por outros mais razoavelmente semelhantes a seus correlatos atuais do espanhol. [ 29 ] Em verdade, fases linguísticas tão diversas não podem considerar-se propriamente a e da mesma língua senão segundo algum sentimento de continuidade da parte dos falantes atuais, sentimento devido a razões históricas.

    ù Observação 1. Como vimos mais acima, alguma compreensibilidade mútua se dá entre línguas diversas, às vezes até entre línguas de ramos diferentes. Mas para passar dessa compreensibilidade limitada a uma compreensibilidade constante é necessário que se dê uma atividade tradutória igualmente constante, o que caracteriza o bilinguismo, tão comum em áreas fronteiriças. E do bilinguismo não raro se constituem línguas híbridas e instáveis, sem sequer regras implícitas de todo dignas deste nome: são os pidgins, os crioulos, etc., de que são exemplo o macaísta, o portunhol da fronteira uruguaio-brasileira e o spanglish (dos hispano-americanos que vivem nos Estados Unidos).

    ù Observação 2. Na definição de língua, dissemos que seus fonemas e suas palavras se combinam segundo certas regras. Trata-se das regras implícitas da Linguagem; qualquer língua, ainda a somente falada, ou se normatiza por regras, ou não seria língua propriamente dita. Seria aquele fluxo permanente de que falámos no Prólogo. Mas, como também dito ali, tais regras implícitas não são capazes de evitar por muito tempo a desordem e corrupção da língua: estão aí para prová-lo todos os casos de línguas tribais ou de sociedades algo mais avançadas mas sem escrita. Como já mostrámos também no mesmo lugar, podem dar-se casos como o do Brasil, em que um rudimento de escrita, propiciado por um rudimento de Gramática escolar e como que sustentado pela difusão dos media modernos, assegura a permanência de uma fala compreensível por numerosas parcelas da população. Ainda porém que tal se dê por longo espaço de tempo, não se dará senão à custa do que verdadeiramente importa – o que nos remete aos últimos pontos desta Primeira Parte. Antes, porém, ainda temos alguns passos que dar.

    _------__1245 IV _------__%$@!

    A ESCRITA

    4.1. O homem não é como os animais, a que bastam o conhecimento sensitivo e uma intercomunicação por gestos e por sons, tudo isso com que atendem ao aqui e agora. Por sua mesma natureza intelectual e social, ele abstrai-se do aqui e agora e preocupa-se também com o distante e com o futuro. Pois foi precisamente para transmitir seus pensamentos, seus códigos, suas doutrinas e seus poemas aos que estavam afastados no espaço e aos que haviam de vir no futuro – para o que, como é óbvio, não lhe bastava a fala – que ele inventou e desenvolveu a escrita. E, ainda por razões evidentes, foi graças à escrita que pôde o homem constituir-se em civilização propriamente dita.

    4.2. Há mais, porém. A própria fala, para além de seu fim significativo e comunicativo, tem já uma segunda finalidade: como todo e qualquer homem, por uma série de motivos complexos, tem dificuldade para permanecer em contemplação intelectual sem se deixar distrair pela multidão de apelos sensíveis, a palavra vocal serve de apoio ou sustentação material para o pensamento. Para precisar uma ideia ou uma proposição, para dar-lhes mais rigor, é conveniente dizê-las, expressá-las oralmente. Mas tampouco isto é o bastante, porque também a palavra vocal tem muito de fugaz, e por isso, para que alguém fixe para si mesmo uma ideia ou uma proposição e para que siga um raciocínio sem solução de continuidade, convém escrevê-los. A escrita, com efeito, é como que a memória da língua, e faz que ela se beneficie grandemente de fixidez e de economia de esforços, além de permitir-lhe os mais finos aprimoramentos.

    4.3. Para valer-se da fala, a razão conta com um conjunto de órgãos ou instrumentos corpóreos potencialmente dispostos para ela; mas não assim ou não totalmente assim com respeito à escrita. Para esta, não basta a mão; é preciso dar-lhe uma extensão, um instrumento: cunha, cálamo, pena, lápis, caneta, máquina de escrever, teclado de computador; e um suporte em que possa inscrever-se: tabuinha de argila, mármore, papiro, pergaminho, papel, computador.

    4.4. Por tudo isso é que a escrita requer uma arte especial: a Gramática.

    _------__1245 V _------__%$@!

    SE A ARTE DA GRAMÁTICA O É SÓ DA ESCRITA OU TAMBÉM PODE VIR A SÊ-LO DA FALA

    5.1. Como a Linguagem é uma arte – a arte diretiva da fala –, forçosamente há de ter regras, assim como a arte da Arquitetura tem suas regras, e assim como a da Equitação tem as suas.

    5.2. Ora, como o próprio da arte da Linguagem é compor palavras e orações e combiná-las sintaticamente, suas regras ordenam-se a tal composição e a tal combinação. Mas, como vimos, a Linguagem não pôde nem pode impedir a deriva e corrupção de sua obra, razão por que esta se multiplica numa diversidade de línguas. Se porém assim é, das línguas singulares também se pode dizer que contêm já por si tais regras: tem-nas a Linguagem como causa, e as línguas como efeito. E, tanto para a Linguagem como para a língua ou línguas, podemos com propriedade, como vimos fazendo desde o início, chamar implícitas a essas regras, porque de fato, ao menos até à altura da história que nos é dado ver retrospectivamente, nem os fazedores nem os usuários das línguas ágrafas as trataram nunca de modo expresso.

    5.3. Já vimos, ademais, não só que as línguas tendem à desordem e corrupção, mas também que em sua mera oralidade são insuficientes tanto para a comunicação com os que estão distantes ou com os que hão de nascer como até para suporte ou apoio das operações mentais. E vimos que, em razão de tal tendência e de tal insuficiência, a escrita não é uma simples opção que se oferece ao homem, mas efetiva necessidade sua.

    5.4. Pois bem, se assim são as línguas, é porque suas regras implícitas não são capazes de evitar-lhes a desordem e corrupção nem de propiciar-lhes suficiência para suportar materialmente as concepções intelectuais. E, se é a escrita a que supre aquilo de que carece a fala, é porque conta com um conjunto eficiente de regras próprias, as quais, por isso mesmo, se constituem em uma e por uma arte especial: a Gramática. [ 30 ]

    5.5. Mas, se se pergunta se a Gramática também normatiza completamente e/ou diretamente a fala, há que responder que não, e por vários motivos.

    5.5.1. O primeiro é que, enquanto signo de signo – enquanto signo da fala, posições próprias e distintas das daquela:

    a. é, por assim dizer e pelos motivos já vistos, duplamente artificial;

    b. tem a fixidez que lhe permite seu suporte material;

    c. permite muito maior distanciamento e reflexão crítica: não é automática, ou melhor, quase automática como a fala;

    d. não pode valer-se, ao contrário da fala, de gestos corporais e de expressões faciais, o que, obviamente, lhe dá muito maior precisão na expressão do conceptual.

    5.5.2. O segundo é que, ante a complexa mescla de causas da deriva das línguas – entre as quais se contam, certamente, tanto a distância no espaço e no tempo como a diversidade de classes segundo o grau de instrução –, a escrita não é capaz de evitá-la de todo, conquanto exista, sim, também para remediá-la. Só pode fazê-lo, todavia, em terreno próprio.

    5.6. Ademais, aquele que escreve é o mesmo que fala – e que lê. Ora, se a escrita conta com uma arte especial que não só a ordena e ensina suficientemente, mas, em decorrência disso, também permite que se leia bem; e, se a escrita e sua arte visam justamente a prover a suficiência e a fixidez que não tem a fala, temos então uma consequência clara: aquele que lê constantemente os melhores autores e os lê bem, e que escreve regularmente e o faz bem, esse tenderá a falar bem, porque tenderá a falar como escreve.

    5.7. Dissemos tenderá e dissemo-lo corretamente, porque, com efeito, nunca a fala perderá seu quase automatismo, sua possibilidade de combinar-se com expressões ou gestos, etc. Pode e deve a Gramática, sim, ensinar minimamente os homens a melhor expressar-se na fala, a evitar certas derivas ortoépicas ou prosódicas (vê-lo-emos em seu devido momento). Mas não tem força própria para fazer frente à tendência da fala à desordem senão, como vimos, de modo reflexo. Insista-se: ler constantemente os bons autores e escrever constante e gramaticalmente pode permitir, e não raro permite, que em algum grau – às vezes altíssimo – se fale como se escreve, se fale pois gramaticalmente, se fale bem, enfim. Mas pela própria natureza das coisas jamais haverá idêntico grau de perfeição na fala e na escrita.

    ù Maior perfeição formal na fala não se dá senão quando é normatizada por outra arte especial: a

    Oratória

    , que porém se ordena à

    Retórica

    .

    ù Por outro lado, como decorre de todo o já visto, a escrita tem muito menos poder de expressar o emocional. Mas num adulto a linguagem emocional deve estar devidamente fundida, sob as palavras, na linguagem conceptual. Se assim é, do uso – não só escrito, também oral – da linguagem emocional com finalidade superior há de ocupar-se, particularmente, outra arte: a arte especial da

    Poética

    .

    5.8. Ademais, se se tem uma visão realista das coisas, não se há de imaginar uma sociedade em que não haja diversas classes – e o dizemos no preciso sentido de diversidade de educação, de cultura, de cultivo. Pois bem, numa sociedade que tenha uma classe efetivamente culta e, portanto, sabedora da Gramática, boa leitora e bem-falante, esta naturalmente influirá sobre o conjunto das demais classes, e o efeito será como o da historieta de Napoleão Mendes de Almeida reproduzida em nosso Prólogo.

    _------__1245 VI _------__%$@!

    O SUJEITO DA GRAMÁTICA E A DEFINIÇÃO DESTA

    6.1. Toda e qualquer arte, como toda e qualquer ciência, se especifica por seu sujeito, ou seja, por aquilo que a arte, como a ciência, trata própria e formalmente. Diz-se sujeito porque, como se dá numa oração linguística, é dele que se predicam todas as demais coisas que a arte ou a ciência consideram, a saber, suas partes, suas propriedades, suas causas e seus efeitos. Pois bem, o sujeito da Gramática são as formas linguísticas e suas relações sintáticas em toda a formalidade com que se dão na escrita, ou seja, em seu padrão ou norma culta. [ 31 ]

    6.2. Mas, diferentemente agora da ciência, toda e qualquer arte se define também por seu fim e pela matéria que ela ordena a tal fim; e o fim da Gramática não pode ser senão, como dito já, a comunicação com outros homens distantes no espaço e no tempo, enquanto por sua matéria pode tomar-se o ato mesmo da escrita.

    6.3. Pois bem, a Gramática é a arte diretiva da escrita segundo regras morfossintáticas cultas, para que o homem possa transmitir suas concepções e argumentações com ordem, com facilidade e sem erro a outros homens distantes no espaço ou no tempo.

    ù Como toda e qualquer arte, a Gramática necessita de um corpo teórico que fundamente suas mesmas normas e regras, e, enquanto o possui e desenvolve – como vimos fazendo exclusivamente até aqui e como não deixaremos de fazê-lo de algum modo ao longo de toda esta obra –, tem sua parte de

    ciência

    .

    ù Ademais, assim como a Música recebe princípios e luzes de uma ciência superior (a Matemática, ou a Acústica), a Gramática recebe princípios e luzes da

    Lógica

    , a arte diretiva do próprio ato da razão segundo as regras da universalidade, para que o homem alcance a ciência com ordem, com facilidade e sem erro. [ 32 ] É graças à Lógica que a Gramática pode entender mais perfeitamente coisas que ela, de si, não pode senão captar algo confusamente: a oração é uma dessas coisas; também sua divisão essencial em sujeito e em predicado; ainda o caráter do significado com respeito à palavra e à própria oração; o caráter mesmo da escrita, como agora o vemos; et reliqua. [ 33 ]

    ù Por outro lado, a Gramática também participa dos princípios comuns a todas as ciências – os primeiros princípios da razão especulativa –, os quais são os princípios próprios da Metafísica porque esta é justamente a ciência que trata do mais universal: o ente em si.

    ù Mas, assim como a Música tem, ademais, de si, princípios próprios, sem o que nem sequer seria disciplina à parte, assim também a Gramática tem, de si, princípios próprios, como o são o de correção ou o de erro morfossintáticos.

    6.3.1. Pois bem, para que a Gramática permita ao homem alcançar sem erro o fim da escrita, é preciso antes ter definido o que é o erro em língua e, mais formalmente, na escrita. É o mais árduo de nossa arte. Quando um gramático começa seu ofício, depara já com dado estado da língua. Esta tem uma história e seus escritores; é partilhada de algum modo por classes distintas, mais ou menos afastadas entre si em termos de instrução e de leitura, e por povos ou por nações mais ou menos distantes entre si no espaço e de convivência mútua mais ou menos estreita. Ora, tudo isso implica falares diversos não só foneticamente, ortoepicamente e prosodicamente – o que, como vimos, pode implicar algum grau de incompreensibilidade recíproca – mas também flexionalmente e sintaticamente.

    ù Quanto à

    diversidade fonética

    , atenhamo-nos, para exemplos, a alguns poucos fatos que se dão agora mesmo dentro das fronteiras brasileiras.

    o O rr em fim de sílaba diz-se no Sul como alveolar, no Rio de Janeiro como velar ou como uvular, e em grande parte do interior do Brasil como retroflexo.

    o A consoante t antes de i pronuncia-se na maioria de nosso país de modo palatalizado (t’ ou tch: /t’ia/ ou /tchia/), mas em outras largas áreas como mesmo (/tia/). [ 34 ]

    o Quanto ao l em final de sílaba, temos a maneira do Sul, em que é dito integramente, e a maneira da maioria do país, em que é dito velar e relaxadamente, com o imenso inconveniente de igualar-se à semivogal u e fazer, assim, que se anule foneticamente a distinção entre mal e mau, alto e auto.

    ù Quanto à

    diversidade ortoépica

    , mantenhamo-nos no interior das mesmas fronteiras.

    o A imensa maioria dos brasileiros diz fecha [é], apesar de a norma culta determinar que se diga fecha [ê].

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