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ÍNDICE
Capítulo I
Capítulo II
Bibliografia…………………………………………………………………….. 84
-6-
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A cultura clássica, nas suas diversas vertentes, tem exercido um imenso fascínio
sobre a literatura portuguesa de todos os tempos. Camões, Fernando Pessoa, Vergílio
Ferreira, Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner Andresen, David Mourão-Ferreira,
Manuel Alegre, Eugénio de Andrade, Nuno Júdice e tantos outros deixaram-se seduzir
pelos temas que o tempo não apaga, mas rejuvenesce. Com novos matizes ou apenas
parafraseados, esses temas trazem até nós valores, pensamentos e formas de ver o mundo
que em muito influenciam a sociedade contemporânea.
Mais raro, no entanto, tem sido o tratamento de temas clássicos na literatura para a
infância e a juventude. Num mundo cada vez mais virado para o futuro, não parece tarefa
fácil combinar antiguidade e literatura para crianças e jovens. Apesar disto, conseguimos,
ainda, reunir um corpus razoável se tivermos em consideração, juntamente com as obras
originais, as adaptações e as recriações que, ao longo dos tempos, têm procedido à reescrita
de obras das literaturas grega e latina. Aqui encontramos nomes com um peso significativo
na cena literária portuguesa. É o caso de João de Barros, que aproximou das crianças (e do
povo) obras maiores da literatura clássica, como a Ilíada, a Odisseia ou a Eneida; de
António Sérgio, que deu a conhecer, nos seus Contos Gregos, alguns episódios da
mitologia helénica ou, mais recentemente, de Maria Alberta Menéres, que, ainda hoje, faz
chegar aos mais jovens as aventuras de Ulisses, na obra homónima que o programa
curricular de Língua Portuguesa do 6º ano de escolaridade já consagrou no cânone escolar.
Tendo por objecto as recriações, pretendemos analisar os diferentes trabalhos de reescrita e
proceder ao confronto com o respectivo intertexto. Além destes, encontramos, ainda,
títulos originais, que, criando um novo universo ficcional, recuperam aspectos da cultura e
civilização clássicas. Inserem-se nesta categoria os dois volumes de As (quase) verdadeiras
aventuras de Hércules, de Adriana Freire Nogueria, e a colecção Mopsos, o Pequeno
Grego, que relançou na aventura da escrita para a infância um nome de importância
reconhecida no universo literário nacional, Hélia Correia.
O elenco de textos coligido pretende, assim, ilustrar diferentes modalidades de
apropriação intertextual das fontes clássicas, esclarecendo as dinâmicas de cópia,
reinvenção ou transfiguração ficcional mobilizadas pela escrita de potencial recepção
infanto-juvenil.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Se, à primeira vista, parece difícil encontrar literatura de temática clássica com este
tipo de destinatários, mais problemática se torna a descoberta de estudos sobre ela.
Percorrer estas obras, analisando a forma como a cultura clássica é revisitada, sem
esquecer as exigências e as características próprias de uma literatura destinada à infância e
à juventude, parece-nos assumir uma elevada importância, quando, no século XXI, se
continua a falar no afastamento entre os jovens e o livro e os responsáveis pela educação
apontam, insistentemente, a escassez de hábitos de leitura, como uma das causas de
insucesso escolar1. Ora, a relevância de textos destinados aos mais jovens,
independentemente de serem considerados, pela crítica, literatura ou paraliteratura, é,
pensamos nós, evidente, já que, promovendo a aproximação entre estes e o livro, poderão
abrir caminho ao desejo de novas leituras. Com José António Gomes, consideramos que o
“saber-ler”, para além da capacidade de “decifração e compreensão leitora”, passa pela
necessidade de “educar o gosto pela leitura” e pelo “desenvolvimento do poder de ler dos
alunos”2.
Abordaremos, ainda, a questão da vertente pedagógica da leitura, tentando antever
quais os objectivos de cada um dos textos estudados (essencialmente lúdicos, meramente
didácticos, pedagógicos…). Ainda que, em determinadas obras, estes propósitos didácticos
e pedagógicos não sejam claramente assumidos ou, em outros casos, sejam,
inclusivamente, rejeitados pelo autor ou pelas próprias personagens, teremos em conta o
papel da leitura como factor de socialização, como elucidam as palavras de Maria
Bernardette Herdeiro:
(…) o leitor é confrontado com universos de ficção onde se representam valores, padrões
sociais, modos diversos de pensar e agir, que podem aproximar-se ou distanciar-se dos seus.
O contacto com uma diversidade de modelos, segundo um percurso pessoal (…) produzirá
uma questionação e um aprofundamento do universo individual, ao mesmo tempo que
1
Os resultados do Estudo Internacional PISA [Programme for International Student Assessment] 2000 (em 8
de Outubro de 2005, disponíveis em www.oecd.org/dataoecd/32/10/33685403.pdf) revelam que Portugal
detém uma percentagem bastante elevada (52%) de alunos de 15 anos com níveis muito baixos de literacia,
quando comparada com a média dos países da OCDE (40%). Concluiu-se, pois, que mais de metade dos
jovens com esta idade possui grandes dificuldades ou é mesmo incapaz de realizar tarefas de maior
complexidade, que exijam a compreensão de textos escritos e a utilização dessa informação em actividades
do quotidiano.
2
José António Gomes, Literatura para crianças e jovens – Alguns percursos, Lisboa, Editorial Caminho,
1991, p.20
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
3
Maria Bernardette Herdeiro, «Dimensão pedagógica da leitura», in Coelho, Jacinto do Prado et al.,
Problemática da Leitura – Aspectos Sociológicos e Pedagógicos, Lisboa, INIC, 1980, p. 42
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
CAPÍTULO I
4
O título A Ilíada de Homero Contada às Crianças e ao Povo, de João de Barros, é apenas um dos exemplos
da aproximação que se fazia entre a literatura para a infância e a literatura popular.
5
Assim aconteceu, por exemplo, com as traduções das fábulas de Fedro e Esopo ou com Peregrinação, de
Fernão Mendes Pinto. Regra geral, as obras mais populares incluíam relatos de viagens.
6
Aquele que se considera o primeiro romance de aventuras destinado a crianças, Telémaco, de Fénelon, foi
assumido claramente como um livro com objectivos pedagógicos e didácticos.
7
Encontram-se entre esses nomes os de Guerra Junqueiro, Antero de Quental, João de Deus e Adolfo
Coelho.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
começa a manifestar-se alguma preocupação com o aspecto lúdico desta literatura, tantas
vezes pensada para adultos em ponto pequeno, sem que fossem tidas em consideração as
capacidades, os interesses e a especificidade do leitor-criança. António Sérgio, escritor,
pensador e pedagogo, foi um dos nomes a que se ficou a dever esta mudança. Foi o próprio
que defendeu que «Antes de tudo, deve ser o conto uma obra de arte, e secundàriamente
instrutivo».8
Em 1984, Natércia Rocha defendia que as preocupações de índole pedagógica
persistiram até quase ao século XXI.
É de registar que o pendor pedagógico deitou raízes tão fundas que hoje, quase no
século XXI, é ainda necessário fazer a defesa do elemento não-didáctico; a preocupação
didáctico-moralista persiste em asfixiar a obra literária para crianças, impondo-lhe o
desempenho de funções que não são exigidas ao trabalho literário para adultos. Poucos,
pouquíssimos mesmo, são os autores suficientemente libertos dessa pressão para se
entregarem à criação de obras tendo o valor estético como prioridade absoluta.9
8
António Sérgio, Sobre educação primária e infantil, Cadernos Culturais “Inquérito”, nº15, 2ª Ed. Lisboa,
Editorial Inquérito, s.d., p.30.
9
Natércia Rocha, Breve História da Literatura para crianças em Portugal, Lisboa, ICLP-ME, 1984, p. 47.
10
Américo A. Lindeza Diogo, Literatura Infantil. História, Teoria, Interpretações, Porto, Porto Editora,
1994, p.65.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
11
Cf. António Quadros, A aventura e o mundo juvenil e os seus aspectos educativos, Lisboa, Direcção Geral
da Educação Permanente, 1973, p.9.
12
Op. cit. p.124.
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Elaine Fantham13 destaca três elementos comuns ao mito antigo e à moderna ficção
científica: o fabuloso, o miraculoso e o monstruoso14. Ousamos estabelecer, também, a
comparação entre o mito e a produção literária destinada às crianças. Nas obras que
analisaremos, como nas narrativas mitológicas, predominam, como notaremos, episódios
do domínio do maravilhoso e do fantástico, quer pelos seres que a acção traz à presença
dos leitores, quer pelo desfecho que, alguns deles, possuem. Na inserção do maravilhoso
estriba-se o desenvolvimento da imaginação e da fantasia. Os contos maravilhosos fazem
parte da tradição oral portuguesa, tendo Almeida Garrett e Alexandre Herculano dado um
contributo importante para a sua recolha.
O primeiro contacto entre a literatura destinada à infância e à juventude em
Portugal e a cultura clássica chegou através das traduções das fábulas de Esopo. Em 1603,
surgiu Vida e fábulas do insigne fabulador Esopo, uma versão em prosa destas fábulas,
traduzidas por Manuel Lyra. Em 1776, Portugal conhece a tradução de Telémaco, de
Fénelon. Mais tarde, A Ilíada de Homero Contada às Crianças e ao Povo, A Odisseia –
Aventuras de Ulisses, Herói e Navegador da Grécia Antiga15 e Virgílio – Eneida, de João
de Barros, assumiram um papel importante na divulgação das obras maiores das literaturas
grega e latina. Vários autores, como Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, dedicaram-se
à recolha de episódios da mitologia clássica. Em 2004 saía a primeira edição de Fábulas
de Esopo recontadas por António Mota16. Luísa Fortes da Cunha, professora de Educação
Física, explora a cultura clássica na colecção Teodora. Os protagonistas de Mistério das
Catacumbas Romanas, da colecção Os Primos, de Mafalda Moutinho, fazem uma
incursão nos vestígios da civilização romana. As referências esparsas à mitologia greco-
-romana são imensas e difíceis de enumerar. O interesse pela cultura clássica, como
podemos notar, não se perdeu no tempo, antes renasce continuamente.
13
Elaine Fantham, Ovid’s Metamorphoses, Oxford University Press, 2004, pp.105
14
A autora realça que os dragões de Cadmo e o guardião do velo de ouro, a que fazem alusão algumas obras
a seguir analisadas, eram monstra, já que a palavra mostrum significava, para os Romanos, um
acontecimento sobrenatural, que os deuses enviavam para mostrar (monstrare) ou avisar (monere) de algum
perigo.
15
O Programa Curricular de Língua Portuguesa do 7º ano de escolaridade contempla esta obra na lista das
passíveis de selecção para leitura orientada.
16
Na capa surge a indicação «Recomendado dos 8 aos 88», o que confirma a abrangência deste tipo de
textos, que, originariamente, não eram dedicados às crianças.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
CAPÍTULO II
Representação da Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a infância e
juventude
17
Cf. Américo A. Lindeza Diogo, op. cit., p.56
18
Prova-o o facto de ser, ainda, apontada como uma das obras com direito a figurar em bibliotecas destinadas
à infância e à juventude. V. José António Gomes, Da Nascente à Voz. Contributos para uma pedagogia da
leitura, 2ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 1996, p.79
19
Na Odisseia, quando Ulisses chega ao palácio e é maltratado pela maioria dos pretendentes, um dos
mancebos chama a atenção para a possibilidade de tratar-se de um deus.
“Antínoo, fizeste mal em bater no infeliz viandante.
Insensato! E se ele é na verdade um dos deuses do céu?
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
pobremente vestidos ou com aspecto andrajoso eram alvo de troça dos rapazinhos
(«malcriados») e da perseguição dos próprios cães.20 Os únicos capazes de os receber
dignamente, os mais nobres de carácter, são justamente aqueles que, aparentemente, se lhes
igualam em condição social.
E apesar de supor que os dois hóspedes eram uns simples pobretões, tratou de tudo com
tanto cuidado como se soubesse que êles eram deuses. 21 (p.12)22
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
E como mostraram ser boas pessoas, vou-lhes dar uma recompensa. Vivam sempre muito
amiguinhos; nunca na leiteira lhes falte bom leite, por muito que o bebam; nunca se acabe o
pãozinho escuro, por muito que o comam; e haja sempre alegria e sempre mel puro, das
abelhas que voam nesta casa feliz! E agora, digam que mais querem que façamos por vocês.
(p.15)
24
Segundo Ovídio o casal deseja, também, tornar-se guardião do templo dos deuses.
“Dicite, iuste senex et femina coniuge iusto
digna, quid optetis.” Cum Baucide pauca locutus
iudicium superis aperit commune Philemon :
“Esse sacerdotes delubraque uestra tueri
poscimus; et quoniam concordes egimus annos,
auferat hora duos eadem, ne coniugis umquam
busta meae uideam neu sim tumulandus ab illa.”
(vv.707-713)
25
Filémon e Báucis não enfrentam propriamente a morte, mas uma metamorfose que os transforma em
outros seres vivos, no caso em duas árvores (tília e carvalho, de acordo com o texto ovidiano).
26
A versão de Ovídio, em Metamorfoses, faz referência a uma espécie de dilúvio (processo simbólico de
anulação do mal e imposição do bem, presente, também, na tradição cristã), provocado pelos deuses que
protagonizam a história, e ao qual sobrevivem, apenas, os elementos do casal, que se tornam, também,
guardiães do templo no qual é transformada a sua pobre casa. A Filémon e Báucis é dado observar o destino
que terão todos os outros homens, num lugar de destaque, o cume de uma montanha, afastado dos outros,
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
de carácter que deve prevalecer sobre a nobreza de título. É, ainda, transmitida a ideia de
que o bem é sempre recompensado e o mal castigado.
O elemento mágico é trazido ao encontro do leitor não apenas pelo gesto do deus
que torna abundante o leite que escasseava, ou pela transformação sofrida pelos
protagonistas, mas, desde logo, pelo facto de as divindades ocultarem a sua verdadeira
identidade, mostrando que, de facto, nem sempre a realidade é aquilo que parece.
como distantes foram as suas atitudes. A elevação a que sobem simbolizará a sua aproximação ao céu e, por
isso, ao divino. A montanha conota resistência e perenidade. Cf. Ov., Met., 616 -715
27
Dado o número elevado de obras que abordam a viagem dos Argonautas em busca do velo de ouro,
indicaremos, apenas a título de exemplo, algumas que corroboram as diferentes versões a que aludiremos.
28
Cf. Apolodoro, Bibl., I, 9,1 e ss.
29
Entre 1691 e 1697 Charles Perrault escreveu Contes de Ma Mère l’Oye, que integrava, entre outros por nós
conhecidos, O Gato da Botas, A Bela Adormecida no Bosque, O Pequeno Polegar e A Gata Borralheira. (v.
Garcia Barreto, Literatura para Crianças e Jovens em Portugal, Porto, Campo das Letras, 1998, pp. 19-20).
Em 1875, publica-se em Portugal 10 contos de Perrault e, em 1898, é também feita a tradução de obras do
mesmo autor. Do mesmo modo, em 1806, os Irmãos Grimm empreenderam a recolha de contos tradicionais.
Entre os por eles seleccionados encontramos Branca de Neve e Gata Borralheira (v. Natércia Rocha, Breve
História da Literatura para crianças em Portugal, Lisboa, ICLP-ME, 1984, pp. 131- 135).
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Havia na Grécia antiga um rei e uma rainha que tinham um filho, que se chamava Fricso, e
uma filha, que se chamava Hele. (…) Quando a rainha morreu, o pai casou com outra
mulher, que tratava muito mal as crianças. Um dia a má da mulher do rei quis matar o
pequeno Fricso (…) (p.21)
Frixo é protegido por Hermes, como a Gata Borralheira pela fada ou como Branca
de Neve é salva, em primeiro lugar, pelo caçador, que não obedece às ordens da madrasta,
depois pelos anões e, finalmente, pelo beijo do príncipe. Note-se, ainda, a presença de um
outro símbolo que povoa os contos tradicionais – o dragão, guardião do velo de ouro. Este
surge, aqui como em outros contos, como defensor de um tesouro, como um guardião que
tem que ser eliminado para que se possa aceder a essa riqueza. Há, pois, a concentração de
alguns motivos de cunho maravilhoso, típicos dos contos tradicionais, o que aproxima esta
narrativa dos textos convencionalmente destinados a um público mais jovem.
Mas estas referências são apenas um pretexto para a narração das aventuras dos
Argonautas e a justificação para a viagem que Jasão empreenderá sob as ordens de seu tio
Pélias. Também Jasão é protegido por uma divindade, Palas Atena30, que lhe oferece uma
árvore31, que o guiará na sua jornada, o que insere mais um aspecto do maravilhoso no
conto.
Do grupo dos Argonautas apenas são nomeados Hércules e os irmãos Zetes e
Calais32, cuja invulgar fisionomia será de extrema importância na resolução da
micronarrativa que encabeça as aventuras dos marinheiros.
O seu primeiro feito é a libertação de Fineu do martírio que Zeus lhe impusera, o
que conseguem, afugentando as Harpias, que o impediam de alimentar-se, ora roubando,
30
Palas Atena é também a protectora de Ulisses, na Odisseia.
31
Um pedaço de um carvalho sagrado de Dodona, que conferia à nau o poder de profetizar. Os Gregos
acreditavam que Zeus vaticinava através da voz dos carvalhos, na floresta de Dodona, no Épiro. Durante a
sua conversa com Eumeu, no canto XIV da Odisseia, Ulisses, sem revelar a sua identidade, faz alusão a este
santuário.
Quanto a Ulisses, disse que a Dodona se dirigira, para lá
ouvir do alto carvalho do deus a vontade de Zeus
sobre como poderia regressar à terra fértil de Ítaca
depois de tão longa ausência, às claras ou disfarçado.
(Odisseia, XIV, 327-330)
32
Provavelmente pela diversidade de nomes que configuram a lista dos Argonautas. Hércules é mencionado
nos dois catálogos mais considerados, o de Apolónio de Rodes (Apol. Rod., Arg., I, 23 e ss.) e o de
Apolodoro (Apolod. Bibl., I, 9, 16 e ss.) Os dois irmãos, porque justificam a perseguição feita às Harpias e o
desfecho deste episódio.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
ora conspurcando a comida33. Este suplício, assim como a cegueira a que estava condenado,
surgem como castigo aplicado por Zeus, porque «êste rei tinha feito uma maldade» (p.25).
A maldade não é especificada e a punição é mencionada de acordo com a lógica crime /
castigo34. Os heróis têm, pois, como primeiro adversário seres asquerosos e horrendos e
surgem a Fineu como a única possibilidade de salvação.
À lógica crime / castigo segue-se a do bem (boa acção) / recompensa. A dos
Argonautas é o conselho que Fineu lhes dá para ultrapassarem as Rochas Simplégadas, um
novo obstáculo, até ao momento intransponível, que os heróis terão de vencer.35
O sucesso desta empresa torna-se possível, novamente, pela intervenção da divina
Atena, que protegendo a pomba que atravessa as Simplégadas, poupa, também, os
Argonautas. Contribui-se, assim, para a valorização da astúcia, mas também da capacidade
de escutar e seguir bons conselhos, através deste episódio que brilha pelo dinamismo que
confere à acção.
(…) Os Argonautas, então, puseram-se a remar com tôda a fôrça, puxando pelos remos
quanto podiam. Jasão, em pé à pôpa do Argo, gritava-lhes para os animar; os remos
vergavam; o mar cobria-se de espuma; o navio tremia todo.
E as rochas cada vez mais perto, cada vez mais perto, cada vez mais perto… «Rema, rema,
rema!» – gritava Jasão aos companheiros. Emfim quando as rochas bateram uma na outra,
já o Argo estava do outro lado; só puderam arrancar-lhe o leme. Os Argonautas,
contentíssimos, gritavam à doida na amplidão do mar. A pombinha voltou para bordo, já
com novas penas na sua cauda. (pp.29-30)
33
Na versão de António Sérgio, como na de Apolodoro, as Harpias afogam-se. Na de Apolónio de Rodes, no
entanto, estes seres fogem para as ilhas Estrofades.
34
O autor não terá aprofundado a maldade cometida por Fineu devido às diferentes versões da lenda que a
literatura grega nos legou. Alguns autores (u.g. Apolodoro, Bibl., II, 1,4 e Ovídio, Met. V, 1-249) identificam
este Fineu como o irmão de Cefeu e tio de Andrómeda, que teria ficado cego em resultado de um confronto
com Perseu, no qual disputavam a mão da sua sobrinha. Tratar-se-á, contudo, de um rei da Trácia, cuja lenda
não encontrou, também, consenso. Uma das versões relaciona-o com Frixo, já mencionado neste conto, a
quem teria indicado o caminho para a Cólquida ou a cujos descendentes revelara o caminho de regresso à
Grécia, o que suscitara a ira dos deuses. A versão escolhida por António Sérgio é a que resulta da amálgama
das várias versões e aponta a cegueira e a perseguição das Harpias como resultado de um castigo infligido
por Zeus, por Fineu ter acusado e punido injustamente os seus filhos pela suposta violação da sua segunda
mulher. (Apol., Bibl., 1,9,21 e ss.)
35
Se é visível que o autor não cai na tentação de tornar o seu relato simplista, devido à faixa etária a que se
destina, é notória a preocupação em dotar os seus leitores de elementos indispensáveis para a compreensão
do texto (como a explicação da designação dos Argonautas) e da evolução da acção, em eliminar aspectos
acessórios dos mitos envolvidos e em aproximar a sua descrição do universo de conhecimentos que o
destinatário do texto possuirá. Assim, a altura das Rochas Simplégadas torna-se mais clara quando se diz que
«eram mais altas que três vezes a tôrre de uma igreja» (p.27) e a ficção mais próxima da realidade quando
compara o descanso de Jasão ao dos «trabalhadores do campo quando vão fazer a sesta» (p.36).
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
36
Possuem cascos de bronze, de acordo com a versão de Ovídio.
37
Cf. a lenda de Cadmo que Ovídio também desenvolve em Metamorfoses (3.104-30).
38
Na opinião de Elaine Fantham, a ajuda dada por Medeia a Jasão é também uma traição ao seu país, uma
vez que o velo de ouro era como que um talismã que assegurava a prosperidade do reino. (Elaine Fantham,
Ovid’s Metamorphoses, Oxford University Press, 2004, pp. 74-5). Ovídio revela uma Medeia dividida entre o
amor a Jasão e o seu dever filial.
Sed trahit inuitam noua uis, aliudque cupido,
mens aliud suadet. (vv.19-20).
Num extenso solilóquio (vv.12-71) a filha de Eetes apresenta as suas dúvidas e, de alguma forma, justifica a
sua escolha. As ordens do pai parecem-lhe demasiado duras (vv.14-5), o pai cruel e a sua terra bárbara (v.53).
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
algumas versões (u.g. a de Apolodoro - Bibl., I, 9, 24 e ss.), a filha de Eetes terá matado o
próprio irmão e, de seguida, espalhado os seus membros pelo mar, para garantir que o rei se
(pre)ocuparia com a sua recolha e se atrasaria na perseguição aos Argonautas. Em outra
versão, Medeia é “apenas” cúmplice da morte de Absirto, que é eliminado à traição por
Jasão. Esta última interpretação, entre outras aventuras, obriga os marinheiros a enfrentarem
a ira de Zeus, a serem purificados por Circe, a enfrentarem Cila e Caríbdis…, o que tornaria
o texto demasiado longo, tendo em conta os leitores a que se destina. A opção por esta
omissão poderá, segundo cremos, pretender evitar o surgimento de Jasão e Medeia, até
agora praticantes de actos justos e justificados, como alguém capaz de cometer uma
atrocidade, um acto injusto, gratuito e injustificável aos olhos do leitor.39 Por outro lado,
pode evidenciar, também, o desejo de evitar a parte mais obscura ou menos consensual da
lenda e, eventualmente, de mais difícil compreensão para o destinatário.40
O autor optou, pois, pela versão que casa Medeia com Jasão e os faz regressar à
Grécia ludibriando os marinheiros do rei Eetes, que os esperavam junto às Rochas
Simplégadas. Pélias morre e é o pai do herói que o substitui no trono (que, de resto, já antes
lhe pertencia legitimamente), porque Medeia o cura sempre que adoece.41
O último conto selecciona um tema frequente, ainda hoje, na literatura para crianças:
o da fidelidade dispensada por um animal a seu dono. O autor inspirou-se nos versos 291 a
327 do canto XVII da Odisseia. Ulisses, ao chegar perto do seu palácio, avista Argos, o cão
que deixara no auge das suas capacidades ao partir para a guerra de Tróia. Este, já velho e
sem a compleição física de outrora, desprezado por todos, parece aguardar apenas o
regresso do dono para sucumbir, o que, de facto, acontece. Em poucas palavras, em apenas
duas páginas, é resumida a história do homem dos mil artifícios e reduzida ao essencial: é
mencionada a partida de Ulisses para a guerra, a necessidade de enfrentar um sem número
de peripécias durante os vinte anos de ausência e o encontro com o cão. Este é o
39
O herói é mencionado como “o bom Jasão” (p.37), enquanto o pai de Medeia é o “mau rei Eetes” (p.34).
40
Vimos já que, em outros momentos, o autor preferiu não desenvolver determinados aspectos, ora porque
não eram essenciais para o desenrolar da acção central, ora porque os mitógrafos apresentavam versões
contraditórias e questionáveis.
41
O livro VII de Metamorfoses conta a intervenção de Medeia no rejuvenescimento de Éson (7. 159-296) e
na morte de Pélias (7.297-349) levando as filhas do rei a manchar as mãos com o sangue do próprio pai. Uma
vez mais a parte do mito que revela Medeia utilizando os seus poderes de forma negativa é omitida neste
reconto.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
protagonista do conto e não Ulisses, como acontece nas obras que aludem ao herói42, tanto
assim que não tomamos conhecimento da chegada ao palácio e do reencontro com a mulher
e o filho. A atenção centra-se na paciente e heróica espera do animal pelo regresso do dono.
A Argos é atribuída uma reacção típica de um ser humano, partilhada com aqueles que
ansiavam o regresso de Ulisses (Penélope, Telémaco, Euricleia…), mas bem diferente da
observada por exemplo em Melanteu, servo da casa real.
42
Obras como A Odisseia – Aventuras de Ulisses, Herói e Navegador da Grécia Antiga, de João de Barros, e
Ulisses, de Maria Alberta Menéres, centram-se nas façanhas do herói grego.
43
Op. cit., pp.17-8
44
Numa edição posterior, de 1978, as ilustrações de Luís Filipe de Abreu mantêm essa funcionalidade
pleonástica.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
também, e como fomos notando, a presença de estilemas típicos dos contos tradicionais e a
interferência do maravilhoso, que exerce um enorme poder de atracção sobre o público
jovem. António Sérgio conseguiu, pois, fazer cumprir os requisitos que considerou
essenciais numa história.
Os requisitos primaciais de uma história são a acção rápida e ligada ,um assunto
de imagens familiares com certo tom de maravilhoso, e arepetição ou estribilho de algumas
frases características.45
45
Op. cit., p.30
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Ulisses, de Maria Alberta Menéres, é uma obra dedicada a um público mais novo46
e consagrada pelos programas curriculares do 6º ano de escolaridade como título
projectado para uma leitura orientada. Porque o público a que se destina é distinto do do
seu hipotexto, a linguagem utilizada, os episódios seleccionados, a caracterização das
personagens, a própria organização da narrativa sofreram alterações consentâneas com a
idade do leitor.
Em Ulisses, os acontecimentos são narrados por ordem cronológica, enquanto na
Odisseia as aventuras do herói após a chegada à terra dos Feaces e até ao seu regresso a
Ítaca são relatadas analepticamente. No primeiro caso, esta construção linear, associada à
omissão de alguns detalhes e à supressão de repetições, parece ser mais adequada ao
público leitor; no segundo, ela revela uma característica própria da poesia oral47. Ainda na
primeira obra citada, todos os episódios são marcados pela rapidez da acção.
Em Ulisses, a “Telemaquia” é suprimida. Maria Alberta Menéres optou por não lhe
fazer alusão, talvez por a autenticidade do proémio e da parte da Odisseia respeitante às
aventuras de Telémaco ter suscitado algumas dúvidas. As viagens do filho do homem dos
«mil artifícios» são reduzidas a poucas frases48. As de Ulisses, narradas na Odisseia a
partir do canto V, são a matéria de destaque da obra em análise. A própria vingança do
46
José António Gomes, dando algumas sugestões para a criação de uma biblioteca infanto-juvenil, insere-a no
grupo de obras destinadas a crianças entre os 10 e os 12 anos. (v. José António Gomes, Da Nascente à Voz.
Contributos para uma pedagogia da leitura, 2ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 1996).
47
Notemos as palavras de Frederico Lourenço na introdução à sua tradução da obra. (op. cit., p.12)
(…) a construção formal da Odisseia não é uma característica que lhe
adveio por acaso: houve necessariamente alguém que se encarregou de organizar o
material narrativo de modo a que considerações de beleza poética se sobrepusessem à mera
linearidade da diegese. Em segundo lugar, o material poético em si, com as incontáveis
repetições que encerra, aponta para as origens tradicionais: para uma época em que a
composição poética era pensada em termos estritamente orais, ou seja, sem que houvesse
recurso à escrita.
48
(…) sabe que mais uma vez Telémaco partira à procura do pai, pelos mares fora,
devendo estar prestes a chegar(…)
Chega entretanto Telémaco, da sua viagem, e regressa desanimado: não foi ainda
desta vez que encontrou seu pai! (p.62)
- 25 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
herói, que vai sendo preparada e justificada ao longo do relato e à qual, de resto, o poema
clássico dedica dez cantos é, aqui, circunscrita a poucas páginas. E a violência que serve de
cenário à punição a que Ulisses sujeita os pretendentes é legitimada pelos valores que o
herói representa e defende49.
Em Ulisses, não é sequer mencionada a estada do filho de Laertes na ilha de
Calipso, de onde saiu já no decurso do oitavo ano de permanência, nem desenvolvido o
encontro com Nausícaa, que tanto interesse tem suscitado e tanto tem inspirado a poesia
destinada a adultos.50 Verifica-se, pois, que as passagens onde, na Odisseia, o eros se
manifesta são suprimidas. Assim acontece com as cenas de pendor erótico entre Circe e
Ulisses e assim acontecerá com o episódio do tálamo nupcial, que na obra homérica tem
um papel fulcral para a cena do reconhecimento de Ulisses por parte de Penélope. A
omissão das cenas em que o rei de Ítaca se uniu a outra mulher (sempre sobrenatural) terá
acontecido por poderem ser entendidas, por um público mais jovem, como uma traição a
Penélope. Seria mais difícil para o leitor desta faixa etária proceder à justa interpretação
destes encontros, que acontecem contra a vontade de Ulisses, como uma forma de
valorização do herói que tem a possibilidade de permanecer com qualquer uma destas
mulheres, uma das quais lhe oferece a imortalidade, e ainda assim permanece fiel ao seu
ideal.
A introdução à obra cumpre a função de cativar e prender a atenção do leitor ao
caracterizar as aventuras de Ulisses como «fascinantes». Alude-se, ainda, à faculdade que
as viagens do rei de Ítaca tiveram, ao longo de todos os tempos, de proporcionar jornadas
muito maiores e o facto de elas estarem a ser narradas a crianças é assumido como uma
nova façanha.
O início remete para as dúvidas relativas à existência de Ulisses e de Homero. A
incerteza quanto à autoria do texto épico ou à época da escrita não é aflorada, sendo esta
última questão solucionada com a expressão «Há muitos milhares de anos».51
49
«Ulisses estava soberbo defendendo o seu povo, a sua casa, a sua pátria, a vida, a paz.» (p.67) [sublinhado
nosso].
50
Alguns autores inspirados por este encontro foram Eugénio de Andrade (em «Palmeira Jovem», de
Obscuro Domínio, e «Passeio Alegre», de Rente ao Dizer); Vasco Graça Moura (em «Para o retrato de
Nausicaa»); José Miguel Silva (em «Sem Título»); David Mourão-Ferreira (em «Ulisses e Nausícaa», de
Obra Poética), para não falar em outros que mencionam o encontro, sem, no entanto, se deterem muito sobre
ele.
51
Frederico Lourenço, referindo-se à Odisseia, defende que estas questões de índole filológica não perturbam
a leitura da obra. (v. Homero, op. cit., p.13)
- 26 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Ulisses é apresentado como um rei pouco severo, com gostos comuns, capaz de
amansar cavalos, admirador da caça, amado por todos, acessível ao seu povo, apaixonado
por Ítaca, desejoso de aventuras, mas avesso a guerras e ansioso pelo regresso52. A
caracterização feita neste primeiro momento torna compreensível e esperado o desfecho
que será, mais tarde, dado a conhecer, justificando as atitudes tomadas pelo protagonista. A
severidade dos seus gestos para com os pretendentes é legitimada pelas injúrias por eles
cometidas, a paixão por Ítaca e pela família justificam o desejo impaciente do regresso e o
desalento face a tantas e tão grandes aventuras. Após esta apresentação, são anunciadas as
razões da partida para a guerra, que se esclarece ser obrigação de um bom grego.
O relato das primeiras páginas faz jus ao epíteto do herói, «o dos mil artifícios», já
que narra a loucura fingida para evitar a ida para a guerra53 e a autoria da ideia de construir
o cavalo de madeira para pôr fim ao cerco e à contenda.
De volta a casa com quarenta marinheiros, Ulisses encontra o primeiro obstáculo
que o afastará do tão almejado regresso: a corrente marítima que os arrasta para onde não
desejam ir, as ilhas da Ciclópia. Interpelando o leitor de forma muito directa, o narrador
coloca uma questão que ecoa, certamente, a dúvida de qualquer leitor mais jovem: «E os
ciclopes, existem?» (p.22). Estes são descritos como fruto da imaginação e, tal como as
correntes, os deuses e as sereias, apontados como forma de explicar o desconhecido. O
(…) a Odisseia (…) pode ser lida sem que estes problemas de índole filológica nos
causem a menor preocupação. E se o poema do retorno de Ulisses continua a
proporcionar o maior deleite literário a quem não faça a mínima ideia das
questiúnculas que, no séc. XIX, opuseram “analistas” a “unitários”, a razão só
poderá ser procurada na força e no encanto do texto em si: o facto de estarmos
perante uma história de interesse imorredouro, contada com eficácia arrasadora”.
- 27 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
54
A explicação para o surgimento de Polifemo naquela ilha, que Ulisses julgava deserta, funciona como um
dos vários apartes que vão sendo introduzidos, constituindo um parêntesis na acção principal e fornecendo
algumas informações adicionais. Logo após, volta-se ao assunto inicial: «Mas voltando à história (…)»
55
“Ouve-me, Posídon de cabelos azuis, Sacudidor da Terra!
Se na verdade sou teu filho, e se declaras ser meu pai,
concede-me que nunca chegue a sua casa Ulisses,
saqueador de cidades, filho de Laertes, que em Ítaca habita.
Mas se for seu destino rever a família e regressar
ao bem construído palácio e à terra pátria, que chegue tarde
e em apuros, tendo perdido todos os companheiros,
na nau de outrem, e que em casa encontre muitas desgraças.”
(Odisseia, IX, 528-535)
- 28 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
O local onde aportam é a Eólia, onde recebem de Éolo o saco dos ventos. A
abertura do saco que protegia os marinheiros de todas as tempestades tem motivações
diferentes nas duas obras. Na Odisseia, foi a cobiça que moveu os companheiros de
Ulisses. Na obra de Maria Alberta Menéres, foi a curiosidade que deu origem à
desobediência dos marinheiros. Esta divergência não deixa de ser interessante se
considerarmos que a ganância é mais comum nos adultos e a curiosidade uma
característica própria dos mais jovens. Em Ulisses, após a fuga dos ventos, «O rei Eolo,
furioso com a desobediência deles, não os quis receber, nem sequer ver.» (p.38), na
Odisseia, o rei recebe-os, mas expulsa-os, por considerar que são detestados pelos deuses.
Na obra de Maria Alberta Menéres não é mencionada a passagem dos marinheiros
pela ilha dos Lestrígones, gigantes que tomaram os companheiros de Ulisses para sua
refeição. Este episódio da Odisseia é relativamente curto e não constitui uma das
peripécias mais marcantes da viagem do rei de Ítaca, o que terá levado a autora a suprimi-
lo. Por este motivo, após a Eólia, os marinheiros fundeiam na ilha de Circe.
A passagem pelos domínios da feiticeira traz à narrativa a presença do elemento
maravilhoso. Em Ulisses, o herói toma conhecimento da transformação sofrida pelos
companheiros através do relato de Euríloco56. Quando Ulisses, numa atitude altruísta,
decide correr em auxílio dos marinheiros, é Minerva (deusa pertencente ao panteão
romano) que lhe dá a erva da vida. Circe, ao ver que o rei de Ítaca resiste ao seu feitiço,
reconhece que não sendo ele um deus só poderia ser Ulisses, o que faz dele um ser humano
ímpar, reconhecível pelas suas características.
«Quem és tu, que assim resistes aos meus feitiços? És um deus? És um homem?
Um deus não és, e se és homem, só podes ser Ulisses, o das mil astúcias…» (p.44)
56
A forma como a transformação é operada traz à memória os contos tradicionais, sobretudo pelo uso da
varinha, a fazer lembrar a varinha mágica das fadas.
- Pois foi isso mesmo – respondeu Euríloco. – E a deusa tocou neles com
uma varinha e eles transformaram-se em … porcos!!! (p.41)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
A feiticeira tenta enganar o filho de Laertes, insistindo que os porcos não são os
seus companheiros e este, irritado com a sua incapacidade para reconhecer os seus amigos,
pontapeia um. Os marinheiros só recuperam a sua aparência quando é já altura de partir, o
que, de algum modo, é incoerente, já que o companheiro atingido pelo pontapé ainda
coxeia, apesar de se ter passado algum tempo. Circe aconselha-os a visitarem a Ilha dos
Infernos e a protegerem-se das sereias. Na Odisseia, os marinheiros são divididos em dois
grupos, um dos quais chefiado por Ulisses e outro, o que alcança o palácio de Circe, por
Euríloco. Este, regressando horrorizado, conta a Ulisses o desaparecimento dos
companheiros, mas é Hermes que revela a transformação e lhe dá a erva que impedirá o
encantamento de Circe. A “deusa de belas tranças” anui em quebrar o feitiço e presta o
juramento requerido pelo herói, para que este ceda e partilhe a sua cama. Os porcos são
transformados de imediato e permanecem com aspecto humano durante o ano que dura a
sua estada naquela ilha. Terminado este período, e devido à insatisfação dos marinheiros e
ao pedido de Ulisses, Circe decide ajudá-los e aconselha o rei de Ítaca a descer ao Hades
para consultar Tirésias.
Na Ilha dos Infernos, de acordo com a narração de Ulisses, a primeira alma que o
herói encontra é a de sua mãe e é ela que lhe dá a conhecer a situação vivida em Ítaca.
Tirésias, de seguida, apenas reitera as palavras de Anticleia. Na Odisseia, Ulisses vê a sua
progenitora, mas não lhe dirige a palavra antes de falar com o adivinho. É o vate que o põe
a par dos acontecimentos e lhe dá a conhecer o futuro. Anticleia, posteriormente, e a
pedido de seu filho, fornece alguns detalhes. Ainda nesta obra, esta personagem sabe que o
filho está vivo, ao passo que, em Ulisses, questiona se ele está vivo ou morto. Homero
descreve, ainda, o encontro com as diversas mulheres, Agamémnon, Aquiles, Ájax, Minos,
Oríon, os supliciados Títio, Tântalo e Sísifo, e, por fim, com Héracles. O texto de Maria
Alberta Menéres narra a permanência no Hades em seis páginas, demorando-se apenas
com a história de Tântalo e Sísifo. Em ambos os casos fica claro que a aflição que
suportam é o resultado das acções praticadas em vida.
Contrariamente ao que é relatado em Ulisses, depois de subir do Hades, o filho de
Laertes regressa à ilha de Circe, onde a deusa o adverte dos perigos que vai encontrar: as
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
57
Na Odisseia é mencionada a passagem da nau Argo por entre as rochas e a sobrevivência dos seus
tripulantes, entre os quais Jasão, que a Hera ficou a dever a sua salvação. Este episódio inspirou um dos
contos que António Sérgio compilou em Contos Gregos e que já analisámos.
- 31 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
E depois era já o povo todo que acorria e rebentava mesmo as portas, entusiasmado.
Era o povo que o queria ver, ajudar, lutar ao seu lado.
E depois era Telémaco, orgulhoso de seu pai e de si próprio.
E depois era Penélope que Ulisses abraçava para nunca mais deixar.
E depois era uma história
de um herói de mil façanhas
chamado ULISSES
que viveu aventuras e desventuras e aventuras e desventuras e aventuras por terras e
por mares desconhecidos.
Tão grandes foram essas aventuras e desventuras, que ele teve de as continuar
vivendo dentro de si próprio, contente por assim ir navegando na grande e
inesperada aventura de se sentir finalmente feliz. (pp.67-8)
58
Note-se que este tema foi escolhido por António Sérgio para integrar Contos Gregos, também objecto de
estudo, já analisado, deste trabalho.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
É esta a história que vos vou contar. Quem conta, é bem certo que acrescenta um
ponto. Oh, mas quando eu conto, são tantos os pontos sempre a acrescentar, que mesmo com
esforço não conseguiria nunca tais pontos… bem, todos os pontos contar! (p.7)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Dava pulos tão grandes que batia com a cabeça nas paredes
Nas paredes nas paredes
Batia com a cabeça no chão!!! (p.30)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
59
Para tal tem contribuído, também, A Odisseia – Aventuras de Ulisses, Herói e Navegador da Grécia
Antiga, de João de Barros. Mais recentemente, desde Novembro de 2005, está disponível A Odisseia de
Homero adaptada para jovens por Frederico Lourenço. Apesar de as adaptações não serem objecto de
análise deste estudo, como mencionado, não poderíamos deixar de fazer uma breve referência a esta obra. O
próprio autor, no posfácio, expõe os motivos que o levaram a proceder à adaptação e explica o método
utilizado para tornar a obra-prima da literatura clássica mais acessível e mais aprazível aos jovens leitores.
Foram suprimidas algumas passagens cuja autenticidade não é clara, assim como foram evitadas repetições e
material pouco relevante para o desenrolar da acção. É salientada, no entanto, a fidelidade ao texto original,
com alguns desvios que, em nossa opinião, em alguns casos, pretenderam apenas fornecer alguma
informação adicional que clarificasse o sentido de alguns episódios ou ilustrasse questões de ordem cultural.
Assim, vão sendo dadas indicações mais detalhadas acerca do estado de espírito e dos pensamentos das
personagens:
Inexplicavelmente, Telémaco sentiu no coração mais força e coragem. Sentia que estava
a pensar com mais intensidade no pai, mais ainda do que antes. Percebeu naquele
momento que o estrangeiro que o visitara era um dos deuses do Olimpo. E logo se
dirigiu para junto dos pretendentes, um homem. Definitivamente já não era uma criança.
(p.22)
(…) Penélope ouviu o que o poeta estava a cantar. E logo desceu as escadas (mas não vinha
sozinha, pois isso seria mal visto: duas criadas seguiam com ela.) (p.22)
Em outra passagem, a colocação do nome Mentor entre aspas (p.45) esclarece o jovem leitor de que, na
verdade, se trata de Atena. Numa outra, os pensamentos de Telémaco reflectem os habituais nos jovens,
quando se perdem a meio de um discurso.
(Qual infortúnio? Pensou Telémaco; mas não se atreveu a perguntar em voz alta.) (p.43)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
60
O primeiro volume da colecção que percorre as façanhas de Héracles, da autoria de Adriana Freire
Nogueira, surgiu, pela primeira vez, em 1997, editado pela Alda Editores, sob o título As Quase Verdadeiras
Aventuras de Hércules. Posteriormente, em 2004, surge uma segunda edição, desta vez da responsabilidade
da editora Nova Vega, com o título As «Verdadeiras» Aventuras de Hércules. O segundo volume foi também
editado pela Nova Vega, no mesmo ano da reedição do primeiro, e intitula-se As Novas Aventuras de
Hércules. Seguiremos, nesta análise, as duas últimas edições citadas.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
rodearam o nascimento do herói, motivados pela ira de Hera, o episódio das serpentes
enviadas pela esposa de Zeus, a educação recebida por Héracles, bem como a sua defesa
em tribunal, a propósito do assassínio de Lino. A abordagem feita à educação de Héracles
fornece um panorama dos métodos gregos de ensino: os professores, a separação rapaz/
rapariga, as áreas de formação privilegiadas, mas serve, ainda, para aproximar o herói do
adolescente comum. O filho de Zeus tem interesses distintos das matérias abordadas nas
aulas, os professores queixam-se constantemente da sua distracção e da falta de trabalho e
de material, experimenta as paixonetas próprias dos adolescentes.
- Não presta atenção, perturba o irmão. Durante os ditados distrai-se e perde metade;
quando passamos para a música irrita-se com o tempo necessário para dominar os
instrumentos… já não é a primeira vez que tenho de lhe dar um tabefe ou puxar-lhe as
orelhas! (…)
Nem tinha ouvido o professor, nem se lembrava de já ter chegado às aulas. Estava a pensar
na bonita filha de Êurito, o professor de arco. Se ela fosse às lições do pai, veria como ele
era forte!
- Héracles! É a tua vez. Lê o poema que preparaste em casa.
- Qual poema? Não trouxe nada!
- És incrível! Vens para as aulas sem material para trabalhar; não preparas as lições… não
sei o que fazer contigo! (vol.2, pp. 37-8)
- 37 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Depois deste episódio, Héracles surge com 18 anos, com a incumbência de matar o
leão de Citéron a troco das 50 filhas do rei Téspio, que recusa, mas que, sem que o saiba,
lhe asseguram uma imensa prole – os Tespíades. O regresso desta vitória propicia o
encontro com os enviados de Ergino, rei de Orcómeno, que pretendiam cobrar o tributo
devido, cuja origem é previamente descrita. A violência com que o herói termina este
encontro parece ser justificada por duas vezes.
Tinha fama de ser violento, embora não fosse assim que ele se sentia. O seu tamanho
desafiava as pessoas. Parecia que tinham de se medir com ele. Nessas ocasiões era obrigado
a defender-se. E só fazia aos outros o que eles tinham intenção de lhe fazer a ele. (…)
-Digam a Ergino que nós fazemos aos dele o que ele pensa fazer aos nossos. (vol.1, p.52)61
A batalha gerada por este acto de violência leva Héracles a revelar, novamente, o
seu lado humano, ao chorar a morte de Anfitrião (vol.1, p.56). A necessidade de apontar
uma justificação para os actos violentos e cruéis de Héracles, que surge pela voz do
narrador, da própria personagem ou de outras, prender-se-á com o facto de o destinatário
da obra não ser detentor de um elevado conhecimento do código heróico da época, o que
poderia motivar uma visão negativa do protagonista. O êxito obtido na batalha conduz ao
casamento dos gémeos Íficles e Héracles com as filhas de Creonte.
Posteriormente, após Euristeu ter reclamado o cumprimento da promessa de Zeus,
Héracles dirige-se a Delfos, ao oráculo de Apolo, para averiguar a justiça da sua
submissão ao primo. Acompanha-o Iolau, seu sobrinho adolescente, que será o
destinatário da história que Héracles conta acerca do oráculo de Delfos. Iolau partilha a
faixa etária do leitor de As Quase Verdadeiras Aventuras de Hércules, como partilhará
algumas ideias em relação a determinados assuntos, alguma curiosidade face ao que vai
vendo e ouvindo (/lendo) e algumas características próprias da idade. Iolau é
extremamente curioso, ávido de conhecimento, interrompe constantemente o tio,
procurando mostrar que é detentor de alguma informação.
61
Em tribunal, no passo anteriormente citado, defendera-se com uma sentença de Radamante, alegando
legítima defesa.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
- Eu sei quem é Geia! Foi dela que nasceu Urano, que é o Céu, as Montanhas e
o Mar! E os Titãs! E os Gigantes!62
- Sabes tanto Iolau!
- Foi a avó que me ensinou. Contou-me que a Terra é a avó de Zeus, senhor do
raio e do trovão, que ele reúne as nuvens e ainda comanda todos os outros
deuses! – respondeu Iolau de um só fôlego . (…)
- Não esqueço, tio. Mas conta o resto. (…)
- Podemos ver? (…)
-Enquanto estamos à espera podias ir contando a história de Tífon…
prometeste… (vol.1, pp.62 - 4) [sublinhado nosso]63
-Gnôthi seauton. Conhece-te a ti mesmo. Com o tempo vais entender o que isto quer
dizer. Conhecendo a extensão das tuas forças físicas e a capacidade da tua razão, sabendo o
que és, por dentro e por fora, saberás até onde podes ir por ti e na tua relação com os
outros. (…) (vol.1, p.68)
62
A repetição da conjunção coordenativa copulativa e contribui para transmitir esse desejo de mostrar os
conhecimentos que possui, quase com sofreguidão, o que é reiterado pela expressão «de um só fôlego».
63
Esta curiosidade manter-se-á no segundo volume.
…acho que houve um escândalo por causa dele… Mas não sei bem o que é.
- Eu sei, deixa estar. Já vou ao palácio solicitar pormenores.
- Se sabes o que é conta!
-É uma longa história…
- Não me assustas! Gosto de histórias! E quanto mais longas melhor!
(…) Mas eu gostava tanto de saber!
(…) Está bem. Contas-me essa, mas depois contas-me as outras. (vol.2, pp.39-43)
- 39 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
- Acho que percebo. Se eu não souber quem sou, nunca conseguirei dar o meu melhor. E
nada em excesso significa que há limites que não devemos ultrapassar, não é? A minha mãe
costumava dizer: «O que é de mais é moléstia.» É isso?64 ( vol.1, p.68) [sublinhado nosso]
De regresso a casa, é a vez de Mégara contar uma história aos filhos, mas fica claro
que o principal destinatário é o marido. A história de Apolo e do rei Admeto é, mais uma
vez, uma narrativa da qual o leitor poderá retirar ideias dignas de uma reflexão.
Segue-se o ataque das Erínias, por ordem de Hera, e o consequente assassínio dos
filhos e dos sobrinhos do herói, pelo próprio. Mesmo após aquele que poderá ser
considerado o mais desumano dos crimes, Héracles é desculpabilizado, desde logo, pela
mãe, Alcmena, e depois pelo narrador.
(…) Lutei com quem matou os meus filhos? Fui ferido e não me lembro?
(…)
- Amarrem-me com mais força! Cubram-me o rosto! Não tenho o direito de voltar a ver a luz
do Sol! Levem-me daqui! Expulsem-me da cidade! Não mereço viver! (vol.1, pp.77-8)
64
A mesma ideia, de moderação, será reforçada por Héracles quando ensina os Líbios a fazer e a armazenar
vinho.
- Cuidado… nada em excesso. O vinho dá boa disposição mas, se beberes com
desregramento, podes fazer coisas que não queres e vires a arrepender-te de alguns actos
tarde de mais. Além disso, tira-te no dia seguinte o vigor que te dá hoje. (vol.2, p.85)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Por isso, o passo seguinte é abandonar a sua casa, partir para servir Euristeu, não sem
antes se penitenciar, errando por caminhos que o conduzem a um novo feito: a libertação
de Prometeu.
A chegada de Héracles ao palácio de Euristeu, em Micenas, encerra a primeira
parte do primeiro volume da colecção e dá o mote para a segunda parte, que tem como
tema central quatro dos doze trabalhos do herói ao serviço de seu primo: o leão de
Nemeia, a Hidra de Lerna, a corça de Cerineia e o javali de Erimanto.
Euristeu e Copreu são, por oposição a Héracles, a configuração de todas as
características negativas: o primeiro é ridiculamente cobarde, indeciso, vaidoso; o segundo
é astucioso, mas usa a sua sagacidade da pior forma, sempre com segundas intenções. O
arauto de Euristeu é, de resto, sempre tratado de forma sarcástica por Iolau e pelo seu tio,
o que o faz cair, também, no ridículo. A caracterização destas personagens contribui para
gerar, no leitor, uma simpatia ainda maior por Héracles e o desejo de que este vença todos
os seus adversários e, desta forma, o seu primo e Hera.
A realização dos quatro primeiros trabalhos e dos que surgirão no segundo volume
transmite a valorização da inteligência sobre a força, já que apesar de esta ser, a maior
parte das vezes, indispensável, é a primeira que permite ao herói libertar-se de todos os
seus adversários. Note-se a desproporção entre os seres que lutam com Héracles e o
próprio herói, o que contribui, evidentemente, para a sua valorização. Além do seu
tamanho, estes seres possuem, também, características inigualáveis e repugnantes que
tornam mais difíceis os trabalhos de Héracles (o cheiro nauseabundo que emana da gruta
onde se esconde o leão; o hálito da Hidra; a rapidez da corça, de acesso impossível para
um mortal; a ferocidade do javali, aliada ao mau cheiro que o acompanhava) e são, logo à
partida, considerados invencíveis.
O leão de Nemeia parece inabalável e só sucumbe perante as suas próprias armas e
perante a inteligência de Héracles.
O combate com a Hidra, monstro horrífico, possuidor de várias cabeças, uma das
quais (supostamente) imortal, para além da inteligência, valoriza, também, a persistência e
a determinação.
Se não fosse a vontade de vencer, os dois homens não teriam tido fôlego para aguentar
tanto. (…)
- 41 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Mais uma vez, a inteligência e a persistência tinham feito que Héracles fosse bem sucedido
na sua empresa. (vol.1, p.108)
A caça à corça de Cerineia exalta, sobretudo, o poder de persuasão (já usado por
Héracles, quando adolescente, em tribunal) do qual se serve, de novo, para convencer
Ártemis a perdoá-lo por ter ferido a sua corça e a deixá-lo levá-la até seu primo 65.
Eu sei, poderosos deuses, mas não me restou outra alternativa. O meu primo Euristeu, que
reina na Argólida pelo favor de Hera, ordenou-me que lhe trouxesse a tua corsa [sic]
sagrada. Há mais de um ano que ando atrás dela, pois nunca a quis magoar. Sei que corro o
risco de te ofender, ó Caçadora, mas não tive outra possibilidade. Repara que ela não verteu
uma única gota de sangue. Espero que me perdoes e me deixes levar a tua corsa. [sic]
-Não achas que é pedir muito? (…)
-Acho, sim. Mas conto com a tua compreensão. (vol.1, p.114)
65
A autora preferiu a versão adoptada por Calímaco e, em geral, mais seguida pela tradição. Uma outra
versão, sugerida por Eurípides e à qual não se deu grande relevo, indica tratar-se um animal de grande porte,
que destruía as colheitas. (Pierre Grimal, Dicionário de Mitologia Grega e Romana, 2ª ed., Liboa, Difel,
1992, pp.209-210)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Apesar de compreender a agressividade destes centauros, Héracles não podia tolerar os seus
comportamentos brutais. (vol.1, p.124)
Quase no fim deste episódio, Folo dirá dos seus congéneres: «-Coitados! Nunca
conseguem controlar os impulsos violentos!» (vol.1, p.130). Os Centauros comungam, de
algum modo, das características do herói. Há um certo equilíbrio entre eles, por
«possuírem a força dos cavalos e o raciocínio dos homens» (vol.1, p.126). Ora, esta
situação cria no leitor a expectativa relativamente ao vencedor. À primeira vista parecerá
que é Héracles, mas, de facto, não se pode concluir desta forma, já que, vencidos os
adversários, perde dois grandes amigos. Assim, o herói revela, mais uma vez,
características humanas, pois comete erros, neste caso fatais, levado, muitas vezes, por
alguma precipitação. O protagonista já tinha conseguido abater alguns Centauros e
afugentar os restantes; no entanto, decide persegui-los até aos domínios de Quíron, onde,
matando um dos seus inimigos, fere gravemente o seu aliado. Por isso, lamenta, uma vez
mais, as suas acções:
-Ai, meu amigo! Que coisa horrível te aconteceu? Como pude eu fazer isso?
(…)
-Ó deuses! Ajudai-me neste momento! Não deixeis que, por minha causa, este centauro,
imortal como vós, sofra infinitamente!
(…)
-Obrigado, meu pai. Adeus, meu amigo – despediu-se Héracles do centauro. – Desculpa-me!
(…)
Dois amigos, os únicos centauros amigos, mortos na mesma altura! Ainda por cima por
razões estúpidas! (vol.1, pp.128-30) [sublinhado nosso]
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
ainda com o javali às costas. Ao longo do texto encontramos, com frequência, notas de
rodapé que indicam que determinada personagem ou episódio constam, já, do volume
precedente.66 Ainda assim, há aspectos que voltam a ser desenvolvidos, se bem que de
forma mais breve, o que assegura a legibilidade do texto, mesmo para quem não conhece o
primeiro volume. É o caso da referência ao pote mandado construir por Euristeu para se
esconder de Héracles, bem como à sua finalidade (vol.2, pp.7-8); da definição de mégaron
(vol.1, p.8, n.1 e vol.2, p.11, n.1); da menção à pele do leão de Nemeia como resultado da
realização do seu primeiro trabalho (vol.2, pp.19-20); da alusão ao assassínio dos filhos e
dos sobrinhos (vol.2, p.39); da referência às serpentes enviadas por Hera quando o herói
era apenas um bebé (vol.2, p.84).
As obrigações que o veremos cumprir neste segundo volume voltam a colocá-lo
em confronto com seres singulares quer pelo seu aspecto, quer pelo seu tamanho, quer
pela sua natureza (as aves de penas metálicas do pantanoso Estinfalo; o bravo touro de
Creta; as éguas antropófagas de Diomedes; os monstruosos Ortro e Gérion ou o infernal
Cérbero). Quando não é colocado frente a frente com este tipo de criaturas, é incumbido
de missões aparentemente inacessíveis até a um herói (a limpeza dos nauseabundos
estábulos de Augias, a conquista do cinto de Hipólita, a colheita das maçãs de ouro das
Hespérides). De todos elas sai vencedor.
O regresso do quarto trabalho, coincidente, como vimos, com o início do segundo
volume, volta a transmitir a visão do herói no seu lado mais humano, mas também mais
perseverante. Héracles deseja ser como qualquer outro homem, para poder fraquejar a
qualquer momento, comportamento que a sua condição de herói não permite.
Por vezes gostaria que as forças o abandonassem para poder cair por terra e entregar-se à
tristeza, como qualquer homem mais fraco. Mas não. Apesar do cansaço, o vigor continuava
a latejar-lhe nos músculos, pedindo cada vez mais actividade. Gostaria de se sentar numa
pedra do caminho, de beber um pouco de água de alguma fonte para matar a sede, de se
deitar sobre as ervas para repousar à sombra de qualquer árvore. Mas não conseguia. O seu
corpo não o deixava, a sua vida não lho permitia. (vol.2, p.7)
66
Do mesmo modo, outras dão a indicação de que surgirá um terceiro volume, com novos feitos heróicos.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Héracles. Neste caso, a tarefa surge mesmo como uma vingança pelo facto de o herói ter
sugerido (sublinhado) a ligação entre o nome próprio do mensageiro do rei e a palavra
«estrume». A Héracles é, pois, ordenada a limpeza dos estábulos do rei Augias, ricos em
gado e em sujidade. A visão do rio Alfeu, no decurso desta tarefa, suscita uma nova
micronarrativa, que não tem relação com o protagonista. É ele quem toma a palavra,
dirigindo-a ao sobrinho e ao boieiro, para contar a história das fontes de Aretusa. Este,
como outros trabalhos, como temos vindo a mencionar, demonstra um herói que comunga
das características de um simples mortal e que, por isso, se aproxima do leitor. Veja-se a
forma como tenta negociar com Augias, apresentando a ideia de limpar os estábulos como
sua e propondo receber, em troca desse serviço, uma décima parte do gado do rei; como é
enganado pelo governante e como vê nascer o desejo de vingança, que fica no ar.
A desolação era enorme no grupo daquelas três pessoas que saíram da região da Élide, onde
reinava o tirano Augias.
Mas não iria reinar para sempre… (vol.2, p.26)67
Note-se, ainda, a revolta que o filho de Zeus sente por estar ao serviço do cobarde
Euristeu e a comiseração de Iolau, que imputa a responsabilidade das acções de seu tio aos
caprichos de Hera.
Iolau sentiu pena do gigante: obrigado a tornar-se adulto muito cedo, sempre na mira de
toda a gente, eternamente perseguido pelo ódio de Hera, vítima dos deuses que o
enlouqueciam quando queriam, obrigado a lutar contra seres inimagináveis, o tio era um
homem solitário. Iolau sabia que naquele momento era ele o único apoio, a única família de
Héracles. (vol.2, p.21)
67
O tema da vingança de Héracles relativamente a Augias é desenvolvido em Mopsos o Pequeno Grego. A
Coroa de Olímpia, como veremos.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Realce-se a importância que é atribuída não só a Iolau68, como temos vindo a notar,
mas também, neste ponto, a Fileu, filho de Augias, que é chamado, por Héracles, a ser
testemunha na Assembleia, contra o seu próprio pai, e que aceita fazê-lo, em nome da
justiça da qual o pai se afastara. Iolau e Fileu, jovens ainda, têm comportamentos próprios
de adultos. O primeiro porque é o apoio do tio e a sua mão direita em alguns trabalhos; o
segundo porque escolhe o caminho mais difícil, mas, no seu entender, mais correcto.
Ambos estarão próximos em idade do leitor instituído, mas, pelos seus actos, podem
aproximar-se da grandeza do herói e é isso que Héracles sublinha quando se dirige a Fileu:
…Um homem mede-se pelos seus actos! Amanhã poderás mostrar o teu tamanho. (vol.2,
p.25)
Em altura e força [Eurítion] podia competir com o herói, mas não em inteligência. Héracles
contou com isso e usou uma táctica fácil. (vol.2, p.33)
É, também, com a ajuda de Atena, a deusa da inteligência, que conta para vencer as
aves de Estinfalo.
O sétimo trabalho conduz à inserção da narração de novos mitos, que tem Héracles
como narrador e Iolau como narratário. O herói demora-se nesta narrativa, fazendo uma
retrospectiva da história do touro de Creta, recuando a Dédalo, Minos e Pasífae e ao rapto
de Europa. No final desta longa exposição, o filho de Zeus apresenta uma conclusão, de
carácter sentencioso, que qualquer leitor considerará actualíssima:
- O mundo está cheio de feitos admiráveis, o ser humano está sempre a espantar-se com a
sua capacidade para novos sentimentos e novas acções. Nem sempre tudo é bom, mas a ideia
68
Héracles considera o sobrinho o seu melhor amigo, apesar da diferença de idades.
Acarinhava Iolau como se fosse seu filho e tinha medo que as deusas da vingança o
atacassem de novo e o levassem a magoar aquele que era do seu sangue e, para
além disso, se tinha tornado o seu melhor amigo. (p.39, vol.2)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
- É bom ver tanto entusiasmo num jovem! Hoje em dia muitos só pensam no vestuário, em
festas, em comer e beber, e noutras acções que amolecem o corpo e o espírito. (vol.2, p.66)
69
Mito explorado, também, em Mopsos, o pequeno grego. O Ouro de Delfos, que analisaremos.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Apesar disso, Abdero é apenas um jovem, susceptível de criar ilusões e cometer erros, o
que o conduz à morte.
A conquista do cinto de Hipólita, nono trabalho a seu cargo, revela um herói com
necessidade de criar laços afectivos e que se deixa conquistar. Mas este amor emergente
está a um passo da morte. Héracles volta a ser o responsável pelo fim de alguém que ama;
porém, uma vez mais, as culpas são imputadas a Hera, que gerou o clima de desconfiança
entre as Amazonas e os companheiros de Héracles.
O trabalho seguinte dá a conhecer a genealogia do monstruoso Gérion, o novo
adversário de Héracles, criatura medonha, considerada invencível, e cujos bois o herói tem
de conduzir até Euristeu. Antes de partir para esta obrigação, o filho de Zeus reúne os seus
companheiros e estabelece com eles uma espécie de compromisso: o de ajudar as
populações que fossem encontrando pelo caminho a libertar-se de todos as ameaças.
Volta, pois, a distinguir-se pela sua coragem, determinação e altruísmo e volta a ser
protagonista de missões heróicas, a primeira das quais consiste em enfrentar Anteu, cuja
superioridade em termos físicos é sublinhada.
Anteu era grande como uma rocha. Devia ter o dobro da altura de Héracles. (vol.2, p.81)
O mesmo sucederá com Eurítion, contudo ambos são derrotados pelo filho de Alcmena.
O seu único objectivo [de Eurítion] era derrotar aquele homem grandalhão, mas que era
bem mais pequeno do que ele. (vol.2, p.91)
Após a sua estada na Líbia, Héracles decide continuar o seu caminho separado dos
seus companheiros, o que permite a inserção, na narrativa, de novos feitos atribuídos ao
herói e que não se relacionam com os trabalhos ordenados por Euristeu. Mas o filho de
Zeus também tem momentos de fúria, que o levam a agir sem ponderação. Assim acontece
quando se enfurece por Hélio não atender o seu pedido para abrandar o calor e atinge com
uma flecha o próprio deus, feito que realça, uma vez mais, os seus atributos físicos. Mas
tem também a oportunidade de revelar o seu poder de persuasão nas conversas que
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
mantém quer com Hélio quer com Oceano.70 A travessia do oceano permite apontar uma
explicação mítica para o surgimento das chamadas «colunas de Héracles»71.
Gérion é mais um ser hediondo e abjecto, cuja descrição Héracles descobre ter sido
simpática e pouco realista. É a repulsa que sente pelo monstro, devido ao seu cheiro e não
ao seu aspecto, que faz mantê-lo à distância, e liquidar, de novo, um ser (aparentemente)
superior.
A descrição que se fazia de Gérion não fazia jus à realidade, pois não
considerava o cheiro horrível que dele se desprendia nem conseguia definir o
aspecto horrendo da criatura. As três cabeleiras nunca deviam ter tocado em
água, a não ser por acaso, contra vontade, na travessia de algum rio. Não se
notava que tivesse havido alguma lavagem recente, nem que alguns dedos
alguma vez tivessem desembaraçado os seus cabelos. Os corpos peludos nunca
deviam ter conhecido a delicadeza dos óleos que amaciam o corpo depois de um
banho. Essa palavra devia ser desconhecida dele. Os três pares de sovacos
emanavam um odor fedorento, como se escondessem bichos mortos, em
decomposição, no emaranhado que se entrevia quando esbracejavam. Héracles
pensou que não ia morrer de uma pancada, mas envenenado com o cheiro. Não
o deixou aproximar-se mais. (vol. 2, p.92)
Antes de realizar o seu penúltimo trabalho, Héracles encontra Cicno, filho do deus
Ares, que o desafia para uma corrida de carros. É reiterada a justificação do uso que o
filho de Zeus faz da força, por oposição àqueles (quase todos) que com ele lutam e que
usam a violência de forma gratuita.
70
Surge, aquando deste episódio, a localização actual dos lugares por onde Héracles vai deambulando.
Héracles passou por parte do território que é hoje Portugal, Espanha, França, Alemanha,
Itália, até conseguir regressar à Grécia. (vol.2, pp.92-3)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
-Sou Cicno, filho de Ares. Sei que és exímio em todas as espécies de lutas e corridas e que
não vais declinar um desafio para uma corrida de carros. (…)
- E se perder?
- A tua cabeça vai emoldurar o templo de meu pai. Héracles já tinha ouvido esta história,
com Anteu. Suspirou, cansado de tantos filhos violentos dos deuses do Olimpo. Felizmente,
ele não era assim. Podia parecer o contrário, mas só usava a força para se defender! Mas
Apolo, desejoso de castigar Cicno, soprou-lhe o desejo de vencer e Héracles cedeu à
provocação. (vol.2, p.97) [sublinhado nosso]
Héracles acaba por vencer, de novo com a ajuda de Atena, deusa da inteligência, a
soberba do seu interlocutor.
O encontro com Atlas, que acaba por ajudar o herói a cumprir este trabalho, é
revelador da sua inteligência, argúcia, do seu poder de persuasão, mas, ao mesmo tempo,
da sua perseverança. As palavras que dirige ao gigante parecem funcionar como um
incentivo e um consolo a alguém que foi, como ele, vítima da ira de uma divindade.
A vida mostrou-me, nestes anos ao serviço de um rei fraco como é Euristeu, que nada é
impossível. Com a nossa força de vontade, a nossa inteligência e uma ajudinha dos deuses,
de vez em quando, conseguimos tudo! (vol.2, p.102)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Euristeu agarrou-se aos corpos sem vida e ensanguentados dos filhos e gritou:
- Isto não acaba aqui! Não acaba aqui! Vingança! Vingança! (vol.2, p.118)
Apesar de, durante grande parte da narrativa, o protagonista ser adulto, partilha
com o leitor jovem algumas características psicológicas, nomeadamente alguma
instabilidade relativamente aos seus estados de espírito (ora surge confiante, ora
desanimado).
Há a destacar, também, a inserção do maravilhoso nestas aventuras, concretizado
não apenas pelo aparecimento de seres disformes e magníficos, mas também pela própria
caracterização da personagem. Héracles é apresentado como um super-herói, que ganha
todas as batalhas, que transporta adereços engendrados pelos deuses, que o ajudam nas
suas missões: a espada oferecida por Hermes; o arco e as flechas dadas por Apolo; a
armadura, oferta de Hefesto; o peplos, fabricado por Atena; o escudo cedido por seu pai,
Zeus, e os cavalos de Posídon.
A superioridade física do herói é constantemente recordada e a sua fama antecede-
o onde quer que vá. É frequentemente reconhecido nos locais por onde vai passando, tal
como os seus feitos.
O rei Augias estava à entrada do palácio com o filho Fileu. Vira Héracles aproximar-se e
interrogava-se sobre a natureza da visita.
- Boa Tarde, Héracles. E tu deves ser o seu irmão Íficles. (…)
Héracles não se surpreendia quando chegava a um lugar a primeira vez e percebia que já
sabiam quem ele era.
- Que te traz por cá, filho de Anfitrião? Algum monstro terrível ameaça as minhas terras?
Ah! Ah! (vol.2, p.19)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Héracles não ia precisar que o ajudasse a subir para a magnificente montada que lhe dera
Posídon. Embora fosse enorme para qualquer outro humano, parecia ter nascido para
pertencer a Héracles. (vol.2, p.34)
E lá foi para o Estinfalo. As pessoas alegravam-se ao vê-lo passar, nobre e sublime, no alto
do seu cavalo. Já sabiam ao que vinha e isso tranquilizava-as.
- Se Héracles vem aí, acabaram-se os nossos problemas! Ele vai conseguir acabar com a
praga dos pássaros! – diziam uns aos outros, esperançosos. [sublinhado nosso] (vol.2, p. 35)
Até que Héracles surgiu, mais belo («e mais alto», pensou Copreu) do que nunca. Os seus
longos cabelos louros caíam-lhe pelos ombros, iluminados pelo luar. Sem saber porquê,
Copreu caiu por terra, de joelhos, mas percebeu imediatamente o seu erro. Não, aquele não
era Zeus em pessoa. Era um escravo do seu amo. (…)
Héracles e Iolau riram-se. Tinham percebido perfeitamente o que acontecera e já estavam
habituados. Mesmo os maiores inimigos do herói se sentiam intimidados quando ele
aparecia em toda a sua grandiosidade. (vol.2, pp.12-3)72
A imagem que projecta causa espanto e permite a sua identificação com um filho de um
deus.
72
A apreciação feita à personalidade de Copreu serve, também, como mensagem actual.
Como acontece muitas vezes com as pessoas mesquinhas, que não conseguem
aceitar as suas fraquezas e acusam os outros de tudo, Copreu passou a sentir um
ódio ainda maior por Héracles. (vol.2, p.13)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Caronte, o barqueiro que atravessa o rio por onde têm de passar as almas que vão para o
Hades, assustou-se com aquele homenzarrão que chegava quase aos três metros de altura.
(…)
- Quem és tu, mortal? Estás vivo! Não te posso passar para o outro lado! – respondeu
Caronte, a medo. (vol.2, p.110) [sublinhado nosso]
73
Estas informações revestem-se de particular interesse se se considerar que as designações das constelações
seguem, ainda hoje, a tradição grega e que o nome oficial é mantido em Latim.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
74
A origem da peregrinação ao oráculo de Apolo, em Delfos, tal como a história deste santuário, é motivada
pela viagem que Héracles empreende, desde Tebas, com o seu sobrinho. É o herói que faz este relato a Iolau.
No primeiro volume de Mopsos, o Pequeno Grego, que analisaremos, também o pequeno adivinho faz este
percurso com o avô, Tirésias, que lhe dá todas estas indicações.
75
Adriana Freire Nogueira, As Novas Aventuras de Hércules, «Colecção Argos», 2ªed., Lisboa, Nova Vega,
2004, p.119
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
e, em última análise, os revisores têm um papel fulcral no respeito pela língua em que
escolhem comunicar. Em muito fica a perder esta colecção, e os seus eventuais leitores,
devido à presença de alguns erros ortográficos e sintácticos. Sistematicamente, (ao longo
dos dois volumes) se confunde porque com por que (veja-se, apenas a título de exemplo, a
página 77, do primeiro volume); utiliza-se, por duas vezes, aonde em vez de onde (vol.1,
p.93); ao longo de todo o episódio dedicado ao terceiro trabalho se utiliza o termo corsa
por corça (vol.1, p.110 ss.); no glossário do 1º volume, diz-se que Héracles «arrazou» o
palácio real de Ergino (vol.1, p.142); utiliza-se referências preposicionais incorrectas,
como «fizeram sinal a Europa de que o levasse até elas» (vol.2, p.42,) e «lembro-me de
que» (vol.2, p.54).
As ilustrações, da responsabilidade de José Ruy, no primeiro volume, e de Lídia
Lobo Martins, no segundo, são a preto e branco e representam os vários trabalhos da
Hércules, assim como outros episódios mitológicos que vão sendo introduzidos na obra,
quer estejam directamente relacionados com Héracles, quer não, reforçando o que foi
relatado no texto. No segundo volume elas são menos frequentes e prendem-se, sobretudo,
com os feitos heróicos de Hércules.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
76
Entrevista disponível na Internet, em 2 de Setembro de 2005, em www.storm-
-magazine.com/novodb/storm.php?id=402.
77
A autora explica, na mesma entrevista, que a colecção surgiu a pensar num seu sobrinho, com nove anos,
mas admite que são os adolescentes e, sobretudo, os adultos que têm demonstrado um maior entusiasmo pela
história de Mopsos.
78
A mitologia clássica está presente em Hélia Correia no seu romance A casa eterna e nas peças de teatro
Perdição e Helena, onde são tratados os temas de Ulisses, Antígona e Helena, respectivamente. Sobre a
presença de temas clássicos na autora, ver Luísa de Nazaré Ferreira, «A recepção dos temas clássicos na obra
de Hélia Correia», in AAVV, Fluir Perene. A cultura clássica em escritores portugueses contemporâneos,
José Ribeiro Ferreira e Paula Barata Dias (coord.), Coimbra, Minerva, 2004, 55-73.
79
A autora, na entrevista já citada (v. nota 76), menciona o afastamento relativamente ao tema mitológico de
Mopsos, já que a tradição não apresenta esta convivência entre avô e neto. Mopsos não terá chegado a
conhecer Tirésias. A tradição mitológica indica a morte de Tirérias como anterior à chegada de Manto a
Delfos.
80
Existem referências a um outro adivinho de nome Mopso, filho de Âmpix e Clóris. Foi o adivinho oficial
dos Argonautas, depois de Ídmon, tendo participado na expedição e morrido no regresso da Líbia, por ter
sido mordido por uma serpente. Frederico Lourenço, no texto lido na sessão de apresentação do livro, em
Lisboa, aponta a existência destas duas figuras mitológicas como razão justificativa da atribuição do nome
Mopsos, e não Mopso, mantendo a terminação grega em –s. Cf. Frederico Lourenço, «Céu Aberto», Mil
Folhas, Público, 1 de Abril de 2006.
81
No segundo volume, A Coroa de Olímpia (pp. 10 e 12)¸ fica claro que é esta a versão escolhida.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Claro, onde Mopso, filho de Apolo, viria a oficiar. Outros autores defendem que Manto
teria sido raptada por piratas cretenses quando se dirigia para Claro. O chefe desses piratas
seria Rácio e da união dos dois teria nascido Mopso. Este tornou-se o profeta do oráculo de
Apolo de Claro e, segundo a tradição, foi o fundador de Cólofon. Tendo entrado em
competição com o famoso adivinho Calcas, conduziu-o à derrota e, consequentemente, à
morte. Segundo os relatos míticos, Mopsos terá, juntamente com Anfíloco, fundado, ainda,
a cidade de Malo, na Cilícia, mas, disputando o governo da cidade num combate singular,
acabariam ambos por morrer.82 A narrativa começa com a localização espacial da acção e
com a referência a elementos naturais da Grécia, como a cor do céu, «liso e brilhante como
um interior de concha fortemente tingido pelo mar», e o inevitável canto das cigarras, que
é mencionado nos momentos fulcrais da acção, acompanha todo o seu desenvolvimento e,
de acordo com este, é interrompido ou retomado83. E este canto, lembra-o o narrador, é
diferente na Grécia:
As cigarras cantavam com o canto das cigarras na Grécia. As suas asas, duras como prata,
percutiam no corpo e produziam um imenso concerto musical. Estavam ocultas nas
amendoeiras e por isso parecia que era o chão, que era o campo vermelho que cantava.
(vol.1, p.7)
82
Sobre Mopso, filho de Rácio e Manto, veja-se Pausânias, VII, 3,2 e IX, 33, 1-2. Sobre o relacionamento de
Manto e Apolo leia-se Apolodoro, Epítome, VI, 4. Ainda na mesma obra, acerca deste vate, da sua vitória
sobre o adivinho Calcas, da fundação de Cólofon e da sua morte e da de Anfíloco consulte-se VI, 2 e 19,
respectivamente.
83
Durante a viagem a Delfos, o estridor do canto das cigarras intensifica a aspereza do caminho (vol.1, p.25);
em volta do domínio da Esfinge, o canto deixa de se fazer sentir, assim como o cheiro das árvores
(vol.1,p.36); após a tempestade, as próprias cigarras estão entorpecidas (vol.1, p.41). No meio da confusão
dos peregrinos, em Delfos, as cigarras elevam o seu canto para se fazerem notar (vol.1, p.82). O segundo
volume mantém esta presença. As cigarras estão na descrição poética da chegada a Olímpia (vol. 2, p.48);
calam-se quando todos ficam boquiabertos ao verem Tirésias aproximar-se (vol. 2, p.51) e quando o
desaparecimento de Sícon faz recair a desconfiança sobre Hércules (vol. 2, p.97).
- 57 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
A mulher tinha um modo de rir meio relinchado. «Provavelmente foi educada por cavalos»,
pensou Mopsos. O pai contara-lhe que os maiores educadores de toda a Grécia eram
centauros. (…) Ela ria mostrando os grandes dentes. (…) «Sou uma sábia», respondeu ela.
«Educo as Pitonisas.»
-Logo vi. Tu tens coisas de centauro. (vol. 1, pp.56-8)
A existência de Íris obriga à descrição da deusa grega e dos seus atributos, que
encontram paralelo na jovem que se tornará amiga de Mopsos. O nome justifica-se pelas
várias tonalidades dos olhos; a sua túnica, «feita do desperdício dos teares», possui as
mesmas sete cores do vestido da deusa; anda sempre a correr e é tão alta para a idade, que
desenha um arco, «como se a deusa (…) a empurrasse docemente com a mão». (vol.1,
pp.59-60)
É pelas mãos de Íris que Mopsos conhece o mar. E esta experiência permite-lhe
relembrar os serões de Tebas, onde tantas vezes este fora o tema das narrativas dos aedos.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Ainda que estas referências possam passar despercebidas ao leitor instituído ou real
(para recorrermos à terminologia da Pragmática Literária), dificilmente escapará a um
leitor afastado, familiarizado com a leitura da Odisseia. De imediato nos surge a memória
do canto de Demódoco, não sem que antes fosse saciado o desejo de comida e de bebida
(Odisseia, VIII, 62-82 e 481-520), assim como recordamos a ira de Posídon e as suas
consequências.
O [mar] dos poemas era como a mãe, escuro e fascinante. «Cor de vinho85», cantavam os
aedos, e habitado por uns seres alados que davam pelo nome de sereias e chamavam os
84
Não pretendendo fazer uma recolha exaustiva de todos os passos onde as imagens evocadas estão
presentes, apontaremos apenas alguns exemplos que considerámos elucidativos.
85
A expressão oivnopa povvnton, «mar cor de vinho» é recorrente na Odisseia (u.g., I, 183; XII, 388; IV,
474) e é utilizada, também, na literatura actual de inspiração clássica, nomeadamente por Eugénio de
Andrade em A Ilha.
Tanta palavra para chegar a ti,
tanta palavra,
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
homens para a morte. O mar real, aquele mar de Delfos que Mopsos avistava para além do
manto de árvores que cobria a longa encosta de tons de verde, esse emitia claridade. O seu
azul podia ser usado para pintar as túnicas dos deuses. (vol.1, p.62)
Não será, pois, difícil recordar o discurso de Circe, que previne Ulisses do perigo
que encontrará junto das sereias, que o homem dos mil artifícios relembra na corte de
Alcínoo (XII, 39-54), e sua própria descrição deste encontro (XII, 181-200).
O avanço da acção principal é atrasado por um acontecimento que gera grande
desordem em Delfos: ao cais de Kirrha chegam barcos egípcios86. Saber-se-á que
transportam uma embaixada, comandada por An-rum, que deseja consultar o oráculo de
Delfos, já que os seus próprios deuses têm sido obscuros nas suas profecias. Esta
necessidade propicia o confronto entre a forma de viver a religião dos dois povos.
Os nossos deuses andam entre nós e até se disfarçam de mendigos. Qualquer viajante que
nos bata à porta pode bem ser um deus 87. (…) E os Egípcios, não? Não, nunca os vêem.
Somente o Faraó e os sacerdotes… (vol.1, p.104)
Se tivesse o costume de falar com os deuses, pedir-lhes-ia que fizessem com que tudo não
passasse de um breve pesadelo. Mas os deuses ficavam longe do seu alcance. Não eram
deuses gregos. Não saíam dos seus templos de bronze para virem ajudar os mortais ou
atrapalhá-los, apaixonarem-se por eles e, até, fazerem-nos cair pelas ladeiras88. (vol.1,
p.108)
Acompanha o comandante a sua filha, Nor, que nas suas deambulações por Delfos
encontra Mopsos. Este recebe, logo ali, um dom da sua condição de adivinho, o da
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
tradução. Na verdade, Mopsos fala grego, mas ao pronunciar as palavras elas tornam-se
egípcias, o que possibilita a comunicação entre as duas crianças. Há, portanto, a inserção
de um elemento sobrenatural, que distingue o herói de todas as outras personagens e que
constitui uma das exigências da literatura infanto-juvenil. A forma como Mopsos descobre
que Nor é uma rapariga provocará, no mínimo, um sorriso de anuição por parte do leitor:
A grande amizade que nasce entre ambos é interrompida pela profecia do oráculo.
Recebido An-rum pela Pitonisa, vê confirmadas as palavras dos seus próprios deuses: que
o perigo vinha por mão das entidades que adoravam. Previamente aconselhado por Tirésias
a colocar a filha a salvo, An-rum, desagradado com o oráculo, abandona o templo e Delfos,
levando consigo a filha.
De seguida, é a vez de Mopsos. Depois de se purificar na fonte Castália, entra no
templo em circunstâncias que mostram tratar-se de uma pessoa especial: é apenas uma
criança, não leva animal para o sacrifício, atreve-se a chegar atrasado. Neste local, ouve
Apolo dizer, pela boca da Pitonisa, que é o seu verdadeiro pai. E de tal maneira a notícia o
perturba que adoece e não pode procurar Nor.
Ao longo do texto são dados vários indícios desta solução do oráculo. Logo no
início, na conversa que tem com sua mãe:
89
A indicação de que o rapaz era louro constitui um processo de valorização, já que esta cor de cabelo era
rara. Ele assemelha-se, portanto, a um deus, inclusivamente em termos físicos. Esta ideia é explorada numa
conversa mantida por Mopsos e Nor:
- 61 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
-A Delfos! – repetiu o general. Fitava Mopsos com os olhos muito abertos e a maxila de
baixo descaída, como se se admirasse mais do que a cara dele conseguia suportar. – A
Delfos! Compreendo. A Apolo, pois!... (vol.1, p.28)
És um rapaz muito observador. Espero bem que te entendas com a viagem. (vol.1,
p.58)
E encostava-se a ele, sem receio de que se apercebessem da sua permanência no meio dos
convidados e o mandassem deitar. Rhácio jamais consentiria que os separassem um do
outro. (vol.1 p.62)
- Ah! – exclamou Nor. E olhou-o, pensativa. – Por mim não sei se vou aguentar.
- Aguentar o quê?
- Ver muitos, como tu.
- Está descansada – disse Mopsos, furioso. – Grande parte dos Gregos é morena. (vol.1,
pp.92-3)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
guerra contra os egípcios na qual utilizarão, como armas, gatos amarrados aos escudos. Ora
os gatos são considerados sagrados para este povo, por se julgar serem a encarnação da
deusa Bastet, pelo que nenhum egípcio se atreveria a levantar uma arma contra os
inimigos. Daí os deuses dizerem que o perigo estava nas entidades que adoravam. Tirésias
descansa-o, profetizando que Nor se salvará e aconselha o neto a escrever-lhe. O rapaz
acata a sugestão, mas, porque o dom da tradução só funciona oralmente, resolve comunicar
através de um desenho: um coração, duas mãos enlaçadas e chuva, porque este era um
presente raro e, por isso, valioso para qualquer egípcio e porque simboliza o afastamento
de Apolo, que, no Inverno, não se encontra em Delfos. A comunicação funciona porque
são utilizadas duas linguagens universais: o desenho e o amor.
90
«De que valia a Mopsos saber que o pai era aquele deus tão belo e louro, que muitos confundiam com o
sol? Ele crescera aninhado no braço de Rhácio, com Rhácio aprendera a rir e a caçar, e a conhecer as coisas,
as pequenas e as grandes. De Rhácio recebera aquilo que é de suprema importância na vida das crianças, as
histórias que os pais contam aos filhos. Alguma vez Apolo se sentaria à noite com Mopsos ao seu colo para
lhe contar a sua própria infância?» (vol.2, pp.24-5)
A mesma ideia é reiterada veementemente pelo rapaz quando diz ao avô que pretende falar-lhe sobre o pai e
este não entende, de imediato, se se trata do deus ou de Rácio: «Que pai querias que fosse? Não tenho outro –
respondeu Mopsos, agressivamente.» (vol.2, p.17)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
roídas, provavelmente já tão velhas quanto o dono. Mas não se via aquilo que a
imaginação das crianças supunha decorar quartos de feiticeiros: corujas embalsamadas,
molhos de ervas, caveiras, braseiras com enxofre, lécitos cheios com água dos rios
infernais. A um canto, os buracos de uma estante mostravam alguns rolos de papiro já
partidos, à força de serem manuseados. «É o quarto de um sábio», concluiu Mopsos, e isso
sossegou-o. Mas depois deu por si a especular sobre o uso de papiros por um cego. Seriam
textos escritos por mortos? Com aquele pensamento arrepiou-se e pensou seriamente em
retirar-se. (vol.2, pp.15-6)
Esta mesma passagem reforça as dúvidas relativas à cegueira do adivinho que provêm do
primeiro volume.
A solução encontrada por Tirésias agrada a todos, sobretudo a Rácio, que vê a sua
importância reconhecida perante todos e vislumbra a possibilidade de retomar um
passatempo que, como cretense, lhe está na alma. As aventuras que o pequeno herói viverá
são proporcionadas, tal como em O Ouro de Delfos, por uma viagem. Esta torna-se
rapidamente notícia, espalha-se de boca em boca, e são os murmúrios das pessoas na rua
que trazem à narrativa a figura de Hércules91. Está, pois, dado o mote para a introdução da
narrativa encaixada que revelará a história de Hércules. O herói é apresentado e é relatada a
fatalidade que o levou a cumprir os doze trabalhos, por ordem de Apolo, mas destinados
por Euristeu. No momento em que o encontramos, o filho de Zeus está a meio das tarefas e
a limpeza dos estábulos de Augeias e os enganos que daí resultaram surgem como
fundamento para a criação dos jogos92. O desejo interesseiro de Hércules e a alteração das
regras do trabalho de limpeza dos estábulos são justificados imediatamente, pois a tarefa é
classificada como indigna de um filho de Zeus e Augeias como antipático e desleixado. Ao
longo de todo o volume é divertida a caracterização do gigante tebano, que tantas vezes
toma atitudes infantis, perde a noção das consequências do que diz e faz93 e é superado, em
termos de maturidade, pelo pequenino Mopsos. As suas acções intimidam, muitas vezes,
quem o rodeia.
91
Também Hélia Correia opta pela designação romana do herói, apesar de todas as outras personagens
manterem o seu nome grego.
92
A figura do filho de Alcmena aparece valorizada nas páginas iniciais, quando se alude à vaidade que
Mopsos sente quando considera que talvez os amigos o comparem a Hércules, «o herói da criançada», por
ambos terem nascido da união entre um deus e uma mortal.
93
Existem pontos de contacto entre esta caracterização e a que é feita em As «Verdadeiras» Aventuras de
Hércules e As Novas Aventuras de Hércules, de Adriana Freire Nogueira, também objecto de análise deste
estudo.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Era um gigante. Excedia Mopsos em altura e recordo que Mopsos estava aos ombros do
seu muito encorpado carpinteiro. (…) Os seus olhinhos, do azul intenso que se esperava
nos ruivos, ainda se faziam mais pequenos ao franzirem-se para fitarem o menino, em
contraluz. As bochechas coradas dir-se-iam definidas com tinta de mulher, muito
redondas. De todo ele, emanava aquela bonomia, o espírito infantil que é próprio dos
gigantes. (vol 2,p.54)
Esperava-se do herói a última palavra. Ele travava uma intensa luta consigo mesmo e
mostrava as feições tão transtornadas que se diria prestes a chorar. (…) O herói,
atrapalhado, começara a escavar o chão com a sandália e já estava a fazer um enorme
buraco. (…) Hércules encolheu os ombros convencido. Os seus olhinhos reluziram,
muito azuis e muito pequeninos, naquele enorme rosto que ainda estava corado, mas de
satisfação. (vol.2 pp.74-5)
O herói estava de tal modo enraivecido que só passados uns minutos percebeu que se
achava sozinho no palanque e que esmurrava os ares à sua volta. Para dar algum
sentido aos movimentos, escaqueirou os três bancos que restavam. A visão dos
destroços satisfê-lo por uns momentos e ele respirou fundo. (vol.2, p.96)
O próprio herói que nunca media as consequências da sua força nem daquilo que dizia.
- Não façam de mim estúpido! – gritou, enquanto olhava para todos os lados, buscando
alguém ou algo que socar. – Lá porque sou gigante, não deixo de saber somar os dois mais
dois e tirar conclusões. Estão todos convencidos de que eu raptei o Sícon?!
- Ó Hércules, que ideia! – exclamou um dos presentes. E logo toda a gente acenava com
as mãos, de palmas para fora, como se aquilo não fosse o que todos pensavam. (vol.2, p.97)
Quando dificuldades como esta cruzavam a entrada da tenda do herói, este erguia as
manápulas ao céu e derrubava a mesa com os papiros (…) À medida que o tempo
avançava, ele transformava-se numa criança má e choramingas. Dava ordens e contra-
-ordens, de maneira que todos decidiram ignorá-lo, o que ficava longe de resolver as
coisas. (vol.2, p.60)
Esta caracterização do gigante deixa bem claro que o verdadeiro herói de A Coroa
de Olímpia é Mopsos e não Hércules. De facto, o pequeno adivinho há-de enfrentá-lo, qual
gigante e guerreiro, quando ninguém mais o consegue fazer.
E, de facto, se havia alguém à altura do gigante, esse alguém era Mopsos, dado que
estava montado aos ombros de Diágoras. (…) E Mopsos, oscilando, parecia cavalgar. À
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Também o neto de Tirésias há-de avançar com a solução para a desavença entre os
construtores e os organizadores dos jogos quando os adultos, incluindo um gigante, não o
fazem (vol. 2, pp.86-8).
A incapacidade, manifestada pelo filho de Zeus, de medir a força e as
consequências dos seus actos tem a sua manifestação mais evidente quando acaba por
matar Augeias, apesar de pretender dar-lhe apenas uns «safanões». Depois de o fazer, olha
para o sobrinho «como quem aguardasse instruções».
No desenvolvimento de algumas das doze tarefas, Hércules é acompanhado pelo
sobrinho Yolau, que «era pessoa de juízo»94 e é o adolescente que, por vezes, ao longo
desta obra, chama o tio à razão. Para tentar redimir-se do seu acto e provar a Fileus que é
possível haver vitórias sem guerra e sem derramamento de sangue, Hércules tem, então,
uma ideia proporcional à sua grandeza: a realização dos jogos em honra de Zeus. A
expectativa e a designação que Yolau cria para os jogos, «olímpicos», bem como o seu
bom senso aproximam-no de Mopsos e deixam supor uma eventual amizade entre os dois.
A inexistência de crianças no palácio de Fileus e o ambiente demasiado solene e pouco
espontâneo que acolhe a comitiva tebana à chegada à Élide causam no pequeno adivinho a
impressão que «jamais encontraria ali um bom amigo» (vol.2, p.39). No entanto, Mopsos,
surpreendentemente, vai tornar-se amigo de alguém, mas não da sua idade. A separação
entre o mundo dos adultos e das crianças é evidenciada em várias passagens da obra. Em
algumas, essa situação irrita Mopsos, em outras, o adivinho marca claramente esse
afastamento, considerando o mundo adulto pouco sedutor.
Via-se bem que estavam divertidos com o rumo da conversa. Mas a presença do rapaz fê -
-los calar. Pigarrearam e voltaram a cabeça como se a natureza do assunto os deixasse
seriamente preocupados. Mopsos já assistira muita vez a este esforço dos adultos que
tentavam recuperar rapidamente a sisudez. Se então lhes perguntasse porque riam, já sabia
o que o avô ia dizer. «Não tenhas pressa», era a sua resposta favorita. (vol.2, p.37)
O mundo dos adultos não estava a revelar-se atraente a seus olhos. Parecia feito apenas
de zangas e de pazes, seguidas de mais zangas. (vol. 2, p.86)
94
Nas obras de Adriana Freire Nogueira, a que já aludimos, Iolau é visto sob a mesma perspectiva.
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95
A Sétima Olimpíada é considerada, juntamente com a sexta, uma das mais belas obras de Píndaro. O herói
cantado, Diágoras, era detentor de uma estatura e vigor que lhe permitiram alcançar a vitória em quatro
jogos. A VII Olimpíada foi de tal forma considerada que terá sido gravada em letras de ouro no templo de
Atena, em Lindos. Cf. Pindare. Olympiques. Texte établi et traduit par Aimé Puech. Paris. Les Belles Lettres,
1970.
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96
São diversas as lendas que falam acerca do amor de Alfeu por Ártemis e da resistência da deusa a esse
amor.
97
O narrador relata o mito segundo o qual Pélops havia sido cozinhado e servido num banquete, pelo próprio
pai, Tântalo. Todos os deuses se aperceberam do sucedido, excepto Deméter, que lhe devorou o ombro. Este,
no entanto, foi substituído por outro de marfim, que seria, posteriormente, exibido em Élis.
- 68 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Às vezes acontece que uma forte amizade nasça assim, ainda antes de as palavras nascerem.
O ar circula como um pombo com mensagem, ligando os que eram dois desconhecidos numa
disposição para se entenderem. O gigantesco Sícon nem sabia que o rapazinho era de um
sangue respeitado. Tomou-o pelo filho ou neto daquele homem que usava um avental de
carpinteiro e parecia tão habituado a transportá-lo às costas que dir-se-ia serem já um só
corpo e um só afecto. Mas parou, para olhar com simpatia.
E Mopsos, que gostava de olhos negros, olhos do sul como os da sua mãe e os do seu pai
adoptivo, sentiu-se desde logo dedicado à causa do atleta, ao seu triunfo.
(vol. 2, pp. 92-3)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
- Com o passar dos tempos, os factos e as lendas vão acabar por confundir-se
uns com os outros. Ficarás com a fama de teres criado os jogos.
Hércules não achou graça à profecia:
- Então, e eu?
- Dir-se-á que os restauraste. O mérito é igual – explicou Tirésias.
- Tens a certeza?
- Tenho. Absoluta. Agora reanima-te, rei Pélops. O poeta dos jogos, Píndaro,
vai cantar-te daqui a muitos anos numa das suas odes.98(vol.2, p.126)
(…) Vá chorar para a terra dele. (…) Vão para o Hades os dois (…) (vol. 2, p.18)
98
Referência à Primeira Olimpíada, de Píndaro. A Décima Olimpíada faz referência a Hércules (10.43-59).
Alguns estudiosos argumentam que os jogos foram fundados por Héracles para celebrar o seu triunfo sobre
Augias; outros, contudo defendem que a sua origem se relaciona com Pélops e que Hércules os restaurou
após a vitória sobre o rei da Élide.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Viera de uma ilha muito a sul, de Creta onde, contava, as pessoas viviam em festa
permanente. As mulheres, como os homens, não tapavam o peito e até competiam nos jogos
acrobáticos. (vol. 1, p.9)
A seu ver, se as mulheres fossem aos jogos, mais não fariam do que atrapalhar. Imaginava-
as, no meio da corrida, a pararem para darem um jeito no cabelo ou, no meio da luta, a
examinarem a qualidade do vestido da rival.
- Achas que a tua mãe é inferior a qualquer homem que conheces? – perguntou Rhácio.
- Mas há diferença. A minha mãe é adivinha.
- Oh! Todas as mulheres são adivinhas. Sabem coisas que nem te passa pela cabeça. Vou
dizer-te um segredo muito sério: os gregos têm medo das mulheres.
- Excepto os cretenses.
- Sim, senhor. Excepto os cretenses. As mulheres participam em tudo lá em Creta. E a
rainha tem a mesma importância que o rei. E luxo igual. (vol. 2, p.45)
A propósito dos comportamentos das personagens, são identificados traços dos gregos.
Gregos e gritaria são sinónimos! Estão sempre a discutir por disparates! (vol. 2, p.83)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Os Gregos davam muita importância à justiça, porém a injustiça estava por todo o lado.
(vol. 2, p.86)
Mas, ao contrário do costume em grupos gregos, não se escutava nem um som. (vol. 2, p.97)
A curiosidade não era brincadeira para a alma dos gregos. Tinham de ouvir lições
constantemente sobre as más consequências que ela trazia porque tendiam sempre a deixar-se
levar. (vol.2, p.110)
Desde que alguém falasse grego e pertencesse ao grande espaço a que chamavam «mundo
helénico», sentir-se-ia em casa em qualquer das cidades. (vol. 1, p.11)
Todos se percebiam sem esforço pois era a língua grega que os unia, mas a diversidade de
pronúncias e de termos que denunciavam uma região dava uma cor especial àqueles
encontros. Os da Lacónia falavam «axim». Os de Corinto praguejavam até mais não. Os de
Rodes faziam muitas vénias, à maneira dos povos do Oriente. (vol. 1, p.82)
Porém os cidadãos, como é seu hábito, não podiam viver sem se queixarem.
(vol.1, p. 12) [sublinhado e negrito nossos]
São, ainda, dados a conhecer alguns rituais e costumes, ainda que as personagens
não os observem em rigor.
A adivinha Manto tinha herdado do pai, Tirésias, o seu dom. Mas dera um toque muito
feminino àquela espécie de trabalhos. Por exemplo, em lugar de matar animais para ler o
futuro nas entranhas, lançava flores à água e via o modo como elas deslizavam na corrente
(vol. 1, p.9).
- 73 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
A mãe de Mopsos, Manto, também tinha os dons da profecia. Mas usava-os de um modo
muito peculiar. Colhia flores nos prados e estudava-as. Parecia que só via bons augúrios.
Era, aliás uma mulher tão bela que quem a procurava , só de olhá-la, via afastarem-se os
temores pelo futuro. (vol. 2., p.10)
Apesar de tão novo, ele assistira a um sem número de festividades pois parecia que para
aquela gente tudo servia de pretexto para folgar. Eram as sementeiras e as colheitas, e a
prova do vinho, e a chegada de um visitante ilustre, e os agradecimentos a um deus, e o
nascimento de um primeiro filho, e uma expedição que triunfava; era porque chovia e
porque havia sol, porque uma deusa, disfarçada de velhinha, tinha pedido abrigo no
palácio99, porque os rebanhos se multiplicavam, porque o rei se curara de uma unha
encravada, por isto, por aquilo, por aqueloutro. (vol. 1, p.21)
Sentindo o dia declinar, estremecia. Eram muito valentes, aqueles gregos, porém temiam o
desconhecido como se não passassem de crianças. (vol. 2, p.104)
-Vejam só! Um menino tão pequeno! Ainda deve morar com as mulheres! (vol. 1, p.26)
Mopsos não se calaria, por muito boa educação que o escravo-preceptor lhe tivesse dado.
(vol. 1, p.29)
Ao fazer oito anos, haviam-no mudado para os aposentos masculinos e ele achava que devia
sentir-se como um homem. (vol. 2, p.45)
99
Referência a Deméter, que, quando vagueava procurando a filha, após o rapto, pediu abrigo em casa de
Celeo e Metanira, em Elêusis, disfarçada de uma velha mulher.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Aquele que avançava era tão novo que a túnica lhe dava ainda pelos joelhos, como sinal da
sua condição infantil. (vol. 1, p.116)
O facto é que Tirésias riu de novo. Por um instante, o neto suspeitou que ele tivesse tomado
vinho puro. O vinho puro era tão espesso e forte que os Gregos raramente o bebiam assim.
Misturavam-no sempre com água em vasos próprios. (vol. 1, p.30)
… Com o templo de Apolo e a sua Pitonisa, Delfos era o lugar mais sagrado do mundo. (vol.
1, p.13)
…as Fedríades eram os rochedos que ele avistava abaixo dos cumes do Parnaso. (…) esse
seria o nome das encostas que o obrigavam a pestanejar. Pareciam cascatas gigantescas que
um sopro houvesse solidificado. (vol. 1, pp.45-46)
…Muitos anos depois, mais de dez séculos, Delfos atingiria o ponto máximo de riqueza e
esplendor. As cidades da Grécia ofereceriam tanto ouro ao santuário que passaram a
construir enormes cofres fortes onde guardavam a fortuna acumulada para evitar os surtos
dos ladrões. (…) No entanto, no tempo de Mopsos e Tirésias, a grandiosidade do lugar já
superava de bem longe a de qualquer outro, deve dizer-se que até mesmo a do santuário de
Dodona onde Zeus oferecia o seu oráculo de carvalhos falantes.100 (vol. 1, pp.47-8)
100
V. nota 31.
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Vinha à frente o rei Cadmo, sempre muito vaidoso – pois, ao que se dizia, e ele nunca se
fazia rogado em recordá-lo, fora quem dera vida à nova humanidade (...) Abatera um dragão
e lançara os seus dentes para trás, sobre o caminho. Como se se tratasse de sementes, deles
fizeram Cadmo e a mulher nascer a nova raça – que afinal, exclamava ele quando acordava
de mau humor, o que frequentemente acontecia, era ingrata e velhaca como a antiga. Os
homens, e os Gregos, e os Tebanos, andavam a pedir outro dilúvio, gritava o rei. Que
haviam de afogar-se e ele a rir, e a não salvar ninguém, e a recusar-se a semear de novo.
Não lhe passava pela cabeça sem cabelos que ele seria dos primeiros a morrer, porque era
muito, muito pequenino. De facto, tinha tanta idade que o esqueleto mirrara mais do que o
normal (…) e o deixara do tamanho de um anão. (…) visto ao longe, pareceria um bicho,
alguma espécie de cabrito magoado. (…) Quatro criados transportavam o andor e não
deixavam de sorrir ao constatarem que um grande rei pesava menos que um cãozinho. (…)
Estes gritavam: «Aqui vai o grande Cadmo!» E toda a gente achava muita graça. (vol. 1, pp.
18-19).102
Ainda a propósito deste rei, surge a menção ao deus Dioniso, que Cadmo,
orgulhosamente, repete ser seu neto, e às circunstâncias do seu nascimento. O deus é
101
Na antiguidade, estas referências surgem, por exemplo, em Apolodoro, Biblioteca., I, 4,1 e ss.
102
Cf. Aludimos, já, aos traços comuns entre Cadmo, no primeiro volume, e Pélops, no segundo.
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
apontado como fruto da união entre Sémele e Zeus, que se envolveu com a princesa sob a
forma de uma luz (vol. 1, p.19-20).103
Numa obra de literatura infanto-juvenil parece-nos original a visão que a
personagem principal possui da figura da Esfinge, o monstro feminino devorador de seres
humanos.
- Dizem que os cegos têm ouvido apurado. Eu ouvi Zeus, o rei dos deuses, a zangar--se.
Aliás, quando se zanga, ele grita a bom gritar. Não tarda muito que dispare raios e trovões.
- E zangou-se com quem?
- Com a mulher. Zanga-se quase sempre com a mulher. Hera não lhe consente certas coisas.
É um casal muito moderno, aquele. (vol. 1, p.39)
103
As referências à ascendência de Dioniso surgem na Teogonia, de Hesíodo (vv. 935 e ss.).
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
Afastou-se com Mopsos para as margens do Alfeu. De tão feliz com a visita do idoso
mago, o rio encheu as águas de um brilho encantador e pôs as suas ninfas a cantar. O
menino avistava as cabeleiras de prata, onduladas, quando as pequenas deusas vinham à
superfície. Elas cantavam muito docemente, com as suas gargantas de cristal. (…) As flores
dos prados que ainda resistiam ao verão deitavam um tapete apetecível pela encosta do
Kronos. E, sobre elas, pairavam as abelhas douradas, com as patinhas peludas carregadas
de pólen. Mais distante, a brancura dos carneiros também merecia a gratidão dos homens a
104
Em Teogonia, de Hesíodo, ficamos a saber que Prometeu será libertado do seu tormento por Hércules, ao
que Zeus não se oporá, para não ser obstáculo à glória do seu próprio filho.
Reverente ele honrou o insigne filho,
Apesar da cólera, pôs fim ao rancor que retinha /
de quem desafiou os desígnios do pujante Cronida. (vv.532-534).
Utilizámos, para este fragmento, a tradução de J. Torrano. Cf. Hesíodo. Teogonia A origem dos deuses.
Estudo e Tradução JAA Torrano. São Paulo, Iluminuras, 1995.
105
Os mitos de Prometeu e de Pandora têm inspirado a literatura ao longo dos tempos. Na época de Hesíodo
eles estariam já fixados pela tradição, mas apareciam isolados. Apresentá-los relacionados e dependentes um
do outro, quer na Teogonia quer em Trabalhos e Dias, constitui uma originalidade do poeta de Ascra. (Cf.
Hesíodo, Teogonia, vv. 536 - 616 e Trabalhos e Dias, vv. 42 -105)
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
quem oferecia o leite e a lã. (…) O se bastão azul deitou tal luz que parecia conter, em si, um
rio inteiro. Então, as próprias ninfas se calaram e o Alfeu deitou-se-lhe aos pés, como um
cãozinho. (vol.2, pp.64-5)106
Pela boca de Tirésias são reproduzidas algumas frases, de carácter gnómico, que
podem motivar uma reflexão, porque são sempre acompanhadas de atitudes ou pedidos de
explicação de Mopsos, o que permite intuir o carácter formativo ou pedagógico da
literatura infanto-juvenil. Vejamos alguns exemplos presentes em O Ouro de Delfos.
Quando o rapaz ganha um orgulho desmesurado por considerar que os viajantes o acharam
uma pessoa importante, ergue de tal forma a cabeça que provoca a queda do seu chapéu, o
que o faz atrasar o passo em relação ao avô. Este censura a sua vaidade, dizendo que «o
nariz empinado desequilibra tanto como uma bebedeira» (vol. 1, p.29). Ainda a propósito
deste encontro, o rapaz questiona a necessidade de o avô saber da boca de Icário como este
tinha enganado a Esfinge, dado Tirésias ser um eminente adivinho. A resposta possui
também um tom sentencioso: «Só ver em nada se compara com o que ouvimos da boca de
um amigo» (vol. 1, p.35). Quando Mopsos acha estranho que as amas assustem os rapazes
falando-lhes do monstro devorador de viajantes, dado que não havia conhecimento da sua
entrada em Tebas, o avô profere a seguinte frase: «Não existe nada mais poderoso que as
palavras» (vol. 1, p.34). «Aqueles que querem conhecer conhecem» (vol. 1, p.44) é a
resposta impaciente que o rapaz ouve, quando o avô se mostra cansado com as sucessivas
questões que aquele lhe coloca.
Acerca da função pedagógica da literatura para a infância, Manuel Breda
Simões107 defendeu que
106
Muitos outros passos da obra reavivam os vários domínios da cultura grega e outros exemplos poderiam
comprovar os vários aspectos que realçámos. Por razões de economia expositiva, escusamo-nos, no entanto, a
citar, exaustivamente, cada um deles.
107
Manuel Breda Simões, Função Formativa das Literaturas Infantil e Juvenil, Lisboa, Secretaria de Estado
da Juventude e Desportos, 1978, p.11
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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude
De acordo com estas reflexões, esta literatura deve evitar ensinar de forma directa
e intencional, levando o seu leitor a reflectir sobre os valores ou pensamentos veiculados.
Maria Madalena Teixeira da Silva108, ponderando o estatuto e natureza da literatura
infantil, defende que a diferença de experiências, interesses, conhecimentos e gostos das
crianças em relação aos adultos (que criam essa literatura) gera obras com um pendor
excessivamente pedagógico em detrimento do seu aspecto artístico.
Sintomaticamente, a própria autora da colecção afasta qualquer propósito
pedagógico nesta narrativa.
Como podia eu servir-me dele para fazer passar uma mensagem, ainda que fosse
pedagógica? Não, um livro não é um pombo-correio, não tem de levar nada na anilha.
(…) A sua natureza de nobre não admite que lhe adscrevam missões. Não nutro a intenção
de ensinar nada, a não ser que se chame ensinar a dar a mão e a fazer perder o medo para o
voo. (…) Não gosto da atitude de quem detém alguma espécie de saber e o impõe com
arrogância e caridade, o que não é senão a mesma coisa.109
Quem lida directamente com crianças sabe como são avessas a que lhes imponham
de modo coercivo pontos de vista ou informação que não considerem relevante. O
protagonista da obra que temos vindo a analisar, em três momentos, transmite exactamente
essa ideia:
Mopsos pensou que não havia nada que ele [o avô] não aproveitasse para se armar em
parvo e dar grandes lições. O rapaz estava realmente aborrecido. (vol. 1, p.29)
e
Afinal, apesar de reclamar, o avô precisava das perguntas que o neto lhe fazia.
Sem perguntas, acabava por ter de avançar explicações como se fosse realmente uma tarefa
de que alguém o tivesse encarregado. E mais parecia um professor daqueles que, não
querendo ser acusados de negligência, ensinam tudo aquilo que têm de ensinar, ainda que os
alunos os não ouçam. Dizem as suas frases muito certas, ansiosos por chegarem a um ponto
final. (vol. 1, p.49)
ou ainda
108
Maria Madalena Marcos Carlos Teixeira da Silva, O novo rosto do paraíso. Diálogos com a infância,
Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 2004, pp.35-36.
109
V. nota 76.
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Ora, uma criança não tem grande paciência para as filosofias ocultas dos adultos que aliás
transportam sempre em si uma vontade de dar lições de vida tarde ou cedo. (vol. 1, p58)110
Estamos certos que o leitor sorrirá, mais uma vez, partilhando o pensamento de
Mopsos.
… cada vez se torna mais evidente a necessidade de abrir a literatura para crianças aos
novos caminhos de toda a literatura, respeitando a sua especificidade, mas aproveitando as
novas possibilidades expressivas capazes de renovar e criar uma literatura cujo valor não
tenha que ser medido por uma bitola separada.
É nossa opinião que a autora desta colecção conseguiu conciliar aquelas que são as
exigências e características específicas da literatura vocacionada para esta faixa etária com
as características da literatura para adultos, construindo um texto que, sendo simples, não é
simplista (nem no tema, nem, inclusivamente, na linguagem utilizada); que, podendo
exercer uma função pedagógica, não abdica do seu teor artístico; que, promovendo a
evasão, leva o leitor, à semelhança do protagonista, a ponderar e a vencer os seus próprios
obstáculos.
Atravessa Mopsos, o pequeno Grego, uma vasta quantidade de personagens e
episódios da mitologia grega que, trazidos até ao presente, dão ao leitor uma ideia do
passado, nas suas crenças e formas de ver e de estar no mundo, e possibilitam uma reflexão
sobre o futuro. Hélia Correia ousou, nesta colecção, criar um universo ficcional que,
motivando a meditação sobre valores como a amizade, o amor familiar e o respeito por
diferentes idades e culturas, perpetua e reutiliza a herança clássica na nossa literatura. O
velho Tirésias acentua esta ideia na sua imensa sabedoria: «As palavras duram mais do que
as coisas e, por vezes, fazem durar as coisas» (vol.1, p.53). Ele foi o maior adivinho «de
todos os que os Gregos conheceram»; Hélia Correia escutou-o.
110
Em A Coroa de Olímpia, o rio Alfeu, envergonhado com a atitude tão infantil que tomara perante uma
criança, decide fazê-lo: «… Se tinha de lidar a bem com um rapazinho, o melhor era dar-lhe uma lição de
vida, filosofava Alfeu.». (vol.2, p.86)
111
Op. cit., p.15
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os heróis dos romances são dotados de todas as virtudes; procuram ultrapassar-se no plano
individual, ao mesmo tempo que permanecem diligentemente subordinados à sociedade. O
herói não é um revoltado, mas um grande conformista, munido de coragem e ingenuidade
(…)113
112
Cf. Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, Os Jovens e a leitura nas vésperas do século XXI, Lisboa,
Editorial Caminho, 1994, p.44
113
Laurence Simon, «A criação Literária em França e noutros países e a sua evolução através dos romances
para adolescentes», in AAVV, Do Dragão ao Pai Natal – Olhares sobre a Literatura para a Infância, Porto,
Campo das Letras Editores, 1999, p.28
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Esta sujeição à sociedade aproxima-o do público mais jovem, dependente, ainda, dos
adultos.
(…) a grande obra literária infantil, com efeito, é aquela em cujo estilo não há
qualquer torção sensível nem sombra de artificialidade: e que, mesmo quando num passo ou
noutro obriga a criança a perguntar o significado de uma palavra ou imagem, consegue
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despertá-la ou encantá-la sem pactuar de antemão com uma suposta ignorância, pieguice
114
ou debilidade de espírito.
114
Lemos, Esther de, A Literatura Infantil em Portugal, Lisboa, M.E.N., 1972, p.29
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