Rev UFRJ 2011 Janjul
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Tiago Ribeiro2
Igor Helal3
Introdução
Por que começar um texto sobre alfabetização com uma epígrafe que versa sobre memória e
crença em possíveis? Talvez, a razão para abrirmos este texto com essa epígrafe – e não
qualquer outra, entre tantas possíveis – seja o fato de que ela nos aponta a esperança sempre
reavivada de mudança, a espera vigilante por novas formas de ser e estar no mundo, de viver e
(re)fazer a alfabetização cotidianamente, de forma outra à qual estamos habituados – por isso,
ação praticada, na qual cabe essa “espera”, que não é passividade.
1
Professora da Escola de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação/UniRio. Coordenadora do
Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores (GPPF/UniRio) e da Rede de Formação
Docente Compartilhada (Rede Formad). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa: Alfabetização dos alunos e alunas
das classes populares (Grupalfa/UFF), coordenado pela Profª Drª Regina Leite Garcia. Contato:
[email protected]
2
Bolsista IC-UNIRIO. Integrante do Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores
(GPPF/UniRio) e da Rede de Formação Docente Compartilhada (Rede Formad). Contato: [email protected]
3
Bolsista IC-UNIRIO. Integrante do Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores
(GPPF/UniRio) e da Rede de Formação Docente Compartilhada (Rede Formad). Contato:
[email protected]
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processo...
Há algum tempo Ana Paula, professora alfabetizadora com a qual temos aprendidoensinado,
vem se desafiando a alfabetizar com experiências vivenciadas pelo grupo – crianças e
professora – na escola e/ou fora da escola. Na sala de aula, no lugar de crianças que copiam e
repetem a palavra-chave (ou o fonema) lançada(o) pela professora, crianças que conversam,
discutem, perguntam, observam, pesquisam, desenham, escrevem e leem histórias, jornais,
revistas... Não foi por acaso que um dia, subindo pela rampa de acesso à sala, Ana Paula
avistou uma libélula morta e, movimentada pelo sentimento de que o ensino do futuro não
estará lastreado nas respostas, mas nas perguntas (GERALDI, 2010, pp.95-96), chamou a
turma, interrogando-a sobre o animal ali encontrado. Como resposta, obteve a excitação e a
afobação das crianças, ávidas por respostas...
1
Em nosso grupo de pesquisa, Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores
(GPPF/UniRio), optamos pela escrita diferenciada de algumas palavras, alicerçados em Regina Leite Garcia e
Nilda Alves, para quem o princípio da juntabilidade concede sentido e significado diferentes dos usuais, quando
de sua separação: saberfazer, espaçotempo, aprenderensinar etc. Essa postura dialoga com um movimento que
vem ganhando força no campo das pesquisas com os cotidianos, onde a justaposição de termos
hegemonicamente separados é pensada como uma possibilidade de cindir com a dicotomização tão cara à ciência
moderna: bom/ruim, ordem/caos, saber/não-saber etc.
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A partir das conversas, nas rodas de conversas3 realizadas diariamente nessa sala de aula, os
textos produzidos pelas crianças, desde o início do ano, foram surgindo, desafiando a
1
Citamos, nesse sentido, algumas perguntas das crianças, como: por que o piolho bota a gente para coçar a
cabeça? Por que a dengue mata? Por que o besouro se finge de morto? Como os insetos nascem?, entre tantas
outras que poderíamos elencar...
2
É importante ressaltar que, por conta de um combinado da própria turma, os insetos levados para a sala de aula
teriam de ser encontrados mortos. Não valeria, então, matar o animal para levar, decisão tomada em roda, após
negociações entre diferentes pontos de vista das crianças.
3
Para algumas professoras dessa escola, como Ana Paula, falar e conversar são tão importantes quando escrever
e ler. Defendemos que a linguagem escrita não pode ser a única linguagem valorizada e legitimada no processo
alfabetizador, como tantas vezes acontece. A escrita não pode abafar e apagar a oralidade.
91
de Professores – GPPF/UniRio).
A criança leu:
I A AO (PINTAS)
6 AA (6 PATAS)
JOANINHA DE NOVE PINTAS E O
PERCEVEJO (copiou do quadro)
Fonte: idem.
92
Mariana leu:
Joaninha de nove pintas e o percevejo
Fonte: idem.
JOANINHA DE 9 PINTAS E
6 PATAS
2 OLHOS AMARELOS
1 CABEÇA PRETA
E O ARCO-ÍRIS
E UM SOL
E 2 ANTENAS
UM CHEIRO HORRÍVEL A
JOANINHA
QUANDO O PASSARINHO
QUER COMER A JOANINHA
A JOANINHA
ELE
COSPE NA HORA
PORQUE TEM UM GOSTO
HORRÍVEL
Fonte: idem.
Cada uma, a seu modo, registra as descobertas. Textos que podem ser lidos misturam-se a
textos em que não conseguimos saber o que está escrito, sem que a criança leia, para nós, o
que escreveu.1
1
Por alguns anos, nessa escola, no processo compartilhado de pensar e praticar uma alfabetização que rompesse
com uma perspectiva mecanicista de produção do conhecimento, perguntávamos às crianças: o que você quis
escrever? Demoramos a perceber que, na pergunta, nossa concepção de escrita estava explícita: uma escrita
distante da escrita convencional, para nós, não era escrita. Aprendemos com Emília Ferreiro a compreendermos
as primeiras escritas infantis como amostras reais de escrita e não como puros “rabiscos” (1993, p. 62), o que
faz toda diferença para o processo de aprendizagem infantil.
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No entanto, podemos ter como referência uma outra concepção de alfabetização, de produção
de conhecimento, que exige, portanto, uma outra concepção do processo de
ensinoaprendizagem. Processo compreendido como um sistema vivo que pressupõe um
diálogo dos aprendizes com o seu futuro e não um diálogo com o passado para se apropriar
da herança cultural de uma sociedade (GERALDI & FICHTNER & BENITES, 2006). Logo,
o que já sabem as crianças, mas, sobretudo, o que ainda não sabem, precisa ser o foco da
atenção docente, não como registro da incapacidade, como nos fala Esteban (2003, p.89),
mas como lócus potencial de ampliação, individual e coletiva, do conhecimento, dando
visibilidade ao processo permanente de construção/desconstrução/reconstrução dos
conhecimentos de todos os que participam da relação pedagógica.
Nesse sentido, desde a primeira semana de aula, as crianças, todas, sem distinção, precisam
ser convidadas, instigadas e provocadas a escrever e a ler. Ana Paula sabe que só se aprende a
ler, lendo. Só se aprende a escrever, escrevendo. Motivo pelo qual cria e potencializa
situações para que as crianças levantem hipóteses sobre a escrita, sobre a leitura; situações em
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Em seu relatório, Gabriel demonstra conhecimentos que já possui acerca da escrita; não
expressa, entretanto, a ilusão de saber tudo. Ao que parece, ele percebeu uma das funções da
leitura: a aprendizagem; da mesma forma, compreendeu, também, o porquê de estudar:
aprender mais. Assim, no movimento de aprenderensinar, Gabriel parece se posicionar em
um lugar de passagem, de movimento, onde aprender é aprender com sentido, construir
conhecimentos que, de alguma forma, tenham ligação ao vivido, ao experienciado, ao
acontecimento, como na pesquisa sobre insetos.
O relatório de Gabriel é do segundo trimestre de 2009, seu primeiro ano na escola. Podemos
ver, em sua escrita, palavras consideradas como “difíceis” a partir de uma concepção
mecanicista de alfabetização. No mínimo, cabe indagar: “difícil” para quem? Quem define o
grau de “dificuldade”? A criança? Ou o adulto que pensa o “método de alfabetização”,
elegendo, portanto, as palavras-chaves, letras e/ou sílabas que devem ser
apresentadas/dadas/ensinadas pela professora e aprendidas pelas crianças, em uma
determinada sequência?
O que e como escreveu Gabriel e seus colegas no texto sobre a joaninha indicia-nos que, ao
invés de se voltar às atividades de treino, memorização, repetição e “apreensão” de parcelas
da língua (sílabas) para a posterior elaboração de palavras e frases, a partir dos conhecimentos
“adquiridos” pelas crianças, a concepção de alfabetização vividapraticada na sala de aula traz
o desafio de articular a leitura da palavra à leitura do mundo, ampliando-a, como defendia
Paulo Freire (2008). Sabemos que as crianças encontram soluções criativas para escrever o
que pensam, o que desejam, o que as mobiliza. Portanto, desde esse ponto de vista,
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Diante disso, uma prática pedagógica pautada na concepção discursiva de alfabetização vai ao
encontro da ideia de aula como acontecimento, defendida por Geraldi (2010), porque a
produção e ampliação de conhecimentos e saberes é um processo móbil, vivo, multissituado.
Encarar os acontecimentos, muitas vezes, como possibilidades para o trabalho pedagógico
implica enxergar a relação pedagógica como uma construção conjunta, um processo
(inter)ativo no qual a aprendizagem é favorecida se as relações travadas cotidianamente forem
significativas para professores/as, alunos e alunas.
É necessário assumir o desafio de tomar o fracasso pelo avesso, desenvolvendo um olhar que
traduza uma compreensão mais atenta aos diferentes modos de aprender das crianças
(SAMPAIO, 2003, p. 27). Aprenderensinar a ler e a escrever como um processo no qual a
escrita só tem sentido no movimento de articulação entre texto e contexto, usando e
praticando a linguagem escrita em situações cotidianas, como a que ocorreu em outubro de
2010, quando a turma estava já no 2º ano de escolaridade do ensino fundamental.
A professora Ana Paula havia ido à secretaria da escola e Tiago Ribeiro, bolsista que
acompanhava a turma semanalmente, ficou com as crianças, dando continuação à atividade
iniciada – reescrita de frases para compor a peça que seria apresentada pelas crianças para
outras turmas da escola.1 Em um determinado momento, uma das crianças disse uma frase
que pertenceria à cigarra, na peça, e Tiago escreveu no quadro:
- Você é má!
1
A peça, encenada pelas crianças e por elas escrita com a ajuda de Leonardo Moreira, estudante de Pedagogia da
UniRio, também foi apresentada no XXV Fórum de Alfabetização, Leitura e Escrita (FALE/ UNIRIO), encontro
de reflexão e problematização sobre práticas pedagógicas cotidianas onde professores/as e da escola básica e da
universidade dialogam e (com)partilham com os presentes seus saberes, conhecimentos e práticas. No dia 27 de
novembro de 2010, no FALE, a turma, junto com a professora, narrou a experiência de aprender a ler e escrever
estudando sobre insetos.
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Após a fala do menino, intervim.1 Porque ele ainda continuava inabalável, tentei explicar que
existem diferentes formas de dizer sobre uma mesma coisa e, assim como podemos dizer de
diferentes maneiras, também podemos escrever. Ainda, acrescentei que há situações em que é
preferível dizer de um jeito de que de outro, da mesma maneira como há contextos em que
uma forma de escrever é mais aconselhável do que outra. Então ele perguntou:
- De jeito nenhum. – respondi. Você escreve “vc” no Orkut e todo mundo entende. Isso é bom
porque, quando estamos na internet, lemos muitas mensagens e enviamos muitas também;
essa é uma forma econômica de escrever e é por isso que é legal no Orkut e no MSN. Mas
quando estamos escrevendo um livro, por exemplo, será que é o jeito mais legal de escrever?
Então eu completei:
- No seu caderno, você pode deixar do jeito que achar melhor, porque é seu, mas na hora de
escrever a peça, é melhor a gente colocar do outro jeito menos econômico, porque é um texto
que pode ser lido por muitas pessoas e, às vezes, nem todo mundo conhece o que significa
“vc”. Quando a gente escreve um texto para circular ou para outra pessoa ler, então a gente
tem de tentar escrever do jeito mais comum, do jeito que todo mundo escreve, porque esse
jeito todo mundo conhece.
- É Pedro Felipe, “vc” minha vó não sabe o que é! Nem meu pai!
Essa breve experiência nos coloca diretamente em diálogo com Bagno (2001; 2009). Se
pensarmos na dimensão da comunicabilidade e da eficácia comunicativa, nos damos conta de
que não se trata de erro ou acerto, porém, de formas diferentes de escrita, mais ou menos
apropriadas para o contexto de produção.
1
Usamos, neste momento, a 1ª pessoa do singular porque a experiência relatada foi vivida por um dos autores do
texto.
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Nos cotidianos das escolas, professores e professoras, como a professora que compartilha
conosco esta pesquisa, subvertem modos hegemônicos de alfabetizar implementados, muitas
vezes, por políticas públicas que desconsideram os docentes como sujeitos criativos, autores
de suas próprias práticas, comprometidos com uma educação mais crítica. As práticas,
múltiplas e variadas, acontecem em um cotidiano que não pode ser outra coisa senão
complexo, heterogêneo, multissituado. Lugar de caça (CERTEAU, 2007), de transgressão, de
desobediência.
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(...) a atividade mental da criança (...) não apenas como atividade cognitiva,
no sentido da estruturação piagetiana, mas como atividade discursiva, que
implica a elaboração conceitual pela palavra. Assim ganham força as
funções interativa, instauradora e constituidora do conhecimento na/pela
escrita. Nesse sentido, a alfabetização é um processo discursivo: a criança
aprende a ouvir, a entender o outro pela leitura; aprende a falar, a dizer o
que quer pela escrita. (Mas esse aprender significa fazer, usar praticar,
conhecer. Enquanto escreve, a criança aprende a escrever e aprende sobre
a escrita). Isso traz para as implicações pedagógicas os seus aspectos
sociais e políticos. Pedagogicamente, as perguntas que se colocam, então,
são: as crianças podem falar o que pensam na escola? Podem escrever o
que falam? Podem escrever como falam? Quando? Por quê? (SMOLKA,
2008, p. 63).
Essa perspectiva teórica traz consigo outra maneira de compreender a criança – não como
alguém a quem falta algo, um vir-a-ser, porém como um sujeito de conhecimento. Essa
postura abre possibilidades para tornarmos a escola um lugar de relações menos assimétricas
e, da mesma forma, assumir o desafio de fazer aquilo que Paulo Freire (1996), há muito, tem
insistido: legitimar os saberes dos alunos e alunas como saberes válidos que precisam ser
ampliados e problematizados, não os tomando como ignorância ou desconhecimento. Esse
movimento coloca para nós a empreitada de ir além do aprendido, de ousar produzir, nas
relações vividas com as crianças, modos mais horizontais e dialógicos de nos relacionarmos.
Sendo assim, uma prática alfabetizadora discursiva (SMOLKA, 2008) impinge o exercício do
diálogoconversa como meio de (com)partilhar o poder e a palavra na cotidianidade da sala de
aula.
Nesse sentido, é intencional, na turma investigada, o movimento para que as crianças opinem
sobre o vivido na (ou fora da) sala de aula, exponham seus desejos, suas expectativas, suas
avaliações. As crianças propõem atividades, falam de conteúdos que gostariam de aprender,
explicitam o que já sabem e o que ainda não sabem. Enfim, fazem, com a professora, do
currículo oficial (baseados nos Parâmetros Curriculares Nacionais, documento referência para
a escola) o currículo praticado (OLIVEIRA, 2003) . Ampliam-no; reinterpretam-no; vivem-
100
No desafio de garantir a voz das crianças e legitimar seus saberes e ainda não saberes, Ana
Paula investe na alteridade, na heterogeneidade constitutiva da sala de aula (SAMPAIO,
2008) e busca, a todo o momento, visibilizar saberes e conhecimentos das crianças com as
quais trabalha. Faz do currículo e do processo de aprendizagemensino um movimento
compartilhado, multissituado e co-implicado. Mergulhada nessa compreensão, essa professora
vem se desafiando a questionar maneiras hegemonicamente instituídas de aprenderensinar;
vem investindo no estabelecimento de relações/negociações/comunicações democráticas
(SÜSSEKIND, 2010, p.151) com as crianças, para discutir e negociar o quê, como e para quê
estudar.
Ana Paula, desde o primeiro dia de aula, propicia às crianças o alargamento de seus
referenciais de leitura e escrita; e, para isso, faz da sala de aula um espaçotempo habitado por
textos de diferentes gêneros textuais, potencializando experiências de leitura/vivência da
linguagem escrita, dentrofora do espaço escolar (daí a importância, numa perspectiva
discursiva de alfabetização, da imersão em um ambiente alfabetizador rico em materiais
escritos).
1
No segundo semestre de 2010, a escola instituiu a prova única para o 2º ano de escolaridade do ensino
fundamental; a professora, porém, não faz da prova única sua ferramenta de avaliação e mantém dinâmicas que a
turma vem vivenciando, sendo uma delas a roda de conversas, lugar privilegiado de discussão e avaliação do
experienciado pela turma.
101
Por meio do ato de ler, apropriamo-nos do mundo, de mundos. Descobrimos coisas novas,
redescobrimos antigas. Reescrevemos nossas próprias histórias na leitura, porque nela
entramos, fazemos ranhuras, preenchemos seus vazios (ainda que produzidos por nós) com
nossos significados. Lemos com todos os sentidos. Por isso, ler para as crianças, desde a fase
inicial de apropriação da escrita, precisa ser constitutivo desse processo. Desde cedo, elas têm
a possibilidade de irem atribuindo sentido à leitura, desenvolvendo prazer pelo ato de ler.
Todavia, não apenas ler para as crianças é imprescindível. Deixar que leiam, manuseiem o
livro, a revista, o gibi; enfim, que sintam e experimentem esses materiais mesmo que não
saibam ler, ainda. Cada experiência com leitura e de leitura é singular; cada sujeito leitor
produz seus sentidos e significados, trilha seus próprios percursos e escreve sua própria
história de leitor, exercita sua operação de caça (CERTEAU, 2007) – vasculha, articula,
inventa.
A professora da turma acompanhada, não por acaso, deixava disponível, em local visível e
acessível às crianças, livros e revistas para que pudessem ler após terminarem as atividades,
se assim o quisessem. Além disso, ela lia ou contava histórias frequentemente para a turma –
eram contos, poemas, notícias, adivinhas etc. Depois de algum tempo, as próprias crianças
levavam livros para que a professora lesse; livros lidos em casa, recebidos como presente,
emprestados. Levavam revistas, notícias que julgavam interessantes e imagens. As leituras
eram compartilhadas, experienciadas...
Todavia, essa não é, ainda, a “realidade” hegemônica em nossas escolas. Recordamos, ainda
hoje, a forma como aprendemos a ler e a escrever na escola: primeiro as vogais, depois os
encontros consonantais; logo em seguida, a palavra-chave ou a letra/fonema, e, como
desdobramento, a apresentação das “famílias silábicas” e a formação de novas palavras que
vão compor pequenas frases, culminando com a apresentação de pequenos “textos”. Na
verdade, os únicos “textos” que líamos eram as três ou quatro linhas em cada lição da cartilha.
Dificilmente ouvíamos histórias; apenas repetíamos as palavras, letras e sílabas que
precisavam ser memorizadas/aprendidas.
102
1
Vide https://sites.google.com/site/redeformad/home
103
Figura 7: Professora Ana Paula lendo uma história para sua turma.
Fonte: idem.
Não ser compreendida como a criança “menos avançada” quando, no início do ano, escrevia
com linhas onduladas (e por um bom tempo escreveu desse modo), contribuiu
105
Investir nos conhecimentos ainda incipientes, muitas vezes, quase invisíveis, é o que faz Ana
Paula, pois aprendeu com Vygotsky (1989) a valorar os conhecimentos ainda não existentes,
mas potencialmente presentes. Ao invés de classificar as crianças, o desafio de compreender o
que já sabem, mas, sobretudo, compreender o que ainda não sabem e, portanto, pensar em
boas alternativas pedagógicas no sentido, sempre, de ampliar os saberes existentes e
transformar ainda não saberes em saberes. Esse processo, cíclico e permanente, precisa ser o
foco da ação docente. A dimensão dialógica do processo de aprendizagemensino, da
avaliação, como destaca Esteban (2010, p.76), traz as vozes infantis para as práticas
cotidianas, coloca seus conhecimentos e seus modos de compreender os conteúdos escolares
como objetos de estudo.
Uma vez mais, no processo de pensar e praticar uma escola onde as crianças das classes
populares possam, como Mariana, dizer: (...) eu já aprendi a ler e a escrever e saber ler e
escrever é bom (...), recorremos a Paulo Freire (1982, p.93), para quem o diálogo é
imprescindível à uma educação libertadora: o diálogo é este encontro dos homens,
mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo,1 não se esgotando, portanto, na relação eu-tu .
Por não se resumir à relação eu-tu, o diálogo (entendido como conversa) pressupõe interação,
negociação e combinação. É formativo; pressupõe o compartilhamento da palavra e não seu
domínio: pertence a todos e não a um, ao/à professor/a. E essa dimensão compartilhativa da
linguagem, expressa no diálogoconversa, abre possibilidades para uma relação outra na sala
de aula, propiciando que a escola seja um espaço privilegiado de potencialização de saberes,
de legitimação de fala e pensamento, de rompimento de relações mais verticais e desiguais
1
Grifo do autor.
106
Finalizando...
107
Nesse sentido, as palavras de Garcia (2004), mais uma vez, são emblemáticas e fortalecem o
que vimos buscando nas ações de ensinopesquisa praticadas na relação dialógica, por nós
experienciada, entre universidade e escola básica:
Pensamos que esse movimento/posicionamento proporciona que a escola possa ser, para além
do que o discurso hegemônico diz, um espaçotempo de quebra da colonialidade do ser e do
saber e, dessa maneira, contribua para uma sociedade outra, nas pequenas redes cotidianas
traçadas na – e além da – escola.
Referências bibliográficas
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108
FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. 21ª ed. São Paulo; Cortez, 1993.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 49ª Ed. São Paulo: Cortez, 2008.
______. Pedagogia da autonomia - saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e
Terra, 1996.
______. Pedagogia do Oprimido. 11ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João editores, 2010.
LOPES, E. S. Por que falar das pedras? In: OLIVEIRA, I. B. (org.). Práticas cotidianas e
emancipação social: do invisível ao possível. Petrópolis: DP et Alii, 2010.
109
SANTOS, B. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In:
______. (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente. 2ª Ed. São Paulo: Cortez,
2006.
110