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Universidade de Aveiro Depariamento de Línguas e Culturas

SANDRA MARIA DE A CULTURA GREGA NA LITERATURA j


OLIVEIRA GOMES PORTUGUESA PARA A INFÂNCIA E A JUVENTUDE i
I
RAMOS I
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Universidade de Aveiro Depafiamento de Línguas e Culturas

SANDRA MARIA DE A CULTURA GREGA NA LITERATURA


OLIVEIRA GOMES PORTUGUESA PARA A INFÂNCIA E A JUVENTUDE
RAMOS

Dissertação apresentada a Universidade de Aveiro para cumprimento dos


requisitos necessários a obtenção do grau de Mestre em Estudos Clássicos,
realizada sob a orientação científica do Prof. Dr. António Manuel dos Santos
Ferreira, Professor Associado com Agregação, e do Prof. Dr. Paulo Alexandre
Cardoso Pereira, Professor Auxiliar do Departamento de Línguas e Culturas da
Universidade de Aveiro
o júri
residente Prof. Dr. João Manuel Nunes Tarráo
professor catedretico da Universidade de Aveiro

Prof. Dr. António Manuel dos Santos Ferreira


professor associado com agregação da Universidade de Aveiro

Prof. Dra. Helena Maria Ribeiro Alrneida Costa Toipa


professora auxiliar da Universidade Catblica. Centro Regional das Beiras - Viseu

Prof. Dr. Paulo Alexandre Cardoso Pereira


professor auxiliar da Universidade de Aveiro
Dedico este trabalho a minha família, pelo incansável apoio, e ao André e ao
Jorge, pelo incentivo.
agradecimentos Agradeço aos meus orientadores pela importante colaboração e apoio,
essenciais para que conseguisse levar a bom porto este trabalho, a Professora
Doutora Ana Margarida Ramos, por toda a disponibilidade e pelos materiais
fornecidos, e à Doutora Conceição Figueiredo, pela colaboração.
palavras-chave Cultura grega, literatura, infância, juventude

resumo O presente trabalho pretende investigar a representação da cultura grega em


textos, em língua portuguesa, dedicados à infância e a juventude. Propomo-
-nos, neste estudo, analisar o tratamento dado aos elementos clássicos e
verificar de que forma são cumpridas as exigências da literatura destinada as
respectivas faixas etárias.
keywords Greek Culture, Literature, Childhood, Youth

abstract This dissertation aims to analyse the representation of Greek Culture in


Portuguese literary texts for children and young people. In this study we intend
to portray the way classical elements are handled and how the demands of
such literature are accomplished.
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

ÍNDICE

Considerações iniciais ………………………………………………............... 7

Capítulo I

Literatura para a infância e para a juventude em Portugal – breve itinerário


10
diacrónico ………………………………………………………………….

Capítulo II

Representação da Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a infância e


a juventude ……………………………………………………………….... 14

* Contos Gregos, de António Sérgio ………………………………… 14

* Ulisses, de Maria Alberta Menéres ………………………………… 24

* As (Quase) Verdadeiras Aventuras de Hércules (volumes I e II), de


Adriana Freire Nogueira ……………………………………………… 35

* Mopsos, o Pequeno Grego. O Ouro de Delfos e A Coroa de Olímpia,


de Hélia Correia ………………………………………......................... 55

Considerações finais ………………………………………………………….. 81

Bibliografia…………………………………………………………………….. 84

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A cultura clássica, nas suas diversas vertentes, tem exercido um imenso fascínio
sobre a literatura portuguesa de todos os tempos. Camões, Fernando Pessoa, Vergílio
Ferreira, Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner Andresen, David Mourão-Ferreira,
Manuel Alegre, Eugénio de Andrade, Nuno Júdice e tantos outros deixaram-se seduzir
pelos temas que o tempo não apaga, mas rejuvenesce. Com novos matizes ou apenas
parafraseados, esses temas trazem até nós valores, pensamentos e formas de ver o mundo
que em muito influenciam a sociedade contemporânea.
Mais raro, no entanto, tem sido o tratamento de temas clássicos na literatura para a
infância e a juventude. Num mundo cada vez mais virado para o futuro, não parece tarefa
fácil combinar antiguidade e literatura para crianças e jovens. Apesar disto, conseguimos,
ainda, reunir um corpus razoável se tivermos em consideração, juntamente com as obras
originais, as adaptações e as recriações que, ao longo dos tempos, têm procedido à reescrita
de obras das literaturas grega e latina. Aqui encontramos nomes com um peso significativo
na cena literária portuguesa. É o caso de João de Barros, que aproximou das crianças (e do
povo) obras maiores da literatura clássica, como a Ilíada, a Odisseia ou a Eneida; de
António Sérgio, que deu a conhecer, nos seus Contos Gregos, alguns episódios da
mitologia helénica ou, mais recentemente, de Maria Alberta Menéres, que, ainda hoje, faz
chegar aos mais jovens as aventuras de Ulisses, na obra homónima que o programa
curricular de Língua Portuguesa do 6º ano de escolaridade já consagrou no cânone escolar.
Tendo por objecto as recriações, pretendemos analisar os diferentes trabalhos de reescrita e
proceder ao confronto com o respectivo intertexto. Além destes, encontramos, ainda,
títulos originais, que, criando um novo universo ficcional, recuperam aspectos da cultura e
civilização clássicas. Inserem-se nesta categoria os dois volumes de As (quase) verdadeiras
aventuras de Hércules, de Adriana Freire Nogueria, e a colecção Mopsos, o Pequeno
Grego, que relançou na aventura da escrita para a infância um nome de importância
reconhecida no universo literário nacional, Hélia Correia.
O elenco de textos coligido pretende, assim, ilustrar diferentes modalidades de
apropriação intertextual das fontes clássicas, esclarecendo as dinâmicas de cópia,
reinvenção ou transfiguração ficcional mobilizadas pela escrita de potencial recepção
infanto-juvenil.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Se, à primeira vista, parece difícil encontrar literatura de temática clássica com este
tipo de destinatários, mais problemática se torna a descoberta de estudos sobre ela.
Percorrer estas obras, analisando a forma como a cultura clássica é revisitada, sem
esquecer as exigências e as características próprias de uma literatura destinada à infância e
à juventude, parece-nos assumir uma elevada importância, quando, no século XXI, se
continua a falar no afastamento entre os jovens e o livro e os responsáveis pela educação
apontam, insistentemente, a escassez de hábitos de leitura, como uma das causas de
insucesso escolar1. Ora, a relevância de textos destinados aos mais jovens,
independentemente de serem considerados, pela crítica, literatura ou paraliteratura, é,
pensamos nós, evidente, já que, promovendo a aproximação entre estes e o livro, poderão
abrir caminho ao desejo de novas leituras. Com José António Gomes, consideramos que o
“saber-ler”, para além da capacidade de “decifração e compreensão leitora”, passa pela
necessidade de “educar o gosto pela leitura” e pelo “desenvolvimento do poder de ler dos
alunos”2.
Abordaremos, ainda, a questão da vertente pedagógica da leitura, tentando antever
quais os objectivos de cada um dos textos estudados (essencialmente lúdicos, meramente
didácticos, pedagógicos…). Ainda que, em determinadas obras, estes propósitos didácticos
e pedagógicos não sejam claramente assumidos ou, em outros casos, sejam,
inclusivamente, rejeitados pelo autor ou pelas próprias personagens, teremos em conta o
papel da leitura como factor de socialização, como elucidam as palavras de Maria
Bernardette Herdeiro:

(…) o leitor é confrontado com universos de ficção onde se representam valores, padrões
sociais, modos diversos de pensar e agir, que podem aproximar-se ou distanciar-se dos seus.
O contacto com uma diversidade de modelos, segundo um percurso pessoal (…) produzirá
uma questionação e um aprofundamento do universo individual, ao mesmo tempo que

1
Os resultados do Estudo Internacional PISA [Programme for International Student Assessment] 2000 (em 8
de Outubro de 2005, disponíveis em www.oecd.org/dataoecd/32/10/33685403.pdf) revelam que Portugal
detém uma percentagem bastante elevada (52%) de alunos de 15 anos com níveis muito baixos de literacia,
quando comparada com a média dos países da OCDE (40%). Concluiu-se, pois, que mais de metade dos
jovens com esta idade possui grandes dificuldades ou é mesmo incapaz de realizar tarefas de maior
complexidade, que exijam a compreensão de textos escritos e a utilização dessa informação em actividades
do quotidiano.
2
José António Gomes, Literatura para crianças e jovens – Alguns percursos, Lisboa, Editorial Caminho,
1991, p.20

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

permitirá encontrar elos, semelhanças e diferenças, necessários a uma integração dialéctica


no universo social.
Pelo auto-conhecimento que assim se produz, a leitura tem um papel fundamental na
construção da personalidade; pelo conhecimento que possibilita, através do imaginário, de
outros modos de ser e de estar, de sistemas diversos de relação, de espaços e tempos
diferentes, a leitura aparece como uma importante via de socialização3.

Assim, no primeiro capítulo deste estudo, debruçar-nos-emos, de forma breve,


sobre o surgimento e evolução da Literatura para a infância e a juventude em Portugal.
No segundo capítulo, procederemos à análise do corpus seleccionado e
observaremos a representação da cultura grega na Literatura Portuguesa para a infância e a
juventude. Da análise dos títulos seleccionados concluímos que são mais abundantes as
obras que contêm referências à cultura helénica do que aquelas que se reportam à cultura
romana. Assim, e para podermos estabelecer um ponto de comparação entre os vários
textos e a forma como os elementos clássicos são tratados, optámos por seleccionar apenas
os títulos onde é possível encontrar representada a cultura grega. Debruçar-nos-emos sobre
Contos Gregos, de António Sérgio; Ulisses, de Maria Alberta Meneres; As quase
verdadeiras aventuras de Hércules (volumes I e II), de Adriana Freire Nogueira e Mopsos,
o pequeno grego. O Ouro de Delfos e A Coroa de Olímpia, de Hélia Correia.

3
Maria Bernardette Herdeiro, «Dimensão pedagógica da leitura», in Coelho, Jacinto do Prado et al.,
Problemática da Leitura – Aspectos Sociológicos e Pedagógicos, Lisboa, INIC, 1980, p. 42

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

CAPÍTULO I

Literatura para a infância e para a juventude em Portugal – breve itinerário


diacrónico

A literatura para a infância procede da literatura para os adultos e teve as suas


origens na literatura popular e tradicional4. A estreita relação entre elas justifica-se pela
identificação de algumas características da última: uma intenção fundamentalmente
didáctica e a proliferação de seres ou acontecimentos do domínio do maravilhoso e do
fantástico. As raízes da Literatura para a infância em Portugal, como no mundo, ficam a
dever-se à popularidade alcançada, junto do público mais jovem, por algumas obras
destinadas a adultos5, mas só na segunda metade do século XIX se pode considerar ter
existido uma literatura portuguesa escrita a pensar nas crianças.
À literatura para a infância esteve associada, durante muito tempo, uma intenção
moralizante, já que o livro visava transmitir uma série de normas e de valores éticos e
morais para a vida de adulto.6 Os textos adoptavam um tom didáctico e um estilo grave e
pesado, nem sempre acessível ao público-alvo. Ainda assim, muitas obras aparecem
dedicadas, em simultâneo, às crianças e ao povo, assumidos como um público pouco
exigente, porque pouco culto.
Alguns elementos da Geração de 70 tomaram consciência da necessidade de ver a
criança como um ser com características próprias e, consequentemente, de a literatura em
Portugal atender a essas diferenças, à semelhança do que já acontecia em outros países da
Europa. Contudo, o seu contributo resumiu-se à reunião de contos e fábulas já
anteriormente publicadas7.
O século XX viu crescer, em Portugal, o interesse pela literatura para a infância e
juventude, que foi paulatinamente conquistando o seu espaço, por vezes, com alguma
confusão relativamente às suas características específicas. A par da instrução e da formação,

4
O título A Ilíada de Homero Contada às Crianças e ao Povo, de João de Barros, é apenas um dos exemplos
da aproximação que se fazia entre a literatura para a infância e a literatura popular.
5
Assim aconteceu, por exemplo, com as traduções das fábulas de Fedro e Esopo ou com Peregrinação, de
Fernão Mendes Pinto. Regra geral, as obras mais populares incluíam relatos de viagens.
6
Aquele que se considera o primeiro romance de aventuras destinado a crianças, Telémaco, de Fénelon, foi
assumido claramente como um livro com objectivos pedagógicos e didácticos.
7
Encontram-se entre esses nomes os de Guerra Junqueiro, Antero de Quental, João de Deus e Adolfo
Coelho.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

começa a manifestar-se alguma preocupação com o aspecto lúdico desta literatura, tantas
vezes pensada para adultos em ponto pequeno, sem que fossem tidas em consideração as
capacidades, os interesses e a especificidade do leitor-criança. António Sérgio, escritor,
pensador e pedagogo, foi um dos nomes a que se ficou a dever esta mudança. Foi o próprio
que defendeu que «Antes de tudo, deve ser o conto uma obra de arte, e secundàriamente
instrutivo».8
Em 1984, Natércia Rocha defendia que as preocupações de índole pedagógica
persistiram até quase ao século XXI.

É de registar que o pendor pedagógico deitou raízes tão fundas que hoje, quase no
século XXI, é ainda necessário fazer a defesa do elemento não-didáctico; a preocupação
didáctico-moralista persiste em asfixiar a obra literária para crianças, impondo-lhe o
desempenho de funções que não são exigidas ao trabalho literário para adultos. Poucos,
pouquíssimos mesmo, são os autores suficientemente libertos dessa pressão para se
entregarem à criação de obras tendo o valor estético como prioridade absoluta.9

Américo Lindeza Diogo10considera que a Literatura infantil, espartilhada entre a


necessidade de obedecer a propósitos pedagógicos e a imposições de estilo, se torna, por
vezes, má literatura.
Muitos autores conceituados, como Sophia de Mello Breyner Andresen, Agustina
Bessa-Luís, Matilde Rosa Araújo, Ilse Losa, António Torrado, Maria Alberta Menéres,
Alice Vieira, só para citar alguns, ofereceram à infância obras de grande qualidade. E se as
preferências de leitura dos jovens de hoje diferem das dos seus pais quando tinham a
mesma idade, a verdade é que algumas destas obras passaram e vão passando de um
geração para outra, deliciando pais e filhos.
Não deixa, também, de ser curioso que as colecções que têm, em alguns casos
durante décadas, granjeado a admiração e fidelidade do público infantil e juvenil, como
Uma Aventura ou Triângulo Jota, entre outras, sejam consideradas, por alguns estudiosos,
paraliteratura, circunstância a que provavelmente não será alheio o facto de as autoras da
primeira colecção apontarem como principal objectivo o entretenimento.

8
António Sérgio, Sobre educação primária e infantil, Cadernos Culturais “Inquérito”, nº15, 2ª Ed. Lisboa,
Editorial Inquérito, s.d., p.30.
9
Natércia Rocha, Breve História da Literatura para crianças em Portugal, Lisboa, ICLP-ME, 1984, p. 47.
10
Américo A. Lindeza Diogo, Literatura Infantil. História, Teoria, Interpretações, Porto, Porto Editora,
1994, p.65.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

A literatura para a infância e juventude distingue-se da literatura para adultos pela


necessidade de uma maior simplicidade no tratamento dos temas e de uma acção
claramente identificável, pela proliferação de peripécias narrativas, por um maior destaque
concedido à intriga, assim como por uma redução dos passos analíticos, descritivos e
digressivos. O leitor prender-se-á tanto mais ao texto quanto mais a diegese fugir às
situações do quotidiano.11
Contudo, a criança e o adolescente também se interessam por assuntos sérios e
tantas vezes vêem, em identificação projectiva, reflectida na vida das personagens a sua
própria vida, pelo que os acontecimentos devem ser verosímeis. Quando se alude à
simplicidade no tratamento dos temas não se quer significar uma menor exigência, mas a
adequação ao estádio de desenvolvimento da criança. Os leitores mais jovens são cada vez
mais exigentes e têm cada vez mais capacidade para recusar aquilo de que não gostam ou
aderir ao que lhes desperta a atenção. Este apelo lançado por Natércia Rocha, há mais de
uma década, continua a fazer todo o sentido hoje, apesar das mudanças sentidas neste
domínio:

Ao aproximar-se o fim do século, há bastas razões para esperar da


literatura para crianças uma presença actuante, um movimento ascensional seguro
que arrede de uma vez com a possibilidade de atirar para as crianças “qualquer
coisa”, porque para as crianças “qualquer coisinha serve”. Se vamos continuar a
ler, se o livro vai ter força para permanecer, então que as crianças disponham de
livros de qualidade, locais e tempo para os lerem, oportunidades para escolher e
recusar. 12

Se dissemos que a literatura para a infância encontra raízes na literatura popular e


tivermos em conta que muitos temas chegaram até nós revivificados por uma longa
tradição oral, poderemos também estabelecer alguns pontos de contacto com a forma como
os relatos míticos da Antiguidade foram atravessando as gerações e com o surgimento da
própria literatura grega.

11
Cf. António Quadros, A aventura e o mundo juvenil e os seus aspectos educativos, Lisboa, Direcção Geral
da Educação Permanente, 1973, p.9.
12
Op. cit. p.124.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Elaine Fantham13 destaca três elementos comuns ao mito antigo e à moderna ficção
científica: o fabuloso, o miraculoso e o monstruoso14. Ousamos estabelecer, também, a
comparação entre o mito e a produção literária destinada às crianças. Nas obras que
analisaremos, como nas narrativas mitológicas, predominam, como notaremos, episódios
do domínio do maravilhoso e do fantástico, quer pelos seres que a acção traz à presença
dos leitores, quer pelo desfecho que, alguns deles, possuem. Na inserção do maravilhoso
estriba-se o desenvolvimento da imaginação e da fantasia. Os contos maravilhosos fazem
parte da tradição oral portuguesa, tendo Almeida Garrett e Alexandre Herculano dado um
contributo importante para a sua recolha.
O primeiro contacto entre a literatura destinada à infância e à juventude em
Portugal e a cultura clássica chegou através das traduções das fábulas de Esopo. Em 1603,
surgiu Vida e fábulas do insigne fabulador Esopo, uma versão em prosa destas fábulas,
traduzidas por Manuel Lyra. Em 1776, Portugal conhece a tradução de Telémaco, de
Fénelon. Mais tarde, A Ilíada de Homero Contada às Crianças e ao Povo, A Odisseia –
Aventuras de Ulisses, Herói e Navegador da Grécia Antiga15 e Virgílio – Eneida, de João
de Barros, assumiram um papel importante na divulgação das obras maiores das literaturas
grega e latina. Vários autores, como Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, dedicaram-se
à recolha de episódios da mitologia clássica. Em 2004 saía a primeira edição de Fábulas
de Esopo recontadas por António Mota16. Luísa Fortes da Cunha, professora de Educação
Física, explora a cultura clássica na colecção Teodora. Os protagonistas de Mistério das
Catacumbas Romanas, da colecção Os Primos, de Mafalda Moutinho, fazem uma
incursão nos vestígios da civilização romana. As referências esparsas à mitologia greco-
-romana são imensas e difíceis de enumerar. O interesse pela cultura clássica, como
podemos notar, não se perdeu no tempo, antes renasce continuamente.

13
Elaine Fantham, Ovid’s Metamorphoses, Oxford University Press, 2004, pp.105
14
A autora realça que os dragões de Cadmo e o guardião do velo de ouro, a que fazem alusão algumas obras
a seguir analisadas, eram monstra, já que a palavra mostrum significava, para os Romanos, um
acontecimento sobrenatural, que os deuses enviavam para mostrar (monstrare) ou avisar (monere) de algum
perigo.
15
O Programa Curricular de Língua Portuguesa do 7º ano de escolaridade contempla esta obra na lista das
passíveis de selecção para leitura orientada.
16
Na capa surge a indicação «Recomendado dos 8 aos 88», o que confirma a abrangência deste tipo de
textos, que, originariamente, não eram dedicados às crianças.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

CAPÍTULO II
Representação da Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a infância e
juventude

* Contos Gregos, de António Sérgio

Os contos que António Sérgio, na segunda década do século passado, reuniu em


Contos Gregos constituem a obra mais antiga do corpus reunido nesta análise. É
importante, pois, notar a distância temporal que afasta este dos outros títulos em estudo.
Abre o volume dedicado por este autor a três contos gregos a lenda de Filémon e
Báucis. O início da história com a expressão “Há muito, muito tempo vivia numa terra
chamada Grécia…” permite a remissão dos acontecimentos para um tempo que é
indeterminado, mas que se reconhece como um tempo diferente do do leitor, passado, e
que, por isso, aponta já para o desfecho dos acontecimentos.17 Note-se que este tempo pode
ser qualquer um, porque se trata e de um relato intemporal.18 Ao mesmo tempo, a
localização espacial, que é, nestas primeiras linhas, vaga, situa a acção num espaço com
características marcadamente distintas dos espaços actuais. A própria Grécia do tempo do
leitor (do século passado ou do actual) não é a mesma de “Há muito, muito tempo”.
A incursão nesta história é precedida de algumas informações relativas ao povo
grego, nomeadamente à sua indumentária e às crenças religiosas, assim como acontecerá
com a disposição adoptada para tomar as refeições antes de ser narrada a ceia oferecida por
Báucis aos deuses. Estas alusões permitem situar o leitor no universo helénico.
Os protagonistas deste conto consubstanciam uma das qualidades mais elevadas
para os gregos: são respeitadores das leis da xeniva, independentemente do aspecto do
hóspede ou da sua condição económica, o que destoa, de acordo com este relato, da atitude
da generalidade dos habitantes da Frígia19. Os estrangeiros que se apresentavam

17
Cf. Américo A. Lindeza Diogo, op. cit., p.56
18
Prova-o o facto de ser, ainda, apontada como uma das obras com direito a figurar em bibliotecas destinadas
à infância e à juventude. V. José António Gomes, Da Nascente à Voz. Contributos para uma pedagogia da
leitura, 2ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 1996, p.79
19
Na Odisseia, quando Ulisses chega ao palácio e é maltratado pela maioria dos pretendentes, um dos
mancebos chama a atenção para a possibilidade de tratar-se de um deus.
“Antínoo, fizeste mal em bater no infeliz viandante.
Insensato! E se ele é na verdade um dos deuses do céu?

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

pobremente vestidos ou com aspecto andrajoso eram alvo de troça dos rapazinhos
(«malcriados») e da perseguição dos próprios cães.20 Os únicos capazes de os receber
dignamente, os mais nobres de carácter, são justamente aqueles que, aparentemente, se lhes
igualam em condição social.

E apesar de supor que os dois hóspedes eram uns simples pobretões, tratou de tudo com
tanto cuidado como se soubesse que êles eram deuses. 21 (p.12)22

O reconhecimento da condição divina dos seus hóspedes acontece quando o leite,


que já tinha acabado, jorra da leiteira23. Este reconhecimento gera uma atitude piedosa por
parte dos anfitriões, como seria de esperar de um nobre cidadão.
- Filémon, Filémon, que é isto? São deuses com certeza, Filémon! Estão deuses em nossa
casa!

Pois os deuses, assemelhando-se a estranhos das terras


Estrangeiras, sob todas as formas, visitam as cidades
Para verem a insolência e a justiça dos homens.” (Od., XVII, 483-87)
A tradução utilizada é a elaborada por Frederico Lourenço (Homero, Odisseia, Tradução de Frederico
Lourenço, Lisboa, Livros Cotovia, 2003).
20
Ulisses, no canto XVII da Odisseia, a caminho de sua casa, disfarçado de mendigo, é injuriado e agredido
por Melanteu (vv.204-235) e, já no palácio, é repelido por Antínoo (vv.375-9).
21
Esta passagem traz à memória o canto XIV da Odisseia, quando o porqueiro Eumeu acolhe, sem saber, o
seu amo, apesar de este trajar como um mendigo.
Assim falando conduziu-o ao casebre o divino porqueiro
(…) e Ulisses alegrou-se
pelo modo como fora recebido, e falando-lhe assim disse:
“Que Zeus e os outros deuses imortais te dêem, estrangeiro,
tudo o que mais desejas, visto que com gentileza me acolheste.”

(…) Estrangeiro, não tenho o direito (mesmo que um pior que tu


aqui viesse!) de desconsiderar um estrangeiro: pois de Zeus
vêm todos os estrangeiros e mendigos; e a nossa oferta,
embora pequena, é dada de bom grado.
(Odisseia, XIV, 48-59)
E, alguns versos depois, avisa:

Agora tu, ó ancião que muito sofreste: uma divindade aqui


te trouxe; não tentes agradar-me nem enfeitiçar-me com mentiras.
Não será por isso que te demonstrarei estima e respeito;
Mas por medo de Zeus Hospitaleiro, e por ter pena de ti.”
(Odisseia, XIV, 386-89)
A própria Penélope, posteriormente, acolhe o mendigo no seu palácio e providencia para ele um acolhimento
digno.
22
A partir desta referência, todas as remissões para a bibliografia activa serão indicadas no corpo do trabalho.
23
Na versão de Ovídio é vinho (e não leite) que se multiplica.
Interea totiens haustum cratera repleri
Sponte sua per seque uident succrescere uina (vv.682-3)
[sublinhado nosso]

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

E ajoelhou, e Filémon ao pé dela, e puseram-se ambos a beijar-lhes as mãos, cheios de


espanto e também de mêdo, por se acharem na presença de dois deuses! (p.14)

As acções do casal são, como se esperaria, recompensadas pelos deuses,


nomeadamente pelo seu soberano, que lhes augura uma vida feliz:

E como mostraram ser boas pessoas, vou-lhes dar uma recompensa. Vivam sempre muito
amiguinhos; nunca na leiteira lhes falte bom leite, por muito que o bebam; nunca se acabe o
pãozinho escuro, por muito que o comam; e haja sempre alegria e sempre mel puro, das
abelhas que voam nesta casa feliz! E agora, digam que mais querem que façamos por vocês.
(p.15)

Filémon e Báucis são representantes, então, do desprendimento dos bens materiais,


da generosidade espontânea e pura, da humildade, da bondade, do respeito pelos deuses, e,
por isso, merecem um outro benefício, para além do vaticínio de uma vida sem aflições. De
resto, também o que desejam não é muito, apenas terminar as suas vidas como as tinham
gozado: juntos24. Desejo simples e a que os deuses facilmente poderiam atender. Esta
nobreza de carácter acompanha-os mesmo depois da “morte”25. A sua bondade perpetuou-
-se mesmo quando se transformaram em árvores e insistiam em dar sombra e abrigo aos
viajantes.
Na história do casal da Frígia as convenções sociais são subvertidas: é o pobre que,
pelas suas atitudes nobres, ganha direito a uma recompensa e a um lugar de destaque na
sociedade. 26 Aos ricos é destinada a ira dos deuses, numa clara indicação de que é a nobreza

24
Segundo Ovídio o casal deseja, também, tornar-se guardião do templo dos deuses.
“Dicite, iuste senex et femina coniuge iusto
digna, quid optetis.” Cum Baucide pauca locutus
iudicium superis aperit commune Philemon :
“Esse sacerdotes delubraque uestra tueri
poscimus; et quoniam concordes egimus annos,
auferat hora duos eadem, ne coniugis umquam
busta meae uideam neu sim tumulandus ab illa.”
(vv.707-713)
25
Filémon e Báucis não enfrentam propriamente a morte, mas uma metamorfose que os transforma em
outros seres vivos, no caso em duas árvores (tília e carvalho, de acordo com o texto ovidiano).
26
A versão de Ovídio, em Metamorfoses, faz referência a uma espécie de dilúvio (processo simbólico de
anulação do mal e imposição do bem, presente, também, na tradição cristã), provocado pelos deuses que
protagonizam a história, e ao qual sobrevivem, apenas, os elementos do casal, que se tornam, também,
guardiães do templo no qual é transformada a sua pobre casa. A Filémon e Báucis é dado observar o destino
que terão todos os outros homens, num lugar de destaque, o cume de uma montanha, afastado dos outros,

- 17 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

de carácter que deve prevalecer sobre a nobreza de título. É, ainda, transmitida a ideia de
que o bem é sempre recompensado e o mal castigado.

Costumavam os Gregos contar histórias do tempo em que os seus deuses se faziam


parecidos com os homens e as mulheres, e vinham cá abaixo visitar as pessoas, para ver
como elas se comportavam: se bem, se mal. Porque, como as pessoas não percebiam que
êsses homens e mulheres, que pareciam iguais a quaisquer outros, eram deuses, – não
deixavam de fazer maldades, quando não eram boas; e os deuses então castigavam-nas;
mas quando as viam proceder bem, os deuses davam-lhes prémio. (pp.8-9)

O elemento mágico é trazido ao encontro do leitor não apenas pelo gesto do deus
que torna abundante o leite que escasseava, ou pela transformação sofrida pelos
protagonistas, mas, desde logo, pelo facto de as divindades ocultarem a sua verdadeira
identidade, mostrando que, de facto, nem sempre a realidade é aquilo que parece.

O segundo conto seleccionado ocupa um maior número de páginas e possui um tema


distinto. A história dos Argonautas e da sua cruzada em busca do velo de ouro, inspirada no
livro VII de Metamorfoses27, permite a recriação de uma série de aventuras e a identificação
de Jasão com um herói, que tem que cumprir um desafio supostamente intransponível,
enfrentando seres grotescos, medonhos e, aparentemente, invencíveis, o que faz, com a
ajuda de alguns “poderes especiais” e da protecção divina.
Antes da narração da viagem dos Argonautas em busca do velo de ouro é explicada
a origem deste objecto de cobiça, através do recuo à história de Frixo e Hele28. O início
desta narrativa traz à memória o começo de Gata Borralheira ou de Branca de Neve.29

como distantes foram as suas atitudes. A elevação a que sobem simbolizará a sua aproximação ao céu e, por
isso, ao divino. A montanha conota resistência e perenidade. Cf. Ov., Met., 616 -715
27
Dado o número elevado de obras que abordam a viagem dos Argonautas em busca do velo de ouro,
indicaremos, apenas a título de exemplo, algumas que corroboram as diferentes versões a que aludiremos.
28
Cf. Apolodoro, Bibl., I, 9,1 e ss.
29
Entre 1691 e 1697 Charles Perrault escreveu Contes de Ma Mère l’Oye, que integrava, entre outros por nós
conhecidos, O Gato da Botas, A Bela Adormecida no Bosque, O Pequeno Polegar e A Gata Borralheira. (v.
Garcia Barreto, Literatura para Crianças e Jovens em Portugal, Porto, Campo das Letras, 1998, pp. 19-20).
Em 1875, publica-se em Portugal 10 contos de Perrault e, em 1898, é também feita a tradução de obras do
mesmo autor. Do mesmo modo, em 1806, os Irmãos Grimm empreenderam a recolha de contos tradicionais.
Entre os por eles seleccionados encontramos Branca de Neve e Gata Borralheira (v. Natércia Rocha, Breve
História da Literatura para crianças em Portugal, Lisboa, ICLP-ME, 1984, pp. 131- 135).

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Havia na Grécia antiga um rei e uma rainha que tinham um filho, que se chamava Fricso, e
uma filha, que se chamava Hele. (…) Quando a rainha morreu, o pai casou com outra
mulher, que tratava muito mal as crianças. Um dia a má da mulher do rei quis matar o
pequeno Fricso (…) (p.21)

Frixo é protegido por Hermes, como a Gata Borralheira pela fada ou como Branca
de Neve é salva, em primeiro lugar, pelo caçador, que não obedece às ordens da madrasta,
depois pelos anões e, finalmente, pelo beijo do príncipe. Note-se, ainda, a presença de um
outro símbolo que povoa os contos tradicionais – o dragão, guardião do velo de ouro. Este
surge, aqui como em outros contos, como defensor de um tesouro, como um guardião que
tem que ser eliminado para que se possa aceder a essa riqueza. Há, pois, a concentração de
alguns motivos de cunho maravilhoso, típicos dos contos tradicionais, o que aproxima esta
narrativa dos textos convencionalmente destinados a um público mais jovem.
Mas estas referências são apenas um pretexto para a narração das aventuras dos
Argonautas e a justificação para a viagem que Jasão empreenderá sob as ordens de seu tio
Pélias. Também Jasão é protegido por uma divindade, Palas Atena30, que lhe oferece uma
árvore31, que o guiará na sua jornada, o que insere mais um aspecto do maravilhoso no
conto.
Do grupo dos Argonautas apenas são nomeados Hércules e os irmãos Zetes e
Calais32, cuja invulgar fisionomia será de extrema importância na resolução da
micronarrativa que encabeça as aventuras dos marinheiros.
O seu primeiro feito é a libertação de Fineu do martírio que Zeus lhe impusera, o
que conseguem, afugentando as Harpias, que o impediam de alimentar-se, ora roubando,

30
Palas Atena é também a protectora de Ulisses, na Odisseia.
31
Um pedaço de um carvalho sagrado de Dodona, que conferia à nau o poder de profetizar. Os Gregos
acreditavam que Zeus vaticinava através da voz dos carvalhos, na floresta de Dodona, no Épiro. Durante a
sua conversa com Eumeu, no canto XIV da Odisseia, Ulisses, sem revelar a sua identidade, faz alusão a este
santuário.
Quanto a Ulisses, disse que a Dodona se dirigira, para lá
ouvir do alto carvalho do deus a vontade de Zeus
sobre como poderia regressar à terra fértil de Ítaca
depois de tão longa ausência, às claras ou disfarçado.
(Odisseia, XIV, 327-330)
32
Provavelmente pela diversidade de nomes que configuram a lista dos Argonautas. Hércules é mencionado
nos dois catálogos mais considerados, o de Apolónio de Rodes (Apol. Rod., Arg., I, 23 e ss.) e o de
Apolodoro (Apolod. Bibl., I, 9, 16 e ss.) Os dois irmãos, porque justificam a perseguição feita às Harpias e o
desfecho deste episódio.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

ora conspurcando a comida33. Este suplício, assim como a cegueira a que estava condenado,
surgem como castigo aplicado por Zeus, porque «êste rei tinha feito uma maldade» (p.25).
A maldade não é especificada e a punição é mencionada de acordo com a lógica crime /
castigo34. Os heróis têm, pois, como primeiro adversário seres asquerosos e horrendos e
surgem a Fineu como a única possibilidade de salvação.
À lógica crime / castigo segue-se a do bem (boa acção) / recompensa. A dos
Argonautas é o conselho que Fineu lhes dá para ultrapassarem as Rochas Simplégadas, um
novo obstáculo, até ao momento intransponível, que os heróis terão de vencer.35
O sucesso desta empresa torna-se possível, novamente, pela intervenção da divina
Atena, que protegendo a pomba que atravessa as Simplégadas, poupa, também, os
Argonautas. Contribui-se, assim, para a valorização da astúcia, mas também da capacidade
de escutar e seguir bons conselhos, através deste episódio que brilha pelo dinamismo que
confere à acção.

(…) Os Argonautas, então, puseram-se a remar com tôda a fôrça, puxando pelos remos
quanto podiam. Jasão, em pé à pôpa do Argo, gritava-lhes para os animar; os remos
vergavam; o mar cobria-se de espuma; o navio tremia todo.
E as rochas cada vez mais perto, cada vez mais perto, cada vez mais perto… «Rema, rema,
rema!» – gritava Jasão aos companheiros. Emfim quando as rochas bateram uma na outra,
já o Argo estava do outro lado; só puderam arrancar-lhe o leme. Os Argonautas,
contentíssimos, gritavam à doida na amplidão do mar. A pombinha voltou para bordo, já
com novas penas na sua cauda. (pp.29-30)

33
Na versão de António Sérgio, como na de Apolodoro, as Harpias afogam-se. Na de Apolónio de Rodes, no
entanto, estes seres fogem para as ilhas Estrofades.
34
O autor não terá aprofundado a maldade cometida por Fineu devido às diferentes versões da lenda que a
literatura grega nos legou. Alguns autores (u.g. Apolodoro, Bibl., II, 1,4 e Ovídio, Met. V, 1-249) identificam
este Fineu como o irmão de Cefeu e tio de Andrómeda, que teria ficado cego em resultado de um confronto
com Perseu, no qual disputavam a mão da sua sobrinha. Tratar-se-á, contudo, de um rei da Trácia, cuja lenda
não encontrou, também, consenso. Uma das versões relaciona-o com Frixo, já mencionado neste conto, a
quem teria indicado o caminho para a Cólquida ou a cujos descendentes revelara o caminho de regresso à
Grécia, o que suscitara a ira dos deuses. A versão escolhida por António Sérgio é a que resulta da amálgama
das várias versões e aponta a cegueira e a perseguição das Harpias como resultado de um castigo infligido
por Zeus, por Fineu ter acusado e punido injustamente os seus filhos pela suposta violação da sua segunda
mulher. (Apol., Bibl., 1,9,21 e ss.)
35
Se é visível que o autor não cai na tentação de tornar o seu relato simplista, devido à faixa etária a que se
destina, é notória a preocupação em dotar os seus leitores de elementos indispensáveis para a compreensão
do texto (como a explicação da designação dos Argonautas) e da evolução da acção, em eliminar aspectos
acessórios dos mitos envolvidos e em aproximar a sua descrição do universo de conhecimentos que o
destinatário do texto possuirá. Assim, a altura das Rochas Simplégadas torna-se mais clara quando se diz que
«eram mais altas que três vezes a tôrre de uma igreja» (p.27) e a ficção mais próxima da realidade quando
compara o descanso de Jasão ao dos «trabalhadores do campo quando vão fazer a sesta» (p.36).

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Pelo desempenho da pomba neste episódio é justificado o surgimento da constelação


com este nome.
Chegados à Cólquida, há ainda obstáculos a transpor para conseguir alcançar o velo
de ouro. O rei Eetes, embora soubesse que devia entregá-lo a quem viesse da Grécia, não o
faz sem algumas exigências. Por isso, a persistência, a astúcia e o vigor do herói são, mais
uma vez, postos à prova. Jasão deve lavrar um campo com a ajuda de touros de bronze,
atrelados ao arado e, em seguida, semeá-lo com dentes de dragão. De facto, a função dos
touros não é ajudar o herói, mas impedi-lo de sair vitorioso desta empresa. Estes animais
são seres que pertencem ao mundo do maravilhoso, um misto de touros e dragões: lançam
chamas pela boca; não ocupam estábulos, mas uma espécie de jaula feita de pedras e barras
de ferro; eles próprios são de bronze36 e destacam-se pela sua ferocidade. Também a
sementeira que fica a seu cargo tem um carácter especial: o sobrinho de Pélias lança à terra
sementes que são dentes de dragão e das quais surgirão guerreiros de ferro, já armados com
lanças e espadas e prontos a liquidar o seu semeador37.
Incumbido destas tarefas, o herói só conseguirá executá-las com a ajuda de Medeia,
filha do rei Eetes, que vai contra os desígnios do pai38 e prepara um unguento, qual poção
mágica dos contos de fada, que confere mais força a Jasão e o torna a si e às suas armas
invulneráveis às investidas dos touros. É a mesma Medeia que aconselha Jasão a ir, ele
próprio, buscar o velo de ouro, denunciando as intenções do pai e constituindo-se,
novamente, cúmplice do herói. É também ela que engendra o plano e os meios para o chefe
dos Argonautas vencer o guardião do velo, o dragão. E esses meios são, uma vez mais, do
domínio do maravilhoso: o dragão é adormecido por bolos de mel embebidos numa poção
mágica. Medeia é apresentada como detentora de poderes mágicos, quase como uma
feiticeira, mas que utiliza os seus poderes em favor do herói, o que permite ao leitor
formular uma opinião positiva a seu respeito. O autor não introduziu no seu reconto a morte
de Absirto, irmão de Medeia, sobre a qual a tradição literária não é unânime. Segundo

36
Possuem cascos de bronze, de acordo com a versão de Ovídio.
37
Cf. a lenda de Cadmo que Ovídio também desenvolve em Metamorfoses (3.104-30).
38
Na opinião de Elaine Fantham, a ajuda dada por Medeia a Jasão é também uma traição ao seu país, uma
vez que o velo de ouro era como que um talismã que assegurava a prosperidade do reino. (Elaine Fantham,
Ovid’s Metamorphoses, Oxford University Press, 2004, pp. 74-5). Ovídio revela uma Medeia dividida entre o
amor a Jasão e o seu dever filial.
Sed trahit inuitam noua uis, aliudque cupido,
mens aliud suadet. (vv.19-20).
Num extenso solilóquio (vv.12-71) a filha de Eetes apresenta as suas dúvidas e, de alguma forma, justifica a
sua escolha. As ordens do pai parecem-lhe demasiado duras (vv.14-5), o pai cruel e a sua terra bárbara (v.53).

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

algumas versões (u.g. a de Apolodoro - Bibl., I, 9, 24 e ss.), a filha de Eetes terá matado o
próprio irmão e, de seguida, espalhado os seus membros pelo mar, para garantir que o rei se
(pre)ocuparia com a sua recolha e se atrasaria na perseguição aos Argonautas. Em outra
versão, Medeia é “apenas” cúmplice da morte de Absirto, que é eliminado à traição por
Jasão. Esta última interpretação, entre outras aventuras, obriga os marinheiros a enfrentarem
a ira de Zeus, a serem purificados por Circe, a enfrentarem Cila e Caríbdis…, o que tornaria
o texto demasiado longo, tendo em conta os leitores a que se destina. A opção por esta
omissão poderá, segundo cremos, pretender evitar o surgimento de Jasão e Medeia, até
agora praticantes de actos justos e justificados, como alguém capaz de cometer uma
atrocidade, um acto injusto, gratuito e injustificável aos olhos do leitor.39 Por outro lado,
pode evidenciar, também, o desejo de evitar a parte mais obscura ou menos consensual da
lenda e, eventualmente, de mais difícil compreensão para o destinatário.40
O autor optou, pois, pela versão que casa Medeia com Jasão e os faz regressar à
Grécia ludibriando os marinheiros do rei Eetes, que os esperavam junto às Rochas
Simplégadas. Pélias morre e é o pai do herói que o substitui no trono (que, de resto, já antes
lhe pertencia legitimamente), porque Medeia o cura sempre que adoece.41

O último conto selecciona um tema frequente, ainda hoje, na literatura para crianças:
o da fidelidade dispensada por um animal a seu dono. O autor inspirou-se nos versos 291 a
327 do canto XVII da Odisseia. Ulisses, ao chegar perto do seu palácio, avista Argos, o cão
que deixara no auge das suas capacidades ao partir para a guerra de Tróia. Este, já velho e
sem a compleição física de outrora, desprezado por todos, parece aguardar apenas o
regresso do dono para sucumbir, o que, de facto, acontece. Em poucas palavras, em apenas
duas páginas, é resumida a história do homem dos mil artifícios e reduzida ao essencial: é
mencionada a partida de Ulisses para a guerra, a necessidade de enfrentar um sem número
de peripécias durante os vinte anos de ausência e o encontro com o cão. Este é o

39
O herói é mencionado como “o bom Jasão” (p.37), enquanto o pai de Medeia é o “mau rei Eetes” (p.34).
40
Vimos já que, em outros momentos, o autor preferiu não desenvolver determinados aspectos, ora porque
não eram essenciais para o desenrolar da acção central, ora porque os mitógrafos apresentavam versões
contraditórias e questionáveis.
41
O livro VII de Metamorfoses conta a intervenção de Medeia no rejuvenescimento de Éson (7. 159-296) e
na morte de Pélias (7.297-349) levando as filhas do rei a manchar as mãos com o sangue do próprio pai. Uma
vez mais a parte do mito que revela Medeia utilizando os seus poderes de forma negativa é omitida neste
reconto.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

protagonista do conto e não Ulisses, como acontece nas obras que aludem ao herói42, tanto
assim que não tomamos conhecimento da chegada ao palácio e do reencontro com a mulher
e o filho. A atenção centra-se na paciente e heróica espera do animal pelo regresso do dono.
A Argos é atribuída uma reacção típica de um ser humano, partilhada com aqueles que
ansiavam o regresso de Ulisses (Penélope, Telémaco, Euricleia…), mas bem diferente da
observada por exemplo em Melanteu, servo da casa real.

A edição de Contos Gregos que utilizámos contém as ilustrações originais, da


responsabilidade de Raquel Gameiro. Estas servem de apoio à interpretação do texto, mas
são, ainda, utilizando uma expressão de Natércia Rocha43, ilustrações pleonásticas, já que
fazem a representação do que é dito no texto, sendo mesmo algumas frases repetidas como
legendas44. Além destas ilustrações, ladeiam o texto imagens que revelam aspectos da
civilização grega: um Grego envergando manto, túnica e sandálias, um templo, uma lira,
uma coluna de um templo e um capacete de guerreiro. A narração é regularmente
interrompida por subtítulos que quebram a monotonia de um relato longo e criam
expectativa relativamente ao que se segue.
Apesar de não se apontar directamente para uma moralidade para cada conto, cada
um deles proporcionará uma reflexão e uma visão críticas do mundo, pelo menos para o
leitor adulto. Este procurará sempre retirar uma moralidade ou um ensinamento de uma
história para crianças, que porventura passarão despercebidos aos mais novos e que, por
vezes, poderão até nem ter sido intencionalmente veiculados pelo autor.
Não obstante as três histórias escolhidas abordarem temas distintos, há entre elas um
elo comum: o amor. O amor partilhado pelo casal frígio, que une os seus elementos após a
metamorfose; o amor que leva Medeia a trair o seu pai e o seu país e a seguir Jasão e o
amor de Argos pelo seu dono, que lhe permite resistir até ao momento do reencontro.
As escolhas de António Sérgio, pelas suas características, adaptam-se perfeitamente
ao público a que se destinam. O enredo configura uma história ao estilo de um romance de
aventuras, onde imperam a acção e o risco e uma história cujo protagonista é um animal,
seres por quem as crianças têm uma clara afeição e um vívido interesse. Saliente-se,

42
Obras como A Odisseia – Aventuras de Ulisses, Herói e Navegador da Grécia Antiga, de João de Barros, e
Ulisses, de Maria Alberta Menéres, centram-se nas façanhas do herói grego.
43
Op. cit., pp.17-8
44
Numa edição posterior, de 1978, as ilustrações de Luís Filipe de Abreu mantêm essa funcionalidade
pleonástica.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

também, e como fomos notando, a presença de estilemas típicos dos contos tradicionais e a
interferência do maravilhoso, que exerce um enorme poder de atracção sobre o público
jovem. António Sérgio conseguiu, pois, fazer cumprir os requisitos que considerou
essenciais numa história.

Os requisitos primaciais de uma história são a acção rápida e ligada ,um assunto
de imagens familiares com certo tom de maravilhoso, e arepetição ou estribilho de algumas
frases características.45

45
Op. cit., p.30

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

* Ulisses, de Maria Alberta Menéres

Ulisses, de Maria Alberta Menéres, é uma obra dedicada a um público mais novo46
e consagrada pelos programas curriculares do 6º ano de escolaridade como título
projectado para uma leitura orientada. Porque o público a que se destina é distinto do do
seu hipotexto, a linguagem utilizada, os episódios seleccionados, a caracterização das
personagens, a própria organização da narrativa sofreram alterações consentâneas com a
idade do leitor.
Em Ulisses, os acontecimentos são narrados por ordem cronológica, enquanto na
Odisseia as aventuras do herói após a chegada à terra dos Feaces e até ao seu regresso a
Ítaca são relatadas analepticamente. No primeiro caso, esta construção linear, associada à
omissão de alguns detalhes e à supressão de repetições, parece ser mais adequada ao
público leitor; no segundo, ela revela uma característica própria da poesia oral47. Ainda na
primeira obra citada, todos os episódios são marcados pela rapidez da acção.
Em Ulisses, a “Telemaquia” é suprimida. Maria Alberta Menéres optou por não lhe
fazer alusão, talvez por a autenticidade do proémio e da parte da Odisseia respeitante às
aventuras de Telémaco ter suscitado algumas dúvidas. As viagens do filho do homem dos
«mil artifícios» são reduzidas a poucas frases48. As de Ulisses, narradas na Odisseia a
partir do canto V, são a matéria de destaque da obra em análise. A própria vingança do

46
José António Gomes, dando algumas sugestões para a criação de uma biblioteca infanto-juvenil, insere-a no
grupo de obras destinadas a crianças entre os 10 e os 12 anos. (v. José António Gomes, Da Nascente à Voz.
Contributos para uma pedagogia da leitura, 2ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 1996).
47
Notemos as palavras de Frederico Lourenço na introdução à sua tradução da obra. (op. cit., p.12)
(…) a construção formal da Odisseia não é uma característica que lhe
adveio por acaso: houve necessariamente alguém que se encarregou de organizar o
material narrativo de modo a que considerações de beleza poética se sobrepusessem à mera
linearidade da diegese. Em segundo lugar, o material poético em si, com as incontáveis
repetições que encerra, aponta para as origens tradicionais: para uma época em que a
composição poética era pensada em termos estritamente orais, ou seja, sem que houvesse
recurso à escrita.
48

(…) sabe que mais uma vez Telémaco partira à procura do pai, pelos mares fora,
devendo estar prestes a chegar(…)
Chega entretanto Telémaco, da sua viagem, e regressa desanimado: não foi ainda
desta vez que encontrou seu pai! (p.62)

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

herói, que vai sendo preparada e justificada ao longo do relato e à qual, de resto, o poema
clássico dedica dez cantos é, aqui, circunscrita a poucas páginas. E a violência que serve de
cenário à punição a que Ulisses sujeita os pretendentes é legitimada pelos valores que o
herói representa e defende49.
Em Ulisses, não é sequer mencionada a estada do filho de Laertes na ilha de
Calipso, de onde saiu já no decurso do oitavo ano de permanência, nem desenvolvido o
encontro com Nausícaa, que tanto interesse tem suscitado e tanto tem inspirado a poesia
destinada a adultos.50 Verifica-se, pois, que as passagens onde, na Odisseia, o eros se
manifesta são suprimidas. Assim acontece com as cenas de pendor erótico entre Circe e
Ulisses e assim acontecerá com o episódio do tálamo nupcial, que na obra homérica tem
um papel fulcral para a cena do reconhecimento de Ulisses por parte de Penélope. A
omissão das cenas em que o rei de Ítaca se uniu a outra mulher (sempre sobrenatural) terá
acontecido por poderem ser entendidas, por um público mais jovem, como uma traição a
Penélope. Seria mais difícil para o leitor desta faixa etária proceder à justa interpretação
destes encontros, que acontecem contra a vontade de Ulisses, como uma forma de
valorização do herói que tem a possibilidade de permanecer com qualquer uma destas
mulheres, uma das quais lhe oferece a imortalidade, e ainda assim permanece fiel ao seu
ideal.
A introdução à obra cumpre a função de cativar e prender a atenção do leitor ao
caracterizar as aventuras de Ulisses como «fascinantes». Alude-se, ainda, à faculdade que
as viagens do rei de Ítaca tiveram, ao longo de todos os tempos, de proporcionar jornadas
muito maiores e o facto de elas estarem a ser narradas a crianças é assumido como uma
nova façanha.
O início remete para as dúvidas relativas à existência de Ulisses e de Homero. A
incerteza quanto à autoria do texto épico ou à época da escrita não é aflorada, sendo esta
última questão solucionada com a expressão «Há muitos milhares de anos».51

49
«Ulisses estava soberbo defendendo o seu povo, a sua casa, a sua pátria, a vida, a paz.» (p.67) [sublinhado
nosso].
50
Alguns autores inspirados por este encontro foram Eugénio de Andrade (em «Palmeira Jovem», de
Obscuro Domínio, e «Passeio Alegre», de Rente ao Dizer); Vasco Graça Moura (em «Para o retrato de
Nausicaa»); José Miguel Silva (em «Sem Título»); David Mourão-Ferreira (em «Ulisses e Nausícaa», de
Obra Poética), para não falar em outros que mencionam o encontro, sem, no entanto, se deterem muito sobre
ele.
51
Frederico Lourenço, referindo-se à Odisseia, defende que estas questões de índole filológica não perturbam
a leitura da obra. (v. Homero, op. cit., p.13)

- 26 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Ulisses é apresentado como um rei pouco severo, com gostos comuns, capaz de
amansar cavalos, admirador da caça, amado por todos, acessível ao seu povo, apaixonado
por Ítaca, desejoso de aventuras, mas avesso a guerras e ansioso pelo regresso52. A
caracterização feita neste primeiro momento torna compreensível e esperado o desfecho
que será, mais tarde, dado a conhecer, justificando as atitudes tomadas pelo protagonista. A
severidade dos seus gestos para com os pretendentes é legitimada pelas injúrias por eles
cometidas, a paixão por Ítaca e pela família justificam o desejo impaciente do regresso e o
desalento face a tantas e tão grandes aventuras. Após esta apresentação, são anunciadas as
razões da partida para a guerra, que se esclarece ser obrigação de um bom grego.
O relato das primeiras páginas faz jus ao epíteto do herói, «o dos mil artifícios», já
que narra a loucura fingida para evitar a ida para a guerra53 e a autoria da ideia de construir
o cavalo de madeira para pôr fim ao cerco e à contenda.
De volta a casa com quarenta marinheiros, Ulisses encontra o primeiro obstáculo
que o afastará do tão almejado regresso: a corrente marítima que os arrasta para onde não
desejam ir, as ilhas da Ciclópia. Interpelando o leitor de forma muito directa, o narrador
coloca uma questão que ecoa, certamente, a dúvida de qualquer leitor mais jovem: «E os
ciclopes, existem?» (p.22). Estes são descritos como fruto da imaginação e, tal como as
correntes, os deuses e as sereias, apontados como forma de explicar o desconhecido. O

(…) a Odisseia (…) pode ser lida sem que estes problemas de índole filológica nos
causem a menor preocupação. E se o poema do retorno de Ulisses continua a
proporcionar o maior deleite literário a quem não faça a mínima ideia das
questiúnculas que, no séc. XIX, opuseram “analistas” a “unitários”, a razão só
poderá ser procurada na força e no encanto do texto em si: o facto de estarmos
perante uma história de interesse imorredouro, contada com eficácia arrasadora”.

Assim considerou Maria Alberta Menéres.


52
A ideia transmitida em Ulisses é, também, a que subjaz ao poema Rei de Ítaca, de Sophia:

A civilização em que estamos é tão errada que


Nela o pensamento se desligou da mão

Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco


E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado.
V. Sophia de Mello Breyner Andresen, O nome das coisas, Obra Poética III, Lisboa, Editorial Caminho,
1991, p.209.
53
A relutância de Ulisses em aceitar o pedido para embarcar para a guerra é mencionada na Odisseia,
quando, no canto XXIV, a alma de Agamémnon, no Hades, diz à de Anfimedonte:

(…) Levou-nos um mês a atravessar o vasto mar, depois que


com dificuldade convencemos Ulisses, saqueador de cidades”.
(XXIV, vv. 118 e 119) [sublinhado nosso]

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

ciclope é comparado à figura de Adamastor e ambos identificados como criações de


Homero e Camões, respectivamente.
Ulisses, herói destemido e sagaz, reconhece, de imediato, as ilhas da Ciclópia e
explica aos seus companheiros o que poderão encontrar nesse arquipélago54.
Experimentado comandante de homens, apressa-se a transmitir-lhes calma e a evitar o
pânico que as palavras «devoradores de homens» neles provocam. O relato do episódio de
Polifemo revela, além disso, que Ulisses é, antes de mais, um homem, que teme o perigo,
que chora a perda dos seus companheiros, que vive momentos de angústia, mas um homem
que consegue ver além do desespero e superá-lo, quando consegue que a razão se
sobreponha à emoção. Esta apresentação do protagonista permite que a heroicidade
apareça ao leitor como algo tangível, que pode estar ao alcance do comum mortal. A
conversa entre o ciclope e o rei de Ítaca é apresentada graficamente como se de um texto
dramático se tratasse, o que confere maior dinamismo ao relato. Há, ainda, a notar, no
mesmo passo, o realce dado à ironia na escolha e na utilização do nome com que Ulisses
“se dá a conhecer” a Polifemo, «Ninguém». O herói sai vitorioso desta empresa, não sendo
mencionada a vingança de Posídon, que, no poema grego, contribui para adiar, ainda mais,
o seu regresso.
São notórias algumas diferenças relativamente ao mesmo episódio da Odisseia, já
que, na epopeia clássica, os marinheiros, e também Ulisses, desconhecem o local onde se
encontram e a identidade do seu “anfitrião”; estão já dentro da gruta quando o ciclope
regressa com a lenha (em Ulisses eles são “encurralados” e têm que entrar na gruta
misturados com o rebanho) e, no final, o herói identifica-se, o que constitui um erro,
porque cria um destinatário para a fúria de Polifemo e para o castigo infligido por
Posídon. 55 Estas disparidades colocam na frente do leitor um Ulisses ainda mais sagaz e
engenhoso, que não deixa escapar nenhum pormenor.

54
A explicação para o surgimento de Polifemo naquela ilha, que Ulisses julgava deserta, funciona como um
dos vários apartes que vão sendo introduzidos, constituindo um parêntesis na acção principal e fornecendo
algumas informações adicionais. Logo após, volta-se ao assunto inicial: «Mas voltando à história (…)»
55
“Ouve-me, Posídon de cabelos azuis, Sacudidor da Terra!
Se na verdade sou teu filho, e se declaras ser meu pai,
concede-me que nunca chegue a sua casa Ulisses,
saqueador de cidades, filho de Laertes, que em Ítaca habita.
Mas se for seu destino rever a família e regressar
ao bem construído palácio e à terra pátria, que chegue tarde
e em apuros, tendo perdido todos os companheiros,
na nau de outrem, e que em casa encontre muitas desgraças.”
(Odisseia, IX, 528-535)

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

O dinamismo da narração é evidenciado na passagem desta para a próxima


aventura.

- Uff! – disse Ulisses. – Que cansado estou, de tantas emoções!


Vou dormir um pouco.
Deitou-se e adormeceu. Quando acordou, uma ilha se desenhava
no horizonte e resolveram ir até lá. (p.36)

O local onde aportam é a Eólia, onde recebem de Éolo o saco dos ventos. A
abertura do saco que protegia os marinheiros de todas as tempestades tem motivações
diferentes nas duas obras. Na Odisseia, foi a cobiça que moveu os companheiros de
Ulisses. Na obra de Maria Alberta Menéres, foi a curiosidade que deu origem à
desobediência dos marinheiros. Esta divergência não deixa de ser interessante se
considerarmos que a ganância é mais comum nos adultos e a curiosidade uma
característica própria dos mais jovens. Em Ulisses, após a fuga dos ventos, «O rei Eolo,
furioso com a desobediência deles, não os quis receber, nem sequer ver.» (p.38), na
Odisseia, o rei recebe-os, mas expulsa-os, por considerar que são detestados pelos deuses.
Na obra de Maria Alberta Menéres não é mencionada a passagem dos marinheiros
pela ilha dos Lestrígones, gigantes que tomaram os companheiros de Ulisses para sua
refeição. Este episódio da Odisseia é relativamente curto e não constitui uma das
peripécias mais marcantes da viagem do rei de Ítaca, o que terá levado a autora a suprimi-
lo. Por este motivo, após a Eólia, os marinheiros fundeiam na ilha de Circe.
A passagem pelos domínios da feiticeira traz à narrativa a presença do elemento
maravilhoso. Em Ulisses, o herói toma conhecimento da transformação sofrida pelos
companheiros através do relato de Euríloco56. Quando Ulisses, numa atitude altruísta,
decide correr em auxílio dos marinheiros, é Minerva (deusa pertencente ao panteão
romano) que lhe dá a erva da vida. Circe, ao ver que o rei de Ítaca resiste ao seu feitiço,
reconhece que não sendo ele um deus só poderia ser Ulisses, o que faz dele um ser humano
ímpar, reconhecível pelas suas características.

«Quem és tu, que assim resistes aos meus feitiços? És um deus? És um homem?
Um deus não és, e se és homem, só podes ser Ulisses, o das mil astúcias…» (p.44)

56
A forma como a transformação é operada traz à memória os contos tradicionais, sobretudo pelo uso da
varinha, a fazer lembrar a varinha mágica das fadas.
- Pois foi isso mesmo – respondeu Euríloco. – E a deusa tocou neles com
uma varinha e eles transformaram-se em … porcos!!! (p.41)

- 29 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

A feiticeira tenta enganar o filho de Laertes, insistindo que os porcos não são os
seus companheiros e este, irritado com a sua incapacidade para reconhecer os seus amigos,
pontapeia um. Os marinheiros só recuperam a sua aparência quando é já altura de partir, o
que, de algum modo, é incoerente, já que o companheiro atingido pelo pontapé ainda
coxeia, apesar de se ter passado algum tempo. Circe aconselha-os a visitarem a Ilha dos
Infernos e a protegerem-se das sereias. Na Odisseia, os marinheiros são divididos em dois
grupos, um dos quais chefiado por Ulisses e outro, o que alcança o palácio de Circe, por
Euríloco. Este, regressando horrorizado, conta a Ulisses o desaparecimento dos
companheiros, mas é Hermes que revela a transformação e lhe dá a erva que impedirá o
encantamento de Circe. A “deusa de belas tranças” anui em quebrar o feitiço e presta o
juramento requerido pelo herói, para que este ceda e partilhe a sua cama. Os porcos são
transformados de imediato e permanecem com aspecto humano durante o ano que dura a
sua estada naquela ilha. Terminado este período, e devido à insatisfação dos marinheiros e
ao pedido de Ulisses, Circe decide ajudá-los e aconselha o rei de Ítaca a descer ao Hades
para consultar Tirésias.
Na Ilha dos Infernos, de acordo com a narração de Ulisses, a primeira alma que o
herói encontra é a de sua mãe e é ela que lhe dá a conhecer a situação vivida em Ítaca.
Tirésias, de seguida, apenas reitera as palavras de Anticleia. Na Odisseia, Ulisses vê a sua
progenitora, mas não lhe dirige a palavra antes de falar com o adivinho. É o vate que o põe
a par dos acontecimentos e lhe dá a conhecer o futuro. Anticleia, posteriormente, e a
pedido de seu filho, fornece alguns detalhes. Ainda nesta obra, esta personagem sabe que o
filho está vivo, ao passo que, em Ulisses, questiona se ele está vivo ou morto. Homero
descreve, ainda, o encontro com as diversas mulheres, Agamémnon, Aquiles, Ájax, Minos,
Oríon, os supliciados Títio, Tântalo e Sísifo, e, por fim, com Héracles. O texto de Maria
Alberta Menéres narra a permanência no Hades em seis páginas, demorando-se apenas
com a história de Tântalo e Sísifo. Em ambos os casos fica claro que a aflição que
suportam é o resultado das acções praticadas em vida.
Contrariamente ao que é relatado em Ulisses, depois de subir do Hades, o filho de
Laertes regressa à ilha de Circe, onde a deusa o adverte dos perigos que vai encontrar: as

- 30 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Rochas Simplégadas57, Cila e Caríbdis. O objectivo deste regresso é oferecer a Elpenor,


que falecera imediatamente antes da descida ao Hades, as devidas cerimónias fúnebres.
Porque esta morte não foi mencionada em Ulisses, não houve, pois, necessidade de voltar à
ilha. De resto, os conselhos de Circe já tinham sido dados antes da catábase.
A aventura que se segue é o encontro com as sereias e com o seu canto sedutor e
falacioso. Estas são seres marinhos e não aves, tal como eram identificadas nas
Antiguidade. Para atrair inequivocamente Ulisses, as sereias imitam a voz de Penélope,
produzindo um cântico envolvente e devastador, que só não destrói o herói, porque o
conselho de Circe tinha sido acatado.

De súbito, um suavíssimo canto se elevou nos ares vindo do brilho das


águas do mar, e logo outro e outro, e muitas vozes maravilhosas chorando e cantando o
envolveram. (…) E o cântico chorava suavíssimo, violentíssimo, vindo de dentro das ondas,
de dentro das cores, de dentro do vento. (pp.56-7)

A identificação com Penélope estabelece uma inovação relativamente ao texto original.


A viagem prossegue, então, «sempre acidentada», mas é dedicada pouca atenção
aos episódios que se seguiram, já que a narração detalhada de cada um deles faria aumentar
a extensão do texto e, além disso, é o regresso a casa o que mais suscitará o interesse do
leitor. Por isso mesmo, são percorridos rapidamente os episódios das Rochas Simplégadas,
do naufrágio que deixa Ulisses só, da chegada à terra dos Feaces e da partida para a sua
pátria. Ficam por narrar os acontecimentos relacionados com Cila e Caríbdis, com os bois
de Hiperíon, com o desejo de vingança de Sol, com a chegada a Ogígia, ilha de Calipso, e
com a vingança de Posídon contra os Feaces.
A chegada a Ítaca, a transformação do herói em mendigo, operada por Minerva, o
reconhecimento de Ulisses por Telémaco e o acordo celebrado entre ambos para derrotar
os pretendentes são marcados pela rapidez da acção. Contudo, apesar de, como temos
vindo a notar, alguns episódios terem sido omitidos a bem do dinamismo da acção
requerido pela literatura destinada a um público mais jovem, há um que podemos
considerar impostergável, o da fidelidade e amizade dedicadas por Argos a seu dono,

57
Na Odisseia é mencionada a passagem da nau Argo por entre as rochas e a sobrevivência dos seus
tripulantes, entre os quais Jasão, que a Hera ficou a dever a sua salvação. Este episódio inspirou um dos
contos que António Sérgio compilou em Contos Gregos e que já analisámos.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

apesar de tantos anos decorridos58. É sublinhada, ainda, a bondade de Penélope no


acolhimento a Ulisses, numa clara observância das leis da xeniva, já manifestada por
Eumeu, e em evidente contraste com os gestos dos pretendentes.
A vingança vai sendo preparada e a derrota infligida aos pretendentes surge da
acumulação de insultos e injustiças praticadas por aqueles e que o narrador sublinha.

Ulisses agradeceu, entrou e sentou-se a um canto.


Teve de suportar heroicamente a troça e as risadas dos pretendentes, e
no seu íntimo ia crescendo um terrível desejo de vingança. Ah, no dia
seguinte veriam quem ele era! No dia seguinte… para a vingança ser
ainda mais terrível. Conseguiu encher-se de paciência e suportar
aqueles vexames em sua própria casa! (p.64) [sublinhado nosso]

É também destacada a afeição que Euricleia nutre por Ulisses e a felicidade do


reconhecimento imediato, assim que vê a cicatriz de infância. No texto de Maria Alberta
Menéres, Penélope assiste ao combate entre Ulisses e os pretendentes e não é citado o
concurso para armar o arco. O herói revela-se ao deixar cair os farrapos de mendigo.
O ritmo final da narrativa vai aumentando e é sugerido pela repetição da expressão
«E depois…E depois…E depois» que insinua a agitação e o tumulto interior vividos pelo
rei de Ítaca.

E depois era já o povo todo que acorria e rebentava mesmo as portas, entusiasmado.
Era o povo que o queria ver, ajudar, lutar ao seu lado.
E depois era Telémaco, orgulhoso de seu pai e de si próprio.
E depois era Penélope que Ulisses abraçava para nunca mais deixar.
E depois era uma história
de um herói de mil façanhas
chamado ULISSES
que viveu aventuras e desventuras e aventuras e desventuras e aventuras por terras e
por mares desconhecidos.
Tão grandes foram essas aventuras e desventuras, que ele teve de as continuar
vivendo dentro de si próprio, contente por assim ir navegando na grande e
inesperada aventura de se sentir finalmente feliz. (pp.67-8)

58
Note-se que este tema foi escolhido por António Sérgio para integrar Contos Gregos, também objecto de
estudo, já analisado, deste trabalho.

- 32 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

A linguagem assume, em Ulisses, uma tonalização frequentemente poética. É


utilizada, de forma recorrente, a rima, quer em meio quer em final de frase, instituindo um
encadeamento sintáctico, como se nos estivesse a lançar na aventura:

É esta a história que vos vou contar. Quem conta, é bem certo que acrescenta um
ponto. Oh, mas quando eu conto, são tantos os pontos sempre a acrescentar, que mesmo com
esforço não conseguiria nunca tais pontos… bem, todos os pontos contar! (p.7)

Multiplicam-se, de igual modo, os modelos de poesia visual. Notemos apenas


alguns. Na página oito, a apresentação gráfica das palavras, a repetição, em epífora, da
palavra «mar», bem como o ritmo conferido, mimetizam o balançar das ondas
o mar
só o mar
o mar
o só mar.(p.8)

É sugerida, ainda, a passagem lenta do tempo

Passaram dois dias


três dias
quatro dias (…) (p13)

Beberam, comeram, ofereceram sacrifícios…


Beberam, comeram, dançaram…
Um dia
dois dias
três dias se passaram (…) (p.14)

Mais à frente, são os pensamentos de Ulisses, tentando, rapidamente, arquitectar um plano


para enganar Polifemo, que nos são dados a observar.

Então ali de repente tentou lembrar-se de um nome


qualquer para enganar o ciclope, um nome
qualquer
um nome qualquer
um nome qualquer um nome qualquer
um nome qualquer
um nome qualquer um nome qualquer um nome
qualquer – mas a aflição era tão grande que não se
lembrava de nenhum! (p.28)

- 33 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

E a desorientação do ciclope, já cego, é revelada pela apresentação gráfica do texto, em


sintonia com a ilustração.

Dava pulos tão grandes que batia com a cabeça nas paredes
Nas paredes nas paredes
Batia com a cabeça no chão!!! (p.30)

Poderíamos mencionar, ainda, a insinuação da progressão dos passos gigantes de


Polifemo (p.35); da agitação causada pela fuga dos ventos (pp.37-8); do espanto de Ulisses
(p.41); da queda do rochedo de Sísifo (p.53) ou do movimento contínuo dos marinheiros a
remarem (p.58).

Ao longo do texto é, também, explicado o sentido de alguns termos utilizados e,


porventura, menos conhecidos do leitor mais jovem, como acontece com «bojo» (p.12) e
«politeístas» (p.14), mas há também uma aproximação relativamente à linguagem utilizada
pelo público em questão:

A velha mulher retirou-se doida de contente. (p.66)

O leitor vai sendo interpelado de forma directa, assumindo a linguagem um tom


coloquial, que faz parecer que a história está a ser ouvida e não lida, como aconteceu com
o relato que lhe está na origem.

Eu não sei se vocês sabem (…) (p.14)


Só lhes digo (…) (p.16)
(…) nós, os Portugueses (p.16)
Ele realmente não sabia o que eu vos vou contar (…) (p.23)
(…) nem vos conto o que então sucedeu! (p.37)
E o que viu ele? (p.41)

Mesmo os momentos de maior desespero são narrados de forma poética:

O mar que era caminho parecia querer transformar-se em porta que se


fechava sempre à sua frente. (p.59)

- 34 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

O texto é acompanhado por ilustrações de Isabel Lobinho, que se relacionam


harmoniosamente com as palavras e, pela sua expressividade e cor, ajudam a conferir ao
texto um dinamismo imprescindível para a faixa etária a que a obra se destina.
Através de Ulisses tem sido alimentado, há décadas, o fascínio que exerce sobre os
mais jovens o tema das viagens do heróico «filho de Laertes, criado por Zeus, Ulisses de
mil ardis». 59

59
Para tal tem contribuído, também, A Odisseia – Aventuras de Ulisses, Herói e Navegador da Grécia
Antiga, de João de Barros. Mais recentemente, desde Novembro de 2005, está disponível A Odisseia de
Homero adaptada para jovens por Frederico Lourenço. Apesar de as adaptações não serem objecto de
análise deste estudo, como mencionado, não poderíamos deixar de fazer uma breve referência a esta obra. O
próprio autor, no posfácio, expõe os motivos que o levaram a proceder à adaptação e explica o método
utilizado para tornar a obra-prima da literatura clássica mais acessível e mais aprazível aos jovens leitores.
Foram suprimidas algumas passagens cuja autenticidade não é clara, assim como foram evitadas repetições e
material pouco relevante para o desenrolar da acção. É salientada, no entanto, a fidelidade ao texto original,
com alguns desvios que, em nossa opinião, em alguns casos, pretenderam apenas fornecer alguma
informação adicional que clarificasse o sentido de alguns episódios ou ilustrasse questões de ordem cultural.
Assim, vão sendo dadas indicações mais detalhadas acerca do estado de espírito e dos pensamentos das
personagens:

Inexplicavelmente, Telémaco sentiu no coração mais força e coragem. Sentia que estava
a pensar com mais intensidade no pai, mais ainda do que antes. Percebeu naquele
momento que o estrangeiro que o visitara era um dos deuses do Olimpo. E logo se
dirigiu para junto dos pretendentes, um homem. Definitivamente já não era uma criança.
(p.22)

Vão sendo completadas / explicadas algumas informações:

(…) Penélope ouviu o que o poeta estava a cantar. E logo desceu as escadas (mas não vinha
sozinha, pois isso seria mal visto: duas criadas seguiam com ela.) (p.22)

Em outra passagem, a colocação do nome Mentor entre aspas (p.45) esclarece o jovem leitor de que, na
verdade, se trata de Atena. Numa outra, os pensamentos de Telémaco reflectem os habituais nos jovens,
quando se perdem a meio de um discurso.

(Qual infortúnio? Pensou Telémaco; mas não se atreveu a perguntar em voz alta.) (p.43)

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

* As (Quase) Verdadeiras Aventuras de Hércules (volumes I e II), de Adriana Freire


Nogueira

As obras que reunimos para análise representam, quase exclusivamente, elementos


da cultura helénica. Dizemos quase exclusivamente, porque é evidente, em algumas delas,
a preocupação em estabelecer a ligação entre aspectos, sobretudo mitológicos, da cultura
grega e da romana. Assim acontece em As Quase Verdadeiras Aventuras de Hércules60. A
própria autora explica, no posfácio ao primeiro volume, a razão de o título utilizar a
designação romana do herói com o facto de este nome ser mais facilmente reconhecido
pelos leitores. A narrativa, no entanto, serve-se dos nomes gregos, assim como dos
episódios do ciclo mitológico helénico.
O texto de As Quase Verdadeiras Aventuras de Hércules, nos dois volumes que, até
ao momento, o compõem, vai tematizando, uma após outra, as aventuras do filho de
Alcmena e Zeus, começando com alguns acontecimentos que antecederam o seu
nascimento e outros da sua infância e que foram determinantes para o seu surgimento
como herói. Só depois deste enquadramento são narrados os doze trabalhos realizados por
Héracles ao serviço de Euristeu. Contudo, este relato é frequentemente interrompido por
micronarrativas que dão a conhecer os mais diversos e abrangentes episódios da mitologia
grega, que nem sempre estão directamente ligados à figura de Héracles, mas que poderão
ser importantes para a compreensão de algumas das suas façanhas, bem como por algumas
aventuras secundárias, que decorrem do cumprimento dos trabalhos impostos por seu
primo.
O primeiro capítulo do primeiro volume, intitulado “Como se forma um herói”,
situa a acção no regresso de Anfitrião da expedição contra os Teléboas, relato que é
cortado pelas memórias dos acontecimentos que a antecederam. É narrada a chegada de
Anfitrião a Tebas, depois da vitória, as peripécias do escravo Sósia ao encontrar o seu sósia
– cena que sugere a influência do Anfitrião, de Plauto – o dolo de Zeus, a tomada de
consciência da traição e a sua aceitação. Logo após, são contados os acontecimentos que

60
O primeiro volume da colecção que percorre as façanhas de Héracles, da autoria de Adriana Freire
Nogueira, surgiu, pela primeira vez, em 1997, editado pela Alda Editores, sob o título As Quase Verdadeiras
Aventuras de Hércules. Posteriormente, em 2004, surge uma segunda edição, desta vez da responsabilidade
da editora Nova Vega, com o título As «Verdadeiras» Aventuras de Hércules. O segundo volume foi também
editado pela Nova Vega, no mesmo ano da reedição do primeiro, e intitula-se As Novas Aventuras de
Hércules. Seguiremos, nesta análise, as duas últimas edições citadas.

- 36 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

rodearam o nascimento do herói, motivados pela ira de Hera, o episódio das serpentes
enviadas pela esposa de Zeus, a educação recebida por Héracles, bem como a sua defesa
em tribunal, a propósito do assassínio de Lino. A abordagem feita à educação de Héracles
fornece um panorama dos métodos gregos de ensino: os professores, a separação rapaz/
rapariga, as áreas de formação privilegiadas, mas serve, ainda, para aproximar o herói do
adolescente comum. O filho de Zeus tem interesses distintos das matérias abordadas nas
aulas, os professores queixam-se constantemente da sua distracção e da falta de trabalho e
de material, experimenta as paixonetas próprias dos adolescentes.

- Não presta atenção, perturba o irmão. Durante os ditados distrai-se e perde metade;
quando passamos para a música irrita-se com o tempo necessário para dominar os
instrumentos… já não é a primeira vez que tenho de lhe dar um tabefe ou puxar-lhe as
orelhas! (…)
Nem tinha ouvido o professor, nem se lembrava de já ter chegado às aulas. Estava a pensar
na bonita filha de Êurito, o professor de arco. Se ela fosse às lições do pai, veria como ele
era forte!
- Héracles! É a tua vez. Lê o poema que preparaste em casa.
- Qual poema? Não trouxe nada!
- És incrível! Vens para as aulas sem material para trabalhar; não preparas as lições… não
sei o que fazer contigo! (vol.2, pp. 37-8)

É exactamente esta passagem que antecede a morte de Lino e a propósito da


reacção a este crime é-nos revelada a faceta humana do herói, que faz um pedido de
desculpa típico de uma criança, que não mediu as consequências dos seus actos e que é
desculpabilizada de seguida.

Com os gritos da discussão, Íficles tinha-se aproximado e vira o que


acontecera.
- Pelos deuses, Héracles! Olha o que fizeste!
- Eu não o queria matar! Só queria que ele ficasse com a maldita lira e
me deixasse em paz! Eu e a minha força! – choramingou Héracles.
(…) Com aqueles músculos todos e aquela altura, o irmão mais
parecia um homem e não um jovenzinho ainda imberbe! A força
descomunal que possuía era grande de mais para a sua idade. Via-se
logo que ainda não a conseguia controlar. Ao mesmo tempo que o

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

admirava, sentia pena do irmão, que não conseguia ser um jovem


igual aos outros. (vol.1, p.39) [sublinhado nosso]

Depois deste episódio, Héracles surge com 18 anos, com a incumbência de matar o
leão de Citéron a troco das 50 filhas do rei Téspio, que recusa, mas que, sem que o saiba,
lhe asseguram uma imensa prole – os Tespíades. O regresso desta vitória propicia o
encontro com os enviados de Ergino, rei de Orcómeno, que pretendiam cobrar o tributo
devido, cuja origem é previamente descrita. A violência com que o herói termina este
encontro parece ser justificada por duas vezes.

Tinha fama de ser violento, embora não fosse assim que ele se sentia. O seu tamanho
desafiava as pessoas. Parecia que tinham de se medir com ele. Nessas ocasiões era obrigado
a defender-se. E só fazia aos outros o que eles tinham intenção de lhe fazer a ele. (…)
-Digam a Ergino que nós fazemos aos dele o que ele pensa fazer aos nossos. (vol.1, p.52)61

A batalha gerada por este acto de violência leva Héracles a revelar, novamente, o
seu lado humano, ao chorar a morte de Anfitrião (vol.1, p.56). A necessidade de apontar
uma justificação para os actos violentos e cruéis de Héracles, que surge pela voz do
narrador, da própria personagem ou de outras, prender-se-á com o facto de o destinatário
da obra não ser detentor de um elevado conhecimento do código heróico da época, o que
poderia motivar uma visão negativa do protagonista. O êxito obtido na batalha conduz ao
casamento dos gémeos Íficles e Héracles com as filhas de Creonte.
Posteriormente, após Euristeu ter reclamado o cumprimento da promessa de Zeus,
Héracles dirige-se a Delfos, ao oráculo de Apolo, para averiguar a justiça da sua
submissão ao primo. Acompanha-o Iolau, seu sobrinho adolescente, que será o
destinatário da história que Héracles conta acerca do oráculo de Delfos. Iolau partilha a
faixa etária do leitor de As Quase Verdadeiras Aventuras de Hércules, como partilhará
algumas ideias em relação a determinados assuntos, alguma curiosidade face ao que vai
vendo e ouvindo (/lendo) e algumas características próprias da idade. Iolau é
extremamente curioso, ávido de conhecimento, interrompe constantemente o tio,
procurando mostrar que é detentor de alguma informação.

61
Em tribunal, no passo anteriormente citado, defendera-se com uma sentença de Radamante, alegando
legítima defesa.

- 38 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

- Eu sei quem é Geia! Foi dela que nasceu Urano, que é o Céu, as Montanhas e
o Mar! E os Titãs! E os Gigantes!62
- Sabes tanto Iolau!
- Foi a avó que me ensinou. Contou-me que a Terra é a avó de Zeus, senhor do
raio e do trovão, que ele reúne as nuvens e ainda comanda todos os outros
deuses! – respondeu Iolau de um só fôlego . (…)
- Não esqueço, tio. Mas conta o resto. (…)
- Podemos ver? (…)
-Enquanto estamos à espera podias ir contando a história de Tífon…
prometeste… (vol.1, pp.62 - 4) [sublinhado nosso]63

A esta micronarrativa segue-se a história do monstro Tífon.


No templo de Apolo, Héracles explica ao sobrinho o significado da máxima gnôthi
seauton, cujo sentido não se perdeu na antiguidade clássica, mas chegou aos nossos dias e,
portanto, a explicação é, também, claramente dirigida ao leitor, mas aplica-se com
propriedade a Héracles, tendo em conta a dificuldade que vai manifestando em controlar a
sua força.

-Gnôthi seauton. Conhece-te a ti mesmo. Com o tempo vais entender o que isto quer
dizer. Conhecendo a extensão das tuas forças físicas e a capacidade da tua razão, sabendo o
que és, por dentro e por fora, saberás até onde podes ir por ti e na tua relação com os
outros. (…) (vol.1, p.68)

O próprio Iolau encarrega-se de decifrar o alcance da máxima mêden ágan e consegue-o


de forma certeira ao “traduzi-la” por um dito popular tão familiar ao leitor.

62
A repetição da conjunção coordenativa copulativa e contribui para transmitir esse desejo de mostrar os
conhecimentos que possui, quase com sofreguidão, o que é reiterado pela expressão «de um só fôlego».
63
Esta curiosidade manter-se-á no segundo volume.
…acho que houve um escândalo por causa dele… Mas não sei bem o que é.
- Eu sei, deixa estar. Já vou ao palácio solicitar pormenores.
- Se sabes o que é conta!
-É uma longa história…
- Não me assustas! Gosto de histórias! E quanto mais longas melhor!
(…) Mas eu gostava tanto de saber!
(…) Está bem. Contas-me essa, mas depois contas-me as outras. (vol.2, pp.39-43)

- 39 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

- Acho que percebo. Se eu não souber quem sou, nunca conseguirei dar o meu melhor. E
nada em excesso significa que há limites que não devemos ultrapassar, não é? A minha mãe
costumava dizer: «O que é de mais é moléstia.» É isso?64 ( vol.1, p.68) [sublinhado nosso]

De regresso a casa, é a vez de Mégara contar uma história aos filhos, mas fica claro
que o principal destinatário é o marido. A história de Apolo e do rei Admeto é, mais uma
vez, uma narrativa da qual o leitor poderá retirar ideias dignas de uma reflexão.

-Qual é a ordem do mundo?


- Nascemos, fazemos o que está determinado pelo destino que as Meras nos teceram e
morremos quando os deuses quiserem. O homem não pode ir contra o seu fado. (vol.1, p.71)

Segue-se o ataque das Erínias, por ordem de Hera, e o consequente assassínio dos
filhos e dos sobrinhos do herói, pelo próprio. Mesmo após aquele que poderá ser
considerado o mais desumano dos crimes, Héracles é desculpabilizado, desde logo, pela
mãe, Alcmena, e depois pelo narrador.

-A culpa do que se passou não é dele. Meu pobre filho!


(…)
Por muito que lhes custasse a perda, todos sabiam que Héracles não tivera a culpa. Os
deuses assim o haviam determinado. (vol.1, pp.77-8)

O próprio Héracles tem dificuldade em conceber o que se passou e parece ciente da


retaliação merecida pelo responsável.

(…) Lutei com quem matou os meus filhos? Fui ferido e não me lembro?
(…)
- Amarrem-me com mais força! Cubram-me o rosto! Não tenho o direito de voltar a ver a luz
do Sol! Levem-me daqui! Expulsem-me da cidade! Não mereço viver! (vol.1, pp.77-8)

64
A mesma ideia, de moderação, será reforçada por Héracles quando ensina os Líbios a fazer e a armazenar
vinho.
- Cuidado… nada em excesso. O vinho dá boa disposição mas, se beberes com
desregramento, podes fazer coisas que não queres e vires a arrepender-te de alguns actos
tarde de mais. Além disso, tira-te no dia seguinte o vigor que te dá hoje. (vol.2, p.85)

- 40 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Por isso, o passo seguinte é abandonar a sua casa, partir para servir Euristeu, não sem
antes se penitenciar, errando por caminhos que o conduzem a um novo feito: a libertação
de Prometeu.
A chegada de Héracles ao palácio de Euristeu, em Micenas, encerra a primeira
parte do primeiro volume da colecção e dá o mote para a segunda parte, que tem como
tema central quatro dos doze trabalhos do herói ao serviço de seu primo: o leão de
Nemeia, a Hidra de Lerna, a corça de Cerineia e o javali de Erimanto.
Euristeu e Copreu são, por oposição a Héracles, a configuração de todas as
características negativas: o primeiro é ridiculamente cobarde, indeciso, vaidoso; o segundo
é astucioso, mas usa a sua sagacidade da pior forma, sempre com segundas intenções. O
arauto de Euristeu é, de resto, sempre tratado de forma sarcástica por Iolau e pelo seu tio,
o que o faz cair, também, no ridículo. A caracterização destas personagens contribui para
gerar, no leitor, uma simpatia ainda maior por Héracles e o desejo de que este vença todos
os seus adversários e, desta forma, o seu primo e Hera.
A realização dos quatro primeiros trabalhos e dos que surgirão no segundo volume
transmite a valorização da inteligência sobre a força, já que apesar de esta ser, a maior
parte das vezes, indispensável, é a primeira que permite ao herói libertar-se de todos os
seus adversários. Note-se a desproporção entre os seres que lutam com Héracles e o
próprio herói, o que contribui, evidentemente, para a sua valorização. Além do seu
tamanho, estes seres possuem, também, características inigualáveis e repugnantes que
tornam mais difíceis os trabalhos de Héracles (o cheiro nauseabundo que emana da gruta
onde se esconde o leão; o hálito da Hidra; a rapidez da corça, de acesso impossível para
um mortal; a ferocidade do javali, aliada ao mau cheiro que o acompanhava) e são, logo à
partida, considerados invencíveis.
O leão de Nemeia parece inabalável e só sucumbe perante as suas próprias armas e
perante a inteligência de Héracles.
O combate com a Hidra, monstro horrífico, possuidor de várias cabeças, uma das
quais (supostamente) imortal, para além da inteligência, valoriza, também, a persistência e
a determinação.

Se não fosse a vontade de vencer, os dois homens não teriam tido fôlego para aguentar
tanto. (…)

- 41 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Mais uma vez, a inteligência e a persistência tinham feito que Héracles fosse bem sucedido
na sua empresa. (vol.1, p.108)

A caça à corça de Cerineia exalta, sobretudo, o poder de persuasão (já usado por
Héracles, quando adolescente, em tribunal) do qual se serve, de novo, para convencer
Ártemis a perdoá-lo por ter ferido a sua corça e a deixá-lo levá-la até seu primo 65.

Eu sei, poderosos deuses, mas não me restou outra alternativa. O meu primo Euristeu, que
reina na Argólida pelo favor de Hera, ordenou-me que lhe trouxesse a tua corsa [sic]
sagrada. Há mais de um ano que ando atrás dela, pois nunca a quis magoar. Sei que corro o
risco de te ofender, ó Caçadora, mas não tive outra possibilidade. Repara que ela não verteu
uma única gota de sangue. Espero que me perdoes e me deixes levar a tua corsa. [sic]
-Não achas que é pedir muito? (…)
-Acho, sim. Mas conto com a tua compreensão. (vol.1, p.114)

A propósito do quarto trabalho, Euristeu inicia uma nova micronarrativa, acerca de


Erimanto e Adónis, cujo destinatário é Copreu, mas que tem como receptor, também, um
grupo de servas. Héracles é incumbido, nesta quarta tarefa, de trazer, vivo, até seu primo,
«o javali» de Erimanto, assim conhecido devido à sua ferocidade e grandeza. E,
novamente, se verifica o primado da inteligência e da prudência sobre a força. O herói
pensa toda a sua estratégia para capturar o javali sem matá-lo, o que revela alguém que
aprendeu com os seus erros, já que sente a necessidade de controlar a sua força para não
cometer o mesmo erro da sua adolescência, quando, inadvertidamente, matou o seu
mestre, Lino.
O regresso deste feito proporciona a narração do episódio dos Centauros. O factor
que tem sido perdoado em Héracles, o uso desmesurado da sua força, é um argumento
utilizado contra estes seres. O herói é desculpado por possuir um vigor que nem sempre
consegue controlar (na infância, por exemplo) ou por utilizá-lo em defesa dos seus (como
aconteceu com os mensageiros de Ergino).

65
A autora preferiu a versão adoptada por Calímaco e, em geral, mais seguida pela tradição. Uma outra
versão, sugerida por Eurípides e à qual não se deu grande relevo, indica tratar-se um animal de grande porte,
que destruía as colheitas. (Pierre Grimal, Dicionário de Mitologia Grega e Romana, 2ª ed., Liboa, Difel,
1992, pp.209-210)

- 42 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Apesar de compreender a agressividade destes centauros, Héracles não podia tolerar os seus
comportamentos brutais. (vol.1, p.124)

Quase no fim deste episódio, Folo dirá dos seus congéneres: «-Coitados! Nunca
conseguem controlar os impulsos violentos!» (vol.1, p.130). Os Centauros comungam, de
algum modo, das características do herói. Há um certo equilíbrio entre eles, por
«possuírem a força dos cavalos e o raciocínio dos homens» (vol.1, p.126). Ora, esta
situação cria no leitor a expectativa relativamente ao vencedor. À primeira vista parecerá
que é Héracles, mas, de facto, não se pode concluir desta forma, já que, vencidos os
adversários, perde dois grandes amigos. Assim, o herói revela, mais uma vez,
características humanas, pois comete erros, neste caso fatais, levado, muitas vezes, por
alguma precipitação. O protagonista já tinha conseguido abater alguns Centauros e
afugentar os restantes; no entanto, decide persegui-los até aos domínios de Quíron, onde,
matando um dos seus inimigos, fere gravemente o seu aliado. Por isso, lamenta, uma vez
mais, as suas acções:

-Ai, meu amigo! Que coisa horrível te aconteceu? Como pude eu fazer isso?
(…)
-Ó deuses! Ajudai-me neste momento! Não deixeis que, por minha causa, este centauro,
imortal como vós, sofra infinitamente!
(…)
-Obrigado, meu pai. Adeus, meu amigo – despediu-se Héracles do centauro. – Desculpa-me!
(…)
Dois amigos, os únicos centauros amigos, mortos na mesma altura! Ainda por cima por
razões estúpidas! (vol.1, pp.128-30) [sublinhado nosso]

O regresso do quarto trabalho marca o final do primeiro volume dedicado às (quase


verdadeiras) aventuras de Héracles.

O segundo volume da colecção dedica-se às oito restantes tarefas e, tal como o


primeiro, vai fazendo algumas incursões por outro tipo de façanhas cometidas por
Héracles, resultantes ou não dos trabalhos ordenados por Euristeu.
A sequencialidade entre os dois tomos é conseguida através da remissão do início
deste volume para o regresso de Héracles do quarto trabalho, que concluiu o livro anterior,

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

ainda com o javali às costas. Ao longo do texto encontramos, com frequência, notas de
rodapé que indicam que determinada personagem ou episódio constam, já, do volume
precedente.66 Ainda assim, há aspectos que voltam a ser desenvolvidos, se bem que de
forma mais breve, o que assegura a legibilidade do texto, mesmo para quem não conhece o
primeiro volume. É o caso da referência ao pote mandado construir por Euristeu para se
esconder de Héracles, bem como à sua finalidade (vol.2, pp.7-8); da definição de mégaron
(vol.1, p.8, n.1 e vol.2, p.11, n.1); da menção à pele do leão de Nemeia como resultado da
realização do seu primeiro trabalho (vol.2, pp.19-20); da alusão ao assassínio dos filhos e
dos sobrinhos (vol.2, p.39); da referência às serpentes enviadas por Hera quando o herói
era apenas um bebé (vol.2, p.84).
As obrigações que o veremos cumprir neste segundo volume voltam a colocá-lo
em confronto com seres singulares quer pelo seu aspecto, quer pelo seu tamanho, quer
pela sua natureza (as aves de penas metálicas do pantanoso Estinfalo; o bravo touro de
Creta; as éguas antropófagas de Diomedes; os monstruosos Ortro e Gérion ou o infernal
Cérbero). Quando não é colocado frente a frente com este tipo de criaturas, é incumbido
de missões aparentemente inacessíveis até a um herói (a limpeza dos nauseabundos
estábulos de Augias, a conquista do cinto de Hipólita, a colheita das maçãs de ouro das
Hespérides). De todos elas sai vencedor.
O regresso do quarto trabalho, coincidente, como vimos, com o início do segundo
volume, volta a transmitir a visão do herói no seu lado mais humano, mas também mais
perseverante. Héracles deseja ser como qualquer outro homem, para poder fraquejar a
qualquer momento, comportamento que a sua condição de herói não permite.

Por vezes gostaria que as forças o abandonassem para poder cair por terra e entregar-se à
tristeza, como qualquer homem mais fraco. Mas não. Apesar do cansaço, o vigor continuava
a latejar-lhe nos músculos, pedindo cada vez mais actividade. Gostaria de se sentar numa
pedra do caminho, de beber um pouco de água de alguma fonte para matar a sede, de se
deitar sobre as ervas para repousar à sombra de qualquer árvore. Mas não conseguia. O seu
corpo não o deixava, a sua vida não lho permitia. (vol.2, p.7)

A contextualização do quinto trabalho ordenado é feita através do diálogo entre


Copreu e Euristeu. Mais uma vez é o subordinado que tem a ideia e decide o destino de

66
Do mesmo modo, outras dão a indicação de que surgirá um terceiro volume, com novos feitos heróicos.

- 44 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Héracles. Neste caso, a tarefa surge mesmo como uma vingança pelo facto de o herói ter
sugerido (sublinhado) a ligação entre o nome próprio do mensageiro do rei e a palavra
«estrume». A Héracles é, pois, ordenada a limpeza dos estábulos do rei Augias, ricos em
gado e em sujidade. A visão do rio Alfeu, no decurso desta tarefa, suscita uma nova
micronarrativa, que não tem relação com o protagonista. É ele quem toma a palavra,
dirigindo-a ao sobrinho e ao boieiro, para contar a história das fontes de Aretusa. Este,
como outros trabalhos, como temos vindo a mencionar, demonstra um herói que comunga
das características de um simples mortal e que, por isso, se aproxima do leitor. Veja-se a
forma como tenta negociar com Augias, apresentando a ideia de limpar os estábulos como
sua e propondo receber, em troca desse serviço, uma décima parte do gado do rei; como é
enganado pelo governante e como vê nascer o desejo de vingança, que fica no ar.

A desolação era enorme no grupo daquelas três pessoas que saíram da região da Élide, onde
reinava o tirano Augias.
Mas não iria reinar para sempre… (vol.2, p.26)67

Note-se, ainda, a revolta que o filho de Zeus sente por estar ao serviço do cobarde
Euristeu e a comiseração de Iolau, que imputa a responsabilidade das acções de seu tio aos
caprichos de Hera.

Iolau sentiu pena do gigante: obrigado a tornar-se adulto muito cedo, sempre na mira de
toda a gente, eternamente perseguido pelo ódio de Hera, vítima dos deuses que o
enlouqueciam quando queriam, obrigado a lutar contra seres inimagináveis, o tio era um
homem solitário. Iolau sabia que naquele momento era ele o único apoio, a única família de
Héracles. (vol.2, p.21)

E são ainda as palavras do filho de Íficles que exaltam o uso da inteligência.

-Bravo! – exclamou Iolau, batendo palmas. – És brilhante! A tua inteligência é proporcional


à tua altura! (vol.2, p.22)

67
O tema da vingança de Héracles relativamente a Augias é desenvolvido em Mopsos o Pequeno Grego. A
Coroa de Olímpia, como veremos.

- 45 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Realce-se a importância que é atribuída não só a Iolau68, como temos vindo a notar,
mas também, neste ponto, a Fileu, filho de Augias, que é chamado, por Héracles, a ser
testemunha na Assembleia, contra o seu próprio pai, e que aceita fazê-lo, em nome da
justiça da qual o pai se afastara. Iolau e Fileu, jovens ainda, têm comportamentos próprios
de adultos. O primeiro porque é o apoio do tio e a sua mão direita em alguns trabalhos; o
segundo porque escolhe o caminho mais difícil, mas, no seu entender, mais correcto.
Ambos estarão próximos em idade do leitor instituído, mas, pelos seus actos, podem
aproximar-se da grandeza do herói e é isso que Héracles sublinha quando se dirige a Fileu:

…Um homem mede-se pelos seus actos! Amanhã poderás mostrar o teu tamanho. (vol.2,
p.25)

A descrição do sexto trabalho, as aves de Estinfalo, é suspensa para ser intercalada


uma aventura que, supostamente, decorrera no regresso do reino de Augias e que serve de
pretexto para uma nova façanha de Héracles – a do centauro Eurítion. Este episódio
introduz, novamente, a valorização dos atributos intelectuais em detrimento dos físicos.

Em altura e força [Eurítion] podia competir com o herói, mas não em inteligência. Héracles
contou com isso e usou uma táctica fácil. (vol.2, p.33)

É, também, com a ajuda de Atena, a deusa da inteligência, que conta para vencer as
aves de Estinfalo.
O sétimo trabalho conduz à inserção da narração de novos mitos, que tem Héracles
como narrador e Iolau como narratário. O herói demora-se nesta narrativa, fazendo uma
retrospectiva da história do touro de Creta, recuando a Dédalo, Minos e Pasífae e ao rapto
de Europa. No final desta longa exposição, o filho de Zeus apresenta uma conclusão, de
carácter sentencioso, que qualquer leitor considerará actualíssima:

- O mundo está cheio de feitos admiráveis, o ser humano está sempre a espantar-se com a
sua capacidade para novos sentimentos e novas acções. Nem sempre tudo é bom, mas a ideia

68
Héracles considera o sobrinho o seu melhor amigo, apesar da diferença de idades.
Acarinhava Iolau como se fosse seu filho e tinha medo que as deusas da vingança o
atacassem de novo e o levassem a magoar aquele que era do seu sangue e, para
além disso, se tinha tornado o seu melhor amigo. (p.39, vol.2)

- 46 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

é sempre a mesma: conhecer mais e mais, avançar a técnica e desenvolver as ciências de


forma a pô-las ao serviço do bem-estar de todos.
- E quando isso não acontece?
- Quando isso não acontece, a culpa não é da ciência, mas do uso que se faz dela. E estamos
sempre a aprender.
(…) As promessas, quer às divindades quer aos outros homens, são para cumprir. (…) Mas
não devemos cumprir uma promessa apenas porque receamos a retaliação, mas porque
devemos ter orgulho na nossa palavra. As expressões «sou uma pessoa de palavra» ou «dou-
te a minha palavra de honra» não deviam ser expressões vazias para apoiar mentiras.
Deviam ser ditas com honestidade. (vol.2. pp.45-6)

O próprio Iolau compreende o alcance do que o tio lhe acaba de contar.

E Pasífae? Que representa ela? (…) Os desejos descontrolados?


- Vejo que percebeste. Desejo descontrolado, sem pensar nas consequências e no mal que
isso pode causar aos outros e em si próprio. Esta história é a representação disso tudo.
Todos sofreram: Minos, traidor e traído, Pasífae, envergonhada e vergonhosa, e a vítima.
(vol.2, p.46)

Conta-se, ainda, a propósito do rapto de Europa, a génese da designação da Cilícia,


da Fenícia e de Tebas (Cadmeia), devido à acção de Cílix, Fénix e Cadmo, seus irmãos.
Assim se conhece, igualmente, a origem do alfabeto fenício e a lenda da sementeira de
homens, por Cadmo69. O relato da concretização deste trabalho, a captura do touro de
Creta, é feito sem detalhes, ocupando apenas meia página, enquanto a enumeração dos
episódios atrás mencionados se estende por quinze páginas (38-52).
A caminho da Trácia para concretizar a oitava tarefa imposta, a captura das éguas de
Diomedes, Héracles separa-se dos seus companheiros, e, sozinho, enfrenta e vence a
própria morte, o que lhe permite recuperar Alceste para Admeto. Já na Trácia, ao
encontrar os seus companheiros, conhece Abdero, filho de Hermes, que o tem como
modelo de bravura, coragem, força e inteligência e que é elogiado pelo herói, numa alusão
que parece dirigir-se muito mais ao presente do que ao tempo da narração:

- É bom ver tanto entusiasmo num jovem! Hoje em dia muitos só pensam no vestuário, em
festas, em comer e beber, e noutras acções que amolecem o corpo e o espírito. (vol.2, p.66)

69
Mito explorado, também, em Mopsos, o pequeno grego. O Ouro de Delfos, que analisaremos.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Apesar disso, Abdero é apenas um jovem, susceptível de criar ilusões e cometer erros, o
que o conduz à morte.
A conquista do cinto de Hipólita, nono trabalho a seu cargo, revela um herói com
necessidade de criar laços afectivos e que se deixa conquistar. Mas este amor emergente
está a um passo da morte. Héracles volta a ser o responsável pelo fim de alguém que ama;
porém, uma vez mais, as culpas são imputadas a Hera, que gerou o clima de desconfiança
entre as Amazonas e os companheiros de Héracles.
O trabalho seguinte dá a conhecer a genealogia do monstruoso Gérion, o novo
adversário de Héracles, criatura medonha, considerada invencível, e cujos bois o herói tem
de conduzir até Euristeu. Antes de partir para esta obrigação, o filho de Zeus reúne os seus
companheiros e estabelece com eles uma espécie de compromisso: o de ajudar as
populações que fossem encontrando pelo caminho a libertar-se de todos as ameaças.
Volta, pois, a distinguir-se pela sua coragem, determinação e altruísmo e volta a ser
protagonista de missões heróicas, a primeira das quais consiste em enfrentar Anteu, cuja
superioridade em termos físicos é sublinhada.

Anteu era grande como uma rocha. Devia ter o dobro da altura de Héracles. (vol.2, p.81)

O mesmo sucederá com Eurítion, contudo ambos são derrotados pelo filho de Alcmena.

O seu único objectivo [de Eurítion] era derrotar aquele homem grandalhão, mas que era
bem mais pequeno do que ele. (vol.2, p.91)

Após a sua estada na Líbia, Héracles decide continuar o seu caminho separado dos
seus companheiros, o que permite a inserção, na narrativa, de novos feitos atribuídos ao
herói e que não se relacionam com os trabalhos ordenados por Euristeu. Mas o filho de
Zeus também tem momentos de fúria, que o levam a agir sem ponderação. Assim acontece
quando se enfurece por Hélio não atender o seu pedido para abrandar o calor e atinge com
uma flecha o próprio deus, feito que realça, uma vez mais, os seus atributos físicos. Mas
tem também a oportunidade de revelar o seu poder de persuasão nas conversas que

- 48 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

mantém quer com Hélio quer com Oceano.70 A travessia do oceano permite apontar uma
explicação mítica para o surgimento das chamadas «colunas de Héracles»71.
Gérion é mais um ser hediondo e abjecto, cuja descrição Héracles descobre ter sido
simpática e pouco realista. É a repulsa que sente pelo monstro, devido ao seu cheiro e não
ao seu aspecto, que faz mantê-lo à distância, e liquidar, de novo, um ser (aparentemente)
superior.

A descrição que se fazia de Gérion não fazia jus à realidade, pois não
considerava o cheiro horrível que dele se desprendia nem conseguia definir o
aspecto horrendo da criatura. As três cabeleiras nunca deviam ter tocado em
água, a não ser por acaso, contra vontade, na travessia de algum rio. Não se
notava que tivesse havido alguma lavagem recente, nem que alguns dedos
alguma vez tivessem desembaraçado os seus cabelos. Os corpos peludos nunca
deviam ter conhecido a delicadeza dos óleos que amaciam o corpo depois de um
banho. Essa palavra devia ser desconhecida dele. Os três pares de sovacos
emanavam um odor fedorento, como se escondessem bichos mortos, em
decomposição, no emaranhado que se entrevia quando esbracejavam. Héracles
pensou que não ia morrer de uma pancada, mas envenenado com o cheiro. Não
o deixou aproximar-se mais. (vol. 2, p.92)

Antes de realizar o seu penúltimo trabalho, Héracles encontra Cicno, filho do deus
Ares, que o desafia para uma corrida de carros. É reiterada a justificação do uso que o
filho de Zeus faz da força, por oposição àqueles (quase todos) que com ele lutam e que
usam a violência de forma gratuita.

70
Surge, aquando deste episódio, a localização actual dos lugares por onde Héracles vai deambulando.
Héracles passou por parte do território que é hoje Portugal, Espanha, França, Alemanha,
Itália, até conseguir regressar à Grécia. (vol.2, pp.92-3)

A preocupação com a situação geográfica já surgira ao tentar localizar a ilha de Eriteia.


Como para os Gregos desta época o mundo terminava no território que hoje ocupamos, a
Península Ibérica, a ilha a que se refere esta história seria no local onde se ergue a actual
cidade de Cádis, na Espanha. (vol.2, pp.77-8)
71
No glossário deste segundo volume, a autora refere a identificação, feita por muitos, destas colunas com os
rochedos de Ceuta e Gibraltar.
Existe a expressão latina ad Herculis columnas, inscrita por Erasmo nos seus Adagia (3.5.24)
significando o limite que se pode alcançar numa determinada arte ou ciência, já que as «colunas de Hércules»
eram consideradas o ponto extremo do mundo. Estas colunas teriam, ainda, a inscrição Nec plus ultra («Não
mais além»), que teria sido gravada por Héracles, por considerar serem estes os limites do mundo. A
expressão utiliza-se para designar um limite para além do qual não se pode passar.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

-Sou Cicno, filho de Ares. Sei que és exímio em todas as espécies de lutas e corridas e que
não vais declinar um desafio para uma corrida de carros. (…)
- E se perder?
- A tua cabeça vai emoldurar o templo de meu pai. Héracles já tinha ouvido esta história,
com Anteu. Suspirou, cansado de tantos filhos violentos dos deuses do Olimpo. Felizmente,
ele não era assim. Podia parecer o contrário, mas só usava a força para se defender! Mas
Apolo, desejoso de castigar Cicno, soprou-lhe o desejo de vencer e Héracles cedeu à
provocação. (vol.2, p.97) [sublinhado nosso]

Héracles acaba por vencer, de novo com a ajuda de Atena, deusa da inteligência, a
soberba do seu interlocutor.
O encontro com Atlas, que acaba por ajudar o herói a cumprir este trabalho, é
revelador da sua inteligência, argúcia, do seu poder de persuasão, mas, ao mesmo tempo,
da sua perseverança. As palavras que dirige ao gigante parecem funcionar como um
incentivo e um consolo a alguém que foi, como ele, vítima da ira de uma divindade.

A vida mostrou-me, nestes anos ao serviço de um rei fraco como é Euristeu, que nada é
impossível. Com a nossa força de vontade, a nossa inteligência e uma ajudinha dos deuses,
de vez em quando, conseguimos tudo! (vol.2, p.102)

Atlas, cuja esperança e determinação se perderam, apesar de ser um gigante


que ousou enfrentar os poderosos deuses do Olimpo, é aterrorizado pelo dragão, que
Héracles liquida, sem dar mostras de qualquer temor, o que reforça a sua coragem.
Por último, aproximadamente doze anos volvidos após o início dos trabalhos,
Héracles é chamado a enfrentar o terrível cão Cérbero, guardião dos Infernos, (mais) um
adversário considerado invencível e de aparência terrífica. Esta tarefa implica a sua
iniciação nos «mistérios de Elêusis» para compreender os meios necessários para alcançar
o Hades, o que só é, de facto, possível graças à intervenção divina. A pedido de Zeus,
Atena (novamente) e Hermes acompanham Héracles na sua descida aos Infernos. Aí ouve
a história de Meleagro a quem promete desposar sua irmã, Dejanira. Aí, também,
consegue que Plutão consinta que leve Cérbero, desde que o herói não use as suas armas.
Na verdade, Héracles conta apenas com as suas duas armas mais poderosas: a força e a
inteligência.

- 50 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

O segundo volume da colecção termina com a imagem de um Héracles violento,


saturado, cruel, que mata os filhos de Euristeu por não suportar mais a arrogância de seu
primo, que mesmo no final de tantos trabalhos insiste em tratá-lo como um escravo. O
final da narrativa é deixado em aberto, com as palavras coléricas de Euristeu, que criam,
no leitor, a expectativa relativamente a um terceiro volume, já anunciado, como notámos.

Euristeu agarrou-se aos corpos sem vida e ensanguentados dos filhos e gritou:
- Isto não acaba aqui! Não acaba aqui! Vingança! Vingança! (vol.2, p.118)

Apesar de, durante grande parte da narrativa, o protagonista ser adulto, partilha
com o leitor jovem algumas características psicológicas, nomeadamente alguma
instabilidade relativamente aos seus estados de espírito (ora surge confiante, ora
desanimado).
Há a destacar, também, a inserção do maravilhoso nestas aventuras, concretizado
não apenas pelo aparecimento de seres disformes e magníficos, mas também pela própria
caracterização da personagem. Héracles é apresentado como um super-herói, que ganha
todas as batalhas, que transporta adereços engendrados pelos deuses, que o ajudam nas
suas missões: a espada oferecida por Hermes; o arco e as flechas dadas por Apolo; a
armadura, oferta de Hefesto; o peplos, fabricado por Atena; o escudo cedido por seu pai,
Zeus, e os cavalos de Posídon.
A superioridade física do herói é constantemente recordada e a sua fama antecede-
o onde quer que vá. É frequentemente reconhecido nos locais por onde vai passando, tal
como os seus feitos.

O rei Augias estava à entrada do palácio com o filho Fileu. Vira Héracles aproximar-se e
interrogava-se sobre a natureza da visita.
- Boa Tarde, Héracles. E tu deves ser o seu irmão Íficles. (…)
Héracles não se surpreendia quando chegava a um lugar a primeira vez e percebia que já
sabiam quem ele era.
- Que te traz por cá, filho de Anfitrião? Algum monstro terrível ameaça as minhas terras?
Ah! Ah! (vol.2, p.19)

Ou ainda nesta passagem:

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

- Meu caro Héracles!- exclamou Teseu, quando anunciaram que o


herói estava ali para o ver. – Há quantos anos! Tenho continuado a
ouvir falar das tuas façanhas pelo mundo inteiro. (…) (vol.2, p.109)

Ele é um homem que comunga das características divinas e ao qual se adaptam os


artefactos que lhe foram atribuídos pelos deuses.

Héracles não ia precisar que o ajudasse a subir para a magnificente montada que lhe dera
Posídon. Embora fosse enorme para qualquer outro humano, parecia ter nascido para
pertencer a Héracles. (vol.2, p.34)

Esta superioridade é reconhecida por todos os que se cruzam no seu caminho.


Todos estão convictos, excepto, até determinado momento, Copreu, que Héracles
conseguirá vencer todos os desafios, devido às suas capacidades excepcionais.

E lá foi para o Estinfalo. As pessoas alegravam-se ao vê-lo passar, nobre e sublime, no alto
do seu cavalo. Já sabiam ao que vinha e isso tranquilizava-as.
- Se Héracles vem aí, acabaram-se os nossos problemas! Ele vai conseguir acabar com a
praga dos pássaros! – diziam uns aos outros, esperançosos. [sublinhado nosso] (vol.2, p. 35)

Chega mesmo a ser confundido, por Copreu, com o próprio Zeus:

Até que Héracles surgiu, mais belo («e mais alto», pensou Copreu) do que nunca. Os seus
longos cabelos louros caíam-lhe pelos ombros, iluminados pelo luar. Sem saber porquê,
Copreu caiu por terra, de joelhos, mas percebeu imediatamente o seu erro. Não, aquele não
era Zeus em pessoa. Era um escravo do seu amo. (…)
Héracles e Iolau riram-se. Tinham percebido perfeitamente o que acontecera e já estavam
habituados. Mesmo os maiores inimigos do herói se sentiam intimidados quando ele
aparecia em toda a sua grandiosidade. (vol.2, pp.12-3)72

A imagem que projecta causa espanto e permite a sua identificação com um filho de um
deus.

72
A apreciação feita à personalidade de Copreu serve, também, como mensagem actual.

Como acontece muitas vezes com as pessoas mesquinhas, que não conseguem
aceitar as suas fraquezas e acusam os outros de tudo, Copreu passou a sentir um
ódio ainda maior por Héracles. (vol.2, p.13)

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

- Saúde para ti, forasteiro. Em que te posso ser útil?


- Podes sempre ser útil. É o desejo dos deuses que os homens precisem uns dos outros.
- Então diz, filho de um deus. Deves ser filho de um deus, pois ao longo da minha longa vida,
e já sou muito velho, nunca vi ninguém tão grande e tão belo!
Os mais de dois metros de altura e os fartos cabelos louros continuavam a impressionar por
onde quer que Héracles passasse. (vol.2, pp.14-5)

O próprio Caronte sente medo ao deparar com a figura do herói:

Caronte, o barqueiro que atravessa o rio por onde têm de passar as almas que vão para o
Hades, assustou-se com aquele homenzarrão que chegava quase aos três metros de altura.
(…)
- Quem és tu, mortal? Estás vivo! Não te posso passar para o outro lado! – respondeu
Caronte, a medo. (vol.2, p.110) [sublinhado nosso]

Estas aventuras servem, ainda, de pretexto para apresentação de aspectos culturais


gregos, de índole mitológica e civilizacional. A realização dos vários trabalhos aponta a
justificação mítica para o surgimento das constelações de Leão (vol.1, p.97), Caranguejo
(vol.1, p.108), Centauro (vol.1, p.129), «em forma de flecha» (Sagitta) (vol.2, p.38),
Touro (vol.2, p.42), Dragão (vol.2, p.102)73, bem como para o aparecimento das «colunas
de Hércules», como já referimos.
A execução da primeira tarefa proporciona a alusão à instituição dos jogos Nemeus
(vol.1, p.99), organizados em honra de Zeus.
A viagem pela civilização helénica é feita à velocidade das jornadas de Héracles.
Através delas, são dados a conhecer, ainda que de forma muito breve, costumes do povo
grego, nomeadamente no que diz respeito à consulta dos adivinhos para interpretar sonhos
ou acontecimentos (vol.1, pp. 16 e 26), às regras de hospitalidade (vol.1, p.45), aos
banquetes (vol.1, pp.47-8 e vol.2, p.19), às corridas de carros (vol.1, pp.48-9), ao
casamento (vol.1, p.57), às cerimónias fúnebres (vol.1, pp.56-7), ao ritual dos sacrifícios
(vol.1, p. 61, e vol.2, p.50), ao cultivo das terras (vol.2, p.84). O leitor fica ainda a

73
Estas informações revestem-se de particular interesse se se considerar que as designações das constelações
seguem, ainda hoje, a tradição grega e que o nome oficial é mantido em Latim.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

conhecer o hábito de consultar os oráculos, nomeadamente o de Apolo, a sua história,


assim como a da Pitonisa e as funções desta no templo 74 (vol.1, p.60).

Dirigindo-se a um público jovem, a autora revela claras preocupações em muni-lo


de informações que tornem mais clara a compreensão de determinados episódios, que o
dinamismo exigido na acção da literatura destinada a esta faixa etária não permite. Com
este intuito, surgem, no final da cada volume, as árvores genealógicas, bem como os
glossários que apresentam curiosidades e informações dadas de forma mais pormenorizada
acerca das personagens, expressões e locais que vão surgindo ao longo de cada volume.
Contudo, é notório também que o público adulto, eventualmente constituído por
estudiosos ou amantes da Antiguidade, não deixou de estar na mira da autora. É evidente a
preocupação em explicar qual o método seguido na redacção do texto e em apontar as suas
fontes. Por muito que o jovem possa ser motivado para a leitura de outros textos relativos
aos assuntos aqui focados, não nos parece que essa motivação seja tal que o leve a
consultar as obras de Apolodoro e Diodoro da Sicília ou mesmo Homero, Hesíodo,
Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Píndaro, Teócrito, Pausânias, Apolónio Ródio, Plauto ou
Séneca, tanto mais que nem todos os textos estão disponíveis em edição portuguesa. Aliás,
a indicação da existência ou não de versões portuguesas das obras apontadas é
escrupulosamente fornecida pela autora.
No posfácio ao segundo volume, a autora afirma que tentou, com esta colecção,
«uma nova forma de apresentar o mito deste herói ao público português, mostrando como
é possível aprender, ensinar e divertir a partir das fontes gregas.»75, pelo que assume,
claramente, a função pedagógica da literatura, neste caso específico dedicada a um público
mais jovem. Importa, no entanto, ter em atenção que se aprende e se ensina não apenas
através do conteúdo, mas também através da forma. Um jovem leitor, que decida folhear
um qualquer livro visando mais o entretenimento do que a aprendizagem dos valores que
este possa transmitir, estará, mesmo que de forma subtil, a contribuir para o seu processo
de aprendizagem / aperfeiçoamento do uso da língua materna. Por este motivo, os autores

74
A origem da peregrinação ao oráculo de Apolo, em Delfos, tal como a história deste santuário, é motivada
pela viagem que Héracles empreende, desde Tebas, com o seu sobrinho. É o herói que faz este relato a Iolau.
No primeiro volume de Mopsos, o Pequeno Grego, que analisaremos, também o pequeno adivinho faz este
percurso com o avô, Tirésias, que lhe dá todas estas indicações.
75
Adriana Freire Nogueira, As Novas Aventuras de Hércules, «Colecção Argos», 2ªed., Lisboa, Nova Vega,
2004, p.119

- 54 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

e, em última análise, os revisores têm um papel fulcral no respeito pela língua em que
escolhem comunicar. Em muito fica a perder esta colecção, e os seus eventuais leitores,
devido à presença de alguns erros ortográficos e sintácticos. Sistematicamente, (ao longo
dos dois volumes) se confunde porque com por que (veja-se, apenas a título de exemplo, a
página 77, do primeiro volume); utiliza-se, por duas vezes, aonde em vez de onde (vol.1,
p.93); ao longo de todo o episódio dedicado ao terceiro trabalho se utiliza o termo corsa
por corça (vol.1, p.110 ss.); no glossário do 1º volume, diz-se que Héracles «arrazou» o
palácio real de Ergino (vol.1, p.142); utiliza-se referências preposicionais incorrectas,
como «fizeram sinal a Europa de que o levasse até elas» (vol.2, p.42,) e «lembro-me de
que» (vol.2, p.54).
As ilustrações, da responsabilidade de José Ruy, no primeiro volume, e de Lídia
Lobo Martins, no segundo, são a preto e branco e representam os vários trabalhos da
Hércules, assim como outros episódios mitológicos que vão sendo introduzidos na obra,
quer estejam directamente relacionados com Héracles, quer não, reforçando o que foi
relatado no texto. No segundo volume elas são menos frequentes e prendem-se, sobretudo,
com os feitos heróicos de Hércules.

Apesar de o senão indicado, a colecção consegue, na generalidade, cumprir os


objectivos a que se propôs. Para além do que transmite da maneira de ser e de estar do
povo grego, o texto, quer pela forma como as personagens reagem aos vários
acontecimentos, quer pelas «viagens» que proporciona, quer pela linguagem utilizada,
oferece aos seus leitores momentos de entretenimento, que é, no fundo, uma vocação
pragmática indissociável do corpus literário infanto-juvenil.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

* Mopsos, o Pequeno Grego. O Ouro de Delfos e A Coroa de Olímpia, de Hélia


Correia

«Gosto de abrir as portas que há no tempo».


Em entrevista à revista Storm76 acerca da colecção Mopsos, o pequeno grego, Hélia
Correia fala do seu amor às crianças e à Grécia como motivação para a escrita de uma obra
de ficção dirigida a um público mais jovem77 e localizada na Antiguidade Clássica78.
O escapismo às situações do quotidiano, essencial na literatura para a infância e a
juventude, é plenamente conseguido, na colecção em estudo, pela inserção da acção em
Tebas, na Grécia, no tempo do adivinho Tirésias79.
Nos dois volumes da colecção, antes do início da acção propriamente dita, é feita
uma espécie de apresentação prévia das personagens ou das figuras apenas aludidas, mas
que encontram referência na literatura grega: Mopsos, Tirésias, Apolo, a Esfinge, Pégaso,
Kronos, Pélops…
A personagem principal da obra é Mopsos e a acção central de O Ouro de Delfos
explora uma dúvida que os dicionários de mitologia mantêm: a sua paternidade. Mopso80
foi, segundo as narrativas míticas, um adivinho célebre, filho de Manto e Rácio ou Apolo.
Segundo algumas versões, Manto, filha de Tirésias, teria encontrado Rácio à saída do
templo de Delfos e este teria sido apontado para seu marido81. Teriam depois partido para

76
Entrevista disponível na Internet, em 2 de Setembro de 2005, em www.storm-
-magazine.com/novodb/storm.php?id=402.
77
A autora explica, na mesma entrevista, que a colecção surgiu a pensar num seu sobrinho, com nove anos,
mas admite que são os adolescentes e, sobretudo, os adultos que têm demonstrado um maior entusiasmo pela
história de Mopsos.
78
A mitologia clássica está presente em Hélia Correia no seu romance A casa eterna e nas peças de teatro
Perdição e Helena, onde são tratados os temas de Ulisses, Antígona e Helena, respectivamente. Sobre a
presença de temas clássicos na autora, ver Luísa de Nazaré Ferreira, «A recepção dos temas clássicos na obra
de Hélia Correia», in AAVV, Fluir Perene. A cultura clássica em escritores portugueses contemporâneos,
José Ribeiro Ferreira e Paula Barata Dias (coord.), Coimbra, Minerva, 2004, 55-73.
79
A autora, na entrevista já citada (v. nota 76), menciona o afastamento relativamente ao tema mitológico de
Mopsos, já que a tradição não apresenta esta convivência entre avô e neto. Mopsos não terá chegado a
conhecer Tirésias. A tradição mitológica indica a morte de Tirérias como anterior à chegada de Manto a
Delfos.
80
Existem referências a um outro adivinho de nome Mopso, filho de Âmpix e Clóris. Foi o adivinho oficial
dos Argonautas, depois de Ídmon, tendo participado na expedição e morrido no regresso da Líbia, por ter
sido mordido por uma serpente. Frederico Lourenço, no texto lido na sessão de apresentação do livro, em
Lisboa, aponta a existência destas duas figuras mitológicas como razão justificativa da atribuição do nome
Mopsos, e não Mopso, mantendo a terminação grega em –s. Cf. Frederico Lourenço, «Céu Aberto», Mil
Folhas, Público, 1 de Abril de 2006.
81
No segundo volume, A Coroa de Olímpia (pp. 10 e 12)¸ fica claro que é esta a versão escolhida.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Claro, onde Mopso, filho de Apolo, viria a oficiar. Outros autores defendem que Manto
teria sido raptada por piratas cretenses quando se dirigia para Claro. O chefe desses piratas
seria Rácio e da união dos dois teria nascido Mopso. Este tornou-se o profeta do oráculo de
Apolo de Claro e, segundo a tradição, foi o fundador de Cólofon. Tendo entrado em
competição com o famoso adivinho Calcas, conduziu-o à derrota e, consequentemente, à
morte. Segundo os relatos míticos, Mopsos terá, juntamente com Anfíloco, fundado, ainda,
a cidade de Malo, na Cilícia, mas, disputando o governo da cidade num combate singular,
acabariam ambos por morrer.82 A narrativa começa com a localização espacial da acção e
com a referência a elementos naturais da Grécia, como a cor do céu, «liso e brilhante como
um interior de concha fortemente tingido pelo mar», e o inevitável canto das cigarras, que
é mencionado nos momentos fulcrais da acção, acompanha todo o seu desenvolvimento e,
de acordo com este, é interrompido ou retomado83. E este canto, lembra-o o narrador, é
diferente na Grécia:

As cigarras cantavam com o canto das cigarras na Grécia. As suas asas, duras como prata,
percutiam no corpo e produziam um imenso concerto musical. Estavam ocultas nas
amendoeiras e por isso parecia que era o chão, que era o campo vermelho que cantava.
(vol.1, p.7)

Logo após, é apresentado Mopsos, um tebano de oito anos, sujeito a um tratamento


especial por parte dos outros meninos por ser neto de Tirésias, «o maior [adivinho] de
todos os que os Gregos conheceram», e por Tebas saber que ele próprio há-de profetizar. À
volta desta personagem cria-se, desde logo, um ambiente misterioso, mas que adquire
alguns traços de ironia: será, como o seu avô e a sua mãe, um adivinho, mas é assaltado
por uma série de dúvidas, cujas respostas são sucessivamente adiadas. O maior enigma,
porém, será apenas resolvido após a viagem que empreende a Delfos, ao oráculo de Apolo,

82
Sobre Mopso, filho de Rácio e Manto, veja-se Pausânias, VII, 3,2 e IX, 33, 1-2. Sobre o relacionamento de
Manto e Apolo leia-se Apolodoro, Epítome, VI, 4. Ainda na mesma obra, acerca deste vate, da sua vitória
sobre o adivinho Calcas, da fundação de Cólofon e da sua morte e da de Anfíloco consulte-se VI, 2 e 19,
respectivamente.
83
Durante a viagem a Delfos, o estridor do canto das cigarras intensifica a aspereza do caminho (vol.1, p.25);
em volta do domínio da Esfinge, o canto deixa de se fazer sentir, assim como o cheiro das árvores
(vol.1,p.36); após a tempestade, as próprias cigarras estão entorpecidas (vol.1, p.41). No meio da confusão
dos peregrinos, em Delfos, as cigarras elevam o seu canto para se fazerem notar (vol.1, p.82). O segundo
volume mantém esta presença. As cigarras estão na descrição poética da chegada a Olímpia (vol. 2, p.48);
calam-se quando todos ficam boquiabertos ao verem Tirésias aproximar-se (vol. 2, p.51) e quando o
desaparecimento de Sícon faz recair a desconfiança sobre Hércules (vol. 2, p.97).

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

com o seu avô. Durante a jornada, as atitudes de Mopsos colocam-no à altura de um


qualquer menino de oito anos, inclusivamente do próprio leitor, apesar de ter sido afirmada
a sua natureza invulgar: é extremamente curioso, amua facilmente, observa tudo o que está
ao seu redor e irrita-se quando não lhe dão atenção. Mopsos desconhece os motivos da
viagem, mas tem noção que irá acontecer algo importante; por isso questiona sem parar o
avô, que responde sempre de forma vaga e impaciente. Em Delfos, o futuro adivinho
conhece Filipa e Íris. A etimologia do primeiro nome é, desde logo, explicada – «a que é
amiga de cavalos» – e ainda que Mopsos fique desapontado com a figura que vê surgir, há,
de facto, uma identificação entre a personagem e estes animais, que o próprio rapaz nota:

A mulher tinha um modo de rir meio relinchado. «Provavelmente foi educada por cavalos»,
pensou Mopsos. O pai contara-lhe que os maiores educadores de toda a Grécia eram
centauros. (…) Ela ria mostrando os grandes dentes. (…) «Sou uma sábia», respondeu ela.
«Educo as Pitonisas.»
-Logo vi. Tu tens coisas de centauro. (vol. 1, pp.56-8)

A existência de Íris obriga à descrição da deusa grega e dos seus atributos, que
encontram paralelo na jovem que se tornará amiga de Mopsos. O nome justifica-se pelas
várias tonalidades dos olhos; a sua túnica, «feita do desperdício dos teares», possui as
mesmas sete cores do vestido da deusa; anda sempre a correr e é tão alta para a idade, que
desenha um arco, «como se a deusa (…) a empurrasse docemente com a mão». (vol.1,
pp.59-60)
É pelas mãos de Íris que Mopsos conhece o mar. E esta experiência permite-lhe
relembrar os serões de Tebas, onde tantas vezes este fora o tema das narrativas dos aedos.

No seu solar de Tebas, Manto e Rhácio estavam constantemente a receber visitas.


E claro que as visitas mais desejadas eram as dos aedos, os poetas-cantores
itinerantes que compunham histórias de deuses e de heróis. Cantavam-nas durante
cinco ou mais serões a fio, sem que os donos da casa se atrevessem a negar toda a
carne e todo o vinho que o aedo quisesse consumir.
Mopsos habituara-se a ouvir as histórias do mar, as suas cóleras e a sua bondade.
Informado pelos versos dos aedos, ele construía a sua própria ideia. Imaginava
uma extensão roxa e sombria onde os cavalos de Poseídon galopavam. Era muito
famosa a descrição das ondas com crinas quando a muita velocidade arrancava
dos seus dorsos uma espécie de branca cabeleira. (vol. 1, pp.61-62)

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Ainda que estas referências possam passar despercebidas ao leitor instituído ou real
(para recorrermos à terminologia da Pragmática Literária), dificilmente escapará a um
leitor afastado, familiarizado com a leitura da Odisseia. De imediato nos surge a memória
do canto de Demódoco, não sem que antes fosse saciado o desejo de comida e de bebida
(Odisseia, VIII, 62-82 e 481-520), assim como recordamos a ira de Posídon e as suas
consequências.

Enquanto Ulisses reflectia no coração e no espírito, fez surgir


uma onda gigante Posídon, Sacudidor da Terra, uma onda
terrível e perigosa, que se arqueava por cima dele e o levava.
Tal como um vento forte espalha um monte de palha seca,
atirando-a por aqui, por ali e por todos os lados –
assim a onda espalhou as pranchas da jangada.
(…)
Assim falando, o deus incitou seus cavalos de belas crinas
E foi para Egas, na Samotrácia, onde tem o glorioso palácio.
(Odisseia, V, 365-370, 380 - 381)84
Ou ainda:

Quanto à nau, tal como na planície quatro cavalos atrelados


se precipitam todos ao mesmo tempo debaixo dos golpes
do chicote e levantando bem alto as patas percorrem o caminho -
assim levantava a proa e para trás ficava a grande onda
cor de púrpura, espumando no mar marulhante.
(Odisseia, XIII, 81-85)

Também a quebra das expectativas relativamente ao aspecto do mar facilmente deixa


antever o intertexto.

O [mar] dos poemas era como a mãe, escuro e fascinante. «Cor de vinho85», cantavam os
aedos, e habitado por uns seres alados que davam pelo nome de sereias e chamavam os

84
Não pretendendo fazer uma recolha exaustiva de todos os passos onde as imagens evocadas estão
presentes, apontaremos apenas alguns exemplos que considerámos elucidativos.
85
A expressão oivnopa povvnton, «mar cor de vinho» é recorrente na Odisseia (u.g., I, 183; XII, 388; IV,
474) e é utilizada, também, na literatura actual de inspiração clássica, nomeadamente por Eugénio de
Andrade em A Ilha.
Tanta palavra para chegar a ti,
tanta palavra,

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

homens para a morte. O mar real, aquele mar de Delfos que Mopsos avistava para além do
manto de árvores que cobria a longa encosta de tons de verde, esse emitia claridade. O seu
azul podia ser usado para pintar as túnicas dos deuses. (vol.1, p.62)

Não será, pois, difícil recordar o discurso de Circe, que previne Ulisses do perigo
que encontrará junto das sereias, que o homem dos mil artifícios relembra na corte de
Alcínoo (XII, 39-54), e sua própria descrição deste encontro (XII, 181-200).
O avanço da acção principal é atrasado por um acontecimento que gera grande
desordem em Delfos: ao cais de Kirrha chegam barcos egípcios86. Saber-se-á que
transportam uma embaixada, comandada por An-rum, que deseja consultar o oráculo de
Delfos, já que os seus próprios deuses têm sido obscuros nas suas profecias. Esta
necessidade propicia o confronto entre a forma de viver a religião dos dois povos.

Os nossos deuses andam entre nós e até se disfarçam de mendigos. Qualquer viajante que
nos bata à porta pode bem ser um deus 87. (…) E os Egípcios, não? Não, nunca os vêem.
Somente o Faraó e os sacerdotes… (vol.1, p.104)
Se tivesse o costume de falar com os deuses, pedir-lhes-ia que fizessem com que tudo não
passasse de um breve pesadelo. Mas os deuses ficavam longe do seu alcance. Não eram
deuses gregos. Não saíam dos seus templos de bronze para virem ajudar os mortais ou
atrapalhá-los, apaixonarem-se por eles e, até, fazerem-nos cair pelas ladeiras88. (vol.1,
p.108)

Acompanha o comandante a sua filha, Nor, que nas suas deambulações por Delfos
encontra Mopsos. Este recebe, logo ali, um dom da sua condição de adivinho, o da

sem nenhuma alcançar


entre as ruínas
do delírio a ilha,
sempre mudando
de forma, de lugar, estremecida
chama, preguiçosa
vaga fugidia
do mar de Ulisses cor de vinho.
V. Eugénio de Andrade, Ofício de Paciência, , «Obra de Eugénio de Andrade 24», Porto, Fundação Eugénio
de Andrade, 1994, p.21
86
Esta chegada permite caracterizar o povo egípcio, como alguém capaz de aproveitar os recursos naturais
disponíveis, de fazer obras gigantescas e rico em conhecimentos sobre astronomia. Outras indicações de
carácter cultural serão proporcionadas ao longo da obra.
87
Cf. o mito de Filémon e Baucis, analisado aquando do estudo de Contos Gregos, de António Sérgio.
88
A mesma ideia, do espírito folgazão dos deuses, é reiterada em A Coroa de Olímpia: «E os deuses, que
gostavam de sair ao caminho vestidos de mendigos para pregarem partidas, não tinham esperança de enganar
Tirésias e desistiam de aparecer àqueles viajantes» (vol. 2, p.35).

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

tradução. Na verdade, Mopsos fala grego, mas ao pronunciar as palavras elas tornam-se
egípcias, o que possibilita a comunicação entre as duas crianças. Há, portanto, a inserção
de um elemento sobrenatural, que distingue o herói de todas as outras personagens e que
constitui uma das exigências da literatura infanto-juvenil. A forma como Mopsos descobre
que Nor é uma rapariga provocará, no mínimo, um sorriso de anuição por parte do leitor:

- Não te armes em parvo! – ouviu gritar.


(…)
Era uma rapariga. Aquela frase indiciava sempre uma menina, mesmo que o seu autor se
situasse longe da vista, atrás de um muro, por exemplo. (vol.1, p.89)

A grande amizade que nasce entre ambos é interrompida pela profecia do oráculo.
Recebido An-rum pela Pitonisa, vê confirmadas as palavras dos seus próprios deuses: que
o perigo vinha por mão das entidades que adoravam. Previamente aconselhado por Tirésias
a colocar a filha a salvo, An-rum, desagradado com o oráculo, abandona o templo e Delfos,
levando consigo a filha.
De seguida, é a vez de Mopsos. Depois de se purificar na fonte Castália, entra no
templo em circunstâncias que mostram tratar-se de uma pessoa especial: é apenas uma
criança, não leva animal para o sacrifício, atreve-se a chegar atrasado. Neste local, ouve
Apolo dizer, pela boca da Pitonisa, que é o seu verdadeiro pai. E de tal maneira a notícia o
perturba que adoece e não pode procurar Nor.
Ao longo do texto são dados vários indícios desta solução do oráculo. Logo no
início, na conversa que tem com sua mãe:

- És um belo rapaz, não és?


- Não sei.
89
- Louro como o teu pai – murmurou Manto.

89
A indicação de que o rapaz era louro constitui um processo de valorização, já que esta cor de cabelo era
rara. Ele assemelha-se, portanto, a um deus, inclusivamente em termos físicos. Esta ideia é explorada numa
conversa mantida por Mopsos e Nor:

Todos os Gregos têm esse aspecto?


- Que aspecto? (…)
- Assim, tão claros, com os olhos cor do mar e os cabelos de ouro. Eu nunca tinha
visto gente assim. Não é que tu me sejas antipático. Mas fazes-me um bocado de
impressão. Parece que estiveste muito tempo deitado ao sol e descoraste.
- Ora essa! Que ideia! Na minha terra, é o que há de mais bonito!

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

- O meu pai é moreno – disse Mopsos. (vol.1, p.13)

- Se calhar, o motivo da viagem também é um pouquinho mais complexo. (vol.1,


p.14)

Depois, na conversa com o pai:

- Que tens? – decidiu Mopsos perguntar.


(…)
- Medo de te perder – respondeu Rhácio. (vol.1,p.16)

Através da reacção de Icário, o viajante que encontram no caminho:

-A Delfos! – repetiu o general. Fitava Mopsos com os olhos muito abertos e a maxila de
baixo descaída, como se se admirasse mais do que a cara dele conseguia suportar. – A
Delfos! Compreendo. A Apolo, pois!... (vol.1, p.28)

Nas palavras de Filipa:

És um rapaz muito observador. Espero bem que te entendas com a viagem. (vol.1,
p.58)

Quando Mopsos recorda os serões em Tebas:

E encostava-se a ele, sem receio de que se apercebessem da sua permanência no meio dos
convidados e o mandassem deitar. Rhácio jamais consentiria que os separassem um do
outro. (vol.1 p.62)

De regresso a Tebas, Mopsos quer saber pormenores sobre a relação de paternidade


de Apolo e garante que o seu pai será sempre Rhácio. Mas serve-se do seu “estatuto” para
conseguir informações acerca de Nor. O avô conta-lhe, então, que os Hititas preparam uma

- Ah! – exclamou Nor. E olhou-o, pensativa. – Por mim não sei se vou aguentar.
- Aguentar o quê?
- Ver muitos, como tu.
- Está descansada – disse Mopsos, furioso. – Grande parte dos Gregos é morena. (vol.1,
pp.92-3)

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

guerra contra os egípcios na qual utilizarão, como armas, gatos amarrados aos escudos. Ora
os gatos são considerados sagrados para este povo, por se julgar serem a encarnação da
deusa Bastet, pelo que nenhum egípcio se atreveria a levantar uma arma contra os
inimigos. Daí os deuses dizerem que o perigo estava nas entidades que adoravam. Tirésias
descansa-o, profetizando que Nor se salvará e aconselha o neto a escrever-lhe. O rapaz
acata a sugestão, mas, porque o dom da tradução só funciona oralmente, resolve comunicar
através de um desenho: um coração, duas mãos enlaçadas e chuva, porque este era um
presente raro e, por isso, valioso para qualquer egípcio e porque simboliza o afastamento
de Apolo, que, no Inverno, não se encontra em Delfos. A comunicação funciona porque
são utilizadas duas linguagens universais: o desenho e o amor.

O segundo volume da colecção, A Coroa de Olímpia, começa por fornecer as


informações essenciais acerca do sucedido em O Ouro de Delfos, o que torna
compreensíveis estas novas aventuras, mesmo para quem não tomou conhecimento do
primeiro volume. O narrador dá-nos conta da mudança radical que a ida de Mopsos a
Delfos e a descoberta que daí adveio provocaram no lar do futuro adivinho. A profunda
tristeza que se abateu sobre aquele que considera o seu verdadeiro pai90, o ambiente que se
vive e que afecta os próprios servos, o desconforto que esta situação provoca em Manto,
impelem o pequeno herói a procurar uma solução. E como não a consegue encontrar
sozinho, reclama a ajuda de quem deu origem à situação, Tirésias, o avô. A descrição dos
aposentos do ancião, onde Mopsos entra pela segunda vez na sua vida, é perfeitamente
ajustável à figura do velho adivinho, mas distante do que o rapazinho e, certamente, o
leitor imaginavam.

Os aposentos de Tirésias eram escuros e como que cobertos de um fumo


arroxeado. Havia um banco baixo, e a cama estreita achava-se forrada com peles meio

90
«De que valia a Mopsos saber que o pai era aquele deus tão belo e louro, que muitos confundiam com o
sol? Ele crescera aninhado no braço de Rhácio, com Rhácio aprendera a rir e a caçar, e a conhecer as coisas,
as pequenas e as grandes. De Rhácio recebera aquilo que é de suprema importância na vida das crianças, as
histórias que os pais contam aos filhos. Alguma vez Apolo se sentaria à noite com Mopsos ao seu colo para
lhe contar a sua própria infância?» (vol.2, pp.24-5)
A mesma ideia é reiterada veementemente pelo rapaz quando diz ao avô que pretende falar-lhe sobre o pai e
este não entende, de imediato, se se trata do deus ou de Rácio: «Que pai querias que fosse? Não tenho outro –
respondeu Mopsos, agressivamente.» (vol.2, p.17)

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

roídas, provavelmente já tão velhas quanto o dono. Mas não se via aquilo que a
imaginação das crianças supunha decorar quartos de feiticeiros: corujas embalsamadas,
molhos de ervas, caveiras, braseiras com enxofre, lécitos cheios com água dos rios
infernais. A um canto, os buracos de uma estante mostravam alguns rolos de papiro já
partidos, à força de serem manuseados. «É o quarto de um sábio», concluiu Mopsos, e isso
sossegou-o. Mas depois deu por si a especular sobre o uso de papiros por um cego. Seriam
textos escritos por mortos? Com aquele pensamento arrepiou-se e pensou seriamente em
retirar-se. (vol.2, pp.15-6)

Esta mesma passagem reforça as dúvidas relativas à cegueira do adivinho que provêm do
primeiro volume.
A solução encontrada por Tirésias agrada a todos, sobretudo a Rácio, que vê a sua
importância reconhecida perante todos e vislumbra a possibilidade de retomar um
passatempo que, como cretense, lhe está na alma. As aventuras que o pequeno herói viverá
são proporcionadas, tal como em O Ouro de Delfos, por uma viagem. Esta torna-se
rapidamente notícia, espalha-se de boca em boca, e são os murmúrios das pessoas na rua
que trazem à narrativa a figura de Hércules91. Está, pois, dado o mote para a introdução da
narrativa encaixada que revelará a história de Hércules. O herói é apresentado e é relatada a
fatalidade que o levou a cumprir os doze trabalhos, por ordem de Apolo, mas destinados
por Euristeu. No momento em que o encontramos, o filho de Zeus está a meio das tarefas e
a limpeza dos estábulos de Augeias e os enganos que daí resultaram surgem como
fundamento para a criação dos jogos92. O desejo interesseiro de Hércules e a alteração das
regras do trabalho de limpeza dos estábulos são justificados imediatamente, pois a tarefa é
classificada como indigna de um filho de Zeus e Augeias como antipático e desleixado. Ao
longo de todo o volume é divertida a caracterização do gigante tebano, que tantas vezes
toma atitudes infantis, perde a noção das consequências do que diz e faz93 e é superado, em
termos de maturidade, pelo pequenino Mopsos. As suas acções intimidam, muitas vezes,
quem o rodeia.

91
Também Hélia Correia opta pela designação romana do herói, apesar de todas as outras personagens
manterem o seu nome grego.
92
A figura do filho de Alcmena aparece valorizada nas páginas iniciais, quando se alude à vaidade que
Mopsos sente quando considera que talvez os amigos o comparem a Hércules, «o herói da criançada», por
ambos terem nascido da união entre um deus e uma mortal.
93
Existem pontos de contacto entre esta caracterização e a que é feita em As «Verdadeiras» Aventuras de
Hércules e As Novas Aventuras de Hércules, de Adriana Freire Nogueira, também objecto de análise deste
estudo.

- 64 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Era um gigante. Excedia Mopsos em altura e recordo que Mopsos estava aos ombros do
seu muito encorpado carpinteiro. (…) Os seus olhinhos, do azul intenso que se esperava
nos ruivos, ainda se faziam mais pequenos ao franzirem-se para fitarem o menino, em
contraluz. As bochechas coradas dir-se-iam definidas com tinta de mulher, muito
redondas. De todo ele, emanava aquela bonomia, o espírito infantil que é próprio dos
gigantes. (vol 2,p.54)
Esperava-se do herói a última palavra. Ele travava uma intensa luta consigo mesmo e
mostrava as feições tão transtornadas que se diria prestes a chorar. (…) O herói,
atrapalhado, começara a escavar o chão com a sandália e já estava a fazer um enorme
buraco. (…) Hércules encolheu os ombros convencido. Os seus olhinhos reluziram,
muito azuis e muito pequeninos, naquele enorme rosto que ainda estava corado, mas de
satisfação. (vol.2 pp.74-5)

Em alguns casos, Hércules parece, até, satirizado:

O herói estava de tal modo enraivecido que só passados uns minutos percebeu que se
achava sozinho no palanque e que esmurrava os ares à sua volta. Para dar algum
sentido aos movimentos, escaqueirou os três bancos que restavam. A visão dos
destroços satisfê-lo por uns momentos e ele respirou fundo. (vol.2, p.96)
O próprio herói que nunca media as consequências da sua força nem daquilo que dizia.
- Não façam de mim estúpido! – gritou, enquanto olhava para todos os lados, buscando
alguém ou algo que socar. – Lá porque sou gigante, não deixo de saber somar os dois mais
dois e tirar conclusões. Estão todos convencidos de que eu raptei o Sícon?!
- Ó Hércules, que ideia! – exclamou um dos presentes. E logo toda a gente acenava com
as mãos, de palmas para fora, como se aquilo não fosse o que todos pensavam. (vol.2, p.97)
Quando dificuldades como esta cruzavam a entrada da tenda do herói, este erguia as
manápulas ao céu e derrubava a mesa com os papiros (…) À medida que o tempo
avançava, ele transformava-se numa criança má e choramingas. Dava ordens e contra-
-ordens, de maneira que todos decidiram ignorá-lo, o que ficava longe de resolver as
coisas. (vol.2, p.60)

Esta caracterização do gigante deixa bem claro que o verdadeiro herói de A Coroa
de Olímpia é Mopsos e não Hércules. De facto, o pequeno adivinho há-de enfrentá-lo, qual
gigante e guerreiro, quando ninguém mais o consegue fazer.

E, de facto, se havia alguém à altura do gigante, esse alguém era Mopsos, dado que
estava montado aos ombros de Diágoras. (…) E Mopsos, oscilando, parecia cavalgar. À

- 65 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

brisa do entardecer, o cabelo louro esvoaçava-lhe em redor do rosto, como as plumas de um


elmo de guerreiro. (vol. 2, p.73)

Também o neto de Tirésias há-de avançar com a solução para a desavença entre os
construtores e os organizadores dos jogos quando os adultos, incluindo um gigante, não o
fazem (vol. 2, pp.86-8).
A incapacidade, manifestada pelo filho de Zeus, de medir a força e as
consequências dos seus actos tem a sua manifestação mais evidente quando acaba por
matar Augeias, apesar de pretender dar-lhe apenas uns «safanões». Depois de o fazer, olha
para o sobrinho «como quem aguardasse instruções».
No desenvolvimento de algumas das doze tarefas, Hércules é acompanhado pelo
sobrinho Yolau, que «era pessoa de juízo»94 e é o adolescente que, por vezes, ao longo
desta obra, chama o tio à razão. Para tentar redimir-se do seu acto e provar a Fileus que é
possível haver vitórias sem guerra e sem derramamento de sangue, Hércules tem, então,
uma ideia proporcional à sua grandeza: a realização dos jogos em honra de Zeus. A
expectativa e a designação que Yolau cria para os jogos, «olímpicos», bem como o seu
bom senso aproximam-no de Mopsos e deixam supor uma eventual amizade entre os dois.
A inexistência de crianças no palácio de Fileus e o ambiente demasiado solene e pouco
espontâneo que acolhe a comitiva tebana à chegada à Élide causam no pequeno adivinho a
impressão que «jamais encontraria ali um bom amigo» (vol.2, p.39). No entanto, Mopsos,
surpreendentemente, vai tornar-se amigo de alguém, mas não da sua idade. A separação
entre o mundo dos adultos e das crianças é evidenciada em várias passagens da obra. Em
algumas, essa situação irrita Mopsos, em outras, o adivinho marca claramente esse
afastamento, considerando o mundo adulto pouco sedutor.

Via-se bem que estavam divertidos com o rumo da conversa. Mas a presença do rapaz fê -
-los calar. Pigarrearam e voltaram a cabeça como se a natureza do assunto os deixasse
seriamente preocupados. Mopsos já assistira muita vez a este esforço dos adultos que
tentavam recuperar rapidamente a sisudez. Se então lhes perguntasse porque riam, já sabia
o que o avô ia dizer. «Não tenhas pressa», era a sua resposta favorita. (vol.2, p.37)

O mundo dos adultos não estava a revelar-se atraente a seus olhos. Parecia feito apenas
de zangas e de pazes, seguidas de mais zangas. (vol. 2, p.86)

94
Nas obras de Adriana Freire Nogueira, a que já aludimos, Iolau é visto sob a mesma perspectiva.

- 66 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

A sensatez que apontámos como característica quer de Yolau quer de Mopsos,


ambos jovens, nem sempre é apontada como atributo de Fileus, também ele um jovem, que
deu algumas provas de maturidade, sobretudo quando, colocando-se ao lado do povo
subjugado, tomou, do próprio pai, o trono. A cura encontrada para o seu desalento surge
como a mais óbvia, tendo em conta a idade do rei: apelar à sua vaidade, convencendo-o
que ele próprio granjearia a grandiosidade e a importância daqueles jogos. A vaidade
aparece, pois, associada a esta faixa etária. Esta caracterização de Fileus, impede, também,
e apesar do feito corajoso que cometeu, que seja considerado o herói de A Coroa de
Olímpia. A maturidade do verdadeiro herói dá provas em cada conversa que tem com o
pai, no final de cada dia, quando, dando largas à sua curiosidade, leva o marido de Manto a
considerar aspectos que haviam sido esquecidos e faz acalmar a indignação de Rhácio por
os organizadores não permitirem a participação de mulheres nos jogos.
A chegada dos adivinhos a Olímpia introduz, na obra, o elemento maravilhoso, já
que Tirésias, estendendo o seu braço, coloca diante dos olhos dos construtores o futuro da
cidade e dos jogos.
O encontro de Mopsos com aquele que viria a ser o seu amigo nesta aventura é
motivado pela agitação causada por Hércules quando descobre que Tirésias tinha chegado
e não o tinha feito saber. O tumulto criado é tão grande que Diágoras se vê forçado a salvar
o rapaz da balbúrdia, pondo-o aos ombros. Muitas outras vezes este gesto se repetirá,
motivado pela intempestividade do humor do filho de Alcmena. Mopsos virá a saber, pela
boca do avô, do futuro grandioso destinado aos descendentes do carpinteiro de Rodes,
cantados e imortalizados na Sétima Olimpíada, de Píndaro95.
Uma vez em Olímpia, os adivinhos e Rhácio assistem à construção da cidade dos
jogos, que decorre à velocidade das mudanças de disposição de Hércules, ora porque não
permitem a sua participação nas olimpíadas, ora porque os construtores pretendem
permanecer na cidade e os organizadores não o desejam, ora porque sobre ele recai a
suspeita da autoria do rapto de Sícon. Todas estas situações, que colocam os organizadores

95
A Sétima Olimpíada é considerada, juntamente com a sexta, uma das mais belas obras de Píndaro. O herói
cantado, Diágoras, era detentor de uma estatura e vigor que lhe permitiram alcançar a vitória em quatro
jogos. A VII Olimpíada foi de tal forma considerada que terá sido gravada em letras de ouro no templo de
Atena, em Lindos. Cf. Pindare. Olympiques. Texte établi et traduit par Aimé Puech. Paris. Les Belles Lettres,
1970.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

– um rei, um gigante, um adivinho e um robusto cretense – numa situação confrangedora,


são solucionadas pelo menino-herói ou, em grande parte, devido à sua ajuda.
O elemento maravilhoso é introduzido quando o rio Alfeu sai do seu leito e vem
admoestar os homens pela perturbação do seu sossego e, durante um longo período de
tempo, lhes dirige uma dura repreensão. É possível encontrar nas suas palavras um lamento
pelos seus problemas pessoais, que o narrador deduz serem de carácter amoroso96.
Terminadas as obras de construção, começam a surgir os atletas e respectivas
comitivas e, em simultâneo, personagens que povoam a tradição literária grega e a
aproximam do universo ficcional da obra. É o caso de Teseu, Menelau, Agamémnon e
Pélops. Os reis de Esparta e de Micenas são impedidos de participar nos jogos e
aconselhados a guardar a sua perícia para a guerra. O comentário «Bem sabia como a
perícia lhes iria fazer falta» não passará despercebido a um leitor adulto, conhecedor dos
factos que motivaram a Guerra de Tróia e das consequências que dela advieram. A figura
de Pélops traz, de algum modo, à memória a de Cadmo, do primeiro volume desta
colecção. O rei de Pisa, velho, curvado e resmungão, não hesita em estabelecer
comparações com outros tempos, os da sua juventude e, claro está, ver apenas defeitos no
presente. Onde quer que vá, o poder curativo atribuído ao seu ombro97 gera grande
agitação à sua volta e em Olímpia isso vai tornar-se, uma vez mais, verdade. De resto, a
informação fornecida pelo narrador poderá ser entendida como uma pista para o desfecho
de uma das peripécias fulcrais da diegese: «De forma que a chegada de Pélops a qualquer
lado trazia sempre grande confusão» (vol.2, p.92).
O valor da amizade é, novamente, realçado no encontro entre Mopsos e Sícon, um
dos atletas mais conceituados e que será o protagonista de um acontecimento que porá em
risco a concretização dos jogos e em causa a paz olímpica, antes mesmo de ela se verificar.
Uma troca de olhares é suficiente para fazer nascer a afeição entre ambos. A diferença de
estatura é, novamente, imensa e o pequeno adivinho sente-se, desde logo, dedicado à causa
do gigantesco atleta, uma vez mais, um adulto.

O menino acenou para o atleta, chamando-lhe a atenção, e ele sorriu.

96
São diversas as lendas que falam acerca do amor de Alfeu por Ártemis e da resistência da deusa a esse
amor.
97
O narrador relata o mito segundo o qual Pélops havia sido cozinhado e servido num banquete, pelo próprio
pai, Tântalo. Todos os deuses se aperceberam do sucedido, excepto Deméter, que lhe devorou o ombro. Este,
no entanto, foi substituído por outro de marfim, que seria, posteriormente, exibido em Élis.

- 68 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Às vezes acontece que uma forte amizade nasça assim, ainda antes de as palavras nascerem.
O ar circula como um pombo com mensagem, ligando os que eram dois desconhecidos numa
disposição para se entenderem. O gigantesco Sícon nem sabia que o rapazinho era de um
sangue respeitado. Tomou-o pelo filho ou neto daquele homem que usava um avental de
carpinteiro e parecia tão habituado a transportá-lo às costas que dir-se-ia serem já um só
corpo e um só afecto. Mas parou, para olhar com simpatia.
E Mopsos, que gostava de olhos negros, olhos do sul como os da sua mãe e os do seu pai
adoptivo, sentiu-se desde logo dedicado à causa do atleta, ao seu triunfo.
(vol. 2, pp. 92-3)

De facto, o triunfo de Sícon e a sua própria participação nos jogos ficam


comprometidos quando é raptado. Este desaparecimento é pretexto para mais uma
confusão na cidade olímpica, para mais uma fúria de Hércules, já que, como mencionado,
vai ser considerado o principal suspeito, e para mais uma demonstração de maturidade e
coragem por parte do filho de Manto. O modo como Mopsos descobre Sícon, resultado de
uma espécie de cumplicidade com o rio Alfeu, permite vislumbrar uma faceta do dom de
adivinho que o menino ainda não detém em pleno, contrastando com o avô que não
encontra respostas para dar a todos quantos se lhe dirigem para saber pormenores sobre o
desaparecimento. Esta comunhão com o rio permite que «a criança verdadeira, o nosso
Mopsos» (vol. II, p.104) perca o medo que assola todos os outros perante a noite e os
enganos que, com ela, Artemísia, faz surgir. E com Diágoras, que se junta ao pequeno com
receio que algo lhe aconteça, Mopsos encontra Sícon. Também, neste episódio, chamado
Pélops à tenda dos organizadores para se justificar pela autoria do rapto do atleta, é o
menino que, unindo a ousadia à ingenuidade próprias da sua idade, enfrenta o velho rei,
quando nenhum dos adultos presentes se atreve a fazê-lo, e consegue que este confesse que
tentou boicotar os jogos por, também ele, ter prometido instituí-los e não o ter conseguido
fazer.
Ultrapassados os obstáculos, os jogos decorrem como desejado, garantida que está
a paz olímpica. O momento de apurar os vencedores reserva, afinal, uma surpresa. Não a
da vitória de Sícon, essa era esperada, mas a de um misterioso auriga, vindo de Esparta,
que o próprio rei desconhecia. Era um atleta que viera em representação de Helena e
Clitemnestra e assim, portanto, as mulheres tiveram, de certo modo, assegurada a sua
participação nos primeiros jogos.

- 69 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Sícon, depois de subir ao pódio, levantando a coroa na direcção da tribuna de


honra, dedica a sua vitória a Mopsos, o verdadeiro herói e o digno vencedor de Olímpia.
No último capítulo, tal como acontece em O Ouro de Delfos, é empreendida a
viagem de regresso, que possibilita o balanço dos acontecimentos. Rhácio defende, uma
vez mais, a participação das mulheres nos jogos e nas festas e Tirésias descansa-o,
profetizando que muitas alcançarão o seu lugar no pódio e, ironicamente, contrariando o
parecer do genro, dá a entender que a Helena e a Clitemnestra estarão reservados papéis
importantes na história da Grécia.
As alusões sucessivas que Mopsos vai fazendo à mãe, regra geral associadas à sua
ausência, bem como as saudades que tanto ele como Rhácio alegam sentir, levam o leitor a
aperceber-se que o próprio mundo do futuro adivinho é um mundo masculino, já que a mãe
vai apenas passando, distraída, pela sua vida. É, igualmente, e isso é ainda mais evidente
em A Coroa de Olímpia, um mundo adulto, já que Mopsos não contacta com nenhuma
outra criança e se vê obrigado a agir, não como seria de esperar em alguém da sua idade,
mas como um homem. As aventuras que Mopsos tem vivido, a grande responsabilidade e
maturidade que tem demonstrado parecem fazer parte de um estádio probatório da sua
condição de adivinho. Mopsos não é um menino vulgar, como é dito claramente no início
do primeiro volume da colecção, e as suas atitudes reflectem-no.
A projecção dos Jogos Olímpicos no futuro, portanto, a sua história, vai sendo
dada pelas visões de Tirésias. O adivinho vai aludindo à construção do templo de Zeus,
primeiro em madeira e depois em mármore, e que viria a ser considerada uma das Sete
Maravilhas do Mundo (vol.2, p.50); às sucessivas interrupções que as Olimpíadas vão
sofrer e respectivos recomeços (vol.2, pp.65-6, 75); à contagem dos anos tendo como
referência a realização dos jogos (vol.2, p.65); à vitória do atleta Diágoras, no pugilato, e à
sua imortalização pela ode de Píndaro (vol.2, p.66). As dúvidas que giram à volta dos
Jogos Olímpicos são exploradas com grande mestria por Hélia Correia e articulam-se, na
perfeição, com o universo ficcional da obra. A interrogação acerca do verdadeiro fundador
dos jogos é trabalhada de tal forma que, no final, os nomes que têm sido apontados pelos
estudiosos, mas sobre os quais não se chegou a nenhum consenso, continuam a alimentar a
dúvida: Hércules é inicialmente mencionado como o fundador dos jogos, posteriormente
Pélops surge lamentando não o ter feito antes do herói e Tirésias soluciona o problema:

- 70 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

- Com o passar dos tempos, os factos e as lendas vão acabar por confundir-se
uns com os outros. Ficarás com a fama de teres criado os jogos.
Hércules não achou graça à profecia:
- Então, e eu?
- Dir-se-á que os restauraste. O mérito é igual – explicou Tirésias.
- Tens a certeza?
- Tenho. Absoluta. Agora reanima-te, rei Pélops. O poeta dos jogos, Píndaro,
vai cantar-te daqui a muitos anos numa das suas odes.98(vol.2, p.126)

Introduz-se, ainda, a vontade dos três elementos da comitiva tebana de criar os


jogos, podendo estes ser entendidos como representantes de todos os outros nomes que a
tradição tem apontado.
A atenção do jovem leitor é captada pela alusão às origens de um evento que
mantém, ainda nos nossos dias, uma importância enorme e a ligação ao presente é feita
pela inclusão de elementos que esse mesmo leitor reconhece, como a chama olímpica
exibida na corrida inaugural (vol.2, p.75) ou a estátua de Zeus, que já mencionámos. A
referência ao prémio não acrescenta qualquer outro comentário, mas promove, certamente,
uma reflexão, até porque, graficamente, é marcada uma separação relativamente à acção
que se segue:

E o prémio cobiçado seria a coroa feita com a ramagem de uma oliveira


brava, desde então dita a “oliveira da bela coroa”.(…) Garantido é que o
kótinos, tão ambicionado por todos os atletas nos séculos vindouros,
constituiu desde sempre o prémio das Olimpíadas.
Ninguém ganhava mais do que isso, um pobre ramo de oliveira na testa. E
esse era o prémio mais desejado da antiguidade. (p.68-9)

A aproximação ao jovem leitor é conseguida, de igual forma, pela linguagem


utilizada, que, sendo facilmente entendida, mantém, em alguns casos, referências clássicas:

(…) Vá chorar para a terra dele. (…) Vão para o Hades os dois (…) (vol. 2, p.18)

98
Referência à Primeira Olimpíada, de Píndaro. A Décima Olimpíada faz referência a Hércules (10.43-59).
Alguns estudiosos argumentam que os jogos foram fundados por Héracles para celebrar o seu triunfo sobre
Augias; outros, contudo defendem que a sua origem se relaciona com Pélops e que Hércules os restaurou
após a vitória sobre o rei da Élide.

- 71 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

A referência mitológica a Mopsos, que constitui o pano de fundo da acção principal


da obra, serve de pretexto para a inserção de outras, de carácter sociológico, histórico,
linguístico e, inclusivamente, literário, mais ou menos explícitas.
Consideramos referências de carácter sociológico as que se prendem com alusões a
costumes, rituais, características distintivas de determinado povos, formas de ver e pensar
o mundo. Vejamos alguns exemplos.
Rácio é originário de Creta e, a propósito desta origem, são sugeridas algumas
características e costumes dos cretenses:

Viera de uma ilha muito a sul, de Creta onde, contava, as pessoas viviam em festa
permanente. As mulheres, como os homens, não tapavam o peito e até competiam nos jogos
acrobáticos. (vol. 1, p.9)

- E sou imprescindível para quê?


- És um cretense. Em Creta, há muito tempo que se organizam jogos, não é certo?
- Jogos? Sim. É o nosso passatempo. (vol.2, p.23)

A forma de pensar o mundo aparece plasmada em várias passagens. Uma delas


revela o papel atribuído às mulheres. Mopsos representa a visão mais comum, Rhácio a
mais vanguardista.

A seu ver, se as mulheres fossem aos jogos, mais não fariam do que atrapalhar. Imaginava-
as, no meio da corrida, a pararem para darem um jeito no cabelo ou, no meio da luta, a
examinarem a qualidade do vestido da rival.
- Achas que a tua mãe é inferior a qualquer homem que conheces? – perguntou Rhácio.
- Mas há diferença. A minha mãe é adivinha.
- Oh! Todas as mulheres são adivinhas. Sabem coisas que nem te passa pela cabeça. Vou
dizer-te um segredo muito sério: os gregos têm medo das mulheres.
- Excepto os cretenses.
- Sim, senhor. Excepto os cretenses. As mulheres participam em tudo lá em Creta. E a
rainha tem a mesma importância que o rei. E luxo igual. (vol. 2, p.45)

A propósito dos comportamentos das personagens, são identificados traços dos gregos.

Gregos e gritaria são sinónimos! Estão sempre a discutir por disparates! (vol. 2, p.83)

- 72 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Os Gregos davam muita importância à justiça, porém a injustiça estava por todo o lado.
(vol. 2, p.86)
Mas, ao contrário do costume em grupos gregos, não se escutava nem um som. (vol. 2, p.97)
A curiosidade não era brincadeira para a alma dos gregos. Tinham de ouvir lições
constantemente sobre as más consequências que ela trazia porque tendiam sempre a deixar-se
levar. (vol.2, p.110)

Menciona-se, também, a facilidade com que os gregos se moviam dentro do


chamado «mundo helénico».

Desde que alguém falasse grego e pertencesse ao grande espaço a que chamavam «mundo
helénico», sentir-se-ia em casa em qualquer das cidades. (vol. 1, p.11)

Este aspecto é novamente valorizado, quando, apesar de algumas diferenças de


pronúncia, em Delfos, os peregrinos de cada uma das cidades se conseguem entender.

Todos se percebiam sem esforço pois era a língua grega que os unia, mas a diversidade de
pronúncias e de termos que denunciavam uma região dava uma cor especial àqueles
encontros. Os da Lacónia falavam «axim». Os de Corinto praguejavam até mais não. Os de
Rodes faziam muitas vénias, à maneira dos povos do Oriente. (vol. 1, p.82)

Alude-se, igualmente, ao constante desagrado dos cidadãos com a procura


permanente dos adivinhos, apesar de isso ser benéfico para o seu negócio. Neste caso, a
utilização da forma verbal no presente do indicativo sugere a comparação com a
actualidade, aproximando o tempo da acção do universo referencial do leitor.

Porém os cidadãos, como é seu hábito, não podiam viver sem se queixarem.
(vol.1, p. 12) [sublinhado e negrito nossos]

São, ainda, dados a conhecer alguns rituais e costumes, ainda que as personagens
não os observem em rigor.

A adivinha Manto tinha herdado do pai, Tirésias, o seu dom. Mas dera um toque muito
feminino àquela espécie de trabalhos. Por exemplo, em lugar de matar animais para ler o
futuro nas entranhas, lançava flores à água e via o modo como elas deslizavam na corrente
(vol. 1, p.9).

- 73 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

A mãe de Mopsos, Manto, também tinha os dons da profecia. Mas usava-os de um modo
muito peculiar. Colhia flores nos prados e estudava-as. Parecia que só via bons augúrios.
Era, aliás uma mulher tão bela que quem a procurava , só de olhá-la, via afastarem-se os
temores pelo futuro. (vol. 2., p.10)

A propósito da despedida do menino e do avô na partida para Delfos, é mencionado


o gosto pelas festividades que os Gregos partilhavam.

Apesar de tão novo, ele assistira a um sem número de festividades pois parecia que para
aquela gente tudo servia de pretexto para folgar. Eram as sementeiras e as colheitas, e a
prova do vinho, e a chegada de um visitante ilustre, e os agradecimentos a um deus, e o
nascimento de um primeiro filho, e uma expedição que triunfava; era porque chovia e
porque havia sol, porque uma deusa, disfarçada de velhinha, tinha pedido abrigo no
palácio99, porque os rebanhos se multiplicavam, porque o rei se curara de uma unha
encravada, por isto, por aquilo, por aqueloutro. (vol. 1, p.21)

O medo do desconhecido é, ainda, realçado:

Sentindo o dia declinar, estremecia. Eram muito valentes, aqueles gregos, porém temiam o
desconhecido como se não passassem de crianças. (vol. 2, p.104)

De forma subtil surgem, também, referências à educação grega:

-Vejam só! Um menino tão pequeno! Ainda deve morar com as mulheres! (vol. 1, p.26)
Mopsos não se calaria, por muito boa educação que o escravo-preceptor lhe tivesse dado.
(vol. 1, p.29)
Ao fazer oito anos, haviam-no mudado para os aposentos masculinos e ele achava que devia
sentir-se como um homem. (vol. 2, p.45)

E, ainda que de forma não muito desenvolvida, alguns aspectos da caracterização


das personagens ajudam a perceber a própria indumentária típica da condição social a que
pertencem:

99
Referência a Deméter, que, quando vagueava procurando a filha, após o rapto, pediu abrigo em casa de
Celeo e Metanira, em Elêusis, disfarçada de uma velha mulher.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Vestia de amarelo, a Pitonisa, como todas as damas importantes. (vol.1,p.102)

Aquele que avançava era tão novo que a túnica lhe dava ainda pelos joelhos, como sinal da
sua condição infantil. (vol. 1, p.116)

Há ainda a referência à forma como era consumido o vinho:

O facto é que Tirésias riu de novo. Por um instante, o neto suspeitou que ele tivesse tomado
vinho puro. O vinho puro era tão espesso e forte que os Gregos raramente o bebiam assim.
Misturavam-no sempre com água em vasos próprios. (vol. 1, p.30)

A acção principal do primeiro volume desenrola-se, como já referimos, em Delfos,


o que permite alguns apontamentos de carácter geográfico e religioso, mas motiva, de igual
modo, um excurso histórico.

… Com o templo de Apolo e a sua Pitonisa, Delfos era o lugar mais sagrado do mundo. (vol.
1, p.13)

…as Fedríades eram os rochedos que ele avistava abaixo dos cumes do Parnaso. (…) esse
seria o nome das encostas que o obrigavam a pestanejar. Pareciam cascatas gigantescas que
um sopro houvesse solidificado. (vol. 1, pp.45-46)

…Muitos anos depois, mais de dez séculos, Delfos atingiria o ponto máximo de riqueza e
esplendor. As cidades da Grécia ofereceriam tanto ouro ao santuário que passaram a
construir enormes cofres fortes onde guardavam a fortuna acumulada para evitar os surtos
dos ladrões. (…) No entanto, no tempo de Mopsos e Tirésias, a grandiosidade do lugar já
superava de bem longe a de qualquer outro, deve dizer-se que até mesmo a do santuário de
Dodona onde Zeus oferecia o seu oráculo de carvalhos falantes.100 (vol. 1, pp.47-8)

As menções de carácter linguístico a que fizemos alusão dizem respeito, sobretudo,


à etimologia de alguns substantivos, como acontece com o tholos de Atena Pronaia,
Pitonisa ou Filipa, como já referimos. O narrador explica que a designação Pronaia se deve
ao facto de ser o primeiro monumento visível para os viajantes e que um tholos «é um
monumento circular cheio de labirintos subterrâneos» (vol.1, p.50). Motivada pela

100
V. nota 31.

- 75 -
A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

explicitação do termo Pitonisa, surge a referência mítica a Apolo, nomeadamente à sua


vitória sobre a serpente Píton.101 Já anteriormente se havia referido o país dos Hiperbóreos,
local que acolheu Apolo, até ao regresso à Grécia e à sua chegada a Delfos, no Verão. No
segundo volume, explica-se o sentido da palavra Altis, são explicados os termos dromos e
kótinos e clarificada a etimologia de Peloponeso.
As citações mitológicas vão além das que concernem a Mopsos e à sua família,
dando a conhecer, no primeiro volume, episódios relacionados com o surgimento, graças a
Cadmo, de uma nova raça a partir do lançamento à terra dos dentes do dragão; com as
circunstâncias do nascimento de Dioniso; com a Esfinge; com Pégaso e com as
infidelidades de Zeus.
Quando Tirésias e o neto partem de Tebas, há uma espécie de cerimónia de
despedida, à qual preside o rei Cadmo, cuja vaidade o faz repetir incessantemente o
episódio da sementeira dos dentes do dragão, que abatera, que fez nascer da terra homens
armados. O tratamento desta personagem concede ao texto alguns traços de humor:

Vinha à frente o rei Cadmo, sempre muito vaidoso – pois, ao que se dizia, e ele nunca se
fazia rogado em recordá-lo, fora quem dera vida à nova humanidade (...) Abatera um dragão
e lançara os seus dentes para trás, sobre o caminho. Como se se tratasse de sementes, deles
fizeram Cadmo e a mulher nascer a nova raça – que afinal, exclamava ele quando acordava
de mau humor, o que frequentemente acontecia, era ingrata e velhaca como a antiga. Os
homens, e os Gregos, e os Tebanos, andavam a pedir outro dilúvio, gritava o rei. Que
haviam de afogar-se e ele a rir, e a não salvar ninguém, e a recusar-se a semear de novo.
Não lhe passava pela cabeça sem cabelos que ele seria dos primeiros a morrer, porque era
muito, muito pequenino. De facto, tinha tanta idade que o esqueleto mirrara mais do que o
normal (…) e o deixara do tamanho de um anão. (…) visto ao longe, pareceria um bicho,
alguma espécie de cabrito magoado. (…) Quatro criados transportavam o andor e não
deixavam de sorrir ao constatarem que um grande rei pesava menos que um cãozinho. (…)
Estes gritavam: «Aqui vai o grande Cadmo!» E toda a gente achava muita graça. (vol. 1, pp.
18-19).102

Ainda a propósito deste rei, surge a menção ao deus Dioniso, que Cadmo,
orgulhosamente, repete ser seu neto, e às circunstâncias do seu nascimento. O deus é

101
Na antiguidade, estas referências surgem, por exemplo, em Apolodoro, Biblioteca., I, 4,1 e ss.
102
Cf. Aludimos, já, aos traços comuns entre Cadmo, no primeiro volume, e Pélops, no segundo.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

apontado como fruto da união entre Sémele e Zeus, que se envolveu com a princesa sob a
forma de uma luz (vol. 1, p.19-20).103
Numa obra de literatura infanto-juvenil parece-nos original a visão que a
personagem principal possui da figura da Esfinge, o monstro feminino devorador de seres
humanos.

(…) Queres saber da Esfinge? (…)


- Então, avô! Da Esfinge todos sabem. (…)
- Todos sabem o quê?
- Que é um papão. (…)
- Come pessoas. E em especial crianças desobedientes. (…)
Concentrou-se na ideia que fazia da Esfinge, igual à de qualquer rapazinho tebano com
alguma tendência para ser irrequieto. As amas descreviam aquele monstro- -fêmea e
pareciam pôr nisso um gosto pessoal, de tal maneira que se demoravam nos pormenores e
enchiam a boca de saliva, enquanto os olhos, muito perto do rosto das crianças, se
entortavam de modo assustador. (…) todos tremiam a bom tremer só de escutarem a palavra
esfinge – excepto, como já vimos, as amas das crianças a quem a Esfinge dava uma ajuda
apreciável. «A Esfinge vem e leva-te com ela», sussurravam, «aos trambolhões para o cimo
do rochedo.» Os rapazes fugiam para os cantos e elas encurralavam-nos, até que eles
ficavam tão chorosos, tão sem forças, que iam como cordeiros para a cama. (vol. 1, pp. 31 –
33)

Surge, ainda, a oportunidade de aludir à infidelidade de Zeus.

- Dizem que os cegos têm ouvido apurado. Eu ouvi Zeus, o rei dos deuses, a zangar--se.
Aliás, quando se zanga, ele grita a bom gritar. Não tarda muito que dispare raios e trovões.
- E zangou-se com quem?
- Com a mulher. Zanga-se quase sempre com a mulher. Hera não lhe consente certas coisas.
É um casal muito moderno, aquele. (vol. 1, p.39)

Mas Zeus tem sempre muito que fazer…


- Arranjar namoradas… – disse Rhácio.
- E fugir das fúrias da mulher – concluiu o sogro. (vol. 2, p.37)

103
As referências à ascendência de Dioniso surgem na Teogonia, de Hesíodo (vv. 935 e ss.).

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

No primeiro volume, a propósito da chegada a Delfos (vol. 1, p.44), é mencionado


Pégaso, o cavalo alado, referência motivada pela visão do Parnaso, monte cuja fama é
comparada à do Olimpo.
No segundo volume, a dúvida, levantada por Tirésias, relativa à autoria da ideia de
instituir os jogos, serve de pretexto para se narrar a vitória de Zeus sobre Kronos (vol. 2,
p.35 ss). A alusão permite enfatizar o amor existente entre Rhácio e Mopsos por oposição
aos sentimentos de Urano, Kronos e Zeus. A relação pouco fraterna entre Posídon e o
irmão é também mencionada, quando Rhácio julga que a destruição da tenda, causada pela
fúria de Hércules, teria sido originada por um terramoto provocado por Posídon, invejoso
pelas honrarias dedicadas a Zeus.
Motivado pela chama olímpica, que Hércules segura na cerimónia de abertura dos
jogos, é mencionado o mito de Prometeu: o roubo do fogo dos deuses, o tormento que Zeus
lhe inflige e a sua libertação por Hércules104. Como justificação para o filho de Jápeto não
estar presente nos jogos são apontados «problemas de família». Um leitor familiarizado
com a cultura grega lembrar-se-á, de imediato, do mito de Pandora e da inconsequência de
Epimeteu ao receber um presente dos deuses, apesar das advertências do irmão.105
Numa colecção onde se concede inequívoco destaque expressivo à narração, o leitor
é brindado com os passos descritivos verdadeiramente poéticos, de entre os quais
respigamos apenas um exemplo:

Afastou-se com Mopsos para as margens do Alfeu. De tão feliz com a visita do idoso
mago, o rio encheu as águas de um brilho encantador e pôs as suas ninfas a cantar. O
menino avistava as cabeleiras de prata, onduladas, quando as pequenas deusas vinham à
superfície. Elas cantavam muito docemente, com as suas gargantas de cristal. (…) As flores
dos prados que ainda resistiam ao verão deitavam um tapete apetecível pela encosta do
Kronos. E, sobre elas, pairavam as abelhas douradas, com as patinhas peludas carregadas
de pólen. Mais distante, a brancura dos carneiros também merecia a gratidão dos homens a

104
Em Teogonia, de Hesíodo, ficamos a saber que Prometeu será libertado do seu tormento por Hércules, ao
que Zeus não se oporá, para não ser obstáculo à glória do seu próprio filho.
Reverente ele honrou o insigne filho,
Apesar da cólera, pôs fim ao rancor que retinha /
de quem desafiou os desígnios do pujante Cronida. (vv.532-534).
Utilizámos, para este fragmento, a tradução de J. Torrano. Cf. Hesíodo. Teogonia A origem dos deuses.
Estudo e Tradução JAA Torrano. São Paulo, Iluminuras, 1995.
105
Os mitos de Prometeu e de Pandora têm inspirado a literatura ao longo dos tempos. Na época de Hesíodo
eles estariam já fixados pela tradição, mas apareciam isolados. Apresentá-los relacionados e dependentes um
do outro, quer na Teogonia quer em Trabalhos e Dias, constitui uma originalidade do poeta de Ascra. (Cf.
Hesíodo, Teogonia, vv. 536 - 616 e Trabalhos e Dias, vv. 42 -105)

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

quem oferecia o leite e a lã. (…) O se bastão azul deitou tal luz que parecia conter, em si, um
rio inteiro. Então, as próprias ninfas se calaram e o Alfeu deitou-se-lhe aos pés, como um
cãozinho. (vol.2, pp.64-5)106

Pela boca de Tirésias são reproduzidas algumas frases, de carácter gnómico, que
podem motivar uma reflexão, porque são sempre acompanhadas de atitudes ou pedidos de
explicação de Mopsos, o que permite intuir o carácter formativo ou pedagógico da
literatura infanto-juvenil. Vejamos alguns exemplos presentes em O Ouro de Delfos.
Quando o rapaz ganha um orgulho desmesurado por considerar que os viajantes o acharam
uma pessoa importante, ergue de tal forma a cabeça que provoca a queda do seu chapéu, o
que o faz atrasar o passo em relação ao avô. Este censura a sua vaidade, dizendo que «o
nariz empinado desequilibra tanto como uma bebedeira» (vol. 1, p.29). Ainda a propósito
deste encontro, o rapaz questiona a necessidade de o avô saber da boca de Icário como este
tinha enganado a Esfinge, dado Tirésias ser um eminente adivinho. A resposta possui
também um tom sentencioso: «Só ver em nada se compara com o que ouvimos da boca de
um amigo» (vol. 1, p.35). Quando Mopsos acha estranho que as amas assustem os rapazes
falando-lhes do monstro devorador de viajantes, dado que não havia conhecimento da sua
entrada em Tebas, o avô profere a seguinte frase: «Não existe nada mais poderoso que as
palavras» (vol. 1, p.34). «Aqueles que querem conhecer conhecem» (vol. 1, p.44) é a
resposta impaciente que o rapaz ouve, quando o avô se mostra cansado com as sucessivas
questões que aquele lhe coloca.
Acerca da função pedagógica da literatura para a infância, Manuel Breda
Simões107 defendeu que

A função da literatura infantil é (ou deverá ser) predominantemente formativa, e a


informação que, acaso, dela resulte não poderá desligar-se da função que lhe é própria. E
essa função – que se não compadece com qualquer forma de didactismo – é a de criar,
progressivamente, na criança e no jovem, o sentimento do belo, do autêntico e do humano.

106
Muitos outros passos da obra reavivam os vários domínios da cultura grega e outros exemplos poderiam
comprovar os vários aspectos que realçámos. Por razões de economia expositiva, escusamo-nos, no entanto, a
citar, exaustivamente, cada um deles.
107
Manuel Breda Simões, Função Formativa das Literaturas Infantil e Juvenil, Lisboa, Secretaria de Estado
da Juventude e Desportos, 1978, p.11

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

De acordo com estas reflexões, esta literatura deve evitar ensinar de forma directa
e intencional, levando o seu leitor a reflectir sobre os valores ou pensamentos veiculados.
Maria Madalena Teixeira da Silva108, ponderando o estatuto e natureza da literatura
infantil, defende que a diferença de experiências, interesses, conhecimentos e gostos das
crianças em relação aos adultos (que criam essa literatura) gera obras com um pendor
excessivamente pedagógico em detrimento do seu aspecto artístico.
Sintomaticamente, a própria autora da colecção afasta qualquer propósito
pedagógico nesta narrativa.

Como podia eu servir-me dele para fazer passar uma mensagem, ainda que fosse
pedagógica? Não, um livro não é um pombo-correio, não tem de levar nada na anilha.
(…) A sua natureza de nobre não admite que lhe adscrevam missões. Não nutro a intenção
de ensinar nada, a não ser que se chame ensinar a dar a mão e a fazer perder o medo para o
voo. (…) Não gosto da atitude de quem detém alguma espécie de saber e o impõe com
arrogância e caridade, o que não é senão a mesma coisa.109

Quem lida directamente com crianças sabe como são avessas a que lhes imponham
de modo coercivo pontos de vista ou informação que não considerem relevante. O
protagonista da obra que temos vindo a analisar, em três momentos, transmite exactamente
essa ideia:

Mopsos pensou que não havia nada que ele [o avô] não aproveitasse para se armar em
parvo e dar grandes lições. O rapaz estava realmente aborrecido. (vol. 1, p.29)
e
Afinal, apesar de reclamar, o avô precisava das perguntas que o neto lhe fazia.
Sem perguntas, acabava por ter de avançar explicações como se fosse realmente uma tarefa
de que alguém o tivesse encarregado. E mais parecia um professor daqueles que, não
querendo ser acusados de negligência, ensinam tudo aquilo que têm de ensinar, ainda que os
alunos os não ouçam. Dizem as suas frases muito certas, ansiosos por chegarem a um ponto
final. (vol. 1, p.49)
ou ainda

108
Maria Madalena Marcos Carlos Teixeira da Silva, O novo rosto do paraíso. Diálogos com a infância,
Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 2004, pp.35-36.
109
V. nota 76.

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Ora, uma criança não tem grande paciência para as filosofias ocultas dos adultos que aliás
transportam sempre em si uma vontade de dar lições de vida tarde ou cedo. (vol. 1, p58)110

Estamos certos que o leitor sorrirá, mais uma vez, partilhando o pensamento de
Mopsos.

Maria Madalena Teixeira da Silva111 discutiu a especificidade da literatura infanto-


-juvenil, salientando a necessidade de evitar a sua «infantilização».

… cada vez se torna mais evidente a necessidade de abrir a literatura para crianças aos
novos caminhos de toda a literatura, respeitando a sua especificidade, mas aproveitando as
novas possibilidades expressivas capazes de renovar e criar uma literatura cujo valor não
tenha que ser medido por uma bitola separada.

É nossa opinião que a autora desta colecção conseguiu conciliar aquelas que são as
exigências e características específicas da literatura vocacionada para esta faixa etária com
as características da literatura para adultos, construindo um texto que, sendo simples, não é
simplista (nem no tema, nem, inclusivamente, na linguagem utilizada); que, podendo
exercer uma função pedagógica, não abdica do seu teor artístico; que, promovendo a
evasão, leva o leitor, à semelhança do protagonista, a ponderar e a vencer os seus próprios
obstáculos.
Atravessa Mopsos, o pequeno Grego, uma vasta quantidade de personagens e
episódios da mitologia grega que, trazidos até ao presente, dão ao leitor uma ideia do
passado, nas suas crenças e formas de ver e de estar no mundo, e possibilitam uma reflexão
sobre o futuro. Hélia Correia ousou, nesta colecção, criar um universo ficcional que,
motivando a meditação sobre valores como a amizade, o amor familiar e o respeito por
diferentes idades e culturas, perpetua e reutiliza a herança clássica na nossa literatura. O
velho Tirésias acentua esta ideia na sua imensa sabedoria: «As palavras duram mais do que
as coisas e, por vezes, fazem durar as coisas» (vol.1, p.53). Ele foi o maior adivinho «de
todos os que os Gregos conheceram»; Hélia Correia escutou-o.
110
Em A Coroa de Olímpia, o rio Alfeu, envergonhado com a atitude tão infantil que tomara perante uma
criança, decide fazê-lo: «… Se tinha de lidar a bem com um rapazinho, o melhor era dar-lhe uma lição de
vida, filosofava Alfeu.». (vol.2, p.86)
111
Op. cit., p.15

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Mopsos, o Pequeno Grego encontramos a estrutura Mistério – Aventura –


Solução típica de outras colecções para a infância e juventude, como Uma Aventura e
Viagens no Tempo, de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada ou Triângulo Jota, de Álvaro
Magalhães, que, como já referimos, obtiveram, por parte do público jovem, uma grande
aceitação. Em História dos Argonautas, inserida em Contos Gregos, como em Ulisses e
em As (quase) Verdadeiras Aventuras de Hércules, apesar de o elemento mistério não estar
tão desenvolvido, está presente o outro ingrediente fundamental na literatura para os mais
jovens: a aventura.
No texto de Adriana Freire Nogueira a narração é claramente aberta já que, no
primeiro volume, são anunciados doze trabalhos e apenas quatro são desenvolvidos; no
segundo volume, como notámos, fica no ar a promessa de vingança de Euristeu.
O dinamismo da acção, o mistério, a aventura, a emoção presentes nestas obras são,
pois, algumas das características que cativam a atenção do público jovem, porque este
encontra reflectidas, no texto, as suas próprias características psicológicas: estados de
espírito inconstantes, ânsia de emoções, mudança rápida de ideias, ritmo interior
acelerado112. Ainda assim, os elementos fantásticos devem ser verosímeis, daí que a
caracterização dos heróis das aventuras que analisámos tenha reforçado o seu lado
humano, quer através dos gestos e pensamentos dos protagonistas, quer através da
desculpabilização dos erros feita pela voz do respectivo narrador. À personagem de
Hércules nas várias obras que a ela se referem servem perfeitamente as seguintes
considerações:

Os heróis dos romances são dotados de todas as virtudes; procuram ultrapassar-se no plano
individual, ao mesmo tempo que permanecem diligentemente subordinados à sociedade. O
herói não é um revoltado, mas um grande conformista, munido de coragem e ingenuidade
(…)113

112
Cf. Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, Os Jovens e a leitura nas vésperas do século XXI, Lisboa,
Editorial Caminho, 1994, p.44
113
Laurence Simon, «A criação Literária em França e noutros países e a sua evolução através dos romances
para adolescentes», in AAVV, Do Dragão ao Pai Natal – Olhares sobre a Literatura para a Infância, Porto,
Campo das Letras Editores, 1999, p.28

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

Esta sujeição à sociedade aproxima-o do público mais jovem, dependente, ainda, dos
adultos.

Como salientámos na análise individual de cada obra, foram suprimidos episódios


ou aspectos da caracterização das personagens que pudessem ser mal interpretados ou
incompreendidos pelo leitor mais jovem por irem contra os seus valores. No relato das
aventuras de Jasão, como sublinhámos, não é feita referência à morte do irmão de Medeia,
por poder colocar em causa o carácter dos protagonistas, que até aí tinham sido vítimas de
injustiças. A omissão desta parte do mito, que, de resto, não é consensual, evitou que eles
próprios estivessem na origem de actos injustos e hediondos. Ulisses, destinado a um
público infantil, omitiu todas as cenas de índole erótica, em especial aquelas que poderiam
pôr em causa a fidelidade do herói. Do mesmo modo, à violência na morte dos
pretendentes não é dado o destaque da Odisseia. Na narração das aventuras de Hércules,
dedicada a um público jovem, a atracção entre o herói e Hipólita não é omitida, pelo
contrário, é explorada pela própria ilustração (vol.2, p.71).
De certo modo, o mais resoluto afastamento do pré-texto clássico original e o
maior investimento criativo parecem aligeirar o fardo pedagógico de alguma desta
literatura, criando um universo seguramente mais atraente para o jovem leitor. Este é o
caso das obras de Hélia Correia que amenizou a componente informativa e referencial por
meio da recriação ficcional.
As várias obras que estudámos têm em comum o facto, como fomos salientando,
de permitirem vislumbrar alguns valores da sociedade helénica, como o respeito pelos
deuses, o cumprimento dos deveres religiosos, o dever da observância das leis da xeniva, o
respeito pelos mais velhos, entre outros. Une-as, também, a preocupação de não
simplificar em demasia quer a linguagem, quer o tema, infantilizando-os.
Como Esther de Lemos consideramos que é necessário apostar cada vez mais na
literatura para a infância e juventude, reclamando, junto com o público destas faixas
etárias, uma cada vez maior qualidade, porque

(…) a grande obra literária infantil, com efeito, é aquela em cujo estilo não há
qualquer torção sensível nem sombra de artificialidade: e que, mesmo quando num passo ou
noutro obriga a criança a perguntar o significado de uma palavra ou imagem, consegue

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despertá-la ou encantá-la sem pactuar de antemão com uma suposta ignorância, pieguice
114
ou debilidade de espírito.

Quanto à finalidade pedagógica da literatura para estas idades, consideramos que o


leitor acaba sempre por apre(e)nder alguma coisa de cada leitura, ainda que esse não seja o
objectivo do autor e ainda que o faça inconscientemente. Esse conhecimento, seja do
mundo, do ser humano ou de si próprio, pode não ser adquirido na primeira leitura ou
através de qualquer leitura de determinada obra. Ele pode ir sendo construído leitura após
leitura do mesmo livro ou na interacção com outras obras, pelo confronto de situações ou
de ideias veiculadas. Tantas vezes são as leituras da infância que deixam um legado para a
vida adulta e que fazem o adulto reflectir. A criança reterá a história narrada e fixará a sua
atenção nos acontecimentos, um adulto formulará os seus próprios juízos, aceitando ou
refutando os que são transmitidos pelo texto.
Quantas vezes se aprende tanto com aquilo que se lê, ou devora, por puro prazer,
por simples entretenimento e, que, por isso, fica retido na memória, à qual se poderá
recorrer sempre e quando se quiser.
Este estudo permitiu-nos confirmar que a Antiguidade Clássica, tantos séculos
volvidos, tantas transformações sofridas pela sociedade, continua a fornecer um manancial
inesgotável de temas, que dão a conhecer aos mais novos os ideais humanistas e os
alicerces da nossa cultura.

114
Lemos, Esther de, A Literatura Infantil em Portugal, Lisboa, M.E.N., 1972, p.29

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

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A Cultura Grega na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude

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