O Olhar de Pepetela Sobre Angola
O Olhar de Pepetela Sobre Angola
O Olhar de Pepetela Sobre Angola
João Pessoa – PB
2007
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João Pessoa – PB
2007
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BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Profª. Drª Elisalva de Fátima Madruga Dantas
Orientadora (Universidade Federal da Paraíba)
___________________________________________
Prof. Dr. Élio Chaves Flores
Membro (Universidade Federal da Paraíba)
___________________________________________
Profª. Drª. Liane Schneider
Membro (Universidade Federal da Paraíba)
_________________________________________
Profª Francisca Zuleide Duarte de Souza
Membro (Universidade Estadual da Paraíba)
_____________________________________________
Profª Maria Gabriela Cardoso Fernandes Costa
Membro (Universidade Federal de Alagoas)
______________________________________________
Prof. Dr. Milton Marques Júnior
Suplente (Universidade Federal da Paraíba)
_______________________________________________
Prof. Dr. Francisco Roberto de Pontes Medeiros
Suplente (Universidade Federal do Ceará)
5
AGRADECIMENTOS
Em especial:
À Profª Drª Elisalva de Fátima Madruga Dantas, orientadora, pela amizade, pelo incentivo,
pela segurança na orientação;
Às Profªs. Dras. Zuleide Duarte e Geralda Medeiros pelo valioso apoio bibliográfico;
Aos Profs. Drs. Élio Chaves Flores e Liane Schneider pelas sugestões feitas por ocasião do
exame de qualificação.
À amiga Dra. Maria do Socorro Rosas pela leitura atenta e pela discussão desse trabalho;
Aos amigos Francinete, Haroldo, Marilene, Dra. Marluce, Moama Lorena e Raquel pela
paciência em me ouvirem meses a fio a falar sobre esta pesquisa;
.À amiga Hannelore pela maneira como me acolheu durante minha passagem por Lisboa;
Aos ex-alunos com quem ao longo dos anos de magistério muito aprendi.
7
RESUMO
ABSTRACT
This research concernes to the corresponding aspect between fiction and reality in
Angolan writer Pepetela’s following books: Lueji - O nascimento de um império; A
gloriosa família – No tempo dos flamengos; A geração da utopia and Predadores, in which
was considered the synthesis among past and present integrating the most important events
of Angola and its people, and its importance in the thematic covered by the author: from
myth to history; from utopia to distopia and the bonds of hope. Beginning by the
investigated not only the Angolan identity elements but, overall, since a esthetic work was
made in this reality representation, privileging the acts of the characters and the way the
narrator puts himself in front of what is being narrated, capting the ideology and
approaching fiction and reality conscious that the text is the study generation.
RESUMEN
No sentido de facilitar a indicação das freqüentes fontes das citações nesta pesquisa,
adotamos as seguintes abreviaturas:
P – O Príncipe
L – Lueji - O nascimento de um império
AGF – A gloriosa família - No tempo dos flamengos
AGU – A geração da utopia
Pr – Predadores.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 13
1 – COORDENADAS SÓCIO-CULTURAIS.............................................................. 23
1.1 Das sociedades pré-capitalistas às sociedades capitalistas..........................................24
1.2 Angola em busca de referências..................................................................................30
1.2.1 Referências históricas...............................................................................................31
1.2.1.1 A formação do povo angolano...............................................................................31
1.2.1.2 A organização social. Estados e Impérios............................................................. 32
1.2.1.3 O colonialismo em Angola.....................................................................................37
1.2.2 Referências artístico-culturais...................................................................................48
1.2.3 Referências literárias.................................................................................................50
2 – DO MITO À HISTÓRIA.................................................................................. 56
2.1 Lueji - O nascimento de um império............................................................................56
2.1.1 O enredo....................................................................................................................56
2.1.2 Lueji – O mito historicizado......................................................................................57
2.1.2.1 A personagem como mito.......................................................................................57
2.1.2.2 O narrador como mitólogo......................................................................................69
2.1.2.2.1 No passado, sob o olhar de Maquiavel.................................................................70
2.1.2.2.2 No presente-futuro, o aproveitamento das idéias de Marx...................................91
2.2 A gloriosa família – No tempo dos flamengos .............................................................. 98
2.2.1 O fundo histórico do romance: a escravidão negra e o domínio
holandês em Angola..................................................................................................99
2.2.2 Da História à ficção...................................................................................................103
2.2.2.1 Personagens da ficção: a família Van Dum............................................................112
2.2.2.2 Outras personagens em trânsito da História para a ficção......................................119
2.2.2.3 O narrador como personagem.................................................................................122
2.2.2.4 Outros escravos.......................................................................................................124
2.2.2.5 Mulheres guerreiras............................................................................................... 127
13
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................192
BIBLIOGRAFIA......................................................................................................... 197
14
INTRODUÇÃO
Agostinho Neto
melhor alternativa. Com os vestígios do passado recriado pela memória, história e ficção
projetam o passado no futuro para corrigir o futuro.
Assim, quanto mais alargamos a nossos olhos o universo representado nas obras de
Pepetela, mais está presente a história do seu povo que, elaborada intelectualmente, revela o
trabalho de reconstrução que teve a memória e a imaginação juntas como costuma
acontecer com a ficção e principalmente em tempos pós-modernos com a narrativa pós-
colonial, de modo que podemos afirmar: a história sempre caminhou junto com a ficção.
Daí estudiosos como White (1992, p. 22) afirmarem que “a diferença entre “história” e
“ficção” reside no fato de que o historiador “acha” as suas estórias, ao passo que o
ficcionista “inventa” as suas.”
Nos nossos dias, a ficção dialoga criticamente com a história não mais como
verdade, mas como cultura e tradição, na busca de recuperar o imaginário e as tradições
populares de uma comunidade, para depois, no trabalho de elaboração estética, dar vida e
forma diferente a esses valores, afastando-se assim, da história oficial, dando voz aos que
foram por ela silenciados ou marginalizados e aproximando-se dos mitos primordiais
degradados (cf. Esteves, p. 127-128). Nesse processo de construção, os liames entre ficção
e história estão cada vez mais tênues e é comum o narrador tecer comentário ao próprio
processo de criação.
No estudo das relações da história com a ficção, a historiadora Sandra Jatahy
Pesavento, no ensaio História & literatura: uma velha-nova história faz destacar a
importância do imaginário através do qual recuperam-se novas formas de ver, sentir e
expressar o real dos tempos passados, quer de modo racional e conceitual, extrapolando as
percepções sensíveis da realidade concreta (conhecimento científico), quer sistematizando,
dando coerência e legitimidade ao não-vivido, ao não-experimentado e tornando-o mais
real, mais concreto (conhecimento sensível). Entretanto, em qualquer das duas visões, o
imaginário é um sistema de representações do mundo que tem a realidade como referente.
Para essa estudiosa, é assim que a literatura dialoga com a história. Ambas são narrativas e
ambas existem através do discurso, mas são formas diferentes de dizer o real: a literatura
diz respeito ao discurso do imaginado e a história ao discurso baseado no real. Os
personagens e fatos da história não são criados. No trabalho de pesquisa que antecede a
criação do texto histórico, o historiador, às vezes, chega a tirar do esquecimento alguma
16
história, um único mundo paralelo ao mundo real, completando e esclarecendo este último”
(BUTOR, 1974, p. 206). Na linguagem e no modo do discurso, inter-relacionados,
momentos privilegiados da História de Angola serão trazidos à tona, transfigurados.
O segundo e terceiro capítulos tratam da análise das obras. No segundo capítulo que
intitulamos do “Mito à História”, começamos por Lueji - O nascimento de um império, sem
esquecer de que o autor, mesmo tratando de um mito, dispôs de liberdade para alterá-lo,
possibilitando-nos, inclusive, submeter à análise da realidade de que trata o romance, do
ponto de vista político-social, a dois olhares distintos: ontem (no começo) sob o olhar de
Maquiavel, em situação “real”. Não que tenhamos uma prova documental de que Pepetela
quis reconstruir o mito de Lueji à luz do pensamento maquiaveliano, pois estaríamos
correndo o risco de um anacronismo, mas como forma de mostrar que, no que diz respeito à
orientação e ao modo de agir em determinadas ocasiões da personagem Lueji, quando
sucedeu ao pai como rainha do Império da Lunda, o narrador trabalhou com idéias
maquiavelianas, assim como o próprio Maquiavel que trouxe para os seus textos a
experiência da história como fundamento de seus conselhos ao Príncipe; hoje-amanhã (pós-
colonialismo; pós-guerra) sob o olhar de Marx. Aliás, idéias de Maquiqvel e Marx, a nosso
ver, permeiam as obras selecionadas para objeto desse estudo. Justificamos a inclusão
destes pensadores tão profundamente diferentes em nossas reflexões, especialmente nessa
obra, pela própria “realidade” ali transfigurada: o primeiro, por referência ao início da
construção do Império da Lunda, em cumplicidade com Raymond Aron (1999, XII), pois,
segundo ele, “todos os Estados nasceram da violência e, por conseguinte, os fundadores de
Estados, os que erguem ou reerguem esses frágeis monumentos – as cidades humanas –
estão condenados à violência.” O segundo, quando no curso da história da Lunda o antigo
sistema já não mais existe, o que há são homens que vão aos poucos tomando consciência
de que são construtores e guardiões de sua própria história e da história do seu país.
E para destacar o papel do homem frente à história, recorremos a Marx e Engels,
que na primeira parte de A sagrada família, dizem:
A história não faz nada, “não possui uma riqueza enorme”, “não combate”! É, pelo
contrário, o homem, o homem real e vivo que faz tudo isso e luta nesses combates; não é
certamente a “história” que se serve dos homens como um meio de se realizar – como se
fosse uma entidade à parte - os seus próprios fins; ela é apenas a atividade do homem
que prossegue os seus fins. (p. 140; grifos do autor)
20
Nesse trecho fica claro que, para Marx, o fundamento da história é o homem,
espécie natural que visa a atingir suas metas, e que através de sua atividade humana
prossegue o desenvolvimento da história.
Na busca de uma melhor compreensão da dimensão histórica na obra de Pepetela,
não podemos esquecer que ela também é, em parte, conseqüência de uma consciência
dialética que o homem-escritor Pepetela, ex-guerrilheiro, sociólogo de formação, faz lançar
no texto, a fim de reconstruir sua própria visão da História de Angola, a partir dos
condicionamentos entre as instituições políticas e dos modos das classes sociais se
inserirem no quadro dos costumes tradicionais, os quais ele conhece por conta de sua
experiência político-administrativa, também.
Os resultados surgirão, decerto, e não se espera que haja concordância de opiniões,
uma vez que tanto Maquiavel quanto Marx se prestam a muitas interpretações. O que
queremos aqui é captar as formas de representatividade literária das etapas particulares do
desenvolvimento político-social para se construir um país, os meios utilizados na transição
de um regime tribal para a unificação de um Império forte, bem constituído, e que, após
períodos de guerras, crises de valores, as transformações operadas de modo irreversível e a
evolução vão resultar na unificação de povos em uma nação que reencontra em si mesma a
força regeneradora, no seu referencial histórico-cultural, na manutenção de sua memória.
O segundo livro de que tratamos foi A gloriosa família – No tempo dos flamengos,
em que buscamos destacar como se deu o aproveitamento do discurso histórico sobre a
escravidão negra, as transações econômicas em que o escravo era a mercadoria vendável e
lucrativa, e sobre a dominação holandesa em Angola. Para tanto, na análise das
personagens, procedemos à identificação de todas aquelas da história propriamente dita, a
exemplo de um Maurício de Nassau, traçamos a aproximação das ficcionalmente
construídas com os fatos históricos, caracterizando-as, a fim de verificar “a encenação
artística” dos acontecimentos históricos. A família Vam Dum é o núcleo articulador do
enredo. O narrador é o elemento fundamental pela visão de mundo que apresenta; ele
próprio, inserido na sociedade da qual tudo observa e analisa como personagem que seguiu
de perto o desenrolar dos acontecimentos e que, na condição escrava, vê a si e aos demais
da mesma situação. Em meio ao ambiente de repressão, destacamos de modo breve, três
21
personagens femininas que se insurgiram contra a opressão que lhes quiseram impor.
Verificamos também como procedeu a Igreja, instituição que gozava de tanto poder na
época, frente à situação de dominação existente. Não pudemos deixar de destacar o espaço
como elemento capaz de marcar as diferenças de classes sociais e as posições políticas e
sociais. Tudo isto como forma de mostrar que é possível aproximar a verdade histórica da
ficção e se ter uma “representação totalizadora”, retomando as palavras de Steenmeijer,
citado por ESTEVES (1998, p. 123) a que nos referimos anteriormente.
Sem dúvida, entre os livros que constituem o corpus dessa pesquisa, é o que
mantém os mais estreitos vínculos com a história. Dentre os vários textos consultados,
destacamos: História das Guerras Angolanas, de António de Oliveira Cadornega; Tempo
dos Flamengos, de José Antônio Gonsalves de Mello Neto; O escravismo colonial, de
Jacob Gorender; Nassau, de Evaldo Cabral de Mello, Nzinga, de Roy Glasgow e O trato
dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, de Luiz Felipe de Alencastro.
No terceiro capítulo: “Da utopia à distopia”, iniciamos com a análise de A geração
da utopia, cujo ponto de partida foi a elucidação do significado do próprio título,
entendendo como “geração” um grupo de pessoas que numa mesma época partilhou
espaços e ideais comuns. Daí, a razão da ênfase do nosso olhar crítico incidir
primeiramente sobre a ação das personagens em “A Casa dos Estudantes do Império”, em
Lisboa, espaço da construção das idéias de liberdade, da ideologia que embasou o
enfrentamento deles com o colonizador, para em seguida destacarmos “O ano de 1961” e
tratarmos de questões relativas ao contexto histórico luso-angolano, uma vez que essa data
guarda íntima relação com projetos e decisões ali tomadas. Prosseguimos com uma breve
abordagem teórica sobre “Utopia”, em que destacamos as concepções de Karl Mannheim e
de Ernst Bloch. A partir do subtítulo: “Portugal e Angola na recriação literária”, embasada
pelas considerações tecidas nos itens anteriores, acompanhamos a “encenação literária” das
personagens em diversos tempos e espaços configurados. Seguimos o itinerário das
personagens traçado pelo autor. Assim, em “A chana: o desvelamento”, o espaço enfocado
é o interior de Angola, cenário das guerrilhas e momento para a reflexão sobre a luta
armada. No subtítulo “O reencontro” o espaço referido é Benguela e em “Contrapontos”, o
cenário é Luanda. Como se trata não simplesmente de uma obra que reflete a história, mas,
sobretudo, de reflexões dos indivíduos que a “vivenciaram”, apontamos para o que resultou
22
1
Quando iniciamos esta pesquisa, esse era o último livro publicado por Pepetela. Estávamos prestes a
concluí-lo quando ele publicou a novela: O terrorista de Berkeley, Califórnia. (2007)
23
Sobre esta relação entre as formas sociais e formas literárias, Roberto Schwartz
(1989, p. 14) diz:
1 – COORDENADAS SÓCIO-CULTURAIS
Conhecer uma coisa é estar em união com ela, estar no seu interior e abordá-la de dentro.
Permancendo-se no exterior, não se pode conhecer uma coisa em sua essência. E, para
conhecer as coisas, não é preciso dissecá-las: é preciso, muito antes, uni-las a outra
coisa.
ALASSANE NDAW
O texto é um produto do social tecido com muitos fios que o compõem, acrescido
de ingredientes estéticos, de que resulta do conteúdo humano. Na sua gênese, se faz
presente a visão de mundo que o originou. Como obra de arte, conseqüentemente, qualquer
que seja a realidade ali refletida, nela o homem se reconhece. Nela ele se reflete e reflete. É,
pois, reflexo e reflexão.
Trata-se de um fenômeno individual que se insere nos elementos que constituem a
personalidade do criador e as categorias que fundamentam o grupo social que as
estruturam, ou seja: há um condicionamento social na obra, há uma vinculação fundamental
com uma organização social específica. Logo, texto e contexto, apesar de independentes,
dissociáveis, convivem como elementos necessários na busca interpretativa. Daí por que
Antonio Candido (2002, p. 7) assinalou: “o externo se torna interno e o crítico deixa de ser
sociólogo para ser apenas crítico.”
Faz-se necessário, portanto, considerar os fatores constituintes da organização
interna do texto, verificar os fatores sociais e os agentes das estruturas que permitem
alinhá-los entre fatores externos, compreendê-los, indicar e penetrar-lhe o significado,
entender o social a nível explícito e não ilustrativo, alcançando a sua dimensão como fator
artístico. O elemento formal é, por conseguinte, o elemento articulador do universo
imaginário e da realidade externa.
Ainda recorrendo a Antonio Candido (2002, p.12), convém lembrar que “devemos
ter consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a
realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é
sempre uma forma de poiese.”
25
Em diferentes graus a realidade se faz presente na obra literária. Pode ser um breve
momento, apenas superficial, que não se repete; pode ser uma realidade profunda que
mesmo se relativizando na aparência e na própria realidade, o que era essência aparece,
quando aprofundamos e superamos a superficialidade da experiência imediata. Como
fenômeno, liga-se a uma outra e diversa essência que só pode ser atingida por uma
investigação mais profunda. E assim vai se transformando, de acordo com as
circunstâncias.
No caso do romance, enquanto gênero literário, lembremos que originariamente ele
exprimia o ponto de vista e o conteúdo de uma etapa de emancipação do homem (mesmo
considerando o surgimento desse gênero como arte-expressão da burguesia), quando os
meios de que a epopéia antiga dispunha não mais davam para comportar, na essência de
sua estrutura, todas as categorias resultantes do capitalismo com as primeiras sociedades
fundadas sob formas de vida “puramente sociais”, não mais “naturais”, embora tivessem
uma evolução desigual. Com traços específicos de uma sociedade concreta (enraizada no
capitalismo) o romance apresenta traços característicos de todas as sociedades dessa
espécie.
Em torno das sociedades representadas para objeto de nosso estudo não só medeiam
anos, transformações, mas estruturas de sentimento, de tal modo que se faz necessário nos
determos primeiramente na história das transformações desses tipos de sociedade, antes
mesmo de lançarmos um olhar para esta mesma sociedade recriada pelo trabalho estético-
literário.
como animais; ou “protegidos” pela lei e pelos costumes, mas só no sentido de gerar mais
trabalho, mais bens; uma economia voltada para uma dominação física e econômica de
abrangência coletiva. Fatos como esses apontados perduraram em todas as sociedades
primitivas, e, às mais das vezes, aquelas organizações tribais eram obrigadas a se deslocar
em novas conquistas territoriais ou fugindo da aridez das terras, da fome ou do terror das
invasões. À medida que iam se desenvolvendo internamente, no sentido de uma defesa
organizada militarmente, havia as disputas internas pelo poder, por direitos e por deveres.
Bandos sociais armados, de dentro ou de fora, transformaram-se em ordens sociais e
naturais, com apoio de seus deuses, de suas igrejas, culminando com a “ordem” dos reis,
explorando cada vez mais a terra e o trabalhador rural para o seu sustento. Não era um
quadro harmonioso ou tão perfeito como querem alguns. Lembremos o que Gil Vicente,
nos primeiros decênios de 1500, dizia através de um lavrador no Auto da barca do
Purgatório:
[...]
sempre é morto quem do arado
há-de viver.
Nós somos vida das gentes,
e morte de nossas vidas:
[...]
o lavrador
não tem tempo nem lugar
nem somente d’limpar
as gotas do seu suor.
A ordem social vai se modificando. Com os sucessivos surtos da peste negra, com a
morte de mais de um milhão de pessoas, as relações sociais entre senhores, arrendatários e
trabalhadores vão se alterando; as pressões exercidas pelos primeiros vão diminuindo.
Muitos povoados vão sendo abandonados; as cidades crescendo dão origem a novas
relações sócio-econômicas; aumenta a intervenção do homem sobre a natureza:
desmatamento, para obtenção de lenha e madeira de construção, e grandes áreas cercadas
para pastagens de ovelhas com o crescente comércio de lã, e conseqüentemente, surge novo
tipo de proprietário rural capitalista.
Não muito diferente do que expõe Williams, sem terem se detido sobre a sociedade
e cultura africanas, embora o tivessem feito sobre culturas da Ásia, Marx e Engels em A
ideologia alemã (1844-1845) esboçam uma história das etapas da divisão de trabalho e das
formas de propriedade correspondentes. Distinguem três formas de propriedade que
27
Ser membro da comunidade continua sendo condição prévia para a apropriação da terra,
mas na qualidade de membro da comunidade, o indivíduo é um proprietário privado. Sua
relação com sua propriedade privada é ao mesmo tempo uma relação com a terra e com
sua existência enquanto membro da comunidade – sua manutenção como membro da
comunidade significa a manutenção da própria comunidade e vice-versa.
No mundo antigo, a propriedade de Estado aparece juntamente com o Estado
nascido da união de várias tribos em uma cidade por acordo ou conquista. O antagonismo
entre cidade e campo se desenvolve no seio das cidades, entre a indústria e o comércio:
produzia-se mais, fato que enriquecia uns e empobrecia a outros, mas necessitava-se de
mais matéria-prima e de mais produtos para serem vendidos, e conseqüentemente, mais
lucro e mais exploração. ”A escravidão continua sendo a base de toda a produção” (MARX
e ENGELS,1985, p. 32) A transição da chamada “barbárie” à “civilização” se realiza:
pouco a pouco começam as relações de produção capitalista.
A história da Idade Média não começa com a cidade, mas com o campo, com a
decadência do Império Romano invadido pelos bárbaros, no século V. Os bárbaros
2
idem, ibidem, p.30
28
dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de
uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado e adquirem
através dele uma forma política” (p. 98), ou seja: o Estado despolitiza a sociedade, à
medida que centraliza todas as decisões relativas ao que é comum ou universal.
Dialeticamente, ocorreu que a classe do proletariado gerada no seio da grande
indústria em todas as nações passou a ter interesses comuns: lutar por seus direitos, por leis
que os livrassem da exploração burguesa. O resultado esperado da luta política entre as
classes (a revolução socialista) seria a construção de um novo tipo de Estado, que em nome
do suposto interesse geral, defendesse o interesse comum já que o Estado é, de modo
abstrato, definido como o aparelho de dominação da classe economicamente dominante.
Posteriormente foi simplificada a definição em: “todo o Estado é uma ditadura de Classe”.
Em 1848 Marx e Engels concebiam que só o proletariado unido em torno da
Associação Internacional dos Trabalhadores, de sindicatos e de partidos operários
conseguiriam sua libertação; para tanto seria necessário fazer política, organizarem-se, ir
além da propriedade privada, uma mobilização consciente do proletariado. A transição para
o socialismo ocorreria com a maioria da classe operária constituindo um partido político
forte e majoritário de modo que essa classe se tornasse classe dirigente.
Posteriormente, no Prólogo de As lutas de classe, Engels reconhece que se
enganaram em 1848, não ocorreu o triunfo da revolução. Era preciso uma conjuntura
negativa; e a conjuntura naquele momento era economicamente favorável, o capitalismo
não tinha esgotado suas possibilidades, “estava longe do amadurecimento necessário para a
supressão da produção capitalista.”
Em sua célebre carta a J. Weydemeyer, de 05 de março de 1852, Marx observa:
Pelo que me diz respeito, não me cabe o mérito de haver descoberto a existência das
classes na sociedade moderna, nem tão pouco a luta entre elas. Muito antes de mim, já
alguns historiadores burgueses tinham relatado o desenvolvimento histórico desta luta de
classes e alguns economistas haviam analisado a anatomia econômica das classes. O que
eu fiz de novo foi: 1) demonstrar que a existência das classes está veiculada unicamente
a determinadas fases históricas de desenvolvimento da produção; 2) que a luta de
classes conduz, necessariamente, à ditadura do proletariado; 3) que esta mesma ditadura
não é senão a transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem
classes. (MARX e ENGELS, in:Vasco Magalhães-Vilhena Notas complementares da
edição portuguesa do Manifesto do Partido Comunista,. p. 139-140, grifo do autor).
30
Embora a África seja o mais velho dos continentes pela sua genealogia, é o mais
jovem pela sua entrada na história contemporânea, haja vista que em 1830, Hegel, segundo
Ki-Zerbo (1999, p. 10) afirmava: “A África não é uma parte histórica do mundo.” Depois
31
dele, muitos historiadores, por preconceito racial ou por desejo de alimentar o mito da
passividade histórica dos povos africanos ou dos povos negros, em particular, repetiram
esta mesma idéia e não se detiveram no estudo das raízes históricas africanas. E mesmo
aqueles que buscam desvendar os seus caminhos têm encontrado muitas dificuldades, sendo
a principal a falta de documentos, uma vez que a maior parte do que se tem escrito é pela
voz do colonizador, assim mesmo de difícil acesso, além da falta de perspectiva puramente
cientista, humanista e africana, perante o problema histórico da África, como bem
mencionou Ki-Zerbo3. A partir do século XIX muito tem contribuído a tradição oral como
fonte para os estudos orais e culturais.
Por outro lado, parece existir por parte mesmo dos africanos uma espécie de
marginalização à contribuição de sua própria história. Provavelmente, isto pode vir de
complexos de inferioridade que se solidificaram ao passar dos anos, a que contribuiu para
essa inércia a própria Igreja Católica com as bulas papais ”Dum Diversas” de 1452 e
“Romanus Pontifex” de 1455, que “permitiam aos reis de Portugal despojar e escravizar
eternamente os Maometanos, pagãos e povos pretos em geral”, segundo LOPES (1995, p.
22). A estrutura da colonização que foi imposta aos africanos era de dominação física,
humana e espiritual, manifestando-se de tal modo que antes de eles reivindicarem a
independência política, eles reivindicaram a igualdade intelectual com relação aos
europeus. É desse modo, inferiorizando-os, que os africanos vão ser olhados pelos
primeiros historiadores: o africano é o outro que precisa ser civilizado. A História da África
Negra de Ki-Zerbo é a primeira tentativa individual de escrever sobre toda África
subsahariana, uma história que parte de um argumento diferente: “a África também tem
uma História.” (LOPES, 2000, p. 25, grifo do autor).
A História de Angola, editada em 1965, em Argel pelo Movimento Popular para a
Libertação de Angola (MPLA), organizada por integrantes do Centro de Estudos
Angolanos, de que Pepetela fez parte e que teve, anonimamente, participação importante na
sua confecção, também, nos fornece dados esclarecedores sobre a organização e
desenvolvimento da Colônia em País Independente, mas representa, acima de tudo, a forma
de suprir a necessidade de a História de Angola ser contada por seu próprio povo e que
apresenta heróis individuais num passado remoto.
3
idem, ibidem
32
Um só povo é a visão que hoje temos de Angola. Mas não queremos dizer que foi
sempre assim: em épocas remotas, constituíam vários povos que guerreavam entre si, que
provieram de partes as mais diversas do continente africano e em tempos diversos. Assim,
pareceu-nos ser consenso entre os historiadores em que pesquisamos que os Bochimanes
(Bosquímanos) foram os primeiros habitantes de Angola, que viveram em regime tribal e
eram exímios caçadores, alimentavam-se de frutos e raízes de árvores.
Na Idade do Ferro surgiram as primeiras imigrações dos bantu, povos mais
evoluídos, vindos do norte do continente, provavelmente da região que hoje constitui
Nigéria e Camarões. Eles introduziram novas técnicas como a metalurgia do ferro, a
cerâmica e a agricultura, de que resultaram as primeiras comunidades agrícolas. Esse
processo de fixação vai até o século X, quando inicia a fase de estruturação dos grupos
étnicos: o grupo Kikongo, que se estabeleceu a noroeste de Angola, no século XIII; o
Grupo Ngangela, que se estabeleceu no Kunene, no século XVII.
No ano de 1568, entraram pelo norte os Jagas que foram se instalar em Kassange.
Chegaram a dominar Matamba, Libolo e toda a margem sul do Kuanza até Benguela.
Tinham uma política expansionista deveras interessante: nos territórios ocupados em que
chegavam, matavam os homens, ficavam com as mulheres e preocupavam-se em educar
militarmente as crianças; depois deixavam naquele lugar uma chefia e seguiam à conquista
de outros territórios. Não chegaram a constituir um reino, mas chefias independentes que
rivalizavam entre si. Ainda no século XVI ou um pouco antes, atravessaram o Kunene e
instalaram-se no planalto da Huíla os Vanyaneka ou Nyanekas; os Ovahelelo ou Hereros,
vindos dos Grandes Lagos, atravessaram o planalto do Bié e foram se instalar entre o
Deserto de Moçâmedes e a Serra do Chela; no século XVII entraram os Ovando ou Ambós
que vieram estabelecer-se entre o alto Kubango e o Kunene, vindos do baixo Kubango. No
mesmo século os Kyokos abandonaram a Katanga, atravessaram o rio Kassai e vieram
4
Basicamente, a fonte de informações para a organização desse item foi a História de Angola (1965, p. 35-
40), produzida pelo MPLA e a Tese de Doutorado do Prof. Carlos Moreira Henriques Serrano: Angola: nasce
uma nação – Um estudo sobre a construção da identidade nacional – USP, 1988, sobretudo no que diz
respeito à formação dos grupos étnicos.
33
estabelecer-se na Lunda. Os Lundas vieram lhes cobrar impostos e eles emigraram para o
sul.
Finalmente, no século XIX vieram os últimos povos que se estabeleceram em
Angola: os Ovkwangali ou Kuangares, que antes se denominavam Makokolos,
provenientes de Orange, África do Sul e que se encontram estabelecidos entre os rios
Kubango e Kuando.
Como se pode facilmente deduzir, todos estes povos que vieram a estabelecer-se em
Angola eram povos migrantes. Muitos deles se fixaram e alguns se tornaram reinos
importantes.
5
Espécie de peixe comum no rio Zaire de onde se extraía gordura para se aplicar nos barcos.
34
O Reino do Congo, situado entre as duas margens do curso final do rio do mesmo
nome, era constituído por seis províncias: Mpemba; Soyo; Mbamba; Mbata; Nsundie ou
Nsundi e Mpanzu ou Mpangu. Além dessas províncias, os reinos vizinhos pagavam
impostos ao rei do Congo; eram reinos, portanto, tributários. Eram eles: Ndongo ou Ngola;
Matamba; Loango; Ngoyo e Kakongo. Os tributos e impostos coletados pelos governadores
e enviados do rei compreendiam uma parte em moeda, o nzimbu (conchas), quadrados de
ráfia, sorgo, vinho de palma, frutas, gado, marfim, e pele de leão ou de leopardo.
O Reino de Ndongo formou-se no século XIV, um século depois do Congo, com as
migrações dos povos provenientes do centro da África. Eles se instalaram em Matamba e,
aos poucos, avançaram bem próximo ao mar. Sua estrutura organizacional assemelhava-se
à do reino do Congo.
Além desses reinos, havia ao sul do rio Kuanza a região do Kissama em que havia
pequenos sobados ou Estados Independentes uns dos outros: Muxima, Kitagombe, Kizua,
Ngola, Kikaito, Kafuxe. Não pagavam tributo a ninguém, viviam em luta contra o Congo, o
Ndongo e contra portugueses, em defesa de sua independência.
Os primeiros europeus chegaram ao Congo em 1482, comandados por Diogo Cão,
que foi bem acolhido pelo governador local do reino, que estabeleceu relações comerciais
regulares com os colonizadores. Quando de sua volta a Portugal levou alguns congoleses
que foram recebidos com muita hospitalidade pelo rei D. João II que lhes deu alimento,
vestuário, educação e religião.
Em 1484 Diogo Cão regressou ao Congo, aportando em Mpinda, estabeleceu
aliança com o Mani-Soyo, tio do Rei Nzinga a Nkuvu, que se batizou e mandou avisar ao
rei do quanto os portugueses poderiam ser-lhes úteis.
Em 1490, chegam a Mpinda navios de Portugal com presentes do Rei de Portugal ao
rei do Congo, assim como produtos para comércio, alguns frades franciscanos e alguns
pedreiros para construção de uma igreja e para o Palácio do Rei Nzinga a Nkuvu. Em troca,
levavam tecidos feitos pelos artesãos do Congo, marfim e escravos.
As conseqüências desses atos logo se fizeram aparecer: como o Rei Mbemba
Nzinga, seu filho Mani-Nsundi e alguns fidalgos precisassem de ajuda para conter os
ânimos revoltosos dos populares, batizaram-se; pensavam eles que a religião católica, assim
como os portugueses com os seus canhões, tornar-se-iam seus aliados na contenção contra
36
fatos dessa natureza que costumavam ocorrer. No entanto, o herdeiro do trono Mpangu a
Kitina, sobrinho do rei, não aceitou a amizade com os portugueses e surgiu a oposição
política a essa amizade, apoiada pela maioria da população, contrária à religião católica.
Eles preferiam a sua religião: a animista, que segundo Venâncio (2000, p. 36) trata-se de
“religiões que não se esgotam com a fé em Deus,” [...] “a base estrutural dessas religiões é
constituída por outros componentes para além da fé em Deus”. Ainda Venâncio6 um pouco
mais adiante cita Senghor, poeta e político senegalês, para quem
a força vital existe antes do ser e cria-o, isto é, a mundivência africana concebe a
existência como uma qualidade inerente não somente ao homem, mas a todos os objetos
animados pelas forças vitais, em cujo cume se encontra o único Deus, o criador
[denominado, por exemplo, entre os mbundu de Luanda e respectivo hinterland, por
Nzambi e entre os Yoruba por Olórum Olúdùmare ou Elédàá]. No degrau imediatamente
abaixo estão os antepassados, semelhantes a Deus e encarnando o mito da fundação das
respectivas comunidades. Seguem-lhe os contemporâneos. No sopé desta pirâmide
hierarquizadora, estarão os animais, as plantas, os milheirais, etc.
Quando, em 1506, morreu o Rei Nzinga a Nkuvu, batizado D. João I, o seu filho
Mbemba a Nzinga, batizado D. Afonso I, com a ajuda da mãe, dos aristocratas e dos
portugueses, assumiu o poder, usurpando-o do primo Mpangu a Kitina que tinha direito
pela linha de sucessão matrilinear. Instalou-se uma revolta e Mpangu a Kitina morreu em
batalha e Afonso ficou rei do Congo, revelando-se um grande aliado dos portugueses.
O reinado de D. Afonso I contribuiu para o aumento da escravatura, tornou a
religião católica obrigatória e proibiu o culto aos antepassados, com tanto sectarismo que
incomodava os próprios missionários, levando o povo à insatisfação e à revolta.
Com a morte de D. Afonso, em 1543, ascendeu ao trono o seu sobrinho Nikanga a
Mbemba, D. Pedro I, que tinha apoio popular. Mas ajudado pelos portugueses, o seu primo
D. Diogo I, Nkubi a Mpudi, em 1545, fez uma revolta e instalou-se no poder. Crescia cada
vez mais o descontentamento popular que o pressionava para não se manter aliado dos
portugueses.
Em 1561, morreu D. Diogo I e lhe sucedeu o filho, D. Afonso II, Mbemba a Nzinga,
que sem apoio popular foi logo substituído por D. Bernardo I, Nzinga a Mbamba, que
permaneceu no trono até 1567, quando morreu, sucedendo um período de disputas entre os
pretendentes ao trono de que resultou a morte de ambos. Instalou-se nesse mesmo ano a
revolta em Mbanza Congo, capital do reino, mais tarde São Salvador, em que muitos
6
Idem, ibidem, p.39
37
portugueses foram mortos e, posto no trono um representante da linhagem aceita pelo povo,
D. Henrique ou Nerika a Mpudi, mas veio a falecer nesse mesmo ano, sem deixar
descendente direto da linhagem real. Em conseqüência, assumiu o trono o filho de uma de
suas mulheres: D. Álvaro O Mapanzu.
Por volta de 1568, no reinado de D. Álvaro I, o Congo já era um reino
enfraquecido, após a invasão dos Jagas. Estes foram expulsos com a ajuda de portugueses,
sob o comando de Francisco Gouveia, enviados com esse objetivo pelo rei de Portugal, D.
Sebastião. Em troca da ajuda, os portugueses exigiram que o Congo ficasse vassalo de
Portugal por mais quatro anos. Foi um período, não só de perseguição aos jagas, mas de
dominação a todos os congoleses que se levantassem contra os portugueses. Por isso
mesmo cresceu a revolta em boa parte dos congoleses que tiveram em Mbula Matabi um
grande líder que veio a morrer em combate contra os portugueses, em prol da
Independência.
O rei D. Álvaro II, Nempazu a Nimi, que sucedeu a D. Álvaro I, em 1575, expulsou
os portugueses e não aceitou o contrato estabelecido entre eles, voltando o Congo a ser
independente.
Em 1883, o reino do Congo foi incorporado oficialmente às possessões coloniais
portuguesas e durante as décadas seguintes, houve movimentos libertários e lutas que
culminaram com a expulsão definitiva dos portugueses.
Quanto ao Reino de Ndongo ou Ngola, os primeiros portugueses que lá chegaram
representando o rei de Portugal foram Baltazar de Castro e Manuel Pacheco, no ano de
1520. Apesar de serem antigos residentes do Congo e de já haver relações comerciais entre
os Ngolas e os portugueses no Congo muito antes, o rei de Ndongo, sabedor dos feitos
portugueses ali, não recebeu bem Manuel Pacheco e Baltazar de Castro: o primeiro foi
morto7, e Baltazar foi feito escravo por seis anos, sendo libertado a pedido do rei do Congo.
O mesmo aconteceu com Paulo Dias de Novais, sobrinho de Bartolomeu Dias, que veio a
Luanda em 1560. Após seis anos como escravo, o rei Ngola Kiluanje o enviou de volta a
Portugal, juntamente com um representante do seu reino, para informar-se da possibilidade
7
Há divergência entre os historiadores. Segundo Roy Glasgow in Nzinga, Manuel Pacheco regressou a Lisboa
“com uma pequena carga de escravos, marfim e prata” (p.23).
38
de esse país manter relações comerciais com o seu povo de forma pacífica e se os ajudaria
na luta contra os vizinhos.
Em 1575 Paulo Dias de Novais regressou acompanhado de 700 homens. Havia
conseguido do rei de Portugal ser o donatário das terras do manikongo e do Ngola. Havia
terras próximas ao reino de Ndongo, pertencentes ao reino do Congo, habitadas por
portugueses que comerciavam com escravos, de modo que o seu desembarque não causou
nenhuma resistência, mesmo porque a situação política havia mudado com a revolta do
Soba Kiluango-Kiakango, o qual pretendia separar-se do reino do Ndongo.
Novais logo começou a desenvolver o comércio de escravos, e a capital do Ndongo,
Cabassa, era constantemente freqüentada pelos traficantes portugueses. Em 1579 começou
a penetração pelo interior através do rio Cuanza, à procura das sonhadas minas de prata, do
Cambambe. Ele construiu duas pequenas povoações em território ngola, e o seu avanço
pelo interior representou uma ameaça ao rei de Ndongo, fato que ocasionou a expulsão de
muitos portugueses e o massacre de comerciantes portugueses seus aliados que haviam
ficado na capital, como forma de reação. A igreja que ele fez construir em Luanda assinala
o início de sua colonização e é marco de uma nova era da história de Angola: a Idade
Colonial.
foi em vão: o interesse deles residia nos lucros que o tráfico proporcionava. Os escravos
que ficavam em Angola trabalhavam na agricultura, alguns eram ajudantes de pedreiro, de
ferreiro ou de carpinteiro nas oficinas instaladas pelos jesuítas.
Seguiu-se o governo de Sá da Bandeira que, mesmo antes de se tornar primeiro
ministro, se interessou pelo fim do tráfico e pelo cessar de degredados a Angola. Ele
gostaria que Angola fosse “uma casa para cidadãos portugueses honestos e trabalhadores”,
segundo Bender (1980, p. 102). Em 1836 fundou entre Lobito e Benguela uma colônia de
brancos, mas também fracassou: não contava com o devido apoio de Lisboa e havia uma
forte oposição em Angola.
Apesar da tentativa de abolir o tráfico, com uma lei mais severa, Sá de Bandeira não
conseguiu, teve de ceder atenuando a lei, de modo que o tráfico continuou em Angola até o
século XIX. A libertação oficial dos escravos deu-se em 29 de abril de1878. Na prática, sob
as severas condições de trabalho impostas pelo branco, o negro continuou explorado,
escravizado.
A decadência de Luanda acentua-se nos meados do século XIX, com o fim do
comércio de escravos, que obrigou a maior parte dos degredados a buscar o litoral. Se o
nível moral dos brancos já não era tão bom em Luanda, com a chegada destes, ficou pior,
pois eram habituados no interior com costumes e vida mais desregrada, conforme podemos
deduzir do que ocorrera então, tomando o comentário de um médico alemão, Tams, a
quem, ao visitar Angola já em 1841-1842, chamou-lhe atenção o estado de sua elite, citado
por Bender (1980, p. 105):
Talvez houvesse entre eles alguém com o espírito e a mente um pouco mais cultivados;
mas, de qualquer maneira, eram tão poucos em número que não exerciam nenhuma
influência visível nos outros. No entanto, sob certo aspecto, eram todos iguais, porque eu
duvido se haveria uma única exceção – todos eles eram negociantes de escravos, que não
se inibiriam de cometer qualquer crime, se favorecesse os seus interesses.
Tais são os elementos que compõem a sociedade em Luanda e um estrangeiro nem por
um momento sequer deve esquecer da companhia que o rodeia.
Sobre o povoamento de Angola, assim escreveu Ilídio Amaral, citado por Manuel
Jorge (1998, p. 54):
[...] foi uma massa considerável de degredados – indivíduos condenados pelos tribunais
metropolitanos - e de mestiços que constituiu a grande força de ocupação portuguesa de
Angola. Foi nos últimos, em particular, produto de brancos e negros, resultante da
atração especial que as mulheres de cor exerciam sobre os brancos, que os portugueses
encontraram o complemento para equilibrar o seu reduzido número.
41
8
D.D.A., Depósito dos Degredados de Angola, nome dado às prisões e fortalezas de São Miguel e da Barra,
onde ficavam os deportados e presos políticos em Luanda.
42
9
A respeito da designação de “províncias ultramarinas”, Davidson (1974, p.406) comenta: “ A Constituição
portuguesa, depois de emendada, continuou a definir as colônias como ‘províncias ultramaninas’
acrescentando apenas que ‘terão os seus próprios estatutos como regiões autônomas’ e poderão ser chamadas
Estados quando o seu progresso social e a complexidade da sua administrção justifiquem tal qualificativo”
43
chamado depois, cobrado sob a forma de contribuição predial ou sob forma de imposto de
captação, em dinheiro ou em gêneros produzidos pelos africanos:
O Imposto Industrial, desde que seja lançado eqüitativamente e cobrado com suavidade
não somente se justifica como contribuição direta destinada a cobrir ou diminuir os
encargos do Estado, resultantes das necessidades do policiamento e desenvolvimento das
regiões já ocupadas, mas é também perfeitamente legítimo como tributo significativo da
verdadeira e efetiva submissão das tribos indígenas à nossa soberania e como taxa de
civilizção10 por obrigar o indígena ao trabalho para obter recursos necessários ao seu
pagamento (Apud SERRANO, 1988, p. 132, citando o “Boletim Oficial de Angola”, nº
42, de 20 de outubro de 1906).
O colonialismo durante muito tempo negou a realidade cultural africana com toda a
sua afirmação de humanismo cristão. O catolicismo, que sempre se posicionou contra o
racismo ajudou, contudo, no desenvolvimento da idéia interracialista graças ao fato de
considerar a desigualdade sexual. A esposa católica ficava recolhida ao lar na metrópole e
os colonos tomavam as mulheres negras, mas a miscigenação que ocorria não implicava em
nenhuma ideologia de mestiçagem. Quando as mulheres brancas passaram a acompanhar os
maridos que se deslocavam para África, a miscigenação diminuiu, conforme dados
estatísticos apresentados por Anderson (1996, p. 77) e Bender (1980, p. 87). Aliás, digamos
de passagem que já em tempos passados, as negras não pareciam interessar-se sexualmente
pelos portugueses, certamente por medo, pelos estupros que ocorriam. Assim é que
Alencastro (2000, p. 350) baseado em fatos contados por Cadornega em História das
Guerras Angolanas, conclui que “em Angola um branco que tivesse relações sexuais com
uma negra arriscava-se a morrer envenenado” e mesmo quando chegavam a ter filhos com
algum branco, “quando eles se afastavam ou morriam, as mães retornavam às suas aldeias
com seus filhos mulatos, levando-os de volta à comunidade tradicional e à africanização”
(idem, ibidem). Havia miscigenação, mas não mestiçagem.
Quanto à aculturação houve todo um esforço para que os africanos assimilassem os
hábitos e os costumes dos europeus, sobretudo por parte da Bélgica, França e Portugal;
diferentemente da Inglaterra. A assimilação era o meio pelo qual os “incivilizados”, assim
chamados os nativos, passariam a ser classificados pelos “civilizados”. Para isto foi
importante o papel da religião que ensinava a moral cristã, a necessidade de a própria
máquina administrativa funcionar bem e, primordial, o papel das escolas.
10
O destaque é nosso
44
11
idem, ibidem, p.332
54
culturas tradicionais (tribais) relativas ao mato e ao campo, numa estética de retorno ideal
às origens, de reencontro com um passado grandioso, utopia da felicidade. Como bem
coloca Laranjeira (1995, p. 138):
[...] O discurso do negro não é somente [...] produzido por escritores negros [...], mas o
discurso da representação da maioria negra, de todos os negros, do(s) povo(s) negro(s),
do negro de todo o mundo contra o branco ou, pelo menos, dele se demarcando. O
discurso do negro é o da consciência de pertença a um vasto e genérico grupo étnico, sua
história e estado social, culturas, identidades e projectos.
Em 1950 foi publicada em Luanda a Antologia dos novos poetas de Angola por
iniciativa do Departamento Cultural dos Novos Intelectuais de Angola, com o lema
“Vamos descobrir Angola” e que contém textos que são ainda uma expressão muito tímida
de anticolonialismo. Representa, contudo, um impulso do Movimento homônimo, lançado
pelo poeta Viriato da Cruz que, na época, em 1948, quando o lançou, tinha apenas vinte
anos de idade, publicando o jornal Mensagem (o 1º número em 1948 e o 2º, em 1950)
considerado subversão e que logo teve a permissão cortada.
Não podemos deixar de fazer menção ao papel exercido pelas Casas dos Estudantes
do Império – CEI, em Lisboa e em Coimbra, cuja importância reveste-se do fato de ter sido
um órgão aglutinador de africanos de língua portuguesa, que trocavam entre si suas idéias
nem sempre anticolonialistas, uma vez que não havia unanimidade de opinião nesse
sentido, mas que, através das atividades culturais ali realizadas palestras, exposições,
debates, concertos e concursos literários resultaram “em um processo de conscietização
política e em melhoria cultural de dezenas de intervenientes” (LARANJEIRA, 1995, p.
127). Quer através da forma de circular (1ª fase) ou de boletim (3ª fase), Mensagem,
publicado por essa Casa, divulgando artigos de africanos e de alguns portugueses, os quais
crescem em termos valorativos quando colocadas em evidência as circunstâncias em que
ocorreram, sujeitos à censura e ao confinamento editorial, bem como o fato de muitos e
muitos nomes do cenário político e cultural de Angola que tiveram relação com as
atividades da CEI, entre eles: Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Jonas Savimbi, Pepetela,
Carlos Ervedosa, Henrique Guerra Abranches, Mário Pinto de Andrade, Ilídio Rocha,
Alfredo Margarido (português de nascimento), Fernando Bettencourt Rosa, Ernesto Lara
Filho, Alda Lara, Fernando Mourão, Maria Manoela Margarido, Deolinda Rodrigues de
Almeida, Onésimo Silveira, Alda Espírito Santo, Noémia de Sousa, Manuel Duarte,
56
Manuel dos Santos Lima, Francisco José Tenreiro, Corsino Fortes, Viriato da Cruz, etc.
Alguns desses jovens já haviam publicado em Itinerário (Lourenço Marques), Paralelo 20
(Beira), Claridade, Certeza (Cabo Verde) e Mensagem (Luanda) de cujo encerramento,
graças à repressão policial, Everdosa comentara: “A semente foi lançada à terra e como o
capim do nosso mato, sempre renasce bem verde entre as cinzas das queimadas de
Setembro” (In: Mensagem, nº 3 / 4, ano III, março / abril de 1960 (?), apud FERREIRA,
1976, p. 262.)
É no começo da década de 60, com o início da luta armada de libertação nacional,
que se produziu uma literatura não de todo circunstancial, mas expressamente
anticolonialista e nacionalista, destacando-se num primeiro momento uma literatura de
guerrilha que tem um posicionamento antiimperialista (antiamericana) e antiapartheid.
Em sua recente tese de doutorado, a Profª Maria Gabriela Cardoso Fernandes da
Costa (2006, p. 65) destaca, dessa época, a importância do surgimento das “Publicações
Imbondeiro” (1960-1964), em Sá da Bandeira, hoje Lubango, entre outras, não só pela
quantidade e qualidade das obras publicadas como pelas relações literárias angolano-
brasileiras, na série ANGOLA-BRASIL, contribuindo “para a edificação da ponte
imaginária sobre o Atlântico, através da palavra recebida por brasileiros e angolanos com as
raízes e o abraço forte do imbondeiro” . Além da “Imbondeiro”, a mesma professora lembra
os “Cadernos Capricórnio”, no Lobito e a “Coleção Bailundo”, no Huambo. (cf. p. 65-66)
Na segunda metade dos anos 60, apesar da implacável censura, conseguem alguns
escritores publicar, em jornais e periódicos, alguns textos alusivos às atividades
revolucionárias, disfarçadas pelo mais inocente lirismo amoroso, telúrico ou festivo, como
podemos observar em Arnaldo Santos, com Tempo de muhungo (1968), livro de crônicas-
contos, com alusões aos tempos difíceis que, então, lhes era dado viver. O Concretismo ou
o movimento Práxis brasileiros, de renovação formal compreendida numa estética da
sugestão e da alusão, encontram-se refletidos em obras de escritores como João-Maria
Vilanova, David Mestre, Jofre Rocha e José Luandino Vieira. Também nessa época,
algumas obras foram organizadas em prol dos próprios movimentos de libertação de que
são exemplos Poesia com armas (1975), de Costa Andrade e As aventuras de Ngunga
(1972), de Pepetela. Outras obras de Pepetela, escritas na época da guerra só puderam ser
publicadas pós-independência como: Muana Puó e Mayombe.
57
2 – DO MITO À HISTÓRIA
Obra escrita em 1988, sua 1ª edição é datada de 1989 e publicada em Luanda pela
UEA (União dos Escritores Angolanos); em Lisboa, a Publicações Dom Quixote a editou
em 1989 e 1997, e o Círculo de Leitores, em Lisboa, também a editou no ano de 1992.
Como costuma ocorrer nos livros de Pepetela, nenhum prefácio antecede a narrativa, e
nenhum posfácio. Há um pequeno glossário no final que facilita bastante a compreensão do
texto.
2.1.1 O enredo
assim como o fogo e a água.” (L., p. 20) “... filha direta de mamã Nhaweji, de Namutu a
Samutu, os primeiros homens, de Muako a Kaweji, e de todos os outros grandes chefes...”
Isto era justificativa suficiente para Lueji tornar-se rainha, pois, segundo a tradição dos
Tubungo, o lukano, símbolo do poder, não podia passar para fora da família.
A sociedade em que Lueji se insere é uma sociedade hierarquizada em que todos
que detêm a autoridade se conhecem. É que “no regime imperial todos são ilustres, como
diz Butor (1979, p. 60), e “a hierarquia não é somente política, ela é antes de tudo
semântica, as relações de força e de comando estão submetidas a relações de representação;
o nobre é um “nome’.” São muitos os “nomes” que estão ao redor de Lueji e que
representam a hierarquização dessa sociedade: Kondi (seu pai, recém-falecido), Tchinguri e
Chinyama (irmãos, o primeiro legalmente o herdeiro do trono); os Tubungo (nobres que
podiam fazer parte dos Conselhos); Kandala, “o maior dos adivinhos”(L., p. 13); Nayole
(mãe de Lueji, segunda mulher de Kondi), Musole (quarta mulher de Kondi), Ndumba ua
Tembo (melhor caçador e lutador), Nandonge (amigo de Tchinguri); Kakele e Kakolo
(membros do Conselho dos Tubumgo; o primeiro é o chefe tradicional dos Lunda, o
segundo é sogro de Tchinguri); Kumbana (chefe da guarda, primo de Lueji); Kakaya (ex-
chefe da guarda, incumbido de arranjar homens para enfrentar os Mataba). Mas há também
personagens anônimas, as que representam apenas atividades necessárias para o bom
andamento do sistema tribal: escravos, caçadores, pescadores e mulheres que trabalhavam
na agricultura.
E com a liberdade de que dispõe o autor, o mito Lueji vai ser reconstruído, quatro
séculos depois, na voz de múltiplos narradores: Lu, alter ego do autor, que pesquisa a
história da Lunda em documentos históricos, nos relatos orais de sua amiga Marina e nos de
sua avó Augusta, contadora de história como o foram os primeiros narradores, na visão de
Benjamim (cf.1980), para o roteiro de um balé em que a história de Lueji será recontada;
Herculano, historiador com quem Lu discute o roteiro, assim como crítico de arte, Mathias,
o escritor-personagem Dinoluan e o maestro Mabiala. Contudo, a focalização não se detém
apenas nela, varia, ora é mantida em Lu ora em Lueji e com a delegação de vozes a outras
personagens secundárias, numa verdadeira polifonia. São múltiplas as falas e múltiplos os
pontos de vista, até sobre um mesmo fato. E, desta interligação autor-narrador-leitor,
avultam os olhares sobre o texto. Parece óbvio dizer que literatura é trabalho com palavras,
61
é discurso literário. Há quem conte por inteiro a estória que se tem de saber, e este é o
principal narrador. Por trás dele está a instância autorial, em que o leitor crê e reorganiza o
discurso em inteligência, imaginação e afetividade. O texto não é verdade, mas ficção sobre
aquela. O prazer de ler uma obra de ficção fundamenta-se no ficcional. O efeito espacial e o
de movimento vão depender da maneira como o principal narrador se inclui no espaço, ele
mesmo (o narrador), criador de espaços onde todos se encontram, organizador de percursos
que se há de seguir; é também ponto de referência de onde partem as linhas limites da
leitura confirmadas pela instância autorial. Ele é um pouco leitor e escritor, personagem e
autor de si mesmo, pois, quando se lê, transita para o espaço exterior do texto.
Contaminando-se da concretude do leitor, ele se ajuda na construção do efeito da
veracidade e de autenticidade histórica. Na obra em apreço, às vezes, as estórias se
entrelaçam de tal modo que confundem o leitor menos atento: onde termina Lueji e começa
Lu? Lu-Lueji?
Para se entender as estratégias discursivas, apresentamos sinteticamente as
personagens. Na fala de cada uma delas é possível notarmos a sua visão da história e retirar
de cada um a sua verdade histórica e as suas tradições, pois a narração dos mitos é própria
de uma comunidade e de uma tradição. Cada personagem destacada para falar, usa a
expressão AGORA SOU EU QUE FALO, confirmando dessa maneira que a permissão
para falar lhe fora concedida. Vejamos:
Ele historia a sua ascendência e se considera o mais bem preparado para assumir o
trono: o pai, um velho fraco, não fez muitas guerras, tem medo dos Tubungo, contenta-se
com um mísero tributo e o irmão também é fraco. Mostra-se favorável ao tráfico negreiro e
à formação de um exército real com armas capazes de submeter os rebeldes. Considera-se
traído e caluniado. Discrimina Lueji por ser jovem e, principalmente, por ser mulher.
Rebela-se contra a possível pretensão de Ndumbo ua Tembo vir a desposá-la.
Com uma apóstrofe, demonstra a sua insatisfação para com a situação da Lunda:
“Vais continuar nesta pasmaceira de danças e batuques para ocultar a grandeza que está ao
teu alcance, mas que não desejam os covardes Tubungo que te dominam. E eu, Tchinguri,
filho e neto de reis, herdeiro traiçoeiramente destronado, vou permitir que a Lunda se
revolva nos seus próprios excrementos, sem coragem para levantar a cabeça e lançar a
flecha ao Sol? “(L., p. 74)
Ele é o opositor de Lueji e, como podemos ver, tem ideais imperialistas e
expansionistas, portanto, não lhe importavam os meios, chega mesmo a dizer, contestando a
atitude do pai contra a criação do exército real e da venda de escravos: “ E o meu pai não
quis me ouvir, que o exército real ia assustar os Tubungo, que vender homens não podia
pois a terra tem pouca gente, como se interessasse a gente pouca que a terra possa ter, se é
terra vazia para nós crescermos. Gente se faz todos os dias.” (L., p. 72-73)
Tchinguri tinha autorização para governar Luenge, parte da Lunda até o Cassai.
Mas, ao sair da Lunda, atravessa o Cassai, o Luachimo, o Chicapa, o Cuílo, atinge o rio
Cuango e chega ao “infinito lago salgado das lendas, onde o Sol morre, kuluanda...” (L., p.
396) Formará o Estado de Imbangala, mais tarde conhecido como Reino de Cassanje, que
terá o controle de boa parte das minas de sal, produto que contribuía para reforçar o poder
do chefe, o prestígio e a influência do grupo.
Lembra a infância, as brincadeiras com Lueji e Tchinguri, das caçadas em que tinha
de acompanhá-los, mesmo morrendo de medo de onça, medo de ver o irmão morrer, medo
de ficar sozinho, o despertar para o gozo sexual. Lembrança da Makunda (espécie de
circuncisão, e de cujo ritual não se podia falar, e que marcava a passagem para a iniciação
63
sexual). Tinha medo de poder ser escolhido para rei, considerava-se covarde, preguiçoso, e
sua solidariedade para com Tchinguri não iria permitir isso. Daí sua satisfação por ser Lueji
a escolhida, mas sabia ser difícil manter-se a amizade entre os três irmãos. Disse: ”Muito
trabalho vou ter, capim entre o leão e o elefante” (L., p. 176)
Da apresentação de Chinayama, devemos destacar dois aspectos ainda não
mencionados: 1) o seu amor filial. ”Só não gostei do desprezo com que trata a minha mãe, a
qual não a gerou, mas é também mãe dela e a primeira mulher do seu pai, a muari. Lueji
não a levou para nova oganda, não lhe pergunta se precisa de alguma coisa, anda
abandonada como se fosse uma velha serviçal”. (L., p. 175) 2) Gostava de inventar estórias
de caça, tais como a do caçador e do leão que são amigos e caçam juntos, assim como
contemplar a natureza, dar nome aos seres naturais, como as rosas de porcelana,
posteriormente, o cetro de Lueji. Isto, para fazer realçar a sensibilidade com que
Chinayama é retratado e de como a sensibilidade é qualidade necessária no artista e de
como se faz necessário ouvir a tradição oral, as histórias das fábulas, os contos dos animais,
manterem-se e transmitirem as tradições de seu povo. (Isto faz parte do projeto de
consolidação da nação angolana)
Governará sobre os Luvale, fixando-se nas proximidades do rio Luena.
d) Agora sou eu que falo, eu, ilunga
Filho de Kalala e irmão de Luevu (rei da Luba). Conta ter abandonado as terras dos
seus antepassados por causa da inveja e mentiras de que não só ele, mas seu próprio pai
fora vítima. Ele não tinha pretensão de subir ao trono, mas as mentiras de Luevu contra ele
doeram-lhe muito. Diz gostar de caçar e que tem muita força, mas só a usa contra os
animais. Gosta da natureza e prefere continuar caçando. “Mas todas as terras são como a
Luba e boas as suas gentes. É preciso apenas saber conhecer e descobrir em cada uma a sua
beleza oculta.” (l., p. 264)
Ele simboliza a liberdade, o espírito aberto à compreensão da vida e do amor.
Também, através dele, evidenciamos a importância que a literatura africana atribui aos
valores ancestrais do povo e à terra. Daí, o respeito à natureza e à gente.
Casa-se com Lueji porque a ama. Não tem pretensões de se tornar rei. Recusa
suceder ao trono, com a morte do irmão.
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Irmão de Ilunga e Luevu. Notou logo a paixão de Ilunga pela rainha – “não dorme”.
Em sua opinião ele fez um mau negócio em passar a Lueji o segredo do ferro, sem nada em
troca. É muito desconfiado. Não pode aconselhá-lo porque ele, Mai, é o irmão mais novo.
Receia ser expulso pelos Tubungo, considera o irmão um ingênuo e de nobres sentimentos
e, a Lunda, uma terra muito atrasada. Em sua avaliação tudo que Ilunga conseguiu foi
deixá-los à mercê dos Tubungo. “Por causa duma mulher que si ri dele. É ele um luba?
Nem parece?” (L., p. 315)
Mai é personagem que tem consciência de sua desterritorialização. Critica o irmão
por facilmente ter esquecido as suas origens, mas mesmo assim não aceitou o trono dos
Luba: “Tenho mais que fazer que aturar intrigas e intrigazinhas de cortesãos. (...) Um
guerreiro morre na ponta duma azagaia, não de um covarde veneno”. (L., p. 470)
Assim falou aos emissários dos lubas.
Apresenta-se como o maior caçador da Lunda e futuro grande chefe dos Tchokue.
Lutou para vencer Tchinguri e este perder o lukano, símbolo do poder. Foi educado para
morrer em defesa dos soberanos e em razão disto perdeu as terras, não escolheu outra
mulher, não teve filhos. Amava Lueji e a queria por primeira esposa, muari. Lamenta a
condição a que Tchinguri levou a Lunda. “[...] um louco, um dia, pensou em ter um
exército próprio para reinar sozinho e retirar os privilégios dos muatas. [...] O problema é a
loucura de querer reinar sem os Tubumgo que o alimentam.” (L., p. 381) E mais: teme o
casamento de Lueji com Tchinguri, “aliança bárbara que multiplica por vinte o poder do
trono e sai por aí a conquistar o mundo?” (idem, ibid, p. 381)
Ndumba ua Tembo simboliza a fidelidade e o amor à pátria que se sobrepõe ao
desejo de ter Lueji como esposa, pois, mesmo rejeitado por ela, continua a respeitá-la como
rainha.
Considera o fato de nada poder fazer para mudar o rumo da história; prefere a vida
de caçador errante, mas estabelece-se nas proximidades das nascentes do rio Cassai e
governa os Tchokue.
65
Yanvu não vai reinar por muito tempo, outros sucederão “até haver mais de vinte muata
Yanvu [...] Todos se perpetuando nos seus descendentes, que mantêm os mesmos cargos e
ligações familiares”. (L. p. 482) Verdadeiro oráculo, Mulaji sabe que morrerá também e,
pouco tempo depois, não será mais lembrado, “a tradição se perderá [...] a lição de Lueji se
perderá”12 e a sua história pessoal também será esquecida. Um dia os humilhados se
levantarão e acabarão o Império. Dar-se-á o reerguimento dos dominados.
A fala de Mulaji constitui o epílogo. Em tom profético ele prevê o fim do Império,
como parte de um processo lento de aprendizagem, de conscientização contra a opressão. É
esta a marcha irremediável da história.
Verificamos, assim, que cada um conduz no nome de sua família, seu lugar, e, a
sociedade se estrutura em cada um. É necessária a demonstração de poder, que à posse de
um nome corresponda à possibilidade de mostrar o seu ”valor”, de preferência na guerra. O
nobre deve continuar a ilustrar o seu nome, pela relevância do poder, continuação e
sustentação. Sua vida, seus feitos devem alimentar-se, metaforicamente, do que os liga
àquilo que o designa. Daí entendermos a revolta de Ndonga por Tchinguri ter sido
esquecido pela população da Lunda. Ao contrário é a posição de Mulaji, que por não ser
reconhecido nobre, ser apenas um pescador, tem a consciência de que não se eternizará,
após sua morte será facilmente esquecido e não se perturba por isso.
A narrativa inicia-se com Lueji contemplando o “lago de sua infância” – imenso,
profundo. Estava deserto, só o “grito” das aves e “um restolhar de peixes a comer”
interrompiam o silêncio ali reinante. Ela viera em busca de refúgio, paz, libertação. O
passado invade sua mente, voltam-lhe à memória o tempo de sua infância, das brincadeiras
com seus irmãos, de sua primeira transgressão. É neste mesmo lago que em meio a essas
lembranças, lhe ocorre a primeira visão do homem de seus sonhos, saindo da Lua, reflexo
de sua solidão, da busca de paz, no instante em que seu mundo, até então harmonioso, está
prestes a ruir. O efeito do real apoiado na sua avaliação prática da vida traz à lembrança das
mulheres que ali no lago lavam roupas, se banham, e dos homens que pescam. Na retomada
de indicações espaço-temporais que também tematizam a nacionalidade angolana, há
referência às rosas de porcelana que vão simbolizar o passado feliz da personagem Lueji e
o seu apego às coisas da sua terra.
12
idem, ibidem, p. 482
67
Tal como cada participante desta situação, Lueji representa o Bem e o Mal, no papel
que lhe foi escolhido e aceito.
Logo após as cerimônias fúnebres de Kondi, ela foi entronizada em uma cerimônia
simples, “no grande Tchota do Conselho e o povo à volta na praça. Lueji foi purificada pela
pemba, recebeu o fogo sagrado [...]” (L., p. 35) e todas as outras insígnias do poder: o
manto cor de púrpura sobre os ombros, o cetro talhado em pau preto, as miluínas sobre a
cabeça e o colar de tchimba com uma grande concha ao pescoço, um machadinho de duplo
gume e o “mupungo, espanta mosca com sortilégios mágicos” (L., p. 36)
Integrando-se às atividades régias, mantém-se fiel à proposta de exemplaridade, de
tal modo que os personagens que estão ao seu redor não se dão conta da sua representação,
não a podem modificar, desmitificar ou alterar-lhe de alguma forma o itinerário. Bem que
tentaram os seus irmãos, Tchinguri e Chinyama e o grande caçador e lutador, Ndumba ua
Tembo, antes, um amigo; agora, também, um audacioso pretendente.
Lueji sabia que havia começado a reinar em uma situação muito difícil: precisava
realizar o ritual da chuva e, ao realizá-lo, saiu-se vitoriosa, o seu gesto afastou a seca,
favoreceu a plantação e a conseqüente colheita; ganhou a aceitação de todos os súditos.
Mas ela tem outras preocupações: cuidar de sua segurança pessoal, manter a paz entre as
tribos circunvizinhas e assegurar um herdeiro para os Tubungo.
Para alcançar o primeiro objetivo, teria que anular a influência de Tchinguri, o
legítimo herdeiro ao trono, teria de acercar-se de pessoas fiéis, de confiança. Não foi tarefa
fácil por várias razões: Tchinguri era o seu irmão mais querido a quem admirava
profundamente, ‘irmão-herói’, e com quem tinha uma relação incestuosa. Ele considerava
como certa a ascensão ao trono, tinha exército próprio, se achava bem preparado para reinar
e havia entre os conselheiros quem concordasse com ele. Foi necessário mudarem-se para
uma nova Mussumba “que pela tradição, devia ter a forma dum cágado com as patas de
fora” (L., p. 217), organizarem-se militarmente, aumentando o número de pessoal e
fabricarem armas de melhor qualidade, ficar pronta para enfrentá-lo e a outros inimigos que
surgissem.
Para alcançar o segundo objetivo, ela mesma teria de escolher o marido “que a
ajudaria a governar, até o neto de Kondi ter razão suficiente para tomar o lukano” (L., p.
23). Ela tinha apenas dezoito anos, vivera em completa liberdade, a ponto de se conceder
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certas transgressões e agora se sentia prisioneira em sua própria oganda. Nas horas de
solidão ou quando achava que havia feito algo errado, sentia a falta de um pai ou de “outro
homem alto a sair da Lua e lhe pegasse nos braços até a fazer esquecer a humilhação de não
ser perfeita.” (L., p. 71)
Quando, num tempo indefinido, esta imagem de antes refletida ao luar surgiu
concretamente em sua frente, tudo ao seu redor pára. Lembra-nos a passagem bíblica de
Josué, em que o sol pára ou o próprio Moisés, atravessando o Mar Vermelho com o seu
povo, ao sair do cativeiro para a Terra Prometida. A própria natureza torna-se cúmplice
desse encontro: “[...] o vento cessou de fazer mexer os papiros da margem do Kalanhi. Os
pássaros calam seus pios de amor e os ruídos longínquos de mussumba deixaram de se
ouvir. Na manhã morna do Kalanhi, nem uma abelha zumbia, nem uma mosca passava,
mesmo as águas turbulentas silenciaram. O coração de Lueji parou. Subitamente se pôs a
galopar, parecia rinoceronte fugindo” (L., p. 273). Enquanto nele, “a visão do busto dela lhe
provocou um grito calado, dentro de si, grito do nome dela, grito da luz da Lua, grito que
ficou ressoando no peito seco dele...” (L., p. 274)
No primeiro encontro ele diz a que veio e estabelecem uma relação comercial de
interesse de ambos: ele teria direito de caçar elefantes em suas terras e de negociar com os
árabes compradores que traziam “sal, tecidos finos, jóias, cadeiras ricamente esculpidas e
outros produtos” (L., p. 275). Em troca, por cada elefante caçado caberia uma presa para ele
e outra para ela. A carne do elefante, afora a tromba, seria dada em troca de comida.
Também ensinaria à pessoa de confiança da rainha a técnica de lidar com o aço e a fazer
melhores armas. Poderia ensinar aos lundas caçar, só não lhes ensinaria a magia do uanga;
só um nganga a podia ensinar. Ficou determinado que ele e sua comitiva viveriam ali
mesmo em Mussumba, “com todas as honras devidas a pessoas da mais nobre linhagem.
Poderão arranjar mulheres, conforme os costumes da Lunda. [....] que sejam sempre
convidados para as nossas festas.” (L.,p. 280)
E, simbolicamente, no lugar onde se conheceram, dias depois, Ilunga, plantou três
árvores, símbolo da amizade eterna e da paz.
Ilunga mostrou-se realmente amigo, sábio, moderado e disposto a combater junto a
seus homens contra Tchinguri. Pouco tempo depois, eram amantes e ela o escolherá para
marido. E contrariando a opinião da mãe sobre o casamento com Ilunga, ela lhe responde:
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“– Não estou a pensar em mim, estou a pensar na Lunda. É preciso fazer uma sólida aliança
com os lubas, para isso é o casamento. Ele, Ilunga, é o mbambi de que falou Kandala, não
percebes?” (L., p. 349)
Apesar de pela tradição ser um tio de Lueji que deveria propor ao escolhido o
casamento, ela mesma propôs casamento a Ilunga e se casaram; não sem antes ela enfrentar
o Conselho dos Tubungo, as intrigas, em decorrência da morte de Kandala, justificar-se
junto a Ndumba ua Tembo – não queria deixar de tê-lo como aliado -, prestar culto aos
antepassados, como invocar o espírito do pai, “de Tchyanza Ngonge, a grande serpente que
nos criou, a mãe Nhaweji, oh espíritos de Namutu e Samutu, os esposos gêmeos pais do
primeiro casal, de Muako e Kaweji, todos vós que das mulembas me observam, não sejam
indiferentes à sorte da Lunda” (L., p. 386), pois ela precisava primeiramente de convencer
Tichinguri de que a Mussumba é invencível.
Dessa maneira, ela garantiu a paz na Lunda, centralizou o poder e fortaleceu Ilunga:
Poderia ter sido muito feliz, mas não pôde ter filhos. Submeteu-se a todos os rituais,
mas ela era estéril, poderia ser repudiada pelo marido, não o foi. E mais uma vez
sacrificava-se pela Lunda: arranjou outra mulher para Ilunga, Kamonga Luaza. Esta vai
gerar um filho que será chamado Yanvu, assumido por Lueji como seu e que será o
herdeiro do trono.
Passa o tempo, Lueji vai ter novamente de enfrentar a morte: a de Ilunga. Lueji não
chorou com os olhos, mas com o coração. “Ali, nas margens do rio, Ilunga foi enterrado no
maior silêncio. [...] era prodígio um rei ser enterrado sem choros, sem sacrifícios rituais,
sem suspeitas de feitiço, ele só e mais a sua felicidade?” (L., p. 473) Foi o marco de um
novo tempo que começava com Yanvu que exigiu imediatamente a posse do lukano.
Escolhido pelo Conselho dos Tubungo, “no largo principal à frente da oganda, estava e os
principais dignitários e o povo todo à espera...” (L., p. 476) foi submetido a algumas provas
70
em que se saiu muito bem. No dia seguinte, passou por rituais símbolos do poder. Tomou
“posse das terras onde se encontram as sepulturas dos antepassados e reunia em si as forças
vitais da natureza e da sociedade.” (L, p. 478) Terminadas as cerimônias, a mãe lhe dá os
últimos conselhos:
É melhor tomar o rio do que todo peixe que ele apresenta num dia, porque o peixe acaba
e o rio fica. Muitos vão querer te levar a guerras de conquista para saquear territórios e
vender escravos aos árabes.Tem cuidado.O território tem de ser tomado com carinho,
sem destruições, para poder render. (L., p. 478)
Mas ele não lhe seguiu os conselhos, “Lueji criou o Império e as condições da sua
destruição”. (L., p. 483)
Quatrocentos anos depois, em Luanda a estória desse grupo da aristocracia da
Lunda, com todos os seus objetos materiais, culturais é re-atualizada na história de Lueji,
contada transversalmente, através da dança e das ações da personagem Lu, bailarina, que
incorpora sua história inseparável da história da Lunda na busca da identidade do seu país e
de sua própria identidade, em cujos antepassados incluía-se Lueji, a quem chegava a
invocar, pedindo ajuda. A sociedade representada na época de Lu é uma sociedade em
mudança e que tem consciência dessa mudança.
A forma de as personagens do universo de Lu a ela se relacionarem é bem diferente.
A representação de seu mundo é outra: o mito dá lugar ao logos. Nos quatro séculos que
separam Lu de Lueji, a hierarquia dessa sociedade não é a mesma. Cada um busca o seu
próprio lugar nesta sociedade que está cada vez mais fragmentada.
Enquanto com Lueji a palavra final era a dela, aqui todos parecem falar a mesma
língua, mas cada subconjunto da sociedade é um conjunto de diálogo, ou seja: cada
personagem fala da sua maneira a seu grupo, a linguagem de um indivíduo será
estritamente determinada pelo grupo a que pertence, no interior da sociedade, de modo que
uma personagem que ascende socialmente, a linguagem deve acompanhar também esta
mudança. Por esse caminho pode-se encontrar um lugar para a antropofagia cultural
proposta por Oswald de Andrade: verifica-se a possibilidade de abertura e receptividade
para o outro, a devoração e a absorção da alteridade.
Nesse meio, é possível discutir-se sobre o fazer artístico, o fazer histórico e o
literário, tratar de sentimentos e da realidade do cotidiano, abrindo espaço para que o mito
71
morte do seu pai, Kondi, rei de Lunda, a quem ela sucedeu. Houve a insatisfação dos
irmãos mais velhos (tradicionalmente, o herdeiro do trono seria o filho mais velho), e de
boa parte dos súditos, além de desconfiança da maior parte deles, ameaças de guerras e
invasões de povos vizinhos.
Também na Lunda, o poder temporal está dividido. De um lado, o Conselho dos
Tubungo (antigos chefes das aldeias que se transformaram em uma aristocracia), do outro,
a rainha (Lueji), cuja palavra final é sua. A rainha costuma ouvir os feiticeiros, espécie de
poder espiritual que tinha grande influência sobre as decisões do Império, mas sabe que
eles não podem “nada contra um facto consumado pelo soberano” (L., p. 79) e, de certo
modo, Lueji vai quebrando um pouco a tradição e as prerrogativas de que gozavam, mas
pairava um clima de insegurança.
Maquiavel fez da política uma categoria autônoma desvinculada da religião e da
moral cristã, mas lembremos que, ao escrever O Príncipe, não havia na realidade histórica
nenhum príncipe que se apresentasse ao povo italiano com características de imediatismo
objetivo, tratava-se de pura abstração doutrinária. Ele está descrevendo o Estado real, o
Estado que ele viu e sentiu e está propondo uma nova leitura do que se pode fazer
recorrendo à forma anterior de Estado.
Costuma-se dizer que as normas de Maquiavel são para serem ditas, mas não para
serem aplicadas. Os grandes políticos começam negando Maquiavel para depois aplicarem
as suas normas disfarçadamente. Daí a afirmação de Croce, citada por Gramsci (1980, p.
10), que, “sendo o maquiavelismo uma ciência, serve tanto aos reacionários como aos
democratas” e compara-o à esgrima, “que tanto serve aos nobres quanto aos bandoleiros”.
O próprio Maquiavel nota que o que ele escreve são e foram aplicados pelos maiores
homens da História. Parece, portanto, que suas idéias são para quem não sabe, pretendendo
educá-los politicamente, ou seja, pretende educar o povo e a nação italiana. Assim
compreendido temos de reforçar a idéia de que Maquiavel está necessariamente ligado às
condições e às exigências de sua época.
Segundo Gramsci (1980), o que vai torná-lo “real” é a invocação de um príncipe
realmente existente. Ele invoca qualidades, traços característicos, deveres, necessidades de
uma pessoa concreta: César Bórgia ou Fernando de Espanha, pois eles foram príncipes bem
sucedidos (até onde lhes valeu a fortuna).
74
Qual o significado que Maquiavel teve no seu tempo e dos fins que ele propunha em
O Príncipe? Tratemos um pouco desta obra, pari passu.
Não era um livro secreto que circulava só entre os iniciados. O seu estilo é o de um
homem de ação, de quem quer impulsionar uma ação. É verdade que ele teorizou sobre o
real, mas, qual era o seu objetivo? Político? Moralista? Ele era republicano e escreveu em
defesa da República. Era um homem ético: não disse para ninguém agir da forma como
“aconselhou” o príncipe, ele só queria saber se era possível em todas as situações, agir de
acordo com os princípios éticos cristãos de seu tempo.
Dedicado a Lourenço de Médici, duque de Urbino, sobrinho do papa Leão X, o livro
foi recebido com frieza e sem nenhuma manifestação diante dos elogios e do testemunho à
sua devoção. Livro póstumo cujo título original era De Principatibus (Acerca do
Principado), composto de vinte e seis capítulos que, pela forma como se acham expostos os
assuntos, pode ser dividido: primeira parte, do capítulo I ao X. Trata dos Estados que se
dividem em repúblicas e principados e estes em hereditários e adquiridos, além dos
senhores eclesiásticos. A segunda parte, do capítulo XII ao XV apresenta apenas a
organização do Estado. A terceira parte, que compreende os capítulos XV a XXVI, trata
das regras de conduta que um Príncipe deve adotar para renovar a Itália.
Na Dedicatória, Maquiavel diz que, através desse livro, pretende pôr à disposição de
Lourenço “o conhecimento das ações dos grandes homens aprendido através de longa
experiência das coisas modernas e uma contínua lição das antigas”, [a compreensão de tudo
aquilo] “que em tantos anos e à custa de tantos incômodos e perigos, vim a conhecer” ( P.,
p. 129). E, ao mesmo tempo, pretende aproveitar a oportunidade de retornar à sua vida de
funcionário, como insinua no final: “E se Vossa Magnificência, do ápice da sua altura,
alguma vez volver os olhos para baixo, saberá quão sem razão suporto uma grande e
contínua má sorte.” (P.,p.130) Observamos aí a presença de um homem que conhece o seu
próprio valor e que, ao mesmo tempo, receia a miséria e o desprezo.
Ainda na Dedicatória, eximindo-se de presunção, afirma: ”para conhecer bem a
natureza dos povos é necessário ser príncipe, e para conhecer a dos príncipes é necessário
ser do povo” (P., p. 130) em que destaca, portanto, a preocupação que o governante deveria
ter com a imagem que oferece ao povo. Não é que ele necessite enganar, ser um impostor,
mas que tome consciência da importância de suas palavras e gestos, que os homens amam
75
- Mãe, ele não está doente. Pedi ao Kamexi para dizer isso apenas para os inimigos não
suspeitarem das minhas intenções. Finja preocupação, mas escusa de chorar. É claro que
vai comigo, isso também faz parte do plano. (L., p. 99-100).
No início do Capítulo I de O Príncipe já se destaca o seu caráter inovador com a
introdução do termo “Estado”: “Todos os estados, todos os domínios que tiveram ou têm
poder sobre os homens foram e são ou repúblicas ou monarquias.” (P., p. 3) Estado indica a
polis, para os gregos e a res publica, para os romanos. Mais tarde corresponde ao termo
república, e, em vez de três formas de governo, Maquiavel prefere duas: principado,
correspondente ao reino, e a república, correspondendo tanto à aristocracia como à
democracia. No principado o poder corresponde à vontade de um só, enquanto na república,
em suas várias formas, o poder se concentra numa vontade coletiva, que se manifesta em
colegiados ou assembléias (cf. BOBBIO, 1985, p. 83).
No entanto, Maquiavel não definiu Estado; quando ele se refere à república e à
monarquia, trata-se de formas de governo. Podemos inferir que o Estado é o poder central,
soberano, que se exerce com exclusividade e plenitude sobre as questões externas e internas
de uma coletividade. Está além do bem e do mal. Ele é, ele é o que deve permanecer, ele é
o que existe, ele representa o povo e o território. E qualquer que seja a forma de governo
assumida pelo Estado, para Maquiavel, o importante é que dure. O que representa perigo
para o Estado é a divisão: muitos governos num só país, diferentes tipos de regra para um
mesmo povo e a penetração do estrangeiro. E aqui entra um princípio de distinção entre os
homens, a sua identidade nacional: qual o lugar de origem, que língua fala, e quais suas
lembranças históricas.
Essa preocupação parece perpassar a obra de Pepetela. No passado, a Lunda está
dividida, Lueji é considerada uma rainha regente: até que o filho tenha condições de
sucedê-la. Precisa manter a paz, unir todos, evitar a invasão de outros povos. No presente, e
não podemos deixar de mencionar, Angola, recém-saída de guerras da independência,
encontra-se dividida entre tribos, interesses nacionais, e até individuais ou de facções
partidárias. A memória nacional tem de ser resgatada.
Para o momento histórico real vivido por Florença a solução é o Principado; para a
História em termos ideais, a condição necessária é a República. De um lado bons governos,
de outro os maus. Os bons governos duram pouco. A lei circular da História preside o
desenvolvimento de todas as nações porque de fato preside a própria natureza humana.
77
O Poder não é uma força bruta, “mas também não é uma honesta delegação de
vontades individuais que pudesse anular as diferenças”, citando Merleau-Ponty (1960, p.
267). Daí por que não importa que seja hereditário ou novo, o poder pode ser contestado e
está sempre ameaçado. A qualquer hora o acordo pode ser desfeito e compete ao príncipe
evitar que isso ocorra, o príncipe deve:
precaver-se não somente contra as discórdias atuais, como também contra as futuras, e
evitá-las com toda a perícia porque, prevendo-as, com ampla antecedência, pode facilmente
remediá-las, mas esperando que se avizinhem não haverá tempo para tratá-las, pois a doença
já se terá tornado incurável. (P., p.12)
O poder legítimo resguarda o príncipe de ser “desprezível e odioso.” (P., p.77), pois
“é mais seguro ser temido do que amado.” (P., p. 80)
O melhor apoio ao poder nem sempre resulta da ação do príncipe, mas daqueles que
crêem ter direito sobre ele ou que se sentem em segurança com ele. Mesmo assim, o
príncipe “poderá incutir confiança nos homens e conquistar-lhes o apoio beneficiando-os”.
(P., p.83) E Kakela diz para Lueji: “Um chefe tem de saber pelo menos um pouco de tudo o
que todos os homens sabem. Tudo o que ajuda um chefe a governar é para o bem do povo.”
(L., p. 50)
Para Maquiavel, a violência pura só pode ser episódica: se forem necessárias
algumas crueldades, que elas sejam cometidas de uma só vez, pois quando experimentadas
todas ao mesmo tempo, ofendem menos. Já os benefícios agem em sentido contrário: se
aplicados lenta e gradativamente, são usufruídos melhor.
Há uma longa cena em Lueji que pode exemplificar essa situação: foi depois da
morte imprevista de Kandala, em meio à conversa com Lueji, em que ela lhe comunicou o
seu casamento com Ilunga e de que ele discordou. Em decorrência disto, corriam boatos de
que Kandala fora vítima de feitiço por parte dos lubas. Ela convocou imediatamente os
suspeitos dos boatos e descobriu quem eram os culpados e os puniu severamente:
Kumbana, que levantou o boato, foi executado no largo, local público, decapitado como
punição exemplar; Chiombe, sobrinho de Kumbana, que lhe contou o que ouviu da
conversa da rainha com Kandala, deixou de pertencer à guarda real e foi integrado num
grupo do exército.
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Ao referir-se aos principados hereditários, no capítulo II, Maquiavel diz que eles são
mais fáceis de serem governados e de se manterem no poder: basta que o governante
continue a prática do que o antecedeu, e que contemporize em “situações especiais”.
E ainda o velho Kandala diz a Lueji: “Nunca esqueças, o poder é como um jogo.
Como o cutangaje, que outros chamam de tchela. O cutangaje é só para homens, mas uma
rainha deve saber jogar.” (L., p. 53)
No capítulo III Maquiavel trata dos Principados Mistos, e vai discorrer da
dificuldade de manter-se um Estado conquistado. “É de fato muito natural e comum o
desejo de conquista. Quando, podendo, os homens, que os realizam, merecem ser louvados
e não criticados; mas, quando não podem e querem realizá-lo de qualquer modo, neste caso
estão errados e devem ser recriminados.” (p. 14). Maquiavel enumera seis erros cometidos
pelo rei Luís, dos quais o maior erro foi o sexto: intrometer a Espanha nas coisas da Itália.
A primeira e a última preocupação do príncipe devem ser com “a guerra, as instituições e as
regras que lhe dizem respeito”. Para todo Estado antigo, novo ou misto, “os principais
fundamentos são boas leis e boas armas, mas não se podem ter boas leis onde não existem
boas armas, e onde são boas as armas costumam ser boas as leis.” (P., p. 57) As boas armas
e os bons exércitos seriam os do próprio príncipe, composto pelos cidadãos, pelos súditos -
o exército nacional.
“A Lunda não tinha praticamente populações submetidas. Havia era acordos entre
alguns Tubungo mais poderosos e povos que ficavam junto das suas terras”. (L, p. 68)
Sabiamente Lueji, ao ouvir através de Ndumba ua Tembo a notícia de que os Mataba se
revoltaram contra os Tubungo, quebrando o acordo de pagamento de tributos, estabelecidos
desde o tempo de pai e sendo aconselhada a entrar em guerra contra eles, recusa. “Primeiro
pela diplomacia, depois pela força.” (idem, ibidem, p. 68) Não havendo um código escrito,
as leis naturais da boa convivência deveriam ser postas em prática, primeiro. No entanto,
Lueji teve de cuidar da formação de um exército, como garantia da paz.
Em O Príncipe são apontadas quatro maneiras de se conquistar, manter ou perder:
pela própria virtù, portanto, por suas próprias armas; pela fortuna e pelas armas alheias; por
“velhacarias” e pelo favor e consentimento dos cidadãos.
Maquiavel discorre, sobretudo, sobre as duas primeiras. Virtù, sabedoria intrínseca,
energia, vigor, resolução, talento, valor bravio, e, se necessário, ferocidade. É a capacidade
79
que o governante tem para perceber o jogo das forças que caracteriza a política, para que,
agindo com energia conquiste e mantenha o poder do Estado. Logo: em política, o homem
de virtù é aquele capaz de mudar o rumo da história e realizar grandes feitos. Príncipe bom
é o que encontra a virtù na atividade, na capacidade de aproveitar com energia para obter
êxito. Fortuna é a sorte, o fatum. Mas qualquer que seja a virtù, ninguém se isenta da
fortuna. No capítulo XXV: De quanto pode a Fortuna nas coisas humanas e de modo se
pode resistir-lhe, ele discute as relações entre a fortuna e a virtù. Assim, podemos nos
questionar: até que ponto vale o empenho da virtù, se todas as coisas são reguladas fora de
nós? Maquiavel recorre ao livre-arbítrio e atribui a ele e à fortuna a metade de nossas ações:
[...] julgo possível ser verdade que a fortuna seja árbitro da metade de nossas ações, mas
que também deixe ao nosso governo a outra metade ou quase. Comparo a sorte a um
desses rios impetuosos que, quando se irritam, alagam as planícies, arrasam as árvores e
as casas, arrastam terras de um lado para levar a outro: todos fogem deles, mas cedem ao
seu ímpeto, sem poder detê-los em parte alguma. Mesmo assim nada impede que,
voltando a calma, os homens tomem providências, construam barreiras e diques, de
modo que, quando a cheia se repetir, ou o rio flua por um canal, ou sua força se torne
menos livre e danosa. O mesmo acontece com a fortuna, que demonstra a sua força onde
não encontra uma virtù ordenada, pronta para lhe resistir e volta o seu ímpeto para onde
sabe não foram erguidos diques ou barreiras para contê-la. (P., p. 119-120)
Portanto, o homem deve resistir à fortuna e com a virtù, pôr fortes obstáculos a sua
investida, ser impetuoso “porque a fortuna é mulher, e é necessário, para dominá-la, bater-
lhe e contrariá-la.[...] é sempre amiga dos jovens, porque são menos tímidos, mais ferozes e
a dominam com maior audácia.”(idem. ibid. p.122)
Para os que se tornam príncipes pela própria virtù e pelas suas próprias armas,
objeto do capítulo VI, a maior ou menor dificuldade em manter o principado está na mesma
proporção de maior ou menor de virtù de quem o conquistou. Uma vez instalados, terão
mais facilidade para conservarem. Mas para isto é fundamental o estabelecimento de novas
instituições, novas ordens.
Devemos convir que não que não há coisa mais difícil de fazer, mais duvidosa de
alcançar, ou mais perigosa de se manejar do que ser o introdutor de uma nova ordem,
porque quem o é tem por inimigos todos aqueles que se beneficiam com a antiga ordem,
e como tímidos defensores todos aqueles a quem as novas instituições beneficiaram (P.,
p. 25).
E como há a possibilidade de vir a ser atacado pelos que só crêem em novas
experiências depois de experimentadas a sua excelência, se faz necessário o uso da força
como forma de constrangê-los, “daí que todos os profetas armados vencem, enquanto os
desarmados se arruínam [...] a natureza dos povos é variável; e se é fácil persuadi-los de
80
13
idem, ibidem , p.25
81
14
idem, ibidem, p.28
82
pescador Mulaji, assim mesmo paira a dúvida de um possível parentesco entre eles. (cf. L.,
p 326-327 e p.345-346 e 347),.
Já com relação aos Grandes (poderosos) de que fala Maquiavel, em Lueji (L)
representados pelos membros do Conselho dos Tubungo, é realmente problemática a
relação. Observemos o diálogo a seguir entre Kakele e Lueji, por ocasião de ter colocado
um novo chefe de protocolo sem consultar o Conselho dos Tubungo e veremos como esta
afirmação se confirma:
– [...] vinha falar sobre o novo chefe do protocolo. Os muatas não apreciarem a
substituição. Este é muito novo, ainda não conhece bem a função. Está todo empertigado
e recebe os Tubungo sem o respeito devido.
- Vai aprender. Estamos todos a aprender, muata Kakele. E é da minha confiança.
- Devias ter escolhido alguém mais velho. E com assento no Conselho dos Tubungo. É
um cargo importante, fica a par de muitos segredos. Kanyika é de uma grande linhagem,
mas ainda não é um Tubungo, mesmo que pouco falte para o ser.
- Passa a ser pelo cargo que ocupa.
- É esse o maior problema. Os Tubungo não gostam que alguém passe a ser um deles por
ter sido nomeado para uma função. É sempre o contrário que se faz.Tubungo é quem
dirige linhagens ou partes importantes das grandes linhagens da Lunda. Kumbana está
bem. Já era um Tubungo, dirigia a parte ocidental da linhagem de tua mãe. Nunca
assistia aos Conselhos, mas apenas porque vivia longe. Já Kanyika é um garoto. E
arrogante, ainda por cima. Agora tem acesso ao Conselho e a todos os segredos!
- Há coisas a mudar, muata Kakele.
- Não muito depressa, tem cuidado com os sentimentos dos Tubungo. Somos muito
agarrados à tradição, sobretudo quando se trata de defender as linhagens da interferência
do rei. (L., p.69).
No capítulo VI de O Príncipe tem-se o modelo principal de príncipe, conquistado
pelas armas e pela própria virtù. Um primeiro modelo a ser imitado é o do homem humilde
que se eleva ao poder, mas todo ele passa por situações desesperadoras, das quais rompe a
ordem. Para isso, precisa de força porque os “profetas desarmados” não ganham batalhas. O
poder se consegue através das armas estrangeiras e da fortuna, cujo exemplo citado é César
Bórgia. O Príncipe tem de usar a virtù para transformar o acidente de poder em realidade
estável, ao abrigo da fortuna.
No capítulo XV Maquiavel tece as regras de conduta do Príncipe e insiste que está a
descrever a verdade política, que os outros autores costumam distorcer, pois “há tamanha
distância entre como se vive e como se deveria viver, que aquele que trocar o que se faz por
aquilo que se deveria fazer, aprende antes sua ruína que sua preservação”. (p.73)
83
aqui bem clara a necessidade de a rainha ter um consorte, mas ao mesmo tempo, de garantir
a tradição da sucessão matrilinear, de manter a tradição.
Escolhida sucessora do lukano pelo pai, Kandala, o feiticeiro mais antigo e de maior
confiança, vai comportar-se como um verdadeiro conselheiro, um educador, semelhante à
atitude de Maquiavel ao imaginário príncipe. São atitudes de homens que têm experiência,
conhecem a fragilidade dos Estados. Partindo desse princípio, Kandala vai não só ensinar-
lhe os rituais de invocação da chuva – condição para ter sua autoridade aceita -, mas vai
iniciar Lueji nas táticas e nos meios para ela bem governar seu povo. E observemos a
afirmação de Kandala: “Um chefe tem de saber pelo menos um pouco de tudo o que todos
os homens sabem. Povo com um chefe que não sabe é como uma manada de elefantes com
um guia maluco.” (L.,p.50) .
Muata Kakele lhe dá uma lição de humildade e sabedoria: “Mais vezes vais errar e
todos erram. O importante é saber corrigir. E erras menos se pedires sempre conselhos.”
(L., p.70) .
O que importava na política, assim como o foi no pensamento de Maquiavel, era o
sucesso, para isso, como foi exposto anteriormente, tinha de contar com a virtù e a fortuna.
Kandala vai orientar seus passos, de modo a encontrar formas de conciliar duas ações em
princípio antagônicas: a autoridade e a liberdade. Na prática, Lueji vai aprender que a
necessidade de um governo forte se sobrepõe à ética: uma coisa é o governo; outra é a
moral; os dois são independentes.
Ao príncipe da Lunda cabe-lhe usar de justiça, defender a honra, ter coragem,
moderar o orgulho, ter paciência, saber ouvir, pensar antes de agir. Também tinha de ter as
seguintes habilidades: saber caçar e pescar, atirar a funda (estas, Lueji havia aprendido com
seu irmão mais velho), e saber “comandar um exército, mesmo que nunca necessitasse de o
fazer” (L., p.50). Precisaria, ainda, de conhecer a História da Lunda e um pouco das artes
das kimbandas e aprender a falar com os espíritos.
E a aprendizagem de Lueji compreendeu também “como presidir cerimônias, curar
as doenças mais comuns usando ervas e sementes, a História da Lunda e dos povos
vizinhos, a arte da guerra e os feitos dos antecessores, os costumes mais antigos e os
modernos, os julgamentos mais importantes. Os juízes resolviam os casos correntes, ela
escutava para um dia resolver os mais graves.” (L., p.77)
85
Quem, portanto, num principado novo, julgar necessário garantir-se contra os inimigos,
conquistar amigos, vencer pela força ou pela fraude, fazer-se amado e temido pelo povo,
ser obedecido e reverenciado pelos soldados, eliminar aqueles que podem ou devem
prejudicá-lo, introduzir mudanças na antiga ordem, ser severo e grato, magnânimo ou
liberal, eliminar as milícias infiéis, criar outras novas, manter a amizade do rei e dos
príncipes de modo que o beneficiem com solicitude e temam ofendê-lo, não pode
encontrar melhor exemplo que as ações deste duque. (P., p. 34).
O terceiro modelo é Agatocles Siciliano, de quem trata no capítulo VIII. Ele chegou
ao poder, tornou-se rei de Siracusa por via criminosa, assassinando, juntamente com seus
15
idem, ibidem, p.23
86
soldados, todos os senadores e pessoas mais ricas do povo. Nada deve à fortuna nem a
virtù, pois alcançou o poder e não a fama; contudo, Maquiavel o considera um virtuoso,
pois foi capaz de, aproveitando-se da ocasião, conseguir expandir e reforçar o seu poder.
Sem fazer referências a modelos a serem admirados, Lueji teve que aprender a
História da Lunda, e fatos exemplares foram contados a ela. Um bastante significativo lhe
foi contado por Kandala sobre o avô de Lueji, Yaka Muako: ele, por cobiça, fez de Kakeya,
mulher do escravo e pescador Sumbi, sua amante. Mas Kakeya e Sumbi se amavam, e
continuaram se encontrando escondido e, uma vez apanhado com a mulher do chefe,
mereceria ser punido com a morte. Foi o que aconteceu. Levado a julgamento, frente ao
Conselho este opinou que o rei deveria fazer a reposição do matemo para continuar com
Kakeya. A sentença não foi aceita pelo rei, mas ficou a lição para Lueji: “Mesmo com os
escravos se deve respeitar as tradições, são elas que regem a justiça dos homens.” (L., p.
78)
Dos capítulos XV a XX, Maquiavel traça o retrato por inteiro do novo príncipe, e à
medida que o vai fazendo, vai também compondo o que vem a constituir posteriormente o
maquiavelismo.
Como deverá ser a relação do príncipe com seus súditos e amigos? Quais os seus
deveres? Estas são questões cujas respostas só encontraremos em torno da realidade do
príncipe, e esta nos mostra que o príncipe vive cercado de perigos: em primeiro lugar,
internamente, no próprio Estado e no comportamento de seus súditos, e exteriormente nos
desígnios dos povos vizinhos. Em meio a tanta maldade existente não se vive como deveria
viver. Daí o príncipe, para manter-se como tal, deve ou não praticar o bem, de acordo com
as necessidades. O melhor seria que o príncipe fosse sempre bom, mas isto é praticamente
impossível, devido às próprias condições humanas. Deve ser suficientemente prudente para
evitar os vícios vergonhosos que lhe tirariam o Estado. Paradoxalmente, certos defeitos e
vícios podem ser necessários à conservação do Estado e certas qualidades poderiam perdê-
lo, porque, “considerando tudo muito bem, se encontrará alguma coisa que parecerá virtù e,
sendo praticada levaria à ruína; enquanto uma outra que parecerá vício, quem a praticar
poderá alcançar segurança e bem-estar.” ( P., p.74)
Os capítulos seguintes tratam das virtudes que o príncipe deveria ter. Seria bom ter a
reputação de liberal, mas na justa medida, usada com virtù. As liberalidades exageradas
87
Tinha de ter muito cuidado e não mostrar o seu ressentimento. Fora demasiado brusca
para o velho, o que não adiantava nada. Como lição bem chegava. Logo devia lhe enviar
uma prenda para compensar a derrota e a humilhação do Tubungo. As duas sugestões
que ele apregoara aos quatro ventos serem dele foram rejeitadas pela rainha. Isto fazia
cair muito o prestígio junto dos Tubungo e provocar gozo aberto dos mais novos. [...]
Era cinismo ela bem sabia, mas o poder não está feito dele? (L., p. 161).
Prosseguindo Maquiavel em seus ensinamentos ao novo príncipe, há um a
considerar: como eles devem proceder para se livrar dos aduladores, abordado no capítulo
XXIII. Fundamental é o príncipe fazer com que todos reconheçam a necessidade de dizer a
verdade; mas não é qualquer um que deve dizê-la ao príncipe: apenas aqueles, que graças à
prudência e à sabedoria do príncipe, foram escolhidos por ele, por serem também sábios, e
falarão apenas “sobre as coisas que o príncipe lhes perguntar, mais nada.” (P., p.113)
Lueji costumava ouvir principalmente Kandala porque, além dele ser velho e
experiente, ele era o feiticeiro mais importante, mais sábio e respeitado da Lunda a quem
ela tratava por pai; ouvia também a Tchinguri, agindo de acordo quanto alguns pontos de
subversão à tradição, embora discordando de seus pontos de vista com relação à maneira
como ele analisava a situação da Lunda e da sua disposição para guerras, mas não dava
demonstração do acatamento. Pesava muito no acolhimento de suas opiniões o fato de ser
seu irmão mais velho, muito corajoso, e de ser a pessoa a quem ela mais admirava desde a
infância. Mesmo assim, quando esteve em jogo o interesse maior da Lunda, ela não hesitou
em assumir uma postura de oposição a ele.
89
E que na impossibilidade de ser amado e temido ao mesmo tempo, é melhor ser temido.
Não pode ser totalmente humano, mas ao mesmo tempo ser raposa e leão.
E algumas vezes Lueji vai agir como esperta raposa e/ou leão traiçoeiro. Mas
nenhuma vez foi mais importante do que quando Lueji falou com Tchinguri sobre a
desvantagem de ele entrar em guerra contra a Lunda. Ela alegou ter melhores armas e
fingiu contar com o apoio dos lubas, dirigindo-se em tom soberano e de desprezo:
E como se isto não bastasse, ela jogou sua última cartada, quando ele questionou
sob o fato dela fazer alianças com os inimigos da Lunda:
escapou de vir a ser prisioneiro dos inimigos que com a vitória desses soldados, fugiram.
Lembra, também, como ficou diferente a situação de César Bórgia quando conseguiu ter
“seus próprios soldados e ser senhor de si mesmo” e os Orsini e Vitteli lutando a seu lado.
Nem mesmo os franceses, que possuíam um exército constituído por soldados mercenários
e por soldados de seu próprio exército, na sua opinião, bem melhores do que os
exclusivamente mercenários, conseguiram vencer os suíços. Eram, mesmo assim, muito
inferiores ao exército formado exclusivamente por seus próprios soldados. Desse modo,
qualquer principado que não tivesse suas próprias armas estaria sem segurança, aliás, estará
inteiramente à mercê da fortuna, não havendo virtù que confiavelmente o defenda na
adversidade.
Ao defender insistentemente a formação de um exército composto por súditos, ele o
faz com base em sua experiência, quando, por força das funções exercidas, recrutava
soldados para Florença. A sua idéia não era inovadora; a inovação estava no fato de que
não seria um exército temporário, mas seria uma milícia nacional permanente.
Os capítulos VI e VII de O Príncipe tratam de um aspecto que não se pode deixar de
relacionar ao romance: é no tocante à organização do exército como forma de proteção ao
Estado, de manter-se no poder e “para quando não acreditarem mais, seja possível fazê-los
crer à força”. (P., p. 26). Maquiavel justifica ainda a necessidade de exércitos, em razão da
dificuldade em se manter nova ordem, de possíveis ataques de povos vizinhos, da
necessidade de fazer novas conquistas, de desconfiar de antigos aliados dos antecessores,
pois, segundo ele: “Engana-se quem crê que nos grandes personagens, os benefícios novos
fazem esquecer velhas injúrias”. (P., p.35)
Todas essas razões se justificam para a nova organização do exército em Lueji, o
nascimento de um império. Primeiramente contra os Mataba, que estavam contra a nova
ordem de cobrança do pagamento dos tributos e sua recusa em fazê-lo. E depois contra o
próprio irmão Tchinguri, que possuía um exército relativamente grande, a ponto de pôr à
sua disposição uns quinhentos homens de que aceitou sabiamente apenas cem. Mas isso
deixou Lueji muito preocupada e fez com que pensasse em organizar imediatamente seu
próprio exército. Tchinguri estava revoltado contra o apoio dos Tubungo a Lueji e uma
guerra poderia surgir a qualquer momento...
92
E chegou a hora de Lueji pôr em prática o sábio conselho do velho pai Kondi:
estabelece uma falsa aliança com a Luba. Ou como na prática fez valer o conselho de
Maquiavel: “Creio ainda que é feliz aquele que combina o seu modo de proceder com as
exigências do tempo...” (L., p. 120) Casou com Ilunga porque se amavam verdadeiramente,
mas astuciosamente conseguiu assustar e anular as intenções de Tchinguri, por julgar que
Ilunga contava com o exército Luba, povo considerado muito valente e de que dispunha de
melhores armas.
E assim a Lunda finalmente conseguiu passar um bom tempo em paz.
Se o percurso transcorrido foi longo é que pensamos que só pela junção da presença
humana e da palavra é que o homem se define. E concordando com Maquiavel e o que dele
está no mitógrafo Pepetela, achamos por bem acrescentar a opinião de Dilthey de que o
homem não tem natureza, tem Históría e não se define senão em situação.
Os homens, segundo Marx fazem a história, mas até agora sem saber o que fazem:
movida pelo desenvolvimento das forças produtivas, a história acabará criando
homens capazes um dia de fazer sua própria história com plena consciência.Os
homens, segundo Maquiavel, carregam a responsabilidade da sua história, mas não
têm motivos para ter orgulho dela.
Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx (1978, p.329) diz:
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem: não a fazem sob
circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente legadas e
transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um
pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-
se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise
revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado,
tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa
linguagem emprestada.
Ora, de acordo com Marx, a história traz em si mesma ‘a promessa de redenção’
com o poder coletivo – promessa que Maquiavel não enxergava, pois, a busca do poder era
individual. Na parte em que se trata da personagem Lu, e de outras à sua volta, podemos
esposar estas idéias de Aron sobre Marx.
16
Tradicionalmente, os cahamas foram povos que sempre ofereceram muita resistência aos estrangeiros.
Encontramos em Serrano alusão à luta de resistência, também chamada Cuanhama, contra o expansionismo
europeu em 1904/1907.
94
Lu tem uma consciência política bem definida. Quando sofreu acidente no ensaio e
Uli queria levá-la de táxi para casa, não aceitou. Considerava muito elevados os preços
cobrados e sabia que muitas pessoas estavam a necessitar do transporte coletivo. Recusar-se
a andar de táxi era também uma forma de lutar por preços acessíveis a todos e contra a
exploração capitalista, remetendo a uma perspectiva marxista.
Em Paris, para onde foi fazer um curso de dança, distante do seu povo, cresceu a sua
consciência igualitária, esta sim, na sua opinião, é mais importante do que a legislação
igualitária que há em vários países. E aqui se reflete mais um ponto a consciência da
angolanidade, que segundo Bacega (1993, p 143) é: “a construção de uma nação que
emerge de todas as influências recebidas e co-participadas, avançando para uma nova
forma de sociedade.”
Um trecho significativo da presença de uma consciência crítica é quando Lu precisa
de quem entenda de estratégias de guerras para repassá-las a Afonso Mabiala, que está
compondo a música para a encenação da história de Lueji, e se lembra de Herculano, o
historiador, e conclui que ele “Vai só se preocupar com verossimilhanças e possibilidades
históricas, forças sociais abstratas, e vai esquecer o homem que modifica tudo” (p. 247).
Vai à procura de Bit-Bit, veterano da guerra pela independência e este vai apresentar uma
visão crítica de militância política e de como a memória do país não é reconhecida aos
verdadeiros heróis: ”Nunca fiz guerra nenhuma, mas apoiei por trás. Na luta pela
independência, não perdia um programa da rádio clandestina e passava os mujimbos aos
amigos. Arriscava a liberdade. Isso era ser militante naqueles tempos. Outros fizeram bem
menos e hoje até memórias já escreveram, por isso vão ficar na História como grandes
patriotas.” (p. 248) Na realidade, está implícita nessa fala do Bit-Bit “a reivindicação
concreta da abolição das classes, que é a tradução histórica e necessária da idéia de
igualdade.”(ARON, 2005, p. 486)
Outro que tem idéias socialistas é o músico Afonso Mabiala. Tem consciência do
seu valor. O ranço contra a colonização faz com que sempre teça crítica aos europeus: “ –
Eu sei essa música é uma porcaria. Meti-lhe electrônicas como os franceses metem molhos
na carne para disfarçar a qualidade.” e logo adiante: “se fosse o “Cahama” original, de
certeza já tinha feito a música há muito tempo. Agora esta estória, com romantismos no
meio... é muito europeu.[ ...] Estes dramalhões de mulher morta e noivo que chora, quer
95
queiramos quer não, sabem-nos a europeu. Porque apareceram em mil peças de teatros e
filmes.” (L., p.57).
Mabiala conheceu o sentimento de ser desterritorializado, tinha nascido no Zaire,
onde os pais se exilaram com a guerra de independência de Angola e saído de lá muito
novo. Em criança, foi marcado por um sentimento de o olharem com desconfiança. Fez o
curso superior de música em Moscou, “voltou com a independência, aprendeu o português,
esqueceu o lingala, e se integrou.” (L., p122) “O seu trabalho está virado para a estilização
da música tradicional do Norte do país e fazia composições surpreendentes com diálogos
entre quissanjes e chingufos e órgão eletrônico.” (idem, ibidem)
Outra personagem que se relaciona com Lu é Cândido, nome significativamente
escolhido. Tinha cinco anos na época da Independência e se lembra da guerrilha dos Cuvale
que lhe arrebatou o pai e o irmão mais velho. Distinguiu-se nos estudos agrícolas, mas não
esqueceu sua vida de pastor. Aos vinte e dois anos estava formado. Foi como dançarino do
grupo do Lubango, chamado a integrar o grupo de dança, após a desistência de Uli depois
de descobrir-se apaixonado por Lu e achar este amor um caso incestuoso, e não mais querer
formar par com ela. No bailado, Cândido interpretará o papel de Ilunga que caberia a Uli;
na vida ele será uma espécie de conselheiro de Lu, vindo a lhe ampliar a consciência
política.
Sendo homem do campo, Cândido estranhava algumas atitudes das pessoas da
cidade, paradoxalmente, da religião, de que ele dizia só amarrarem os homens. Mais uma
vez se faz presente no subtexto o pensamento marxista concernente à religião, pois,
segundo Wolff (2002, p.28), quando Marx escreveu, no início do seu texto Para uma
crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução: “a crítica da religião está no essencial
concluída” já era do seu conhecimento os “debates teológicos dos Jovens Hegelianos”
sobre questões como: Por que Deus criou o mundo? Se Deus é perfeito e auto-suficiente,
porque é que se deu ao incômodo de criar o que fosse fora de si, quanto mais algo tão
imperfeito como o mundo? , bem como o pensamento de Hegel e de Feurbach sobre essas
questões.
Hegel havia proposto uma resposta original. É que Deus sem o mundo não seria
Deus, ou seja, Deus para se definir, precisava de um objeto, algo que lhe fosse externo. Só
participando do mundo, interagindo com ele, pode vir a adquirir o conhecimento de si, a
96
sua consciência. Desse modo, a nossa história como seres humanos é também a história de
Deus, chegando à consciência de si. Considerando o judaísmo e outras religiões como
obsoletas, considera o cristianismo como verdade absoluta. Isto não foi aceito pelos Jovens
Hegelianos, que em diversas obras criticam a doutrina hegeliana do cristianismo. Um deles
é Bruno Bauer, conhecido da Universidade de Berlim, que, ao fazer uma análise textual dos
evangelhos em Kritik de evangelichen Geschichte de Synopter mencionada pelo já citado
Wolff (ibid., p.26), defendeu que todos os evangelhos são de S. Marcos. Se isto for
verdade, “o Cristianismo é uma ilusão e os que nele acreditam estão enganados.” (id, ibid.,
p. 26)
Já Feuerbach, em A essência do Cristianismo (1841), defendia que a razão pela qual
os seres humanos se parecem com Deus não é por Deus nos ter criado à sua imagem, mas
por nós o termos criado à nossa. No caso, nós apenas elevamos as capacidades que
pertencem aos seres humanos a um nível infinito e atribuímos a um ser exterior a nós todas
essas capacidades. Indo um pouco além, Feuerbach acha que o ser humano deve substituir a
religião por um humanismo radical: um entendimento, gozo e celebração das nossas
capacidades de entendimento verdadeiramente humanas, que nos permitirão criar uma
verdadeira comunidade na terra (cf. Wolff na obra acima referida).
Ora, conhecedor desses pensamentos, Marx aceitou sem reservas a afirmativa de
Feurbach que o homem inventou Deus à sua imagem, mas foi mais além. A ele interessava
“desmistificar” a religião como forma de também atacar a autoridade política
contemporânea que se julgava alicerçada na religião. Daí é fácil compreendermos a ameaça
que o ateísmo dos Jovens Hegelianos representava ao Poder.
Uma questão tornou-se fundamental para Marx: Sem sabermos como surgiu a
religião, como podemos fazê-la desaparecer? Marx vai defender que os seres humanos só
inventaram religião porque a vida na terra era revoltante e miserável, ou seja, a religião é
um produto das condições econômicas dos grupos humanos.
Neste sentido, a religião desempenhava primitivamente uma função social: era o
lugar onde a humanidade oprimida pela miséria social lançava suas lágrimas. É neste
contexto que surge a famosa frase: “a religião é o ópio do povo”.
Da Introdução à Crítica à Filosofia do Direito de Hegel retiramos essas afirmações
de Marx:
97
A religião não faz o homem, mas ao contrário, o homem faz a religião este é o
fundamento da crítica irreligiosa. A religião é a autoconsciência e o autoconsentimento
do homem que ainda não se encontrou ou já se perdeu. Mas o homem é um ser abstrato,
isolado do mundo. O mundo é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade. Este Estado,
esta sociedade engendram a religião, criam uma consciência invertida. A religião é a
teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica popular, sua
dignidade espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua
razão geral de consolo e de justificação. É a realização fantástica da essência humana
porque a essência humana carece de realidade concreta. Por conseguinte, a luta contra a
religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo que tem na religião seu aroma
espiritual.
Mas o pensamento filosófico de Marx em breve tomou novo rumo, verificável no
ensaio “A questão judaica”, publicado em 1843, em que ele analisa a questão dos direitos
políticos e sociais do povo judeu, em resenha a dois ensaios de Bauer, não através da
religião, como este o fizera, mas analisando o cotidiano judeu pela ótica das relações
comerciais. O dinheiro e não a religião é a causa da alienação humana, conforme podemos
constatar em trecho desse citado ensaio extraído por Singer (2003, p.34):
O dinheiro é o valor universal e o auto-constitutivo de todas as coisas. Assim, ele privou
o mundo todo, o mundo humano e também a natureza, de seu valor próprio. O dinheiro é
a essência alienada do trabalho e da vida do homem, e essa essência alienada o domina
quando ele a cultua.
A crítica à alienação econômica indissoluvelmente relacionada à alienação
religiosa fora levantada, mas só isto não é suficiente, é preciso que se torne “uma força
material”. Para tanto, é necessário que atinja as massas, os proletários. Ora, o proletário é
por excelência o homem alienado; esta não é vista como uma classe social particular, mas
universal. Na alienação de que é vítima, não é a essência do homem que se perde, mas seu
produto.
Cândido vai ainda lembrar a responsabilidade do artista na educação do povo.
“Essas crenças só servem para escravizar. [...] Também como professor de dança,
mostrando que a tradição deve ser utilizada, mas num sentido de progresso, de libertação
das pessoas” (L., p. 456), no que Lu afirma não estar muito certa de que as crenças
escravizam, ao que ele argumenta:
- É evidente para quem viveu nessas sociedades. O poder tradicional baseia-se nisso.
Dos velhos sobre os novos, dos homens sobre as mulheres, das idéias velhas sobre as
idéias novas. E a submissão do homem à natureza. O homem se torna incapaz de
iniciativas para mudanças benéficas, pois tudo gira segundo a vontade dos ventos ou do
oma-kisi. O homem acaba por não contar, é um joguete das forças superiores. Se o
homem não conta, como vai mudar a sociedade e aperfeiçoar os métodos de trabalho? Só
98
a educação pode mudar as coisas, mas uma educação vista em termos globais, de cultura.
(L., p.456).
Ora, para Marx, toda a história da humanidade, desde que ultrapassou as sociedades
tribais primitivas, tem sido a história das lutas de classe, conflitos entre exploradores e
explorados, opressores e oprimidos. Nas suas primeiras obras, o tema dominante é o de que
a sociedade capitalista faz de mal ao consumo humano, esmagando o potencial do ser,
impossibilitando-o de se desenvolver totalmente. Só o proletariado poderia livrar a
sociedade de toda exploração, opressão, distinções e lutas de classes.
Em 1848, quando publicou o Manifesto Comunista, Marx (1986, p.84) afirmava: ”A
moderna sociedade burguesa saída do declínio da sociedade feudal, não eliminou os
antagonismos de classes. Limitou-se a colocar novas classes, novas condições de opressão,
novas formas de luta em lugar das anteriores”.
A civilização burguesa é comparada ao “feiticeiro que já não consegue dominar as
forças ocultas que trouxe à luz.”17
No Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx
(2002, p.99) constata que a economia capitalista é muito injusta, cria o paradoxo da fome
em meio à abundância. Daí afirmar que: “Um elemento de êxito os trabalhadores possuem
– número; mas os números só pesam na balança, quando unidos pelas associações e
encabeçados pelo conhecimento.”18 A luta de classe, com uso de tática e estratégias de
guerra são necessárias e justificáveis, para possibilitar ao proletariado arrebatar o poder
político, abolir o domínio capitalista privado e estabelecer a sociedade sem classes.
Lu quer saber um pouco mais sobre a adulteração da cultura, e Cândido lhe diz que
“qualquer aperfeiçoamento é uma adulteração. E nenhuma cultura se mantém parada. Isso
queriam os nossos tradicionalistas, para não perderem os privilégios” (L., p.456). Aqui fica
implícita a critica de Cândido à posição da Igreja Católica, certamente, que desde o início
da colonização esteve aliada aos portugueses.
Ele é um materialista que vai ampliar a visão de mundo de Lu, conduzindo-a a uma
práxis mais consciente e ao mesmo tempo mais otimista quanto ao enfrentamento do que no
futuro há de vir. Chama a atenção dela para que em outros textos literários se interesse
pelos menos privilegiados da sociedade: camponeses, pescadores e escravos. Apaixonam-
17
idem, ibidem p. 87
18
idem, ibidem p. 104
99
se, mas ambos não se dispõem a abrir mão dos seus ideais de vida. ”Tu voltas para os teus
bois e eu para o meu palco. Sempre sozinha.” (L., p. 479)
Lu - Lueji; Uli–Tchinguri, Ndumba-Cândido, Amor X Rejeição. Drama do passado
que se funde e se repete de maneira invertida, quatro séculos depois, e de que resulta
solidão.
No palco, assim como na vida, todas essas imagens se fundem, sob o aplauso da
platéia. E ficamos com a imagem utópica de Mulaji: “E um dia muito longe, fartos de
serem humilhados e espoliados, outros povos vão se levantar [...] Neste momento já se
encontram aprendendo devagarinho-vagarinho. Um dia vêem [...] e acabam com o
Império”. (L., p.483)
Detivemo-nos em alguns elementos da teoria marxista de que os narradores deles se
utilizaram e que nós leitores verificamos ao nos aproximarmos do hipotexto. Sentimos a
politização do narrado e nos apercebemos de sua mensagem: tão importante quanto saber é
agir. Neste, como em outros aspectos, achamos que as idéias de Maquiavel e Marx se
fundem.
Escrito entre 1996 e 1997, publicada a 1ª edição em Lisboa, em 1997, pelas Edições
Dom Quixote e pelo Círculo de Leitores em 1999, esse livro foi também publicado no Rio
de Janeiro pela Nova Fronteira nesse mesmo ano. O subtítulo do romance é deveras
esclarecedor: “O tempo dos flamengos” que já anuncia o contexto histórico da narração:
período da dominação holandesa em Angola. Os doze capítulos em que se acha dividido o
livro tem cada um uma data marcada referente ao tempo do narrado, abrangendo em sua
totalidade os sete anos da dominação, de 1641 a 1648. Todos os capítulos estão antecedidos
por um prólogo constituído por um excerto da História Geral das Guerras Angolanas
(1680), de António de Oliveira Cadornega. À exceção dos capítulos primeiro e décimo, os
demais capítulos têm uma epígrafe retirada de obra ou documento histórico comprovado,
como a fazer um contraponto com a voz do narrador, a voz da história e a voz da estória se
100
Pedro César de Menezes, governador português em Luanda, que, com a chegada dos
holandeses, retirou-se para o interior Preparou-se para retirada, conduzindo duas carroças
de ouro e prata, fechando-se no forte de Santa Cruz, salvando, dessa forma, grande parte
dos seus bens, sem, no entanto, haver permitido que outras pessoas assim procedessem.
Alegou que ali se refugiara como forma de resistência, para não perder a cidade e sentir-se
desmoralizado, queria parecer que estava fazendo um ato heróico, uma vez que toda a
cidade tinha canhões apontados contra ela, mas era tudo artimanhas, para se retirar sem
combates e não parecer covarde. De derrota em derrota fixou-se em Massangano, a
fortaleza portuguesa mais bem situada e fortificada do sertão, mas aos poucos a situação foi
se agravando porque não só os holandeses estavam a receber mais tropas, como também
alguns sobas mais poderosos e de área próxima aproveitavam–se para vingar-se de afrontas
recebidas e aliavam-se aos holandeses. À custa de alguns acordos com os holandeses, e
confiando nisto, transferiu o seu arraial para as margens do Bengo, onde a 26 de maio de
1643, foi traiçoeiramente atacado por eles, tendo morrido na luta muitos oficiais. Ele,
juntamente com muitos portugueses, foi aprisionado, conduzidos a Luanda e boa parte
deles foi embarcada para Pernambuco. Aproveitando-se de outras tréguas com os
holandeses, os portugueses conseguiram com que Pedro César fugisse, refugiando-se no
Massangano, reassumindo o governo em janeiro de 1644, em que esteve até regressar ao
Rio de Janeiro no ano seguinte.
Francisco Sottomayor, governador da capitania do Rio de Janeiro que partiu com
novos reforços de pessoas e artilharia para Angola, aonde chegou, e tomou terras na baía de
Quicombo em 26 de julho de 1645. Lá encontrou Matias Teles Barreto, um dos
sobreviventes do primeiro reforço às tropas enviadas esse ano a Angola sob o comando de
António Teixeira de Menezes, o Capitão Antônio Gomes de Gouveia. Este conhecia bem a
terra e seus habitantes e pôde conduzi-lo e a sua gente até o Massangano e ajudar Pedro
César de Menezes a retirar-se para o Rio de Janeiro. Veio substituí-lo por ordens do rei D
João IV que havia ‘mandado’ Pedro César de Menezes regressar a Portugal. Sottomayor
chegou com o seu reforço, depois da morte de Domingos Lopes de Sequeira na mão dos
jagas da Kissama. Juntou aos sobreviventes encontrados alguns moradores de Benguela.
Conseguiu assustar os holandeses de Luanda que reclamaram por ele ter desembarcado em
território holandês sem autorização, alegando que trazia como reforços para o Massangano,
106
mais de mil e duzentos homens dispostos a atacá-los, “se eles insistissem nas suas birras”
(AGF, p. 219), mas na realidade dispunha apenas de cerca de quatrocentos homens. “Ferve
em pouca água, anda muito direito, de cara fechada e roupas totalmente negras, até parece
um conquistador espanhol. E esses bem os conhecemos, que sempre os temos amargado na
Flandres.” (AGF, p 221) Conseguiu pacificar alguns sobas revoltados e se preparava para
enfrentar em combate os holandeses, quando veio a falecer em maio de 1646, “vítima dos
rigores do clima e dos fatigantes trabalhos que teve de empreender” (SANTOS, p 82),
assumindo em seu lugar uma junta composta por três capitães: Bartolomeu Vasconcelos da
Cunha, Antônio Teixeira de Menezes e João Zuzarte de Andrade.
Antônio de Oliveira Cadornega, jovem soldado “que tinha chegado a Luanda no
mesmo barco de Pedro César e que era conhecido como ‘segundo Camões’ por andar
sempre com um caderninho a tomar notas, talvez a fazer poemas.” (AGF, p. 41) Autor da
História das Guerras Angolanas. Natural de Vila Viçosa, mas muito integrado à sociedade
angolana.
Jinga Mbandi, rainha de Angola e Matamba, nos séculos XVI-XVII (1587-1663)
que fazia guerra contra os portugueses, para impedi-los de fazer comércio de escravos. Para
tanto, armou o povo do Planalto do Bié, região central de Angola, com as armas que
recebia dos pombeiros para que eles enfrentassem os portugueses que para lá se dirigissem.
Depois de coligar-se aos Estados de Matamba, Ndongo, Congo, Kassanje (em 1647 desistiu
do acordo, celebrou aliança com os portugueses), Dembos e Kissama e depois de ver-se
com um grande exército, atacou os portugueses, obrigando-os a se refugiarem nos fortes de
Muxima e Massangano, onde eles ficaram muito bem protegidos. Com a invasão
holandesa, ela veio a aliar-se com estes, embora os holandeses não confiassem totalmente
nos africanos, às vezes ajudavam os portugueses do Massangano, enviando-lhes comida.
Com a derrota dos holandeses, sem quem lhe fornecessem armas e com a desistência de
alguns Estados da antiga coligação, Jinga, em 1656, veio a fazer nova trégua com os
portugueses. Morreu aos 82 anos. Gostava de ser chamada Rei, não tinha marido, pois dizia
não querer nenhum homem mandando nela, ela é que gostava de mandar nos muitos
homens do seu harém e os chamar de esposas. Há dez anos tinha sua irmã Engrácia
(Cambu) como prisioneira dos portugueses e não se preocupou em libertá-la porque ela lhe
escrevia e a mantinha informada dos planos dos portugueses. Só após negociações com
107
Salvador Correia de Sá, em 1656, postas em prática depois que ela ameaçou entrar em
guerra novamente com os portugueses, é que ela conseguiu libertá-la. A sua resistência à
ocupação nacional, as estratégias usadas desde a conversão ao catolicismo até as práticas
jagas de canibalismo criaram um imaginário em torno do seu nome que a torna símbolo da
luta contra a opressão.
Gaspar Borges Madureira, português, “Capitão-mor de Cavalos”, grande
colaborador dos Governadores Pedro César de Menezes e de Manuel Pereira Coutinho, que
governou Angola entre os anos de 1630 e 1635. Derrotou a rainha Jinga, no Dande, em
janeiro de 1647. Aprisionou sua irmã, D. Bárbara, que veio a substituir Jinga no trono da
Matamba, como Rainha Amona. Esta, apoiada em alguns pombeiros, em comerciantes e em
parte da população manifestava-se contra o representante de Portugal. Vivia em meio a
muita pompa e riqueza, “vestida dos mais ricos tecidos e muitas jóias e ouro, especialmente
quando recebe alguma delegação do rei do Kongo. Sendo um reino ora amigo ora rival, tem
de impressionar mais que qualquer outro”. (AGF, p. 263) Sentiu-se injustiçado, quando por
morte de Sottomayor, ficou fora dos escolhidos para a junta governativa.
Dom Agostinho Corte Real era o “Mani-Lunda, representante do rei do Kongo”
(AGF, p. 78), “Homem poderoso e muito violento”. (idem, ibidem). Quando os portugueses
começaram a “apanhar zimbos em Benguela e a comprar peças no Congo com essas
moedas colhidas mais a sul” (AG.F, p.42) pioram as suas relações com eles, e Dom
Agostinho se torna aliado dos mafulos.
Henrique Dias, filho de escravos de Angola, tinha ido para o Brasil e em
Pernambuco tomou parte das lutas a favor da expulsão dos holandeses, chefiando sua tropa
constituída por ex-escravos, escravos, mulatos e índios. Segundo Puntoni (1999, p 168),
“chegou a receber os títulos de fidalgo, o hábito da Ordem de Cristo e a patente de mestre-
de-campo pelos serviços prestados”. Foi governador de Angola, após o retorno de Salvador
Correia de Sá.
Georg Marcgraf de Liebstadt, naturalista alemão, fez parte da missão científica de
Nassau, interessado em estudar a flora do Brasil e Angola. Autor da obra Historia Naturalis
Brasiliae, 1648, impressa em Amsterdã e que contou com a colaboração de Joannes de
Laet, autor de L’Histoire du Nouveau Monde ou Description de Indes Occidentales.
Também elaborou um conjunto de mapas do Brasil Holandês e de regiões da África que
108
têm ilustrações de Frans Post. Faleceu em Angola, vitimado de febres. Em sua opinião, as
críticas feitas a Nassau deviam-se ao fato da Companhia das Índias considerar
“esbanjamento inútil” tudo o que viesse a melhorar as condições de vida dos habitantes do
Recife.
Gaspar Barlaeus, cronista, professor em Amsterdã, pintor, mas se considerava um
cartógrafo. Autor da História dos feitos recentes praticados durante oito anos no Brasil e
noutras partes sob o governo do ilustríssimo João Maurício conde de Nassau (1647) em
que apresenta belas descrições de regiões da África e do Brasil, com paisagens rurais e
urbanas bem como cenas de batalhas e um mapa não nuerado do Chile, segundo Silva
(2001). Na narrativa em estudo, destaca-se como pintor. Assim como Marcgraf fazia parte
do círculo de estudiosos protegidos por Maurício de Nassau, viera estudar sobre pessoas,
natureza e coisas de Angola.
Cornelis Hendricks Ouman, segundo diretor da Companhia das Índias Ocidentais
em substituição a Hans Molt. Já estivera em Luanda como chefe do Comércio; amigo de
Dom Agostinho Corte Real, e “muito fez pela aproximação entre o Kongo e os mafulos”.
(AGF, p. 94) Tinha uma antiga rivalidade com os portugueses motivada pelo afundamento
de um de seus barcos por parte deles, na foz do Zaire, em que ia sua mulher e a mesma
morreu afogada.
Salvador Correia de Sá, brasileiro, em 20 de setembro de 1647 recebeu de D. João
IV o título de governador e capitão-mor de Angola e o encargo de defendê-la. Contando
com cinco navios que o governador do Brasil lhe enviara e com a ajuda financeira de
pessoas do Rio de Janeiro pôde fretar seis navios e comprar mais quatro à sua custa.
“Depois de alistar novecentos soldados de infantaria e seiscentos homens do mar, partiu
para Angola com uma frota de quinze embarcações”, segundo Cortesão (1993, p.92).
Comandou o ataque dos portugueses e com muita habilidade, as negociações de que
resultou a expulsão dos holandeses de Luanda, em 15 de agosto de 1648. Em 1651 voltou
ao Rio de Janeiro. “O general era magro e estava forrado de aço. A barbicha pontiaguda
ainda fazia realçar mais a magreza do rosto.” (AGF, p.397) Logo mudou o nome da cidade
de Luanda para São Paulo da Assunção, nomeou um regedor para Ilha em substituição ao
Mani-Luanda, “declarou a Ilha de Luanda propriedade do rei de Portugal e condenou os
109
sobre se “não terá de haver uma política de Estado, concebida por políticos e não por
comerciantes?” (idem, ibidem)
Capitão François de Savigny, francês, combatia ao lado dos holandeses como
mercenário. Achava também que o que interessava à Companhia era o dinheiro, daí fazer
tanta questão que o produto do saque não fosse dividido entre os militares, conforme era
tradição. Não gostava do diretor Moortamer que “tem mania de inventar coisas novas”
(AGF, p. 33) e o diretor Nieulant era para ele “um conciliador”.
Almirante Jol, “Pé de Pau, perdeu a perna no combate naval comandou a armada
que chegou a Luanda. Morreu de febres em S. Tomé, quando os mafulos tomaram a Ilha.”
(AGF, p. 31) De fato, ele faleceu pouco tempo depois da expedição à Ilha de São Tomé,
onde desembarcou no dia 11 de outubro de 1641, vítima de uma endemia que costumava
acometer as pessoas que lá chegavam: uma grande dor de cabeça e febres, de que resultava
a morte, em curtíssimo tempo.
Moortamer, um dos diretores da Companhia em Angola. Era considerado “um
verdadeiro ranhoso”, “rafeiro”, Os próprios aliados desejavam que ele morresse, como
François de Savigny: “Pode ser que as febres desta vez o mandem para o Inferno,
esperemos” (AGF, p. 32) Não se entendia com o tenente-coronel Henderson, viviam em
discussões e, por ironia da vida, regressaram no mesmo navio de volta para o Brasil. Ele foi
substituído pelo major Philips Andreis.
Capitão Pieter Van Dort, outro crítico da administração de Moortamer e Nieulant,
defende a manutenção do saque para os militares. “Se pensam que com isso pagam as
despesas da campanha estão muito enganados”. (AGF, p.33). “Nieulant é um fraco” (idem,
ibidem)
Croeser, secretário da Companhia das Índias Ocidentais em Angola. Era homem
intrigante e ambicioso, “parece que [...] governava mais que seu amo” (Nieulant).
(CADORNEGA vol I, p.. 301). Não se conformara com os portugueses terem fugido e
levado objetos de ouro e prata que possuíam. Por conta de sua ambição, conseguiu a
permissão do major Hans Molt e do major Andreis e, no dia 17 de maio de 1643, resolve
com outros holandeses tomar de assalto o arraial do Gango onde se refugiara o Governador
Pedro César de Menezes, mas só conseguiram mesmo as jóias que estavam sendo usadas,
prender o governador, padres, mulheres, crianças e os poucos escravos que não
111
conseguiram fugir. Dez dias depois os duzentos prisioneiros foram despachados para o
Brasil.
Fernão Rodrigues, antigo morador e proprietário de uma ilha “à frente do
Massangano. Dessa ilha ele controla a navegação no Kuanza, é o seu quartel-general.
Fernão Rodrigues foi nomeado capitão do Kuanza. (AGF, p.36)
Gaspar Gonçalves, capitão, o Ensandeira. Assim chamado por ser o proprietário da
ilha desse nome, situada perto da foz do Kuanza, próxima de Luanda. Usando um soldado
de sua confiança, chamado Manuel Faya, com a permissão dos flamengos, como um tipo de
pajem para manter-se perto do governador, na realidade, um intermediário de ambos,
transmitindo-lhes as notícias, quando este era prisioneiro, conseguiram tramar sua fuga da
prisão (cf. CADORNEGA, vol. I, p. 338). Gaspar morreu num ataque comandado por
Ouman acompanhado de soldados de sua segurança pessoal àquela ilha: fora uma forma de
amedrontar o governador Sottomayor.
António de Abreu de Lima, morador de perto do forte de Santa Cruz em cuja casa
“se reuniu o bispo D. Francisco de Soveral, os moradores principais e alguns capitães, um
dos quais primo do governador, que tinha vindo a correr do Forte de Santa Cruz” (AGF, p.
39) e que conseguiu envolver a todos no plano de fuga arquitetado pelo governador, de
modo a que ele saísse como herói, enganando-os com falsos argumentos em nome da honra
e de bravura.
D. Francisco do Soveral, bispo do Congo e Angola, respeitado, “santo” que morreu
de febres e da “tristeza de ver Angola em risco de se tornar calvinista”. (AGF, p. 69)
“Falecendo este em 1642, ficou o bispado sem titular (como sucedeu em quase todos os
outros) até que a questão da Restauração da independência foi resolvida pela Espanha.”
(SOUSA, p. 80).
Matias Teles Barreto, sobrinho do sacerdote, “Frei João de Angola, frade do Carmo
Calçado” (CADORNEGA, vol. I, p. 236), “primeiro branco a nascer em Angola” (AGF,
p.41). Matias Teles era o comandante do Forte de Santa Cruz, que pôs reservas à ordem
verbal do governador Pedro Cezar de Menezes para abandonar o forte, a conselho do tio, e
por pouco não o mataram.
Antônio Abreu de Miranda, capitão de milícias, exercera altos cargos
militares quando jovem e criticava o Governador Pedro César de Menezes pela fuga
112
mesmo de chegar a Angola: tinha deixado para trás várias mulheres e quatro filhos não
reconhecidos. Transitava entre os diretores da Companhia com quem gozava de certa
consideração e amizade; costumava jogar cartas e tomar bons copos de bebida se fazendo
acompanhar deles. Questiona a honestidade dos seus dirigentes, quando interrogado pelos
filhos sobre o destino dos escravos que o acompanharam na audiência citada com Nieulant:
– Ficaram com o director. Nem quero saber o que lhes fará. O mais certo é vendê-los e
ficar com o dinheiro. Ou será tão honesto que os considera escravos da Companhia e não
seus? Os militares acusam os diretores de se apropriarem dos bens da Companhia, os
diretores acusam os militares, enfim... (AGF, p.21).
E aproveita para ensinar aos filhos as regras de bem viver entre holandeses tendo
estado ao lado dos portugueses: “fazer como o macaco, não vi nada, não ouvi nada, não
falei nada, Vocês a partir deste momento até nem sabem falar uma palavra em flamengo,
entenderam?”19 E, mais adiante, ele explica:
“O que quero que compreendam é que nossa posição é muito delicada. Estamos ainda
entre os portugueses e os mafulos, mesmo se neste momento estamos a viver com os
holandeses. Ontem estávamos com os portugueses no Bengo, amanhã sei lá com quem
estaremos. Portanto, prudência, prudência.” (AGF, p. 25).
Nicolau, o filho mais velho de Baltazar com uma escrava, apreendia
escravos com ajuda de outros escravos, Ngonga e Kundi, considerados de confiança, ou
comprava-os em troca de tecidos e vendia-os aos holandeses. E dentro deste mundo de
contradições do tráfico, paradoxalmente, ele, que é mulato, vive no quintal, considera o
perigo eminente a Rainha Jinga aliada dos holandeses, seguindo fielmente o conselho do
pai: “E não te aproximes da Jinga, essa está com a força toda” (AGF., p. 25)
Gertrudes, a filha mais velha com D. Inocência. Casada há quatro anos com
um cristão-novo, Manuel Pereira, vive perto do Massangano, onde ele trabalha como feitor
de uma plantação. Chamamos atenção para o fato de seu marido ser um cristão-novo,
fazendo parte de uma família católica que não o vê com bons olhos assim como a atividade
por ele exercida: feitor. Era a época em que a Inquisição ainda era muito forte nos países
ibéricos e, conseqüentemente, uma personagem assim caracterizada denota a realidade da
miscigenação e da assimilação havida nas colônias portuguesas.
Catarina, a filha mais velha “do quintal”, ajudava nos trabalhos domésticos e
era sempre humilhada por D. Inocência, que a tratava como uma criada, embora contasse
19
Idem, ibidem.
116
com certa distinção por parte dos irmãos. Confidente de suas irmãs, inferiorizada,
silenciosa, guarda em seu íntimo o sofrimento da discriminação: não pode sentar-se à mesa,
não pôde comparecer aos casamentos dos irmãos e, muito menos, arranjar um marido. O
narrador tem por ela profunda admiração e certa atração.
Matilde, a filha com D. Inocência. “inclinada a visões e profecias”, disse a
Gertrudes que “o pai estava a dar origem a uma linhagem notável, nas suas palavras uma
gloriosa família” (AGF, p. 22), fato que levou Gertrudes a pôr o sobrenome Van Dum no
fim, para que filhos e netos preservassem o ilustre apelido. Mulher de muitos amantes
tivera um caso com um padre jesuíta, bem mais velho e tímido, no Bengo, embora notasse
os olhares apaixonados que o soldado Cadornega deitava sobre ela. Das mulheres de casa é
a única que discute problemas políticos e fala de igual para igual com os homens. Livre,
voluntariosa, não conhece interditos. Mesmo quando estava de caso com o oficial francês
Jean Du Plessis, se insinuava junto a Joost Van Koin. Engravidou do francês e o difícil foi
Plessis aceitar casar-se porque ele era protestante; se renegasse a sua religião ficava mal
visto pelos predikant, poderia perder o emprego de mercenário e ela, também, não queria
renunciar à religião católica. Arranjaram um modo de conciliar as divergências: o padre
Mateus os casaria na casa de Baltazar, mesmo sem ele ser batizado. Tudo foi realizado a
contento, em meio a uma humilde festa de família. Foram residir em uma casa que o Major
Gerrit cedeu para eles na cidade alta que havia sido abandonada pelos portugueses e
arranjada com alguns móveis recuperados pelos soldados.
Depois de algum tempo, já com filho, ela passou a trair o marido com o tenente
Joost até que, um dia, foi flagrada por Plessis na própria sacristia da Igreja de Nossa
Senhora da Conceição, local de seus encontros amorosos. De volta para casa, encontra o
marido com um bilhete anônimo nas mãos e chorando, ela também chorou, mas com pena
dele. Ela voltou com o filho para casa do pai. Ao redor do marido muitos comentários
desonrosos: era necessário vingar a honra e ele não o fez. Como castigo, Van Koin foi
enviado ao Brasil e Du Plessis embarcou num veleiro que ia explorar o Cabo da Boa
Esperança e depois souberam que o veleiro naufragou, sem notícia de sobreviventes. Mas
as aventuras de Matilde não pararam por aí, namorou Daniel Boreel, engenheiro da
Companhia e amigo de Ambrósio. Quando os holandeses se retiraram de Angola, queria
casar-se e levá-la com ele, ela não aceitou.
117
Ambrósio é o mais inteligente dos Van Dum, gostava muito de ler e quando era
mais jovem, esperavam que viesse a ser padre. Com o passar do tempo, gostava de
freqüentar a bodega e as negras, e estava cada vez mais desinteressado em ser padre. Ao ver
pela primeira vez Angélica Ricos Olhos, logo se aproximou dela, conversaram, saíram
juntos e só regressou para casa no dia seguinte. Sentiu a pressão familiar pela sua escolha,
mas não cedeu. A feitiçaria resolveu o impasse: a família resolveu aceitar Angélica, com
medo dos poderes sobrenaturais a que ela havia recorrido para convencer os Van Dum.
Curiosa maneira encontrada pelo autor para inserir na obra elementos da cultura religiosa
dos negros, em meio a uma família mestiça e de mostrar a assimilação do animismo através
da miscigenação racial.
Hermenegildo, diferentemente dos outros filhos de Baltazar, era magro e tinha
gestos e modos efeminados, a ponto de, com a incumbêmcia de acompanhar o Padre
Tavares por ordem do pai, o padre começar a tratá-lo de modo estranho: “lhe tocava
distraidamente no corpo quando passeavam ou segurava demoradamente sua mão quando
lhe falava dos desígnios de Deus” (AGF, p. 206) insinuando-se para ele. Mas tudo era só
aparências: Hermenegildo tinha um caso com a escrava Dolores com quem teve um filho.
Só Ambrósio sabia. O pai não confiava a ele nenhum trabalho, pois desconfiava de sua
macheza, que era considerada um valor grandioso. Desse modo, o narrador relativiza o
conceito de ser macho nessa sociedade por um viés que também não deixa de ser
econômico, no sentido de serem revelados problemas de relações sociais regidos pela
dialética do senhor e do escravo e envolvendo os representantes da Igreja, que detinha
poder sobre as pessoas.
Rodrigo, “o do olho verde, era muito calado. Mas muito teimoso...” (AGF, p. 77)
Ajudava o pai, cuidando de uma plantação no Bengo. Apaixonou-se pela filha do
governador da Ilha de Luanda, Dom Agostinho Corte Real, o Mani-Lunda: Cristina Corte
Real, Nzuzi, por ser gêmea com Simba. Grande foi a surpresa do pai quando informou-o de
que queria casar, pois ele o achava muito novo e, pior, saber que ele queria casar na Igreja
Católica e quem era a escolhida. Até D. Inocência interveio a favor de Rodrigo.
Contrariando as expectativas, o pai de Cristina aceitou o pedido de casamento, marcaram as
datas, combinaram o alembamento e a festa do casamento. Por ocasião da apresentação de
Rodrigo ao sogro, a conversa girou em função da política de apoio aos holandeses. Ficou
118
bem claro qual devia ser a posição de Rodrigo, junto à família Corte Real: aliar-se
incondicionalmente aos holandeses e seguir à risca a religião católica. O casamento
realizou-se duas semanas depois em meio a muitos convidados e muita festa. Instalou-se na
Ilha, onde montou seu próprio negócio, participou de lutas contra os portugueses.
Diogo, filho bastardo a quem Baltazar não revelara ainda ser seu pai, tratava-o como
um escravo a mais e de cujo rosto transparecia muito ressentimento. Queria-o para cuidar
do Bengo, em substituição a Rodrigo depois de casado, e o fez com consentimento do
próprio Diogo. Ele passou a morar no Bengo e sempre vinha prestar contas a Baltazar de
suas atividades e trazer alimentos para o resto da família. Em uma de suas vindas, pediu de
presente ao pai a escrava Lemba e, quando este lhe perguntou se queria casar com ela, ele
respondeu-lhe que não, ia só se amigar, ele casar com uma escrava? A seu modo ele toca
em um ponto que nos parece importante na compreensão da discriminação: a recusa da
igualdade. Quem ascende um ponto na escala social (classe + economia), considera-se
diferente de quem, sendo da mesma cor, permaneceu um pouco mais abaixo na pirâmide
social.
Benvindo, o filho mais novo, ficou magoado com o pai por ter indicado Diogo para
o Bengo, achando que os escravos não iam lhe obedecer por conta da voz desagradável. E
“foi acumulando frustrações e rancores” (AGF, p. 188) Resolveu ir embora para Benguela,
pediu ao pai apenas um escravo para acompanhá-lo e lá fazer a sua vida. Contudo, o
escravo que pediu era o favorito de Baltazar. Houve uma reação inicial contra mas, com a
interferência de Ambrósio, conseguiu o escravo e ainda uma ajuda financeira. Deveria levar
carta de recomendação dos dois lados do conflito: do pai, para um ou dois dos amigos
portugueses; do major Gerrit, para o chefe militar dos holandeses. Em Benguela, repete o
comportamento do pai: fica no meio dos portugueses porque com eles faria melhor negócio
e levava informações dos portugueses para os holandeses.
Ana, a filha mais nova, “tinha apenas dezoito anos e está linda” e Baltazar desejava
casá-la com Jaime, filho de Jacinto da Câmara, seu amigo, e comerciante de escravos. Para
tanto, combinaram que Jaime iria para Luanda, para a casa de Baltazar e, se viesse a se
interessar por Ana, eles arranjariam o casamento. De fato, eles se apaixonaram e o
casamento foi realizado sem a participação da família do noivo, pelo fato de estar
impossibilitada de sair de Massangano cercada por inimigos.
119
Rosário “não era bonita, mas chamava a atenção de alguns soldados flamengos,
quando passava para a missa.” (AGF, p. 232) Sentiu-se profundamente atraída por Thor,
escravo recém-chegado, e foi se insinuando devagarinho. Primeiro, levou-o a cuidar do
jardim junto com ela, depois para colher mangas no fundo do quintal, depois “as mãos se
tocavam e os olhos se fixavam e tornavam fluidos e os corpos ardiam”. (AGF, p. 240)
Descobertos os encontros, Baltazar ficou revoltado e Thor teve de ser sacrificado, morto.
De nada valeram os apelos de Rosário e de Ambrósio, a razão dá lugar à irracionalidade, ao
preconceito justificado como “questão de honra”. Depois de sua morte, Rosário nunca mais
saiu de casa “à espera de ir para um convento.” (AGF, p. 314)
Desse painel familiar percebemos a presença de uma mãe, assimilada, que se
resume ao papel de procriadora, que pouco fala e que se submete às traições do marido, se
considera católica fervorosa, mas é discriminadora e vingativa. O marido, um pai
preocupado com a boa imagem familiar, relaciona-se bem com os filhos, dialoga, escuta e
às vezes impõe a sua vontade. Preocupado em aumentar o capital, não importa os meios
para obtê-lo: é capaz de mentir, bajular, trair. Providencia os arranjos para os casamentos
dos filhos, embora gostasse mais de ver as filhas casadas que os filhos, pois esses
aumentavam-lhe a riqueza. Os filhos seguem-lhe o exemplo e também fazem das negras
objeto de prazer sexual. Todos se consideram católicos, pois foram batizados e é o batismo
motivo de preocupação de D. Inocência, até mesmo com relação aos netos do quintal. Mas
todas as preocupações religiosas são superficiais, não há interioridade, e lhes falta o
principal, que não são capazes de sentir: o amor ao próximo, que irmana a todos,
independente de qualquer parâmetro. Além disso, Ambrósio, que em pequeno queria ser
padre, desistiu. Baltazar vê na realização do matrimônio de seus filhos, uma maneira de dar
satisfação aos outros. Já Rosário, o motivo que justifica a sua vontade de ir para um
convento é uma desilusão amorosa, a não-realização dos sonhos de amor.
Desse modo, as personagens de ficção nos conduziram à reflexão sobre o passado e
a ultrapassar os limites das verdades comprovadas da história. Afinal a profecia de Matilde
sobre os Van Dum virem a ser uma gloriosa família, alegoricamente, parece realizar-se nos
nossos dias, em que conceitos como honra, caráter, honestidade estão cada vez mais
relativizados e glorioso parece ser quem assim vive, e sem nenhum drama de consciência.
120
Contrapondo o trecho citado à história que vem sendo contada pelo narrador
escravo, percebemos a diferença de enfoque. Através dele, nós, leitores, podemos refletir
como foi contada a história colonial que enfatiza o narrar de feitos grandiosos de heróis que
o poder consagrou através da escrita, que grava, é difícil de apagar, marca diferenças e que
é utilizada como instrumento de dominação.
Outro aspecto a considerar é a profecia feita por Matilde, quando anteriormente, em
contato com a família Van Dum nos tempos do Bengo, ela revelou ao jesuíta, Padre
Tavares, que o período de dominação holandesa nas costas de Angola seria de sete anos, e
que aparece ficcionalizada pelo narrador, verdadeira colagem (cf. AGF, p. 269), transcrita
121
por Pepetela do próprio Cadornega de sua História das guerras angolanas com referência
completa:
“Lembrava-lhe huma como Profecia predita por hum religioso da Companhia de Jesus,
(...) o qual tinha prognosticado, fundado dizião em uma profecia de Esdras, em que sete
annos havia de durar o castigo de Deos em os Reinos de Angola, e que nenhum Morador
dos antigos viria à terra restaurada nem tornarião à Cidade, seus filhos sim.”
(Antônio de Oliveira Cadornega, HGGA, T.I, p. 314).
Por sua vez, esse dado inserido na história por Cadornega aproveitado da tradição
oral, comprova a possibilidade dessa tradição ser considerada fonte histórica e, por outro
lado, como a querer também dizer que em cada escritor há um pouco de profeta, forma de
alertar o nosso olhar para o presente, pois fatos de épocas passadas podem se repetir com
feições diferentes e serem contados de modos diferentes. Não são os mesmos fatos que
ocorrem, mas são igualmente perigosos. É o que o narrador parece nos ensinar ao dizer:
Ninguém mais percebeu, só eu, mas ninguém tem o faro para detectar insignificâncias
escondidas na cabeça das pessoas. Às vezes essas coisas escondidas não são tão
insignificantes assim, acabam por explicar acontecimentos futuros. Muitas vezes tão no
futuro que as ligações não se fazem, ficam escondidas em repouso, até que alguém cosa
as pontas. Sucede provavelmente com certa freqüência não surgir alguém com esse
talento de coser pontas e o conhecimento se perde. Não sou muito versado na história
dos homens sei apenas o que o meu dono sabe e contou, ou o que outros lhe contaram e
eu ouvi, coisa pouca. Mas o suficiente para entender que muito se perdeu, ao longo dos
séculos, na ligação às verdadeiras causas de fenômenos aparentemente inexplicáveis.
(AGF, p.115)
A respeito desse mesmo trecho, Leite (2003, p.115) comenta:
O escravo ajusta alegoricamente o seu relato do século XVII ao século vinte na Angola
independente. Porque nos faz perceber e intuir que o tráfico de escravos é hoje,
substituído por outros tráficos, não menos fraudulentos, como o do petróleo, dos
diamantes e das armas a que novos escravos e famílias gloriosas sobreviveram e de novo
se inventaram.
Quanto a Marcgraf e Barlaeus, trazê-los à cena ficcionalmente é a oportunidade de o
autor mostrar aspectos culturais do período da dominação holandesa, conforme podemos
verificar neste diálogo que ocorre em casa do Major Hans Molt, onde Baltazar e vários
holandeses discutem a saída de Nassau do Brasil e a maneira como a Companhia via sua
política de desenvolvimento urbano, científico e artístico-cultural em Recife:
“ - Os parasitas somos certamente nós – disse Marcgraf – Sim, a Companhia nunca viu
com bons olhos o que se gastava com o estudo do país e com as obras feitas para
melhorar o Recife. Era uma aldeia infecta no tempo dos portugueses, passou a ser uma
cidade agradável de se viver. Os jardins, os largos, as estufas botânicas, as ruas novas...
Para os Dezanove, melhorar o modo de vida dos habitantes é esbanjamento inútil.
122
O meu dono tinha razão. A Luanda que aparecia na tela era igual à que estava do outro
lado da baía. Ele tinha escolhido talvez uns tons um pouco mais suaves para representar
as barrocas, não o quase vermelho da terra. Mas eram as mesmas encostas que
constantemente subíamos, os mesmos edifícios por que todos os dias passávamos, a
fortaleza amarela que nos dominava. (AGF, p. 148).
Esta mesma tela chega até nós como: “Pormenor de uma pintura de Barleus”,
ilustrando a capa da 1ª e da 4ª edição de A gloriosa família. Outro texto. Outros tempos.
Outra linguagem.
O motivo de o autor dar voz ao escravo, anônimo, sem rosto foi uma estratégia
adotada para dar voz a todos os discriminados da história colonial e através dele fazer uma
análise crítica dos acontecimentos. Como narrador da história ele assume o discurso do
autor, parodia outros textos e, comportando-se como um verdadeiro cronista, inclusive tem
atitudes semelhantes às de Cadornega, tudo escrevendo, anotando; ele tudo vendo e
ouvindo, dando-se ares de pesquisador: “[...] embora os padres e outros europeus digam
que não temos nem sabemos o que é História. Sou muito diferente do governador Pedro
César de Menezes, que deixou se perderem todos os documentos de Luanda, até mesmo o
foral assinado pelo rei a dar a esta sanzala grandes galões de cidade.” (AGF, p. 120) E um
123
“Sempre achei que o meu dono subestimava as minhas capacidades. Bem gostaria nesse
momento de poder falar para lhe dizer que até francês aprendi nos tempos de jogos de
cartas. E que bem podiam baixar a voz ao mínimo entendível que eu ouvia sem esforço
bastando ajustar o tamanho das orelhas. Mas se tão pouco valor me atribuía, então
também não merecia o meu esforço de lhe fazer compreender o contrário, morresse com
a sua idéia. Uma desforra para tanto desprezo seria contar toda a sua estória, um dia.
Soube então, que o faria, apesar de mudo e analfabeto. Usando poderes desconhecidos,
dos que se ocultam no pó branco da pemba ou nos riscos traçados nos ares das
encruzilhadas pelos espíritos inquietos. Fosse de que maneira fosse, tive a certeza de o
meu relato chegar a alguém, colocado em impreciso ponto do tempo e do espaço, o qual
seria capaz de gravar tudo tal como testemunhei. ” (AGF, p. 393-394)
A sua condição escrava também aparece refletida na maneira como se vê e como vê
a situação dos brancos.
Sobre si mesmo faz um pequeno resumo de sua vida, filho de uma escrava lunda
com um padre napolitano e doado pela rainha Jinga a Baltazar, em razão de bons negócios
à base da mentira em que ele se apresentou como inimigo dos portugueses. Não questiona
sua origem, mas tem grande admiração por Jinga, e ao rever sua terra natal, sente um nó na
124
alguns chamam macoji e pronto, com a galinha ou o cabrito entregue fica reparado o
dano provocado na família. (AGF, p. 161).
em sorriso, no olhar insubmisso que mudamente desafiava.” (AGF, p. 232) Um dia saiu a
caçar, tomou uma direção errada e caiu prisioneiro dos jagas que o venderam a Nicolau. A
paixão por Rosário é um momento na narrativa de concessão ao lirismo. Essa paixão foi a
causa de sua morte, narrada com imagens chocantes de crueldade. Da lagoa do Kinaxixi,
onde o seu corpo desapareceu, do seu sangue, surgiram umas flores que o escravo-narrador
levou para Rosário, e ficou com o seu colar que acreditava ter poderes mágicos. Podemos
considerar Thor como uma espécie de contraponto a Baltazar: Thor, negro, homem forte,
assumido e de caráter reto, apesar de ser considerado por Baltazar um ser inferior, indigno
para casar com sua filha. Pode ser considerado, também, o mito do eterno retorno, voltando
ao seio da terra reencontra-se com a natureza onde todas as dores, todos os sofrimentos e
discriminações acabarão. Para os africanos, corpo e alma estão em perfeita harmonia, numa
só unidade, daí não haver muita diferença entre morrer e estar vivo. Para eles, os mortos,
muitas vezes, preservam a mesma condição que possuíam quando estavam vivos. É ao
mesmo tempo ocasião para refletirmos sobre as diversas formas de opressão existentes que
ainda hoje perduram na sociedade capitalista, disfarçando a crueldade dos que escravizam,
não tendo o menor respeito à vida alheia, aos sentimentos e à dignidade humana.
Dolores, enviada para o Bengo para satisfazer D. Inocência, que queria separá-la do
filho, Gustavo, que tivera com Hermenegildo. Para isso, juntamente com Dimuka
prepararam uma cilada e caluniaram-na de ladra a fim de Baltazar mandá-la para o Brasil
ou vendê-la, mas com tal fama e coxa, além do preço elevado pedido, ele não encontrou
quem a comprasse. A cena da separação dela do filho é mostrada com muito realismo:
A coxa berrou e chorou quando percebeu que Gustavo não ia. (...) O menino foi
arrancado dos braços da mãe e levado para a casa grande onde gritava com toda força. E,
no quintal, Dolores lutava, recusando partir. Dimuka lhe passou uma corda pelo pescoço,
ele e Kalumbo puxavam, e ela se atirou para o chão, só ia arrastada.
Mas os gritos de Gustavo é que não paravam. Exigia a presença da mãe no seu Kibundu
incipiente. E quando a avó o soltou, fugiu para o quintal. Ela gritou para a escravaria,
não o deixem fugir, mas ele de fato não podia ultrapassar o portão maciço do
quintal.(AGF, p. 371).
Um mês depois, ela fugiu do Bengo e, às escondidas, com a ajuda do narrador-
personagem, conseguiu retomar o filho. Silenciosamente se rebelara contra a praxe de que
filho de escrava não pertence à mãe. Na obra O trato dos viventes (p.351), Alencastro
tratando da questão da mestiçagem diz que: “quando os pais se afastavam ou morriam as
mães retornavam às suas aldeias com seus filhos mulatos, levando-os de volta à
127
“Se me tivessem dado malufo na sanzala do Mani-Lunda, as coisas com Gustavo teriam
sido diferentes? Como diria Matilde, nunca se deve especular muito sobre o futuro,
quando não se é especialista. Mas acho honestamente que da mesma maneira as minhas
mãos ficariam sem força quando Dolores puxasse o filho, quem tem força para resistir a
mãos de mãe?” (AGF, p. 378).
Mas, como podemos comprovar, é mero recurso retórico para afirmar a sua
hombridade em meio a outros escravos que agem sem nenhum senso de solidariedade.
Chicomba, escrava que foi comprada juntamente com Thor. Considerava os brancos
piores do que as feras e acha-os mal cheirosos. Tornou-se a preferida de Nicolau, que lhe
arranjou uma cubata para ficar mais à vontade com ela. Foi ela quem primeiro percebeu o
interesse de Thor por Rosário e, consciente de sua situação, o alertou: “Não é ela a
castigada, és tu, tu és o escravo. Quem paga é sempre o mais fraco, e és tu o mais fraco.
Aqui não interessa se és filho do chefe, aqui és escravo.” (AGF, p. 236) Rebelde no início,
porque amava Thor, com a morte deste, tornou-se calada, menos rebelde, mas continuava
alimentando os sonhos de fuga, apesar de já ter filhos com Nicolau, de ser mesmo libertada
ou quem sabe de tirar algum proveito porque ali “na sanzala se vive bem, o trabalho é leve,
comida todos os dias” 20, conforme Thor lhe analisara.
20
Idem, ibidem.
128
Falava português aprendido com missionários portugueses que freqüentaram a corte de seu
pai. Em luta contra os portugueses, seu exército conseguiu libertar muitos escravos e
mulatos. Ela oferecia-lhes terras para que nelas eles pudessem se estabelecer e, ao mesmo
tempo, incentivava e protegia os fugitivos do domínio dos portugueses. Ao dirigir-se aos
que ainda viviam em terras ocupadas por portugueses apelava para o espírito de
nacionalismo: “É melhor para os africanos serem donos do seu solo do que serem cativos
dos portugueses” (GLASGOW, 1982, p.95). Jinga é digna de fazer parte do panteão dos
heróis da resistência angolana.
Cada uma dessas mulheres, ao seu modo, representa dentro do universo feminino do
seu tempo, as mulheres que foram rompendo os grilhões e construindo os caminhos da
liberdade, para outras gerações que as sucederam e, dentro do trabalho ficcional de
Pepetela, elas confirmam a sua inclinação em retratar mulheres fortes que desafiam os
paradigmas.
A ameaça da Inquisição é um recurso usado pelo narrador para dar mais ênfase à
sua crítica ao aspecto de dominação da Igreja Católica e ao seu aproveitamento da
ignorância das pessoas, uma vez que podemos afirmar que o Tibunal da Inquisição não se
estabeleceu em Angola e nem mesmo chegou a haver alguma Visita Inquisitorial, ao
contrário do Brasil que por seis anos recebeu visitas da Inquisição. Tanto é assim que, na
fala da personagem Jean du Plessis, quando Baltazar quer obrigá-lo a viver com Matilde,
depois de ter sido traído expressa: “Não nos pode forçar a viver juntos, isto não é um
Estado católico. Aqui as leis são as das Províncias Unidas da Holanda, não são as de
Portugal. Não tem aqui a Inquisição para me obrigar.” (AGF, p. 17).
O padre Mateus, italiano, da ordem dos capuchinhos, além de gostar muito de beber,
especialmente o maluvo, era um padre venal, estava literalmente a serviço da família de D.
Agostinho Corte Real, seguia à risca suas ordens, não se importando de infringir as normas
da Igreja. Aceitou casar a filha de Van Dum, católica, com um holandês que se dizia
huguenote, mas que nem batizado era, sob a alegação de Dom Agostinho de que o
casamento interessava às autoridades holandesas, para que não ficassem desonradas
também e para que sua posição não ficasse enfraquecida perante os calvinistas, coisa que
ele jamais gostaria que acontecesse, pois era “o Mani-Lunda que o mantinha ali. Se o
governador perdia força, ele também perdia e a Igreja então... E era perigosa a suspeita de
ser agente português, ele que tinha clara preferência pelo rei de Espanha, o senhor de
Nápoles” (AGF, p. 139).
Há a referência a padres ambiciosos, que brigam entre si na disputa pelo poder,
como os padres João Cabeça e Moniz Barreto pela substituição do bispo Soveral, na
diocese de Massangano, até que o Papa enviasse seu substituto legal, uma vez que o que
ficou a governar a diocese desapareceu, certa noite, misteriosamente, “ficando um ligeiro
fumo e estranho cheiro de enxofre” (AGF, p. 98). Era um padre muito rígido em seus
princípios religiosos: “Queimava tudo. Fazia verdadeiras incursões militares pelas fazendas
ao longo do Kuanza, pelos kimbos da região ou mesmo pelas casas de Massangano, à
procura dos objetos sacrílegos” (idem, ibidem) O vigário geral assumiu o cargo, mas
encontrava-se no arraial por ocasião do ataque, foi preso e mandado de volta para o Brasil,
deixando a vacância do cargo. A maioria das pessoas queria que fosse o padre João Cabeça
o escolhido mas, agindo traiçoeiramente, o padre Moniz Barreto trouxe-o a sua casa,
132
aprisionado. Os seus partidários exigiram sua libertação, mas os adeptos do Padre Moniz
Barreto (em sua maioria brancos) eram mais numerosos e “mais aptos no uso de armas de
fogo” (AGF, p. 99), de modo que resolveram aceitá-lo. No entanto, este veio a falecer
pouco depois e suspeita-se de envenenamento ou feitiço.
De tal modo, dos padres enfocados, há sempre algo negativo para se apontar e, no
conjunto, concluímos que foi pintado com cores fortes o retrato dos representantes da Igreja
na época: escravistas, ambiciosos, corruptos, mentirosos, fazendo uso da religião para
obterem privilégios e serem respeitados; discriminadores; quando muito, omissos.
Não muito diferentes dos padres, os religiosos calvinistas, os predikant, diziam ser
os curandeiros usuários de artes do demônio, razão por que, apesar de serem os angolanos
muito afeitos a rezas e práticas de curandeiros, com a presença dos holandeses, não mais
entrou um kibanda em Luanda.
Tratados por predikant e anonimamente, há referência a um que viera na armada
com Hans Molt e Pieter Van Dort, muito fanático, que nos seus sermões “tratava a todos
por devassos por andarem atrás das negras e por gastarem fortunas em roupas caras ou
outros luxos, o que, aliás, nem era verdade, bastava um aparecer com um dólman mais
elegante para o pregador o apostrofar de pecador e corrupto.” (AGF, p. 34-35)
Fundamentalmente, os predikant, racistas, queriam evitar a miscigenação racial
entre os holandeses, fato bastante explícito nas atitudes do diretor Ouman que, quando
trouxe à tona uma antiga discussão ocorrida na Europa, disse que lá se afirmava que os
negros não tinham alma e, portanto, não podiam ser considerados humanos. Ao emitir a sua
opinião, disse que “negros e brancos são gente, mas cada um deve ficar no seu canto, nada
de misturas” (AGF, p. 377) e ainda, no seu modo de ver, a miscigenação de portugueses e
negros estava a criar uma raça de monstros contra os preceitos da Igreja.
O engenheiro Borel também reproduziu a explicação dada pelo reverendo Godfried
Udemans em uma discussão acontecida na Holanda a respeito da possibilidade de um
cristão, à luz do Evangelho, ser proprietário da vida de uma pessoa e fazê-la trabalhar como
escravo:
a escravatura era legal, mas com algumas condições. Em primeiro lugar os escravos não
podiam ser vendidos aos espanhóis e portugueses, porque assim ficavam expostos aos
perigos da falsa religião do papado. Os escravos deviam ser educados nos princípios da
verdadeira religião cristã, a nossa, para libertar as suas almas dos horrores do inferno. E
aforrados depois de anos de serviço. Também defendeu que escravos mal tratados tinha
133
o direito de fugir dos seus donos cruéis e não deviam ser entregues de volta. (AGF, p.
303).
Todos estes fatos mencionados só vêm confirmar como a religião foi usada em prol
dos interesses econômicos das nações, como um forte instrumento de dominação e como,
no processo de justaposição cultural, os dominadores apagavam o que podiam do que para
eles representavam na cultura dos povos inferiorizados.
queimados, as igrejas em ruínas, abandonadas, cheias de lixo, ou utilizadas para outros fins
não condizentes com a sacralidade que esses espaços representam: passaram a ser local de
encontros amorosos, como a da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, antiga Sé, utilizada
pela cristã Matilde e o amante tenente Joost Van Koin. A Igreja do Corpo Santo que ficava
na Baixa, próxima à bodega de Pinheiro, usada como sanitário pelos freqüentadores de sua
bodega. A “única que estava limpa, pois os mafulos aproveitaram-na para as grandes
reuniões, religiosas ou laicas...” (AGF, p. 126-127) era a Igreja de Jesus.
Como espaço privado, são configuradas as casas de Baltazar Van Dum, de D.
Agostinho Corte Real e de Jaime da Câmara como lugar simbólico das representações
sócio-culturais, que serve de refúgio aos familiares e visitantes. Local onde se discutem as
formas de se resolverem os problemas familiares, os negócios e, sobretudo o enfrentamento
das questões políticas que o presente lhes impõem e dos quais querem sair vitoriosos.
Coerentemente, uma vez que não era dado ao narrador entrar no interior das casas, pela sua
condição escrava, mas ficar apenas na varanda ou no quintal e muito tempo na rua, ele não
descreve com detalhes nenhuma delas. Aparentemente são iguais, mudam apenas os
lugares. Ficamos sabendo que em todas elas havia um quintal e um espaço reservado para
os escravos, onde havia a senzala e algumas cubatas, como na de Baltazar que serviam para
os filhos a fim de tornarem mais discretos os seus relacionamentos amorosos com as
escravas ou para morada de algum escravo de confiança que exercia o poder de feitor ou de
guarda. A senzala de Baltazar era um conjunto de duas casas e vinte cubatas, rodeada de
espinheiros e buganvílias, o que tornava mais difícil a fuga de escravos, juntamente com a
existência de cães e guardas.
Em volta da mesa, à hora das refeições ou se tomando um maluvo, era o local e hora
preferidos para as discussões e saídas para os problemas. À sua volta circulavam os
escravos domésticos em seus afazeres, servindo-os, mas são presenças mudas, silenciosas.
Diferente era o tipo de alimentação que lhes era servida, o seu lugar era mesmo na cozinha
e de lá para o quintal, onde viviam todos os escravos. Desse modo fica bem configurado o
espaço físico e psicológico da dominação, da escravidão. Mas, apesar de nos referirmos à
silenciosa presença dos negros na sala dos brancos, facilmente as notícias se espalhavam,
corriam rapidamente os rumores e perdiam o ar misterioso, de segredo.
137
Muitos dos conflitos surgiam no interior da própria casa e dentro dela mesma
tentava-se sufocá-los, tais como os amores ou as relações sexuais consideradas ilegítimas.
Um outro espaço sócio-cultural importante são as bodegas. Há a bodega de Dona
Maria, viúva que não fugiu quando os holandeses invadiram Luanda. Lá se reuniam
personagens de diversos estratos sociais: holandeses, franceses, Baltazar e soldados
mercenários, para beber e jogar, discutir política e outras notícias que corriam pela cidade;
é muito movimentada. Localizava-se quase fora do perímetro urbano. Anteriormente era
freqüentada pelos frades franciscanos e por poucas pessoas que passavam em direção à
cidade alta. Nos últimos tempos, o narrador diz ter diminuído o movimento porque a
freguesia ficou dividida com a bodega de Samuel Pinheiro, judeu que logo que veio de
Pernambuco já trazia no barco muitas pipas de vinho. Sua bodega ficava na cidade baixa,
na Praia dos Coqueiros, e era muito freqüentada pelos flamengos. Com isso o narrador
evidencia um dos motivos mais comuns da procura daqueles que saem da metrópole e
buscam as terras de África: a motivação sócio-econômica, a busca de melhores condições
financeiras.
A bodega também é um lugar simbólico, espécie de espaço democrático, uma vez
que é o espaço de cruzamento aberto à possibilidade de uma convivência pacífica em meio
a tantas contradições humanas.
Há um espaço referido que não poderíamos deixar de assinalar por poder ser
associado a outros elementos da identidade cultural, enquanto elemento que toca o
imaginário, o sobrenatural e o efeito que causa nas pessoas: a lagoa do Kinaxixi, caminho
de Baltazar e do escravo sempre que voltavam do jogo à noite. Causava medo porque lá
costumavam aparecer animais selvagens como leões e onças. Mas o que mais os
amedrontava era a crença que os espíritos seculares ficavam em cima das árvores e as
kiandas, seres míticos, andavam por sobre as águas, apesar de ali haver pouca água.
No espaço rural realiza-se a pesca e a atividade agrícola, representante sócio-
econômica. Mais para o interior é o espaço das guerras de kuata-kuata! Essa era a atividade
mais lucrativa da época; disputada por holandeses e portugueses.
Próximos à cidade de Luanda, muitos são os lugares descritos e configurados
geograficamente, entre eles: Ilha da Ensandeira, assim chamada porque no meio dela havia
uma árvore com este nome, uma mulemba imperial como a chamavam os nativos, próxima
138
3. DA UTOPIA À DISTOPIA
3.1 - A geração da utopia
Escrito entre 1991 e 1992, em Berlim, o romance em foco teve a 1ª edição publicada
em Lisboa em 1992, pelas Edições Dom Quixote e em 1994, pela Coleção Planeta; em
Luanda pela Editora Nzila, em 1999 e no Rio de Janeiro, pela Nova Fronteira, em 2000.
Dividido em quatro partes, com número de capítulos variável, onze as duas
primeiras, nove a terceira e cinco a quarta, assim intituladas: A casa; A chana; O polvo; O
templo. Cada uma delas, datada, respectivamente: 1961, 1972, abril de 1982, a partir de
julho de 1991, que envolve o tempo do narrado e, como podemos ver, a última parte está
em aberto, diz respeito a um tempo e a uma história ainda não concluídos, apesar de em
cada uma das partes haver um epílogo. Neste livro, há na primeira parte, uma espécie de
preâmbulo em que o autor fala diretamente ao leitor; na segunda, há um pequeno trecho
atribuído ao protagonista e, como nos demais livros de Pepetela de que tratamos, há
também um glossário.
3.1.1 - O enredo
A geração da utopia (AGU) trata da estória de vários jovens angolanos, das mais
diversas regiões, estudantes em Lisboa, freqüentadores da Casa dos Estudantes do Império,
em 1961, onde se reuniam para refeições, diversões, atividades culturais, troca de notícias
sobre familiares, amigos e, principalmente, para falarem de sua terra. O contato com a
metrópole, a distância da terra natal, os novos conhecimentos, a troca de informações
despertou-lhes a consciência de sua situação. O reconhecimento das condições da terra
natal face à dominação portuguesa fez crescer neles os sonhos de uma sociedade livre, em
140
que todos tivessem os mesmos direitos, e traçar planos; deu-lhes ânimo para o
enfrentamento com os colonizadores e para os combates de que resultou a independência de
Angola. Cada um assumiu a luta em prol da independência a seu modo. Alguns fugiram
para a França e outros foram diretamente para guerrilha, e isto constitui “A Casa” (1961),
primeira parte da narrativa. Na segunda parte, em “A chana” (1972), são narradas as
condições em que se deram as guerrilhas, em meio a muitas dificuldades, a que só mesmo
os fortes e realmente comprometidos com os ideais nacionais foram até o fim, mantiveram-
se fiéis, não buscaram vantagens pessoais. A travessia solitária da personagem pela chana é
também pretexto para apresentar a paisagem característica de Angola, a natureza como
coadjuvante de vitória ou derrota, para a personagem repensar a vida, analisar os rumos do
movimento revolucionário e para tomada de posições diferentes, inclusive, para revelar a
atitude do povo frente o movimento revolucionário. Na terceira parte, “O polvo” (abril de
1982), um ex-guerrilheiro, vitorioso, está desencantado com a forma como estão sendo
geridos os negócios do novo país, justamente nas mãos dos que lutaram pela
independência, razão para manter-se afastado da administração pública e de lides políticas,
morando em uma baía, praticamente isolado, mas atento aos problemas do povo. O que
realmente deseja é enfrentar os medos que o acompanharam desde a infância, os seus
fantasmas interiores, simbolizados no polvo, para poder finalmente ser livre e poder amar.
A quarta parte, “O templo” (A partir de julho de 1992), trata dos novos rumos que a política
e certas práticas religiosas vêm a tomar, explorando a ignorância das pessoas, a falta de
perspectiva de quem não tem mais por que lutar ou em que acreditar. A religião como
comércio, cuja mercadoria são falsas promessas e milagres dos quais só se beneficia o seu
pastor e sócios: antigos amigos da Casa dos Estudantes do Império (CEI).
Geração. s,f. Conjunto de funções e fenômenos pelos quais um ser organizado produz
outro; descendência; filiação; linhagem; genealogia; conjunto de pessoas nascidas mais
ou menos na mesma época; (por ext.) formação; produção, desenvolvimento. (Pequeno
dicionário brasileiro da língua portuguesa).
141
Carlos Everdosa, com prefácio de Mário Antônio e a de 1962, melhorada, com o mesmo
nome e prefácio de Alfredo Margarido; Coleção de autores ultramarinos, conjunto de
ensaios, conferências, colóquios, etc.
A CEI serviu para agregar brancos, negros e mestiços que, pelas condições de
ensino nas colônias, eram mandados pelos pais para o meio português. Seus encontros eram
uma maneira de atenuar as pressões de uma cidade em que se sentiam exilados, de se
sentirem mais próximos e de minimizarem as diferenças. Tinham em comum o ideal
independentista, mas não significa dizermos que todos pensavam da mesma maneira e com
a mesma intensidade, haja vista que nem todos tinham preparação política, havia
divergências e oscilações ideológicas, não só entre africanos e filhos de colonos, mas entre
os próprios africanos. Contudo, podemos afirmar que ela serviu ao processo de formação de
consciência política; contribuiu para a desalienação e para o desenvolvimento cultural de
grande parte desses estudantes, através das palestras, debates, exposições, e concursos
literários que se costumava promover. Ali, eles entraram em contato com o pensamento
marxista que alicerçou suas idéias revolucionárias embora readaptadas ao contexto
africano, buscaram as armas políticas que pudessem preparar, para depois enfrentarem o
colonizador e saírem vitoriosos.
Em Portugal, mesmo em contato com os estudantes europeus, os africanos sentiam
necessidade de conviverem com o seu povo, razão por que fundaram casas de grupos
determinados: em Coimbra, em 1941, foi fundada por um grupo de estudantes, a Casa dos
Estudantes de Moçambique e, em 1943, outro grupo fundou a Casa dos Estudantes de
Angola. No mesmo ano, 1943, em Lisboa, alguns estudantes formaram a Casa dos
Estudantes de Angola, de modo que a convivência entre os africanos que estudavam em
Lisboa, Coimbra e Porto era intensa, quer através das associações criadas com essa
finalidade, quer através de outras associações político-culturais existentes. Muitos deles
tiveram ligações com o Partido Comunista Português, partido que funcionava na
clandestinidade. Novamente recorremos a Laranjeira (s/d, p. 130), que cita como um caso
“paradigmático” Agostinho Neto, pertencente à comissão central do MUD-juvenil
(Movimento de Unidade Democrática), sem esquecer o contato que os africanos mantinham
com seus companheiros de projetos cívicos e culturais que haviam ficado em África.
Também não podemos deixar de mencionar a criação do Centro de Estudos Africanos
143
(CEA) em 1951, por Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Marcelino
dos Santos, Francisco Tenreiro, Alda Espírito Santo e outros. De natureza cultural e
política, o Centro funcionava aos domingos, em forma de seminário, em casa de Alda
Espírito Santo. O fato de Mário de Andrade ser integrante da Redação da revista Présence
Africaine, em Paris, facilitou a publicação anônima de integrantes desse Centro nessa
revista, nº 14, 1953, num caderno especial, intitulado “Les étudiants noirs parlent”. Já o
Caderno de poesia negra de expressão portuguesa, organizado por Francisco Tenreiro e
Mário de Andrade, em 1953, foi uma das iniciativas do CEA.
A CEI recebia subsídios provenientes dos orçamentos das “Províncias
Ultramarinas”, canalizados pelo Ministério do Ultramar. Aos poucos, o poder colonial foi
entendendo que os espaços culturais de que os africanos dispunham poderiam vir a ser uma
arma anticolonial poderosa e cortou todos os subsídios em 1961 e eliminou todos os
espaços que poderiam servir de elaboração de um projeto político: associações, jornais,
partidos, sindicatos. Em contrapartida, os dominados escreviam cada vez mais
contundentemente e a obra literária tornou-se arma política contra a dominação. Juntamente
com a Sociedade Portuguesa de Autores que concedeu a José Luandino Vieira o Grande
Prêmio de Novelística, por sua obra Luuanda, assim como as Edições Imbondeiro, de Sá de
Miranda (Huíla) Angola, encerram-se as atividades da Casa dos Estudantes do Império em
1965, sob a força da dominação portuguesa.
Para compreendermos melhor a significação deste ano na vida dos povos angolanos
se faz necessário que retrocedamos um pouco...
Em 1957, jovens brancos, negros e mestiços fundaram em Luanda a Sociedade
Cultural de Angola, que tinha uma revista, “Mensagem”, de Arte e Cultura com objetivos
semelhantes aos da homônima publicada pela CEI a que nos referimos no item anterior e no
item 3.1.1 e que já havia sido proibida de ser editada pelas autoridades portuguesas. As
atividades políticas desenvolviam-se na clandestinidade e o trabalho de mobilização de
massas, embora sem muito vigor, atingia também outras cidades além de Luanda, apesar de
a polícia portuguesa (PIDE) ser muito intransigente e muito repressora.
No início de 1959, em março, durante a Conferência dos Povos da África, que
ocorria em Gana, habitantes dos bairros pobres de Luanda, mobilizados por nacionalistas,
144
foram às ruas gritando pela independência, mas a polícia recorreu à força, maltratou muitos
deles e realizou muitas prisões, inclusive de alguns líderes do MPLA, os quais vieram
posteriormente a fazer parte do conhecido “processo dos 50”, na realidade eram 57: (50
angolanos e 07 europeus), considerados participantes de conspiração organizada.
Primeiramente foram julgados os portugueses, acusados de distribuírem panfletos. Foram
condenados a penas de detenção de três meses a três anos e a cassação dos direitos políticos
por quinze anos. Depois de revistos os processos, o Tribunal de Justiça de Lisboa agravou
estas penas para o máximo de cinco anos. Convém lembrarmos que, de acordo com
algumas entrevistas concedidas a Marie-Thérese Maugis, em 1962, cujas respostas serviram
para texto publicado em Colonialismo e lutas de libertação (s.d., p. 101-103), um bom
número de colonos, sobretudo de comerciantes, era favorável à independência.
“Mas esta posição é de ordem econômica, mais do que política. Queriam assim protestar
contra as condições e os encargos que o Governo fazia pesar sobre eles: esses
comerciantes queriam, depois da independência manter com os negros relações idênticas
às da África do Sul” (idem, ibidem, p. 112)
No mês seguinte, a Aeronáutica Militar Portuguesa estabelece-se em Angola, com
uma demonstração aérea em Luanda, destinada a amedrontar a população angolana.
Muitos dos seus participantes do MPLA foram presos, em 1959, entre eles: Antônio
Jacinto, Mário Andrade, Viriato Cruz, Helder Neto, Agostinho Neto, António Cardoso e
Luandino Vieira, todos jovens com menos de 25 anos.
O ano de 1960, para os angolanos imbuídos de um ideal nacionalista revolucionário,
foi um ano marcado por muitas prisões, mortes e fugas para o Congo, em busca de refúgio.
Em junho, o MPLA propôs ao governo português uma solução pacífica para o problema
colonial. Em julho foi preso o líder dos movimentos revolucionários, Agostinho Neto, fato
que gerou muitos protestos, principalmente, nas regiões de Ícolo e Bengo, de onde ele era
natural, mas as manifestações foram logo reprimidas e de modo muito cruel, resultando em
mortes e feridos. Em dezembro, a Assembléia das Nações Unidas proclama a Declaração
do Direito à independência dos territórios portugueses e povos sujeitos ao domínio colonial.
O ano de 1961, destacado em A geração da utopia é o marco do início das lutas
armadas pela libertação de Angola.
A história registra dois acontecimentos que podem ser considerados fundamentais: o
primeiro ocorreu em janeiro e foi a greve dos agricultores de algodão, que viviam na
145
miséria contra a Companhia belga Cotonang, que lhes comprava o algodão a baixos preços.
A greve foi sufocada com bombas Napalm, americanas, que destruíram um grande número
de aldeias e mataram milhares de africanos; o segundo, em decorrência dos rumores
correntes em Luanda de que os prisioneiros políticos, inclusive os “do processo dos 50”,
seriam enviados para a prisão do Tarrafal, na ilhas do Cabo Verde, medida arbitrária que
vinha juntar-se a outras que a PIDE vinha tomando às ocultas, tais como torturas e morte a
quem ousasse levantar-se contra o regime. Os líderes do MPLA, desejando libertar os
presos políticos antes que os portugueses os embarcassem ou os executassem, resolveram
tomar de assalto as prisões e, na madrugada de 04 de fevereiro de 1961, simulando uma
desordem em um bairro da periferia de Luanda, chamaram a atenção de soldados
portugueses que vieram conter a “desordem”. Aproveitando-se de seu comparecimento, os
supostos desordeiros tomaram-lhe as armas e os mataram. Enquanto isso, um grupo do
MPLA trocava tiros com guardas da Casa de Reclusão e os soldados portugueses que
estavam no interior do presídio reagiram. Os atacantes retiram-se para as proximidades,
sendo perseguidos e mortos pelos policiais portugueses.
Um segundo grupo invadiu a prisão de São Pedro e o posto da PIDE, e um terceiro
grupo atacou a rádio oficial. Desses ataques saíram ilesos e retiraram-se da cidade em
direção ao norte e ao nordeste do país. Outros ataques desse tipo ocorreram nos dias
seguintes, cada vez mais intensos, e contra alvos militares, mas os militares estavam
munidos com armas pesadas, metralhadoras. Este ato é considerado o maior levantamento
popular contra a dominação portuguesa em prol da independência de Angola.
Aproveitando-se desses acontecimentos, os civis europeus, apoiados pela polícia,
resolveram vingar-se e invadiram os bairros africanos próximos ao cemitério e a polícia
investiu contra os detidos, matando-os a todos. Na manhã seguinte, foram transportados em
cima de um caminhão e enterrados em valas comuns. Foi um verdadeiro genocídio.
Em setembro daquele ano, pressionado por instituições estrangeiras e até certo
ponto pela sociedade portuguesa, Salazar resolveu abolir legalmente as diferenças entre
“civilizados” e “não civilizados” do Estatuto Indígena, bem como “formalmente”, acabando
com a prática de trabalhos forçados. Contudo, o pagamento de tributos continuou até o fim
do regime. Além disso, Salazar procurou criar meios de acesso da população à instrução
básica. Mas era tarde demais. A luta começara e não houve recuos.
146
3.1.2.3 - Utopia
Em 1516 Thomas Morus publicou Utopia que recebeu o extenso título: Livreto
deveras precioso e não menos útil do que agradável sobre o melhor dos regimes de Estado
e a ilha da Utopia até hoje desconhecida.
Nessa ilha todos viviam bem, em prosperidade e paz; governados por um rei sábio.
Lá as pessoas viviam isoladas do mundo para não se contaminarem de nenhum mal. Na
realidade, tratava-se de uma crítica social à Inglaterra do seu tempo. Fundava-se no sonho
de Morus de uma nova ordem psico-social para que todos pudessem viver melhor, em uma
sociedade onde fora abolida a propriedade privada e a intolerância religiosa. E foi esse o
sentido que a palavra Utopia desenvolveu: uma concepção de mundo ideal que traz no seu
bojo um sentido de renovação social fundamental. Sem desconhecermos as demais
acepções atribuídas ao termo de “projeto irrealizável”, “quimera”, “fantasia”, conforme
encontramos em Aurélio, adotamos a posição de Szachi (1972, p. 3) quando diz: “Esta
compreensão da palavra não parece ser útil para a análise científica da utopia como um
fenômeno social – ela faz um julgamento de valor, já de saída, antes mesmo que se comece
a estudar a questão.” Ora, a realidade é mutável; a história está aí a nos mostrar que algo
que hoje consideramos impossível, fantasioso, pode amanhã vir a se tornar realidade; daí,
considerarmos neste estudo a utopia como algo realizável.
De Morus aos nossos dias, sem esquecermos A República, de Platão, há muitos
autores considerados utópicos, como: Campanellla, Bacon, Fourier, Owen e Caber. Trata-se
de um gênero irônico, em que há um contraste, pelo menos implícito, entre a situação
fictícia e a realidade social e política, há uma proposta para reforma, ou de recomendação
para uma transformação da ordem sócio-política. Em outras teorias sobre utopia, há quem a
vê como os ideais e desejos de um grupo social em um determinado tempo histórico
projetados para um devir histórico. Mannheim aproxima-se dessa opinião, quando em seu
livro Ideologia e Utopia (1968, p. 216) diz: “Um estado de espírito é utópico quando está
em incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorre.”
147
Mais adiante ele vai acrescentar: “[...]existem duas categorias principais de idéias
que transcendem a situação – as ideologias e as utopias” 21 e estabelece a seguinte diferença
entre ambas: as ideologias não chegam a realizar-se; “as utopias, através da contra-
atividade, conseguem transformar a realidade histórica existente em outra realidade, mas de
acordo com suas próprias concepções.”22. Em outras palavras, as ideologias, estando ou não
de acordo com a situação social presente, mesmo transcendendo-a, terminam por
corroborarem com o sistema; as utopias não, elas são forças que movem o sistema,
modificando-o, transformando-o.
Ernst Bloch (2005) também tem uma concepção diferente de utopia. Em sua obra O
princípio esperança, ele destaca, de modo positivo, a produção da imaginação social, sua
força criadora e ‘subversiva’, antecipadora de uma vontade futura.
Qualquer que seja o sentido atribuído à utopia, não podemos esquecer que,
etimologicamente, este termo vem do grego e significa lugar não existente que não se
encontra em lugar algum. Devemos lembrar que há diferença entre utopia e realidade, e que
parece ser inerente ao ser humano a não satisfação com as condições existentes, pois ele
sempre está querendo algo melhor, por isso sonha, antecipa, projeta, mesmo quando as
circunstâncias históricas lhe são adversas. Isso em Bloch é visto como motivo de despertar
e de futuro, “uma espécie de consciência antecipadora, rompendo o vazio do cotidiano,
anunciando um ‘tempo novo” (Cf. MÜSTER, p. 21), e é justamente isso que mantém a
utopia.
Jerzy Szachi (1972, p.xxxi), no prefácio à edição polonesa do seu livro As Utopias,
nos dá uma explicação sobre a história e a utopia que, no nosso ponto de vista, serve como
justificativa a nossa recorrência aos fatos anteriormente abordados em 3.1.2.1 e 3.1.2.2 e a
utopia de que vamos tratar a seguir:
O barco parou um dia em Luanda, os parentes do pai levaram-na a passear. Tragou com
avidez todas as impressões, tentou fixar a cor vermelha da terra e o contraste com o azul
do mar, o arco apertado da baía e o verde da Ilha, as cores variegadas dos panos e os
pregões das quitandeiras. Sabia, começava o exílio. Essa idéia do exílio que se
impregnou toda ao sair de Luanda fê-la chorar, quando o barco se afastou da baía
iluminada à noite. Muito tempo ficou na amurada, olhando e respirando pela última vez
as luzes e os odores da terra deixada para trás. (AGU., p. 12-13)
Narrado em 3ª pessoa, com um narrador onisciente, freqüentemente o discurso
histórico e o literário se interpenetram, através da focalização interna de Vítor, Aníbal e de
Malongo. As personagens refletem, indagam sobre questões existenciais, em meio a um
universo fragmentado em que buscam reencontrar-se. No espaço lisboeta em que as
personagens se agregam, percebem as regras repressoras, discriminadoras e injustas dessa
sociedade e contrapõem as marcas da história e da cultura africana que lhe são inerentes. O
espaço angolano, particularmente interiorizado é lembrado a distância.
O Portugal que a personagem Sara passa a conhecer é o espelho em que se revela o
modo de ser e a experiência do outro e, conseqüentemente, a dela própria:
Gente bisonha, que ia para o hospital ou dele vinha. Preocupados com alguma doença,
real ou suposta. Se não têm nenhuma, preocupam-se pela que terão no futuro. O
português precisa sempre de alguma coisa para estar melancólico. E se não for a saúde, é
a família, ou então o emprego. Povo triste, pensou Sara. É do regime político ou a
essência da gente? [...] Mas que são tristes, são. Que diferença com a esfuziante alegria
dos africanos, o que os faz passar por irresponsáveis. Também não era verdade. (AGU.,
p. 12).
Se na constatação acima Sara consegue ver diferença no modo de ser
português ou angolano, ao observar um pouco mais adiante como duas mulheres se vestem,
149
“de negro com um lenço negro na cabeça”23, imagina se elas não estariam de luto por
familiares mortos em Angola. O seu nacionalismo rejeita imediatamente a idéia, consciente
da inverdade da propaganda oficial e dos discursos de Salazar contra os angolanos, no
momento, suspeitos, e potencialmente considerados terroristas, criando desse modo, um
clima totalmente desfavorável a eles: “E a população passou a olhá-los com hostilidade”
(AGU, p. 12).
Nas conversas entre amigos que viviam na capital do Império, avivam-se as
lembranças da infância e da terra natal, nas palavras de Sara, era “uma idéia cada vez mais
mítica” que a distância conferia “o tom patinado da perfeição” (AGU, p. 13). Aqui, nas
suas palavras está implícita a utopia de todos eles: para essa terra perfeita é que todos
querem voltar. Daí a necessidade de articulação, de lutar por refazer a realidade,
transformar em conduta seu desejo, de tal modo que se torne capaz de transcender a
realidade e, ao mesmo tempo, romper as amarras da ordem existente.
A Casa dos Estudantes do Império vai ser o espaço privilegiado dos debates
ideológicos. Ela é mostrada como o elemento unificador, “onde se reunia a juventude vinda
de África. Conferências e palestras sobre a realidade das colônias. As primeiras leituras de
poemas apontavam para uma ordem diferente.” (AGU., p. 13) Interessante notar que não há
preocupação do narrador em descrevê-la fisicamente, e sim o clima em que isso tudo se
realizava. A Casa foi o espaço que serviu de transição para as lutas pela independência.
Logo no primeiro capítulo diversas personagens são apresentadas, mas a focalização
ali concentra-se em Sara, estudante de Medicina. Há o Aníbal, formado em Histórico-
Filosóficas; Vítor, estudante de Veterinária; Elias, protestante e radical; Laurindo, o mais
jovem do grupo e Horácio, literato. Ao longo da trama narrativa podemos acompanhar as
mudanças de rumo que cada um vai tomando. Também, ao mesmo tempo, através do olhar
atento de Sara, o narrador torna evidentes as diferenças étnico-geográficas existentes àquela
altura entre os africanos (diferenças que a União das Populações de Angola – UPA - vai
levar em consideração, na medida em que planeja, com a independência de Angola,
expulsar brancos e mulatos):
As mesas estavam todas ocupadas, aos grupos de quatro. A maioria era de angolanos,
todos misturados, brancos, negros e mulatos, estes bem numerosos. Os caboverdianos,
que se misturavam facilmente com os angolanos, eram quase exclusivamente mulatos.
23
Idem, ibidem.
150
Sara descobria a sua diferença cultural em relação aos portugueses. Foi um caminho
longo e perturbante. Chegou à conclusão que o batuque ouvido na infância apontava
outro rumo, não o do fado português. Que a desejada medicina para todos não se
enquadrava com a estrutura colonial, em que uns tinham acesso a tudo e os outros nada.
(AGU., p. 13) .
Cada vez mais consciente, vai-se tornando elemento multiplicador de idéias de
transformação dessa realidade, como no caso da palestra que ela proferiu na CEI sobre a
mortalidade infantil nas colônias, fato visto por seus pais como envolvimento com
comunistas, assim como o atendimento a consultas aos estudantes africanos, na CEI, como
estagiária. Desse modo, tomando mais uma vez Szachi como referência, dizemos que se
trata aqui de uma utopia heróica, “sonhos ligados a um programa e a um comando à ação”
(1972, p. 23), sem esquecermos que Sara é a primeira personagem a perceber, em conversa
com Laurindo, que estavam diante de uma situação utópica:
Se não morrer, o que se enquadra melhor com a sua maneira de ser, vai
desiludir-se. A tal revolução que tem à frente não vai ser como ele imagina.
Nunca nenhuma é como os sonhos dos sonhadores. É um sonhador, apesar de
toda linguagem comunista. Acaba por ter idéias mais libertárias que as minhas,
que ele chamava de anarquista. As revoluções são para libertar, e libertam
quando têm sucesso. Mas por um instante apenas. No instante a seguir se
esgotam. E tornam-se cadáveres putrefactos que os ditos revolucionários
carregam às costas toda vida. (AGU, p. 111).
A utopia toma forma de ação, provocando um movimento de pessoas em busca da
libertação de Angola. O processo de organização e de fuga para o exílio ou para o
enfrentamento da guerrilha é relatado em poucas páginas, casando bem com a idéia de que
em sendo atividades clandestinas, não podem ser alardeadas. Aníbal é o primeiro a partir.
Era de fato o mais bem preparado para a guerrilha, muito responsável e coerente com os
seus ideais. Desde o início, o narrador deixa entrever uma espécie de atração e afinidades
entre ele e Sara, mas em nenhum momento ele chega a tomar alguma decisão. O seu
compromisso é com a libertação do país a vitória da luta. No entanto, Sara, apesar de estar
grávida de Malongo, chegou a se questionar: “Faria amor com Aníbal? [...] Com Malongo
era uma torrente, para usar uma palavra muito gasta, a paixão, a atracção sexual. Aníbal
inspirava-lhe a comunhão. Faria amor com ele para com ele se fundir, comungar.” (AGU,
p. 55-56).
24
Idem, ibidem, p.57
153
Sara sabe que não deve contar com Malongo na criação desse filho. Então faz
planos de ir para França onde vai ficar esperando um chamado ou ordem para participar
como médica das lutas em prol da independência do seu país. Enquanto não há
oportunidade para ir para Paris, vai discutindo o movimento com os amigos, mas sentindo
que há, por parte deles, uma reserva para com ela, no sentido de não lhe repassarem os
planos do grupo. Fica bem patente como as questões de natureza étnica tiveram influência
nas guerras libertárias de Angola.
Um dos membros do grupo, Horácio, jovem mulato, costuma publicar alguns
poemas no Boletim da Casa e lê-los para os amigos que nem sempre estão dispostos a ouvi-
lo. Em suas intermináveis discussões sobre literatura, destacava a influência de autores da
literatura brasileira na “juventude literária de Angola” e aconselhava a leitura dos poemas
de Carlos Drummond de Andrade, “na sua opinião o melhor poeta de língua portuguesa de
sempre” (AGU, p. 29) e Viriato da Cruz, marco de ruptura com a literatura portuguesa. Fica
evidenciado que a utopia da libertação passa também pela utopia de uma literatura nacional
e vai encontrar identificação com a literatura brasileira modernista.
O narrador abre também um pequeno espaço para mostrar os movimentos sociais
que na época estão ocorrendo em Portugal, e de que os jovens da CEI participam, além da
atuação policial repressora. Assim é que somos apresentados a Laurindo, jovem mestiço da
Gabela, que está em Lisboa há apenas um ano e quer participar de tudo. Vai à marcha do 1º
de maio, juntamente com Sara e Furtado, um branco do Uíje. Logo a passeata foi dissolvida
pela polícia, eles se dispersaram, mas ainda conseguiram reunir-se Sara e Laurindo. Antes,
eles comentavam a respeito do clima de radicalização nacional que estava acontecendo
entre os estudantes africanos, pois, em anos anteriores costumavam participar da
manifestação trabalhista. No momento, estavam recusando a participação, alegando que a
luta deles era na sua terra, não em Portugal. A independência concebida utopicamente
tornara-os indiferentes ao entorno da luta, à exclusão e ao fechamento cultural. Entre eles
havia divergência de opinião. Na compreensão de Sara e Laurindo não pode ser um fato
isolado a oposição à ditadura de Salazar e a luta pela independência – a utopia.
Logo fica evidenciada a posição de Furtado com relação aos movimentos
nacionalistas: um bom teórico, mas de nenhuma ação, ou melhor: na prática sua teoria é
outra: “pacifista, quando antes era incendiário.” (AGU., p. 108).
154
Pouco tempo depois que Sara concluiu o curso, Malongo lhe informou que naquele
dia, por volta das dez horas da noite, eles, juntamente com Vítor e Laurindo estarão fugindo
para a França. Tudo já estava planejado: o local de encontro para saída seria a casa dela.
Ela reuniu o necessário, deixou o aluguel pago e malas com objetos que Marta deveria vir
pegar e enviar para seus pais. Jantaram juntos e logo após, ela lança o último olhar pelo
quarto e partem para uma vida desconhecida. A etapa desses jovens estudantes em Portugal
estava encerrada.
O grupo de fugitivos era grande. Ao chegar a Paris separou-se: uns foram para os
Estados Unidos como Elias, que era protestante e adepto das idéias de Fanon, seguidor da
UPA e que ocasiou um cisma no grupo. Outros foram estudar em outros países da Europa
ocidental ou oriental. Sara e Malongo ficaram em Paris. Vítor e Laurindo foram para a
guerrilha. Aníbal já não se encontrava mais em Paris. Ela, Sara, ficou sempre à espera de
um chamado que não veio. Aníbal, que conseguiu a autorização para que ela integrasse o
grupo dos fugitivos, contrariando a decisão da maioria que não confiava em africanos
brancos, poderia tê-la convocado à luta. Mas ele estava dentro do ambiente de combate,
sentia a essa altura os sonhos dissolverem-se; não havia lugar para Sara, com uma filha,
num ambiente desse e de certo modo, poupou-a de um desencanto maior.
Onze anos depois, o espaço narrativo é deslocado para o interior de Angola, cenário
da guerra na chana, descrita como “um oceano baixo de capim. [...] lá onde finda a chana
haverá árvores e sombra. No fundo duma chana há sempre árvores, bem como à direita ou à
esquerda ou atrás; a chana é um mar interior, a única incerteza reside no tempo necessário
para chegar à praia.” (AGU, p. 122). Na chana caminha Vítor que adotou o codinome de
Mundial. Anda em direção ao Leste, está só, pois se perdera do seu grupo de onze
combatentes. Nessa caminhada vai rememorando os anos de combate e aos olhos do leitor
vai revelando a sua nova face e a face de alguns companheiros de luta, bem como o estado
atual da guerra.
Os inimigos tinham despovoado os kimbos, com os helicópteros jogando
desfoliantes que destruíam as plantas e acabavam com o solo, ou matando barbaramente as
pessoas desarmadas e inocentes. Com bastante realismo o narrador nos faz visualizar a
cena:
155
3.1.5 - O reencontro
Dez anos depois dos fatos relatados, vamos encontrar Aníbal em uma praia deserta,
lá em Benguela, na Caotinha. Este lugar parece nos mostrar que depois das lutas apenas a
natureza manteve-se pródiga. A ação humana foi devastadora, fato que se pode constatar
em qualquer direção que se queira acompanhar o olhar do narrador: no corpo, na alma, na
economia, na política, etc. Ali ele vivia, havia desistido do exército, recebia uma pensão e
vendia algum peixe que caçava, como ele mesmo dizia, pois se considerava um caçador,
não um pescador. Não aceitara participar do governo que se estabeleceu pós-independência
e não aceitara nenhum privilégio. Ele participara da luta como um comunista utópico, tinha
uma posição crítica da realidade, acreditara em mudanças sociais profundas e possíveis e
por estes ideais lutara.
Aníbal conhecera aquele lugar paradisíaco na infância, onde fora passar férias. Ali
um polvo enorme o assustou e passou a ser o pesadelo antes de todas as batalhas e jurou a
si mesmo matá-lo. Agora, ele é o cenário da solidão, do abandono a si mesmo da
personagem.
A um quilômetro dali mora um pescador, Ximbulo, com sua mulher Maria e a filha,
Nina, tudo que lhe restou das guerras em que perdeu dois filhos: o mais velho na batalha de
Katengue e o mais novo, quando pisou numa mina (detalhe importante na situação dos
países no pós-guerra, e realisticamente o narrador não esqueceu) e cuja morte Aníbal veio
comunicar-lhe. Ficaram amigos. O lugar onde Ximbulo morava fora uma pescaria que
159
depois da ida do antigo dono para a África do Sul, após a independência, o Estado não quis
assumir por medo de prejuízos.
A casa onde Aníbal mora foi uma das muitas casas abandonadas pelos que fugiram,
com o início da guerra e que ele já vira, quando foi avisar a Ximbulo da morte do seu filho.
Dois anos depois de sua volta da União Soviética onde fora fazer um curso, após se desligar
do exército e tentar esquecer o passado “decidiu viver naquela casa e caçar o polvo de sua
infância” (AGU, p. 197). Voltou e Ximbulo ajudou-o a concluir a casa. Naquele lugar havia
luz elétrica, mas não havia água. Dispunha de um tanque que toda semana era cheio, graças
a um amigo que morava na Baía Azul. Repartia a água com Ximbulo. Ao lado da casa
plantou uma mangueira e deu-lhe o nome de Mussole, uma maneira mítica de mantê-la
viva: o seu espírito ali estava e com ela conversava.
Depois da fuga para Paris só uma vez havia se encontrado com Sara, fora um
encontro casual em Luanda, em 1977 com promessas de reencontro. Ele se encontrava na
União Soviética quando ela regressou a Angola no final de 1974. Mas um dia Sara chegou
inesperadamente a sua casa. Abraçaram-se. Ela trouxe bebidas e salada. Ele havia assado o
peixe que caçara há pouco, para o almoço. Partilharam a comida, a bebida e as recordações,
sem cobranças. Sobre si ele disse: “Eu morri e desencantei-me. Os dois caminhos num só”.
(AGU, p. 202) É a maneira de resumir seu estado de ânimo e de revelar sua decepção com
o que resultou de seu sonho utópico de revolução. Tentaram preencher os anos em que
estiveram distante falando pouco deles mesmos e mais dos amigos em comum: Vítor, de
quem repartiam as impressões, e as de Aníbal sobre ele não eram boas, fez-lhe críticas
ferrenhas, mas reconheceu: “Talvez por ter demasiado gostado dele. Sabes, a desilusão é o
pior que há. Era o meu mais novo, tratado com todo carinho. Desculpava-lhe todas as
pequenas falhas, defendia-o quando precisava, confiando nele. Afinal, não passa dum
oportunista.” (AGU, p. 201)
Avaliando o passado, Aníbal (que não podemos deixar de senti-lo uma das máscaras
do autor) diz:
Costumo pensar que a nossa geração se devia chamar a geração da utopia. Tu, eu, o
Laurindo, o Vítor antes, para só falar dos que conheceste. Mas tantos outros, vindos
antes ou depois, todos nós a um momento dado éramos puros e queríamos fazer uma
coisa diferente. Pensávamos que íamos construir uma sociedade justa, sem diferenças,
sem privilégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos, o
Paraíso dos cristãos, em suma. A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns
casos fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e lutando por ele. E depois...
160
tudo se adulterou, tudo apodreceu, muito antes de se chegar ao poder. Quando as pessoas
se aperceberam que mais cedo ou mais tarde era inevitável chegarem ao poder, a
defender posições particulares, egoístas. A utopia morreu. E hoje cheira mal, como
qualquer corpo em putrefacção. Dela só resta um discurso vazio. (AGU, p. 202).
“Os deslocados tinham vindo de todos os cantos da província, eram camponeses que ali
não tinham terras boas nem água para cultivarem. As roupas eram decentes, tinham
recebido fardos duma organização humanitária dinamarquesa. O problema era a fome e
as doenças como disseram. Aníbal olhava para eles e reconhecia o mesmo tipo de caras e
atitudes dos que há dez anos vira fugirem para a Zâmbia. As línguas eram diferentes,
mas os olhares os mesmos, como luar de guerra a persegui-los.” (AGU, p. 213).
Na volta, ele a convidou a um banho de mar. Ele ficou na praia; ela entrou no mar.
Mergulhar nas águas do oceano tem o sentido mítico de um batismo, de renascer para uma
nova vida. Ali mesmo na praia eles se amam pela primeira vez; foi aquele encontro de
almas há tanto tempo ansiado.
Restava a Aníbal enfrentar o polvo, que na sua memória foi transformado em uma
entidade mitológica. A narrativa é minuciosa, muito reflexiva e tem efeitos
161
3.1.6 - Contrapontos
Trinta anos após o início das lutas em prol da independência, Malongo, Vitor e Elias
voltam a se encontrar. Dos três, Vítor é o que tem mais destaque político: é ministro;
Malongo é comerciante, nunca entrara em política e Elias é bispo da Igreja da Esperança e
Alegria do Dominus. Além da amizade, o que os une é a esperteza em saber tirar de tudo
benefícios para eles próprios. O progresso dependente da luta de classes é substituído por
uma sociedade de negócios que explora o homem e a nação. O que prevalece é o lucro e o
logro. Muito foi assimilado da dominação colonial, tanto no que diz respeito às relações
sociais, como na política e na religião. A denúncia da alienação de Malongo aqui se amplia,
ele passa a tipificar bem o novo burguês, na maneira como se efetuam as relações sociais
entre os que têm mais poder aquisitivo e os que têm menos, entre os subordinados e os
patrões:
162
- Você não aprende, não é seu negro burro? Esqueceste outra vez o sal, filho duma puta
velha. Vem cá, vem provar aqui.
Malongo segurou-lhe a cabeça com as duas mãos, enfiou-lhe a cara no prato, prova,
cabrão, prova para aprenderes. João estrebuchava, mas o patrão era demasiado forte, e a
cara dele só largou o prato quando uma chapada monumental o atirou contra a parede da
varanda. O criado ficou no chão, tonto a esfregar a cara.(AGU, p. 293).
A Europa vai servir de referência para ambos: João com a consciência de vítima da
dominação, explicando para as pessoas na rua que presenciaram a cena “que os colonos
estavam de volta para retomarem o país, agora ajudados por uns negros que andaram todos
na Europa a aprender a vender os seus patrícios” (AGU, p. 293); Malongo, com outras
palavras, mas usando o mesmo discurso civilizatório do colonizador, como forma de
justificar sua atitude: “Por isso que o país não avança, as pessoas não têm nada para fazer.
A ver se na Europa uma cena destas reunia assim um magote de desocupados, todos felizes
por passarem o tempo com um centro de interesse inesperado.” (idem, ibidem)
Já Vítor, instalado no poder, desfrutava de prestígio à custa de corrupção, “estava
aterrorizado com as denúncias que se gritavam pela cidade” (AGU, p. 268). Receava a
criação de novos partidos e “sentia que o poder que durante anos e anos controlava se lhe
esvaía pelos dedos como areia fina. O seu mundo esboroava-se e talvez não tivesse tempo
de juntar divisas suficientes para viver nalgum lado o resto da vida” (AGU, p. 289).
Elias vai representar a nova forma de exploração de um povo que não tem mais em
que acreditar frente a uma independência que não o deixou livre de fato. O instrumento da
exploração é buscado nas raízes culturais do povo africano, no seu modo de ser alegre, de
gostar de música e de dança, em seu sentimento de religiosidade que mistura Deus,
animismo e fetichismo, mas a serviço da exploração e de novas formas de alienação. A
Igreja de Dominus promete curas do corpo e da alma. Para a construção do Templo,
Malongo entrou com um capital e compra de aparelhos eletrônicos, “colunas de mil watts e
lâmpadas de todos os tons e tamanhos” (AGU, p. 296). Vítor, com o apoio político e os
fiéis, com o trabalho voluntário – partilha desigual. O templo dispõe de recursos utilizados
nos shows de grandes artistas, os mesmos mecanismos da mídia para atrair os crédulos. O
lucro seria dividido entre Malongo, Vítor e Elias.
Não faltou na narrativa a inclusão de outras artes, como costuma acontecer nas
obras de Pepetela. Aqui transversalmente aparece a alusão ao cinema quando o narrador
menciona o espaço utilizado na realização do primeiro grande culto: o do cinema Luminar e
163
faz sobessair a importância da música como coadjuvante das mensagens que se queriam
repassar aos fiéis: dependendo do discurso, dos Kassav antilhanos a Bach, aos cantos,
palmas e ritmos de batuques, do bungular e dos xinguilamentos. E assim, o narrador
misturou o popular e o erudito e todos os ritmos, corroborando o processo de alienação e
exploração dos incautos, pois segundo conta ironicamente o narrador, nesse dia, grande
quantidade de dinheiro, de jóias e de outros objetos foi arrecadada, em troca da esperança,
de alguma alegria e felicidade.
Contrapondo-se a esse modo de agir e de pensar, há as personagens Judite e
Orlando. Tinham um nível cultural mais elevado e eram capazes de reelaborarem suas
identidades a partir da experiência do presente em direção ao futuro: ela era médica, filha
de Sara e Malongo, e ele, seu namorado, era economista, funcionário do Banco Nacional.
Ambos discordavam de Malongo, sobre os rumos que o capitalismo estava impondo a
Angola, dos discursos apolíticos, das “atitudes de alheamentos que favorecem a ordem
estabelecida, qualquer que seja ela” (AGU, p. 266). Mas eles são vozes isoladas que se
somam à de Aníbal no olhar para o passado e veêm o que resultou no presente. Assim se
expressa Orlando: “E a minha geração, jovem e entusiasmada, foi perdendo o entusiasmo,
foi considerando que a política era algo proibido e perigoso, só se devia cumprir e não
pensar. Ela aí está, pensando só no carro e nas viagens, no futebol e nas farras.” (AGU, p.
304). Ao que confirma Aníbal:
Tens razão (...) – O mais importante para uma geração é dar qualquer coisa de bom à
seguinte, um projecto, uma bandeira. No fundo é o pai a deixar uma herança para o filho.
E é triste sentir que a nossa geração, que vos deu apesar de tudo a independência, logo a
seguir vos tirou a capacidade de a gozar.” (idem, ibidem)
Ainda desse balanço constataram que em Angola pós-independência restava a antiga
‘superioridade’ da elite urbana em comparação com a do campo, com os mesmos processos
de exclusão, a omissão de intelectuais (“aqueles que mostram o caminho”) e a ausência de
partidos que viessem a unir as duas Angolas, além da mediocirdade buscada como um
valor. Mas mesmo assim, Pepetela deixa-nos entrever um pouco de esperança na voz da
jovem Judite: “ – O passado nunca justifica a passividade – [...] Se todos dissermos que
nada vale a pena então é melhor morrermos ou deixarmo-nos morrer, sempre é mais
coerente do que vegetarmos.” (AGU, p. 308). Nessa não-aceitação da situação atual, nesse
desejo de sair dessa situação, nesse movimento de ação para frente, para um devir, uma
164
nova utopia está surgindo. Daí, talvez, a coerência do narrador-autor em afirmar que esta
obra por ele iniciada com um ‘portanto’, rememorando um ato de reprovação de um
professor português a sua maneira (angolana) de falar e logicamente entendida como a de
quem não sabia falar português, ele agora dela se aproveitando com o senso de humor que
lhe é característico, não tenha conclusão. Se a utopia daquela geração não se cumpriu,
outras estão surgindo, o devir faz parte da história da humanidade, está em aberto para
todos, cúmplices da esperança, da construção de um final melhor (para o país, para o
mundo).
3.2 - Predadores
[...] os prazeres são desejáveis, mas não quando derivados de fontes aviltantes, da
mesma forma que a riqueza é desejável, mas não como recompensa por uma traição, e a
saúde é desejável, mas não á custa de comer não importa o quê.
Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro 10
3.2.1 - O enredo
libertação, ao mesmo tempo em que regressavam muitos que haviam lutado pela
independência do país. Enquanto as pessoas procuravam pelos parentes e amigos
sobreviventes, os três movimentos revolucionários, MPLA, UNITA e FLNA disputavam o
poder. Caposso, aproveitando-se das brechas existentes no movimento político, vai
lentamente ascendendo política e socialmente, freqüentemente por meios escusos, e
aproveitando-se da ingenuidade de algumas pessoas para explorá-las e traí-las, a exemplo
de muitos outros que espertamente assim procede(ra)m. Desse modo, conseguiu tornar-se
empresário, não sem antes inventar para si uma outra história de vida, forjando desse modo,
uma nova identidade. Mas, no seio da família que veio a constituir, revela-se um grande
chefe, preocupado em provê-la, em dar uma educação esmerada aos filhos, o conforto e
tudo que o capital pudesse comprar. No entanto, encontrou outros indivíduos mais espertos
que ele em seu caminho, estrangeiros a quem se associou, que quase o levaram à falência.
Pelo menos, enquanto sua cabeça arquitetava novos planos, só restava a ele aceitar a
realidade.
A Ética é invenção dos gregos. Como ciência fundada na razão que deve controlar
as paixões, surgiu no momento em que as ações humanas, os costumes tradicionais se
enfraqueceram, em conseqüência das calamidades das guerras. A crítica dos sofistas à
legitimidade das leis tradicionais acarretou a necessidade de se buscar um princípio novo
apoiado na razão que daria regras à vontade para ela deliberar corretamente, uma vez que a
moral fundamentada nos costumes espontâneos não possuía mais a força para dirigir a ação
dos homens, fato questionado, por exemplo, em Antígona, de Sófocles. A essa altura, os
homens estavam conscientes de que um mal maior podia ocorrer se os novos valores éticos
não fossem aceitos livremente – a liberdade é o fundamento da obrigação moral - e
exercidos em conjunto por toda a sociedade, como garantia de sua preservação. Tais fins
deveriam ser belos, bons e justos. Devemos lembrar que os conceitos de beleza e de
bondade na Ética grega são muito diferentes nos dias atuais; para eles era fácil passar de um
a outro, pois os gregos viviam a mediania das coisas, nem o excesso nem a falta e a
harmonia das ações. Assim pautado pela razão, o indivíduo poderia realizar “a boa
finalidade ética determinada pelo seu lugar na ordem do mundo, na ordem social e política
e na ordem familiar.” (CHAUÍ, 1999, p. 348) Marilena Chauí continua em seguida:
166
É bem verdade, como atestam os estudos dos últimos cinqüenta anos, que nunca houve a
“bela totalidade” grega. Não existiu como um fato. Mas foi desejada como um valor por
uma sociedade e uma cultura que, marcadas pela desmedida, buscaram a todo o custo
encontrar uma medida que contivesse os homens dentro dos limites postos como justos,
a justiça sendo o metron dos cosmos e da polis.
Vista dessa maneira, a liberdade humana é considerada um valor
essencialmente político, e que só se realiza na polis.
Pepetela não dita soluções para essa situação, mas parece apontar um caminho: o de
uma renovação ética para se alcançar a verdadeira liberdade. Por vias diversas, desde as
obras anteriores, com a capacidade de quem conhece bem a história do seu povo, os
contrastes resultantes das diversidades étnicas, das tradições e dos costumes existentes, este
escritor, com traços precisos, procura pintar um retrato da sociedade angolana.
Também do ponto de vista cultural, fica evidenciado que uma parcela dos que
consegue ascender socialmente vai perdendo rapidamente o seu ethos tradicional e não há
nada que ocupe o seu lugar. Assistimos à alienação da cultura, ou seja, à distância que
afasta a sociedade de si mesma e à perplexidade dos que constatam que o Governo, o
Estado, o Poder, são corruptos. Na obra pepeteliana, os que emigram do campo para
grandes cidades aspirando a uma vida com melhores condições ficam expostos aos valores
desse mundo estranho e até adverso, aos apelos da sociedade de consumo que costumam
seduzir e, não podendo acompanhá-los, muitos se voltam para a marginalidade e para a
violência.
identidade, se faz necessário o trabalho racional a fim de que sejam recuperados os traços
dispersos do retrato social e unidos numa figuração coerente. É difícil, mas não impossível:
que legitimem a esperança como princípio de vida, buscando no esforço crítico que
corresponde ao ethos que anima a cultura do povo e que o eleve ao nível da Razão na razão.
Ou seja: a crítica à sociedade angolana efetuada por Pepetela é ao mesmo tempo a tentativa
de descobrir a identidade na diversidade que permita reconciliar os opostos e, desse modo,
criar a imagem de Utopia possível: a da dignidade humana. (cf. idéia da Utopia de Bloch,
in: O Princípio Esperança, vol. I) Cada indivíduo se tornando, assim, o cidadão consciente
de sua universalidade ética, como sujeito e não como objeto da interação e da vida comum.
Desse modo, o retrato do país adquire feição própria e os cidadãos se reconhecerão nele.
Recorrendo mais uma vez à idéia de Bloch (idem, ibidem), afirmamos que para Pepetela a
verdade do todo é a reconciliação possível, a grande esperança.
Desse modo, o ponto crítico que a cultura atingiu impôs a necessidade de julgar e,
nessa obra, o autor vai fazê-lo. Mas o leitor vislumbra um fio de esperança, na atitude
daqueles poucos representados que não se deixam corromper, dos que ainda acreditam nos
seus ideais de uma nação que consiga distribuir de modo equilibrado suas riquezas e num
governo democrático. Através do narrador, o autor sinaliza que é necessária e urgente a
mudança para a permanência da paz e sobrevivência para toda a Nação.
O Estado é a forma da sociedade em que a razão se faz consciente de si, pois nele é
que se unificam os princípios, os valores familiares e da sociedade civil (lugar do conflito,
dos interesses egoístas, que a situação econômica tão bem os expressa; nele, os conflitos de
interesses devem encontrar a pacificação e as soluções). Se a lei, em princípio, é garantia da
169
ordem por si mesma, caminho para acabar com a violência, ela não tem força para tornar
uma sociedade mais justa. O Estado precisa mais do que boas leis para corrigir as
injustiças, ele necessita de razão, de vontade política juntas para fazê-las reais, para que
sejam exercidas livremente.
A idéia de justiça como prática social em Predadores surge como desafio maior e
mais urgente no universo político, em particular, de Angola que, apesar de Pepetela tê-la
pintado em cores tão fortes, esta ação não se caracteriza pelo niilismo ético, isto é, pela
indiferença com relação aos valores; ao contrário, acena pela urgência de seu reencontro,
ou melhor, para que a liberdade não seja “a simples vontade e a escolha, mas um modo de
agir que tem a si mesmo como fim.” (CHAUÍ,1999, p. 355) e ainda, segundo o
ensinamento de Maquiavel ao Príncipe, o agir com virtù, ou seja, ter a sabedoria de captar o
momento oportuno para dobrar a caprichosa Fortuna.
Encontrar este sentido em meio a essa realidade presente é o que busca Pepetela em
Predadores.
3.2.3 - A difícil composição do retrato da sociedade angolana nos anos 1974 a 2005
Se nas outras obras Pepetela lança um olhar crítico sobre a sociedade angolana, em
Predadores, com seu realismo, pela voz do narrador vai compor o retrato dessa mesma
sociedade por um viés bem mais negativo e traumático. O colorido que podemos encontrar
não é aliado da fantasia, está nas fortes cores e cenas do cotidiano, nas repartições públicas,
nas famílias, no fosso que separa pobres de ricos e, principalmente, nas cenas de rua, em
sua dura realidade: crianças pobres e abandonadas, prostituição, ex-combatentes que se
tornaram mendigos; enfim, em tudo o que podemos avaliar da situação de Angola, à
medida que acompanhamos a trajetória de Caposso, símbolo desse estado de coisas, sua
família e comparsas e, por outro lado, na contramão da história no presente, mas afirmando
os antigos e tradicionais valores dessa sociedade, a trajetória de outras personagens como
Sebastião Lopes e Nacib.
sem nada, nem casa própria, nem pensão, ou reforma nem conta de banco. Caposso
herdou a roupa de corpo, um relógio, os instrumentos da profissão e meia dúzia de
móveis decrépitos que conseguiu recuperar nos vários sítios por onde tinham passado e
deixado rasto, Vendeu tudo, menos o relógio, prosseguiu o sonho paterno, se mandando
para Luanda. (Pr., p. 73).
Caposso chegou a Luanda com vinte anos de idade, e não havia se alistado nas
tropas coloniais, apesar de ter idade para isso. Fora salvo pelo golpe de Estado em Portugal.
Não tinha nenhum projeto de vida definido. Nessa cidade, reencontrou por acaso
Sebastião Lopes, conhecido em Novo Redondo. Expôs a ele sua situação e Sebastião levou-
o à presença de Seu Amílcar, português proprietário de uma modesta loja de que sabia estar
precisando de um empregado. Este, confiando na apresentação de Sebastião conseguiu o
emprego para Caposso. É dessa conjugação de momento, espaço e oportunidade que vão se
delinear novas condições de vida.
171
burguês e rejeitado pelos “radicais” do referido movimento. Também nestes detalhes, fica
evidenciada a importância de alguém estar mais próximo dos novos dirigentes. De maneira
bastante irônica o narrador nos diz que Caposso criou
uma assinatura revolucionária, capaz de fazer inveja àqueles heróis vindos da mata [...]
VC, explicando para quem não sabia que não só era o seu nome mas como VC
significava também a Vitória é Certa, principal palavra de ordem do MPLA, que
inspirara o nome do jornal do Movimento e cujas iniciais, ditas em inglês, ViCi, eram o
nome da principal base na Zâmbia, nos tempos da luta de libertação. (Pr., p. 95).
A partir daí, para não ser desmascarado, criou para si uma nova história de vida.
Forjou uma biografia, própria para o momento histórico em que vivia a sociedade angolana,
em meio a uma burocracia oficial capenga e corrupta: era o último descendente de uma
família que, por conta das perseguições do poder colonial, espalhou-se por todo o país e
que teve avô e pai perseguidos por serem enfermeiros, “classe revolucionária por
excelência” (Pr., p. 96), e que para escaparem, viviam mudando de nome e de lugar, talvez
o Caposso fosse “nome de clandestinidade” (Pr., p. 96) E o homem, nascido e criado no
mundo rural envergonha-se de sua origem e logo tenta absorver a cultura urbana e é
absorvido pelo capital, com sua ética cosmopolita e sem alma, que procura a riqueza fácil e
o poder, aliena-se totalmente. Aliás, podemos afirmar que o autor foi muito feliz na escolha
do sobrenome da personagem, acrescentando-lhe mais valia de sentidos, preenchida através
do nome que carrega em si a narração implícita. Caposso nos lembra “Capo”, título dado ao
chefe de máfia italiana, que adquire bens de forma ilícita e gere os negócios da família, com
mãos de ferro. Ele é astuto, oportunista e cruel. Tudo isso a personagem revela em doses
maiores ou menores.
Mas da nossa personagem, dessa dupla biografia, pode ser também observado o
homem público e o privado. Do homem privado, marido e pai de família, trataremos agora.
Do homem público, deixaremos para o item seguinte.
De modo geral, a família constitui o microcosmo que revela os pequenos conflitos
entre marido e mulher, pais e filhos, as tensões, contradições, ambigüidades e fragilidades
do macrocosmo social.
Vladimiro Caposso na intimidade do lar era o provedor, o chefe de família
tradicional. Como pai, valorizava a formação intelectual dos quatro filhos, investindo em
sua instrução, embora não privilegiasse os valores da terra, preferindo vê-los estudando no
exterior, principalmente em Paris ou Londres, sonho de todo bom burguês ou novo rico. À
173
“O primeiro passo é tirá-lo do comitê central. Depois, com ele enfraquecido, por já não
pertencer à direção, é muito mais fácil fazer investigações profundas e descobrir todas as
provas necessárias. Temos de reforçar a disciplina interna, limpar o partido das ervas
daninhas, há um grupo de traidores que põe em perigo a própria sobrevivência do partido
e mesmo a unidade da nação.” (Pr., p. 225)
Caposso, sem ter seu nome indicado para a Central do Comitê do partido, conforme
fora prometido, quando foi reclamar recebeu a ameaça de ter seus negócios ilegais
denunciados ao partido, o que implica que a conivência silenciosa de alguns com suas
falcatruas serviria de arma contra ele na hora em que fosse conveniente. Desse modo, o
narrador expõe mais uma vez os mecanismos da corrupção nos bastidores do poder, do
partido político de que se esperava uma postura mais ética. Pouco tempo depois, demitiu-se
da direção e da Jota e foi assumir-se como empresário, um pequeno-burguês que sonhava
em tornar-se grande burguês. Na forma como os fatos são apresentados, ressaltam-se
aspectos sórdidos da política e a falta de consciência de Caposso que em nenhum momento
reflete sobre a conseqüência de seus atos sobre as pessoas.
Conheceu Karim, paquistanês, mulçumano, recém-chegado de Moçambique,
também empresário que vai fornecer-lhe mercadorias para um novo negócio: mini-
mercado, através de quem vai ser manifestada a crítica à maneira como os estrangeiros se
beneficiam explorando as fraturas da sociedade. Na inauguração compareceram ministros,
muita gente importante, um padre, além da mulher e filhos. A festa teve a cobertura gratuita
da televisão. Tudo isto nos faz lembrar as palavras de Marx (1985, p. 88):
As relações sociais estão initimamente ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas
forças produtivas, os homens mudam seu modo de produção e, mudando o modo de
produção, a maneira de ganhar a vida, mudam todas as relações sociais. O moinho
mecânico traz a sociedade com o soberano, o moinho a vapor, a sociedade
com o capitalismo industrial.
Tradicionais), e seu presidente, Bernardino Chipenguela, que saem em defesa dos pastores
das propriedades vizinhas à de Caposso. Sebastião, a essa altura, completamente desiludido
dos antigos ideais comunistas, diante de um novo Estado formado pelos ideais socialistas,
totalmente afastado de seus objetivos e interesses da maioria, ainda mantém e defende os
antigos valores éticos e morais que um cidadão de bem deve ter, como o reafirmou: “... as
generosas idéias de solidariedade para com os outros, não pretender explorar ninguém, lutar
para que todos os angolanos tenham oportunidades semelhantes na vida independentemente
do que foram os pais, essas idéias ainda são minhas.” (Pr., p. 341). A força da lei vai fazer
valer o direito dos agricultores. Sebastião conseguiu amedrontar Caposso, pelo poder de
que dispunha, pela força da palavra, pelo exemplo de vida incorruptível e por este saber que
a igreja estava ao lado dos pequenos proprietários e que o governo omitira-se de apoiá-lo.
Caposso aceitou as condições estabelecidas por ele, menos efetuar o pagamento da dívida;
esta corria na justiça que, como sabemos, é muito lenta, mas: “Refizeram a cerca, deixando
um corredor de cem metros de largura para os bois passarem na sua peregrinação. [...]
Também refizeram o leito do rio Culala, ao destruírem a represa que retinha as águas...”
(Pr., p. 370) Como podemos lembrar, em sentido contrário, foram as mesmas armas usadas
por Caposso para iludir os incautos e conseguir o capital de que dispõe. E recorremos mais
uma vez ao que diz Maquiavel (2000, p. 163): “Numa república, sobretudo se já
corrompida, não há meio mais seguro, mais fácil e tranqüilo de opor-se à ambição
desmedida de um cidadão do que usar os mesmos caminhos que trilhou, para chegar à meta
que se propôs.”
Tendo aprendido no congresso do partido que a calúnia podia resultar em benefício
para alguém, Caposso beneficiou-se desse expediente, pressionando psicologicamente um
bancário honesto, Francisco Amorim, com ameaças e delação de um crime que o mesmo
não cometera, para apoderar-se da casa em que ele morava que ficava num bairro de elite,
Alvalade, em que Caposso desejava residir para ostentar o seu status de novo rico. Este fato
é revelador da inexistência de um sentido de valor moral em Caposso.
Sem conseguir o empréstimo bancário de que necessitava para pagar as dívidas a
Karim, por sugestão deste entrega-lhe em troca das dívidas o avião. Omar e Karim
desfizeram a sociedade da construtora com Vladimiro e, depois de acertos propostos por
advogados e contadores, Caposso ficou apenas com dez por cento da Caposso Trade
179
Company (CTC), a quinta da Huíla, umas poucas casas e terrenos sem importância.
Fábricas, sobretudo a de confecção e cervejaria que ele havia comprado, tudo fazia parte da
CTC, mantendo-se apenas o antigo nome e o antigo gabinete, onde ele não tinha mais o que
fazer e por isso abandonou-o. Comprova-se o conhecido pensamento de Hobbes: “O
homem é o lobo do homem” e a expressão popular: “Ladrão que rouba ladrão tem cem
anos de perdão”.
Nas últimas cenas da configuração de Caposso, o narrador o situa na fazenda,
junto com os familiares. A fazenda vai ser agora um espaço de encontro consigo mesmo,
uma espécie de refúgio e de alento para as decepções sofridas. É Natal de 2004.
Aparentemente, Caposso está disposto a esquecer os agravos mas, na realidade, os reveses
da vida não o modificaram, está maquinando uma forma de vingar-se de Karim quando não
for mais seu sócio. E dispõe de elementos para isso: Karim já era casado com uma
paquistanesa e casou com uma angolana, sem ser divorciado da primeira, com vistas a
adquirir a cidadania angolana e a beneficiar-se nos negócios. Dessa forma, o lobo, deixado
de lado pela matilha, está prestes a atacar seus antigos companheiros.
Usando uma vez mais entre tantas passagens irônicas da narrativa, temos a destacar
o argumento que justificaria, na opinião de Caposso, sua atitude: “Os novos donos do país
têm necessidade absoluta de meter alguma ordem no circo, de parecer defender a
legalidade, para poderem continuar a comer do melhor que os pais acumularam
ilicitamente. Essa é a lei da vida.” (Pr., p. 376) .
Pepetela, mais uma vez, não foge ao registro dos fatos históricos em suas
narrativas. Não foi suficiente o capítulo inicial ter sido datado com o ano de 1992 e fazer
referência à campanha eleitoral que iria consolidar o partido do MPLA no poder: ele
aproveita e denuncia de imediato a corrupção política: “Esta era talvez a maior
concentração de veículos de sempre, na maior parte carros pertencentes ao patrimônio do
Estado, buzinando estridulamente.” (Pr., p. 09) e, ao mesmo tempo, expõe a atitude dos
que, em nome do partido, praticam crimes e não os assumem atribuindo-os ao partido
adversário que se encontrava em desvantagem:
Se atirasse as culpas para a UNITA, o partido que afrontara o governo na guerra civil e
cuja violência era reconhecida até pelos próprios aderentes mais imparciais, ninguém ia
180
investigar nada. A polícia governamental acusaria a UNITA, esta se defenderia, diria ser
manobra política para a desmoralizar antes das eleições, o partido no poder, o MPLA,
aproveitava imediatamente para relembrar outros crimes cometidos pelos rivais, a
polêmica se instalava e ninguém ia investigar coisa nenhuma. (Pr., p. 10) .
O fato também serve para o narrador criticar a atitude da polícia que age com dois
pesos e duas medidas, diante da pouca possibilidade de investigar o ocorrido se “algum
fanático” descobrir que o crime fora praticado por “um poderoso e conhecido empresário,
ligado ao partido do poder [...] bateria a tremer em retirada” (Pr., p. 12-13).
Também aponta para o clima de incertezas que tomou conta do país e de quantos se
aproveitaram para fazer remessa de dinheiro para os paraísos fiscais e abandonarem
Angola, com receio do resultado das urnas. É na voz de Nunes, funcionário de um banco,
que de modo irônico denuncia a atitude de alguns membros do poder, frente aos novos
rumos políticos:
Acabo de me despedir do ministro Gonçalves que arranjou uma providencial consulta
médica urgentíssima em Londres, teme-se uma doença grave, claro... E o general
Arlindo já partiu para Paris, também tratar umas enxaquecas horríveis que não o deixam
pensar a sério na reorganização das novas Forças Armadas. E o Andrade, e o Fontes...
uma boa parte do governo já está fora. (Pr., p. 21-22).
Não falta na obra em apreço a descrição dos fatos que precederam o ano da
independência: o movimento das pessoas na Rua da Delegação, em frente à delegação que
“Com a vinda dos guerrilheiros que tinham combatido pela independência e a instalação de
sua representação ali” (Pr., p. 65). Muitos vinham saber notícias dos parentes que haviam
lutado. Já os mais espertos vinham em busca de se infiltrarem na casa e, mais tarde,
adquirirem algum beneplácito. Havia, no entanto, os bem intencionados que queriam se
alistar, já prevendo as lutas internas dos partidos na disputa pelo poder. Interessante notar
que, para dar o tom de veracidade aos fatos narrados, Pepetela menciona duas vezes o poeta
Lúcio Lara, que, na vida real, foi um dos líderes do movimento de independência.
Outra data referida em Predadores é a data de 27 de maio de 1977. Esta data é
emblemática: refere-se ao revisionismo aplicado pelo MPLA em seus membros, em razão
de uma possível tomada de poder, um golpe de Estado, por parte dos Netistas. E, em nome
disso, houve julgamentos, prisões em massa, cometeram-se atos de extrema barbaridade e
até execuções de pessoas inocentes. Na realidade, tratava-se de dois projetos políticos e de
culturas intolerantes, que preferiram o argumento da força à força do argumento e foram ao
extremo. Houve erros dos dois lados. Passados quase trinta anos, ainda não há dados
181
oficiais do número de mortes, onde foram enterradas as vítimas, e muita coisa está por ser
esclarecida.
O próprio Pepetela é acusado de ter feito parte desse julgamento. Daí considerarmos
corajosa a atitude dele, como escritor, de não se omitir diante de tais fatos, introduzindo
nesta narrativa assunto tão polêmico que, em Angola, não é discutido sem emoção. Em
Predadores assim o conta: “O grupo de acção foi obrigado a tomar conhecimento e
posição, a lei militar imperava na cidade e os mujimbos corriam soltos. Mais tarde, tiveram
mesmo que ler alguns papéis enviados pela direção explicando os mambos, além do que
aparecia nos meios de comunicação” (Pr., p. 107).
Quando acusado de haver participado desses atos, em que morreram muitos,
inclusive, Nito Alves, Hélder Ferreira Neto, Cita Alves, Pedro Furtado Barkalof, Luís
Kutumba e irmãos, Aires Machado, David Zé, Artur Nunes, Urbano da Costa, Xarulo de
Azevedo, José Van Dunen, Pepetela disse, com a serenidade de quem está em paz com sua
consciência, que tinha apenas sido incumbido pelo Bureau Político do MPLA de ver os
documentos que “seriam mais elucidativos para serem transmitidos pelos órgãos de
informação” (Conforme Edição 139 do Semanário Angolense, em maio de 2005) e no
mesmo Semanário ele diz que esperou em silêncio que o MPLA “viesse em público
defender, numa prova de lealdade, o bom-nome daquele que o serviu desinteressadamente
em todos os momentos”.
Quando o narrador faz um breve retrospecto da ação de Simão Kapiangala como
soldado destaca sua participação no combate aos sul-africanos, “racistas do apartheid”,
para trazer à tona “o acordo de Lusaka assinado em 1994, um dos muitos tratados que
pretendiam acabar com a guerra civil”. (Pr., p. 57) Outro ano tocado de leve é o de 1997,
como o ano em que se presumiu uma nova guerra civil.
Retrocedendo no tempo, quando traça o perfil biográfico da mãe de Nacib, Pepetela
narra sobre as chamadas “sanzalas da paz” pelos portugueses, na época do avanço das
tropas nacionalistas pelo leste de Angola, semelhantes às aldeias estratégicas inventadas
pelos americanos no Vietnã, todas cercadas de arame farpado, com postos de observação,
com soldados armados de metralhadoras, a fim de impedirem qualquer contato da
população com os guerrilheiros, considerados terroristas pelos colonos. Ali as pessoas eram
obrigadas a trabalhar de manhã ao pôr-do-sol, vigiadas por soldados ou informadores da
182
Pide. Mas tal vigilância não conseguia impedir que alguns guerrilheiros se infiltrassem nas
aldeias ou que algumas pessoas da aldeia fossem até as matas onde os guerrilheiros se
escondiam, para levar algum alimento e manter os guerrilheiros informados.
E mais uma vez a história é lembrada na obra de Pepetela para que não fique
esquecida a coragem dos que souberam resistir com sacrifícios, arriscando a própria vida à
força da dominação portuguesa. Também para servir de exemplo à situação presente: diante
do perigo de se envolver com o contrabando de armamento, o paquistanês, Karim, contou a
Caposso sobre um amigo que teve a cabeça decepada e oferecida num prato à mulher, como
castigo por isso. Ao que Caposso imediatamente associou à batalha de Ambuíla que, sob as
ordens de André Vidal de Negreiros, foi travada contra os congoleses. Nela, os portugueses
mataram o rei do Congo e os jagas o decapitaram. Isto fez com que a revolta do exército
congolês se tornasse maior e viesse contra os portugueses bem mais destemido. Contudo, a
vitória coube aos portugueses e, principalmente, ao desempenho de dois capitães mulatos: o
pernambucano Manoel Soares e o angolista Simão de Matos. Segundo Alencastro (p. 297):
“Trazida até a capital de Angola a cabeça decepada do Mani Mulaza recebeu as honras das
autoridades portuguesas. Levada em procissão até a igreja de Nossa Senhora de Nazaré, a
cabeça foi emparedada num nicho da capela”. Lembrando este fato, o narrador diz que isso
era contado para dar idéia da dureza dos tempos e da rudeza dos homens (Cf. Pr., p. 260).
Mas ao longo do romance ficou claro que a lição da história não serve a tipos como o
Caposso.
[Este capítulo, que devia se passar apenas em Novembro de 1995, não obedece à lógica
dos outros, vai percorrendo o tempo até ao ano de 2000. Tudo por uma questão de
economia. E ainda dizem que os escritores são uns seres esbanjadores! Esta nota
justifica-se: será pena se o leitor preguiçoso se perder nos eflúvios do tempo] (Pr., p.
263).
[Antecipo-me dizendo, estou de acordo com os sempre amáveis leitores, também é puxar
demais a corda para esta coincidência, aliás absolutamente inútil para o decorrer da
estória, a qual podeiria acabar da mesma maneira sem esta deriva forçada: é fazer os
leitores de parvos, como se na vida estas coisas acontecessem, um personagem encontrar
outro na imensidão de um continente que, além de conhecer um país africano sem
qualquer relevância na cena mundial, conhece alguém próximo do primeiro personagem,
mesmo se apenas próximo por filha interposta. Pois é, por ser exagerado demais é que
184
admirando obras de arte” (Pr., p. 200), principalmente em Paris. Contudo, ela conhecia
obras de arte africanas como a “escultura dos Fang ou dos Bamiiléké, os bronzes do Benin
ou os cachos humanos dos Macondes.” ( Pr., p. 202), gostava “de olhar para uma máscara
de Muana Puó, às vezes só uma fotografia.” (Pr., p. 203). No seu caso, a obra de arte
africana era apenas objeto de contemplação com que se identificava e, posteriormente, as
obras de arte vistas em Paris era desculpa para fugir dos problemas, desculpa para
menosprezar as pessoas, ou melhor, oportunidade de o narrador nos fazer refletir que a arte
pode ser também instrumento de alienação e/ou de denúncia do estado de abandono dado
aos museus e aos monumentos artísticos do país, no período pós-independência:
- Trabalhar? E em quê? No ministério da Cultura, se calhar... Não brinque, pai. Não têm
dinheiro para o salário que mereço. E depois, ia fazer o quê lá? Sabem alguma coisa de
arte? Basta ver o estado dos museus, ao abandono.
- Podias ajudar a melhorar os museus...
- Eu? Sou uma consumidora de museus, estudei para isso. Não estudei para melhorar os
museus... (Pr., p. 366).
Mais uma vez, na narrativa pepeteliana são trazidas à tona questões artístico-
culturais e o nível cultural da sociedade, como na apresentação da cena que beira o ridículo
e que ilustra bem o grau de formação de Caposso (todo ostentação) e dos demais ouvintes,
por ocasião da apresentação de um guitarrista espanhol num concerto no cine-teatro
Nacional, quando em meio aos acordes de uma música barroca estes são interrompidos pelo
toque do celular de Vladimiro que o atende aos gritos e palavrões, tendo de retirar-se do
recinto à custa dos insultos recebidos por parte da platéia, justamente na noite em que ele
queria mostrar como se interessava pela cultura a um amigo, Marco, recém-chegado de
Lisboa. Dois dias depois, um jornal noticiava o fato, criticando a sua atitude e a “burguesia
emergente e fanfarrona” (Pr., p. 293). O jornalista que fez a crítica, por imposição de
Vladimiro, foi demitido e o diretor do jornal publicou um pedido de desculpa, fatos que
revelam a falta de liberdade da imprensa bem como a facilidade com que esta se submete
ao poder econômico. A voz da imprensa que deveria ser altissonante, livre, é violentamente
abafada pelo autoritarismo dominante.
Nacib amava Mireille. Ele era tímido; ela, atrevida. Havia o muro da casa que os
separava, ela do lado de dentro e ele de fora, e o muro sócio-econômico. No entanto, isto
pouco importava, se de fato ela o amasse, pois voluntariosa que era, casaria com ou sem o
consentimento do pai. Mas não, aproveitou-se do pequeno deslize confesso de Nacib, do
187
seu ligeiro envolvimento com Susan nos Estados Unidos, e o afastou de sua vida. É
revelador o sentido de moralidade, fidelidade que está por trás da “consciência” de Nacib.
Mais uma vez Caposso saiu vitorioso, sem precisar de enfrentar o possível pretendente
como o fez com Karin a respeito de Djamila, sua filha mais velha: “nunca aceitarei que ela
case com homem que já tem outra mulher, aqui há polígamos, sim, mas são uns atrasados lá
do mato e eu nunca vou aceitar isso para uma filha minha, por isso é melhor esquecer a
Djamila e podemos continuar a fazer negócios e sermos amigos.” (Pr., p. 300). Fica
patenteada a atitude de Caposso, o pai guardião da honra familiar e, ao mesmo tempo, o
falso moralista, o seu desprezo às pessoas do campo e aos seus costumes.
Nacib tinha um amigo, Kasseke. Eles se conheceram na Av. Marien Ngouabi, perto
do Catambor onde este vendia pilhas e produtos elétricos. Lá dormia em um bueiro por
onde escorria as águas da chuva que iam dar no Rio Seco e dali ao mar. Ali dormia, ele e o
Manuel, que vendia cadernos quando não chovia. A constatação da situação de miséria em
que vivem é facilmente comprovada na descrição do lugar onde dormem e é feita na voz do
próprio Kasseke: “Estás a ver aquela grelha de ferro? Se levantas a grelha, tem um buraco,
dizem é para água da chuva escorrer até ao Rio Seco e depois para o mar. Do buraco sai um
tubo bué grosso vai passar em baixo daquele prédio. Durmo aí.” (Pr., p. 242). Depois de
algum tempo eles passaram a freqüentar a casa de Nacib, apesar da desconfiança dos pais
com relação à estória de Manuel ter sido considerado feiticeiro e desprezado pela família,
oriunda do Congo.
Na construção desses personagens podemos observar que há, também, a intenção de
o narrador revelar práticas culturais tradicionais que costuma(va)m ocorrer no interior de
Angola; não no sentido de dizer que devam ser esquecidas, mas para que não sejam mais
usadas, como é o caso da circuncisão feita em Kasseke, sem as menores condições de
higiene e que o prejudicou por toda a vida, bem como a rejeição da família a Manuel por
acreditá-lo feiticeiro. Acusar crianças como essa, ou mesmo adultos, como foi o caso da
mãe de Caposso, da prática de feitiçaria é comum na cultura africana. Significa atribuir a
elas poderes capazes de causar morte e desgraças para sua família e demais pessoas que
delas se aproximem, criando em torno delas um círculo de exclusão, as mais das vezes,
partindo dos próprios pais ou parentes próximos que os deixam abandonados à própria
sorte. Também cabe-nos observar que, através da fala do narrador e do extenso diálogo
188
entre Kasseke e Nacib, Pepetela quer mostrar o drama dos menores de rua, o tipo de
trabalho que exercem, marginalizados pela sociedade, sem a proteção do Estado e
abandonados à sua própria sorte, enveredando pelas drogas como fuga da realidade:
“quando me dá tristeza cheiro masé gasolina, não faz mal” (Pr., p. 249), sem nenhuma
assistência do Estado, bem como a possibilidade de existir uma amizade desinteressada
entre duas pessoas do mesmo sexo, de nível cultural e social diferente, como a dele por
Nacib e vice-versa, a ponto de ser seu confidente, “ a única pessoa conhecedora da paixão
louca e desesperada” (Pr., p. 328) por Mireille.
Nacib representa também aqueles que não negam a sua origem, que acreditam na
reconstrução do país e querem apenas colaborar: “quero ajudar a construir a refinaria nova
e depois trabalhar nela, isso é que gosto, dirigir não” (Pr., p. 194), enquanto personagens
como Omar tipificam os novos estrangeiros que estão entrando no país apenas para
explorar as suas riquezas, delas se beneficiando e aos países para que trabalham,
especialmente, do petróleo.
Outra personagem bastante emblemática e de quem já falamos anteriormente é
Sebastião Lopes, trazido do passado de Caposso, quando ele vivia no interior do país para
Luanda dos primeiros anos da independência e das guerras civis. Agora formado em
Direito, defende os criadores de gado contra o proprietário vizinho, Caposso, que lhes devia
pagar uma indenização de cem mil dólares. Os anos se passaram, mas ele continuou
honesto e com os mesmos ideais patrióticos, embora nele não mais exista o ideal comunista
de igualdade para todos que alimentara. Representa, juntamente com Nacib, o grau de
conscientização que o saber é capaz de dar, não se deixando alienar, lutando ao lado dos
mais pobres pelos seus direitos, contra a exploração capitalista e a corrupção do Estado.
Pepetela não aceita determinismos, não nivela a todos igualmente, mesmo oriundos
de um mesmo meio, fato observável na própria família Caposso. Dois de seus filhos
conseguiram se sobrepor aos valores morais do pai: o filho mais novo, Iúri, conseguiu bolsa
de uma fundação americana para estudar cinema nos Estados Unidos sem nenhuma
interferência política ou de algum artifício do pai; e a sua filha, Djamila, foi contemplada
com uma bolsa de estudos do governo para Inglaterra, através de uma empresa estatal, e era
muito responsável. Médica, dava pouca importância para a situação econômica de Caposso,
trabalhou e comprou um carro com suas próprias economias. Dedicada a sua profissão,
189
gostaria que ele tivesse construído um posto médico na fazenda, para atender aos
trabalhadores rurais daquela região, contudo, não conseguiu. Estes fatos só comprovam que
a esperança se mantém, e sempre refletida nos mais jovens.
A personagem Olímpio d’Alva Ferreira, configurado com ar de malandro, metido a
intelectual, tipifica bem aquelas pessoas que apresentam uma idéia, um projeto de natureza
social, mas sem muita convicção, quer manter-se próximo dos poderosos. Assim, chega a
defender a construção de uma escola na fazenda do Caposso; no entanto, frente à realidade,
ele não se vê como angolano que esteve também sujeito a séculos de dominação portuguesa
e não percebe que outras formas de dominação continuam existindo, é como se ele, pelo
fato de estar fora do processo de exclusão capitalista, não conseguisse, também, ver a todos
como povo de uma nação; continua arraigado a questões étnicas, mesmo quando fala da
falta dos meios de educação para todos: “Deve ser um projecto estético educativo
prioritário [...] esses indígenas foram votados ao obscurantismo durante cinco séculos de
colonização, merecem uma compensação por se manterem puros e recusarem misturas
étnico-raciais que só enfraquecem o ego angolano...” ( Pr., p. 279) Assim, podemos
afirmar que é fácil culpar o sistema quando as pessoas não são capazes, não querem, ou
temem mudá-lo.
Tecendo os poucos fios de esperança restantes, o narrador nos mostra que as
instituições, aos poucos, acenam com mudanças: “Os governantes agora evitavam favorecer
Caposso”. (Pr., p. 297). E mais adiante:
O próprio ministro das Finanças, o qual tinha estado na inauguração da fazenda, seu
amigo de muitos anos, companheiro de mulheres e de copos, ele próprio disse com um
ar condoído, não posso fazer nada ficaria muito mal se pressionasse algum banco para te
fazerem um empréstimo, os tempos são outros, bem sabes, todos reclamam transparência
nos negócios e bom governo, é a nova moda.[...] era política do governo agora não
interferir no circuito bancário, ir separando as águas. (Pr., p. 310).
A narrativa encerra-se simbolicamente na noite de 24 de dezembro de 2004. É noite
de NATAL, festa da família, festa da esperança em um mundo novo que está surgindo, data
em que se comemora o nascimento do Redentor da humanidade, dentro da concepção
cristã. Caposso está inquieto, continua maquinando vinganças em proveito próprio, mas no
coração de pessoas como Nacib e Kasseque há o desejo de paz. Faz-se silêncio, mas é um
silêncio perturbador: o da incerteza que pode bem refletir a perspectiva de construção de
um mundo melhor.
190
CONSIDERAÇÕES FINAIS
configuram a personagem transgressora, sem romper com a tradição; estão voltados para o
passado mítico da Lunda que no presente da nação é força refletora.
Refundida, quatro séculos depois na personagem Lu, esta, não uma rainha de
direito, mas de fato nos palcos, na dança, em meio a bailarinos vindos de diversas partes do
país e de níveis socioculturais diversos, recriando com o bailado o mito Lueji, buscou nas
raízes culturais a identidade do seu país, meio perdida após a revolução pela independência,
e a sua própria identidade, através de seus ancestrais, parentes de Lueji. Invocou o passado
não só para conhecê-lo, mas para interpretar o presente, no desejo de ver o que do passado
nele continua, mesmo sob outras formas e com um sentido diferente, aliando a tradição
lunda à modernidade cultural angolana - uma modernidade construída da síntese entre o
saber moderno e a memória do saber tradicional.
Pudemos aproximar a visão política de Lu das idéias marxistas, que
nortearam os planos e enfrentamentos com o colonizador em favor da independência,
embora já se note um certo desencanto. O seu compromisso político no presente é com a
arte, sua opção de vida, embora na ponta da flecha ficasse uma gota de sangue, parodiando
a fala da própria personagem.
Já em A gloriosa família - No tempo dos flamengos, o autor recorreu à
história oficial e, desconstruindo-a na movimentação das personagens em meio aos
conflitos entre Angola e a Companhia das Índias Ocidentais, criou, em torno do núcleo
familiar dos Van Dum, uma situação de conflitos em que pudemos acompanhar a
dificuldade de se estabelecer entre as duas forças antagônicas que dominavam Luanda
naquela época, ambicionando os lucros que a escravidão proporcionava.
Pepetela apontou para a face cruel da história da humanidade, a escravidão humana
e para a maneira como se deu a exploração que os colonizadores exerceram em Angola,
nem sempre de fácil aceitação, contando, às vezes, com ajuda dos próprios africanos, mas
tendo de enfrentar a força e a coragem de alguns, como a da rainha Jinga.
Por parte do narrador-personagem há o desejo de superação do discurso
dominante que exclui o sujeito do seu próprio território. O narrador-personagem assumindo
a voz dos excluídos da História, deseja assumir os significantes da sociedade, num processo
contínuo da busca de captar o que dizem, juntar os diversos traços dispersos, dar-lhes um
sentido crítico, relativizando a história.
193
evidenciado que uma parcela privilegiada que conseguiu ascender socialmente vai
perdendo rapidamente o seu ethos tradicional e não há nada que ocupe o seu lugar. Na obra
pepeteliana os que emigram do campo para grandes cidades, aspirando a uma vida com
melhores condições, ficam expostos aos valores desse mundo estranho e até adverso, aos
apelos da sociedade de consumo que costumam seduzir e, não podendo acompanhá-los, se
voltam para a marginalidade e para a violência.
A cultura alienou-se. Atingiu um ponto tal que impôs a necessidade de julgar e,
nesta obra, o autor o fez. A riqueza e o poder do Estado aparecem como o mal, pois eles
mostram a face da exclusão, da dominação, da violência e o velho quadro de injustiça que
está longe de chegar ao fim, pois ressurgiu com a força do sonho sufocado, não realizado.
Mas na reflexão é possível o leitor vislumbrar um fio de esperança, na atitude daqueles
poucos que não se deixaram corromper, dos que ainda acreditam nos seus ideais de uma
nação que consiga distribuir de modo equilibrado suas riquezas e num governo
democrático.
Através do narrador, o autor aponta para a necessidade e a urgência de mudança
para a permanência da paz e sobrevivência para toda a Nação. Nessa circunstância, o
grande desafio político de todos parece ser a tentativa de diminuir a distância que separa
pobres e ricos e reconhecer que só com um Estado justo isto é possível. A idéia de justiça
como prática social surge, deste modo, como desafio maior e mais urgente no universo
político, em particular, em Angola.
Dessa maneira, o olhar de Pepetela que nas outras obras analisadas se detivera no
passado (mito, história e utopia) focalizou ali a sociedade angolana “vivendo” um momento
de crise de valores que parece exigir mudanças de natureza ética e política. A verdadeira
independência parece não ter acontecido, muito falta ser realizado e não é tarefa de poucos,
mas de todos, cada um fazendo a sua parte.
Num misto de revolta e de esperança, o autor persegue o seu ideal de uma nação mais
rica, igualitária e em paz, em meio à realidade do quotidiano dilacerada por injustiças
sociais.
Em geral, nas obras analisadas a vinculação da história com a política se fez presente,
mas em nenhum momento os valores ou o apontar de um caminho predominou sobre o
estético literário ou o empobreceu.
195
28
Expressão tomada por empréstimo de uma das epígrafes da obra de Américo Boavida, Angola: cinco
séculos de dominação, p. 125. Segundo ele, trata-se de uma expressão popular de Angola que significa:
“Amanhã ou depois de amanhã Angola há de mudar”.
196
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199
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