Rev UFRJ 2011 Janjul

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MOVIMENTOS E ITINERÂNCIAS ALFABETIZADORAS:

REFLEXÕES SOBRE A APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA

Carmen Sanches Sampaio1

Tiago Ribeiro2

Igor Helal3

Introdução

Longe de ser o relicário ou a lata de lixo do passado, a memória vive de crer


nos possíveis, e de esperá-los, vigilante, à espreita.
Michel de Certeau

Por que começar um texto sobre alfabetização com uma epígrafe que versa sobre memória e
crença em possíveis? Talvez, a razão para abrirmos este texto com essa epígrafe – e não
qualquer outra, entre tantas possíveis – seja o fato de que ela nos aponta a esperança sempre
reavivada de mudança, a espera vigilante por novas formas de ser e estar no mundo, de viver e
(re)fazer a alfabetização cotidianamente, de forma outra à qual estamos habituados – por isso,
ação praticada, na qual cabe essa “espera”, que não é passividade.

Escolhemo-la também porque a partir de memórias escrevemos este trabalho; memórias


documentadas e relatadas em escritos e fotografias, em razão de uma pesquisa realizada em
uma escola pública na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Nessa pesquisa,
acompanhamos, ao longo dos anos de 2009 e 2010, a prática de uma professora alfabetizadora
– Ana Paula – com um mesmo grupo de crianças (em 2009, turma 101; em 2010, 201).

1
Professora da Escola de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação/UniRio. Coordenadora do
Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores (GPPF/UniRio) e da Rede de Formação
Docente Compartilhada (Rede Formad). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa: Alfabetização dos alunos e alunas
das classes populares (Grupalfa/UFF), coordenado pela Profª Drª Regina Leite Garcia. Contato:
[email protected]
2
Bolsista IC-UNIRIO. Integrante do Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores
(GPPF/UniRio) e da Rede de Formação Docente Compartilhada (Rede Formad). Contato: [email protected]
3
Bolsista IC-UNIRIO. Integrante do Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores
(GPPF/UniRio) e da Rede de Formação Docente Compartilhada (Rede Formad). Contato:
[email protected]
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Portanto, é também a partir de experiências aí vividas que teceremos nossa (sempre contínua)
conversa.

Nesse desafio de (com)partilhar reflexões e discussões engendradas pela pesquisa,


pretendemos, a partir do diálogo com a prática alfabetizadora investigada, alinhavar possíveis
sentidos à alfabetização, distanciando-nos da ideia segundo a qual esta seria compreendida
(apenas) como um conjunto de técnicas com o objetivo de ensinar o código escrito ao
alfabetizando. Por isso, iniciamos a conversa com uma experiência vivida na sala de aula, no
ano de 2009. Claro, não se trata de uma experiência-receita, sobretudo porque não
acreditamos em receitas pedagógicas, porém, pode ser, sim, uma experiênciapossibilidade,1 à
medida que pode contribuir para que outros professores e professoras possam pensar sobre
sua prática cotidiana...

Aprenderensinar a ler e a escrever: curiosidade e acontecimento como constitutivos desse

processo...

Há algum tempo Ana Paula, professora alfabetizadora com a qual temos aprendidoensinado,
vem se desafiando a alfabetizar com experiências vivenciadas pelo grupo – crianças e
professora – na escola e/ou fora da escola. Na sala de aula, no lugar de crianças que copiam e
repetem a palavra-chave (ou o fonema) lançada(o) pela professora, crianças que conversam,
discutem, perguntam, observam, pesquisam, desenham, escrevem e leem histórias, jornais,
revistas... Não foi por acaso que um dia, subindo pela rampa de acesso à sala, Ana Paula
avistou uma libélula morta e, movimentada pelo sentimento de que o ensino do futuro não
estará lastreado nas respostas, mas nas perguntas (GERALDI, 2010, pp.95-96), chamou a
turma, interrogando-a sobre o animal ali encontrado. Como resposta, obteve a excitação e a
afobação das crianças, ávidas por respostas...

1
Em nosso grupo de pesquisa, Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores
(GPPF/UniRio), optamos pela escrita diferenciada de algumas palavras, alicerçados em Regina Leite Garcia e
Nilda Alves, para quem o princípio da juntabilidade concede sentido e significado diferentes dos usuais, quando
de sua separação: saberfazer, espaçotempo, aprenderensinar etc. Essa postura dialoga com um movimento que
vem ganhando força no campo das pesquisas com os cotidianos, onde a justaposição de termos
hegemonicamente separados é pensada como uma possibilidade de cindir com a dicotomização tão cara à ciência
moderna: bom/ruim, ordem/caos, saber/não-saber etc.

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Diante da animação acerca do animal, a professora incentivou as perguntas; perguntas, aliás,
que foram puxando outras perguntas e tecendo uma rede de curiosidades acerca do inseto, até
que, já na sala, durante uma roda de conversas, uma das crianças arriscou um nome: “é um
inseto voador.” E a professora não respondia nem desdizia a fala de seus alunos e alunas;
pouco a pouco, professora e crianças iam misturando aula e acontecimento, acontecimento e
aula.

Na roda de conversas sobre a libélula, diversos questionamentos foram levantados no e pelo


grupo, até chegar a um tema maior de estudo e pesquisa: insetos. Envolvidas nessa discussão,
professora e crianças demonstravam dúvidas, conhecimentos e desconhecimentos, porém,
principalmente, o desejo de conhecer mais. Nesse sentido, o desconhecimento da professora
acerca dos insetos, já no movimento de responder às questões levantadas, tanto sobre a
libélula quanto sobre outros insetos,1 colocou-lhe a necessidade de pesquisar com as crianças.
Sabemos que, em uma perspectiva dialógica de aprendizagemensino, ainda não saber
(ESTEBAN, 2001) faz parte do processo, pois aponta para possíveis vir a saber (idem). A
professora assume o lugar de (des)conhecedora, de pesquisadora, de uma dodiscente, no dizer
de Paulo Freire (1996), pois quem ensina, aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao
aprender.

Da necessidade de pesquisa, por conseguinte, nasceu um projeto coletivo cujos


questionamentos foram levantados na e pela turma, ao invés de serem impostos pela
professora. Essa elaboração conjunta talvez tenha garantido a impressão de sentido ao projeto,
pois ficava claro o porquê de pesquisar e estudar; afinal, as crianças escreviam e liam por
algum motivo, qual seja: porque queriam saber mais sobre os insetos capturados por elas
mesmas2 e trazidos para a sala de aula.

A partir das conversas, nas rodas de conversas3 realizadas diariamente nessa sala de aula, os
textos produzidos pelas crianças, desde o início do ano, foram surgindo, desafiando a

1
Citamos, nesse sentido, algumas perguntas das crianças, como: por que o piolho bota a gente para coçar a
cabeça? Por que a dengue mata? Por que o besouro se finge de morto? Como os insetos nascem?, entre tantas
outras que poderíamos elencar...
2
É importante ressaltar que, por conta de um combinado da própria turma, os insetos levados para a sala de aula
teriam de ser encontrados mortos. Não valeria, então, matar o animal para levar, decisão tomada em roda, após
negociações entre diferentes pontos de vista das crianças.
3
Para algumas professoras dessa escola, como Ana Paula, falar e conversar são tão importantes quando escrever
e ler. Defendemos que a linguagem escrita não pode ser a única linguagem valorizada e legitimada no processo
alfabetizador, como tantas vezes acontece. A escrita não pode abafar e apagar a oralidade.
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professora e pesquisadores da universidade a lidar com os diferentes conhecimentos infantis
sobre a linguagem escrita revelados em seus modos, também diferentes, de registrar o
observado, conversado, pensado e estudado. É importante destacar que nenhuma criança, no
momento da produção textual, se recusava a escrever alegando não saber. Todas escreviam
como sabiam, como podiam. Ousavam registrar as descobertas realizadas, coletivamente, pelo
grupo. No (e durante o) processo de saber mais sobre a joaninha, algumas crianças
escreveram:

Figura 1: Produção infantil (1º ano de escolaridade).

A JOANINHA TEM 9 PINTAS E


ELA TEM UM FEDOR E UM GOSTO
RUIM PARA SE DEFENDER
DO PÁSSARO QUE COME ELA.

Fonte: Arquivo de pesquisa (Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação

de Professores – GPPF/UniRio).

Figura 2: Produção infantil (1º ano de escolaridade).

A criança leu:

I A AO (PINTAS)
6 AA (6 PATAS)
JOANINHA DE NOVE PINTAS E O
PERCEVEJO (copiou do quadro)

Fonte: idem.

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Figura 3: Produção infantil (1º ano de escolaridade).

Mariana leu:
Joaninha de nove pintas e o percevejo

Fonte: idem.

Figura 4: Produção infantil (1º ano de escolaridade).

JOANINHA DE 9 PINTAS E
6 PATAS
2 OLHOS AMARELOS
1 CABEÇA PRETA
E O ARCO-ÍRIS
E UM SOL
E 2 ANTENAS
UM CHEIRO HORRÍVEL A
JOANINHA
QUANDO O PASSARINHO
QUER COMER A JOANINHA
A JOANINHA
ELE
COSPE NA HORA
PORQUE TEM UM GOSTO
HORRÍVEL

Fonte: idem.

Cada uma, a seu modo, registra as descobertas. Textos que podem ser lidos misturam-se a
textos em que não conseguimos saber o que está escrito, sem que a criança leia, para nós, o
que escreveu.1

Uma concepção linear de conhecimento, ainda dominante, nos autorizaria a comparar,


classificar e hierarquizar essas crianças e seus conhecimentos: a criança da Figura 3, que
escreve com linhas onduladas sem a presença de letras, poderia ser considerada a “menos
avançada”. Ainda em uma lógica classificatória, a Figura 2 seria a produção de uma criança

1
Por alguns anos, nessa escola, no processo compartilhado de pensar e praticar uma alfabetização que rompesse
com uma perspectiva mecanicista de produção do conhecimento, perguntávamos às crianças: o que você quis
escrever? Demoramos a perceber que, na pergunta, nossa concepção de escrita estava explícita: uma escrita
distante da escrita convencional, para nós, não era escrita. Aprendemos com Emília Ferreiro a compreendermos
as primeiras escritas infantis como amostras reais de escrita e não como puros “rabiscos” (1993, p. 62), o que
faz toda diferença para o processo de aprendizagem infantil.
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“mais avançada” do que essa, pois ainda que não seja possível ler o que escreveu, utiliza
letras. A primeira e a última produção são de duas crianças que já sabem ler e escrever, o que,
para muitos professores e professoras, justificaria o discurso de que deveriam estar em um
ano escolar mais adiantado e não no 1º ano de escolaridade, antiga classe de alfabetização.
Mas, a quem interessa essa lógica que ordena, hierarquiza e inferioriza as crianças e seus
conhecimentos? Uma lógica que destaca as diferenças usando-as como justificativa para
classificar e selecionar e, muitas vezes, excluir? Esse modo apre(e)ndido de compreender o
processo de alfabetização contribui para que as crianças ampliem seus conhecimentos sobre a
linguagem escrita? Sabemos que não.

Esse modo de compreender as crianças e seus (des)conhecimentos tem investido na


invisibilização de saberes infantis produzindo, no dizer de Boaventura de Sousa Santos
(2006), ausências e desperdício de experiências. As crianças “menos avançadas” passam a
ocupar o lugar das que “menos sabem”; das que “não acompanham a turma”; das que têm
“dificuldades”; das que “não aprendem como a maioria”; das que precisam de
acompanhamento para “superar as dificuldades”. Não é difícil imaginar as que cursam por
dois ou mais anos o mesmo ano de escolaridade; as que terminam desistindo de estudar, pois,
no percurso, vão aprendendo que não conseguem aprender...

No entanto, podemos ter como referência uma outra concepção de alfabetização, de produção
de conhecimento, que exige, portanto, uma outra concepção do processo de
ensinoaprendizagem. Processo compreendido como um sistema vivo que pressupõe um
diálogo dos aprendizes com o seu futuro e não um diálogo com o passado para se apropriar
da herança cultural de uma sociedade (GERALDI & FICHTNER & BENITES, 2006). Logo,
o que já sabem as crianças, mas, sobretudo, o que ainda não sabem, precisa ser o foco da
atenção docente, não como registro da incapacidade, como nos fala Esteban (2003, p.89),
mas como lócus potencial de ampliação, individual e coletiva, do conhecimento, dando
visibilidade ao processo permanente de construção/desconstrução/reconstrução dos
conhecimentos de todos os que participam da relação pedagógica.

Nesse sentido, desde a primeira semana de aula, as crianças, todas, sem distinção, precisam
ser convidadas, instigadas e provocadas a escrever e a ler. Ana Paula sabe que só se aprende a
ler, lendo. Só se aprende a escrever, escrevendo. Motivo pelo qual cria e potencializa
situações para que as crianças levantem hipóteses sobre a escrita, sobre a leitura; situações em
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que as crianças possam confirmar ou não suas hipóteses, nas trocas, nas interações e
interlocuções com os próprios colegas, com a professora e outros adultos, dentro e fora da
escola. Esse processo provoca experimentar, perguntar, errar, acertar, ser ajudada, ajudar.
Todos sabem e ainda não sabem; os (des)conhecimentos sobre a linguagem escrita são
legitimados, valorizados e compreendidos como parte de um processo permanente de
ampliação de conhecimentos. Processo e não produto. Como cada criança experiencia esse
processo? O que escreve? Como escreve? O que me revela sobre esse processo alfabetizador?
O que consigo perceber do processo vivido por cada uma das crianças? Indagações constantes
que precisam ser feitas pela professora no sentido de se aproximar dos modos como as
crianças estão experienciando a alfabetização.

É preciso, também, que modos mais solidários e colaborativos de aprenderensinar ganhem


visibilidade. As diferenças, antes identificadas para comparar e hierarquizar, desafiam-nos a
compreender modos singulares de pensar, atuar, agir, aprender, ensinar, ler e escrever das
crianças. Como lidar com as diferenças, constitutivas de toda sala de aula, porque
constitutivas da vida cotidiana e dos sujeitos, pensando-as com igualdade? Fugindo, como nos
convida Skliar (2007, p.108), de um processo de diferencialismo que consiste em separar, em
distinguir, dentro da diferença, algumas marcas diferentes e de fazê-lo sempre a partir de
uma conotação pejorativa, negativa, subalterna?

As produções infantis sobre a joaninha revelam, portanto, modos e conhecimentos diferentes


das crianças sobre a linguagem escrita, e não crianças “menos” e “mais avançadas”. Modos de
compreender as crianças e seus (des)conhecimentos, insistimos, que indaga a forma aprendida
e apreendida de alfabetizar, pois implica a assunção de uma responsabilidade compartilhada
(PEREZ, 2006) no processo de aprenderensinar.

A ideia de responsabilidade compartilhada transforma o(a) professor(a) em um dos sujeitos


ativos (não o único) nesse processo – porque as crianças também o são! Ao promover tal
deslocamento, essa ideia traz para a prática pedagógica uma dimensão mais participativa e
solidária, além de uma relação de cumplicidade. Assim, professora e alunos/as vivem em um
espaço menos assimétrico, espaço de (re)significação, de diálogo e, sobretudo, de construção
de conhecimentos. Não obstante, essa postura propicia às crianças a percepção da sua posição
diante do mundo, do seu inacabamento; ideia tão bem expressa no relatório de auto-avaliação
de Gabriel, uma das crianças da turma:
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Figura 5: Autoavaliação (1º ano de escolaridade).

EU APRENDI QUE EU JÁ POSSO LER


TUDO QUE EU QUISER
EU GOSTO DE LER E ESCREVER É
MUITO BOM
AJUDA A GENTE A APRENDER MAIS
EU JÁ SEI LER E ESCREVER UM POUCO
E CONTAR ATÉ 41.

Fonte: Arquivo de pesquisa (GPPF/UniRio).

Em seu relatório, Gabriel demonstra conhecimentos que já possui acerca da escrita; não
expressa, entretanto, a ilusão de saber tudo. Ao que parece, ele percebeu uma das funções da
leitura: a aprendizagem; da mesma forma, compreendeu, também, o porquê de estudar:
aprender mais. Assim, no movimento de aprenderensinar, Gabriel parece se posicionar em
um lugar de passagem, de movimento, onde aprender é aprender com sentido, construir
conhecimentos que, de alguma forma, tenham ligação ao vivido, ao experienciado, ao
acontecimento, como na pesquisa sobre insetos.

O relatório de Gabriel é do segundo trimestre de 2009, seu primeiro ano na escola. Podemos
ver, em sua escrita, palavras consideradas como “difíceis” a partir de uma concepção
mecanicista de alfabetização. No mínimo, cabe indagar: “difícil” para quem? Quem define o
grau de “dificuldade”? A criança? Ou o adulto que pensa o “método de alfabetização”,
elegendo, portanto, as palavras-chaves, letras e/ou sílabas que devem ser
apresentadas/dadas/ensinadas pela professora e aprendidas pelas crianças, em uma
determinada sequência?

O que e como escreveu Gabriel e seus colegas no texto sobre a joaninha indicia-nos que, ao
invés de se voltar às atividades de treino, memorização, repetição e “apreensão” de parcelas
da língua (sílabas) para a posterior elaboração de palavras e frases, a partir dos conhecimentos
“adquiridos” pelas crianças, a concepção de alfabetização vividapraticada na sala de aula traz
o desafio de articular a leitura da palavra à leitura do mundo, ampliando-a, como defendia
Paulo Freire (2008). Sabemos que as crianças encontram soluções criativas para escrever o
que pensam, o que desejam, o que as mobiliza. Portanto, desde esse ponto de vista,
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a alfabetização é um processo discursivo: a criança aprende a ouvir, a
entender o outro pela leitura; aprende a falar, a dizer o que quer pela
escrita. (Mas esse aprender significa fazer, usar, praticar, conhecer.
Enquanto escreve, a criança aprende a escrever e aprende sobre a escrita).
Isso traz para as implicações pedagógicas os seus aspectos sociais e
políticos. Pedagogicamente, as perguntas que se colocam, então, são: as
crianças podem falar o que pensam na escola? Podem escrever o que
falam? Podem escrever como falam? Quando? Por quê? (SMOLKA, 2008,
p. 63).

Diante disso, uma prática pedagógica pautada na concepção discursiva de alfabetização vai ao
encontro da ideia de aula como acontecimento, defendida por Geraldi (2010), porque a
produção e ampliação de conhecimentos e saberes é um processo móbil, vivo, multissituado.
Encarar os acontecimentos, muitas vezes, como possibilidades para o trabalho pedagógico
implica enxergar a relação pedagógica como uma construção conjunta, um processo
(inter)ativo no qual a aprendizagem é favorecida se as relações travadas cotidianamente forem
significativas para professores/as, alunos e alunas.

É necessário assumir o desafio de tomar o fracasso pelo avesso, desenvolvendo um olhar que
traduza uma compreensão mais atenta aos diferentes modos de aprender das crianças
(SAMPAIO, 2003, p. 27). Aprenderensinar a ler e a escrever como um processo no qual a
escrita só tem sentido no movimento de articulação entre texto e contexto, usando e
praticando a linguagem escrita em situações cotidianas, como a que ocorreu em outubro de
2010, quando a turma estava já no 2º ano de escolaridade do ensino fundamental.

A professora Ana Paula havia ido à secretaria da escola e Tiago Ribeiro, bolsista que
acompanhava a turma semanalmente, ficou com as crianças, dando continuação à atividade
iniciada – reescrita de frases para compor a peça que seria apresentada pelas crianças para
outras turmas da escola.1 Em um determinado momento, uma das crianças disse uma frase
que pertenceria à cigarra, na peça, e Tiago escreveu no quadro:

- Você é má!

Vendo a escrita, Pedro Felipe, um menino muito participativo, acrescentou:

1
A peça, encenada pelas crianças e por elas escrita com a ajuda de Leonardo Moreira, estudante de Pedagogia da
UniRio, também foi apresentada no XXV Fórum de Alfabetização, Leitura e Escrita (FALE/ UNIRIO), encontro
de reflexão e problematização sobre práticas pedagógicas cotidianas onde professores/as e da escola básica e da
universidade dialogam e (com)partilham com os presentes seus saberes, conhecimentos e práticas. No dia 27 de
novembro de 2010, no FALE, a turma, junto com a professora, narrou a experiência de aprender a ler e escrever
estudando sobre insetos.
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- Tio, nem precisava escrever “você” desse jeito. Só precisava do “v” e do “c”: vc!

O comentário causou certa discussão, mas Pedro Filipe, resoluto, reafirmou:

- Não precisava mesmo! Eu escrevo assim no Orkut e todo mundo entende!

Após a fala do menino, intervim.1 Porque ele ainda continuava inabalável, tentei explicar que
existem diferentes formas de dizer sobre uma mesma coisa e, assim como podemos dizer de
diferentes maneiras, também podemos escrever. Ainda, acrescentei que há situações em que é
preferível dizer de um jeito de que de outro, da mesma maneira como há contextos em que
uma forma de escrever é mais aconselhável do que outra. Então ele perguntou:

- Então “vc” tá errado?

- De jeito nenhum. – respondi. Você escreve “vc” no Orkut e todo mundo entende. Isso é bom
porque, quando estamos na internet, lemos muitas mensagens e enviamos muitas também;
essa é uma forma econômica de escrever e é por isso que é legal no Orkut e no MSN. Mas
quando estamos escrevendo um livro, por exemplo, será que é o jeito mais legal de escrever?

- Acho que não! – ele concordou. – Vou mudar!

Então eu completei:

- No seu caderno, você pode deixar do jeito que achar melhor, porque é seu, mas na hora de
escrever a peça, é melhor a gente colocar do outro jeito menos econômico, porque é um texto
que pode ser lido por muitas pessoas e, às vezes, nem todo mundo conhece o que significa
“vc”. Quando a gente escreve um texto para circular ou para outra pessoa ler, então a gente
tem de tentar escrever do jeito mais comum, do jeito que todo mundo escreve, porque esse
jeito todo mundo conhece.

Nessa altura, Mariana comenta:

- É Pedro Felipe, “vc” minha vó não sabe o que é! Nem meu pai!

Essa breve experiência nos coloca diretamente em diálogo com Bagno (2001; 2009). Se
pensarmos na dimensão da comunicabilidade e da eficácia comunicativa, nos damos conta de
que não se trata de erro ou acerto, porém, de formas diferentes de escrita, mais ou menos
apropriadas para o contexto de produção.

1
Usamos, neste momento, a 1ª pessoa do singular porque a experiência relatada foi vivida por um dos autores do
texto.
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Isso traz, do nosso ponto de vista, implicações e provocações para a prática alfabetizadora,
pois propõe olhar múltiplos movimentos e lógicas infantis no processo de apropriação da
linguagem escrita de outro lugar. E compete à pergunta: de que outra maneira se apropriar
desses conhecimentos acerca da língua senão por meio de seu uso cotidiano? A lógica
mecanicista, na qual a criança é ensinada a aprender linearmente sobre a língua (como se isso
fosse possível!), com base na gradação de fonemas, favorece uma alfabetização mais crítica,
participativa, autoral, sem dicotomia entre o que acontece fora e dentro da escola?

Essas questões nos convidam a afirmar que a discussão quanto ao processo de


aprendizagemensino da linguagem escrita não é uma questão técnica, mas, sim, política. Até
que ponto, como provoca Manoel de Barros (2009), o ensino “das palavras” não tem servido
para aumentar os silêncios? É fácil o movimento de diminuir esses silêncios?

Certamente, é um desafio distanciarmo-nos de práticas alfabetizadoras consideradas como


“verdades” por tantos e tantos anos. Nossa história como alunos e alunas, nosso percurso
formativo, influencia nosso fazer, sabemos disso. Aliás, durante algumas conversas com Ana
Paula, ela apontou para nós o sempre contínuo desafio que é esse movimento (de agir na
contra-hegemonia; de produzir, diariamente, uma maneira outra de alfabetizar). Todavia,
talvez ainda seja preciso perguntar: por que uma maneira outra de alfabetizar? Para quê? Tais
perguntas puxam fios para mais conversa...

Cotidianos (nossos) de cada dia: pensando o lugar da escola na formação do

leitorescritor e no processo emancipatório praticadovivido por todos(as)

Nos cotidianos das escolas, professores e professoras, como a professora que compartilha
conosco esta pesquisa, subvertem modos hegemônicos de alfabetizar implementados, muitas
vezes, por políticas públicas que desconsideram os docentes como sujeitos criativos, autores
de suas próprias práticas, comprometidos com uma educação mais crítica. As práticas,
múltiplas e variadas, acontecem em um cotidiano que não pode ser outra coisa senão
complexo, heterogêneo, multissituado. Lugar de caça (CERTEAU, 2007), de transgressão, de
desobediência.

Para nós, a importância de práticas alfabetizadoras referendadas por pressupostos teóricos,

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epistemológicos e políticos que se contrapõem a uma concepção de alfabetização mecanicista
exige levar em consideração

(...) a atividade mental da criança (...) não apenas como atividade cognitiva,
no sentido da estruturação piagetiana, mas como atividade discursiva, que
implica a elaboração conceitual pela palavra. Assim ganham força as
funções interativa, instauradora e constituidora do conhecimento na/pela
escrita. Nesse sentido, a alfabetização é um processo discursivo: a criança
aprende a ouvir, a entender o outro pela leitura; aprende a falar, a dizer o
que quer pela escrita. (Mas esse aprender significa fazer, usar praticar,
conhecer. Enquanto escreve, a criança aprende a escrever e aprende sobre
a escrita). Isso traz para as implicações pedagógicas os seus aspectos
sociais e políticos. Pedagogicamente, as perguntas que se colocam, então,
são: as crianças podem falar o que pensam na escola? Podem escrever o
que falam? Podem escrever como falam? Quando? Por quê? (SMOLKA,
2008, p. 63).

Essa perspectiva teórica traz consigo outra maneira de compreender a criança – não como
alguém a quem falta algo, um vir-a-ser, porém como um sujeito de conhecimento. Essa
postura abre possibilidades para tornarmos a escola um lugar de relações menos assimétricas
e, da mesma forma, assumir o desafio de fazer aquilo que Paulo Freire (1996), há muito, tem
insistido: legitimar os saberes dos alunos e alunas como saberes válidos que precisam ser
ampliados e problematizados, não os tomando como ignorância ou desconhecimento. Esse
movimento coloca para nós a empreitada de ir além do aprendido, de ousar produzir, nas
relações vividas com as crianças, modos mais horizontais e dialógicos de nos relacionarmos.
Sendo assim, uma prática alfabetizadora discursiva (SMOLKA, 2008) impinge o exercício do
diálogoconversa como meio de (com)partilhar o poder e a palavra na cotidianidade da sala de
aula.

Nesse sentido, é intencional, na turma investigada, o movimento para que as crianças opinem
sobre o vivido na (ou fora da) sala de aula, exponham seus desejos, suas expectativas, suas
avaliações. As crianças propõem atividades, falam de conteúdos que gostariam de aprender,
explicitam o que já sabem e o que ainda não sabem. Enfim, fazem, com a professora, do
currículo oficial (baseados nos Parâmetros Curriculares Nacionais, documento referência para
a escola) o currículo praticado (OLIVEIRA, 2003) . Ampliam-no; reinterpretam-no; vivem-

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no e praticam-no de forma singular, à maneira segundo a qual as táticas docentes conseguem
ir driblando as estratégias escolares.1

No desafio de garantir a voz das crianças e legitimar seus saberes e ainda não saberes, Ana
Paula investe na alteridade, na heterogeneidade constitutiva da sala de aula (SAMPAIO,
2008) e busca, a todo o momento, visibilizar saberes e conhecimentos das crianças com as
quais trabalha. Faz do currículo e do processo de aprendizagemensino um movimento
compartilhado, multissituado e co-implicado. Mergulhada nessa compreensão, essa professora
vem se desafiando a questionar maneiras hegemonicamente instituídas de aprenderensinar;
vem investindo no estabelecimento de relações/negociações/comunicações democráticas
(SÜSSEKIND, 2010, p.151) com as crianças, para discutir e negociar o quê, como e para quê
estudar.

Ana Paula, desde o primeiro dia de aula, propicia às crianças o alargamento de seus
referenciais de leitura e escrita; e, para isso, faz da sala de aula um espaçotempo habitado por
textos de diferentes gêneros textuais, potencializando experiências de leitura/vivência da
linguagem escrita, dentrofora do espaço escolar (daí a importância, numa perspectiva
discursiva de alfabetização, da imersão em um ambiente alfabetizador rico em materiais
escritos).

A vivência de experiências de leitura, ouvindo literatura, narrativas, histórias etc. – quer


realizadas pelos próprios alunos e alunas, quer pelo/a professor/a – possibilita a ampliação de
compreensões de mundo e mesmo de leitura dos educandos. Ler, mesmo para alunos/as que
ainda não sabem ler, é um dever ético do docente, porque, ao ouvir histórias – verdadeiras ou
inventadas, de perto ou de longe –, eles/as vão se dando conta, ajudados pelo/a professor/a,
que o ato de ler

(...) não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem


escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do
mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não
possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade
se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por

1
No segundo semestre de 2010, a escola instituiu a prova única para o 2º ano de escolaridade do ensino
fundamental; a professora, porém, não faz da prova única sua ferramenta de avaliação e mantém dinâmicas que a
turma vem vivenciando, sendo uma delas a roda de conversas, lugar privilegiado de discussão e avaliação do
experienciado pela turma.
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sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o
contexto (FREIRE, 2008, p. 11).

Por meio do ato de ler, apropriamo-nos do mundo, de mundos. Descobrimos coisas novas,
redescobrimos antigas. Reescrevemos nossas próprias histórias na leitura, porque nela
entramos, fazemos ranhuras, preenchemos seus vazios (ainda que produzidos por nós) com
nossos significados. Lemos com todos os sentidos. Por isso, ler para as crianças, desde a fase
inicial de apropriação da escrita, precisa ser constitutivo desse processo. Desde cedo, elas têm
a possibilidade de irem atribuindo sentido à leitura, desenvolvendo prazer pelo ato de ler.

Todavia, não apenas ler para as crianças é imprescindível. Deixar que leiam, manuseiem o
livro, a revista, o gibi; enfim, que sintam e experimentem esses materiais mesmo que não
saibam ler, ainda. Cada experiência com leitura e de leitura é singular; cada sujeito leitor
produz seus sentidos e significados, trilha seus próprios percursos e escreve sua própria
história de leitor, exercita sua operação de caça (CERTEAU, 2007) – vasculha, articula,
inventa.

A professora da turma acompanhada, não por acaso, deixava disponível, em local visível e
acessível às crianças, livros e revistas para que pudessem ler após terminarem as atividades,
se assim o quisessem. Além disso, ela lia ou contava histórias frequentemente para a turma –
eram contos, poemas, notícias, adivinhas etc. Depois de algum tempo, as próprias crianças
levavam livros para que a professora lesse; livros lidos em casa, recebidos como presente,
emprestados. Levavam revistas, notícias que julgavam interessantes e imagens. As leituras
eram compartilhadas, experienciadas...

Todavia, essa não é, ainda, a “realidade” hegemônica em nossas escolas. Recordamos, ainda
hoje, a forma como aprendemos a ler e a escrever na escola: primeiro as vogais, depois os
encontros consonantais; logo em seguida, a palavra-chave ou a letra/fonema, e, como
desdobramento, a apresentação das “famílias silábicas” e a formação de novas palavras que
vão compor pequenas frases, culminando com a apresentação de pequenos “textos”. Na
verdade, os únicos “textos” que líamos eram as três ou quatro linhas em cada lição da cartilha.
Dificilmente ouvíamos histórias; apenas repetíamos as palavras, letras e sílabas que
precisavam ser memorizadas/aprendidas.

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Seriam essas experiências anacrônicas, que só existem em nossas memórias? Ou seriam
antigasatuais questões, as quais nos permitem questionar até que ponto a escola contribui
para que estudantes construam desprazer pelo ato de ler? Até que ponto a escola não vive,
ainda hoje, o paradoxo de, na dinâmica de ensinar a ler e a escrever, cultivar o desgosto pela
leitura e pela escrita? Qual a relação entre essa produção de desprazer e as concepções de
conhecimento, leitura, escrita, alfabetização que subsidiam práticas alfabetizadoras realizadas
cotidianamente em nossas escolas?

A narrativa de Ana Paula, em um dos encontros do Fórum de Alfabetização, Leitura e Escrita,


um projeto de pesquisa que reúne na universidade professores e professoras alfabetizadore(a)s
e estudantes de cursos de licenciatura,1 é emblemática:

então... começamos o ano escrevendo e lendo. Eu não começo com a


palavra, separando o alfabeto, soletrando o alfabeto... Começamos
escrevendo, lendo... Mas vamos ler o quê? Vamos escrever o quê? Vamos
escrever a lista de insetos... Vamos escrever juntos. Vamos ler o quê?
Vamos ler a lista (...) então, a criança é colocada numa situação de leitura e
escrita real. Não é nada fictício. Não é nada para memorizar e gravar
mecanicamente repetindo... (Ana Paula Venâncio, XVII FALE/UNIRIO,
09/05/2009).

Ao contrário, é para aprender a ler e a escrever exercendo autoria e criatividade, legitimando


as crianças como atorasautoras, nesse processo: Pedro Felipe – o mesmo menino que queria
escrever “vc” em todas as situações – logo após terminar uma atividade, pega uma revista
para ler. Ana Paula assume o compromisso de ler para os/as educandos/as com os/as quais
trabalha.

Figura 6: Estudante lendo revista em sala de aula.

1
Vide https://sites.google.com/site/redeformad/home
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Fonte: Arquivo de pesquisa (GPPF/UniRio).

Figura 7: Professora Ana Paula lendo uma história para sua turma.

Fonte: idem.

Essa postura quanto à formação do leitor/escritor, como constitutiva do processo


alfabetizador, dialoga diretamente com a busca de uma prática mais emancipatória e
demonstra uma postura mais atenta em relação às crianças, reconhecendo-as em suas
potencialidades e singularidades, fazendo-as participar ativamente desse movimento de
discutir e pensar em possibilidades de trabalho. Toda essa dinâmica, na qual múltiplas vozes
se comunicam e retroalimentam, instiga e incita uma organização outra na/da sala de aula,
possibilitando um espaço onde uma postura mais crítica, colaborativa, questionadora e
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solidária em relação ao vivido seja permanentemente construída e experienciada. No final do
1º ano, quando as crianças avaliaram o que aprenderam, Mariana, autora de um dos textos
inicialmente apresentados, destaca:

Figura 8: Autoavaliação: 1º ano de escolaridade

Fonte: arquivo de pesquisa (GPPF/UniRio).

Não ser compreendida como a criança “menos avançada” quando, no início do ano, escrevia
com linhas onduladas (e por um bom tempo escreveu desse modo), contribuiu

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significativamente para que Mariana fosse se arriscando, fosse ousando escrever como podia e
sabia. Ana Paula, atenta, dialogava com Mariana e estimulava o diálogo entre as crianças. A
ajuda, destacada por Mariana em seu texto avaliativo – (...) mas eu preciso de ajuda, todos
precisam de ajuda porque ninguém sabe tudo nessa vida – é vivenciada nessa sala de aula. As
crianças leem e escrevem ajudadas pela professora, ajudadas pelos colegas. Faz parte do
processo de conhecer e aprender ser ajudado(a) e ajudar. Todas as crianças realizam todas as
atividades, com mais e/ou menos ajuda. Isso as potencializa. Garante que possam duvidar,
errar, acertar. No próprio movimento de ler e escrever vão aprendendo sobre a linguagem
escrita, sobre as possibilidades de dizer, por escrito, o vivido, pensado, conversado, estudado.

Investir nos conhecimentos ainda incipientes, muitas vezes, quase invisíveis, é o que faz Ana
Paula, pois aprendeu com Vygotsky (1989) a valorar os conhecimentos ainda não existentes,
mas potencialmente presentes. Ao invés de classificar as crianças, o desafio de compreender o
que já sabem, mas, sobretudo, compreender o que ainda não sabem e, portanto, pensar em
boas alternativas pedagógicas no sentido, sempre, de ampliar os saberes existentes e
transformar ainda não saberes em saberes. Esse processo, cíclico e permanente, precisa ser o
foco da ação docente. A dimensão dialógica do processo de aprendizagemensino, da
avaliação, como destaca Esteban (2010, p.76), traz as vozes infantis para as práticas
cotidianas, coloca seus conhecimentos e seus modos de compreender os conteúdos escolares
como objetos de estudo.

Uma vez mais, no processo de pensar e praticar uma escola onde as crianças das classes
populares possam, como Mariana, dizer: (...) eu já aprendi a ler e a escrever e saber ler e
escrever é bom (...), recorremos a Paulo Freire (1982, p.93), para quem o diálogo é
imprescindível à uma educação libertadora: o diálogo é este encontro dos homens,
mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo,1 não se esgotando, portanto, na relação eu-tu .

Por não se resumir à relação eu-tu, o diálogo (entendido como conversa) pressupõe interação,
negociação e combinação. É formativo; pressupõe o compartilhamento da palavra e não seu
domínio: pertence a todos e não a um, ao/à professor/a. E essa dimensão compartilhativa da
linguagem, expressa no diálogoconversa, abre possibilidades para uma relação outra na sala
de aula, propiciando que a escola seja um espaço privilegiado de potencialização de saberes,
de legitimação de fala e pensamento, de rompimento de relações mais verticais e desiguais

1
Grifo do autor.
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com as crianças, principalmente as das classes populares, historicamente colocadas no lugar
das que podem menos.

Finalizando...

A partir de conversas travadas em variados espaços de reflexão e pesquisa, temos nos


defrontado com algumas de nossas crenças e certezas, (des)aprendido verdades, aprendido a
olhar de outro modo para o que sempre olhamos; enfim, temos reavaliado saberes inculcados
e opiniões construídas, ampliando maneiras de pensar e compreender a alfabetização. A ação
investigativa que vimos realizando confirma que é possível, na escola, uma prática
alfabetizadora outra que, tirando o aluno do lugar da ausência, possa abrir possibilidades para
a garantia de um processo de aprendizagemensino de qualidade, pautado em práticas
emancipatórias não subservientes ao aumento das taxas de evadidos e repetentes.

Pensar na importância de práticas alfabetizadoras discursivas implica, do nosso ponto de


vista, potencializar e ampliar saberes e ainda não saberes infantis, tendo como objetivo não a
preparação para a cidadania, mas, como salienta Regina Leite Garcia (2004), a vivência da
cidadania hoje, ou seja, na cotidianidade da sala de aula. Espaçostempos mais solidários e co-
implicados, lugares de múltiplas lógicas e diferentes falas: uma rede de afetos e
aprendizagens.

Embora nos movamos em campo íngreme, fazemos os caminhos ao caminhar, empregando


táticas e astúcias para nossa produção cotidiana, a fim de refutar saberes e práticas
historicamente tornadas hegemônicas e, por isso, consideradas como “a” verdade. Nessa
vibração do hegemônico, do que é assim porque sempre foi assim, a escola reproduz
ideologias, reforça lugares sociais, sustenta e é transpassada por relações colonizadoras.
Contudo, essa mesma escola é também lugar de subversão, de táticas, usos e astúcias
diferenciadas (CERTEAU, 2007). Nela, ocorre, diariamente, uma prática que

é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente,


silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios,
mas nas “maneiras de empregar” os produtos próprios impostos por uma
ordem (...) (CERTEAU, 2007, p.39).

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Ao ser espaço de produção astuciosa, a escola pode ser lugar de práticas populares. Refuta o
instituído, recria possibilidades de relações e reinventa lugares na sala de aula: o professor é
também aprendente, e o aluno é também ensinante. Aprender e ensinar se fazem dimensões
inseparáveis, permeadas por negociações e diálogosconversas; portanto, abrem possibilidades
de as classes populares serem mais do que transeuntes na escola; de se firmarem, cada vez
mais, como atorasautoras do processo alfabetizador.

Nesse sentido, as palavras de Garcia (2004), mais uma vez, são emblemáticas e fortalecem o
que vimos buscando nas ações de ensinopesquisa praticadas na relação dialógica, por nós
experienciada, entre universidade e escola básica:

Nossa ação se dá no sentido de que o processo de alfabetização se


constitua num rico processo de potencialização dos historicamente
condenados ao analfabetismo, sujeitos que vão construindo a sua
autonomia no processo de alfabetização, tornando-se autoconfiantes e
capazes de ler criticamente a palavra do outro e a escrever criativamente a
sua própria palavra (GARCIA, 2004, p. 27).

Pensamos que esse movimento/posicionamento proporciona que a escola possa ser, para além
do que o discurso hegemônico diz, um espaçotempo de quebra da colonialidade do ser e do
saber e, dessa maneira, contribua para uma sociedade outra, nas pequenas redes cotidianas
traçadas na – e além da – escola.

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