EBOOK - Ensino de Espanhol Na Infancia

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ENSINO DE ESPANHOL NA INFÂNCIA:

o que dizem os livros didáticos sobre as crianças

Parte I
Livro financiado com recursos do Programa Prodocência (UERJ)

2
Rodrigo da Silva Campos

ENSINO DE ESPANHOL NA INFÂNCIA:


o que dizem os livros didáticos sobre as crianças

Parte I

3
Copyright © Rodrigo da Silva Campos

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos do autor.

Rodrigo da Silva Campos

Ensino de Espanhol na infância: o que dizem os livros didáticos sobre as


crianças. Parte I. São Carlos: Pedro & João Editores, 2023. 119p. 16 x 23 cm.

ISBN: 978-65-265-0480-2 [Digital]

1. Ensino de línguas. 2. Espanhol. 3. Infância. 4. Livros didáticos. I. Título.

CDD – 410/370

Capa: Petricor Design


Arte da capa: Jorge Paulino
Ficha Catalográfica: Hélio Márcio Pajeú – CRB - 8-8828
Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil);
Ana Cláudia Bortolozzi (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida
(UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello
(UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luís Fernando Soares Zuin
(USP/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 – São Carlos – SP
2023

4
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Valcinéa e Osvaldo, que me proporcionaram uma


educação crítica e emancipatória, me permitindo enxergar além das
amarras do racismo estrutural, que impede muitos meninos e
meninas negros e negras, como eu, de progredir. Foi o amor que recebi
deles que me ajudou a chegar até aqui. Muito obrigado!
Ao professor, colega de trabalho e companheiro de lutas Dr.
Bruno Deusdará, do Programa de Pós-Graduação em Letras
(Linguística) da UERJ, pela orientação dada ao longo da minha
pesquisa de doutoramento. Aprendi com ele que é possível
construir uma academia que produz vida.
Ao Programa Prodocência, da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ), por financiar este trabalho e permitir a
divulgação de minha pesquisa de doutorado.
Ao professor Dr. Jorge Paulino, meu companheiro e com quem
eu tenho a honra de dividir a vida, que me ensina tanto todos os
dias e que esteve ao meu lado ao longo de todo o processo de
construção deste percurso investigativo.
A todas as pessoas que leram este texto, deram suas opiniões,
sugeriram ajustes e mudanças de percurso e, de alguma forma,
contribuíram para a realização desta pesquisa. Ela é minha, mas
também é nossa.

5
6
APRESENTAÇÃO

Apresento a Parte I do meu novo livro intitulado "Ensino de


Espanhol na Infância: o que dizem os livros didáticos sobre as
crianças", onde eu, como autor, utilizo uma perspectiva teórico-
metodológica cartográfica (BARROS; KASTRUP, 2015; DELEUZE;
GUATTARI, 1945) para analisar as concepções sobre ensino de
língua adicional para crianças (LAC) presentes nas coleções
didáticas de espanhol Nuevo Recreo e Ventanita al Español, ambas da
editora Santillana.
Além disso, busco verificar como essas concepções se
relacionam com a construção de imagens de criança/infância. Nesta
primeira parte do livro, analiso os referidos manuais didáticos,
mapeando as vozes que enunciam nesses materiais e como elas
contribuem para a construção dessas imagens. Para essa análise,
utilizo o conceito de semântica global (MAINGUENEAU, 2008) em
relação ao estatuto do enunciador e do coenunciador.
Ao longo da análise, apresento quatro estatutos de relação
entre os coenunciadores. Percebo que num primeiro momento, a
imagem discursiva de criança é construída a partir de uma posição
passiva, como se essa fosse um mero executor de tarefas ou um
observador que não interage com o material em questão. Num
segundo momento, essa imagem discursiva de criança se desloca,
pois o aluno é convocado a interagir, a tomar a palavra e a
coenunciar. Com base nessas análises, discuto como essas
concepções e imagens de criança/infância influenciam o ensino de
LAC e como é possível repensá-las para uma abordagem mais
participativa e ativa das crianças no processo de aprendizagem.
Por fim, considero que "Ensino de Espanhol na Infância: o que
dizem os livros didáticos sobre as crianças" é uma obra para todos
os licenciandos(as) e docentes interessados(as) pelo ensino de

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línguas adicionais para crianças e pela reflexão sobre as imagens de
infância que se constroem no processo educacional. Boa leitura!

Prof. Dr. Rodrigo Campos

Rio de Janeiro, 14 de maio de 2023.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1. “O QUE É A CRIANÇA E O QUE É A INFÂNCIA?”: 27


SENTIDOS EM CIRCULAÇÃO
1.1 A criança como tábula-rasa / papel em branco / plantinha 35
1.2 A criança como paraíso perdido / inocência 39
1.3 A criança como um demoninho / um ser selvagem 42
1.4 A criança-escolar e o homem-máquina 44

2. PERCURSOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: O 53
LIVRO DIDÁTICO À LUZ DA CARTOGRAFIA E DA
ANÁLISE DO DISCURSO

3. O ESTATUTO DO ENUNCIADOR E DO 81
COENUNCIADOR EM LIVROS DIDÁTICOS DE
ESPANHOL PARA CRIANÇAS
3.1 Hiperenunciador x coenunciador-aluno 81
3.2 Enunciador-personagem x coenunciador-personagem 86
3.3 Enunciador-personagem x coenunciador-aluno 96
3.4 Enunciador objeto/animal x coenunciador-aluno 106

4. CONSIDERAÇÕES PARCIAIS 113

REFERÊNCIAS 115

SOBRE O AUTOR 119

9
10
INTRODUÇÃO

Começamos este livro com um relato que nos foi


confidenciado por um colega, num contexto de elaboração de
material didático de espanhol para crianças para uma rede
municipal de ensino.
Tal docente, juntamente com outros professores, estava
elaborando o referido material para uso nos anos iniciais
(especificamente 4º e 5º anos) do Ensino Fundamental (EF). Eis que
num determinado momento, propôs uma unidade que abordava o
ambiente escolar a partir do conto do escritor espanhol Manuel
Rivas La lengua de las mariposas.
Após a apresentação de um fragmento do conto, sucediam-se
atividades de relação entre fragmentos do gênero literário
mencionado e imagens. O referido colega diz ter elaborado
perguntas com o intuito de verificar se as hipóteses formuladas
antes da leitura do texto haviam sido confirmadas ou não. Havia
também uma questão para verificar se os alunos reconheceriam as
características e função tipológica predominante no conto, se
identificariam os elementos constituintes do texto narrativo
(personagens, espaço, tempo, etc.) e uma pergunta que pretendia
estimular a inferência como estratégia de leitura.
Não era a melhor atividade do mundo (confidenciou-nos o
docente), mas buscava-se com ela fugir da já clássica apresentação
de conteúdos de língua adicional para crianças (doravante LAC)
mediante listas de palavras e pretendia-se propor um ensino para
crianças a partir de gêneros escritos, com ênfase na compreensão
leitora (mas não só nela). A recepção dos colegas a essa proposta
didática não foi nada boa e ouviram-se os seguintes feedbacks
sobre tal material:

11
“Achei a atividade puxada!”
“Está puxado para o nível de alunos que temos!”
“As atividades estão um pouco pesadas.”
“As atividades poderiam ser mais simples.”
“Está tudo lindo, mas precisamos dosar a mão.”
“Não adianta fazer muitas perguntas elaboradas se eles não são
capazes de responder.”

Tais enunciados sobre a atividade proposta nos chamaram a


atenção, não devido a uma possível crítica ao material elaborado
pelo colega, mas pelos sentidos que se construíram sobre a noção
de “criança-aprendiz de uma língua adicional (LA)”. Observe-se
que, de acordo com tais enunciados, é construída discursivamente
uma imagem de criança que tende ao mais simples, ao mais fácil,
ao “menos pesado” e que ainda não é capaz de realizar tudo o que
poderia ser realizado. Esses enunciados evocam e, por sua vez,
naturalizam a existência de níveis, de uma sequência de
aprendizagem que vai do mais simples ao mais complexo, como se
esse fosse o modo natural (e único) de se ensinar e de se aprender
uma LA. Além disso, esses enunciados evocam um certo desprezo
pelos alunos da rede pública de ensino.
Concordamos com Andrade (1998, p. 143), ao afirmar que “a
sociedade contemporânea desenvolveu uma concepção de infância
instituída tanto pelo Estado moderno quanto pelas teorias
psicológicas do desenvolvimento, em que a criança é vista como
um “ainda não’”. Esse olhar para a criança como um “ainda não”
nos incomoda bastante, conforme se poderá ver ao longo da
presente pesquisa.
Optamos por começar este capítulo introdutório do livro com
uma história que nos atravessou. Os parágrafos que se seguirão
serão também de histórias: falaremos um pouco de nossa trajetória
profissional e acadêmica, pois entendemos que a partir do momento
em que assumimos numa pesquisa a cartografia como perspectiva
teórico-metodológica (que será explicada mais adiante), este relato
ganha relevância. Inclusive porque partindo-se de tal perspectiva

12
epistemológica, é possível afirmar que esta pesquisa não começou
aqui, quando decidimos começar as primeiras palavras deste texto.
A pesquisa emergiu a partir de um campo de experiências que
vivenciamos e que nos conduziram até aqui.
Antes de tudo, cabe explicitar a opção pelo uso do “nós” e não
do “eu” ao longo do presente texto, o que pode parecer estranho
aos olhos do leitor pelo fato de o autor do texto ser uma única
pessoa. Entretanto, trata-se de uma escolha ético-política: o “eu”
nos incomoda e traz uma ideia de voz única, de sujeito que se
apresenta como origem do dizer, como se o que eu penso não
estivesse atravessado por uma massa de tantos outros textos que
constituem o meu dizer. Defendo aqui neste texto o “nós”, pois não
falo sozinho, mas falo com e a partir de tantos outros textos e
autores lidos para que esta pesquisa se concretizasse.
Dito isto, vamos explicar como chegamos à pergunta de
pesquisa, com o propósito de explicitar que o fazer metodológico
não se dá a priori, mas se constrói ao longo de um percurso
acadêmico e profissional e por meio dos encontros que fazemos no
decorrer de nossa trajetória.
Pode-se dizer, portanto, que o presente trabalho começou a ser
gestado a partir de nossa experiência como docente de língua
espanhola inicialmente nos anos finais (6° ao 9° ano) do EF em duas
prefeituras da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro:
Prefeitura de Niterói (Fundação Municipal de Niterói - FME) e
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (Secretaria Municipal de
Educação do Rio de Janeiro –SME-Rio). Trabalhamos como
professores de língua espanhola nas prefeituras supracitadas desde
o início de 2012 com turmas do 6° ao 9° ano.
Em julho de 2013, no entanto, na SME-Rio, fomos convidados
a atuar como professores de língua espanhola nos anos iniciais do
EF (1° ao 5° ano), em outra Unidade Escolar. Tal convite surgiu
como uma oportunidade nova de atuação profissional, haja vista
que nunca havíamos lecionado nos anos iniciais do EF - por um
motivo muito específico: nossa formação em Letras – Português /

13
Espanhol não nos habilita(va), em tese, a atuar como docentes nos
ciclos referidos1.
Tal convite nos deixou muito entusiasmados com a
possibilidade de poder ensinar uma LA a crianças, mas também
não podemos omitir que, juntamente com a alegria da
possibilidade do novo, veio-nos à tona um grande receio de
fracassar nessa empreitada que nos havia sido proposta naquele
momento. Entre o medo que paralisa e o desejo de enfrentar o
desafio, optamos pela segunda opção.
Ao chegarmos a essa escola, situada num bairro da Zona Norte
do Rio de Janeiro, a proposta que nos foi feita pela direção dessa UE
foi a seguinte: a língua espanhola seria oferecida aos alunos num
formato de “disciplina obrigatória extraoficial” do 3° ao 5° ano.
Concretamente, isso significava que não precisávamos seguir
nenhum programa de curso, absolutamente nenhum planejamento
nos foi proposto ou imposto. Houve uma total ausência de
orientação em relação ao trabalho que deveria ou poderia ser
desenvolvido, o que foi, por um lado, muito bom, pois teríamos a
oportunidade de criar um programa de ensino da língua espanhola
para crianças que dialogasse com a perspectiva teórica que
embasava nossa prática e também com as demandas e
especificidades das crianças daquele contexto educacional. Por
outro lado, num contexto completamente novo e sem nenhuma
orientação a ser seguida, nos vimos diante dos seguintes
questionamentos: “O que fazer e como fazer?”.
Nessa UE, assim como em toda a Prefeitura do Rio, o inglês
é a LA oficial do currículo. O ensino dessa língua, especificamente

1 Cabe explicar que a prática do ensino de espanhol nos anos iniciais sempre
existiu extraoficialmente para complementar a carga horária do professor na SME-
RIO. Não se tratava, na época, de um projeto oficial dessa rede de ensino.
Paralelamente a essa extraoficialidade, a SME-RIO começou com a implementação
das escolas bilíngues de inglês e posteriormente de espanhol. A primeira escola
bilíngue de espanhol surgiu ainda em 2014. E as Orientações Curriculares de
Espanhol (do 1º ao 5º ano) surgiram em 2015. Hoje, nós temos ensino de espanhol
para crianças nas chamadas Escolas Bilíngues.

14
nas séries iniciais do EF, faz parte de um projeto político-
linguístico intitulado Rio Criança Global2, cujo objetivo é ofertar o
ensino da língua inglesa desde o primeiro ano do EF até o nono
dessa etapa de ensino.
Cabe destacar que a implantação desse projeto retirou
oficialmente a língua espanhola da grade curricular dessa rede de
ensino para a implantação somente da língua inglesa (antecipando
o que viria anos depois com a chamada Reforma do Ensino Médio).
Essa retirada do espanhol do currículo dessa prefeitura nos colocou
numa posição ainda mais confusa, pois havíamos sido convidados
para ministrar uma disciplina de maneira extraoficial. O espanhol
e nós, enquanto profissionais, nos encontrávamos numa espécie de
limbo profissional.
O projeto Rio Criança Global está fundamentado na crença de
que o ensino de uma única LA ao longo de todo o EF garantirá aos
alunos uma efetiva aprendizagem e tem como foco o
desenvolvimento das quatro habilidades linguísticas: compreensão
oral, compreensão leitora, expressão escrita e expressão oral.
No referido projeto, adota-se um LD escolhido pela Prefeitura
do Rio, que foi elaborado por uma empresa que atua no ensino da

2“O programa Rio Criança Global, criado em 2009 pela Prefeitura do Rio, por meio
da Secretaria Municipal de Educação, tem como objetivo intensificar e estender o
ensino de inglês nas escolas da Prefeitura. Os alunos do 1º ao 3º ano têm uma aula
semanal do idioma, enquanto os estudantes do 4º ao 9º ano têm dois tempos
semanais de inglês, com ênfase na conversação. Até o momento, o programa já
beneficia mais de 500 mil alunos. (...) A SME oferece curso de inglês para os
profissionais das escolas bilíngues, em parceria com a Cultura Inglesa e formação
continuada em metodologia de ensino para professores de Língua Inglesa. As
formações acontecem por meio de diversas ações ao longo do ano para todos que
são funcionários públicos lotados na Secretaria.” O programa no ano de
lançamento deste livro encontra-se extinto pela referida prefeitura. Fragmentos
extraídos da página da Prefeitura do Rio de Janeiro: <http://www.rio.rj.
gov.br/web/sme/exibeconteudo?id=2320722>. Acesso em: 25/03/2023.

15
língua inglesa no âmbito dos cursos livres3. Tal postura nos permite
destacar dois pontos para reflexão:
a.o papel do professor, que se torna um aplicador/reprodutor
de um LD/método que lhe é imposto e lhe é anterior e exterior, não
havendo sido pensado para aquela realidade escolar específica;
b.o uso de um livro didático de LA no contexto escolar que foi
elaborado originalmente para outro contexto (o dos cursos livres)
iguala, de certa forma, se pensarmos o LD como um instrumento (e
um dispositivo) político, os objetivos do ensino de LA nos dois
contextos, o que contraria o que dizem alguns documentos
pensados para nortear o ensino de LA na Educação Básica no Brasil,
tais como PCN (1998) e OCEM (2006).
Tais informações sobre o ensino da língua inglesa nas séries
iniciais do EF na referida prefeitura foram de extrema importância
para que pudéssemos pensar em nossa prática docente, pois diante
do convite de se ensinar o espanhol para crianças num contexto
escolar em que o ensino do inglês possuía elementos norteadores
do trabalho do professor desse idioma, que caminho(s) poderíamos
seguir no exercício de nossa atividade de trabalho, se em relação ao
espanhol não havia nenhuma orientação?
Surgiram, portanto, algumas inquietações que, embora não
sejam o foco da presente pesquisa, valem ser destacadas pelo fato
de nos terem permitido avançar em nossas reflexões sobre o ensino
de espanhol para crianças. Eis os questionamentos que destacamos
a seguir:

3 “Os professores e os coordenadores pedagógicos foram capacitados pela Cultura


Inglesa, no mês de julho. O material didático é composto pelo livro do aluno, o
livro do professor de Inglês, um livro para o professor PII dessas turmas, que o
utilizará em atividades complementares com os alunos, um CD e um DVD. Além
disso, os professores de Inglês ganharão uma caneta inteligente, que deverá ser
utilizada junto com o livro do professor. Essa caneta emite um som em Inglês de
certos conteúdos do livro e dá dicas metodológicas do conteúdo a ser ensinado.”
Fragmento extraído de: <http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/exibeconteudo?
article-id=1100300 >. Acesso em: 20/06/2016.

16
● De que maneira(s) poderíamos ensinar uma LA para
crianças se não tivemos uma formação inicial que nos
“preparasse”4 para tal atividade de trabalho?
● Diante da ausência de documentos norteadores do ensino de
LAC nos anos iniciais do EF, o que deveríamos fazer? Deveríamos
reproduzir nos anos iniciais o que fazíamos nos anos finais, nos
quais ensinávamos a língua espanhola com ênfase na leitura,
visando a formação de leitores críticos?
● Por outro lado, se optássemos por um trabalho focado na
leitura, não poderia se tornar esse ensino desinteressante e
inadequado para as crianças?
● Deveríamos realizar um ensino de língua espanhola baseado
no programa curricular da LA instituída na escola – o inglês (um
ensino principalmente baseado no léxico, sem relação com aspectos
culturais, sociais e históricos)?
Tais questionamentos nos motivaram a querer empreender
uma investigação sobre o ensino de língua adicional para crianças,
mas num primeiro momento, com foco no trabalho do professor de
LAC. Tínhamos como proposta inicial desenvolver uma pesquisa
articulando linguagem e trabalho, numa interface entre a
Linguística, especificamente a Análise de Discurso de base
enunciativa, e a Ergologia5.
Paralelamente a esse desejo de desenvolver a pesquisa, fomos
aprovados num concurso público para a vaga de professor
assistente do Instituto de Letras (Departamento de Letras

4 Não acreditamos que a Formação Inicial possa antecipar e prever a situação real
de trabalho, mas ao usarmos o verbo “preparar” nesse questionamento, trazemos
uma ideia do senso comum. O que, de fato, critica-se aqui é a ausência de reflexões
teórico-práticas ao longo da Formação Inicial sobre o ensino de línguas
estrangeiras para crianças.
5 Para maiores informações sobre essa articulação, ver: SANT'ANNA, V. L. A.;

DAHER, Maria Del Carmen F G. Formação e exercício profissional de professor


de língua espanhola: revendo conceitos e percursos. In: Cristiano Silva de Barros;
Elzimar Goettenauer de Marins Costa. (Org.). Espanhol: ensino médio (Coleção
Explorando o ensino). 1ed.Brasília: Ministério de Educação, Secretaria de
Educação Básica, 2010, v. v.16, p. 55-68.

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Neolatinas / Setor de Espanhol) da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ).
Já como docentes do ensino superior, elaboramos um projeto
de extensão (com o auxílio e incentivo da professora e colega Vera
Sant’Anna) que visava levar para a formação inicial dos
graduandos algum tipo de reflexão teórico-prática sobre o ensino
de LAC.
O projeto, no entanto, não era necessariamente uma novidade,
pois não era a primeira vez que o Instituto de Letras se articulava
em torno a um projeto para atender a novas demandas sociais em
relação ao ensino do espanhol no contexto do Rio de Janeiro.
Durante dez anos, havia sido desenvolvido o projeto de
extensão “O ensino fundamental e o espanhol como língua
estrangeira (UERJ/SME-RJ)”, coordenado pelas professoras Vera
Lúcia de Albuquerque Sant’Anna e Maria Del Carmen F. González
Daher, numa parceria entre a universidade e a Secretaria Municipal
de Educação da Cidade do Rio de Janeiro.
Tal projeto havia nascido de um contato entre a equipe de
professores de espanhol do Instituto de Letras/UERJ, que atuavam
no curso de Especialização de Língua Espanhola – Instrumental
para Leitura e a equipe responsável pela coordenação do grupo de
Língua Portuguesa e Línguas Estrangeiras da SME- RJ.
A partir de um encontro inicial, em janeiro de 1998, houve um
desdobramento das negociações que culminaram em uma parceria
para a implementação de oficinas de língua espanhola,
inicialmente, em duas escolas polo da rede municipal, que a partir
de 1999, devido aos resultados positivos do projeto, tiveram as
atividades expandidas para duas outras UE. Finalmente, em 2000,
incorporou-se ao projeto o Colégio de Aplicação Fernando
Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ), pertencente ao Instituto de
Aplicação, retomando atividades desenvolvidas de 1991 a 1997.
O projeto consistia no oferecimento de oficinas de língua
espanhola no Ensino Fundamental e visava atender a uma
demanda do momento, pois se deu na época em que a SME-RJ
realizou dois concursos públicos para professores de língua

18
espanhola, em 1998 e em 2000, totalizando 317 professores que
atuavam, então, com o ensino de espanhol como língua adicional
no Ensino Fundamental. O CAp-UERJ, por sua vez, também
efetivou dois professores, um em 1995 e outro em 2001, para
atuação exclusivamente no Ensino Médio.
A proposta do projeto era de atuação de graduandos junto ao
Ensino Fundamental da escola pública, a partir de uma perspectiva
que priorizasse a LA não como um valor de “ascensão social” ou
de “modelo superior” a ser alcançado, mas sim como um caminho
para promover o autoconhecimento, desfazer estereótipos,
construir interculturalidades, ou seja, participar do processo de
promoção da cidadania dos alunos. Abria-se, portanto, um novo
espaço de discussões teórico-práticas para que o docente em
formação pudesse refletir sobre a sua futura atividade de trabalho.
O projeto que apresentamos e que estamos desenvolvendo no
momento evoca, portanto, essa experiência bem-sucedida do
passado e visa atender a novas demandas sociais em relação ao
ensino de espanhol, tal como ocorreu anteriormente, conforme foi
relatado, mas com foco na oferta de oficinas de ensino de espanhol
para crianças no CAp-UERJ.
Entendemos e defendemos que a Universidade precisa
incorporar ao seu arcabouço discussões que visem uma reflexão de
ordem teórico-prática sobre a atuação profissional do professor de
língua espanhola para crianças, de modo a dar embasamento ao
docente em formação e também a dialogar com a atual demanda
da sociedade.
Além de haver sido implementado na Prefeitura do Rio de
Janeiro, a partir de concurso realizado em 2012 (ainda que, como
vimos, de maneira extraoficial), o ensino da língua espanhola nos
anos iniciais do EF também integra atualmente a grade curricular
da Prefeitura de Niterói e da Prefeitura de Nova Iguaçu (ambas
cidades da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro).
A relevância do atual projeto de extensão que estamos
desenvolvendo se apresenta ao observarmos o papel da

19
Universidade dentro de seu contexto sociohistórico. Daher e
Sant’Anna (2003, p. 1) nos alertam que

A Universidade precisa estar sensível às mudanças que ocorrem no


seu entorno histórico-social. Isto porque é sua função tanto a reflexão
e a análise desse entorno, quanto a preparação de profissionais que
possam vir a atuar de forma criativa e transformadora nesse meio.
No caso da formação de professores de espanhol como Língua
Estrangeira (E/LE), vemo-nos diante de novas demandas para esse
ensino, para as quais os cursos de Letras ainda não oferecem
disciplinas formalizadas que deem conta dessas necessidades.

Observamos no currículo do curso de licenciatura em Letras:


Português/ Espanhol do Instituto de Letras da UERJ disciplinas de
prática de ensino e de estágio supervisionado que contemplam a
atuação profissional do futuro docente a partir dos seguintes
campos de atuação:
a. Ensino Fundamental (anos finais) e Médio:
- Prática de Ensino em Língua Espanhola I – Ensino
Fundamental e Médio
- Estágio Supervisionado em Língua Espanhola I – Ensino
Fundamental e Médio
b. Cursos livres:
- Prática de Ensino em Língua Espanhola III – Metodologias
de Ensino
c. Educação de Jovens e Adultos:
- Prática de Ensino em Língua Espanhola V – Educação de
Jovens e Adultos
- Ensino Supervisionado em Língua Espanhola III – Educação
de Jovens e Adultos
d. Fins Específicos:
- Prática de Ensino em Língua Espanhola VI – Fins Específicos
- Estágio Supervisionado em Língua Espanhola II – Fins
Específicos

20
Como podemos observar, não constam disciplinas dedicadas ao
ensino de espanhol para crianças. Nosso projeto de extensão surgiu,
então, como já salientado anteriormente, com o objetivo de oferecer
aos licenciandos reflexões teóricas sobre o ensino de espanhol para a
referida faixa etária e sua inserção no currículo da Educação Básica
e atuação prática, no que tange à elaboração de materiais didáticos,
planos de aula, regência e projetos, oferecendo-se aos bolsistas uma
experiência que visa complementar a sua formação.
Cabe salientar que nosso projeto de extensão também tem
como objetivo desenvolver habilidades linguístico-discursivas em
língua espanhola nas crianças do CAp-UERJ (a comunidade
interna atendida pelo projeto), sempre apoiado numa perspectiva
intercultural.
É preciso destacar, no entanto, que a ausência de disciplinas
na Formação Inicial dos graduandos em Letras: Português/
Espanhol que abordam especificamente o ensino de espanhol para
crianças não é exclusividade da UERJ.
Rinaldi (2006, p. 149) salienta que, embora haja uma demanda
cada vez maior da sociedade em relação à inclusão da língua
espanhola na grade curricular dos anos iniciais do EF, em escolas
públicas e em escolas particulares,

carecemos de um curso específico que aborde como empregar


estratégias e atividades adequadas a essas crianças: nem o magistério
de nível secundário nem o de nível superior trazem inseridos em seu
programa práticas específicas de língua estrangeira; a licenciatura
em Letras com habilitação em espanhol não oferece estudos sobre a
docência para crianças (...).

Retomamos o que foi dito anteriormente: num primeiro


momento, o foco de interesse de nossa pesquisa seria o professor
de LAC. No entanto, nossa proposta foi se modificando ao longo
da pesquisa a partir de diversos vetores: textos que caminham
numa interface entre Estudos Discursivos e uma perspectiva
filosófica não-representacional (DELEUZE; GUATTARI, 1995);

21
leituras sobre o método cartográfico e as diferentes possibilidades
que tal modo de se conceber o fazer investigativo implica;
encontros com os bolsistas do projeto que coordenamos, com as
crianças da oficina etc. Percebemos que não queríamos mais ter
como foco o trabalho do professor de LAC, mas entendíamos que
nosso interesse continuava sendo o ensino de LAC. A partir da
delimitação da área temática, empreendemos uma busca por
leituras sobre o assunto. E encontramos, para nossa surpresa,
bastante material publicado no Brasil e em outros países.
Ao encontrar tantas leituras, tivemos que fazer um recorte
inicial e privilegiamos artigos, monografias, dissertações, teses e
livros que vislumbrassem o ensino de LAC no âmbito brasileiro,
preferencialmente no contexto da Educação Básica. Em outras
palavras, foram descartados os trabalhos que versavam sobre
educação em contexto bilíngue, em contexto de migrações, de
fronteira e também foram desconsiderados os trabalhos que
tratavam de LAC no âmbito dos cursos livres.
Tal recorte nos pareceu necessário devido à nossa motivação
anterior (o interesse por pesquisar tal assunto surgiu quando
lecionávamos língua espanhola na Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro para turmas de 3° a 5° anos do EF, conforme explicamos
recentemente) e também devido à nossa atual posição profissional,
na qual atuamos como formadores de professores no ensino
superior. Interessa-nos, portanto, o ensino de LAC pensado na e
pela escola básica (pública, de preferência).
E assim fomos nós, como aprendizes de cartógrafos
(desenvolveremos no capítulo 2 a noção de cartografia), ainda
muito presos ao “tema da pesquisa”, fazer tais leituras. E
começamos a perceber que a cada leitura, a cada texto novo que
encontrávamos, um incômodo surgia. E era um incômodo
crescente. Um incômodo que, de imediato, não sabíamos explicar
qual era exatamente, em função de quê, por qual motivo, etc. A
sensação que tínhamos era que não deveríamos começar a
pesquisa, ou numa formulação cartográfica, habitar o território do

22
ensino de LAC (e consequentemente construí-lo) pensando já o
ensino de línguas para crianças.
A partir de tais inquietações, nos propusemos os seguintes
questionamentos: por que não focalizamos a criança e a infância
também como objetos de estudo para se pensar um ensino de LA a
partir de tais reflexões? Quando vamos olhar para tais conceitos e
deixar de vê-los como algo que não merece problematização, como
um dado natural?
Alguns poderão oferecer como resposta: “isso não é de nossa
área de interesse”. De certa forma, quem assim o afirma, tem um
motivo: os estudos sobre a infância e a criança, geralmente, estão
sendo realizados pela Educação, pela Sociologia, pela
Antropologia, pela Psicologia, pela Filosofia etc. Não caberia,
então, a um pesquisador linguista aplicado investigar a infância e
a criança, já que esses saberes seriam, em tese, de outros campos.
Pois nós pensamos diferente: lembram daquele incômodo que
sentíamos ao ler as pesquisas sobre LAC? Com o passar dos meses
e após discussões com outros colegas e com o orientador,
começamos a perceber que tal estranhamento advinha muito em
função dessa ausência da criança (ou presença como objeto
naturalizado) nas pesquisas sobre ensino de LAC. E, portanto,
decidimos, habitar também esse território dos estudos sobre
criança e infância para poder tentar entender de que maneira(s) a
criança e a infância são teorizadas nesses outros campos do saber.
Isso nos pareceu muito importante, pois como podemos
pensar, do ponto de vista da Linguística Aplicada, um ensino de
LAC sem dialogar com quem vem ao longo de anos estudando a
criança e a infância? Que ensino de língua adicional é esse que
estamos propondo sem promover leituras, diálogos com os
educadores, pedagogos, antropólogos, filósofos e sociólogos da
infância? Por que um linguista aplicado/analista do
discurso/aprendiz de cartógrafo não poderia também habitar esses
espaços, traçar intercessões, estabelecer diálogos, refletir, deslocar
conceitos e também contribuir para construção de sentidos de
infância e de criança?

23
Fomos, então, a partir desse incômodo inicial, em busca de
leituras que tratassem do binômio “infância/criança”. E ao nos
depararmos com tais leituras, dialogando sempre com a
perspectiva cartográfica de não representação do objeto,
começamos a ver que nossa necessidade crescente era primeiro
pensar em como essa criança/infância foi/vem sendo construída
discursivamente ao longo da história (não numa perspectiva
cronológica6, pois não era nosso objetivo, mas por meio de
processos, pelo encontro de teorizações e práticas) para depois
pensar no ensino de LA.
Poderiam nos perguntar: “o foco da pesquisa não estaria
sendo alterado, então?” Num primeiro momento, diríamos que
SIM e isso é ótimo, do ponto de vista do fazer cartográfico, pois
sinaliza que não estávamos preconcebendo o objeto, mas
construindo-o ao longo do processo. Essa é a proposta da
cartografia como perspectiva teórico-metodológica.
Podemos manejar as linhas que compõem o percurso
ampliando o campo de problematizações, justamente porque ele não
está dado a priori. Assumimos, em nosso movimento, um
deslocamento em relação à própria imagem da instituição-pesquisa.
No lugar de “buscar soluções” para os problemas, estamos
propondo uma ampliação do nosso campo de problematizações.
Entendemos que a função do pesquisador cartógrafo, muito mais do
que apontar para “solução de problemas”, é reivindicar o paradigma
da “colocação de problemas”.
Concordamos com o questionamento feito por Corazza (2004,
p. 34):

De onde tirarei essa história das relações de poder-saber e das formas


de subjetivação do modo moderno de ser infantil? Ela não está em
nenhum lugar, à espera de que eu vá buscá-la; ao contrário, ela será

6Entendemos que um recorte cronológico e linear é também um modo de conceber


a História e não pode ser naturalizado como a única possibilidade de apresentar
uma historicidade.

24
moldada, cortada, alinhavada e costurada com os utensílios teóricos
de que disponho.

A partir do exposto até aqui, com base em toda essa trajetória


profissional e acadêmica narrada anteriormente, a presente
pesquisa tem como objetivo responder aos seguintes
questionamentos:
• Que concepções sobre ensino de língua adicional para
crianças se constroem nos livros didáticos Nuevo Recreo e Ventanita
al Español e na fala dos sujeitos-criança da Oficina de Espanhol do
CAp-UERJ?
• De que maneira as concepções de ensino de LAC observadas
se relacionam com uma construção de imagens de criança /
infância?
Nosso objetivo com a presente investigação é tornar visíveis
distintos posicionamentos discursivos acerca de concepções de
ensino de LAC, tanto os que circulam nos LDs analisados quanto
os trazidos pelos sujeitos-criança com quem dialogamos ao longo
da pesquisa.
A partir desses questionamentos, almejamos:
a. Observar as concepções de ensino de LAC que se constroem
discursivamente ao longo dos LDs;
b. Mapear as vozes circulantes nos LDs e verificar de que
maneira determinados modos de enunciação contribuem ou não
para a construção de imagens de criança / infância;
c. Analisar os discursos produzidos pelos sujeitos-criança da
Oficina de Espanhol do CAp-UERJ sobre os LDs e verificar que
imagens de ensino de LAC e criança / infância se constroem a partir
de seus posicionamentos;
d. Contribuir com o campo dos estudos sobre ensino-
aprendizagem de LAC e estudos sobre a infância.
Este livro está dividido em dois volumes, sendo este o
primeiro. Nesta obra, faremos uma breve discussão sobre
diferentes visões sobre criança e infância a partir do
entrecruzamento de teóricos que lemos ao longo desta pesquisa. A

25
ideia é apresentar um apanhado de visões que costumam aparecer
em nossa sociedade sobre os referidos sujeitos de pesquisa e como
tais visões podem ser prejudiciais para pensarmos nas crianças
como público-alvo de nossas aulas de LA.
Depois, apresentamos a Parte II, intitulada “O livro didático
de espanhol para crianças”, que contém os capítulos 2 e 3. No
primeiro, apresentamos nossos percursos teórico-metodológicos
no que tange à análise de livros didáticos de espanhol para
crianças. Também é nesse capítulo que abordamos a cartografia e a
análise do discurso como arcabouço epistemológico para este
trabalho. No capítulo 3, apresentamos a primeira etapa de análise,
que consiste na análise das diferentes vozes que enunciam em dois
LDs de espanhol para crianças (Nuevo Recreo e Ventanita en Español).
Assim nos posicionamos como pesquisador cartógrafo-
aprendiz: as considerações que teceremos nos tópicos a seguir
sobre as noções de criança e infância não estavam prontas nos
textos que lemos e com os quais nos encontramos. Não assumimos
aqui uma atitude extrativista, de coleta de informações para uma
revisão da literatura. O texto que se segue está mais para um
grande ensaio rizomático, no qual faremos intercessões e
estabeleceremos relações entre diferentes teóricos de diferentes
tempos, espaços e perspectivas teóricas para se propor uma
reflexão sobre conceitos tão importantes a quem deseja se dedicar
ao ensino de LAC. Vamos a eles.

26
1. “O QUE É A CRIANÇA E O QUE É A INFÂNCIA?”:
SENTIDOS EM CIRCULAÇÃO

As perguntas que se apresentam no título deste capítulo


precisam antes de tudo de uma correção: não falaremos do que a
criança / a infância é ou deixa de ser, pois o verbo ser indica estado,
rigidez, permanência e estabilidade de sentido, de modo que uma
concepção engessada e preconcebida não nos auxiliaria a observar
os sentidos em construção sobre o binômio sobre o qual queremos
dissertar. Ao assumirmos tal atitude, concordamos com Cohn
(2005), ao apresentar os seguintes questionamentos:

O que é a criança? O que é ser criança? Como vivem e pensam as


crianças? O que significa a infância? Quando ela acaba? Perguntas nada
simples de responder. Pelo contrário, elas podem esconder uma
armadilha. Afinal, as crianças estão em toda parte, todos fomos crianças
um dia, todos temos, desejamos ou não desejamos ter crianças. A
literatura nos oferece textos de autores famosos que nos contam sua
infância, poetas românticos falam com nostalgia de seu tempo de
criança. É como se tudo já fosse sabido, como se não houvesse espaço
para dúvidas. Mas não é bem assim (COHN, 2005, p. 35, 36).

Portanto, transformemos as perguntas: “O que é a criança? / O


que é a infância?” por “De que forma práticas discursivas diversas têm
produzido como efeito um objeto que temos chamado de ‘criança’?”
Comecemos indo ao dicionário, que, segundo o senso comum,
é o lugar no qual estão os significados das palavras. O dicionário é
vislumbrado, usualmente, como um armazém de palavras, mas
não podemos desconsiderar que o dicionário recompila e armazena
palavras que, de certa forma, circulam/circulavam socialmente.
Portanto, os significados dicionarizados são recortes de uma
discursividade e apontam para alguns usos mais recorrentes, mas

27
não anulam o pressuposto de que os sentidos se constroem (ou se
atualizam) em cada enunciado.
Foram consultados nos dicionários online Priberam da Língua
Portuguesa, Michaelis e Aulete os termos “infância” e “criança”
com o objetivo de se observar quais são os sentidos recompilados e
indicados como os do senso comum:

Quadro 1 – Significados de infância segundo o dicionário Priberam


infância
1. Período de vida humana desde o nascimento até à puberdade.
2. [Figurado] As crianças.
3. [Figurado] Começo, princípio, os primeiros anos.
Fonte: https://www.priberam.pt/dlpo/inf%C3%A2ncia Acesso em: 31 dez. 2017

Quadro 2 – Significados de infância segundo o dicionário Michaelis


infância
1. Período da vida, no ser humano, que vai desde o nascimento até o
início da adolescência; meninice, puerícia: Passou a infância no interior.
2. As crianças em geral: A educação da infância é o tema central de sua
obra.
3. FIG Primeiro período da existência de uma sociedade ou de uma
instituição.
4. FIG O começo da existência de alguma coisa: “A sua câmara é uma
caixa velhíssima, relíquia da infância da fotografia” (EV).
5. FIG Estado de espírito em que não há malícia; credulidade,
ingenuidade, inocência.
Fonte: http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues
brasileiro/inf%C3%A2ncia/. Acesso em: 31 dez. 2017

Quadro 3 – Significados de infância segundo o dicionário Aulete


infância
1. Período da vida humana que vai do nascimento à adolescência
(amigo de infância); PUERÍCIA [Antôn.: velhice]
2. Jur. Período da vida definido, legalmente, como aquele que vai
desde o nascimento até os 12 anos, quando começa a adolescência
3. Atotalidadedascriançasdeumlugar,deumaépocaetc.: a infância
brasileira.

28
4. Fig. Início, começo de um elemento, entidade, instituição etc.
(infância da empresa; infância do expressionismo). [Antôn.: fim.]
5. Fig. Vivência e percepção do mundo a partir do olhar ou do
universo infantil: "E a gente não se cansa/ De ser criança/ Da gente
brincar/ Da nossa velha infância" (Arnaldo Antunes, Carlinhos
Brown e Marisa Monte, Velha infância)
6. Bras. Pop. Ingenuidade, simplicidade, inocência.
[F.: Do lat. infantia, ae.]

Fonte: http://www.aulete.com.br/inf%C3%A2ncia Acesso em: 31 dez. 2017.

Quadro 4 – Significados de criança segundo o dicionário Priberam


criança (criar + -ança)
1.Menino ou menina no período da infância.
2.[Figurado] Pessoa estouvada, pouco séria, de pouco juízo.
3.Educação.
4.[Antigo] Criação, cria.
Fonte: https://www.priberam.pt/dlpo/crian%C3%A7a. Acesso em: 31 dez. 2017.

Quadro 5 – Significados de criança segundo o dicionário Michaelis


criança
1Ser humano no período da infância; menino ou menina.
2POR EXT Pessoa que está no limiar da vida adulta, mas que ainda é
jovem.
3Filho ou filha ainda pequeno ou jovem; cria. 4 FUT, COLOQ A bola de
futebol; pelota.
adj m+f sf
Diz-se de ou pessoa que, já madura, se entretém com coisas pueris ou se
comporta de modo infantil.
Fonte: http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-
brasileiro/crian%C3%A7a/ Acesso em: 31 dez. 2017.

29
Quadro 6 – Significados de criança segundo o dicionário Aulete
criança
1.Ser humano, menino ou menina, com idade infantil, entre o
nascimento e o início da puberdade
2.Fig. Pessoa ainda não adulta, ou muito jovem [Pode ser termo
amistosamente jocoso, como referência a alguém mais jovem do que
quem o usa: Você só tem quarenta anos? Mas é uma criança!]
3.Fig. Pessoa ingênua, inexperiente, infantil: Ele é uma criança, acredita
em tudo que lhe dizem.
4.Cria, filho: Casaram há pouco tempo, mas já têm duas crianças.:
a criança da vaca
5.Gír. Fut. Em gíria de locutores de futebol, a bola: Matou a criança no
peito e chutou.
6.Fig. Diz-se de pessoa ingênua, inexperiente,infantil: Arranjou um
namorado muito criança. [ Antôn.: adulto, maduro. ]
Fonte: http://www.aulete.com.br/crian%C3%A7a Acesso em: 31 dez. 2017

Observa-se, de acordo com as definições apresentadas, certa


tendência de naturalização dos referidos termos. Infância define-se
como um “período da vida humana desde o nascimento até a
puberdade” ou como, num sentido figurado, o princípio, início de
algo ou de um processo. Também se define infância como sinônimo
de crianças. Criança, por sua vez, define-se como “menino ou
menina no período da infância”. Um termo se explica pelo outro,
pelo menos a partir desses três dicionários consultados: a infância
seria um determinado período da vida que se limitaria até o início
da adolescência e criança seria qualquer ser humano que se
encontraria nessa fase da vida.
Essa infância, no entanto, concebida como uma categoria
universal e atemporal, vem sendo repensada por sociólogos,
filósofos e antropólogos.
Belloni (2009, p. 2) salienta que

a ideia de infância, fruto das representações da sociedade, varia


segundo o momento histórico e as diferentes sociedades ou culturas:
não há uma infância universal, unívoca, uniforme. Existem muitas
infâncias, multiformes, diversas, particulares. Embora possa ser

30
identificada por características biológicas comuns em toda a espécie
humana, essa aparente naturalidade da infância não é suficiente para
compensar as profundas diferenças de ordem histórica,
antropológica e sociológica que distinguem as diferentes infâncias
no mundo de hoje.

Se formos ao buscador Google, por exemplo, e digitarmos os


termos “crianças”/ “infância”, podemos observar que há uma certa
imagem reiterada dessa infância e dessa criança, conforme
podemos observar a seguir:

Imagem 1 – Resultado de busca na página Google - crianças

31
Imagem 2 – Resultado de busca na página Google - crianças

Fonte das imagens 1 e 2: GOOGLE, 2017.

Imagem 3 – Resultado de busca na página Google - infância

32
Imagem 4 – Resultado de busca na página Google – infância

Fonte das imagens 3 e 4: GOOGLE, 2017.

Algumas observações que podemos fazer a partir de tais


imagens reiteradas de criança e de infância que aparecem nesse
buscador:
• Há um predomínio de crianças brancas;
• Há um predomínio de imagens ambientadas em jardins,
gramas, dias de sol, atividades ao ar livre, etc.;
• As imagens apresentam muitos sorrisos, o que pode sugerir
uma ideia de felicidade inerente a essa etapa da vida;
• As crianças se apresentam com referências a brincadeiras,
jogos, brinquedos, etc.;
• Há uma forte presença das cores ao longo das imagens;
• Há um certo apelo ao coletivo, pois a maior parte das
imagens apresenta crianças em grupo desenvolvendo algum tipo
de atividade. Pode-se pensar numa construção de infância e de
criança que se dê por meio do social, da interação com outras
crianças e não de maneira individualizada.
Podemos pensar que essas imagens reiteradas trabalham com
o conceito de criança / infância de forma metafísica, essencializada
e universalizada, pois invisibilizam outras formas do devir-criança.
Não constam as crianças negras, periféricas, as que vendem bala

33
nos semáforos, as que estão em posição de vulnerabilidade, por
exemplo. Não seriam também esses outros modos de atualização
da infância? Cohn reconhece que “falar de uma cultura infantil é
um retrocesso em todo o esforço de fazer uma antropologia da
criança: é universalizar, negando as particularidades socioculturais
(COHN, 2005, p. 35, 36)”.
Como, então, ir além de uma concepção idealizada? Como
cartógrafos, entendemos que precisamos observar alguns discursos
que circulam no senso comum sobre infância / criança e que, como
consequência, contribuem para construí-las. Para isso, vamos
propor nos próximos subitens, um exercício de observação de
sentidos construídos discursivamente sobre infância/ criança a
partir das categorias elencadas por Cohn (2005).
Cohn (2005, p. 35, 36) salienta que

mesmo se fôssemos recolher todas essas informações sobre a infância


e as crianças, veríamos que um punhado de ideias diferentes se
apresentam. A criança pode ser a tábula rasa a ser instruída e
formada moralmente, ou o lugar do paraíso perdido, quando somos
plenamente o que jamais seremos de novo. Ela pode ser a inocência
(e por isso a nostalgia de um tempo que já passou) ou um
demoninho.

Portanto, com base em Cohn (2005), nos próximos subitens


vamos explorar sentidos sobre criança/ infância a partir das
metáforas seguintes:
a. Criança como tábula-rasa, papel em branco ou como
plantinha;
b. Criança como paraíso perdido ou inocência;
c. Criança como um demoninho ou um ser selvagem.
Posteriormente, faremos uma breve discussão sobre a noção
de criança/infância com a qual trabalharemos ao longo desta
pesquisa.

34
1.1 A criança como tábula-rasa / papel em branco / plantinha

Todo mundo (arriscamos aqui uma generalização) em algum


momento da vida, mesmo que não a tenha vivenciado quando
criança, já ouviu falar em “jardim de infância”. Tal expressão é
atribuída, usualmente, ao ensino pré-escolar (para crianças menores
de seis anos), também sendo conhecido popularmente como “pré-
escola”. Institucionalmente, de acordo com a legislação educacional
brasileira, tal etapa da escolaridade se denomina Educação Infantil e
antecede o Ensino Fundamental e o processo de alfabetização da
criança, que se dará no 1° ano do EF. Mas será que já paramos para
prestar a atenção no termo “jardim de infância”? Que concepção de
infância e de criança se constrói discursivamente quando se assume
um espaço para educação infantil intitulado de “jardim”?
De acordo com Meneses e Santos (2001)7,

a ideia de “jardim de infância” é atribuída ao alemão Friedrich


Froebel, influenciado pelas teorias de Johann Pestalozzi, fundador
dos primeiros ensaios no atendimento infantil institucionalizado.
Froebel fundou o primeiro jardim de infância em 1873, propondo
que seria um lugar onde as crianças estariam livres para aprender
sobre si e sobre o mundo, com manuseio de objetos e participação
em atividades lúdicas. Froebel defendia o uso pedagógico de jogos e
brinquedos, que deviam ser organizados e sutilmente dirigidos pelo
professor. As crianças seriam consideradas como “plantinhas” de
um jardim, do qual o professor seria o jardineiro.

A partir do fragmento grifado por nós, podemos observar que


as crianças são consideradas “plantinhas” e o professor o
“jardineiro”. Essa metáfora da criança como plantinha evoca alguns
sentidos: primeiro, a planta precisa ser regada, protegida, cuidada e
alimentada para que possa crescer e dar frutos no futuro, o que

7MENEZES, Ebenezer Takuno de; SANTOS, Thais Helena dos. Verbete jardim de
infância. Dicionário Interativo da Educação Brasileira - Educabrasil. São Paulo:
Midiamix, 2001. Disponível em: <http://www.educabrasil.com.br/jardim-de-
infancia/>. Acesso em: 01 de jan. 2018.

35
remete a uma ideia de infância como um eterno “ainda não”, como
uma constante preparação para dias vindouros. Não podemos
esquecer que tal metáfora também se relaciona com as práticas
profissionais de cultivo. A formação é vista como um cultivo que
semeia florescimentos, acompanha crescimentos e poda excessos.
A ideia do jardim de infância e da criança como plantinha, a
partir dos pressupostos de Froebel, pode ser considerada positiva
e um avanço dentro do contexto histórico em que surge, se
pensarmos que antes não havia a preocupação de se pensar na
infância como necessariamente uma fase especial da vida e,
consequentemente, não se idealizava a criança como um sujeito que
requereria cuidados especiais8.
A metáfora da plantinha, que pode sugerir uma ideia de
coisificação e animalização da criança (numa perspectiva que se
afastaria de Froebel), já figurava em Comenius (2011, p. 11), no
livro “A escola da infância”, escrito no século XVII:

Ninguém pense que a juventude possa ser formada voluntariamente


e sem esforços. Pois uma pequena muda não se transforma em
árvore se não for plantada, regada, cuidada, protegida e escorada; a
madeira precisa ser cortada, aplainada, entalhada, polida e pintada
de diversas cores para ser usada; o cavalo, o boi, o burro precisam
ser adestrados para serem úteis ao homem. O próprio homem

8 Froebel compartilhava a ideia de que a criança é como uma planta em sua fase
de formação, exigindo cuidados periódicos para que cresça de maneira saudável.
Existe um misticismo nessa perspectiva, um papel divinizante, moralizante, mas
não diríamos propriamente uma coisificação. A criança trazia em si a semente
divina de tudo o que há de melhor no ser humano. Caberia à educação
desenvolver essa semente. O autor considera inclusive a importância de deixar a
criança livre para expressar seu interior e perseguir seus interesses. As atividades,
segundo ele, deviam centrar-se nos interesses e necessidades da criança,
respeitando seu ritmo natural de desenvolvimento. Existe, portanto, uma
preocupação que fossem desenvolvidas atividades ao ar livre para que as crianças
interagissem com o ambiente. Um elemento importante é que tal teórico
considerava a Educação Infantil, mediante o trabalho criativo lúdico,
indispensável para a formação da criança - e essa ideia sustenta parte dos teóricos
da Educação que vieram depois dele.

36
precisa ser preparado para os diversos movimentos do corpo que o
habilitam a comer, beber, correr, falar, pegar com as mãos e
trabalhar. Como então alguém poderia espontaneamente ficar perito
nessas coisas superiores e distantes dos sentidos que são a fé, a
virtude, a sabedoria e a ciência? Isso é obviamente impossível (...).
(COMENIUS, 2011, p. 11)

No fragmento anterior, observa-se não somente a questão da


coisificação da criança em planta, como também uma proposta de
controle dos corpos para um futuro posterior.
Além disso, pressupõe uma criança dependente (construída
por práticas que reforçam a dependência como elemento
constitutivo da infância), que não aportaria nada a essa relação que
se construiria em tal jardim entre aluno – professor, pois assim
como a planta depende do cuidado do jardineiro, a criança
dependeria do professor, que seria aquele que deteria os saberes
necessários para o seu pleno desenvolvimento.
Comenius, considerado o fundador da didática moderna,
desenvolveu no referido livro sua concepção de educação,
vislumbrada por ele como um processo universal de formação, de
que a própria vida seria uma escola. Enfatiza-se, portanto, a
importância de se ir, ao longo da vida, “podando” as plantas do
jardim, isto é, ir por meio da educação e instrução “cuidando,
protegendo, escorando, cortando e polindo9” as crianças.
Também pode-se pensar na educação como práticas de
semear, isto é, sendo as crianças “sementes” que gerarão “frutos”
no futuro, de forma que a infância seria uma etapa da vida de
preparação para a vida adulta. Aqui, ainda estamos no âmbito da
metáfora da plantinha, mas há um deslocamento mínimo que
estamos propondo a partir de nossas leituras: os estudos são as
sementes que gerarão frutos advindos dessa árvore. Uma falha
nessa educação infantil poderia gerar adultos tortos, assim como
plantas que não recebem nenhum tipo de poda. Esse papel caberia,

9 Termos usados por Comenius na citação anterior.

37
segundo o autor, ao “jardineiro-professor” e também às instâncias
religiosas e familiares, conforme podemos observar:

Ainda que seja fácil para Deus mudar o perverso crônico ainda em
germe e torná-lo bom, raramente a natureza altera algo que já
começou a tomar determinada forma desde o início: o processo
continua até a formação se completar. Os frutos colhidos na velhice
são determinados pelas sementes plantadas na juventude, como diz
o ditado: os estudos na juventude são os prazeres da maturidade. (...)
Por isso os pais repartem a educação de seus filhos com os
professores da escola e os ministros da Igreja, pois não é possível
endireitar a árvore que cresceu torta ou ergueu um pomar plantando
no meio do mato (COMENIUS, 2011, p. 15, 16).

A metáfora da “plantinha” também é usada por Montaigne.


Segundo o filósofo, o que antecede à semeadura é certo e fácil,
assim como plantar; as dificuldades e os desafios se apresentariam
depois que a planta germinasse, fazendo-se um paralelismo com a
etapa de educação formal das crianças: “(...) depois de brotar o que
se plantou, difíceis e variadas são as maneiras de tratá-lo. Assim os
homens: pouco custa semeá-los, mas depois de nascidos, educá-los
e instruí-los é tarefa complexa, trabalhosa e temível”
(MONTAIGNE, 1972, p. 80).
A criança concebida como tábula rasa e como folha em branco
são imagens que se constroem ainda com a mesma noção de
categoria vazia, objetificação, atribuindo ao professor o centro do
processo de ensino-aprendizagem, como aquele que vai preencher
a folha em branco que seria a criança. Anula-se toda uma inscrição
sociohistórica de cada criança, pois seriam desconsideradas as
especificidades que conformam cada singularidade a partir dos
encontros e das vivências de cada criança com o seu entorno social.
As metáforas apresentadas aqui tendem a contribuir para uma
construção de sentidos de objetificação da criança (à exceção da
perspectiva de Froebel). Vejamos outra metáfora relacionada à
criança no próximo subitem.

38
1.2 A criança como paraíso perdido / inocência

“Saudades da minha infância... Aquela que era época boa”.


Quem nunca ouviu em alguma conversa informal esses enunciados
ou outros semelhantes? São enunciados que evocam a infância e a
criança em si como um paraíso perdido, isto é, uma época da vida
áurea, na qual tudo era harmônico e equilibrado. É a infância como
um paraíso mítico, um lugar / um tempo que não voltará jamais,
irrecuperável e que, por esse mesmo motivo, evoca essa ideia de
nostalgia em relação ao passado.
Essa ideia do paraíso perdido atravessa as nossas construções
discursivas sobre as crianças, de modo que construímos uma
imagem de criança como sinônimo de inocência. Há um
achatamento de devires, uma naturalização da questão. Toma-se
como pressuposto de que a criança é inocente e ponto final. Tal visão
nos faz (re)pensar a própria vida: se a criança é originalmente
inocente, pura, angelical, quase um ser sacralizado (“Olha que
criança linda... Parece um anjinho!” – Quem nunca ouviu ou disse
isso?), então à medida que se cresce, a dita inocência vai se perdendo.
Comenius já havia sinalizado em sua obra a sacralização da
criança:

Mesmo olhando para as crianças da atualidade, facilmente


percebemos porque elas têm um valor inestimável para Deus e que
o mesmo deveria suceder com seus pais. Primeiro, porque as
crianças são imagens não contaminadas de Deus, são inocentes
(Jonas 4, 11). Exceto pelo pecado original, não estão maculadas por
nada, são incapazes de distinguir entre o bem e o mal, entre a direita
e a esquerda, como corroboram os testemunhos de Jonas e outros (...).
Em segundo lugar, porque as crianças são os bens mais puros e
queridos possuídos por Cristo (...). Para entender por que os filhos
devem ser queridos pelos pais mais do que o ouro e a prata, que
pérolas e joias, basta compararmos essas dádivas. Primeiro, o ouro,
a prata e a outras coisas do gênero são inanimadas, como a terra sob
nossos pés, apenas um pouco mais puras e lapidadas, enquanto as
crianças são imagens vivas de Deus vivo (COMENIUS, 2011, p. 3, 4).

39
Nesse caso, o adulto seria a degradação da criança mítica, isto
é, à medida que crescemos, vamos perdendo essa inocência original
e vamos assim nos tornando seres mais mundanos, contra a nossa
natureza, conforme sinaliza Rousseau, por meio de comparações:

Tudo é certo em saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera
nas mãos do homem. Ele obriga uma terra a nutrir as produções de
outra, uma árvore a dar frutos de outra; mistura e confunde os
climas, as estações; mutila seu cão, seu cavalo, seu escravo;
transtorna tudo, desfigura tudo; (...) não quer nada como o fez a
natureza (...) (ROUSSEAU, 1968, p. 9).

Tal concepção da infância como um paraíso perdido remonta


a uma noção desenvolvida pelo filósofo Rousseau em sua obra
“Emílio ou da educação”, um tratado de educação no qual o autor
discorre sobre uma infância plenamente livre de qualquer
maldade.
Pereira (2012, p. 70) sinaliza que se constrói em Emilio (e no
pensamento rousseauriano, de maneira geral) uma noção
metafísica, romântica, essencialista e idealista de infância: “Ao
operar com uma ideia de natureza vinculada diretamente à busca
de uma essência, a concepção de infância em Rousseau
fundamenta-se nas bases do pensamento metafísico da identidade,
da correspondência e da busca de verdades”.
Frequentemente, tentamos evocar mesmo na fase adulta, esse
nosso lado primitivo mítico, como se ele morasse dentro de nós,
como se essa inocência não se perdesse por completo ao longo da
vida. Um exemplo emblemático dessa construção discursiva
nostálgica sobre a criança / infância pode ser observado no poema
“Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu:

40
Meus oito anos10

Oh! que saudades que tenho


Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais! (...)

No poema, a infância é denominada de “aurora de minha


vida”, comparando-a ao nascer do dia. A infância seria essa manhã,
esses primeiros raios de sol do dia (da vida) de alguém, dialogando
com o significado dicionarizado visto anteriormente. Corazza
também problematiza essa visão da criança / infância:

Parece que, por muito tempo, teríamos encontrado um mito de


origem do sujeito moderno e nele buscaríamos até hoje nossa
verdade primeva (...), mecanismo de representação do melhor e do
mais real do humano; mecanismo de representação fiel que serve
para explicar a unidade de sua natureza; ou, em linguagem figurada:
mundo maravilhoso e encantado; jardim das delícias; paraíso da
pureza e inocência pletóricas; viveiro de felicidades; subterrâneo não
socializado – selvagem, arcaico, primitivo, insondável, belo, inato,
perfeito, livre -, onde mora o que foi reprimido posteriormente; em
suma, aurora de nossas vidas. (CORAZZA, 2004, p. 17)

A metáfora da criança como paraíso perdido / sinônimo de


inocência vai em direção oposta à metáfora vista anteriormente, da
criança como plantinha: antes a criança era vista como um “ainda
não”, sendo a infância apenas uma etapa de preparação para a
posterior vida adulta. A infância seria o momento de investir na
educação da criança visando o seu pleno desenvolvimento no
futuro, na vida adulta. Logo, a fase adulta é mais valorizada do que
a própria infância, pois é lá que o ser humano estará plenamente
desenvolvido.

10Casimiro de Abreu. Meus oito anos. In: Laurito Ilka. Casimiro de Abreu: seleção de
textos, notas, estudos biográficos, histórico e críticos e exercícios. São Paulo: Abril
Educação, 1982, p. 16 – 7.

41
Aqui, observa-se o contrário: a criança é o paraíso perdido.
Logo, o adulto representa a degradação do “ser criança”, devido à
perda dessa dita inocência. Na metáfora apresentada neste
subitem, portanto, a infância é mais valorizada do que a vida
adulta. Os adultos seriam corruptelas, deturpações do ser criança.
Se por um lado a criança é construída discursivamente pelo
viés da sacralização, do essencialismo e da inocência primitiva, por
outro lado também é concebida (como efeito de práticas distintas)
via discurso como um ser selvagem, animalesco e perverso. É a
metáfora que discutiremos no próximo tópico.

1.3 A criança como um demoninho / um ser selvagem

“Essa criança é uma pestinha.” “Que criança levada! Não tem


limites”. São alguns enunciados que podemos ter escutado ou
proferido alguma vez na vida em relação a alguma criança.
Observe-se que uma criança considerada “pestinha”, travessa,
endiabrada, sem limites, opõe-se diretamente à imagem metafórica
do anjinho, da inocência pura e do paraíso perdido.
Tal crença se desenvolve a partir do senso comum, no qual
tende-se a acreditar que o homem, por natureza, estaria propicio a
se conduzir pelo caminho da maldade, colocando para fora um
lado obscuro que lhe seria inato, como numa espécie de
predisposição para a maldade e a perversidade. Gimeno Sacristán
(2005, p. 88) destaca de que forma a criança pode ser entendida
como um ser “do mal”:

Se o mal foi visto como sendo inerente ao ser ou ao menos ao existir


do animal humano, como a infância iria ficar preservada dessa
negatividade? Por que iria se eximir o menor dessa malignidade?
Não existe a tentação de acreditar que é precisamente nessa etapa
que pode ser gerada essa dimensão ou que nela se vê e se expressa
com mais naturalidade? Se tantas qualidades ou traços do caráter do
adulto são forjados enquanto são menores, por que essa explicação
não poderia ser dada para compreender a perversidade humana?
Existe uma longa tradição que vê com receio, medo e até temor a

42
natureza irrefreável, e inclusive perversa, que as crianças mostram
ocasionalmente, algumas delas em especial. O menor é amado e
pensado como inocente, mas também sobre ele recai a suspeita de
ser uma ameaça para os demais e para a ordem social.

Como pode o mesmo objeto ser vislumbrado discursivamente


por modelos tão antagônicos (um ser angelical e um ser do mal)?
Ou será que existiria necessariamente um antagonismo nessas duas
posições? Não seriamos, nós adultos, constituídos de momentos
endiabrados e momentos angelicais? Por que, então, espera-se que
a criança seja uma coisa ou outra? São questões para que reflitamos
sobre o quão contraditórias são essas identidades que querem colar
à criança, sempre ainda no âmbito do essencialismo. Corazza
destaca essa relação ambígua entre as duas faces do ser infantil:

(...) o infantil-dependente possui duas faces díspares: uma parte útil,


de “animal domesticável”, que serve de alavanca ao trabalho
pedagógico; a outra parte, “bicho selvagem”, a qual cabe manter sob
vigilância, transformar em faltas, submeter à punição da sexualidade
e da dependência, enquanto produz o remorso e a vergonha por ser
o que é. (CORAZZA, 2004, p. 343, 344)

Pereira, por sua vez, sinaliza, de acordo com uma perspectiva


cartesiana, que “a infância é um mal necessário, uma condição
próxima do estado animalesco e primitivo, e que, como as crianças
são seres privados de razão, elas devem ser corrigidas nas suas
tendências selvagens (...)” (PEREIRA, 2012, p. 23).
E tal correção desse estado selvagem e animalesco se daria por
meio da educação, que incutiria razão à criança, formando um
sujeito emancipado, capaz de controlar seus instintos mais
primitivos. A escola, portanto, assumiria esse lugar de instrução e
formação da criança. De acordo com Kant (1999, p. 15), o ser-criança
“é aquilo que a educação faz dele”, de forma que essa formação
precisa passar pelo ensinamento de disciplina e regras para que a
criança possa atingir como meta o governo de si próprio e a

43
dominação de si mesmo. Ainda para o filósofo, “a disciplina
transforma a animalidade em humanidade” (KANT, 1999, p. 12).
O papel da escola no que tange a esse controle do estado
animalesco do ser criança é enfatizado por Kant:

Quanto à criança, não será concedido a ela qualquer capricho, pois


ela deve aprender, pela disciplina, a fugir dos instintos animais,
podendo assim melhorar os destinos da humanidade. [...] Assim as
crianças são mandadas cedo à escola, não para que aí aprendam
alguma coisa, mas para que aí se acostumem a ficar sentadas
tranquilamente e a obedecer pontualmente aquilo que lhes é
mandado, a fim de que no futuro elas não sigam de fato e
imediatamente cada um de seus caprichos (KANT, 1999, p. 13).

Na próxima seção, discutiremos a metáfora da criança-escolar,


que se relacionará com o que nos apresenta Kant.

1.4 A criança-escolar e o homem-máquina

A partir das metáforas sobre o ser criança vistas anteriormente,


propomos um diálogo com Gimeno Sacristán (2005) ao afirmar que
a imagem discursiva de criança se constrói na atualidade a partir
de uma visão linear, na qual o destino final da criança é o tornar-se
adulto. Ou seja, o ser adulto seria o padrão, o modelo, o ideal a ser
atingido, a plenitude para onde as crianças deveriam caminhar, até
o seu derradeiro destino, que seria a morte.
Nesse sentido, a infância instaura-se como uma etapa que
necessitaria ser superada, pois seria um estágio aquém da fase de
plenitude do mundo adulto. A criança seria um eterno “ainda não”,
um ser incompleto e que precisaria ser instrumentalizado para a
posterior fase que viria. O que pode parecer como algo natural em
nossa sociedade (o fato da infância ser uma preparação para a fase
adulta da vida) é questionado pelo teórico já mencionado, pois a
figura do adulto como medida do tempo dos menores já seria uma
construção sociohistórica, não sendo, portanto, algo natural, como
se costuma crer:

44
As crianças e os jovens são os que ainda não são; os que não têm as
condições de ser adultos, aqueles que não são de todo inteligentes,
maduros, responsáveis, disciplinados ou úteis para o trabalho. A
meninice está associada, por um lado, a uma concepção linear do
tempo, de etapas que se sucedem seguindo uma trajetória
inexorável, cuja primeira e mais evidente manifestação é o processo
de desenvolvimento biológico de caráter mais material. A evolução
da dimensão psicológica e do papel social dos indivíduos foi
associada de alguma maneira a essa linearidade; ligação que
contaminou as visões um tanto deterministas do desenvolvimento
das facetas não materiais do ser humano. A mente, a inteligência, as
qualidades psicológicas em geral, assim como os diferentes papeis
que os sujeitos vão desenvolvendo na sociedade, viriam a ser
manifestações naturais de uma trajetória linear predeterminada
(GIMENO SACRISTÁN, 2005, p. 43).

O adulto, portanto, é quem construiu a infância como uma


fase de carências e se impôs como referência para as crianças,
como destino de sua trajetória, de forma que se constitui “um a
priori que justificará o poder do maior sobre o menor. O fato de
considerar os menores como imperfeitos e até carentes de ‘sua
razão’ dá a ele a justificativa para dominá-los e submetê-los ao
regime disciplinar prolongado que seu poder legitima” (GIMENO
SACRISTÁN, 2005, p.42).
Gimeno Sacristán defende que a infância precisa ser entendida
na atualidade como um objeto heterogêneo, pois existem infâncias
socialmente desiguais e diferentes. Concordamos com sua visão,
pois o teórico se opõe a uma perspectiva universalizante e
essencializada de infância, que acabará repercutindo, conforme
veremos posteriormente, nas práticas didático-pedagógicas
utilizadas nos LDs de espanhol para crianças e nas falas dos
sujeitos-criança com quem conversamos:

As meninas têm experiências diferentes das dos meninos, como


diferente é a condição da criança abandonada se comparada com
aquela que é ansiosamente desejada por aqueles que a cuidarão. A
infância das classes populares está longe de ser a mesma que a das

45
classes abastadas: quanto a sua duração, forma de vivê-la,
experiências tidas durante a mesma. O conceito de menor (como o
de aluno) engloba situações de pessoas muito heterogêneas. Não
existem categorias universais, no sentido de que não são
homogêneas. Não existe infância, mas sujeitos que a experimentam
em algumas coordenadas e circunstâncias que diferem para cada um
deles e para cada grupo social. Não estamos diante de categorias
totalmente unívocas nem definitivas. Se somos criança, menor ou
jovem de muitas formas que não são equivalentes, então, na hora de
compreender o menor em seu papel de aluno, qualquer teoria da
evolução psicológica, qualquer explicação ou norma pedagógica
deve incorporar essa premissa (GIMENO SACRISTÁN, 2005, p. 22).

Dessa forma, sendo a infância uma invenção, é por meio da


instituição escola que vamos ter acesso a essa infância, pois a escola
surge como um aparelho de disciplinamento dos corpos infantis e
de direcionamento da infância, com vistas à sua moralização. De
acordo com Corazza (2004), não há como desconectar a constituição
social da criança e da infância do aparelho escola, de forma que só
temos acesso a uma criança-escolar e a uma infância-escolar,
sendo a escola o centro da vida das crianças.
Gimeno Sacristán (2005) dialoga com Corazza (2004), ao
propor que quando vemos um aluno diante de nós, vemos
imediatamente colado à sua imagem um menor e quando estamos
diante desse menor, o imaginamos como “estudante de algo”, o
que o autor chama de “colonização da infância realizada pela
escola” (2005, p. 101). O autor também nos atenta para o fato de que
tal correlação “criança-aluno / criança-escolar” se dá no nosso dia-
a-dia de maneira naturalizada:

A escolaridade é um fato tão natural na paisagem social de nossas


formas de vida que é estranho imaginar um mundo que não seja
dessa forma. Estar um tempo nas escolas é um rito de passagem
naturalizado na vida dos indivíduos, cujos fins são aparentemente
óbvios, ocupando um lugar central na experiência das pessoas, tendo
se transformado em um marco de referência que introjetamos e que

46
projetamos quando o percebemos e valorizamos (GIMENO
SACRISTÁN, 2005, p. 102).

O referido autor também salienta que tal naturalização achata


as diferentes possibilidades de se vislumbrar a infância, pois essa
“condição não é algo universal, posto que todas as crianças não
estão escolarizadas, nem estão em uma escolaridade semelhante do
ponto de vista qualitativo. Todos os alunos pequenos são crianças,
mas nem todas as crianças são alunos” (GIMENO SACRISTÁN,
2005, p. 105).
A instituição escola e sua prática de controle e disciplinamento
da criança / infância dialoga com alguns filósofos já mencionados
por nós, como, por exemplo, Kant (1999). O autor desenvolve em
sua obra a ideia de que as crianças devem, em determinadas
práticas discursivas, ficar sentadas de forma passiva, cumprindo
regras. Tal regramento estaria relacionado ao fato de que, segundo
o autor, a educação é necessária ao homem, justamente para que se
escape da inclinação natural à liberdade e à entrega aos prazeres e
descontrole. É como se para viver em sociedade, o homem (a
criança) precisasse passar pela poda (retomando a já mencionada
metáfora da plantinha) e se enquadrar e a escola cumpriria esse
papel de podar a árvore e encaminhá-la para que dê frutos.
Concordamos com Corazza (2004, p. 340), quando a autora
afirma que

se o processo de escolarização das crianças reagiu sempre contra sua


infantilidade, pode ser pensado que, concomitantemente, ele
institucionalizou-se e vem funcionando por todos esses séculos
unicamente para produzir essa mesma infantilidade, um modo de
ser infantil, a qualidade de infantil, o estado de infantil, a
propriedade do infantil.

Corazza (2004, p. 188, 189) destaca o espaço escolar como um


espaço de normalização e docilização:

47
Desde que foi constituída como instituição moderna, a escola tornou-
se um ponto de referência de diferentes setores sociais, enquanto
“espaço de disputas que concentra os olhares, gera discursos
especializados e expressa campos de força, tensões e
enfrentamentos” (ib., p. 13). Espaço contestado que, ao lado de
outros, põe em jogo a governamentabilidade da população,
especialmente a infantil, e seu disciplinamento em termos da
conformação de um corpo dócil e utilitariamente funcional às
diversas estratégias da dinâmica social. Entre algumas de suas linhas
invariáveis, ao lado das dissimilitudes regionais, nacionais ou locais,
a escola – com seus mecanismos e táticas de normalização,
implantação de hábitos e rotinas, transmissão de conteúdos
uniformes, horários, distribuição espacial, execuções disciplinares,
operacionalização de formas determinadas de racionalidade e de
subjetividades, criação de interesses, necessidades, afetos e desejos –
produz a infância, por meio do discurso pedagógico que, no infantil
e em seu desenvolvimento, encontra razões sociais, culturais,
econômicas e políticas que justificam sua necessidade cultural,
existência política e subsistência institucional.

A noção de docilização dos corpos nos remonta a Foucault


(2014), que trabalha tal conceito para pensar os aparelhos de
aprisionamento e disciplinamento que se fazem presentes na
sociedade, tais como a clínica, a prisão e a escola. Tal conceito nos
é importante para se pensar a escola como um dispositivo que
constrói a infância por meio de suas práticas, haja vista que a noção
de infância se instaura atrelada à noção de aluno, conforme vimos
anteriormente em Corazza (2004, p. 340): “(...) o ente-infantil
perfeito é o educado; ou então: lugar da infância é na escola. O ente-
infantil perfeito é o escolarizado”.
Foucault (2014, p. 134) salienta que durante a Época Clássica,
deu-se uma espécie de descoberta do corpo como um objeto e alvo
de poder. Percebeu-se que controlar os corpos (infantis, no nosso
caso) serviria para facilitar a instrução e disciplinamento das
crianças no dispositivo escola, com vistas a preparar a criança para
a fase adulta e domar seus anseios primitivos e selvagens:

48
[...] não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como
se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo
detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de
mantê-lo ao mesmo nível da mecânica – movimentos, gestos, atitude,
rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. [...] Esses métodos
que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que
realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma
relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as
“disciplinas”. (FOUCAULT, 2014, p. 134, 135)

Essa preparação da criança para a fase adulta na escola passa


pela construção de um “homem-máquina”. A questão seria pensar:
que efeitos isso causa? Vejamos: o aluno (essa criança-escolar), ao
ingressar na escola, precisa ter atenção ao horário de entrada, para
que não se atrase, pois pode-lhe causar uma anotação ou até o não
ingresso na escola; horários das aulas, momentos específicos para
ir ao banheiro, beber água, socializar com os outros alunos no
momento do recreio e horário de saída. Cabe destacar também o
espaço físico da sala de aula, com mesas e cadeiras enfileiradas, nas
quais deve-se primar pela ordem e pela disciplina para que o
processo de ensino-aprendizagem possa acontecer. Mas com esse
modelo de escola, cabe uma reflexão: que alunos e que infâncias
estamos construindo, ao se usar tais instrumentos de
disciplinamento, com o discurso de que precisamos preparar as
crianças para o futuro e para uma inserção no mercado de trabalho?
A escola, por meio do disciplinamento da criança, seria um
dispositivo que formaria corpos dóceis para, entre outras coisas,
atender as demandas do mercado de trabalho:

Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho


sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de
seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa
maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o
recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente
uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode
ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que

49
façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as
técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A
disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos
“dóceis” (FOUCAULT, 2014, p. 135).

A escola concebida como um dispositivo de disciplinamento


das crianças, como um aparelho de controle de seus corpos e de
seus instintos “naturalmente selvagens” já germinava na obra de
Comenius, do século XVII, e retoma a metáfora da criança como
uma plantinha, já vista anteriormente:

Com todo o empenho deve-se preparar a juventude para a obediência


cotidiana11, pois ela servirá depois como alicerce das grandes
virtudes, uma vez que consigam dominar sua vontade e respeitar a
dos outros. Não deixamos crescer à vontade a planta novinha, mas a
amarramos a uma estaca, para que facilmente se endireite e ganhe
força. (COMENIUS, 2011, p. 59)

E complementa:

Tão logo a criança saiba o que é ou não conveniente, deve-se formar


seus gestos e movimentos, tais como: sentar direito, ficar ereto, andar
com elegância sem curvar os membros, vacilar ou balançar. Se quiser
algo, de que modo pedir; se recebeu algo, de que modo agradecer; se
encontrar alguém, como saudá-lo; se saúda, como dobrar os joelhos
ou estender a mão direita; se está falando com os mais velhos, como
descobrir a cabeça e dispor as mãos etc. (COMENIUS, 2011, p. 64)

Finalizamos este subitem, portanto, explicitando nossa


posição ao se pensar a infância e a criança ao longo de nossa
pesquisa. Afastamo-nos daquelas concepções essencializadas,
universalizantes e metafisicas discutidas no início deste texto e
aproximamo-nos das perspectivas defendidas neste último tópico
pelos teóricos trazidos por nós (GIMENO SACRISTÁN, 2005;
CORAZZA, 2004): a infância para nós (e ao longo da presente

11 Grifo do autor.

50
pesquisa) será vislumbrada como uma construção sociohistórica,
uma invenção, no sentido de que não constitui uma categoria dada
a priori, mas uma noção instaurada por meio de práticas sociais
concretas. Também dialogamos com a ideia de uma “infância-
escolar”, por entendermos que a escola é um aparelho que instaura
a figura do aluno e nos ajuda a pensar uma infância ligada
diretamente às práticas didático-pedagógicas da escola. Desse
modo, ao falarmos de criança e de infância aqui, já estamos
pressupondo um recorte dessa criança, que passa e se constrói por
meio (mas não somente) do processo de escolarização.
Depois de termos observados alguns sentidos de infância e
criança construídos por meio das metáforas mencionadas,
passaremos a explicitar, no próximo capítulo, os procedimentos
teórico-metodológicos que nos levaram ao encontro do que viria a
ser nosso primeiro corpus de investigação: o livro didático de
espanhol para crianças.

51
52
2. PERCURSOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: O LIVRO
DIDÁTICO À LUZ DA CARTOGRAFIA E DA ANÁLISE
DO DISCURSO

Desenvolver uma pesquisa tendo a cartografia como método é


sempre uma polêmica. Primeiro, porque muitos não conhecem essa
proposta metodológica, formulada por Gilles Deleuze e Félix Guattari
(1945). Segundo porque, talvez justamente pelo não conhecimento,
tem-se um entendimento de que na cartografia tudo pode, tudo é
válido ou que é um método que legitima o “não-método”.
Cabe pontuarmos que, primeiramente, a cartografia não pode
ser entendida, pelo menos a partir da presente pesquisa, somente
como um método de investigação, pois entendemos que chamar a
cartografia apenas de método é desmerecê-la ou ainda minimizar
toda a sua potência. A palavra método nos estudos de linguística
aplicada ao ensino de LA possui uma aura um tanto negativa, pois
remete a um engessamento de práticas e prescrições de
procedimentos que se deva seguir sem muita reflexão.
Muitas vezes o método, que deveria ser o meio para se chegar
a algum fim, acaba sendo o meio pelo meio, isto é, o método pelo
método, não se chegando, em muitas ocasiões, a lugar algum.
Trazemos tal reflexão para pensar a cartografia. Embora costume-
se chamar a cartografia de método, aqui gostaríamos de propor a
cartografia não como uma lista de procedimentos a serem seguidos,
passo a passo, como meio para que pudéssemos responder às
nossas perguntas de pesquisa, mas preferimos entendê-la como um
olhar sobre o pesquisar, isto é, como uma perspectiva
epistemológica.
Tal modo de se conceber a cartografia, como um olhar, um
direcionamento sobre o investigar, nos permite não mais pensar na
ideia de método como algo fechado, conforme comentamos

53
anteriormente, além de potencializar o diálogo desse olhar
epistemológico cartográfico com um olhar epistemológico dos
estudos discursivos.
Mas o que seria a cartografia, afinal? A pesquisa cartográfica
visa o acompanhamento de processos e não a representação de
objetos (BARROS; KASTRUP, 2015).
Tradicionalmente, desde o surgimento da ciência moderna, as
pesquisas tendem a serem entendidas como capazes de representar
o objeto, separar o objeto científico e o cientista, sendo estes
concebidos como categorias transcendentais, como se fossem
entidades isentas de um contexto de produção e de circulação. Há
um processo de purificação do objeto e do sujeito e,
consequentemente, constrói-se uma noção de ciência pautada na
objetividade e na neutralidade.
A cartografia, enquanto um olhar epistemológico, propõe que
olhemos para essas entidades, sujeito e objeto, não mais como
categorias atemporais e universais, mas como construções
históricas, sociais e culturais; como corpos ancorados num tempo e
num espaço. Tal concepção nos força a repensar o papel do
pesquisador quando este assume uma perspectiva cartográfica em
sua investigação.
Conforme começamos a narrar no capítulo introdutório, nossa
pesquisa tinha um objetivo inicial que foi se alterando ao longo do
processo, com evidente mudança de foco. Poderíamos omitir esse
percurso e apresentar apenas o objetivo recortado, mas, se
fizéssemos isso, criaríamos a falsa ilusão de que a pesquisa se deu
de maneira harmônica, linearmente, coesa, sem percalços e
sobressaltos, sem nenhuma alteração externa.
Entendemos que se faz necessário destacar esse processo, pois
vislumbramos que o pesquisar é esse ir ao encontro do inesperado
e observar o que há no campo, não vislumbrando o objeto como
algo pronto que se possa coletar. Entendemos e defendemos que o
objeto é construído pelo olhar do pesquisador, que não é e nem
pode ser um olhar neutro e desimplicado.

54
As mudanças no nosso foco de investigação começaram a se
dar a partir dos encontros que tivemos com outros pesquisadores,
com nosso orientador e com leituras sobre a cartografia. De acordo
com essa perspectiva,

o cartógrafo se guia sem ter metas predeterminadas. Seu caminho


(...) vai se fazendo no processo, indicando essa reversão
metodológica que a cartografia exige (...). Por isso a ocupação de um
território numa pesquisa não pode ser iniciada com um problema
fechado, sabendo de antemão o que se busca. Tal posicionamento
fecha o encontro com a alteridade do campo territorial, permitindo
muitas vezes só encontrar o que já se sabia ou, o que é muito pior,
não enxergando nada além dos seus conceitos e ideias fixas.
Portanto, para o aprendiz-cartógrafo, o campo territorial não tem a
identidade de suas certezas, mas a paixão de uma aventura
(PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p. 137, 138).

O campo territorial de nossa pesquisa foi se construindo ao


longo da investigação. Conforme narrado anteriormente,
começamos com uma proposta de pesquisa com foco no trabalho
do professor de LAC, depois passamos a debruçar nosso olhar
sobre os LDs de LAC. Conforme se verá mais adiante, a partir dos
LDs, fomos ao encontro de sujeitos-criança para conversar com elas
sobre os LDs de LAC.
Todos esses passos e escolhas metodológicas não estavam
predefinidos quando decidimos começar esta investigação, mas
foram ações construídas com base em encontros múltiplos: com
uma massa de textos teóricos que lemos, com conversas, aulas e
reuniões de orientação com nossos professores e colegas. Ainda
que o ato de pesquisar possa ser solitário muitas vezes, uma
pesquisa sempre se faz com muitas mãos e a partir de muitos
atravessamentos.
Como já vimos, a cartografia se coloca como objetivo o
acompanhamento de processos. Tal perspectiva requer que se faça
uma distinção entre o entendimento do que seria um processo.

55
O termo “processo”, entendido como processamento, “evoca
a concepção de conhecimento pautada na teoria da informação.
Nesta perspectiva, a pesquisa é entendida e praticada como coleta
e análise de informações” (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 58). A
ideia de processamento remete à já comentada separação entre
sujeito e objeto e trabalha com as noções de objetividade e
neutralidade no fazer científico. Se, por outro lado, entendemos a
noção de “processo” como processualidade,

estamos no coração da cartografia. Quando tem início uma pesquisa


cujo objetivo é a investigação de processos de produção de
subjetividade, já há, na maioria das vezes, um processo em curso.
Nessa medida, o cartógrafo se encontra sempre na situação
paradoxal de começar pelo meio, entre pulsações. Isso acontece não
apenas porque o momento presente carrega uma história anterior,
mas também porque o próprio território presente é portador de uma
espessura processual. A espessura processual é tudo aquilo que
impede que o território seja um meio ambiente composto de formas
a serem representadas ou de informações a serem coletadas. Em
outras palavras, o território espesso contrasta com o meio
informacional raso. (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 58, 59)

A partir do que foi discutido na citação anterior, assumimos,


portanto, ao afirmarmos que trabalhamos com uma perspectiva
cartográfica, os seguintes pressupostos:
a.nossa pesquisa visa o acompanhamento de processos e com
isso, não tem como objetivo apresentar definição de como as
crianças são ou como os LDs de LAC são ou devam ser. Não
estamos aqui para definir o que se é, mas tensionar e acompanhar
os diferentes processos que compõem o LD como um dispositivo
didático-pedagógico, assim como os diferentes processos que
contribuem para a construção de uma determinada imagem de
criança e infância e de concepções de ensino de LA em tais LDs;
b.toda pesquisa é intervenção, pois acreditamos na
inseparabilidade entre pesquisar e intervir. Isso acarreta em não
considerar a neutralidade do pesquisador diante de seu(s) objeto(s)

56
de pesquisa, mas entender-nos como um pesquisador
necessariamente implicado e que habita um território e não
somente o descreve a partir de uma exterioridade, mas que se
implica estando dentro.
A partir de uma perspectiva de pesquisa-intervenção, a
cartografia se apresenta com uma orientação de que o trabalho do
pesquisador não se dá de modo predefinido, prescritivo, com
objetivos estabelecidos previamente. Trata-se “não mais um
caminhar para alcançar metas prefixadas (...), mas o primado do
caminhar que traça, no percurso, suas metas” (PASSOS; KASTRUP;
ESCÓSSIA, 2015, p. 17).
O caminhar, portanto, alterou e constituiu o próprio percurso.
Retomando o que contávamos no capítulo introdutório, ao
instituirmos o projeto de extensão no CAp-UERJ, cujo título é “O
espanhol como língua estrangeira (E/LE) nas séries iniciais do
Ensino Fundamental: uma nova perspectiva na formação docente”,
efetuamos a compra de diversas coleções didáticas de espanhol
para crianças. Nosso objetivo com a aquisição de tais coleções era
montar um acervo para que pudesse estar à disposição do projeto,
pois uma das propostas era a análise crítica de tais materiais por
parte dos bolsistas.
Entendemos que, antes de elaborar materiais próprios,
precisávamos olhar para os materiais existentes no mercado
editorial brasileiro e espanhol12. E assim foi feito. A aquisição das
coleções não seguiu um rigor metodológico. Fomos comprando
(com verba própria, cabe o destaque) as coleções conforme nos
informávamos sobre tais materiais. As coleções adquiridas foram
as seguintes:
● Caramelitos (Santillana)- 3 volumes - Brasil
● Lola y Leo (Difusión) - 2 volumes - Espanha
● Nuevo Recreo (Santillana) - 5 volumes - Brasil
● Vamos al circo (Difusión) - volume único - Espanha
● Vamos al cole (Difusión) - volume único - Espanha

12 A maioria dos livros é produzida na Espanha.

57
● Ventanita al Español (Santillana) - 5 volumes - Brasil
Antes e durante o andamento da oficina, nos reuníamos com
os bolsistas semanalmente para discutir textos teóricos sobre
ensino de LAC, para realizar análises dos livros didáticos de
espanhol para crianças adquiridos para o projeto e também para
(re)elaborar o plano de curso e os planos de aula da oficina. À
medida que analisávamos tais coleções didáticas, mais
percebíamos que deveríamos nos afastar das propostas ali
apresentadas.
Havia certa regularidade nos LDs analisados. Embora de
editoras e países diferentes, de modo geral, pode-se dizer que eram
recorrentes nas referidas obras: ensino da língua pautado no ensino
de vocabulário de maneira descontextualizada, uso de textos orais
e escritos artificiais (criados para os livros didáticos em questão),
uso de muitas cores, ênfase em propostas de jogos, colagem de
adesivos para fixação de léxico e atividades tais como recortar,
colar, pintar, etc.
Percebemos que aquele modo de propor atividades para o
ensino para crianças pressupunha uma imagem de criança
idealizada, atemporal, uma categoria genérica e que em nada nos
recordava as crianças com quem havíamos tido contato durante
nossa experiência como docentes naquela escola pública da
Prefeitura do Rio de Janeiro sobre a qual comentamos no capítulo
introdutório. As crianças com as quais havíamos lidado eram
questionadoras: questionavam desde a realidade que as (nos)
cercava às propostas de atividade que levávamos para a sala de aula.
Essa criança crítica e questionadora não dialogava com as
crianças apresentadas por essas coleções didáticas. Tal
descompasso nos foi causando uma grande inquietação, o que
acabou direcionando nosso olhar para os LDs de espanhol para
crianças, entendendo que os LDs não representam crianças, mas ao
lhes apresentarem determinadas práticas didático-pedagógicas, as
construía no fazer da sala de aula. O LD é entendido aqui, portanto,
como um dispositivo que contribui para a construção de imagens
de criança e infância.

58
Uma vez que percebemos que o LD de espanhol para crianças
nos despertou para um olhar mais atento, devido ao fato de o
vislumbrarmos como um dispositivo potente, tínhamos que decidir
qual ou quais coleções analisaríamos na presente pesquisa, pois
havia a necessidade de recorte.
Primeiramente, cabe destacar que o fator quantidade de
material a ser analisado não é um parâmetro para a Análise do
Discurso, pois de acordo com Deusdará e Rocha (2018, p. 20),

Não se trata, aqui, de uma questão de quantidade de textos a serem


analisados, e sim da assunção de uma atitude que reconheça que a
ordem e a sucessão de enunciados efetivamente produzidos no
mundo nada têm a ver com uma ordem do discurso, a qual já é uma
hipótese de trabalho do analista e que, por isso mesmo, implica uma
constante recomposição dos procedimentos de análise.

Ao não considerarmos relevante o critério quantidade para a


constituição de nosso corpus, assumimos, por outro lado, que nosso
trabalho como pesquisador não é meramente coletar (e acumular)
dados, como quem colhe frutas no pomar.
A noção de coleta de dados pressupõe logo de início que: a. os
dados preexistem ao investigador, ao campo e à própria pesquisa;
b. se os dados preexistem e o pesquisador só os extrai, logo esse não
tem poder de intervenção no campo, pois somente coleta e análise
vislumbrariam uma perspectiva de suposta neutralidade e
objetividade no fazer científico. O pesquisador, na perspectiva
anterior, não afeta e nem se deixa afetar pelo campo.
Na presente pesquisa, falaremos não de “coleta de dados”,
mas sim de “produção de dados”, isto é, nosso corpus de análise foi
assumidamente produzido por nós pesquisadores, o que nos coloca
numa posição de intervenção e de negação das já mencionadas
ideias de neutralidade e objetividade no percurso investigativo.
Pesquisar, a partir de uma perspectiva cartográfica, é
necessariamente intervir. É mergulhar no plano da experiência, “lá
onde conhecer e fazer se tornam inseparáveis, impedindo qualquer

59
pretensão à neutralidade ou mesmo suposição de um sujeito e de
um objeto cognoscente prévios à relação que os liga” (PASSOS;
KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p. 30, 31).
Concordamos com Deusdará e Rocha (2018, p. 20, 21) quando
questionam

(...) como se chega à produção – e não mera coleta – de um córpus?


Com efeito, uma diferença que precisa ser levada em conta diz
respeito à distância que separa a coleta de um córpus versus a
produção de um córpus de pesquisa. (...) quando se fala de “coleta
de córpus”, naturaliza-se o material com o qual se pretende
trabalhar, assumindo-se uma postura que, com algum humor,
poderíamos denominar “extrativista”: o pesquisador vai a campo
colher os enunciados que lhe parecerem mais adequados para uma
atividade de análise (...).

Com base no exposto anteriormente, de todas as coleções que


fazem parte de nosso acervo, apenas 2 coleções se apresentam
como direcionadas para o Ensino Fundamental 1 (1º ao 5º ano). Isto
significa que essas coleções são as únicas que assumidamente se
apresentam como elaboradas e pensadas para uso no contexto da
Educação Básica brasileira. As demais coleções se apresentam
tendo como lugar de circulação os cursos livres.
Com base em nossa experiência profissional anterior como
docentes de espanhol para crianças nos anos iniciais do EF,
decidimos que esse seria o critério para o recorte e,
consequentemente, constituição de nosso corpus de análise:
optamos pela análise das 2 coleções elaboradas para uso na escola
básica brasileira (Nuevo Recreo e Ventanita al español13). Não nos
interessa, portanto, na presente pesquisa, o ensino de LAC no
contexto dos cursos livres.

13 Autores diversos elaboram conteúdos para as unidades que irão compor os


livros didáticos, mas a obra finalizada vai assinada apenas por um editor. Dessa
forma, há nessas coleções um claro apagamento da noção de autoria.

60
A coleção didática Ventanita al español (Santillana) é constituída
de cinco volumes com o objetivo de abarcar o ensino de espanhol
nos anos iniciais do EF. A obra, portanto, abrange do 1° ao 5° ano.
Cada volume da coleção apresenta oito unidades, com uma
pequena exceção no primeiro volume, no qual as unidades são
divididas em parte A e parte B. Nas demais unidades da coleção
não ocorre tal divisão.
A coleção intitulada Nuevo Recreo (Santillana), de modo
semelhante, está composta de 5 livros (volumes 1 ao 5), sendo cada
um destinado a um dos anos do primeiro segmento do Ensino
Fundamental (1° ao 5° ano). O primeiro livro é composto de 9
unidades e os demais volumes possuem 8 unidades cada.
Tais unidades, em ambas as coleções, se organizam, grosso
modo, com certa ênfase em campos semânticos ou em situações
comunicativas, de acordo com o que podemos vislumbrar a seguir:

Quadro 7 – Unidades do LD Nuevo Recreo 1


Nuevo Recreo 1
Unidad 0 ¡Bienvenido!
Unidad 1 Los saludos
Unidad 2 Mi familia
Unidad 3 Mi aula
Unidad 4 Mis mascotas
Unidad 5 Mi cuerpo
Unidad 6 Mis juguetes
Unidad 7 Así es mi casa
Unidad 8 Mi merienda
Fonte: AMENDOLA, 2014.

Quadro 8 – Unidades do LD Nuevo Recreo 2


Nuevo Recreo 2
Unidad 1 Nos saludamos
Unidad 2 Esta es mi família
Unidad 3 ¡A la escuela!
Unidad 4 ¿Tienes mascotas?
Unidad 5 ¡Así somos!

61
Unidad 6 ¿Vamos a jugar?
Unidad 7 Mi casa, mi mundo
Unidad 8 ¡Qué desayuno tan rico!
Fonte: AMENDOLA, 2014.

Quadro 9 – Unidades do LD Nuevo Recreo 3


Nuevo Recreo 3
Unidad 1 Cómo soy y cómo estoy
Unidad 2 Mis comidas
Unidad 3 Mi departamento
Unidad 4 En la hacienda
Unidad 5 Mi semana
Unidad 6 Mi fin de semana
Unidad 7 La tecnología
Unidad 8 Un paseo por mi barrio
Fonte: AMENDOLA, 2014.

Quadro 10 – Unidades do LD Nuevo Recreo 4


Nuevo Recreo 4
Unidad 1 Nuestra edad
Unidad 2 El cumpleaños de Andrés
Unidad 3 Mi salud
Unidad 4 Mis gustos
Unidad 5 Los animales salvajes
Unidad 6 Por agua, tierra y aire
Unidad 7 Qué ropa prefiero
Unidad 8 Mis vacaciones
Fonte: AMENDOLA, 2014.

Quadro 11 – Unidades do LD Nuevo Recreo 5


Nuevo Recreo 5
Unidad 1 Soy de...
Unidad 2 Por teléfono
Unidad 3 Los deportes
Unidad 4 En el recreo
Unidad 5 Mi tiempo
Unidad 6 ¿Qué quieres ser de mayor?

62
Unidad 7 En el centro comercial
Unidad 8 Viaje de vacaciones
Fonte: AMENDOLA, 2014.

Quadro 12 – Unidades do LD Ventanita al Español 1


Ventanita al Español 1
Unidad 1 ¡Bienvenidos! / ¡Hola!
Unidad 2 El aula / ¡Muy útiles!
Unidad 3 Fotos de familia / ¿Cuántos somos?
Unidad 4 Donde vivimos / Donde estudiamos
Unidad 5 Colores para todos / Así me visto
Unidad 6 ¿Quieres una fruta? / Meriendas rápidas
Unidad 7 En la granja / Mi mascota querida
Unidad 8 Jugamos juntos / Hospital de juguetes
Fonte: FEITOSA, 2013.

Quadro 13 – Unidades do LD Ventanita al Español 2


Ventanita al Español 2
Unidad 1 De vuelta a clases
Unidad 2 ¿En qué piso?
Unidad 3 ¡Tantos colores!
Unidad 4 ¡De todo hay!
Unidad 5 El mundo animal
Unidad 6 Somos todos iguales
Unidad 7 Peatones conscientes
Unidad 8 ¡Felices vacaciones!
Fonte: FEITOSA, 2013.

Quadro 14 – Unidades do LD Ventanita al Español 3


Ventanita al Español 3
Unidad 1 Tengo mis tareas
Unidad 2 Me gusta estudiar
Unidad 3 Cumpleaños feliz
Unidad 4 ¡Está exquisito!
Unidad 5 ¿Cómo vas?
Unidad 6 ¡Es la hora!
Unidad 7 Sin dolor es mejor

63
Unidad 8 Somos parte
Fonte: FEITOSA, 2013.

Quadro 15 – Unidades do LD Ventanita al Español 4


Ventanita al Español 4
Unidad 1 Estamos conectados
Unidad 2 Buscando una casa
Unidad 3 Mi rutina
Unidad 4 Con la salud no se juega
Unidad 5 Todo el mundo
Unidad 6 Nuestra pandilla divertida
Unidad 7 Cuando yo sea grande
Unidad 8 De viaje
Fonte: FEITOSA, 2013.

Quadro 16 – Unidades do LD Ventanita al Español 5


Ventanita al Español 5
Unidad 1 Un alumno nuevo
Unidad 2 La buena convivencia
Unidad 3 Los independientes
Unidad 4 Tu vida en vivo
Unidad 5 El valor de las cosas
Unidad 6 El planeta verde
Unidad 7 ¡Campeones!
Unidad 8 Somos el futuro
Fonte: FEITOSA, 2013.

Conforme pudemos observar nos quadros anteriores, as


unidades estão organizadas em blocos temáticos que servem de
subsídio (ou de pretexto) para o ensino de vocabulário relacionado
a um determinado campo semântico. Esse tipo de organização das
coleções já nos indica um modo de se pensar o ensino de espanhol
(e de línguas estrangeiras, de uma maneira geral) para crianças:
sempre a partir de grupos de palavras.
Cabe fazer aqui uma ressalva: não somos contra o ensino de
vocabulário. O que precisa ser problematizado é um ensino que se

64
limite ao ensino de vocabulário (e quando falamos de
“vocabulário”, estamos basicamente referindo-nos aos
substantivos). Ou então quando se crê que só porque o ensino de
uma LA se destina a crianças, que elas só devem ter acesso às
palavras por elas serem estruturas linguísticas “mais simples”.
E mais: quando se ensinam palavras em outro idioma a crianças,
frequentemente trabalha-se com palavras descontextualizadas e,
consequentemente, com sentidos pré-concebidos, enraizados,
estabilizados. Não se oferece à criança a possibilidade de aprender
palavras a partir de textos autênticos e pelo viés da negociação de
sentidos a partir de enunciados concretos, como se as crianças não
fossem capazes de assim o fazerem.
No entanto, devemos pensar: haveria somente essa
possibilidade de se ensinar LA para crianças? O que esse tipo de
investimento expressa? Somente se aprende outra língua pelo viés
lexical? Não poderia ser feito outro tipo de proposta como, por
exemplo, por meio de gêneros escritos e orais, por um viés
tipológico, pelo enfoque por tarefas, etc.?14 A crítica que se tece
aqui não é somente ao modo de organização dessas coleções em si,
mas a toda uma historicidade no ensino de línguas para crianças,
que tende a reiterar em suas práticas essa tendência a colocar o
ensino das palavras no centro do processo de ensino/aprendizagem
de línguas estrangeiras para crianças.
Outro ponto que nos afetou e que direcionou nossa atenção
difusa (algo típico de uma perspectiva cartográfica) foram as
representações imagéticas das crianças ao longo das coleções
didáticas. Ao folhear o nosso corpus, de maneira mais livre,
começamos a perceber que havia uma predominância de um certo
perfil de criança que se desenhava (às vezes literalmente) nos
materiais em questão. Com a ideia de verificar se nossa hipótese

14Cabe destacar que os LDs de LA mudaram significativamente depois que foram


inseridos no Programa Nacional de Livro Didático (PNLD) nos anos finais do
Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Os anos iniciais do EF, no entanto, não
estão contemplados no que tange à distribuição gratuita de LDs de LA.

65
procedia ou não, decidimos efetuar a quantificação das crianças
que aparecem ao longo das coleções que analisamos no presente
trabalho. Nossa hipótese era de que essas imagens de criança /
infância trariam um recorte étnico-racial, com o predomínio de
crianças brancas. Ao efetuarmos tal quantificação, verificamos que
nossa hipótese inicial se confirmou.
A coleção Nuevo Recreo apresenta ao longo de seus LDs um
total de 1.153 imagens de crianças (nessa quantificação estamos
considerando todas as vezes em que uma criança aparece no LD,
seja em forma de fotografia ou em forma de ilustração). Desse total,
902 crianças são brancas, 209 são negras e 42 crianças entram na
categoria “outros”, na qual estamos considerando as
representações étnico-raciais que se apresentam de forma
minoritária ao longo da obra (orientais, indígenas, etc).
A coleção Ventanita al Español, por sua vez, não difere muito
dos dados observados na outra coleção. Apresenta ao longo de sua
obra um total de 1.133 crianças, dentre as quais 955 são brancas, 164
são negras e 14 entrariam na categoria “outros”.
A análise dos livros didáticos que desenvolvemos no presente
trabalho se insere em um projeto de investigações que se interessa
por problematizar a produção da infância, a partir de práticas
pedagógicas no âmbito do ensino de LA.
Analisá-los não é tarefa das mais simples, pois é um tipo de
corpus que possui múltiplas possibilidades de entrada, uma
materialidade linguística complexa e que evoca muitas vozes ao
enunciar: os professores, sugerindo encadeamentos entre os
saberes, propondo níveis de dificuldade, estabelecendo ritmos para
o desenrolar de sua atividade; os estudantes, convocando-os a se
inscreverem em diferentes situações; os sistemas de ensino, etc.
A partir dessa diversidade de entradas, alguns
questionamentos foram sendo constituídos, tais como os que
elencamos a seguir: que tipo de recorte deveríamos fazer para
empreender a análise das coleções didáticas? Um recorte temático?
Um recorte que privilegiasse maneiras como os textos escritos e orais
são trabalhados ao longo dos LDs? Uma análise dos gêneros

66
abordados (ou não) pelas coleções? Uma análise da imagem de
criança que se constrói ao longo das propostas didático-pedagógicas
das coleções? Que tratamento dar e que organização fazer para que
a análise não parecesse tão difusa, já que o LD nos exige um olhar
um pouco mais amplo, mais rizomático para (tentar) dar conta de
sua natureza complexa? Diante das dúvidas apresentadas
anteriormente, surgiu a necessidade de, primeiramente, pensar em
como conceber o LD no contexto de nossa pesquisa.
O LD, na presente pesquisa, é entendido como um dispositivo,
isto é, o LD não é apenas um instrumento de que o docente pode
lançar mão ou não numa determinada prática didático-pedagógica.
O LD tem implicações com seu contexto de produção (Quem o
produziu? Que editora? Com base em que pressupostos teóricos?
O que se almeja quando se produz um LD numa determinada
orientação teórica?), com seu contexto de circulação (Onde esse LD
vai efetivamente circular? Em que escolas? Dialogará com todas as
escolas que o adotarem? Os alunos vão gostar das atividades
propostas? E os docentes?) e com as pessoas que o manipularão (o
editor, o professor, o aluno, etc.).
Um livro didático não pode ser visto apenas como um livro
didático ingênuo. Seria uma visão muito limitada e romântica de
nossa parte se assim o pensássemos. Conceber o LD como um
dispositivo é pensar o livro didático que entra em cada sala de aula
da escola brasileira como:
a. um macrogênero, que traz em si tantos outros gêneros
escritos e orais, que por sua vez, fazem circular sentidos diversos
sobre assuntos diversos. O LD traz para a sala de aula uma massa
de textos para falarem junto sobre assuntos variados;
b. um instrumento político, que lança luz a determinados
assuntos em detrimento de outros. Tanto a presença quanto a
ausência constroem sentidos;
c. um material didático que pode ser encarado como um apoio
à prática docente ou como aquele que vai guiar o currículo do
professor;

67
d. uma materialidade que constrói sentidos diversos (e
também os reitera para uma manutenção do mesmo) a partir do
encontro com os alunos.
O dispositivo pode ser entendido como uma “máquina de
fazer ver e de fazer falar (DELEUZE, 1996, p. 1)”. Assim
entendemos o LD nesta pesquisa: é uma materialidade que se
apresenta como um livro de espanhol para crianças e que,
consequentemente, evoca em suas páginas imagens e atividades
pensadas para uma criança idealizada. Por meio dessas imagens e
atividades, o LD como um dispositivo, nos faz ver como esses
materiais entendem a criança e o infantil e como essas concepções
se constroem discursivamente.
Paralelamente a isto, quando esse mesmo LD está na mão de
um aluno na escola, esse LD serve como um reforço para que o
infantil siga sendo construído e visto de uma determinada forma.
É como a velha questão de quem veio primeiro: o ovo ou a
galinha? O livro didático constrói imagens de criança e infância
porque as crianças são daquela forma ou as crianças agem
daquela forma porque há na escola (e na sociedade em geral)
vários dispositivos (dentre eles o LD) que produzem
infantilidade(s)? São reflexões que nos vêm a mente ao optarmos
por pensar o LD como um dispositivo.
Ainda de acordo com Deleuze (1996), um dispositivo se
constitui a partir de linhas de força, que por sua vez, podem ser
entendidas como relações de poder. Há muitos embates
metodológicos e epistemológicos quando escolhemos um LD e o
levamos para nossa sala de aula. Há muitos textos que dialogam
entre si no LD e há também tantos outros que se repelem e no meio
dessas linhas e vetores de força está o aluno, isto é, o sujeito que
convencionamos entender como “criança”.
Para compor essa discussão, entendemos que se faz necessário
dialogar, ainda que brevemente, com o conceito de subjetividade
sob o prisma da produção, a partir dos pressupostos de Félix
Guattari. Com o objetivo de se iniciar tal discussão, cabe salientar

68
que podemos vislumbrar a subjetividade, grosso modo, a partir de
dois vieses: subjetividade substancial e subjetividade produzida.
O primeiro termo remete a uma subjetividade que nos
remonta a um “eu”, a algo que lhe é interno ao sujeito e, portanto,
essencial, homogêneo e centrado. Baseados nessa perspectiva de
subjetividade, encontram-se os discursos totalizantes sobre os
objetos e sujeitos, tais como aqueles que definem, por exemplo, as
categorias como um já-lá, como algo pronto previamente, com
sentidos estabilizados desde sempre: “A criança é assim...”; “As
crianças só aprendem desse jeito.”; “Essa atividade não tem a cara
das crianças”, etc.; como se o “ser criança” fosse algo inerente,
imutável, universal, intrínseco e não fruto de diferentes
agenciamentos, que produziriam permanentemente novas
configurações de “ser criança”.
Observe-se como o termo “criança” nos enunciados
mencionados anteriormente como forma de exemplo são
antecedidos pelo artigo definido, que possui esse nome não
gratuitamente: é um elemento sintático-morfológico responsável
por fazer determinações, por definir e achatar todas as
possibilidades de vir a ser de um termo, provocando um
apagamento do que é processual.
Encarar a subjetividade como produção, no entanto, vai de
encontro à perspectiva mencionada anteriormente: é um negar-se
às essencialidades, à homogeneidade, a um já-lá e atentar-se para
os processos e dispositivos diversos que nos atravessam todo o
tempo e que nos constituem e que com isso, contribuem também
para produzir a nossa subjetividade.
Soares e Miranda (2009, p. 9), leitores da obra de Deleuze e
Guattari, nos apontam que tal modo de se conceber a subjetividade
não escapa de uma permanente invenção. E acrescentam:

Quando se entende a ideia de subjetividade fora da essência, da


unificação, da centralidade, tudo que resta é estabelecer força, um
movimento que possibilite a si e ao mundo se verem em movimento.
Assim, a subjetividade não pode ser vista pela lógica estruturante,

69
condicionante, ao contrário, para Deleuze e Guattari a subjetividade
está em deslocamentos, pois não existe um a priori que estabelece um
ser essencial, ou algo que não varia, que sempre se conserva e que só
precisa ser descoberto. Não há unificação, não há centro, mas sempre
trocas, movimentos, diferenças.

Essa oposição entre uma subjetividade substancial (que nos


remete a um eixo vertical platônico, no qual haveria um plano ideal
e um plano da representação) e uma subjetividade como produção
a partir de vetores, isto é, maquínica (que nos remonta a um eixo
horizontalizado e, portanto, a uma ideia de não-representação, mas
de atravessamentos) nos apresenta a ideia de rizoma, que nos
permite visualizar metaforicamente o aspecto complexo e
heterogêneo da subjetividade como produção.
De acordo com Deleuze e Guattari (1995, p. 32), o rizoma

(...) não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções


movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo
qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades lineares a
n dimensões, sem sujeito nem objeto (...). Oposto a uma estrutura,
(...), o rizoma é feito somente de linhas. (...) O rizoma procede por
variação, expansão, conquista, captura, picada. (...), o rizoma se
refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre
desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas
entradas e saídas, com suas linhas de fuga. (...) unicamente definido
por uma circulação de estados (...) todo tipo de “devires”.

Observe-se, então, que a partir desse modo rizomático de se


encarar a subjetividade, tal conceito não parte mais do nosso ser
mais íntimo, isto é, a subjetividade não nasceria dentro de cada um
de nós, como se fosse algo inato, mas acredita-se que a partir de tal
visão a subjetividade é elaborada, construída, mediada a partir de
fatores externos ao sujeito, fatores esses que, conforme já foi
mencionado anteriormente, nos atravessam incessantemente no
nosso dia a dia. Tais fatores podem ser chamados de dispositivos
ou vetores de subjetivação.

70
O leitor deve estar se perguntando: por que tal discussão sobre
subjetividade como produção interessaria para um trabalho sobre
análise de livro didático de espanhol para crianças? Pois bem:
evocamos tal conceito, pois ao entendermos que a subjetividade é
produzida por diferentes dispositivos de subjetivação, podemos
pensar, então, que o modo como um determinado LD apresenta
seus conteúdos e propostas didático-pedagógicas sobre o ensino de
língua adicional para crianças contribui para a construção de
sentidos sobre infância, criança, professor, visão de língua e de
ensino-aprendizagem.
Soares e Miranda (2009), ao retomarem Deleuze (2001, p. 22),
problematizam o modo cartesiano de criar uma suposta aderência
entre conceitos tão diversos, igualando-os e achatando as múltiplas
possibilidades de se vir a ser:

(...) o projeto cartesiano de fazer coincidir pensamento e ser, sujeito


e subjetividade, já não faz mais sentido, pois a subjetividade não é
mais do que uma coleção de dados sem ordem, sem estrutura e sem
lei, e não coincide com o sujeito porque este é apenas um efeito das
articulações às quais estão submetidas. (...) a lógica identitária dos
termos é substituída pela lógica do encontro, que substitui o verbo
Ser (A é B) pela conjunção “e” (A e B).

O “ser criança” pode ser entendido, portanto, não como um


dado a priori representado pelo LD, mas a partir da perspectiva
rizomática que defendemos neste trabalho, de subjetividade como
produção a partir da lógica dos encontros, pode-se pensar que é um
conceito que não está pronto, não está dado previamente e que os
diferentes sentidos de “ser criança” vão sendo tecidos ao longo do
LD, ao longo das atividades propostas, dos gêneros escritos e orais
convocados a enunciar na obra. Não falam de e para uma “criança”
específica, mas ajudam a construir (e a limitar) possibilidades de
“ser criança”. Diante dessa perspectiva, não trabalharíamos com
um conceito fechado de criança, pronto, desconsiderando-se que
esse mesmo conceito é uma construção social, histórica e cultural,

71
mas o entenderíamos como algo não-pronto, processual e
produzido a partir dos encontros que se produzem no ambiente
escolar: aluno-aluno; aluno-professor; aluno-LD; professor-LD, etc.
O LD seria, então, um dos múltiplos dispositivos de
subjetivação que contribuiria para sustentar e reiterar
determinadas práticas no que concerne ao ensino de espanhol para
crianças, produzindo-se assim subjetividades no ambiente escolar.
Além disso, tal perspectiva nos permite estabelecer um olhar sobre
a criança como um devir, um vir a ser, não se apagando as diversas
possibilidades de atualização de um modo de existência, mas
potencializando-se os diferentes modos de inscrição no mundo.
Apresentada nossa proposta de se pensar o livro didático
como um dispositivo, passamos a outras propostas de classificação
do LD ancoradas nos pressupostos teóricos da Linguística
Aplicada.
Há já, na literatura, algumas propostas de classificação do LD.
Pode-se vislumbrar o LD como um gênero de discurso, mas tal
classificação não deixa de nos provocar uma inquietação: se o LD
em si já é um gênero, o que seriam então os outros textos que
circulam ao longo da coleção didática?
Dell’Isola (2009, p. 102) propõe que o LD seja considerado ao
mesmo tempo como um gênero e um suporte textual para um
conjunto diverso de gêneros. E explica tal proposta de classificação:

Trata-se de um gênero do discurso acadêmico resultado de um


conjunto planejado e organizado de propostas didáticas pautadas
em uma abordagem de ensino com a finalidade de sistematizar
conhecimentos. Trata-se de um suporte porque é o locus no qual esse
todo organizado se fixa e se constitui, no contexto de
ensino/aprendizagem de LE, como um referencial didático-
pedagógico para professores e alunos a serviço do aprimoramento
das habilidades necessárias para que o aprendiz interaja, na língua-
alvo, com falantes dessa língua.

Ao propor uma defesa do LD como um gênero de discurso,


pauta-se nas condições de êxito e de própria constituição de um

72
gênero, de acordo com Maingueneau (2004): uma finalidade
reconhecida, o estatuto de parceiros legítimos, o lugar e o momento
legítimos, o suporte material e a organização textual.
No que tange à finalidade reconhecida, trata-se de um
dispositivo que tem como objetivo colaborar com o ensino de uma
língua adicional, servindo- se como apoio, como uma das
ferramentas possíveis para o professor de LAC. É bem verdade
que, em muitos contextos educacionais, o LD ganha outros
contornos, deixando de ser uma ferramenta de apoio para o
docente para passar a ocupar um papel central na sala de aula,
criando-se coerções para o trabalho do professor a partir da
premissa de que o LD seria o guia a ser seguido e usado sem o
mínimo de reflexão crítica por parte de quem o adota.
Nem mesmo a finalidade do uso de um LD está sedimentada,
pois há os que vão fazer do LD não um auxílio para o processo de
ensino-aprendizagem, mas o próprio objeto do ensino. Ainda
assim, grosso modo, podemos pensar que haveria, pelo menos,
algumas possibilidades de finalidade para o LD. De acordo com
Maingueneau (2004, p. 66),

todo gênero de discurso visa a um certo tipo de modificação da


situação da qual participa. Essa finalidade se define ao se responder
à questão implícita: ‘Estamos aqui para dizer o quê?’. (...) A
determinação correta dessa finalidade é indispensável para que o
destinatário possa ter um comportamento adequado ao gênero de
discurso utilizado.

Em relação ao estatuto dos parceiros legítimos, devemos


recuperar o que questiona Maingueneau (2004, p. 66): “Que papel
devem assumir o enunciador e o coenunciador? Nos diferentes
gêneros do discurso, já se determina de quem parte e a quem se
dirige a fala”. A partir da reflexão proposta por esse teórico,
interpretando o termo “fala” como qualquer enunciado escrito ou
oral, no caso do LD, podemos afirmar que esse possibilita
diferentes modos de construção dessa parceria enunciativa, a partir

73
da observação das vozes que enunciam nas diferentes partes do LD
e para quem tais vozes enunciam.
Num LD, podemos observar, pelo menos, duas relações de
enunciação entre parceiros (nome que ressalta a implicação de
várias instâncias no processo de ensino-aprendizagem de LAC): a)
Enunciador do LD – professor; b) Enunciador do LD – aluno.
Veremos mais adiante que essa relação entre coenunciadores no LD
pode apresentar ainda outras configurações.
No que se refere à interlocução no âmbito do LD, concordamos
com Dell’Isolla (2009, p. 103), ao afirmar que com o objetivo de
ensino de uma LE, o LD instaura parceiros legítimos “porque ele
envolve alunos que dele se utilizam, escolas que o adotam e
professores que dele fazem um recurso pedagógico”.
Em relação ao lugar e ao momento legítimos, tem-se o contexto
escolar como o locus de uso e de circulação do LD de LAC (no
contexto da Educação Básica) e a aula como um dos momentos
possíveis em que o LD pode circular e se constituir como gênero.
Maingueneau (2004) ressalta que os gêneros de discurso, de
maneira geral, inscrevem e legitimam um certo lugar e um certo
momento, de modo que são coerções não externas à materialidade
linguística, mas constitutivas do próprio gênero.
No que concerne à sua organização textual, o LD possui uma
estabilidade relativa em relação às suas partes, dentre as quais,
grosso modo, podem-se destacar: capa, frontispício, sumário,
índice ou syllabus, divisão em lições, unidades ou capítulos e
anexos que podem incluir apêndices gramaticais, glossário, cartelas
com adesivos (algo muito comum em LDs de LAC), material
complementar (anexado ao LD ou disponibilizado online para o
docente) e Manual do Professor.
Sobre o suporte material, “o que chamamos ‘texto’ não é,
então, um conteúdo a ser transmitido por este ou aquele veículo,
pois o texto é inseparável de seu modo de existência material: modo
de suporte/transporte (...)” (MAINGUENEAU, 2004, p. 68). Desse
modo, não podemos desconsiderar os aspectos materiais (físicos)
que constituem o LD e que, no caso do LD de LAC, possuem um

74
aspecto atraente não só para as crianças, mas também para os pais
que adquirem o LD.
Durante nossas pesquisas com LD de LAC, temos observado a
recorrência do uso de muitas cores nas capas e do uso do papel
couchê em sua versão envernizada na impressão dos LDs. Tal
papel é

revestido de um ou ambos os lados por uma fina camada de


substâncias minerais, que lhe dá aspecto encorpado e brilhante,
texturizado, mate ou fosco. Por possuir ótimas características para
impressão, garante cores vivas e definidas na impressão e é usado
para materiais com qualidade superior. É o papel mais usado para
revistas, folders, panfletos, cartões, entre outras publicações15.

O papel usado na impressão dos LDs de LAC não é apenas


algo externo que sustenta a materialidade linguística, mas serve
para também construir sentidos sobre o próprio LD, constituindo-
o como mais um elemento que compõe o gênero.
Temos a hipótese de que o papel usado nesses LDs provoca
nos pais a sensação de que é um material de “boa qualidade”. Seria
diferente, por exemplo, se o LD fosse impresso em papel jornal.
Seria a mesma materialidade linguística, mas o “produto” seria
outro. O LD não venderia e talvez não tivesse como ser usado com
crianças, por exemplo, pois o papel jornal é extremamente frágil. A
espessura do papel, altura, largura, profundidade, tudo isso
importa na constituição do gênero e leva em consideração o lugar
em que esse gênero irá circular e quem irá manipulá-lo. O suporte,
portanto, não é somente algo que “suporta” o texto, mas é um
elemento de constituição genérica.
Todo LD, ainda que não assuma uma perspectiva de trabalho
com gêneros escritos e orais, ainda que não chame os textos que
aparecem ao longo do material de gêneros, trabalha com textos (ora
escritos, ora orais, sejam eles artificiais ou autênticos). Desse modo,

15Informação retirada do site: http://www.mtall.com.br/papel-tipos-e-aplicacoes/


(Data de acesso: 24/07/2017)

75
essas outras textualidades que vão circular ao longo da obra, tais
como canções, diálogos, adivinhas, tiras cômicas, etc., o que
seriam? Seriam gêneros dentro do gênero LD? Ou poderíamos
pensar numa espécie de escala hierárquica entre os textos, de modo
que haveria o LD como “macrogênero” e os outros textos que
figurariam ao longo do LD seriam considerados “microgêneros”?
Essa divisão entre macro e microgêneros não nos parece produtiva,
além de não ser funcional para se pensar de que modo esses textos
circulam e contribuem para a construção de determinados sentidos
ao longo do material.
Concordamos que talvez faça mais sentido, dentro da nossa
proposta, pensar no LD como um plano enunciativo, isto é, o LD
como um enunciado que dá sustentação às tantas outras vozes e
enunciados que possam aparecer e circular ao longo da coleção
didática. É bem verdade que tal perspectiva não contradiz a ideia
do LD como gênero, mas a reforça, pois de acordo com
Maingueneau (2004, p. 56-57), “emprega-se também ‘enunciado’
para designar uma sequência verbal que forma uma unidade de
comunicação completa no âmbito de um determinado gênero de
discurso (...)”.
Tal modo de concepção do LD implica pensar que haveria,
então, um “hiperenunciador”, que se apresenta como a voz que se
dirige tanto ao aluno (no Livro do Aluno) quanto ao docente (no
Manual do Professor) e que organizaria a entrada desses
enunciados outros (desses outros gêneros) no corpo do LD. Isto
acarretaria, como consequência, a circulação de muitas outras
vozes ao longo do material. Tal proposta de se pensar a
organização do LD nos ajuda a entender que vozes circulam, quem
enuncia, para quem, em que momento e que efeitos se produzem a
partir de tais interlocuções.
A partir de tal entendimento, do LD como um plano
enunciativo no qual muitas vozes circulam, fizemos, num primeiro
momento, um mapeamento de cada volume de cada coleção com o
objetivo de mapear (quantitativamente) que tipos de textos

76
(gêneros) estavam circulando nos LDs e de que maneira tais
gêneros se atualizariam. Utilizamos os seguintes critérios:
• Qual é a quantidade total de textos escritos e orais?
• Quais são os gêneros de discurso contemplados?
• Da quantidade total de textos escritos e orais, quantos são
autênticos?
• Da quantidade total de textos escritos e orais, quantos textos
são autênticos com adaptações?
• Da quantidade total de textos escritos e orais, quantos são
artificiais?
• Que atividades lúdicas são propostas?
A partir de tais critérios, foram elaboradas tabelas (uma para
cada volume de cada coleção, num total de dez) a partir das quais
foi feita a quantificação e os apontamentos para que tivéssemos
essa visão mais macro das obras. Entendemos que esse passo de
construção das tabelas não é algo prévio à análise, mas já um
exercício analítico do aprendiz-cartógrafo, no sentido de que a
elaboração dessas tabelas e sua posterior leitura e análise, nos
possibilitou vislumbrar modos de aproximação desse corpus,
modos de entrar na materialidade linguística e estabelecer relações
com conceitos da Análise do Discurso.
Conforme pode-se observar nas tabelas, há um predomínio de
uso de textos artificiais e quando há o uso de textos autênticos,
muitos recebem um tratamento, o qual o próprio LD chama de
adaptação.
Ao pensar a produção de sentidos por meio de enunciados no
contexto da AD, partimos do pressuposto de que todo ato
enunciativo pressupõe a presença de um coenunciador, isto é, de
um par interlocutivo. Maingueneau (2004) salienta que a
enunciação, mesmo aquela produzida sem a presença de uma
entidade empírica, mesmo aquela supostamente monológica, já
inscreve um outro, o que caracterizaria uma interatividade
constitutiva do plano enunciativo.
De acordo com Maingueneau (2008, p. 75), “um procedimento
que se funda sobre uma semântica ‘global’ não apreende o discurso

77
privilegiando esse ou aquele dentre seus ‘planos’, mas integrando-
os todos ao mesmo tempo, tanto na ordem do enunciado quanto na
da enunciação”.
O termo “global” não tem a premissa de ser totalizante,
tampouco remete a uma teoria aplicável completamente a qualquer
corpus, como se todas as categorias elencadas pelo autor tivessem
que ser necessariamente localizadas no texto pelo analista. Não é
esse o sentido postulado por Maingueneau (2008).
“Global” instaura uma ideia de diferentes prismas ou de
diferentes elementos que atuam em conjunto e que contribuem
para a construção de sentidos numa determinada materialidade
linguística. Uma categoria ou outra pode ressaltar, a depender do
corpus em questão, mas a ideia de uma semântica global tem nos
ajudado no sentido de olhar para o LD como um enunciado no qual
há múltiplas instâncias ou dispositivos atuando para a construção
de sentidos diversos, tais como de criança, de aluno, de docente, de
ensino de LAC etc.
Maingueneau (2008), ao propor uma Semântica Global, evoca
os seguintes planos passíveis de serem observáveis numa
determinada materialidade linguística:
● Intertextualidade
● Vocabulário
● Tema(s)
● O estatuto do enunciador e do destinatário
● A dêixis enunciativa
● O modo de enunciação
● O modo de coesão
Partindo-se dessa ideia, enfocamos um dos tópicos elencados
por Maingueneau como constitutivo da Semântica Global: o
estatuto do enunciador e do destinatário (que no presente trabalho,
substituímos pelo termo coenunciador)16. Interessa-nos esse tópico

16Se admitimos que o discurso é interativo, que ele mobiliza dois parceiros, torna-
se difícil nomear “destinatário” o interlocutor, pois, assim, a impressão é a que a

78
para pensar, no que tange aos LDs de LAC em questão, as relações
que se estabelecem ao longo das coleções didáticas entre as
diferentes instâncias enunciativas.
Ao analisarmos os volumes das coleções, identificamos a
presença de diferentes enunciadores e, consequentemente, de
distintos coenunciadores, de modo que o caráter heterogêneo e
polifônico do LD se evidencia. De acordo com o senso comum,
acredita-se que num LD, somente haveria a voz do(s) autor(s) da
obra (o que justificaria, inclusive, a insistência de muitos LDs em
usar textos “artificiais”), mas mostraremos que outras vozes
também se manifestam.
Foram, portanto, observadas as seguintes instâncias de pares
interlocutivos nas coleções analisadas:
a. Hiperenunciador x coenunciador-aluno;
b. Enunciador-personagem x coenunciador-personagem;
c. Enunciador-personagem x coenunciador-aluno;
d. Enunciador inanimado x coenunciador-aluno.
Essas serão as categorias da primeira etapa de análise do
corpus do presente trabalho. O objetivo é observar imagens de
infância, criança e ensino que se constroem ao longo do LD por
meio da análise dessas diversas instâncias enunciativas.
Embora Maingueneau (2008) não tenha tratado especificamente
do conceito de “gênero de discurso” em seu texto sobre a Semântica
Global, ele aborda o “modo de enunciação” como sendo um dos
vetores que comporiam uma análise a partir desse viés semântico.
Consideramos aqui o modo de enunciação equivalente à noção de
gênero de discurso, pois segundo o próprio autor, “um discurso não
é somente determinado conteúdo associado a uma dêixis e a um
estatuto de enunciador e de destinatário, é também uma ‘maneira de

enunciação caminha em sentido único, que ela é apenas a expressão do


pensamento de um locutor que se dirige a um destinatário passivo. Por isso, (...)
não falaremos mais de “destinatário”, mas de coenunciador. Empregado no plural
(...), coenunciadores designará os dois parceiros do discurso (MAINGUENEAU,
2004, p. 54).

79
dizer’ específica, a que nós chamaremos um modo de enunciação
(MAINGUENEAU, 2008, p. 90)”.
Julgamos pertinente articular tais propostas na medida em que
uma análise realizada a partir desse conceito nos permite
vislumbrar o LD como um plano enunciativo no qual vários
dispositivos atuam para construção de sentidos. Dentre todas as
categorias elencadas por Maingueneau (2008) em sua teorização
sobre uma Semântica Global, no presente trabalho, vamos
privilegiar o estatuto do enunciador e do destinatário
(coenunciador). Tal recorte deve-se às especificidades do próprio
corpus: essa foi a categoria que mais ressaltou ao longo da leitura
das coleções didáticas. Isso não invalida que outros pesquisadores
possam empreender uma análise dos/nos mesmos materiais
contemplando outros pontos da Semântica Global que não
abordamos neste trabalho. No próximo tópico, portanto, teceremos
considerações sobre a categoria de análise elencada.

80
3. O ESTATUTO DO ENUNCIADOR E DO
COENUNCIADOR EM LIVROS DIDÁTICOS DE
ESPANHOL PARA CRIANÇAS

Este capítulo tem como propósito expor a análise do estatuto


do enunciador e do coenunciador nos LDs que constituem nosso
corpus, a saber: Nuevo Recreo e Ventanita al Español. O objetivo desta
análise é mostrar as diferentes vozes que circulam ao longo das
referidas coleções didáticas e, como consequência, problematizar
as concepções de ensino e as imagens de criança e infância que se
constroem a partir de tais modos de enunciação.

3.1 Hiperenunciador x coenunciador-aluno

Na relação interlocutiva que se apresenta aqui, precisamos


necessariamente pensar que há, então, um enunciador que estaria
numa escala hierárquica em posição superior em relação aos
demais enunciadores que serão convocados a também enunciarem
nesse material. Estamos, portanto, chamando aqui de
“hiperenunciador” a voz do(s) autor(es) da obra, pois esse
“enunciador supremo” será aquele que vai organizar esse plano
enunciativo e permitir que outros textos (outros enunciados)
possam também fazer parte dessa materialidade linguística e assim
constituir a obra.
Basicamente, esse hiperenunciador se manifesta ao longo da
coleção didática nos comandos das atividades propostas aos
alunos. Desse modo, no que tange ao estatuto do enunciador e do
coenunciador, temos uma relação entre um hiperenunciador e o
aluno, como o coenunciador interpelado.

81
Os comandos das atividades são dados, em sua maior parte,
por meio do uso do Imperativo, com o uso de tratamento informal
(tú), que em português brasileiro, equivaleria à forma “você”.
De acordo com Matte Bon (1998), recorre-se ao modo
imperativo para dar ordens, conselhos, para oferecer, para pedir,
para expressar condições, etc; embora não seja essa a única forma
de se realizar esses atos comunicativos em língua espanhola.
O autor chama a atenção para o fato de que, ao se fazer uso do
imperativo, não há uma coincidência entre o sujeito gramatical do
enunciado e o enunciador. O enunciador é quem enuncia com a
forma imperativa e interpela um coenunciador a que aja, a que
produza uma ação, que será, por sua vez, efeito da enunciação. O
coenunciador inscrito pela forma imperativa é quem seria o sujeito
gramatical, mas designado a um papel meramente passivo no
contexto da interlocução:

Cada vez que un enunciador emplea un imperativo, lo que hace es


imponer un predicado a un sujeto destinatario relegado a una
posición de receptor totalmente pasivo: el enunciador le “tira un
predicado a la cara”, cualesquiera que sean el tipo de predicado y
sus intenciones comunicativas (MATTE BON, 1998, p. 95).

A partir da reflexão trazida por Matte Bon (1998) e a partir da


observação dos comandos retirados das unidades da coleção
didática analisada, podemos observar que, em sua maioria, o
hiperenunciador, ao propor atividades ao aluno, faz uso do modo
imperativo. Ao se olhar as tabelas, pode-se perceber que no LD1 de
Nuevo Recreo, os enunciados são mais curtos e, consequentemente,
mais diretos. A partir do LD2 da mesma coleção didática, os
comandos das questões vão se complexificando em termos
oracionais. O mesmo ocorre com a coleção Ventanita al Español.
Observe-se que não há muita margem para reflexão, como
pode-se ver nos exemplos retirados do LD 1 de Nuevo Recreo e do
Ventanita al Español:

82
1. Escucha y canta. (Nuevo Recreo)
2. Escucha y numera. (Nuevo Recreo)
3. Marca y pinta. (Nuevo Recreo)
4. Pega los adhesivos. (Nuevo Recreo)
5. Escucha y juega. (Ventanita al Español)
6. Escucha y dibuja. (Ventanita al Español)
7. Canta y muévete. (Ventanita al Español)

Nossa hipótese para esse modo de construção sintática desses


enunciados tem relação com o possível nível de letramento do
coenunciador inscrito no LD1, que seria um aluno do 1° ano do
Ensino Fundamental e que, de acordo com os documentos
orientadores da Educação Básica brasileira (BRASIL, 1998), estaria
no ano da alfabetização em língua materna.
O uso da forma imperativa constrói uma imagem de criança e
de aluno passivo, acrítico e uma visão mecanicista de ensino, no
qual o aluno é dirigido, interpelado por esse hiperenunciador a que
faça o que lhe é solicitado.
Além do uso da forma imperativa, há outros enunciados que
se formam a partir da construção “verbo ir + a + infinitivo”. Tal
construção em língua espanhola se usa para expressar futuro
próximo. Dessa forma, por exemplo, o enunciado “Vou viajar”
pode-se dizer em espanhol “Voy a viajar”. No entanto, tal matiz de
sentido não se confirma nos enunciados que figuram nos comandos
das questões, conforme podemos observar a seguir:

¡Vamos a jugar! (LD 1 – U 0 – Nuevo Recreo)


¡Vamos a jugar al detective! (LD 2 – UD 1 - Nuevo Recreo)
¡Vamos a cantar! (LD 2 – UD 8 - Nuevo Recreo)
¡Ahora tú! ¡Vamos a dibujar! (LD 3 – UD 1 - Nuevo Recreo)
¡Vamos a charlar! (LD 4 – UD 3 – Ventanita al Español)
¡Hagamos un libro digital! (LD 5 – UD 6 – Ventanita al Español)

Se fôssemos nos basear nos sentidos indicados pela língua


espanhola, entenderíamos tais enunciados como construindo uma

83
relação de ação que se realizaria num futuro próximo ao momento
de enunciação e no qual o enunciador se inclui e se implica na
realização dessa ação.
No entanto, nos comandos das atividades do LD não se constrói
uma ideia de futuro próximo, pois o hiperenunciador, ao se incluir
como também sujeito afetado pela ação, constrói uma relação de
cumplicidade com o seu par interlocutivo, no caso, o aluno.
Ao enunciar “¡Vamos a jugar al detective!”, esse
hiperenunciador se aproxima de seu coenunciador e se torna um
coparticipante daquela atividade, como efeito desse tipo de
construção. Sabe-se que, na realidade, é ainda uma ordem, um
comando para que o coenunciador faça isso, mas esse enunciado se
dá de maneira modalizada, o que pode mascarar o caráter deôntico
dos enunciados em questão. Não se trata de uma sugestão, nem de
uma atividade opcional, mas é como se o hiperenunciador estivesse
convidando o aluno (a criança) para realizar uma atividade:
“Vamos cantar juntos”, “Vou jogar com você”, etc.
O coenunciador instaurado por meio desses enunciados, apesar
de ainda estar recebendo direcionamentos no que tange à realização
das atividades, por meio de um tom mais modalizado e ameno,
adquire uma nova posição em relação àquela construída por meio dos
enunciados imperativos. A relação antes entre os pares da
interlocução sugeria uma hierarquia, na qual o hiperenunciador era
quem delegava as atividades ao coenunciador-aluno, que deveria
apenas cumprir com o comando dado.
Aqui, os coenunciadores estão mais próximos
hierarquicamente e, num primeiro momento, pode-se dizer que
estão numa relação mais horizontal. Afirmamos “num primeiro
momento”, pois pode-se perceber que a suposta horizontalidade
não significa que os parceiros estejam no mesmo nível hierárquico,
prevalecendo ainda o hiperenunciador diante do coenunciador
instaurado, conforme pode-se observar no enunciado seguinte:

¡Ahora tú! ¡Vamos a dibujar! (LD 3 – UD 1 – Nuevo Recreo)

84
Apesar do hiperenunciador construir seu enunciado com o
uso da primeira pessoa do plural, instaurando uma relação mais
horizontal com seu coenunciador, antes inicia o comando da
atividade com o pronome “tú”, que se direciona ao seu par
interlocutivo. Quem vai desenhar, afinal? É um convite a que
ambos possam compartilhar essa atividade ou somente o aluno
deverá desenhar e esse “vamos” seria uma espécie de encenação de
uma suposta cumplicidade, quando ainda predomina o
hiperenunciador diante do coenunciador?
No que concerne ao aluno, observa-se que esse ainda é
concebido numa posição passiva diante desse hiperenunciador. O
mesmo podemos observar nos enunciados a seguir, nos quais o
hiperenunciador usa a construção na primeira pessoa do plural
num primeiro momento e logo após, volta a usar a forma
imperativa, desfazendo-se rapidamente a suposta cumplicidade e
horizontalidade construída via discurso. É como se o
hiperenunciador estabelecesse um acordo com o coenunciador-
aluno: “Vamos jogar o bingo juntos, mas é você quem tem que
escolher as seis palavras, escutar e seguir os comandos...”

¡Vamos a jugar al bingo! Elige seis palabras y… ¡suerte!


(LD 2 – UD 3 – Nuevo Recreo)
¡Vamos a jugar! Escucha y sigue los comandos.
(LD 2 – UD 3 – Nuevo Recreo)

Observamos, então, que ainda que em alguns comandos se


adote um discurso mais modalizado, permanece uma relação
hierárquica na qual o hiperenunciador controla, dirige toda a cena
e o fazer pedagógico ao longo da coleção didática, construindo-se
e reiterando-se uma imagem mecanicista de aluno, sem muita
abertura para o pensamento crítico.

85
3.2 Enunciador-personagem x coenunciador-personagem

Ao observar as diferentes vozes que se manifestam ao longo


da coleção didática, percebemos que uma das relações que se
instauram entre os coenunciadores nos remete a uma lógica de uma
“quarta parede” tal qual como no teatro.
A metáfora da “quarta parede” advém dos estudos teatrais e
nos parece uma noção bastante produtiva para se pensar numa
relação análoga que se estabelece nas coleções didáticas em
questão.
O palco do teatro, onde as obras são encenadas, é uma espécie
de caixa cênica composta de quatro paredes e o público espectador
encontra-se fora dessa caixa cênica, portando-se somente como
observador da trama. Com isso, constrói-se no palco uma narrativa
que se desenrola num tempo e num espaço que são alheios ao
tempo e ao espaço em que se encontra o espectador, que por sua
vez, embarca na lógica da história e se transporta para esse outro
tempo e outro espaço. O teatro deixa de existir para dar lugar aos
conflitos entre os personagens e aos diferentes cenários por onde
circulam. O espectador apenas observa o desenrolar da trama que
ocorre dentro da caixa.
Tal ideia da quarta parede se manifesta na relação entre um
enunciador-personagem e um coenunciador-personagem. Esses
são enunciadores que não trazem marcas contextuais e que, grosso
modo, são apresentados em forma de ilustrações e com balões de
falas nos quais circulam seus enunciados. O enunciador e o
coenunciador-personagem interagem entre si, excluindo o
coenunciador-aluno, que não é convocado a participar daquele
momento enunciativo, restando-lhe a função de espectador.
O gênero diálogo (conversa cotidiana) é amplamente usado ao
longo da coleção didática, mas sempre na lógica do texto não
autêntico. Essa relação entre os coenunciadores se constrói
basicamente por meio dos diálogos artificiais que compõem a obra.
Chiaretti (2005, p.133) aponta que “os diálogos didáticos ainda

86
estão longe de um tratamento voltado para um discurso real,
autêntico, provável de ser ouvido ou lido fora do livro didático”.
Ao apresentar simulacros de situações comunicativas que
supostamente o aluno viveria, toma-se a generalização como regra
para definir quais situações fariam parte do cotidiano das crianças,
retomando-se assim novamente aquela concepção de infância
como algo único, universal e atemporal.
Grigoletto (1999, p. 68) destaca como pode ser problemático o
caráter homogeneizante que se constrói no LD de língua adicional,

que é dado pelo efeito de uniformização provocados nos alunos (...)


na repetição de uma estrutura comum a todas as unidades, com tipos
de seções que se mantêm constantes por todo o livro (...) e a
apresentação das formas e dos conteúdos como naturais, criando-se
o efeito de um discurso cuja verdade 'já está lá’.

Dias (2009, p. 207, 208), por outro lado, propõe que devemos
priorizar “a utilização de textos autênticos ou textos sociais tais
como eles se apresentam no original, evitando os que são
artificialmente produzidos para a situação de aprendizagem
visando prioritariamente o estudo de aspectos léxico- gramaticais”.
Observem-se alguns enunciados:

87
Imagem 5 - Enunciado 1 – Nuevo Recreo

Fonte: AMENDOLA, 2014.

No enunciado 1, temos um diálogo entre dois personagens


(Gabriel e Ana) numa loja de compra de animais domésticos. Com
esse diálogo, abre-se a unidade 4 do livro 3. Observe-se que os
personagens enunciam entre si, anulando-se assim o coenunciador-
aluno, que não é aqui interpelado a fazer parte e interagir com os
personagens e com o que enunciam. O aluno, então, é instaurado
como apenas um observador da cena que se desenrola no LD.
Essa questão da lógica teatral comentada anteriormente se
evidencia com uma preparação para a cena que se desenvolverá a
seguir por meio de uma narração que tenta, de alguma forma,

88
trazer alguns dados contextuais para esse diálogo (que é artificial,
como se pode perceber): “Gabriel encuentra a su amiga Ana en una
tienda de mascotas. ¿Vamos a escucharlos?”.
Podemos afirmar que essa voz da narração que entra para
introduzir o diálogo (que no texto teatral recebe o nome de
“rubrica”) é a voz do hiperenunciador, que teria como papel,
orquestrar (como um maestro) essa polifonia presente no LD, isto
é, a presença de tantas vozes e instâncias enunciativas que se
constroem a partir daí.
Observe-se que quem se dirige ao coenunciador-aluno é o
hiperenunciador e não os personagens do diálogo, que apenas
enunciam entre si, num tempo e espaço próprios. Por esse motivo,
trouxemos do âmbito teatral a metáfora da “quarta parede” e então
falamos aqui que nessa relação entre os coenunciadores há uma
manutenção dessa “quarta parede”, separando-se assim ator e
público, ou no LD, os personagens e o coenunciador-aluno.
Essa lógica do diálogo entre os personagens e que coloca o
aluno nesse lugar de espectador pode-se afirmar que é a tônica da
coleção didática, variando apenas as situações nas quais a conversa
cotidiana é apresentada. Raro seria destacar momentos em que esse
movimento discursivo não ocorra. Por esse motivo, não cabe no
presente trabalho trazer todas as ocorrências da obra, inclusive
porque cairíamos em comentários muito semelhantes, pois
basicamente trata-se do mesmo fenômeno observável ao longo de
toda a obra.

89
Imagem 6 - Enunciado 2 – Nuevo Recreo

Fonte: AMENDOLA, 2014.

Trouxemos, no entanto, mais uma mostra (enunciado 2)


retirada da unidade 8 do Livro 4 da coleção Nuevo Recreo, na qual
aparece um diálogo entre uma mãe e seus três filhos sobre aonde
querem ir durante as férias. Cada filho quer ir a um lugar diferente:
um deseja ir à montanha, outro à praia e outra à roça. Ao final, após
discussão dos filhos, a mãe decide ir numa semana à praia e na
outra semana ao campo. Após perceber a insatisfação do filho mais
velho, a mãe promete nas férias de inverno ir à montanha.
O que destacamos aqui é, conforme comentado anteriormente,
a anulação do coenunciador-aluno diante do diálogo que se
estabelece entre os personagens da família García. Ao aluno só lhe
cabe observar o desenrolar da cena para somente depois poder
fazer uma atividade sobre a cena construída anteriormente, como
pode-se observar no enunciado do exercício 2: “Marca A en los
gustos de Alejandro, M en los de Mónica y E en los de Enrique, de acuerdo
con la historia”.
Podemos pensar que nesse momento, na hora da atividade, o
coenunciador-aluno é convocado a participar, mas a relação aqui já

90
é outra: já se dá entre o hiperenunciador e o coenunciador-aluno. É
interessante observar que durante o diálogo entre os personagens,
anulam-se tanto o hiperenunciador quanto o coenunciador-aluno e
logo após o término da interação entre os enunciadores
personagens, esses coenunciadores voltam a assumir os seus
respectivos papeis. Dialogando, portanto, com a lógica teatral,
podemos afirmar que há ao longo da coleção didática, nesses
momentos em que enunciam os personagens entre si, uma
manutenção da “quarta parede”.

Imagem 7 - Enunciado 3 – Nuevo Recreo

Fonte: AMENDOLA, 2014.

91
Podemos afirmar que a manutenção da “quarta parede”
também se instaura na atividade 8 da unidade 1 do livro 5, na qual
apresenta-se um diálogo entre os personagens, mas que tenta de
alguma forma, mimetizar o gênero chat. Observe-se que esse chat,
diálogo que se dá por meio de enunciados escritos e não oralizados
como os analisados anteriormente, encontra-se com algumas
palavras pendentes para que o aluno possa completar de acordo
com o áudio. Ora, por que uma atividade de compreensão oral
diante de um gênero que não é oral? Parece-nos uma incoerência
didático- pedagógica que desconsidera as características do gênero
chat e que tem claramente uma proposta estrutural de
reconhecimento de vocabulário por parte do aluno.
Ainda que o aluno necessite completar o texto com as palavras
que faltam, podemos observar que a “quarta parede” continua
presente, pois o aluno mesmo ao completar as palavras não é
interpelado pelos personagens que enunciam por meio do chat. Os
personagens enunciam entre si, deixando o coenunciador-aluno de
fora e novamente na posição de observador. Tal posição do aluno
dialoga com a ideia da “quarta parede”, pois, conforme já
discutimos, tal noção no âmbito do teatro implica “um limite
virtual que transforma o ato teatral em um quadro a ser admirado,
uma janela para outra realidade, intocável e distante (CIRINO,
2013, p. 10, 11)”.

92
Imagem 8 - Enunciado 4 – Ventanita al Español

Fonte: FEITOSA, 2013.

93
Imagem 9 - Enunciado 5 – Ventanita al Español

Fonte: FEITOSA, 2013.

Ao longo da coleção Ventanita al español, o par interlocutivo


que mais se mostra presente é em relação a um enunciador-

94
personagem que enuncia para um coenunciador-personagem, o
que acaba excluindo o aluno da interação, procedimento que aqui
estamos chamando de manutenção da quarta parede.
Conforme vimos anteriormente, quando esse tipo de interação
acontece, o aluno tende a ocupar uma posição mais passiva, pois
em nenhum momento é convocado a tomar a palavra e se torna
apenas um observador de cenas que se desenrolam diante de seus
olhos. Podemos inferir que se desenha uma ideia de que o aluno
aprenderá as estruturas linguísticas da LA por meio da observação
da “língua em uso”.
No entanto, cabe o questionamento: que “uso” é esse quando
se apresentam ao longo da coleção didática mostras dialogais
complemente artificiais, isto é, elaboradas para fins didáticos. Cabe
destacar ainda que tais diálogos são de enunciadores fictícios, isto
é, personagens falando para outros personagens, desconsiderando-
se da interlocução diálogos autênticos e construídos numa
conjuntura social.
É importante considerar que nessa coleção didática é muito
forte a presença de diálogos com fins moralizadores, de modo a que
o aluno, mesmo sendo construído discursivamente como ausente
da interlocução, como um observador, é interpelado indiretamente
pela lição que muitos diálogos desejam transmitir. É como se fosse
uma mensagem enviesada: os personagens dialogam entre si, mas
para construir sentidos num terceiro que somente observa a cena.
Observamos tal característica mais fortemente na seção “Ventanita
a la lectura”, conforme pudemos observar nos enunciados
anteriores.
Observe-se que no enunciado 4, apresenta-se um menino que
desempenha atividades domésticas com a mãe e que, ao ser
convidado por seus amigos para brincar, somente o faz após
terminar de varrer o quintal. A partir dessa encenação discursiva,
constrói-se uma ideia moralizante de obediência aos pais e
cumprimentos deveres antes de qualquer diversão.
De maneira semelhante ocorre no enunciado 5, no qual tal
efeito moralizante é ainda mais explícito. Inicialmente, a cena se

95
desenvolve somente por meio de um monólogo, no qual uma
menina busca sua gata pela casa, a encontra e lhe dá um pouco de
leite. A gata fica doente e a interlocução entre os personagens
ocorre no momento em que a gata é levada à veterinária, onde se
verifica que a gata pode haver comido ou bebido algo que não
estivesse muito bom. Rapidamente, a personagem principal
constata que havia sido o leite dado à gata por ela e para explicitar
a ideia moralizante dessa cena, a personagem se encontra já no
último quadrinho posicionada ao lado de um quadro negro, no
qual consta a seguinte mensagem: “Sempre verifica a data de
vencimento dos alimentos antes de consumir os alimentos”.
Observe-se que a ideia desses diálogos não é oportunizar aos
alunos acesso a gêneros escritos e orais autênticos, mas sim, por
meio de enunciados rasos e artificiais, provocar um efeito
moralizante no observador da cena, que é o aluno. Ainda que se
tenha em mente em moralizar o aluno, a quarta parede não é
quebrada em nenhum momento.
Portanto, podemos concluir que tal estatuto entre os
coenunciadores personagens ao longo da obra contribui para,
novamente, construir uma imagem de aluno espectador passivo.

3.3 Enunciador-personagem x coenunciador-aluno

Outra relação entre coenunciadores que se estabelece ao longo


dos LDs trata de um enunciador-personagem que enuncia para o
coenunciador-aluno, falando-lhe diretamente. Instaura-se, então,
outro estatuto, que se opõe ao visto anteriormente. Se antes havia a
manutenção da “quarta parede”, aqui falaremos da quebra da
“quarta parede”, conceito esse também advindo do campo das
artes cênicas.

96
Imagem 10 - Enunciado 6 – Nuevo Recreo

Fonte: AMENDOLA, 2014.

No enunciado mostrado anteriormente, observamos um


enunciador que se dirige diretamente ao coenunciador-aluno,
inscrevendo-o já no fio de seu discurso. Ao enunciar sobre sua
família no enunciado 6, inscreve o coenunciador-aluno com o uso
do pronome “te”, que se refere a uma segunda pessoa do singular
e instaura um tratamento informal, construindo-se um sentido de
aproximação, cumplicidade entre os coenunciadores.
Observe-se que não temos uma imagem atrelada a essa voz
que enuncia na canção (texto não autêntico), logo não se cria nem
sequer a ilusão de uma voz atribuída a uma entidade, ainda que
seja uma entidade fictícia. Não se sabe de quem é essa voz. Somente
podemos supor que seja a voz de uma criança, mas que criança
seria essa? A suposta voz infantil se manifestaria por certos usos
lexicais, como aqui o uso de acortamientos, que seria uma forma de
cortar palavras, muito usada no espanhol e geralmente atribuída a
crianças e adolescentes. Os acortamientos presentes nesse enunciado
são as palavras mamá (mamãe) e papá (papai), que nos permite
inferir que se trata de um suposto falar infantil e constrói um tom
de carinho e afeto.
A relação entre esse enunciador-personagem e esse
coenunciador-aluno fica ainda mais evidente quando o enunciado
se constrói juntamente com o direcionamento do olhar do

97
personagem que enuncia. No tópico anterior, vimos que inúmeros
diálogos trazem personagens que enunciam entre si, estando o
coenunciador-aluno na perspectiva de ouvinte e/ou espectador.
Aqui é diferente. O coenunciador-aluno é interpelado diretamente
por esse enunciador-personagem e a direção do olhar do
personagem para “fora” do LD, como se estivesse olhando
diretamente para o aluno, contribui para que se crie esse efeito de
quebra da “quarta parede”.
No teatro, a quebra da “quarta parede” se dá quando o ator se
vira para a plateia e começa a interagir com ela, convocando-a,
interpelando-a a que participe da obra. Nessa lógica, ao fazer isso,
rompe-se aquela caixa cênica fechada e que mantinha um tempo e
um espaço próprios. Agora, ao romper essa “quarta parede”, o
público se desfaz da ilusão criada pelo teatro e percebe que aquilo
é uma grande “farsa”, isto é, que é uma ficção. O espectador e o
ator partilham então do mesmo tempo e do mesmo espaço: o teatro.
A quebra da “quarta parede” também é um recurso cênico usado
em obras audiovisuais, como, por exemplo, no cinema. Quando um
ator olha diretamente para a câmera, diz-se que houve a quebra da
“quarta parede”, justamente porque assim, cria-se uma conexão
entre o telespectador e a obra.
Tal efeito aparece ao longo da coleção didática, embora em
menor número do que o estatuto discutido no tópico anterior. Em
alguns momentos dos LDs, com o auxílio de ilustrações ou fotos, o
enunciador-personagem não somente interpela o coenunciador-
aluno pelo uso de determinadas marcas linguísticas, como também
o encara, num efeito semelhante ao do ator da obra audiovisual que
encara a câmera e inscreve o espectador naquele jogo cênico. É o
que ocorre nos enunciados de 7 a 10:

98
Imagem 11 - Enunciado 7 – Nuevo Recreo

Fonte: AMENDOLA, 2014.

Imagem 12 - Enunciado 8 – Nuevo Recreo

Fonte: AMENDOLA, 2014.

99
Imagem 13 - Enunciado 9 – Nuevo Recreo

Imagem 14 - Enunciado 10 – Nuevo Recreo

Fonte das imagens 13 e 14: AMENDOLA, 2014.

100
Nos enunciados 7, 8, 9 e 10, podem-se observar ilustrações e
uma fotografia de enunciadores personagens que, ao enunciarem,
posicionam-se olhando diretamente para o coenunciador-aluno,
falando-lhe diretamente, tal qual ocorre nas linguagens teatral e
cinematográfica.
Concordamos com Cirino (2013, p. 10, 11), ao afirmar que o
conceito de quebra da “quarta parede” significa “fazer o ator e o
público se perceberem, interagirem de forma direta deixando de
lado a ilusão do espectador de ser apenas um observador invisível
(ou ignorado) da ação cênica”.
Dialogamos tal noção com a questão da interatividade
constitutiva dos enunciados, pois, de acordo com Maingueneau (2004,
p. 54), “toda enunciação (...) é uma troca, explícita ou implícita, com
outros enunciadores, virtuais ou reais, e supõe sempre a presença de
uma outra instância de enunciação à qual se dirige o enunciador e com
relação à qual constroi seu próprio discurso”.
No enunciado 7, o coenunciador se inscreve pelo uso do
vocativo “amigos”, novamente construindo-se assim uma relação
de proximidade entre o personagem e os alunos que são os
potenciais usuários do LD.
Nos enunciados 8, 9 e 10, o coenunciador é inscrito pelo uso de
perguntas com o uso do “tú”17. Com as perguntas, abre-se um espaço
para que o aluno possa enunciar e interagir com os personagens. Aqui
percebemos que o aluno deixa aquele lugar de passividade que
vinhamos sinalizando que se constrói em outras partes do LD para
poder ter um papel mais ativo, pois lhe é dada a autorização para
poder também enunciar e se posicionar diante do que lhe é proposto.
Lamentamos, no entanto, que haja poucas propostas desse tipo ao
longo da coleção didática. Acreditamos que se deve dar voz ao aluno,
mas essa prática ao longo dos LDs não é a regra.

17Parece, ao mesmo tempo, um discurso relatado e uma fala do Hiperenunciador


através do enunciador-personagem. Também pode ser pensado como uma
continuação do comando da atividade.

101
Imagem 15 - Enunciado 11 – Nuevo Recreo

Fonte: AMENDOLA, 2014.


No enunciado 11, a relação entre o enunciador-personagem e
o coenunciador-aluno se constrói de uma maneira um pouco
diferente, pois o enunciador começa usando a segunda pessoa do
singular (tú) no fragmento “Seguramente ya has dicho”, falando-lhe
diretamente e depois passa a enunciar a partir da primeira pessoa
do plural, marcado linguisticamente pelos termos em negrito:

Seguramente ya has dicho o escuchado algunas de estas frases: “Mamá,


cómprame este videojuego o esta muñeca”; “Papá, quiero zapatillas de esta
marca, y no de otra”. Todo parece girar alrededor de lo que tenemos o
queremos tener, y eso nos hace pensar que nuestros juguetes y ropas
determinan quienes somos. Nuestra identidad y la verdadera felicidad no
se encuentran en las cosas materiales, sino dentro de nosotros mismos, y
se manifiestan por medio de nuestras acciones y valores humanos. Por eso,
hay que consumir de forma justa y responsable, y comprar solo lo que
necesitamos. Antes de comprar algo, podemos hacernos estas preguntas:
¿necesito lo que voy a comprar? ¿cuándo lo voy a usar? ¿podría pedirlo
prestado a un amigo o familiar? Reflexionar sobre nuestras verdaderas
necesidades es una gran iniciativa.

102
Ao modular sua enunciação a partir da primeira pessoa do
plural, esse enunciador-personagem se aproxima do coenunciador,
constroi um sentido de cumplicidade, pois seriam ambos crianças
e partilhariam as mesmas questões e dificuldades. No enunciado,
problematiza-se o consumismo exacerbado da nossa sociedade e o
enunciador convoca o aluno a refletir, posicionando-se ao seu lado:
“Reflexionar sobre nuestras verdaderas necesidades es una gran
iniciativa”.
O enunciador também traz, no início, enunciados atribuídos a
outras crianças marcados pelas aspas, mas que também poderiam
ter sido enunciados pelo coenunciador. Usa-se o discurso direto
(mas um discurso direto hipotético, sem marcas contextuais) como
forma de argumentação contra a ideia do consumismo e também
como um recurso discursivo para instaurar uma cumplicidade
entre ambos os parceiros da enunciação.
Observe-se que, ao dizer “Seguramente ya has dicho o escuchado
alguna de estas frases”, instauram-se coenunciadores que
compartilham um mesmo saber, pois ambos já teriam dito ou
escutado tais enunciados citados. O advérbio “seguramente”
contribui para construir essa ideia de compartilhamento de um
conhecimento prévio entre as instâncias que participam dessa cena
enunciativa, pois não haveria dúvidas por parte do enunciador-
personagem quanto ao conhecimento dos enunciados atribuídos ao
coenunciador-aluno.

103
Imagem 16 - Enunciado 12 - Ventanita al Español

Fonte: FEITOSA, 2013.

Cabe destacar que no LD Ventanita al Español constam poucas


aparições desse tipo de interação interlocutiva, na qual um
enunciador-personagem dialoga diretamente com o coenunciador-
aluno, numa ideia de, como vimos, quebra da quarta parede.
O coenunciador se inscreve no enunciado pelo viés imagético,
ao observarmos que o personagem interage diretamente com o
aluno ao direcionar seu olhar para ele. Também podemos observar
a inscrição desse coenunciador-aluno pela marca desinencial de
segunda pessoa do singular (tú) presente no verbo “vas”.
No enunciado 12, podemos observar que a menina da foto faz
uma pergunta para o coenunciador-aluno, de forma a convocá-lo a
se posicionar, a ter um espaço na aula de LA para uma agência. O
aluno, nesse tipo de construção interlocutiva, não é passivo, não
assiste a diferentes pares enunciativos apenas, mas precisa
necessariamente assumir seu lugar na centralidade do processo de
aprendizagem. Entendemos que seria importante que se
investissem cada vez mais nesse tipo de proposta didático-
pedagógica nos manuais de LA para crianças, pois infelizmente,
ainda é raro esse tipo de proposta.

104
Imagem 17 - Enunciado 13 - Ventanita al Español

Fonte: FEITOSA, 2013.

Dialogando com o enunciado anterior, temos o enunciado 13,


que consiste na verdade no agrupamento de duas falas de dois
personagens-criança. No exercício em questão, tem-se o objetivo de
consolidar o vocabulário referente ao campo semântico
alimentação. Para isso, propõe-se no enunciado 13 que o
coenunciador-aluno interaja com os personagens do livro ao
responder seus questionamentos e assim, reforce também alguns
aspectos gramaticais, tais como o uso do verbo gustar e dos léxicos
también e tampoco.
Conforme podemos observar, aqui também há uma quebra da
quarta parede, que se manifesta pelo modo como os personagens
se dirigem ao aluno. Aqui, não é a desinência de segunda pessoa
do singular (tú) que marca discursivamente essa inscrição do outro
no fio de um determinado enunciado, mas sim o uso da
interrogação “¿Y a ti?”, que convoca o aluno a se posicionar.

105
3.4 Enunciador objeto/animal x coenunciador-aluno

Outro estatuto entre coenunciadores que se apresenta ao longo


da coleção didática traz uma voz que não é a do hiperenunciador,
tampouco trata-se da voz de um enunciador-personagem.
Apresenta-se um enunciador que aqui estamos chamando de
objeto/animal, isto é, um enunciador que toma a palavra e que se
apresenta como responsável pela enunciação, mas que é um objeto
e/ou um animal.
Esse enunciador se manifesta pelo gênero adivinha e dialoga
diretamente com o coenunciador-aluno. Seus enunciados são
cifrados, enigmáticos, o que é característico do gênero adivinha e
ao seu par interlocutivo cabe entrar no jogo e tentar adivinhar,
decifrar, encontrar o sentido “oculto” de seus enunciados. Instaura-
se uma interação nesse momento entre os dois pares da enunciação
e aqui o aluno é retirado de uma posição mais passiva e convocado
a interagir, a enunciar, a se posicionar diante desse enunciador
objeto/animal.
As adivinhas estão relacionadas com as manifestações
folclórico-culturais de uma sociedade e são um gênero que pode se
apresentar em uma forma escrita ou oral e comportam enigmas que
envolvem fatores sociais, culturais e linguísticos (DIONISIO, 1998).

106
Imagem 18 - Enunciado 14 – Nuevo Recreo

Fonte: AMENDOLA, 2014.

Imagem 19 - Enunciado 15 – Nuevo Recreo

Fonte: AMENDOLA, 2014.

Imagem 20 - Enunciado 16 – Nuevo Recreo

Fonte: AMENDOLA, 2014.

107
Imagem 21 - Enunciado 17 – Nuevo Recreo

Fonte: AMENDOLA, 2014.

Imagem 22 - Enunciado 18 – Nuevo Recreo

Fonte: AMENDOLA, 2014.

Sobre as adivinhas, concebidas como um gênero de discurso,


e a partir da análise das que figuram ao longo da coleção didática,
pode-se se dizer que possuem uma estrutura relativamente estável,
que se baseia nas seguintes características: a. descrição de si que o
enunciador objeto/animal faz; b. pergunta que convoca uma
resposta do coenunciador-aluno.
Tal estrutura pode ser observada nas adivinhas abaixo.
Sublinhada está a parte da descrição e em negrito a pergunta que o
enunciado faz ao coenunciador, convidando-o a participar do jogo
de adivinhação:

108
Soy un elegante señor.
Tengo hojas, pero no soy árbol ni flor.
Sin tener voz puedo hablar
y, si me abres, algo te puedo contar.
¿Quién soy?
(Enunciado 14 – Nuevo Recreo)

Tengo orejas largas, rabo cortito;


corro y salto muy ligerito.
¿Quién soy yo?
(Enunciado 15 – Nuevo Recreo)

Soy quien vigila la casa, quien avisa si alguien pasa y soy fiel amigo del hombre.
¡Adivina mi nombre!
(Enunciado 15 – Nuevo Recreo)

¿Qué soy?
Dos buenas piernas tengo, pero no puedo andar.
Él o ella sin nosotros mal se pueden presentar.
(Enunciado 16 – Nuevo Recreo)

No enunciado 14, o enunciador objeto/animal atribui a si


características humanas como ser um senhor elegante e poder
contar algo apesar de não ter voz. Partindo-se do pressuposto que
a adivinha é um gênero relacionado à tradição oral, podemos
pensar que a voz que se apresenta nas adivinhas como um
enunciador objeto/animal, como se fosse o próprio objeto, animal
ou uma pessoa hipotética enunciando, não passa de um simulacro,
de uma encenação, uma espécie de jogo cênico num determinado
plano enunciativo. No momento em que esse enunciador toma a
palavra, ocorre um processo de personificação da “coisa”, já que a
adivinha em questão tematiza o objeto livro.
Pode-se dizer que também se manifesta nesses enunciados o
processo de personificação, por meio do qual os animais falam com
o coenunciador-aluno, característica atribuída aos seres humanos.
O aluno é interpelado a participar do jogo das adivinhas de dois
modos distintos: num momento apresenta-se uma interrogação

109
(¿Quién soy yo?). Em outro momento, o coenunciador é convocado
a interagir por meio de uma exclamação com forma imperativa,
sendo o enunciador mais incisivo com o aluno (¡Adivina mi
nombre!).

Imagem 23 - Enunciado 19 – Ventanita al Español

Fonte: FEITOSA, 2013.

O enunciador objeto / animal, que se apresenta por meio do


gênero adivinha, não aparece muito ao longo da coleção Ventanita
al español. O enunciado acima é a única manifestação desse
enunciador ao longo de toda a coleção. Igualmente como vimos na
coleção Nuevo Recreo, tal par interlocutivo inscreve o aluno ao
propor-lhe uma espécie de charada, de adivinhação. Desse modo,
constrói-se uma imagem de aluno ativo no processo de
aprendizagem, não mais como um mero observador, mas sim como
um partícipe da proposta didático-pedagógica.
Nem todas as adivinhas, no entanto, seguem essa estrutura na
qual o enunciador objeto/animal faz uma descrição de si e depois
(ou antes) convoca o coenunciador a participar do jogo de
adivinhação. Algumas adivinhas até focam na descrição que o
enunciador faz de si, mas não apresentam uma pergunta que
interpele o coenunciador-aluno a responder. Nesse caso, podemos
inferir que o hiperenunciador, por meio do comando da questão,
será o responsável por convocar a resposta do coenunciador-aluno,
como podemos observar nos enunciados 15, 16, 17 e 18:

110
Adivina cuáles son las mascotas. (enunciado 15 – Nuevo Recreo)
¡Adivina el nombre de la prenda de vestir! (enunciado 16 – Nuevo Recreo)
¡Adivina! (enunciado 17 – Nuevo Recreo)
Lee y adivina las profesiones. (enunciado 18 – Nuevo Recreo)

Observa-se, portanto, um entrecruzamento de vozes e de


relações entre diferentes enunciadores e seu respectivo par
interlocutivo. Ora apresenta-se uma relação entre o enunciador
objeto/animal e o coenunciador-aluno, mas ainda numa lógica dos
simulacros, do “faz de conta”, numa enunciação que se apresenta
mais como um efeito para fins lúdicos e em outros momentos
ressurge a relação entre o hiperenunciador e o coenunciador-aluno.

111
112
4. CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

Nesta primeira parte do nosso trabalho, foi realizada uma


análise do estatuto do enunciador e do coenunciador em uma
coleção didática, utilizando como base a ideia de uma semântica
global. Durante a análise, foram identificados quatro tipos de
relação entre os coenunciadores: a) um hiperenunciador que se
comunica diretamente com o coenunciador-aluno; b) um
enunciador-personagem que se comunica com outro enunciador-
personagem; c) um enunciador-personagem que se comunica com
o coenunciador-aluno e d. um enunciador objeto/animal que se
comunica com o coenunciador-aluno.
Foi concluído que, nos estatutos a e b, a imagem da criança é
estabelecida a partir de uma posição passiva, sendo considerada
apenas como executora de tarefas em uma abordagem mecanicista
ou como uma entidade meramente observadora que não interage
com o material em questão. Por outro lado, nos estatutos c e d, a
visão sobre a criança é diferente, pois ela é incentivada a interagir,
a tomar a palavra e também a enunciar.
Finalizamos a primeira parte desta obra recuperando a
importância de se pensar no estatuto do enunciador e do
coenunciador ao longo do LD, pois ao observar tais nuances e
matizes de sentido construídas por meio dessa relação, podemos
perceber a pluralidade de vozes e posicionamentos que se fazem
presentes ao longo dos livros didáticos e vislumbrar sentidos sobre
as crianças, as infâncias e o papel do aluno no ensino de LAC.
Mas o que aconteceria se levássemos esses livros que foram
analisados aqui para crianças e as ouvíssemos? O que elas teriam a
dizer a respeito de livros didáticos que foram feitos para elas? Eis
o que abordaremos no nosso próximo livro (parte II deste trabalho),
que dará continuidade às discussões iniciadas aqui. Até breve.

113
114
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117
118
SOBRE O AUTOR

Rodrigo Da Silva Campos

Professor Adjunto do Instituto de Letras (Departamento de Letras


Neolatinas - Setor de Espanhol) da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). Atualmente, está como coordenador do curso de
Espanhol e é coordenador do Projeto de Iniciação à Docência em
Ensino de Espanhol para Crianças. Doutor e Mestre em Letras
(Linguística) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Possui bacharelado e licenciatura em Letras: Português/
Espanhol pela mesma instituição. Pesquisa questões relacionadas à
formação de professores de línguas adicionais (LA), livro didático
de LA, análise e elaboração de materiais didáticos de LA, ensino de
LA para crianças e Análise do Discurso de orientação enunciativa.
Bolsista do Programa Prodocência (UERJ).

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