Tertulias Literarias

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DOI: 10.5585/Dialogia.n27.

7344 Artigos

Tertúlia literária: a escola, a sala


de aula e a leitura dialógica
Literary lecture: the school, the classroom and dialogic Reading

Rosiley Aparecida Teixeira


Doutora em Educação, Professora do Programa de Mestrado em
Gestão e Práticas Educacionais da Universidade Nove de Julho.
Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa Infância e
Formação: estudos contemporâneos, SP - Brasil
[email protected]

Nayane Oliveira Ferreira


Mestre em Educação pelo PROGEPE - Universidade Nove de Julho.
Professora de Língua Portuguesa, Secretaria de
Educação do Estado de São Paulo, SP - Brasil
[email protected]

Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar a tertúlia literária como uma prática
inovadora para o trabalho com a leitura em sala de aula. Para isso serão retratados aspectos
de uma pesquisa realizada com alunos do 7º ano de uma escola pública estadual de São
Paulo, na qual puderam vivenciar e compartilhar a leitura de alguns clássicos da literatura
mundial. As tertúlias literárias estabelecem um lugar de exercício da leitura dialógica, pois
nelas os leitores vão discutir a obra, dialogar, trocar experiências, acionar e compartilhar
saberes já existentes, assim como aprender com o outro, priorizando sempre o diálogo, a
solidariedade e o respeito às diferenças.
Palavras-chave: tertúlia literária, escola pública, sala de aula, leitura dialógica.

Abstract: This article aims to present the literary lecture as an innovative practice for working
with reading in the classroom, it will present some aspects of a research carried out with
seventh grade students of a state public school in São Paulo in which they could experience
and share the reading of some classics world literature. The literary lecture establishes a place
of exercising the dialogical reading, because the readers will discuss the work, to dialogue, to
exchange experiences, to activate and to share already existing knowledge, as well as to learn
with other, always giving priority to the dialogue, the solidarity and the respect to differences.
Key-words: literary lecture, public school, classroom, literary dialogue.

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Tertúlia literária: a escola, a sala de aula e a leitura dialógica

Introdução

A tertúlia literária se constitui como um espaço de promoção da leitura


dialógica no qual as pessoas podem falar sobre sentimentos, pensamentos,
recordações, podem relacionar o livro a outras leituras que já fizeram e trazer
à tona as sensações despertadas pela apreciação da obra. Opta-se pela leitura de
livros da literatura clássica, como uma maneira de romper com os estereótipos de
quem pode e quem não pode ler este tipo de literatura, constituindo a escola como
um lugar de desenvolvimento dos processos de leitura e de acesso ao universo da
literatura.
Toda a dinâmica das tertúlias contribui para o rompimento com alguns
estereótipos presentes em nossa sociedade, já que se prioriza a participação das
pessoas, independentemente do grau de instrução. Valls, Soler e Flecha (2008)
afirmam que as pessoas que tiveram a oportunidade de participar das tertúlias
literárias apresentaram transformações com relação a sua autoconcepção:
tornaram-se mais confiantes, aumentaram a autoestima e modificaram suas
relações com as demais pessoas.
Neste texto, trataremos da leitura dialógica como uma abordagem para o
trabalho com a leitura em sala de aula, trazendo à tona relatos de uma experi-
ência vivenciada numa escola pública estadual de São Paulo, na qual os alunos
leram Romeu e Julieta, O Pequeno Príncipe e Alice no País das Maravilhas sob
a perspectiva da tertúlia literária.

A prática das Tertúlias Literárias em uma escola pública de


São Paulo

Durante o ano de 2015, foi investigada a prática da tertúlia literária em uma


escola da zona sul de São Paulo. Nesta pesquisa, os alunos realizaram a leitura de
três livros: Romeu e Julieta, O Pequeno Príncipe e Alice no País das Maravilhas.
Sabe-se que a realidade da maior parte das escolas públicas não permite
que as tertúlias aconteçam como deveriam acontecer, pois às vezes as escolas não
têm biblioteca, não têm a quantidade de livros necessários, entre outras questões.
Contudo, é preciso ser criativo e, para que esta experiência acontecesse, foi preciso

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realizar campanhas para aquisição dos livros e também experimentou-se ler os


livros baixando-os nos celulares.
A turma escolhida para a pesquisa foi um 7º ano. Os alunos tinham idade
entre 12 e 15 anos. Os três livros utilizados foram lidos em suas versões integrais,
apenas traduzidos da língua original para o português.
O primeiro livro discutido nas tertúlias, aqui relatado, foi Romeu e Julieta em
sua versão integral, portanto, era esperado que os alunos apresentassem alguma
dificuldade para realizar a leitura e precisassem consultar o dicionário com certa
frequência. Porém, observou-se que esta dificuldade foi facilmente superada ao se
estabelecer o diálogo e a troca no grupo. Na primeira avaliação das tertúlias, que
aconteceu logo após o primeiro encontro, perguntado sobre o que estavam achando
da experiência, uma aluna respondeu: “se a pessoa tem dificuldade de entender…
tem várias maneiras de entender… por exemplo… uma fala de um jeito e outra fala
do outro… aí, se não entendeu com um, entende com o outro”. Esta fala demonstra
que o que é visto como uma barreira para o contato com este tipo de obra – a
dificuldade de interpretação –, pode constituir-se como um lugar de aprendizagem.
Os alunos que pertenciam a essa turma eram, em sua maioria, descritos
como indisciplinados e desinteressados, mas se mostraram muito abertos à expe-
riência e fizeram relatos que demonstram o quanto suas relações com a literatura
foram transformadas a partir do momento que se adotou a perspectiva dialógica
para o trabalho com a leitura em sala de aula.
No começo da atividade, houve uma certa resistência à realização da leitura
do livro, porém, no decorrer dos encontros todos foram se interessando e notaram-
se transformações individuais e coletivas:

[…]
Torquato: E também a gente criou mais harmonia porque desde
o começo a tertúlia… tipo… era uma panelinha na nossa sala e
quando começou a tertúlia a gente foi se conhecendo e a sala foi se
unindo… começou a ter mais harmonia do que geralmente tem
na sala… nas salas geralmente tem muita panelinha e a tertúlia
ajudou a gente a se juntar mais… no começo… que foi Romeu e
Julieta às vezes eu não lia…[…] Mas a gente foi se desenvolvendo
passo a passo… a gente fez o trabalho do Pequeno Príncipe e foi
muito bom.

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Tertúlia literária: a escola, a sala de aula e a leitura dialógica

Torquato: Tinha gente que às vezes não lia… mas aí chegava lá e


ficava perdido “o que vocês estão falando?” aí as pessoas a partir do
momento da primeira tertúlia foi criando vontade de ler para poder
comentar na tertúlia… muita gente que não participava na sala de
aula na Tertúlia falou… participou.

Nestas falas, é possível notar, inclusive, que alguns alunos que eram conside-
rados indisciplinados e desinteressados participaram das tertúlias, leram os livros,
compartilharam com os colegas as suas impressões.
Como não estão habituados a este modelo de atividade, é comum que em
suas primeiras experiências com a leitura dialógica os alunos aguardem sempre
uma sintetização do professor, ou que este diga qual a “interpretação correta”,
contudo, conforme vão se habituando e se reconhecendo como um sujeito com
possibilidades de agregar conhecimento ao grupo, isto passa a ser mais natural,
como se pode ver na leitura de um trecho de Romeu e Julieta apresentada por
Ferreira:

Ferreira: (Romeu): Tortura, e não piedade. Aqui é o céu/ Onde vive


Julieta, e qualquer cão,/ Ou gato, ou rato ou coisa sem valor/ Pode
viver no céu e pode vê-la,/ Mas não Romeu. Existe mais valor,/
Mais honra e cortesia em qualquer mosca/ Do que em Romeu, pois
essa pode/ Tocar na mão tão branca de Julieta,/ Roubar a eterna
bênção de seus lábios,/ Que ainda puros, vestais de seu pudor,/
Coram por ver pecado nesse beijo./ Mas não Romeu; Romeu está
banido./ As moscas podem, eu fujo daqui;/ Elas são livres, eu estou
banido./ E ainda diz que o exílio não é morte? […]
Professora: Por que você escolheu este trecho?
Ferreira: Este trecho me fez pensar… às vezes a gente tem tudo…
menos o que você quer… e… você chega a preferir a morte e não
valoriza o que te é dado?
Professora: E você… Gottsfritz…
Gottsfritz: Quando eu separei este trecho eu pensei que ele estava
se comparando com uma mosca… ele… pode pensar que a
mosca não é nada e tal… mas a mosca está sempre livre… tem
isso também… só que em algum momento ela morre e ele está

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como se fosse morto… preso por ser banido… tipo… não sei se
deu pra entender.
Ferreira: Deu… eu não tinha pensado nisso.

Neste trecho, o aluno Ferreira faz a leitura de um excerto de Romeu e


Julieta e comenta como o interpretou. Outro colega, que também havia separado
o mesmo trecho, apresenta a sua interpretação. Neste caso, os dois utilizam seus
argumentos para defender seus pontos de vistas (Ferreira fala do “desejo de ter”;
Gottsfritz fala sobre a liberdade), argumentos que são válidos e se complementam.
Primeiro os dois divergiram, mas se dispuseram a discutir o tema e, desta forma,
o diálogo garantiu não apenas a ampliação da interpretação, mas também a ideia
de colaboração entre os colegas.
O diálogo neste tipo de atividade coloca os participantes para conversar
sobre o texto e sua leitura de mundo por meio do texto. Deste modo, “[…] se
apresentam diante uns dos outros com pretensões de validez que podem ser reco-
nhecidas ou postas em questão” (GIROTTO, 2011, p. 33). Nem tudo o que é dito
será tomado como verdade. Aquele que fala tem que apostar na eficácia de seus
argumentos, mas também estar disposto a defendê-los ou rechaçá-los segundo
os argumentos dos demais. Desta forma, o conhecimento vai sendo formado a
partir de todos os pontos de vista. O que se almeja é o consenso, mas também
não significa que ao final todos devam sair pensando de maneira igual; antes,
sim, que tenham esgotado todas as possibilidades de argumentação, respeitando
a individualidade. Como defendem Aubert et al. (2013), nas relações baseadas na
validez do argumento, as pessoas dialogam para se entenderem e chegarem a
consensos, e não há espaço para imposições que tomam como ponto de partida
as relações de poder.
Nesta abordagem, o texto se expande para além daquilo que o autor quis
transmitir ao leitor. Passa a ser, inclusive, um espaço de solidariedade. Os alunos
se ajudam na compreensão do texto, se solidarizam com os conflitos dos colegas,
buscam juntos soluções para as problemáticas que encontram:

[…]
Benko: Não entendi outra parte… essa que fala que cada um deve
cumprir seu dever…

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Tertúlia literária: a escola, a sala de aula e a leitura dialógica

Ferreira: Ele está ironizando a ordem do rei… Por que pra outros
mandam fazer um trabalho digno e pra ele deixam para encontrar
uma lista de nomes?

Neste recorte da transcrição de uma conversa, o aluno Ferreira auxilia


sua colega Benko a compreender um trecho do livro Romeu e Julieta que ela
não estava conseguindo entender. Em outra aula, essa mesma aluna ajuda um
colega com os números romanos, assim eles vão sempre ensinando e aprendendo
conjuntamente num ato solidário.
O acesso ao conhecimento instrumental não se opõe ao diálogo, antes,
sim, será necessário para fornecer meios para que o aluno possa desenvolver sua
máxima na sociedade. Privá-lo disso é negar-lhe um direito e, consequentemente,
ferir os princípios da aprendizagem dialógica.
Segundo Freire (2015),

Não posso, por exemplo, falando de fome, me contentar com dizer


que a fome é urgência de alimentos, grande apetite ou a falta
do necessário ou a míngua ou escassez de víveres. A inteligência
crítica de algo implica a percepção de sua razão de ser. Ficar na
pura descrição do objeto ou torcer-lhe a razão de ser ocultando a
verdade em torno dele são processos alienadores.

A discussão em foco é, como afirma Freire (2015), não reduzir a prática


docente ao mero ensino de técnicas ou ao conteúdo descontextualizado, que não
são capazes de instigar o aluno e, tampouco, fazer com que ele desenvolva sua
compreensão crítica da realidade. Os conteúdos instrumentais devem ser apre-
sentados ao aluno de modo que este possa compreendê-los e não memorizá-los,
relacioná-los com a sociedade e não acreditar que são um elemento sem vínculo
com suas vidas.
Durante essa experiência os alunos realizavam autoavaliações, nas quais
relatavam e analisavam o próprio envolvimento na atividade. Ao final, perceberam
que, à medida que iam se envolvendo com as leituras, os encontros se tornavam
mais agradáveis, deixaram de temer a literatura, melhoraram a autoestima e
passaram a se sentir mais envolvidos com as questões sociais.

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A leitura e a escola: as tertúlias e os clássicos como uma


possibilidade de leitura

Habitualmente, na escola, crianças e adolescentes leem textos, com


linguagem e conteúdos considerados próprios à sua faixa etária, pois é difun-
dida a ideia de que primeiramente se deve acessar as leituras consideradas
fáceis, para então poder se arriscar nas demais leituras. Baptista (2012) e Lerner
(2006) concordam que esta ideia é errônea, que não é possível aprender a ler
textos difíceis lendo textos fáceis e nem que a leitura de um leva à leitura de
outro; por isso não se deve limitar o universo literário do aluno, correndo o risco
de considerá-lo incapaz.
Petit (2013, p. 77) aponta que geralmente esperam que os leitores advindos
de meios sociais desfavorecidos façam leituras consideradas “úteis”, ou seja, “[…]
aquelas que supostamente lhes serviriam de forma imediata em seus estudos
ou na procura de um emprego. Ou então lhes concedem algumas leituras de
‘distração’, dois ou três best-sellers de baixa qualidade”; e a “alta cultura” fica
reservada à elite. Cabe à escola a função de apresentar-lhes o máximo possível de
tipos de leituras que podem ser feitas, assim eles poderão escolher e não apenas se
acomodar com o pouco que lhes é oferecido.
Se por um lado ainda persiste a ideia da literatura clássica como um
bem cultural restrito a um grupo de pessoas privilegiadas, por outro existe um
movimento que tenta romper com estes paradigmas. Para Calvino (2007, p. 9-11),
os clássicos “[…] são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer ‘Estou
relendo…’ e nunca ‘Estou lendo…’ […]”, isto porque ou a pessoa tem vergonha
de o estar lendo a determinada altura da vida, no caso das pessoas mais velhas,
ou porque tendo-o lido uma vez, volta a lê-lo, já que “[…] toda releitura de um
clássico é uma leitura de descoberta como a primeira […] [ou porque] toda
primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura”.
Isto é, um livro clássico sempre tem algo a ser descoberto e a cada (re)leitura
vai mostrando-se inédito, como se nunca acabasse de se revelar. Um livro clássico,
ainda segundo Calvino (2007, p. 10), exerce influência na memória coletiva, por
isto, não são raras as vezes em que se reproduzem “[…] constantes que já fazem
parte de nossos mecanismos interiores” e cuja origem ou desconhecíamos ou
já havíamos esquecido, ou seja, às vezes ele nos revela algo que sempre tivemos
conhecimento, mas que não sabíamos que ele o havia dito primeiro.

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Tertúlia literária: a escola, a sala de aula e a leitura dialógica

Machado (2002) reforça que um clássico não é um livro antigo e fora de


moda; pelo contrário, é um livro eterno, sempre atual, pois mesmo algumas coisas
que dizemos nos nossos discursos diários estão cheias de referências a estas obras
como, por exemplo, quando dizemos que alguém recebeu um presente de grego,
fazendo referência à guerra de Troia – mesmo um vírus que circulou durante
muito tempo na internet e se chamava “Cavalo de Troia”, pois agia tal qual na
história da qual leva o nome: entrava no computador e criava uma porta para
uma possível invasão. Os clássicos fazem parte do nosso cotidiano, afinal “[…]
falamos em ouvir o canto da Sereia, em narcisismo, em complexo de Édipo, em
caixa de pandora, em calcanhar de Aquiles – e cada uma dessas expressões se
refere a uma história grega diferente” (MACHADO, 2002, p. 29).
Ao proporcionar o contato das crianças e adolescentes com os livros de
literatura clássica cria-se a oportunidade de aproximação com a grande tradição
literária, com as histórias de que somos feitos, afirma Machado (2002).
Se, por vezes, alegam que a literatura clássica é restrita a poucos, geralmente
as crianças e adolescentes não estão inseridas neste grupo de favorecidos, pois,
como ainda estão num processo de amadurecimento e criação de repertório, são
vistas como incapazes de captar a essência dessas obras. O próprio Calvino (2007,
p. 10) afirma que “[…] a juventude comunica ao ato de ler como a qualquer
outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao passo que na
maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) muitos detalhes, níveis e
significados a mais”; ou seja, o jovem, impaciente e inexperiente, deixa passar
despercebidos importantes detalhes, os quais só irá reconhecer em uma possível
releitura na maturidade, já que a juventude é justamente o momento do primeiro
encontro entre leitor e obra. No entanto, o autor também ressalta que as leituras
feitas na juventude podem servir como um direcionamento para as experiências
futuras, “[…] fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas
de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza” (CALVINO, 2007, p. 10)
ainda que poucas coisas da leitura tenhamos retido na memória.

As Tertúlias Literárias

As tertúlias literárias dialógicas foram escolhidas, nesta pesquisa, como


meio para a verificação das possibilidades de desenvolvimento dos princípios da

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leitura dialógica, um espaço para falar, ser ouvido e ouvir o colega. Sua dinâmica
funciona, segundo Girotto e Mello (2012), do seguinte modo: primeiramente,
professor e alunos escolhem o livro para a leitura; depois a leitura é iniciada em
aula; posteriormente combina-se o número de páginas ou capítulos a serem lidos
até o próximo encontro (a leitura será realizada individualmente fora da sala de
aula); durante a leitura individual, as crianças elegem um trecho ou uma ideia
que tenha chamado sua atenção e separam-no para compartilhar com os demais
colegas no dia do encontro; no dia do encontro, sentam-se em círculo e ao iniciar
a dinâmica da tertúlia, aqueles que gostariam de falar no encontro levantam
a mão e o moderador, que pode ser o professor ou não, anota o pedido de fala;
respeitando a ordem que foi anotada, os leitores vão apresentando suas leituras
e comentários, explicam o motivo de terem escolhido aquela parte em específico
(o que lhes chamou a atenção), as suas dúvidas ou as relações que estabeleceram
com questões referentes à vida ou a outras leituras que já realizaram; os demais
colegas podem complementar o comentário, concordar ou discordar do que foi
dito. O fundamental é relacionar o trecho com problemáticas sociais, por exemplo,
que lhes sejam importantes.
Girotto e Mello (2012, p. 78) destacam que “[…] em uma tertúlia prioriza-
se a compreensão e o entendimento, que vai sendo ampliado na medida em que
as discussões são orientadas por meio de uma dinâmica dialógica”. O professor
deve incentivar o diálogo e a valorização dos argumentos, criando um ambiente
de respeito.
Do proposto para realização das tertúlias na experiência relatada nesta
pesquisa não foi possível escolher o livro coletivamente porque a escola não
dispunha de exemplares para todos e nem sempre havia a inscrição para falar
no começo do encontro, pois os alunos, por não estarem habituados a este tipo
de atividade, iam comentando segundo lhes parecesse mais conveniente ou então
decidiam no decorrer da tertúlia se iriam falar ou não. Isto não significa que
a atividade não tenha dado certo, pelo contrário, todos os princípios da leitura
dialógica e os objetivos da tertúlia literária foram garantidos e vivenciados.
No trecho a seguir, destaca-se uma das muitas avaliações realizadas pelos
alunos sobre a participação nas tertúlias literárias.

Oliveira: A Tertúlia Literária é assim… A primeira tertúlia que


a gente fez foi com o livro “Romeu e Julieta” e… é um livro

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Tertúlia literária: a escola, a sala de aula e a leitura dialógica

clássico e funcionava assim… a gente lia em casa… marcava


a página e quando chegava na sala a gente comentava os
trechos que gostou e relacionava com alguma coisa da vida…
E era assim… Eu me lembro que quando eu peguei o livro
“Romeu e Julieta” eu pensei: ah livro clássico é chato… mas
eu fui lendo o livro e gostei muito…

Neste pequeno trecho, a aluna explica como se dão as tertúlias, mas em


outros momentos de sua fala é possível notar o reconhecimento da transformação
que esta experiência possibilitou. Diz ainda,

[…] aí desde o começo a gente foi se desenvolvendo… no começo


algumas pessoas não liam e acabavam atrapalhando e a gente
foi aprendendo a ouvir o outro e respeitar a opinião das outras
pessoas… e a gente conversava sobre tudo e também fomos
aprendendo a interpretar texto muito melhor… no primeiro livro
a gente tinha mais dificuldade… mas fomos melhorando e nos
desenvolvendo e foi muito legal…

No relato de Oliveira a tertúlia literária se revela como como um instrumento


da leitura dialógica, um momento no qual aprendem juntos, conversam e, mais
importante, ouvem os colegas e são ouvidos pelos colegas e professores.
Destaca-se, porém que a proposta da aprendizagem dialógica requer um
novo olhar sobre o silêncio na sala de aula: nela o silêncio se dá para ouvir
o colega numa relação de igualdade, na qual todos ensinam e aprendem;
o discente sai do papel daquele que rigorosamente apenas escuta o que o
professor diz e vai para o lugar daquele que, junto aos professores e aos
demais, constrói o conhecimento.
O que se evidencia na prática da tertúlia literária dialógica é que essa
se constitui em um espaço e tempo, nesse caso com a literatura clássica
universal, pois existem outras possibilidades de leituras e tertúlias, que
rompe com as práticas mecânicas de preenchimento de fichas de leitura ou
transcrições de trechos dos livros nas respostas dos questionários elaborados
para ajudar na compreensão do texto.

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Considerações Finais

Ao fazer a leitura de um livro e compartilhar com outras pessoas as suas


impressões e as marcas que esta leitura criou, o sujeito está experimentando
a literatura, reconstruindo-a nas trocas que realiza e, consequentemente,
ressignificando não apenas a leitura, mas também tudo o que está sendo
vivenciado.
Durante a experiência das tertúlias literárias, pôde-se constatar que
os alunos iam vivenciando-as de maneira tão profunda que incorporavam
saberes desenvolvidos a partir dos diálogos, começavam a se reconhecer
como sujeitos singulares – como, por exemplo, quando começaram a
reivindicar que os professores fizessem a chamada pelo nome deles e não por
seus números –, ao mesmo tempo que incorporavam o espírito solidário de
pertencerem a um grupo e se preocuparem uns com os outros, não apenas
compreendendo criticamente as relações sociais, mas propondo intervenções
para transformar suas realidades.
O contato com os livros e, consequentemente, a oportunidade de ser um
leitor, coloca em jogo a própria identidade dos alunos, já que revela uma nova
maneira de representar a si mesmos, “de tomar as rédeas de seu destino” (PETIT,
2013, p. 59-60). Pressupor que os alunos das periferias são alienados é apostar que
são incapazes de serem sujeitos e se perceberem mediante as situações às quais
são expostos.
Na tertúlia literária dialógica não se faz uma interpretação daquilo que o
autor quer dizer, embora isto acabe acontecendo naturalmente, mas sim daquilo
que a leitura desperta em cada um: sentimentos, memórias, desejos. Ao passo
que os encontros avançam, livros e leitores vão deixando suas marcas e se trans-
formam, se confundem.
Na leitura dialógica, professor e alunos ganham novos papéis. O aluno
deixa de ser aquele que apenas escuta para ser atuante no seu processo de ensino-
aprendizagem. Será um protagonista e terá seus saberes valorizados. O professor,
por outro lado, passa do papel daquele que fala/manda para o que escuta/coor-
dena/media, assim, caberá a ele reconhecer nos educandos o direito de dizer sua
palavra – ressaltando que o ato da escuta não é um favor que está sendo feito
ao aluno, mas antes um dever que lhe cabe, pois trata do reconhecimento de
suas capacidades de reflexão e produção de saberes, uma vez que, como defende

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Tertúlia literária: a escola, a sala de aula e a leitura dialógica

Freire (2006), escutar o aluno é a verdadeira maneira de falar com eles, enquanto
simplesmente falar para eles seria uma forma de não ouvi-los.
A pesquisa, bem como a experiência, com as tertúlias literárias proporcionou
a desconstrução das imagens preconcebidas sobre os clássicos e a literatura,
embora ainda seja um livro mais complexo do que aqueles que estavam habitu-
ados a ler, é algo prazeroso, passou a constituir-se como um lugar no qual eu me
encontro e com o qual posso dialogar.
Durante os encontros e as leituras realizadas, percebeu-se que os temas
tratados foram se deslocando dos sentimentos pessoais para as questões mais
sociais. Essas transformações demonstraram um amadurecimento desses
meninos e meninas, pois a leitura dialógica foi, inclusive, um lugar de desco-
bertas, de empoderamento, de reconhecimento e valorização de seus saberes e
histórias de vida.
Este tipo de leitura estabelece uma nova relação entre leitor e obra, segundo
a qual o texto só ganha vida quando existe um leitor que lhe atribui significado,
permitindo-lhe criar relações de distorção, invenção e deslocamento (CHARTIER,
1999). Ou seja, longe da censura, os alunos puderam relacionar-se com os livros,
acionando seus saberes para poder verificar o que na obra dialogava com suas
vidas e, juntos, construírem outros saberes e conhecerem-se como seres que vivem
e analisam a vida.
Consequentemente, é possível trabalhar com a leitura dialógica em uma
sala na qual muitos alunos possuem dificuldade de leitura e escrita, pois
o que se observou foi que isso não se concretiza como uma barreira, pelo
contrário, os alunos sentiram-se arrebatados pela literatura, encorajados e
instigados a ler para poder compartilhar suas impressões com os demais
colegas. Durante seus relatos costumavam associar a experiência com
diversão, pois consideravam que a tertúlia era uma maneira de aprender e
realizar a leitura de obras – que até então acreditavam serem inapropriadas
a eles – mas de uma maneira prazerosa e isso se deu, principalmente, porque
podiam dialogar, dividir sentimentos, pensamentos e opiniões. Alguns desses
meninos e meninas chegaram a comentar que, a princípio, acreditavam que
seria apenas mais uma obrigação escolar, chata e sem sentido, porém, com o
passar dos encontros, começaram a se sentir atraídos pelas leituras e apren-
deram a importância de respeitar a fala e a opinião do colega, assim como
descobriram que também possuíam capacidade de compartilhar saberes.

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PETIT, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Tradução de Celina Olga de Souza.
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VALLS, R.; SOLER, M.; FLECHA, R. Lectura Dialógica: Interacciones que mejoran y aceleran
la lectura. Revista Iberoamericana de Educación, Madrid, España, n. 46, p. 71-87. 2008.

recebido em 28 abr. 2017 / aprovado em 5 set. 2017

Para referenciar este texto:


TEIXEIRA, R. A.; FERREIRA, N. O. Tertúlia literária: a escola, a sala de aula e a leitura
dialógica. Dialogia, São Paulo, n. 27, p. 131-143, set./dez. 2017.

Dialogia, São Paulo, n. 27, p. 131-143, set./dez. 2017. 143


144 Dialogia.

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