Literatura Infantil e Juvenil
Literatura Infantil e Juvenil
Literatura Infantil e Juvenil
infantil e juvenil
pelas frestas do
contemporâneo
Eliane Debus
Jilvania Lima dos Santos Bazzo
Nelita Bortolotto
organizadoras
Literatura
infantil e juvenil
pelas frestas do
contemporâneo
1º Edição
Tubarão – 2017
www.graficacopiart.com.br
[email protected]
Tel.: 48 3626.4481
Conselho Editorial
Série Pandora; n. 1
Renata Junqueira de Souza (Unesp) Capa
Max Butlen (Universidade de Cergy- Cláudio José Girardi, com ilustração de
Pontoise) Márcia Cardeal
Marie Helene Torres (UFSC)
Diana Navas (PUCSP) Diagramação:
Diógenes Buenos Aires (UESPI) Rita Motta, sob coordenação da gráfica e
Daniela Segabinazi (UFPB) Editora Copiart.
Hélder Pinheiro (UFCG) Revisão:
Bianca Santos
ISBN: 978-85-8388-097-4
Inclui referências
Eliane Debus
Jilvania Lima dos Santos Bazzo
Nelita Bortolotto
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Acerca do tema para a sétima edição do seminário,
linguagens poéticas pelas frestas do contemporâneo, os
proponentes reconhecem a necessidade de abrir espaços
de reflexão às linguagens poéticas contemporâneas em suas
múltiplas semioses. Nesse sentido, não só as literaturas
estariam em foco, mas todas as demais linguagens que,
em seus diferentes campos de conhecimento, debruçam-
se igualmente sobre a arte poética. Entende-se aqui por
linguagens poéticas a palavra em suas formas escrita e oral,
a música, as imagens estáticas e em movimento, a dança, as
artes plásticas, a dramaturgia e sua encenação, bem como
as diferentes linguagens que se expõem, proporcionando
o que se chama de experiência estética.
É sabido que a imaginação e a capacidade de
improvisação confundem-se na criatividade infantil e
juvenil, como formas de ver e experimentar o mundo. São
maneiras de encenar a vida, muitas vezes, sinalizando às
crianças, aos jovens e aos adultos o valor da fantasia na
reinvenção do cotidiano. É assim que a arte aproxima-se
da infância e revela a necessidade de que se acredite nela
e de que se extrapole com ela os limites da vida regrada.
Seria, portanto, um chamamento à sensibilidade?
Somos ou não provocados, como partícipes da infância e
juventude, a desconstruir nossas percepções do mundo,
com suas exterioridades, e irmos em busca dos espaços
do nunca?
A proposição do tema do evento – buscar as frestas
de onde brotam as linguagens poéticas – não deve ser
confundida com a utopia do lugar de fora; ao contrário,
o desafio é o de, junto com pesquisadores, professores,
estudantes e críticos de arte, apontar as possibilidades de
poesia dentro dos nossos cotidianos. Trata-se de querer
Literatura infantil e juvenil
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interlocução entre leitores. Portanto, imbuído desse ethos
acerca das linguagens, o conjunto dos textos evidencia um
desejo coletivo de professores, pesquisadores, escritores e
profissionais em geral das áreas de educação e literatura
pela superação desse mundo insensível, mercadológico e
insalubre.
Em Literatura e educação – pelos fios da
tessitura dialógica, as autoras Eliane Debus, Jilvania
Lima dos Santos Bazzo e Nelita Bortolotto discutem sobre
a literatura e a educação entendendo-as como campos de
conhecimento vivos, históricos e ideológicos, no contexto
do acontecimento da formação humana. As autoras
focam o debate em torno do vínculo indissociável entre
esses campos de conhecimento, visando compreender o
desenvolvimento da competência leitora. Ao tomar como
ponto de partida o Programa Nacional Biblioteca da
Escola (PNBE), Debus, Bazzo e Bortolotto entendem que
os(as) professores(as) podem desencadear um processo
de ensino e aprendizagem mediante práticas de mediação
dialógicas.
Na sequência, Yolanda Reys, em seu trabalho La
poética de la infancia y la formación del lector literário, destaca
o poder do acolhimento, da sensibilidade e da bagagem
simbólica para a formação do leitor literário. Ao refletir
sobre a temática, a autora reconhece a importância da
mediação tanto dos professores quanto das famílias nesse
processo, especialmente incluídos os avós. Ela evidencia a
necessária e vital triangulação entre a obra literária, o leitor
adulto e a criança bem pequena que, entregues à palavra
poética, ao afeto e à comunhão de sentidos, conseguem
acessar ainda que instintivamente os mistérios da vida, da
morte e do amor, porque estão imersos em uma experiência
de linguagem poética. A autora critica o ensino da literatura
Literatura infantil e juvenil
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A literatura infantil deixou de ser considerada um
mero instrumento didático? A pedagogia já incorporou a
literatura infantil como um gênero artístico-literário capaz
de proporcionar experiências diferenciadas de fruição
através da leitura? Reflexões como essas estão presentes
em Literatura infantil e pedagogia: tendências e enfoques na
produção acadêmica contemporânea, de Edgar Roberto Kirchof
e Iara Tatiana Bonin que, ao analisarem artigos publicados
em três revistas brasileiras que focalizam a literatura
infantil, realizaram uma concisa revisão do campo de
estudos que articula a literatura infantil e a pedagogia.
Para tanto, eles apresentam um breve panorama histórico
das relações entre a literatura infantil e sua dimensão
pedagógica, destacando sua vinculação, inicialmente, a
práticas pedagógicas com mero pretexto para ensinar
conteúdos curriculares e valores morais, cívicos e religiosos
e, posteriormente, com intencionalidades vinculadas a
aspectos propriamente literários.
No trabalho El niño de la cordillera: la narrativa
infantil de Óscar Colchado Lucio, de Rosane Maria
Cardoso, o leitor é convidado a uma profunda reflexão
sobre o pensamento mítico, isto é, sobre a vida e a arte a
partir do debate sobre a literatura endereçada às crianças.
Para isso, ao mesmo tempo em que a autora descreve
brevemente algumas de suas principais obras, ela instiga
o desejo pelo conhecimento das narrativas ficcionais
do professor, poeta, contista e novelista peruano Óscar
Colchado, e evidencia o poder da cultura oral em sua obra,
provocando ainda mais o interesse pela produção estética
e poética desse escritor.
Em O menino e o mundo: o traço infantil para
contar a “história a contrapelo”, de Dilma Beatriz Juliano,
o leitor terá a oportunidade de compreender a perspectiva
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contemporânea para crianças e jovens no âmbito da
temática, dos suportes e dos diagramas narrativos. A partir
de um viés do comparativismo literário, seu texto propicia
o traçado de formas de leitura que possam contribuir para
o desenvolvimento de uma recepção estética e crítica mais
adequada ao leitor em formação.
Já no texto A hora e a vez da criança, Anna Claudia
Ramos relata o encontro com seus leitores de pouca idade,
entre três e quatro anos, da Creche Professora Rosa Maria
Pires em cuja vivência a interação e a interlocução foram
categorias centrais para o pensar sobre a literatura e a
educação infantil. A autora destaca a responsabilidade dos
adultos, incluindo escritores, familiares e professores, no
processo da formação literária destinada a crianças e jovens.
Ela diz que é preciso ser capaz de “entender cada estágio de
vida como um estágio pleno e cheio de sonhos e desejos”. Por esse
motivo, em seu texto, encontra-se uma diversidade de
questões relacionadas à infância, à brincadeira e ao gênero,
todas articuladas de forma indissociável aos assuntos
inerentes à educação e à literatura infantil.
Para responder à questão A criança quer o
livro infantil?, a professora e escritora Nilma Lacerda
estabeleceu uma intensa interlocução com as obras
Felicidade clandestina, de Clarice Lispector, A pequena vendedora
de fósforos, de Hans Christian Andersen, e Guilherme Augusto
Araújo Fernandes, de Mem Fox, fazendo também referência
à história de Gilgamesh, rei de Uruk – “primeira obra literária
de que se tem notícia” –, aos vaqueiros de Guimarães Rosa
e às narrativas dos povos papuas, na Oceania. Afirma que,
em decorrência da necessidade e não do desejo de ler, é
preciso muito investimento para a formação de leitores.
A partir de um cenário filosófico delineado, a autora
discute sobre os desafios da leitura e acrescenta que,
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Referências
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes.
Tradução: Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Revisão: Consuelo
Salomé. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
DEBUS, Eliane; JULIANO, Dilma B.; BORTOLOTTO,
Nelita. Apresentação. In: DEBUS, Eliane; JULIANO, Dilma B.;
BORTOLOTTO, Nelita (Orgs.). Literatura infantil e juvenil:
do literário a outras manifestações estéticas. Tubarão: Copiarte;
Unisul, 2016.
Literatura e educação
– pelos fios da
tessitura dialógica
Eliane Debus
Jilvania Lima dos Santos Bazzo
Nelita Bortolotto
Introdução
O diálogo entre literatura e educação surge de
diferentes modos como contribuição tanto para um campo
do conhecimento implicado, a literatura, como para o
outro, a educação, notadamente na contemporaneidade.
Esse diálogo se estabeleceu pela vultosa potencialidade
alçada através dos estudos elaborados em cada campo
em si, e também pelas fronteiras, entre si, no tempo
presente, passado ou como porvir, dimensionados em base
indissolúvel dos diversos campos da cultura.
O vínculo, ainda que assentado em horizontes de
expectativas por vezes diversos, ancora um olhar orientado
para o outro (o que ensina, o que aprende, o que escreve,
o que lê). Pensar no outro é pensar na relação eu/outro.
É pensar em um eu cuja existência é outorgada pelo outro
(relação alteritária). Como aponta Miotello (2013, p. 55),
interpretando Bakhtin, “Toda relação é uma relação de
poder, entre dois ou mais, que mexe, que tira do lugar, que
desloca, que constitui. Por isso, essa ação mútua nunca
Literatura infantil e juvenil
2017, p. 205).
Sob essa perspectiva, quando respondemos ao outro
(interlocutor) na base instituída da relação alteritária (eu e
o outro), esse ato é um ato de contrapalavra ante a palavra
do outro. Nesse tempo e espaço interativo, é possível a
compreensão pela fala e pela escuta implicadas “[...] no
grande diálogo da comunicação humana.” (BAKHTIN,
2003, p. 323). Os sentidos aí se constituem, nessa corrente
discursiva humana em que passado, presente e devir
encontram sua toada. A compreensão, portanto, é um ato
de produção comum em um tempo e espaço configurado.
É nesse movimento de ideias, aqui apontado de
modo sucinto, que pretendemos abordar a aproximação
entre a literatura e a educação como campos de
conhecimentos vivos, históricos e ideológicos, no contexto
do acontecimento da formação humana. Por certo, a
aproximação de questões teórico-conceituais e ficcionais
na prática social resguarda uma complexidade e, ao mesmo
tempo, um instigante e ávido desafio à interpretação e à
compreensão, na medida em que lugares enunciativos
abrigam diferentes gêneros de discurso1.
Segundo Bakhtin (2003), os campos de circulação
dos discursos dão-se na especificidade das esferas sociais
cujas práticas de linguagem instituem-se em gêneros do
discurso de modo relativamente estável, a depender das
situações de enunciação (interlocutores/tempo – espaço/
cultura etc.). Todavia, essa estabilidade relativa das práticas
de linguagem conforma modos de dizer e de enunciar, pelo
modo do funcionamento social das esferas discursivas de
21
homem, pelo escopo do diálogo e da linguagem.
23
da compreensão sobre as relações dialógicas autênticas,
ficaremos restritos ao debate sobre o vínculo indissociável
entre literatura e educação para o desenvolvimento da
competência leitora, a partir do entendimento de que, com
o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), os(as)
professores(as) ampliam as possibilidades de ocupar uma
posição significativa no desencadeamento dos processos
de ensino e aprendizagem.
25
Aliás, desse encontro, outras variações de percepção
sobre o mundo, sobre os indivíduos e a sociedade poderão
ser possíveis. Eis aí um dos indícios de borramento entre
fronteiras da literatura e educação: nem isso nem aquilo,
mas uma possibilidade ainda em aberto à espera de seus
criadores. Dito de outra maneira, a configuração de
sentidos deriva das toadas interpretativas dos dizeres eu-
outro, em seus tempos e espaços contextualizados.
Bakhtin (2003) defende que a força organizadora
de todas as formas estéticas é o horizonte axiológico do
outro. Na relação eu-outro, o excedente de visão de um
em relação ao outro enriquece o conhecimento mútuo
pelo acabamento transgrediente que um confere ao outro,
fomentado pelo excedente axiológico da visão. A exotopia
(extralocalidade) é a possibilidade de resposta, pois do
meu lugar único ocupado apenas por mim, posso ver o
outro, posso compreender o outro do lugar que ocupo
em certo tempo histórico e espaço social e de lá agir
responsavelmente (ética).
27
repressão): lugar e tempo de leitura: casa, província,
refeição próxima, candeeiro, família lá onde é
preciso, isto é, ao longe e não longe (Proust no
gabinete com aromas de íris) etc. (BARTHES, 1996,
p. 67).
Ainda que para alguns ler por prazer e ler por ler
possa constituir-se em uma atividade perigosa e subversiva,
é preciso entendê-la como um ato que conduz o leitor
aprendiz ao encontro com a literatura e reclama por efetivas
interlocuções para aproximação e o aprofundamento
do conhecimento estético literário. Quanto mais leitura,
quanto mais conversa sobre o que leu, associada a atos
de escrita, e quanto mais intensos forem esses momentos,
a literatura cumprirá a sua função de responder também,
de seu lado, pela compreensão do humano no homem.
A escola estará também cumprindo o seu papel, assegurado
o direito inalienável de todos de usufruírem da literatura
como “[...] manifestação universal de todos os homens em
todos os tempos” (CÂNDIDO, 2011, p. 176), que se traduz
em “[...] necessidade universal, que precisa ser satisfeita e
cuja satisfação constitui um direito” (Ibidem, p. 177).
Entendida, portanto, como uma necessidade vital e
um direito, a literatura do tempo presente, da memória do
passado e como devir há de ser aquela que, ao renunciar
palavras, renova-se e, ao renovar-se, potencializa imediata
e complexamente as subjetividades daqueles que, com ela,
relacionam-se diretamente ou mediados por outro(s), em
uma atitude não passiva, mas interativa – dialógica.
[...].
Outra posição seria a que se insere num mundo
imaginário, acreditando que tudo está por ser
inventado. Talvez, o que se possa ler no texto-
imagem-som das atuais produções culturais é que
imaginação e fantasia são ingredientes fundamentais
para a consciência do sujeito por inteiro. (DEBUS;
JULIANO; BORTOLOTTO, 2016, p. 17-18).
29
romper com a lógica da reprodução passiva de sentidos
ou terceirizar interpretações e inaugurar um caminho de
criação e invenção sensíveis, em muito, ainda é um desafio.
A opção pela via da fantasia e do imaginário no
ensino de literatura para crianças e jovens ajudará, sem
sombra de dúvida, a formar um leitor com capacidade
crítica e suficientemente emancipado para exercer a sua
cidadania, isto é, o seu poder de ser e de existir como
pessoa humana, ou seja, alguém que escolhe e decide
porque pensa, porque sente e porque sonha. A literatura
devolve aos seres humanos sua dignidade, porque, por
meio da palavra, coloca-os na condição de protagonistas
e responsáveis pela condução de processos sociais
complexos, difusos ou, por vezes, caóticos, pelos quais
eles estão imersos. As palavras próprias e apropriadas por
cada um(a) de nós são, portanto, vínculos em pauta entre
literatura e educação, para a invenção da imaginação, da
fantasia e da possibilidade de produção de outros modos
de viver em sociedade e de assumir a palavra própria.
31
ou antologias de textos de tradição brasileira em prosa
ou verso, ensaios ou reportagens sobre um aspecto da
realidade brasileira e bibliografias ou relatos de viagens
(COPES, 2007).
A partir de 2005, o PNBE voltou-se novamente
à manutenção do acervo das bibliotecas escolares e
conseguiu atender a todas as escolas públicas nos
anos iniciais do ensino fundamental. Ampliando sua
abrangência e seus critérios de atendimento, o programa
passou a atender, além das escolas de ensino fundamental,
as de educação infantil, do ensino médio e ainda ampliou
o envio à educação de jovens e adultos (EJA).
Nesse período, os títulos começaram a ser
selecionados por um grupo de estudiosos, coordenados
pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale)
da Faculdade de Educação da UFMG. As escolhas foram
pautadas em três critérios: a qualidade textual (referente à
ampliação do repertório linguístico, bem como da fruição
estética), a qualidade temática (referente à adequação do
público-alvo, motivação pelo gosto à leitura, bem como
à contemplação de diversos contextos socioeconômicos,
culturais, ambientais e históricos) e a qualidade gráfica
(referente à adequação e expressividade, sobretudo, das
ilustrações, bem como dos demais aspectos que compõem
o projeto gráfico do livro). Desse modo, independente do
segmento atendido, a composição dos acervos levou em
conta a diversidade de gêneros textuais (PAIVA, 2012).
As categorias de gênero utilizadas pelo PNBE foram
assim denominadas: textos em verso, textos em prosa, livros
de imagens e livros de histórias em quadrinhos. Segundo
Soares (2008, p. 27, grifo da autora), essa classificação
divide-se em subcategorias:
Literatura infantil e juvenil
Considerações finais
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Ao discutirmos sobre a literatura e a educação sob
a égide da relação dialógica, ficou evidente a necessidade
de cuidarmos da formação dos leitores. Apontamos
algumas possibilidades de ação para garantir tempos e
espaços capazes de favorecer o encontro de interlocutores
do processo de ensino e aprendizagem com vistas a:
(1) compartilhar suas narrativas paridas de leituras já
realizadas, das vivenciadas no presente e como devir;
(2) saber reconhecer livros literários e não literários; e
(3) ampliar a experiência de leitura de textos literários,
provocando novos diálogos e outros textos.
Finalmente, reconhecemos que o PNBE traz
como ato e potência a possibilidade para contribuir
com o aprimoramento das práticas de mediação leitora,
especialmente se houver disposição por parte dos docentes
para trilharem os caminhos da leitura literária com
seus pares. Por oportuno – e embora óbvio –, é sempre
importante destacar que essa disposição de partilha de
conhecimentos está condicionada à gestão escolar.
Esperamos que os apontamentos aqui destacados
fortaleçam ainda mais as atividades desenvolvidas pelos
professores nessa instigante – e também desafiadora –
tarefa de ensinar homens e mulheres a se apropriarem,
na cotidianidade do labor pedagógico, da humanidade do
humano.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e
tradução do russo: Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes,
2003. (Coleção Biblioteca Universal).
BARROS, M. W. L. de. Poesia Completa. São Paulo: Leya,
Literatura infantil e juvenil
2011.
BARTHES, R. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva,
1996.
34
35
RAMOS, F. B. Literatura na escola [recurso eletrônico]: da
concepção à mediação do PNBE. – Dados eletrônicos. – Caxias
do Sul, RS: Educs, 2013. Disponível em: <https://www.ucs.br/
site/midia/arquivos/literatura_escola_ebook_2.pdf>. Acesso em:
18 out. 2017.
SOARES, M. Livros para a educação infantil: a perspectiva
editorial. In: PAIVA, A.; SOARES, M. (Org.) Literatura infantil:
políticas e concepções. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 21-33.
TODOROV, T. A literatura em perigo. Tradução: Caio Meira.
Rio de Janeiro: Difel, 2009.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e Filosofia da Linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. Tradução, notas, glossário: Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. Ensaio introdutório: Sheila Grillo. São Paulo:
Editora 34, 2017.
La poética de la
infancia y la formación
del lector literario
Yolanda Reyes
39
Deberíamos seguir el hilo de la memoria para evocar
ese rostro, ese tono de voz, esas manos que iban señalando
reinos y palacios lejanos, para construir una arquitectura
que no existía entonces y que, sin embargo, era más real
que todo lo demás: más real que el borde de esa cama que
olvidamos; más real que la habitación o el patio o la noche
aquella de esos tiempos... más real que nuestras caras de
entonces, que las trenzas o las colas de caballo o la gomina
que hace tanto ya no usamos...
Y ahora, cuando hemos olvidado el rostro que
tuvimos y la edad exacta y el vestido, tal vez seguimos
acordándonos de algún retazo de la historia, de alguna
fórmula mágica de inicio, de algunas palabras que se
repetían como un canto y que nombraban todo aquello
de lo que no se hablaba durante el resto de las horas, todo
aquello que no se decía en las visitas ni en la mesa ni en la
fila del colegio...
La sustancia oculta de los cuentos: ese poder de
las palabras para dar nombre y existencia a realidades
interiores, tantas veces terribles e inciertas, a pesar de la
supuesta inocencia que los adultos atribuyen a la infancia.
¿Qué cuento recordaron? ¿Qué significa recordar?
El primer cuento que recuerdo, tal vez el más triste
de los cuentos que conozco, más que cuento era letanía e
indagaba, como en el fondo lo hace siempre la literatura, en
los misterios de la vida, con dos de sus dramas recurrentes:
el amor y la muerte. Era la historia de La Cucarachita
Martínez contada por mi abuela muchas noches a la
misma hora. Por si no saben el cuento, la Cucarachita,
barre que te barre la puerta de su casa, encontraba una
moneda y con la moneda, se compraba una cinta para el
pelo. Y luego, así, tan linda, se sentaba en esa misma puerta
a esperar que alguien la enamorara. Pasaban el perro, el
Literatura infantil e juvenil
41
que mi abuela me contaba y quizás ella tampoco lo sabía:
sencillamente, éramos dos personas muy cercanas, cuerpo
a cuerpo, cara a cara, hablando sin hablar todas las noches,
de los misterios de la vida y de la muerte y del amor.
Yo creo que, de eso, exactamente, se trata la literatura.
Y creo que los lectores de cualquier edad, cuando nos
refugiamos en la cadena de palabras de un libro, seguimos
buscando esa posibilidad, muchas veces descubierta al
lado de esas primeras voces y de esas primeras historias
inscritas en nosotros, de nombrar, en un idioma secreto,
en un Idioma Otro, aquellos misterios esenciales que
nunca logramos entender: la vida y la muerte...Y lo que
hay en la mitad.
El lugar de la literatura
Si sabemos, desde esos remotos tiempos de palacios
y de voces antiguas, que la materia de la literatura es
precisamente la vida - y la muerte y lo que hay en la mitad
- cabría preguntar por qué razón sigue tan vigente en
nuestras prácticas y en nuestros currículos esa otra idea
según la cual, lo que se debe saber de literatura es tanto de lo
que sobra y tan poco de lo que basta: es decir, definiciones,
actividades, etiquetas... La letra muerta primero y después,
cuando aprendamos bastante, si acaso, vendrá el placer.
Pero el problema es que “después” puede ser demasiado
tarde. La literatura, así enseñada, con sus listas de autores
y de obras, no da segundas oportunidades.
¿De dónde habrá surgido ese consenso escolar que
nos obliga a todos a subrayar lo mismo en el mismo párrafo
del cuento de Caperucita Roja, a entender rápidamente las
mismas ideas principales de Barba Azul y a mirar todas
las obras desde los mismos puntos de vista? ¿De dónde
Literatura infantil e juvenil
Casas de palabras
Aunque pertenezcamos a una misma comunidad
lingüística con un sistema de signos que nos permite a
todos usar ciertas etiquetas para evocar unos significados
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determinados y entendernos, pensar en la esencia del
lenguaje literario supone volver al centro de cada uno: a su
modo de hablar, a su casa de palabras. Si escribo la palabra
casa, puedo tener la seguridad de que todos ustedes, que
comparten mi lengua, evocan en su mente un concepto
de casa con algunas semejanzas básicas, pero ninguna de
las imágenes mentales que ustedes se forman corresponde
al significado estándar del diccionario. Habrá mansiones,
apartamentos o casas de campo; algunas serán grandes
y otras pequeñas; muchos irán más lejos y asociarán la
palabra con un olor particular, con una cierta sensación
de seguridad o de calor de hogar, con una añoranza o con
sus propios secretos. Y eso sucede porque todos vivimos
en casas distintas.
Valgámonos de ese ejemplo para recordar que cada
ser humano va construyendo su propia casa de palabras,
que se va apropiando del código a través de sus propias
experiencias vitales y que suele formar sus significados
en una trama compleja de relaciones y de historias. Así,
debajo de las etiquetas, el lenguaje que habitamos oculta
zonas privadas y personales. Junto a las zonas iluminadas
existen grandes zonas de penumbra.
¿Qué significado tiene todo esto para la enseñanza
de la literatura? Pues nada menos que el reconocimiento
de esas zonas. Porque, entendámonos: no es lo mismo
leer un manual de instrucciones para conectar un
horno que las instrucciones para dar cuerda a un reloj de
Cortázar, y si la escuela no se da cuenta de semejante
sutileza, seguirá enseñando a leer todos los textos desde
la misma postura.
Es cierto que para conectar un horno se deben
seguir, de manera literal y obediente, unos pasos, pues lo
contrario puede ocasionar un cortocircuito. Sin embargo,
Literatura infantil e juvenil
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Y el que lee literatura recrea ese proceso de invención
para descifrar y descifrar-se en el lenguaje secreto de otro.
Es un proceso complejo que compromete, por decir lo
menos, a dos sujetos, con toda su experiencia, con toda su
historia, con sus lecturas previas, con su sensibilidad, con
su imaginación, con su poder de situarse más allá de sí
mismos. Se trata de una experiencia de lectura compleja y
difícil, pero se puede enseñar. Y sobre todo, yo creo que se
puede enseñar a amar la literatura: a vivir esa experiencia
de descifrar sentidos ocultos y secretos, de conmovernos y
aterrarnos y zarandearnos y nombrarnos y hacernos reír o
temblar, y dejarnos hablar de todo aquello que no se dice,
de labios para afuera, en las visitas.
Cabe, entonces y sé que muchos de ustedes lo creen
y lo hacen posible todos los días, promover una pedagogía
del amor a la literatura que dé cabida a la imaginación de
alumnos y maestros y al libre ejercicio de su sensibilidad,
para impulsarlos a ser re-creadores de los textos.
Lo que sí puede enseñar la literatura
Nuestros niños, niñas y jóvenes están inmersos en
una cultura de prisa y bullicio que los iguala a todos y que
les impide refugiarse, en algún momento del día o, incluso,
de su vida, en lo profundo de sí mismos. De ahí que la
experiencia del texto literario y el encuentro con esos libros
reveladores que no se leen sólo con los ojos o con la razón,
sino con el corazón y el deseo, sean hoy más necesarios que
nunca como alternativas para ir construyendo esas casas
interiores. En medio de la avalancha de estímulos externos,
la experiencia literaria brinda al lector unas coordenadas
para nombrarse y leerse en esos mundos simbólicos que
han construido otros seres humanos: los que están aquí y
ahora, pero también los que viven lejos y los que ya se han
Literatura infantil e juvenil
Los maestros
Quizás toda la vida seguimos leyendo para revivir
ese ritual, ese triángulo amoroso que cada noche unía tres
vértices: un niño, un libro y un adulto. En esa escena del
comienzo está la clave de los proyectos de lectura. De un
lado, están los libros. Del otro, los lectores. Y, en la mitad,
esas figuras que en el lenguaje técnico se denominan
47
que oficia esos encuentros.
Sin ese mediador que hace de puente entre el libro y
el niño, las páginas de un libro no son nada. Por eso, en la
primera infancia – y durante toda la niñez y aún después –,
la lectura es un trabajo de pareja y el adulto es el texto por
excelencia del niño, pues le presta voz, rostro y refugio para
que él pueda leer-se. Basta con mirar los movimientos de
los primeros lectores: sus ojos oscilan, continuamente, del
libro al rostro adulto: la voz, la cara y el cuerpo del adulto
son el escenario donde se proyecta, vive y se actualiza la
historia que ese niño escucha, mira y siente. Y mientras
fluyen las palabras, el niño siente fluir la vida en esas
páginas, en esa voz que cuenta. A eso me refiero al hablar
de pedagogía de la literatura: a esa experiencia de lectura
tan compleja que alguien nos transmite y nos enseña –
en ese sentido profundo de enseñar: cuerpo con cuerpo,
casi por ósmosis–, y que consiste en prestarnos otras vidas
para vivir en cuerpo ajeno; para experimentar, en el lugar
seguro del lenguaje, la gama de peripecias, aventuras y
emociones que nos hermanan como especie: esa emoción
de emocionarnos con la emoción de otros, que llamamos
empatía
Ustedes dirán, ¿eso se enseña?
Yo creo que sí: que así como se enseñan y se
aprenden números, vocales o competencias semánticas, es
posible enseñar la experiencia esencial de la literatura: es
decir, su poder para revelarnos sentidos ocultos y secretos;
su posibilidad para hacernos sentir, emocionarnos,
conmovernos, zarandearnos con las palabras de los otros.
Con las palabras que se vuelven de nosotros.
Un mediador o, mejor, un maestro de literatura es,
como aquella figura del comienzo, un cuerpo que canta,
una voz que cuenta, una mano que inventa palacios y
Literatura infantil e juvenil
49
“Palavras que
voam”: tendências
contemporâneas da
poesia portuguesa para
a infância
53
formas, designadamente, por exemplo, dos trava-línguas,
das adivinhas ou de pequenas canções, entre outras. É
o que se verifica, por exemplo, no poema de Figueiredo
(1999, p. 2) intitulado Na terra dos tigres e no qual são
notórias as similitudes com o trava-língua que lhe serve
de mote:
E leva-me a viajar
por cima do tempo.
leão e gato
homem, mulher,
fruto e sapato.
É uma jovem
Muito engraçada,
Não usa roupa
Não usa nada.
É uma jovem
Mas nada fraca,
Come ao almoço
Quase uma vaca.
É uma jovem
Com lindos dentes,
55
É uma jovem
Bem elegante.
Mas mete medo
Ao elefante.
– Não me apresentas
Essa pessoa?
Claro que sim:
É a leoa!
2
Sobre esse assunto, ver Silva (2014).
Vieira ou João Manuel Ribeiro, por exemplo. Trata-se de
um conjunto de obras valiosíssimas no nosso entender,
porque, além de tudo, reúne em si aquilo que poderá ser
entendido como uma espécie de memória poética portuguesa,
ou memória lusófona da poesia para os mais novos.
Talvez valha a pena, portanto, percorrer os seus paratextos
– notas introdutórias e posfácio, no caso daquele assinado
por Sophia –, e reter algumas das suas palavras, na medida
em que, em praticamente todos, observa-se uma reflexão
acerca daquilo que singulariza a poesia, daquilo que esta
encerra de potencialmente favorável à conformação de
uma especial sensibilidade estética. No primeira caso, em
concreto, em Brincar também é poesia (FERREIRA, 1983,
não paginado), Matilde Rosa Araújo escreve ao prefaciar
essa obra:
Literatura infantil e juvenil
57
primeiro álbum de poesia, afirma:
59
certeza, encetado esse percurso de descoberta, deparar-
nos-emos com nomes como Eugénio de Andrade (1923-
2005), Mário Castrim (1920-2002), Matilde Rosa Araújo
(1920-2010), Maria Alberta Menéres (1930-), Luísa Ducla
Soares (1939-), José Jorge Letria (1951-), Violeta Figueiredo
(1947-), Álvaro Magalhães (1951-), Manuel António Pina
(1943-2012), Jorge Sousa Braga (1957-), Vergílio Alberto
Vieira (1950-), João Pedro Mésseder (1957-), António Mota
(1957-), Teresa Guedes (1957-2007), João Manuel Ribeiro
(1968-) e Nuno Higino (1960-), apenas para citar alguns
dos poetas portugueses, com letra maiúscula, que, salvo
uma ou outra exceção, prosseguem em atividade regular
e têm respondido delicadamente aos gostos infantis,
porque aquilo que escrevem, com um estilo próprio e
obviamente assente em singularidades literárias, pauta-se
genericamente pelo humor, pelo ritmo, por esquemas de
reiteração lexical e fônica, por um evidente pendor lúdico,
pela brevidade, pela simplicidade e pela sensibilidade que,
com as suas palavras, anda sempre irremediavelmente
abraçada.
Procedamos, pois, a uma revisitação breve e de
teor genérico da poesia de cada um deles, começando
por Eugénio de Andrade, poeta incontornável que, em
1986, publicou Aquela nuvem e outras. Trata-se de uma
coletânea composta por 22 poemas dedicados ao seu
afilhado, Miguel, que se distinguem pela assiduidade
da temática naturalista e animal, pela recuperação de
formas poéticas da tradição, pelo tom dialógico e pela
sugestão simbólica de certos textos. O poema Verão
(ANDRADE, 1999, p. 10) testemunha, em certa medida,
o que mencionamos:
Literatura infantil e juvenil
Caracol, caracol,
Onde vais com tanto sol?
Vou à loja do senhor Adão
Comprar um girassol;
60
3
O primeiro volume da coleção, composta por nove obras, veio a lume em
2001, com a chancela da editora portuense, entretanto extinta, Campo das
Letras.
1993). Releia-se, por exemplo, o texto poético do autor
que já anteriormente deixamos transcrito neste estudo.
Nascida no mesmo ano de Mário Castrim, Matilde
Rosa Araújo teve um percurso literário ligeiramente
distinto, deixando alguns textos profundamente
simbólicos que têm a infância no seu centro. A sua poesia,
que pode ser lida em obras como O livro da tila (ARAÚJO,
1957) e Segredos e brinquedos (ARAÚJO, 1999), por exemplo,
caracteriza-se pela recriação da infância, pela presença
assídua da natureza, pela mensagem ética, bem como
pela simplicidade temática e pela original forma afetuosa
e atenta como ela poetiza o real. Aprecie-se, por exemplo,
o poema Amor (ARAÚJO, 2010, p. 8), contido na primeira
obra mencionada:
61
Canta o rouxinol…
A Rainha Santa
não tinha sanita.
Onde iria ela
se estava aflita?
O Vasco da Gama
fazia viagens
63
Luís de Camões,
repara, que horror,
não escreveu os livros
num computador.
O Marquês de Pombal,
com tanto salão,
não pôde comprar
uma televisão.
Aterrou um avestruz
no aeroporto de Ormuz
disfarçado de artista,
óculos escuros e capuz,
cantando um canto andaluz
que aprendeu em Queluz.
O misterioso avestruz
Literatura infantil e juvenil
tropeçou e catrapuz,
exclamando “ai Jesus!”,
fazendo o sinal da cruz,
64
Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.
65
A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papéis no ar
E é preciso fechá-la na arrecadação.
Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Literatura infantil e juvenil
A Ana quer
Nunca ter saído da barriga da mãe.
Cá fora está-se bem,
Mas na barriga também
Era divertido.
O coração ali à mão,
Os pulmões ali ao pé,
Ver como a mãe é
Do lado que não se vê.
67
por exemplo, no poema Buracos negros:
O maroto do João
Um, dois, três
Só quer ao Queima jogar.
Quatro, cinco, seis
Ai que grande reinação
Sete, oito, nove
Vai nas contas de somar!
Se a cabeça não pensar
E o João não acertar
Quem de cem tira noventa,
Pelo número que lhe resta
Vão as orelhas crescer:
Literatura infantil e juvenil
O pão
sei eu que é bom,
que vem da farinha
que vem do grão
que vem da espiga
que vem da terra
onde cai a semente
que a mão semeou.
O pão
sei eu que é bom
na mão da mãe
que mo preparou,
na minha mão
que nele pegou
e mais na boquinha
que o mastigou
e na barriguinha
p’ra onde desceu
porque este menino
já o comeu. (MÉSSEDER, 2016, p. 9).
69
nessas obras, verifica-se uma particular tendência para a
brevidade, a simplicidade lexical, o humor, o jogo e certo
pendor narrativo, na poetização de elementos da natureza.
O poema Formiga, presente no primeiro volume a que
aludimos, substantiva o que assinalamos:
Segue sempre
seu carreiro
e passa a vida a juntar.
Mas
para que nada seja perfeito
felizmente
não sabe cantar.
(MOTA, 1996, p. 12).
71
é inteira ou tem medida
se é oval ou circular
de que maneira a contém
o olhar quando a anuncia
é o mesmo que perguntar:
– Quantas margens tem o mar?
(HIGINO, 2008).
4
Ver Silva (2011).
(1888-1935) e alguns poemas pontuais, ou Eugénio de
Andrade (1923-2005) e Aquela nuvem e outras (1986).
Esse modo/gênero literário, potencialmente
vocacionado, em concreto, para crianças e jovens, sendo
fortemente valorizado em contextos formais e não formais
de contato com a leitura literária, quer a partir da oralidade,
quer tendo por suporte o livro, tem merecido a atenção
de estudiosos e investigadores, como provam, além de
um conjunto assinalável de artigos dispersos por revistas,
volumes de atas ou de compilações de estudos, blogues,
entre outros, obras resultantes de investigações levadas a
cabo em contexto acadêmico. Nesse domínio, salientamos,
por exemplo, o estudo A poesia na literatura portuguesa para
a infância (GOMES, 1993), e A poesia infantil no século XXI
(2000-2008) (RECHOU; LÓPEZ; RODRÍGUEZ, 2009).
Presentemente, a edição portuguesa de poesia para
73
estipular uma categorização definidora/diferenciadora de
alguns objetos, atendendo, por exemplo, a critérios, como
a autoria (individual, dupla ou coletiva, por exemplo), a
arquitectura verbal e pictórica, as temáticas, entre outros.
Consideramos, assim, por exemplo, em primeiro lugar,
títulos individuais – ou seja, obras de autoria nominal nas
quais se encontram reunidos textos poéticos escritos
por um autor, um conjunto que pode ou não possuir
uma linha isotópica congregadora, como sucede com
os a que aludimos de Eugénio de Andrade ou Mário
Castrim, apenas para citar dois exemplos; em segundo
lugar, volumes compostos a duas mãos ou em co-autoria – e,
nesse caso, lembramos apenas os exemplos de Breviário
do Sol (MÉSSEDER; MANGAS, 2002) e Breviário da
Água (MÉSSEDER; MANGAS 2004); em terceiro lugar,
obras que integram a categoria genológica/editorial já
denominada álbum poético, visto que, como explicitamos,
ostentam uma configuração especial, estruturada a partir
da interdependência das componentes verbal e visual
(numa linha análoga à do álbum narrativo ou picturebook);
finalmente, em quarto lugar, as antologias ou compilações,
quer de formas poético-líricas do patrimônio tradicional
oral, quer de textos poéticos de autoria plural e escritos
em diferentes épocas, por exemplo. Nesta última categoria,
importa ainda assinalar, como aliás, já mencionamos, a
edição – relativamente frequente nos últimos anos – de
um tipo de antologias editadas com um suporte audio/musical.
Acrescente-se, igualmente, em termos sintéticos e
recorrendo à reflexão sistemática, rigorosa, aprofundada
e imprescindível para o estudo da poesia para a infância,
a obra intitulada A poesia na literatura para crianças e jovens
(GOMES, 1993), já por nós referida, em que, na escrita
Literatura infantil e juvenil
75
da criança pequena, nem as lengalengas ou outras
rimas infantis que acompanham as primeiras
brincadeiras e descobertas.
6
Jean (1989, p. 114) considera que esses jogos tratam-se de substituições de
fonemas e de homofonias.
por outras palavras, tornando possível fazer os pequenos
saborearem os sons da língua.
De fato, na poesia, deparamo-nos facilmente com
77
porque “[...] a inteligência emocional também se constrói
desde muito cedo” (VELOSO, 2001, p. 23) – favorece a
aquisição e o alargamento linguísticos, na medida em que,
e recorrendo novamente ao ponto de vista de Jean (1989,
p. 98), “A poesia é uma escola, uma escola da linguagem”,
constituindo um completo “[...] ‘laboratório linguístico’,
pois permite à criança toda uma série de experimentações
divertidas.” (VELOSO; RISCADO, 2002, p. 28).
Com efeito, o texto poético poderá ser aproximado
com facilidade da criança se houver a oportunidade de
relacioná-lo com uma música adequada, se se promover
uma exploração criativa das ilustrações que eventualmente
o acompanhem, ou, até mesmo, da gravação do poema na
voz do seu autor. Com Cunha (1985, p. 96), defendemos
também que uma leitura apropriada, expressiva, sentida
e alicerçada, por exemplo, na gestualidade ou no
movimento corporal, quando tal for possível, pode, só
por si, ser suficiente para fazer nascer o gosto por um
determinado poema.
Consideramos, ainda, que, se se partir de um poema
ou das sugestões que dele emanam para outros textos (por
exemplo, com a mesma temática ou o mesmo gênero de
figuras), construindo um percurso de leitura baseado no
pressuposto da dimensão virtualmente intertextual do
texto literário, ou para novas formas de expressão, como
pequenas dramatizações, os desenhos/as ilustrações, a
música ou até a criação individual/colectiva de novos textos
orais/escritos, como, aliás, já mencionamos, o contato com
a poesia será aprazível e profícuo, sob o ponto de vista
formativo.
Em todo e qualquer caso, interessa, sobretudo,
valorizar convicta e afetivamente o texto poético, porque
VER CLARO7
7
“Ver Claro”, belo poema com que Eugénio de Andrade (1923-2005) abre a
coletânea Os Sulcos da Sede (2001).
O leitor é que tem às vezes,
Em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
Outra vez e outra vez
E outra vez
A essas sílabas acesas
Ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
(ANDRADE, 2007, p. 15).
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Literatura infantil e juvenil
84
O público jovem
e seus gêneros –
literários – prediletos
Regina Zilberman
O leitor jovem
Dados relativos ao público que compareceu à
Bienal do Livro do Rio de Janeiro, realizada entre 3 e 13
de setembro de 2015, indicam a maciça presença, naquele
evento, de jovens entre 14 e 24 anos. Essa informação
não surpreende, pois, em setembro de 2013, quando
se encerrou a Bienal daquele ano, a Folha de São Paulo
noticiou o êxito de vendas representado pelos livros
destinados ao público jovem:
87
parte do mundo dos jovens, o que cada vez mais
estão exigentes em relação aos conteúdos. Com essa
aproximação dos leitores e análise, muitas editoras
saem em vantagem, de acordo com essas pesquisas,
sabem o que realmente será sucesso entre os jovens
leitores. (MEU GURU, 2015).
8
Disponível em: <http://www.bienaldolivro.com.br/noticias/197>.
0,6 ponto percentual, chegando a 98,2%” (CANÇÃO
NOVA, 2012) entre as crianças de 6 e 14 anos de idade.
Em termos gerais, tudo isso significa que o país dispõe
de um considerável número de indivíduos alfabetizados,
possíveis leitores, logo, de potenciais consumidores de
obras literárias.
Não é estranho, pois, que nas primeiras décadas do
novo milênio, tenha crescido e diversificado-se a produção
cultural para esse público, fortalecendo uma literatura
juvenil com identidade própria, resultante de seus sinais
particulares, ainda que não exclusivos dela. Caracteriza-a
também um elenco de autores, estrangeiros e nacionais,
que atraem o interesse da audiência jovem, o que confere
a eles, segundo a notícia da Folha de São Paulo, o status de
ídolos pop.
Literatura infantil e juvenil
89
contam com grande número de cultores, já que vêm
interessando crianças e jovens desde os anos 1990,
quando Phillip Pullman, autor dos três volumes
de Fronteiras do universo (His dark materials, no
original), e J. K. Rowlings, criadora de Harry Potter,
protagonista de sete longas novelas, apareceram
no panorama editorial inglês e europeu. Hoje, seu
cultor mais popular é provavelmente Rick Riordan,
responsável pela série consagrada a Percy Jackson e
os olimpianos; mas cabe lembrar que a nova criação
de J. K. Rowlings, Harry Potter e a criança amaldiçoada,
primeiramente uma peça de teatro e, agora, um livro,
mostra que o garoto inglês permanece interessando
antigos e novos admiradores. A seu lado, podem ser
posicionados Suzanne Collins, de Jogos Vorazes, em
três volumes, Veronica Roth, de Divergente, também
em três volumes, James Dashner, de Maze Runner
(Correr ou morrer), que conta, atualmente, cinco
volumes, ou, ainda, Kiera Kass, de A Seleção, também
em série.
A reprodução dos autores e de seus títulos sugere
algumas características desse segmento do mercado
editorial:
a) a mais evidente diz respeito à produção em série:
não apenas os autores trabalham intensamente,
publicando quase a cada ano um livro novo, como
repetem as personagens das narrativas, que retornam
de uma obra a outra.
A estratégia mais frequente é a apresentação de
uma história que se conclui parcialmente. Assim, um ou
mais conflitos são resolvidos, mas não todos, protelando
o encerramento da trama. Poucos escritores evitam essa
Literatura infantil e juvenil
esgotamento.
A produção em série tem, aqui, pois, duplo sentido:
• equivale, primeiramente, à própria natureza de um
livro impresso, que é editado em grande quantidade,
na condição de uma mercadoria que responde às
necessidades da demanda que ela mesmo fabrica;
• e, além disso, o autor explora o interesse de seus
leitores, oferecendo-lhes sucessivamente mais
material; mas, ciente de que o interesse pode
arrefecer, alimenta-os por meio das brechas não
inteiramente resolvidas do enredo ou da trajetória
da personagem. Esse procedimento – a serialização,
a oferta fatiada de um dado produto e o apelo ao
consumo continuado – é próprio à cultura de massa
e, em particular, do folhetim.
b) os autores podem ser bem-sucedidos e obter grande
efeito entre o público, mas estão permanentemente
sob a ameaça de serem esquecidos ou rejeitados, após
um curto ou largo período de êxito. A volatilidade do
mercado, que se nutre seguidamente de sucessos de
temporada, alcança igualmente a indústria editorial,
fazendo com que muitos nomes “estourem” em uma
estação ou pelo tempo de duração de uma trilogia
(talvez seja o caso de Stephanie Meyer, autora da
celebrada série Crepúsculo, de grande repercussão
entre 2005 e 2008) e, depois, desapareçam.
As causas desse processo são várias, mas uma delas
deve-se certamente às características do público ao qual
se dirigem as obras até aqui mencionadas: ele também
91
de gênero: há, entre eles, escritores e escritoras, que
criam personagens pertencentes ao sexo masculino
e feminino.
A ascensão de personagens mulheres na condição
de protagonistas e heroínas, como em Jogos Vorazes ou
Divergente, mas que já se mostra em Fronteiras do universo,
de Philipp Pullman, é talvez o aspecto mais inovador
desse grupo de obras. Histórias fantásticas, que lidam
com universos paralelos, idas e vindas no tempo, magia,
trânsito entre a vida e a morte, contam com longa tradição.
Mesmo narrativas de vampiros, zumbis e mortos-vivos,
como as que popularizaram, há alguns anos, Stephanie
Meyer, remontam há, pelo menos, mais de duzentos anos.
Contudo, posicionar garotas no centro dos acontecimentos
ficcionais e torná-las a condição de sucesso no tratamento
do enredo e na recepção do público – eis um dado
relativamente inédito, que se relaciona, provavelmente, ao
lugar que, de uma parte, a mulher ocupa na sociedade, de
outro, à valorização do/da jovem na cultura contemporânea
ocidental.
Nos chamados romances adolescentes e sobretudo
na pejorativamente qualificada chicklit, a presença
de personagens femininas é ainda mais ostensiva.
Preponderam os dramas amorosos, as indecisões
existenciais, as alternativas profissionais, problemas
vividos especialmente por mocinhas pertencentes às
classes médias urbanas, a suscitar a identificação por parte
das leitoras jovens, elas mesmas experimentando situações
equivalentes. Em plano internacional, John Green parece
ser a grande exceção ao grupo, conforme um curioso
processo de recuperação de espaço – que originalmente
constituía território de autores homens, como o famoso M.
Literatura infantil e juvenil
93
dando conta de problemas de relacionamento, casos
divertidos, comentários da autora sobre si mesma. Tal
como a obra de Rezendeevil, tem uma peculiaridade: Kéfera
Buchmann tornou-se primeiramente conhecida por meio
das redes sociais, dispõe de um canal no YouTube com
mais de dez milhões de assinantes, além de uma página no
Facebook e seguidores no Instagram.
Os casos citados, de Rezendeevil, Marco Túlio e
Kéfera Buchmann, tratam-se da literatura dos youtubers,
como os designa Meireles (2016), em matéria publicada na
Folha de São Paulo. Condição semelhante é compartilhada
por outro sucesso recente, O diário de Larissa Manoela,
conforme apontam os dados de Publish News (2016),
relativos à semana entre 16 e 23 de setembro de 2016.
Esses livros parecem não representar um novo
segmento temático ou de gênero, pois não contradizem o
9
Disponível em: <http://www.publishnews.com.br/ranking>.
que se têm produzido há alguns anos. Mas eles apropriam-
se, com bastante familiaridade, de mecanismos que
também pertencem ao mundo da linguagem e da escrita,
não, porém, do impresso, vinculados à internet, como
Kéfera Buchmann, ou aos multimídias, como os games.
Kéfera Buchmann não inaugura o processo, pois,
antes dela, Paula Pimenta e Bruna Vieira disseminaram
seus respectivos nomes e produtos literários – crônicas,
também – por meio de blogues, acessados por inúmeros
interlocutores. As redes sociais – Facebook, Twitter,
Instagram, Tumblr – representam um passo adiante
desse percurso, já que supõem um compartilhamento
coletivo que multiplica seus usuários. Para os escritores
que iniciam suas carreiras literárias por intermédio dessas
mídias, as redes convertem-se em uma primeira etapa de
Literatura infantil e juvenil
E o professor?
Os jovens consumidores das obras e autores aqui
relacionados – autores e obras que movimentam o
mercado editorial brasileiro e que garantem o público das
maiores bienais realizadas no país – ocupam a faixa etária
95
A literatura que comparece no ensino básico,
especialmente no nível médio, é, via de regra, representada
por obras pertencentes ao cânone brasileiro. O ensino
fundamental aceita, desde alguns anos, a presença de
expressões literárias vinculadas à oralidade ou à literatura
infantil, por exemplo, expressões que, a acompanharem-
se as sugestões contidas na documentação brasileira
emanada do Ministério da Educação, como os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) ou a em processo de
implantação – Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
–, estão sendo paulatinamente excluídas do ensino médio.
É no ensino médio que os estudantes preparam-se
para dois exames de final de curso, um deles obrigatório,
de cujo sucesso dependerá provavelmente seu futuro
profissional: o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o
vestibular, sendo que o primeiro pode substituir o segundo.
O Enem é pautado pelos PCNs, que se caracterizam por
privilegiar distintas modalidades de expressão verbal e
imagética, como, por exemplo, obras literárias, novelas
gráficas, tiras e cartuns. Para os PCNs, a literatura constitui
tão somente uma dentre as possibilidades de texto verbal,
mas, quando essa possibilidade traduz-se em questões das
provas do Enem, o que predomina são perguntas sobre
os escritores considerados mais relevantes da tradição
nacional. Mesmo quando os enunciados das questões
dizem respeito a gêneros não literários, os exemplos mais
proeminentes provêm dos vultos e textos já consagrados.
Compete ao professor, pois, transmitir a tradição
literária nacional, mesmo porque as universidades que
utilizam os vestibulares como prova de ingresso valorizam
a história da literatura brasileira. Cabe também ao
professor propor alternativas de interpretação de texto a
Literatura infantil e juvenil
97
da formação escolar, quando se trata de propor ao jovem
algo que lhe diga respeito e com o qual possa dialogar.
Diante desses conflitos, cada professor pode
posicionar-se e tomar uma decisão, afetando suas relações
com os paradigmas didáticos previstos ou com pessoas
que constituem sua classe de aula. Mas essa opção, tal
como se mostra contemporaneamente, apresenta-se aos
indivíduos, no máximo, aos grupos, não às instituições ou
aos programas que determinam conteúdos e as práticas
pedagógicas.
A um projeto de ensino da literatura, que valorize
o gosto já constituído dos jovens, não cabe ignorar as
preferências dos alunos. Mas aos professores não se
oferece a alternativa de contar com esse gosto e, a partir
desse ponto, propor um patamar de saber a ser alcançado.
Resta um espaço vazio entre esses dois lugares, que a
indústria cultural e a sociedade de consumo preenchem
com muita competência. Para o bem e para o mal, muitas
vezes para o bem da literatura e para o mal da educação.
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99
Literatura infantil e
pedagogia: tendências
e enfoques na
produção acadêmica
contemporânea10
Introdução
O presente artigo tem como objetivo realizar uma
breve revisão sobre o campo de estudos que articula
a literatura infantil e a pedagogia no meio acadêmico
brasileiro, com base na análise de artigos publicados em
três revistas brasileiras que focalizam a literatura infantil,
as quais possuem perfis e objetivos diferentes: a revista
Leitura: Teoria & Prática tem um perfil acadêmico, dedica-se
10
Este artigo foi publicado originalmente no vol. 27, n. 2, da Revista Pro-
Posições, em 2016.
a questões de leitura em sentido amplo e continua ativa;
a revista Tigre Albino é dedicada especificamente à poesia
infantil e esteve ativa entre 2007 e 2010; por fim, a Revista
Emília dedica-se à literatura infanto-juvenil, de forma
geral, e não se caracteriza como um periódico acadêmico
em sentido restrito, mas como uma revista digital
independente cuja intenção é contribuir com profissionais
que trabalham com leitura e livros para crianças e jovens,
segundo descrição no próprio site.
Ao todo, apresentamos, neste ensaio, o resultado da
análise de 69 artigos: 9 da revista Leitura: Teoria & Prática; 14
da Tigre Albino; 25 da Revista Emília, os quais foram escritos
por 51 autores, pois há mais de um texto escrito pelo mesmo
autor e outros com dupla ou tripla autoria. No conjunto
dos autores, 18 são pesquisadores vinculados a programas
Literatura infantil e juvenil
103
importantes direções no que tange os estudos sobre as
dimensões pedagógicas da literatura infantil e infanto-
juvenil na atualidade.
105
imitados e o moralismo religioso, com as
exigências de retidão de caráter, de honestidade,
de solidariedade e de pureza de corpo de alma em
conformidade com os preceitos cristãos.
107
instituído em 1997 e executado pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento e Educação (FNDE), em parceria com a
Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação
(SEB/MEC). O principal leitor da literatura infantil
contemporânea, portanto, não é apenas a criança, mas a
criança escolarizada.
Se a escolarização da literatura infanto-juvenil,
de um lado, tem sido a responsável por sua vitalidade
no Brasil, na medida em que garante grandes públicos
consumidores, de outro lado, também tem gerado práticas
que obliteram sua dimensão artística e literária. Para Graça
Paulino (2010, p. 159),
109
Um número significativo de artigos examinados
pelas autoras caracterizou-se como relatos analíticos
de pesquisas empíricas (desenvolvidas com alunos de
educação infantil e ensino fundamental) sobre preferências
de leitura, escolhas concretas observadas, práticas
cotidianas de leitura (dentro e fora da sala de aula). No que
tange aos caminhos metodológicos, as autoras perceberam
o predomínio de procedimentos etnográficos e de imersão
em sala de aula, mas também o uso de questionários e
entrevistas. Em termos conceituais, nesse conjunto de
artigos, chamou atenção a importância conferida ao
conceito de mediação na leitura literária proposta no
espaço escolar.
Em um segundo eixo, foram agrupados seis ensaios,
caracterizados como textos que “[...] não repousam sobre
dados empíricos, mas pretendem discutir temáticas caras à
leitura de literatura no plano pedagógico ou presentificar,
através de bibliografia especializada e atual, temáticas
emergentes pouco abordadas no campo pedagógico.”
(SILVEIRA; BONIN, 2013, p. 7). Tais ensaios abordam,
por exemplo, a entrada da literatura na escola, as
especificidades da leitura literária, o lugar do cânone no
letramento literário, o livro de imagens, as identidades de
leitor na era digital, entre outros.
Em um terceiro eixo, foram reunidos quatro
trabalhos dedicados à discussão das formas como se
constituem os acervos literários que chegam às escolas.
Entre os temas abordados nesses artigos, destacam-se,
por exemplo, os acervos do Programa Nacional Biblioteca
da Escola, destinados ao público infantil, e os critérios de
especialistas para a avaliação de obras literárias a serem
lidas na escola. Por fim, as autoras elencaram algumas
temáticas específicas e de relevância no campo educacional
Literatura infantil e juvenil
111
uma experiência desenvolvida com crianças de cinco e seis
anos e cujo objetivo era promover o reconhecimento de
gêneros discursivos que circulam na escola e em ambientes
familiares às crianças. A autora fundamenta-se em escritos
de Bakhtin e Marcuschi para definir gêneros discursivos
e conclui que as crianças são capazes de reconhecer
vários gêneros a partir de suas próprias experiências
cotidianas. O segundo artigo (texto 7) também focaliza
uma experiência de leitura, interpretação e discussão de
narrativas literárias, realizada com crianças de cinco anos,
ainda não alfabetizadas.
Práticas de leitura no ensino fundamental e o
letramento literário são o foco de discussão em um dos
artigos (texto 2). Após defenderem a posição de que é
possível despertar, nas crianças, a necessidade de ler e o
gosto pela literatura infantil, as autoras discorrem sobre
11
A lista dos artigos citados com a sua respectiva numeração encontra-se na
sequência da seção Referências deste artigo.
algumas estratégias de leitura e sobre situações propícias
para o desenvolvimento e a formação da competência
leitora. Uma pesquisa etnográfica desenvolvida no Brasil
e em Portugal constitui a base epistemológica da pesquisa,
mas, no artigo em pauta, as autoras restringiram suas
análises aos dados obtidos junto a professores da rede
pública de um estado brasileiro. Entre as conclusões do
estudo, destacam a necessidade de implementação de uma
leitura contextualizada na realidade dos alunos.
Com foco nas escolhas realizadas por professores
para a leitura de obras literárias por crianças, o texto
8 discute instâncias de mediação e questões como a
autoridade para definir o que deve chegar aos pequenos
leitores. A autora problematiza a tendência predominante,
entre críticos literários e escritores, de considerar os
Literatura infantil e juvenil
Tigre Albino
A revista Tigre Albino é voltada especificamente para a
poesia infantil, tendo como editores o escritor de literatura
infanto-junvenil Sergio Capparelli e as pesquisadoras
Maria da Glória Bordini e Regina Zilberman. Conta com
dez volumes, os quais foram publicados entre os anos
2007 e 2010. Segundo informações no link Quem somos
113
infantil apenas versos que os adultos escrevem
em rimas para um público infantil ou juvenil, de
diferentes faixas etárias. Dando pouca importância
a essas classificações, Tigre Albino considera, por
exemplo, que alguns textos de Clarice Lispector,
Colette ou Guimarães Rosa podem também ser
considerados poéticos, integrando o leque de suas
reflexões, bem como poesia editada originalmente
em livros para adultos. (TIGRE ALBINO, 2010).
115
podem ser de ordem cognitiva, estimulando a capacidade
interpretativa e de escrita: “[...] é preciso estimular e aceitar
interpretações autônomas, desde que evidenciadas no texto”
(texto 54); “[...] se a escola se vale do conhecimento prévio
dos alunos, envolve a comunidade e valoriza sua identidade
sociocultural, é possível instituir ações inovadoras para a
motivação da leitura e da escrita” (texto 56).
No que diz respeito aos ensaios, praticamente
todos compartilham, de forma expressa ou implícita, do
pressuposto segundo o qual o trabalho pedagógico com
poesia infantil precisa levar em conta a especificidade da
linguagem poética, o que, por sua vez, requer estratégias
de análise e de mediação. Um dos artigos chega a discutir
sobre a mediação que considere a especificidade da matéria
poética (texto 53). Além disso, assim como no caso dos
relatos de experiência, também os ensaios que propõem
estratégias e sugestões de trabalho destacam o prazer
literário como o verdadeiro fim visado através da mediação,
jamais devendo ser visto como um meio para atingir outros
resultados. Quanto aos temas específicos, um dos artigos
(texto 55) diagnostica a carência de trabalhos em nível
de pós-graduação e de disciplinas de graduação que se
dediquem a instrumentalizar os professores a valorizarem
a poesia para crianças. Outros, por sua vez, dedicam-
se a analisar poemas infantis com ênfase em aspectos
específicos da linguagem poética, como a oralidade (texto
68) ou a temática infantil (texto 50), sendo que um dos
artigos analisa a linguagem em HQ (texto 69), e outro
discute poesia e letramento digital (texto 52).
Revista Emília
A Revista Emília não se caracteriza como um periódico
Literatura infantil e juvenil
117
promoção da leitura.
Dentre os 16 ensaios, 7 dedicam-se a questões
relacionadas especificamente com a leitura, a educação
e a escola e, por essa razão, serão abordados de forma
mais detalhada aqui. Em A educação das crianças (texto
15), por exemplo, o escritor Martín Garzo discorre sobre
a importância de “[...] se colocar no lugar da criança”
quando se pensa em educá-la ou lhe contar histórias.
E esse lugar, segundo Garzo, é necessariamente marcado
pelo jogo, pela brincadeira e pela felicidade. Ele diz que
“Uma criança feliz não somente é mais alegre e tranquila,
mas é mais suscetível de ser educada, porque a felicidade
lhe faz crer que o mundo não é um lugar sombrio, feito
somente para seu mal, e sim um lugar em que vale a pena
estar, por estranho que possa parecer muitas vezes.”
Com uma argumentação semelhante à de Garzo
(texto 15), a educadora venezuelana Yolanda Reyes (texto
16) defende o ensino da literatura infantil com base na
importância que a fantasia e a imaginação adquirem para a
boa formação do ser humano:
119
boa literatura para crianças? (texto 40), Yolanda Reyes,
afirma que
121
Monica Monachesi relata sobre uma oficina com o livro
História de uma árvore, de Émile Vast, a qual foi inspirada
em uma atividade que havia realizado inicialmente com
seus próprios filhos.
Chama atenção o fato de que seis relatos (quase a
metade) abordam projetos realizados com sujeitos em
contextos sociais desfavorecidos. O projeto Ler é 10, Leia
Favela, apresentado no texto 34, por exemplo, consiste
em uma biblioteca itinerante que percorre as mais de 14
comunidades constituintes dos complexos da Penha e do
Alemão, no Rio de Janeiro. O Instituto Acaia cujas atividades
são narradas no texto 20 atende crianças e adolescentes
de 6 a 18 anos, muitos deles moradores das favelas da
Linha (ou Votoran) e do Nove (ou Japiaçu), em São Paulo.
Outro projeto que envolve a favela é narrado no texto 43
e diz respeito ao trabalho do Grupo Fiandeiras, composto
por sete moradores da comunidade do Real Parque que
“[...] percorrem becos e vielas das comunidades do Real
Parque e Jardim Panorama, na zona sudoeste da cidade
de São Paulo.” (texto 43). No texto 33, Gabriela Romeu
relata sobre o projeto Literatura na Cesta Básica, criado
pela companhia circense Circo de Trapo, realizado na feira
do Jardim Santa Maria, região de Itaquera, na zona leste de
São Paulo.
O texto 35 relata as atividades de A Cor da Letra –
Centro de Estudos e Pesquisa em Leitura e Literatura, que
desenvolve projetos de
123
as práticas domésticas de leitura com crianças e enfatiza
a importância de ouvi-las, valorizando desde canções de
ninar até a contação de histórias:
À guisa de conclusão
A fim de compreender algumas das principais
tendências e enfoques recentes quanto às relações
estabelecidas entre a literatura infantil e a pedagogia no
Literatura infantil e juvenil
125
De certa forma, essa é a questão fundamental que
pauta a maior parte dos artigos acadêmicos que serviram
como material empírico da análise aqui empreendida. Nas
três revistas, há um número muito expressivo de relatos de
experiência de educadores, sendo que a maior parte deles
expõe práticas de leitura efetivamente realizadas com os
alunos, nas quais o prazer literário e o caráter lúdico da
experiência de leitura foram preservados e estimulados. Em
muitos casos, são também narradas as reações positivas
e entusiasmadas dos alunos/leitores. Em outros, são
relatadas, inclusive, atividades literárias realizadas pelos
próprios alunos a posteriori, motivados pela leitura. Tais
relatos fornecem um testemunho vivo de que é possível,
sim, fazer da leitura literária uma experiência de fruição
artística dentro do espaço escolar. E, para além do mero
testemunho, os relatos também assumem uma dimensão
pedagógica através da exemplaridade, pois muitos deles
podem ser replicados.
Outro tema recorrente nos artigos diz respeito à
necessidade de mediação para a realização de atividades
de leitura literária. De um lado, enfatiza-se que o próprio
professor precisa ser um leitor competente e entusiasmado
de literatura, capaz de reconhecer os meandros da
linguagem literária, sabendo preservar o caráter lúdico no
ato de ler. De outro lado, também se ressalta a necessidade
de que o mediador tenha um bom repertório para
realizar a seleção de obras adequadas para as crianças.
Ao enfatizarem o valor da mediação e do conhecimento
da linguagem literária, tais artigos reafirmam, portanto,
a necessidade de preservar e valorizar o caráter estético-
literário das obras na escola e em qualquer espaço de
formação, evitando o risco de que elementos não literários
sejam mais valorizados do que o aspecto propriamente
Literatura infantil e juvenil
127
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Tigre Albino, v. 1, n. 2, 2008.
136
Texto 56:
SARAIVA, J. A. A cultura oral como fator de promoção da
leitura. Tigre Albino, v. 3, n. 3, 2010.
Texto 57:
SERRA, E. D. Semeando poesia: vivências de uma 4ª série.
Tigre Albino, v. 1, n. 1, 2007.
Texto 58:
SERRA, E. D. A poesia da memória em Adélia Prado:
leituras com crianças e adolescentes. Tigre Albino, v. 1,
n. 3, 2008.
Texto 59:
SERRA, E. D. Poetas da Rede Municipal de Niterói
concurso de incentivo à leitura: poesia. Tigre Albino,
v. 2, n. 1, 2008.
Texto 60:
SERRA, E. D. Poesia na escola: brincando e aprendendo.
Tigre Albino, v. 2, n. 3, 2009.
Texto 61:
SERRA, E. D. Poesias que encantam e ensinam. Tigre
Albino, v. 2, n. 2, 2009.
Texto 62:
SERRA, E. D. Literatura Itinerante. Tigre Albino, v. 1,
n. 2, 2008.
Texto 63:
SERRA, E. D. Uma sala de aula nas asas da borboleta.
Tigre Albino, v. 3, n. 1, 2009.
137
Texto 65:
SERRA, E. D. Poesia é bom mesmo... fora da estante. Tigre
Albino, v. 3, n. 2, 2010.
Texto 66:
SERRA, E. D. Poesia em cena. Tigre Albino, v. 4, n. 1,
2010.
Texto 67:
SOUZA, C. Poesia e escola: caminhos entre o didático e o
literário. Tigre Albino, v. 2, n. 3, 2009.
Texto 68:
SOUZA, G. Alguns meninos e suas leituras: o poema para
a infância entre a escola e a rua. Tigre Albino, v. 1, n. 1,
2007.
Texto 69:
TRESCASTRO, E. G. Quadrinhos: a trajetória de um
suporte formador de leitores. Tigre Albino, v. 2, n. 1, 2008.
El niño de la cordillera:
la narrativa infantil de
Óscar Colchado Lucio
Rosane Cardoso
12
El premiado cuento Cordillera negra es de 1983. En 1985, la narrativa
pasa a formar parte de un conjunto de cuentos reunidos en libro de título
homónimo.
[…] expresar una identidad colectiva cuya base se
halla en un sistema de creencias míticas puesto
en evidencia de manera óptima en los relatos
orales. Este hecho supone un mecanismo de
apropiación que no se limita a lo temático ya que
sus efectos inciden en otras instancias textuales.
La incorporación plena de expresiones del habla
popular andina es un índice claro de ello. A veces
el modelo se hace explícito a nivel estructural con
la incorporación de testimonios insertados en
la narración principal, o con relatos que por su
tema - historias de aparecidos, condenados, etc.,
reproducen aquellos que sirven de eje narrativo en
los relatos orales. (CAYO ORÉ, 2006, p. 18).
El niño de la cordillera
además de permitir, en profundidad, el acceso a mundos
que no son generalmente presentados al público lector.
En las otras obras del autor, el español quechuizado, en
141
nivel semántico y en la sintaxis, atraviesa toda la narrativa.
Señalase que, en las últimas ediciones de las obras, hubo la
necesidad de un glosario al final de los libros. A pesar del
quechua ser uno de los idiomas oficiales del Perú, el idioma
no es de dominio general. Con eso, el español mantiene el
prestigio mientras la lengua autóctona sigue a la margen,
utilizada principalmente por las clases subalternas del país
(MONTE ALTO; SANTOS, 2012).
Eso nos lleva a considerar el rol de la obra colchadeana
que reafirma también el valor de la oralidad. La cultura oral,
considerada inferior por los discursos hegemónicos, está
profundamente relacionada como ajena a la producción
estética ya que corresponde a un segmento social
identificado como el de los indios, y ha sufrido constante
degradación, como pondera Cornejo Polar:
El niño de la cordillera
respecto a intereses de investigación sobre la narrativa
peruana contemporánea, sobre todo la que no forma parte
143
del canon. Aunque Colchado viene recibiendo una buena
recepción de la crítica especializada y de lectores, además de
tener una ya larga trayectoria literaria, aún hay mucho que
discutirse sobre su poética. La segunda justificación para
este estudio está ancorada en la necesidad de profundizar a
la vez que comprender mejor el sistema estético que mueve
ese escritor. Es decir, su insistencia en dar a conocer la
mentalidad mítica de la cultura ancestral andina peruana
a través del manejo de símbolos que abarcan sesgos tanto
culturales cuanto políticos.
En tercer lugar, personalmente percibo la
importancia de estudiarse cada vez más la cultura
hispanoamericana para allá de los estereotipos que
invariablemente involucran los países de Sudamérica bajo
el mismo cliché de exotismos, comidas y fiestas. Con ello,
poco se sabe sobre los conflictos y la historia política de
los países. Como profesora de literatura hispánica en curso
de licenciatura en Letras, cada vez más busco llevar a los
futuros licenciados cuentos y novelas cortas que puedan
ser debatidos en clases de la Enseñanza Básica, para que
la literatura esté presente en todos los espacios, incluso en
los de enseñanza de lengua adicional.
Existe a la mano un sinnúmero de obras que ayudan
el lector extranjero a entender el contexto mítico andino
peruano, tanto de cuño literario cuanto investigativo. En
lo que atañe a lo literario, las compilaciones de leyendas
andinas de María Rostworowski son esenciales. Preocupada
en llevar las leyendas del país a los niños, la historiadora
recompila narrativas da tradición oral en libros como
Cuentos de los Andes, El misterio de las islas de Pachacamac y
El origen de los hombres y otros cuentos del antiguo Perú, entre
varios otros. Rostworowski estudió por más de 50 años la
sociedad, la cultura y el espacio andino de antes y después
Literatura infantil e juvenil
El niño de la cordillera
en busca del carbunclo (2008), Cholito, noches andinas (2010),
entre otros. Más recientemente, el niño busca aventuras
145
incluso en las afueras de su país: en 2015, OCL publica
Cholito y el anillo del Nibelungo – aventura en los Alpes. Los
periplos del héroe también pueden ser acompañados en
video, tanto en formato de dibujos animados cuanto de
cortometrajes. Se destacan entres estos, Cholito y el niño
Manuelito y Cholito y la Achiké. Ambas películas se hallan en
You Tube y en la página de internet del autor.
Atentándose para el nombre de este personaje
infantil, se le nota otro síntoma de la preocupación
colchadeana con su cultura: Cholito es una clara referencia
al término “cholo”, modo como se suele denominar
a los descendentes de indígenas, frecuentemente con
connotación peyorativa. Ser cholo establece un espacio
regional, social y económico, como demuestra bien la
deposición de Marco Avilés, periodista peruano radicado
en Estados Unidos:
Soy cholo. Con cierta luz, tiro para blanco, pero soy
cholo al fin y al cabo. Nací en los Andes y viví ahí
hasta los dos años. Mis abuelos, mis padres y mis
hermanas mayores hablaban quechua. Jamás conté
eso en mi escuela. Pues cualquiera que viniera de
los Andes se convertía en una víctima potencial.
Los cholos blanquiñosos nos camuflábamos. Los
cholos oscuros sufrían. Serrano de mierda – les
decían –. Alpaca conchetumadre. Báñate, indio
apestoso. Hueles a queso. Comequeso. Vicuña.
Vicuñita. Me da pena de tu vida, serrano. Eso
no se quita con nada. Yo tengo malas notas pero
puedo estudiar. Tú eres serrano. Se-rra-no. ¿Me
entiendes? Cómo vas a cambiar eso, ah, huevón
(AVILÉS, 2016, p. 18).
El niño de la cordillera
también por romper con la usual linealidad de los cuentos
para niños. Mientras el lector mantiene los ojos en el
núcleo que es el drama de Cholito, hay otras narrativas
147
menores en encaje con la principal. Además, se cambian
las voces narrativas, pues se puede acompañar la voz en
primera de la madre de Cholito, así como de otras personas
allegadas a los otros niños enclaustrados. Son voces que
claman por sus hijos, a la vez que manejan a la perfección
la mentalidad mítica de una cultura ancestral. Con eso,
Colchado se aproxima a lo fantástico, además de permitir
crearse una colcha de retazos con diversas perspectivas
de conocimiento acerca de escenarios. De pronto, en la
primera página, se percibe el entramado de narrativas
permitidas por el texto:
El niño de la cordillera
para la búsqueda del protagonista, en este caso, a pesar
de no parecer grandiosa como la de la épica, es elemental
149
para el niño y, como siempre en este tipo de narrativa, se
desdoblará en importancia, agigantando el protagonista a
principio frágil ante los desafíos de su jornada.
Igual a otras sagas, Cholito también es considerado
raro entre los suyos. Mientras los demás niños del pueblo
jamás van solos para “allá del río”, a nuestro protagonista,
a los 11 años, está permitido “hacer cosas de hombre”. Esta
tarea la tomó para que su mamita no tenga que casarse
nuevamente para sostener a sus hijos. Así, este hombrecito
provoca risas entre los chicos del pueblo que se creen que
él va a buscar su muerte. Pero a todo Cholito supera como
cabe a un héroe.
13
Taita: padre. Es una expresión utilizada en todo el Perú y en otros países
hispanoamericanos. El Diccionario de la RAE emplea taita con la misma
etimología del latín tata y agrega el significado de “voz infantil con que
se designa al padre”, lo que recuerda que es una de las primeras palabras
que aprenden los niños. La palabra, además del sentido cariñoso, también
significa un tratamiento respetuoso.
Según Cirlot (1984), los héroes son siempre
viajantes, es decir, inquietos (CIRLOT, 1984, p. 598).
Simbólicamente, el viaje es mucho más que transitar entre
espacios. Viajar es arriesgarse al nuevo. En sentido más
primario, viajar es buscar, aunque, en el caso de Cholito,
en su primera aventura, él no se había preparado o ansiado
por eso. Salir tras las huellas de su venadito le obliga a
abandonar al único sitio que conoce, Rayán.
La travesía lo hará caerse literalmente en un viaje
simbólico hacia los infiernos. Encarcelado junto a otros
niños, tendrá de trabajar largo tiempo como esclavo.
Para Cirlot, este tipo de viaje “simboliza a descida ao
inconsciente, a tomada de consciência de todas as
possibilidades do ser, cósmica e psicológicas, necessárias
para chegar às paradisíacas; com exceção daqueles seres
Literatura infantil e juvenil
El niño de la cordillera
(VALLEJO, 2010). Se puede destacar aún que la obra para
niños de Óscar Colchado Lucio no se cierra en un género
151
para un público específico, sino que abre un abanico de
interrogantes y de lectura placentera a todos los que se
interesan por un texto literario rico en posibilidades.
Referências
AVILÉS, Marco. De dónde venimos los cholos. Lima: Seix
Barral, 2016.
AYLLÓN, Ricardo. La narrativa de Óscar Colchado Lucio.
Chimbotenelinea.com. 22 set. 2011. Disponible en: <http://
www.chimbotenlinea.com/09/04/2013/la-narrativa-de-oscar-
colchado-lucio>. Acceso en: 4 mai. 2017.
CAYO ORÉ, Erika. Análisis de la obra Rosa Cuchillo de
Óscar Colchado. Feb. 2006. Disponible en: <http://pt.calameo.
com/read/00467083799bc13b4b5a2>. Acesso em: 20 mar.
2017.
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COLCHADO LUCIO, Óscar. Cholito y el niño
Manuelito. Video/dibujo animado. Disponible
en: <https://www.youtube.com/results?search_
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obra+completa>. Acceso en: 12 jun. 2017.
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______. Página oficial do autor. Disponible en: <http://
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______. Rosa Cuchillo. Lima: Alfaguara, 2013.
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El niño de la cordillera
2012. Disponible en: <http://www.ufjf.br/revistaipotesi/
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Acceso en: 4 mai. 2017.
153
REAL ACADEMIA ESPAÑOLA/RAE. Diccionario de la
lengua española. Disponible en: <http://www.rae.es/>. Acceso
en: 20 mai. de 2017.
ROSAS, Fernando (Org.). Mitos y leyendas del Perú.
Arequipa: Ediciones El Lector, 2015.
ROSTWOROWSKI, María. Cuentos de los Andes. Lima: IEP,
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antiguo Perú. Lima: IEP, 2015a.
______. Presentación. In: El misterio de las islas de
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VALLEJO, Miguel Ángel. El justiciero que vino de los Andes.
10 set. 2010. Disponible en: <http://www.elperuano.pe/Edicion/
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VEGA, Inca Garcilaso de la. Comentarios reales de los Incas
– Edición Completa. Lima: AMC, 2008.
O menino e o mundo:
o traço infantil para
contar a “história a
contrapelo”
O filme
O menino e mundo é dirigido por Alê Abreu, autor de
outras animações como Sirius (de 1993), Espantalho (de
1998), Passo (de 2007), Garoto Côsmico (de 2007) e Vivi
O menino e o mundo
Viravento (de 2017), e foi indicado ao Oscar de 2016, sendo
muito elogiado internacionalmente. O filme foi sucesso
157
de público em países como França, Espanha e Canadá,
onde o cinema de animação tem maior popularidade do
que no Brasil.
A ênfase do trabalho do diretor está no traço
mínimo na expressão do mundo; o desenho não é usado
como complemento da palavra, o que se torna um aspecto
estilístico importante, uma vez que, na maioria de suas
animações, não há palavras e, com isso, há uma exploração
estética sonora e visual diferenciada. Os sentidos são
construídos pelos espectadores na desnaturalização da
palavra lida/ouvida em seus usos mais recorrentes.
Uma jornada de infância que ao descobrir o mundo
o faz criando esse mesmo/outro mundo aos olhos do
espectador. Linhas mais retas para as objetificações, para
o que já está dado, pronto; traços arredondados para
os afetos, a música, a poesia, a imaginação do menino;
assim se desenrola o desenho da história. O filme conta
a trajetória de um menino que decide ir atrás do pai que
havia, supõe-se, saído do campo para a cidade em busca de
melhores condições de vida. O pai foi de trem e o menino
é levado pelo vento.
Animado pelas lembranças do pai (a fotografia,
a memória da despedida, a música tocada na flauta), o
menino empreende uma jornada e as aventuras sucedem-
se. A leveza das formas, das composições de cores e a
delicadeza da música contrastam com o peso dos temas
tratados.
Ao contrário do infantil por incipiente, ingênuo ou
aquele que está ainda por aprender, o menino mostra seu
repertório ao transformar guindastes em dinossauros,
tanques de guerra em animais selvagens, trens em longas
serpentes etc. Ele lê o mundo por uma métrica criativa a
partir de seu próprio repertório de imaginação.
Literatura infantil e juvenil
O menino e o mundo
seu olhar infantil, Abreu (2013) insiste numa espécie de
filosofia da infância em seus trabalhos no audiovisual.
159
Trabalhar a infância como tema é, para o diretor, uma “[...]
possibilidade de carregar a esperança, que se transforma
numa crença, que a gente deixa sobreviver dentro da gente,
de que tudo é possível” (FUNDAÇÃO BUNGE, 2014).
Sua percepção da infância liga-se ao ofício de cronista, na
concepção de BENJAMIN (1994, p. 223):
Infância
É preciso afirmar que se trabalha, aqui, com
a concepção de autonomia da criança tanto como
espectadora (público) quanto como produtora de sentidos
(personagem), quando, no caso específico de O menino e o
mundo, empresta seu olhar e sua disposição em compreender
o mundo às peripécias no processo de construção da
narrativa fílmica. Apesar de animações, como gênero
fílmico, serem genericamente indicadas para crianças,
pensadas com certas incapacidades ou com reduzidas
possibilidades de compreensão, em O menino e o mundo é
claro o caráter de emancipação com que os espectadores
infantis são pensados; as crianças-personagens são
potentes em “[...] deixarem de ser espectadores e tornarem-
se agentes de uma prática coletiva” (RANCIÈRE, 2012,
p. 13). Os dramas, as descobertas, as construções pelas
quais o menino expõe-se podem ser capazes de formar
comunidades infantis de pensamento – de crianças e de
adultos.
Nesse sentido, pode se dizer que a infância aparece
Literatura infantil e juvenil
O menino e o mundo
nomear os objetos é a linguagem da potência criativa.
Assim, seria na falta/falha que ele produz um saber sobre
161
o mundo, ou seja, a experimentação que a criança faz é a
própria língua posta em ato (AGAMBEN, 2005). A infância
como linguagem, então, não reconhece os limites do real e
inventa incessantemente as formas de vida.
Em sentido próximo, Benjamin (1984, p. 55) afirma
que a criança dá sentidos às coisas do mundo a partir de
suas capacidades imaginativas:
O menino e o mundo
volte, que aquela vida volte. Ele enterra a lata e, sobre ela,
coloca uma semente – uma memória em cultivo.
163
Em Rancière (2012, p. 15), tem-se que
O menino e o mundo
A animação interrompe o cortejo dos vencedores,
165
mostrando os efeitos da história, agora, contada sob a
perspectiva dos vencidos, dos que perdem o pai, dos que
precisam abandonar a terra, dos que se tornam anônimos
na cidade. Nas palavras de Benjamin (1994, p. 225),
“Todos os que até hoje venceram participam do cortejo
triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os
corpos dos que estão prostrados no chão”. Trata-se, sem
dúvida, de um filme de estética política para as infâncias:
novamente se alega, de crianças e de adultos. Abreu (2013)
assume a tarefa do materialista histórico, sob a perspectiva
benjaminiana, e “[...] desvia da transmissão da cultura
como barbárie” (BENJAMIN, 1994, p. 225), escovando a
história a contrapelo ao mostrar os despojos deixados pelo
cortejo dos vencedores no acúmulo capitalista.
A primeira parada de viagem é na colheita do algodão:
homens, mulheres e crianças dobrados sob o peso das
cestas cheias de algodão retirado das imensas plantações.
O menino vê, com enorme espanto, o esforço humano
para fazer chegar a produção à longa fila de caminhões que
transportarão o algodão. Na interpretação do materialismo
histórico, Harnecker (1983, p.37) assinala que
O menino e o mundo
riquezas das quais não usufruem. Nesse sentido, os sujeitos
trabalhadores alienados aparecem como constitutivos do
sistema capitalista, porém, desidentificados com a produção
167
e, consequentemente com a história da produção. No
entanto, a revisão histórica, dando lugar a esses sujeitos e a
suas participações nos processos de produção e não como
efeito perverso do capital, pode assinalar exatamente que,
sem o conhecimento da história das formas de acumulação
capitalista, sim, instala-se o perigo do autômato. O pai
(que se separa da família e passa a integrar a massa de
autômatos) e o menino (que parte em busca do pai e vê-se
reduzido a mais um no conglomerado da cidade grande)
são imagens fortes que se contrapõem às possibilidades
romantizadas de felicidade como natureza das histórias
narradas. Ao contrário disso, Löwy (2005, p. 94), lendo as
teses sobre o conceito de história, interpreta:
O menino e o mundo
imaginação que se mostra como a linha de fuga à perda da
infância como linguagem do mundo.
169
Pelbart (2000, p. 7), ao analisar as subjetividades
contemporâneas, afirma que
173
alteridade diversa a que, entretanto, já pertenceu o sujeito
adulto, mas desenvolveu-se em outra. De certa forma,
parece uma retomada de si pela memória da criança que
foi ou pela tentativa de simulação da criança que teria sido
ou da qual gostaria de aproximar-se.
Não é pouco frequente o relato de escritores
canônicos que escrevem para adultos motivados por uma
aproximação afetiva com esse público. Clarice Lispector
declarou que escreveu seu pequeno elenco de textos para
crianças a pedido dos filhos; Raquel de Queiroz afirmou
que a chegada dos netos da irmã acendeu nela a vontade
de escrever para os pequenos; Jorge Amado escreveu o
primeiro livro infantil quando se tornou pai. E assim, por
esse caminho de aproximação real do público, normalmente
pelas vias afetivas, e não somente pelo desejo de escrever
para esse destinatário sem rosto, muitos de nossos
escritores, e também os de outros países, em determinado
momento, escreveram para a infância. Embora não se
possa afirmar que esse seja o único motivador da escrita de
textos infantis por autores de literatura já consagrados na
literatura para adultos, aparece com bastante frequência
nos relatos.
O reconhecimento da obra de autores canônicos na
literatura para adultos, como já afirmado, é inquestionável
se pesquisamos suas fortunas críticas ou suas presenças
nas histórias da literatura. Num breve percurso sobre
a produção ainda pouco visibilizada, se comparada à
produção para adultos, vamos lançar nosso olhar sobre
Graciliano Ramos. O propósito é pensar a relação que
estabeleceu com esse público, por meio da literatura que
escreveu para ele, além propor uma leitura de A terra dos
meninos pelados, primeiro texto do autor pensado para
esse público, e não reendereçado posteriormente, como
aconteceu com Histórias de Alexandre, Minsk e Luciana,
Literatura infantil e juvenil
175
O fenômeno não voltará a repetir-se” (LINS, 1991, p. 196).
Esse fenômeno, a que Lins (1991) chama de pausa, só
pode ser entendido como externo às obras e não da obra
em si, isto é, trata-se do endereçamento prévio e desdobra-
se em três obras, que o crítico trata como menores em
relação ao conjunto da obra do escritor alagoano, como
pode-se perceber na observação que faz em relação à
forma e à densidade psicológica que são marcas da escrita
do velho Graça. A afirmação da menor qualidade do texto,
especialmente em se tratando de A terra dos meninos pelados,
parece muito mais ligada à predisposição de marcar para
fora do projeto estético do autor o texto infantil, uma vez
que não falta a Raimundo, personagem central da narrativa,
tratamento psicológico conferido primordialmente em
função de sua marca distintiva na aparência.
Apesar de ter sido premiado em 1937, o livro só foi
publicado em 1939, com ilustrações de Nelson Boeira
Faedrich, o que pode assinalar certo desinteresse editorial
pelo texto dirigido a crianças. Erico Veríssimo, por meio
de carta datada de 18 de agosto de 1938, justifica o atraso,
afirmando não ter a editora condições de assumir mais
compromissos naquele ano, além de pontuar o fato de
não ter recebido pagamento antecipado pelo serviço. Além
desse atraso na publicação, podemos perceber, na capa da
primeira edição cuja reprodução é apresentada a seguir,
que a editora recorre a um identificador de legitimação – o
selo do prêmio do Ministério da Educação, atestando certa
qualidade vinda de um órgão que, guardadas as devidas
intenções de incentivo à produção para esse público, acaba
por tentar, por meio dessa chancela, aproximá-la de uma
dimensão pedagógica.
Outra curiosidade em relação a esse livro diz respeito
Literatura infantil e juvenil
177
Deane. O volume acompanhava uma carta de Graciliano
às crianças, firmando de vez a filiação da nova edição ao
público infantil. O título, 7 histórias verdadeiras, parece
oferecer ao público o tom de brincadeira ao compor,
juntamente com o número sete, famoso por ser conhecido
como conta de mentiroso, o amálgama da tradição de
contadores de causos, de que Alexandre é representante
máximo.
A carta de Graciliano a esse público, convocando-o
a uma conversa, parece assinalar o respeito necessário
à criança e o reconhecimento de que aquele público
era também apropriado para o direcionamento de uma
produção. A edição, conforme podemos atestar na Carta
de Graciliano às crianças (RAMOS, 2013), publicada às
vésperas do Natal de 1951 no jornal Imprensa Popular, era
uma quase promoção natalina, em que a convocatória
para uma reunião com o autor deveria ser precedida do
preenchimento de um cupom:
Pela primeira vez o grande romancista brasileiro
Graciliano Ramos publica um volume de contos
para crianças: 7 histórias verdadeiras, que acaba de
ser lançado pela Editora [Victória], em primorosa
edição com ilustrações de Percy Deane. O ano
se encerra assim com um notável acontecimento
literário, e as crianças poderão ter nele o seu melhor
presente de Natal. Um fato inédito será a conversa
que os leitores mirins do livro terão com Graciliano
Ramos, dentre em breve, a propósito de suas
histórias. Cada livro é acompanhado de um cartão-
convite para essa palestra, que será oportunamente
marcada. [Nota intitulada 7 histórias verdadeiras,
publicada no Jornal Imprensa Popular, em 16 de
dezembro de 1951]. (RAMOS, 2013, p. 331).
179
como afirma Coelho (1995, p. 398): “É, porém, livro muito
mais de natureza reflexiva do que aventuresca”, isto é, o
que poderia representar fuga e construção de um herói
ao modelo épico, pela sobreposição de obstáculos a
serem superados, constitui-se, antes, como um mergulho
na própria diferença, num encontro com seus pares.
Não há muitos avanços desdobrados nos 23 capítulos.
A jornada desse herói consiste em sair do lugar em que
não conseguia ter pertencimento e adentrar o mundo de
pares, criado a partir da necessidade de fugir ao outro, ou
seja, cada avanço em direção à nova terra é, na verdade,
uma volta a si mesmo, para reconhecer-se. Percebe-se,
portanto, uma investida forte na dimensão psicológica
da personagem, traço comum nas obras de Graciliano e
indício de que o texto não se desfilia do projeto estético
do autor, legitimado aqui na crítica de Coelho (1995). Em
A terra dos meninos pelados, percebemos o mover-se para
dentro, o remoer a inadequação e o praticar a incapacidade
de comunicar diante da violência do vivido. Tudo isso
constitui-se também como marca desse personagem.
181
como uma fabulação da resistência em relação à perda da
liberdade, com a criação de um mundo de pertencimento.
Ramos (1979), filha de Graciliano, afirma que
a escrita dessa obra inicia-se no mesmo mês em que o
pai saíra da prisão e lança-se a aproximar personagens e
artifícios de A terra dos meninos pelados a pessoas conhecidas
no encarceramento e experiências vividas lá. Mesmo que
não seja possível tratar da aproximação realista desse
texto à experiência no sistema prisional de Ilha Grande
apenas por meio das declarações da filha do autor, traços
marcantes contribuem para isso, quais sejam, a exclusão
e as marcas do corpo. A coma cortada, tal qual acontece
ao tupi aprisionado por timbiras em I – Juca Pirama (DIAS,
2013), denuncia sua condição também de vencido pelos
pares e aprisionado em sua diferença. Em depoimento
colhido pela filha, o romancista revela: “O infame
instrumento arrancava-me os pelos, e isto me dava picadas
horríveis no couro cabeludo. A operação findou, ergui-me,
passei os dedos no crânio, liso, arrepiado na friagem da
noite.” (RAMOS, 1979, p. 117). Portanto, a crítica social
contundente na literatura para adulto, tanto estudada na
fortuna crítica do autor, transveste-se de alusão, como
possível estratégia de adequação ao público, bem como,
possivelmente, forma de metaforizar a denúncia que faz à
dificuldade vivida no cárcere.
A tradição a que se filia A terra dos meninos pelados
no rol das obras escritas à época dialoga, como ocorre no
caso de textos infantis de Rachel de Queiroz, com a obra
de Monteiro Lobato no ponto em que, ante a inadequação
ao real, pela distinção que marca o herói, este se lança
ao maravilhoso, fundido à realidade imediata, em uma
viagem por territórios em que a fantasia oferece aos seres
Literatura infantil e juvenil
183
mesmo que não seja o Nordeste retratado com clareza na
narrativa, não merece ser tratado com desatenção o fato de
a obrigação com o exercício de geografia ser o motivador
do retorno.
Apesar de não se mostrar muito confortável
escrevendo para crianças, Graciliano Ramos, que chega
a declarar em texto de Linhas tortas que odeia o livro
infantil, consegue estabelecer um contrato comunicativo
muito próprio com o destinatário em A terra dos meninos
pelados. Sem se desfiliar de seu projeto nem enveredar por
territórios de ensinamentos e lições pedagógicas sobre
a vida, ele constrói uma narrativa em que a angústia do
personagem diante de sua condição de não pertencimento
avança em tom lírico, empreende uma aventura para
dentro de si e retoma o cotidiano sem adocicar a dor com
a estratégia do final feliz, tão comum nos textos dedicados
às crianças.
Referências
Andrade, Carlos Drummond de. Confissões de Minas. Rio
de Janeiro: América Editora, 1944.
Benjamin, Walter. O narrador. In: Textos escolhidos. São
Paulo: Abril Cultural, 1975.
Bosi, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
Coelho, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura
infantil e juvenil brasileira. São Paulo: Edusp, 1995.
Coutinho, Afrânio; SOUSA, J. Galante de (Org.).
Enciclopédia de literatura brasileira. 2. ed. São Paulo:
Global; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/DNL:
Academia Brasileira de Letras, 2001.
Literatura infantil e juvenil
185
______. Alexandre e outros heróis. Rio de Janeiro: Record,
1991.
______. 7 histórias verdadeiras. Ilustrações de Percy Deane.
[s.l.]: Ed. Victória, 1957.
______. Histórias de Alexandre. Rio de Janeiro: Leitura, 1944.
RAMOS FILHO, Ricardo de Medeiros. Arte literária em dois
ramos graciliânicos: adulto e infantil. Dissertação (Mestrado
em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa)
– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
Signos e suportes
contemporâneos:
notas sobre a literatura
infantil e juvenil14
Introdução
É fato que vivenciamos um estágio bastante
complexo em que se redesenha um espaço não contíguo
de redes móveis de pessoas e de tecnologias em conexões
contínuas. Para Santaella (2010), experimentamos uma
importante e inaudita revolução antropológica. Novas
subjetividades são geradas em contínua mutação, enquanto
as tecnologias da inteligência tornam-se cada vez mais
14
Artigo publicado também na Revista Fronteiraz, n. 17, dez. 2016.
maleáveis e aptas a abrigar subjetividades em construção
no contexto de comunidades adaptativas.
Não sem algum espanto, percebemos, nos
intercâmbios de toda espécie, processos devastadores
entre povos e culturas agenciando violências identitárias,
religiosas, culturais, guerras, em suma, atos potencialmente
desestabilizadores do que entendemos por convivência
humana. Testemunhamos um final de século visivelmente
marcado por queda de valores que davam ancoragem à
vida social. As grandes instituições perdem seus poderes e
passam a ser nichos para microentidades, como sindicatos
e outras organizações formais, baseadas em afinidades
eletivas do grupo que as institui. Multiplicam-se as
religiões e a vida social fragmenta-se em agrupamentos
constituídos por elos formados pelas linguagens, raça,
Literatura infantil e juvenil
15
Complexo no sentido de fios heterogêneos tecidos em conjunto na
construção de uma trama interdependente e interativa.
valorativos que motivem o pensar, o sentir, o querer do
homem; em suma, que se faça refletir sobre o projeto do
homem mediante o que hoje já se denomina de o pós-
humano.
Neste momento de nossa história e nessa ordem
de ideias, a hipótese que nos anima é que enlaçar a
educação e a literatura equivale a redimensionar forças.
Forças para intercambiar saberes e construir patamares
para a desafiadora perspectiva de vislumbrar-se uma nova
forma de humanidade. Se o imaginário do século passado
trouxe certa fascinação com as máquinas, alertou-nos, ao
mesmo tempo, para a ameaça do controle das máquinas
sobre os homens. Para além da lógica mecânica, inserimo-
nos, hoje, em um universo digital em que nossa memória,
189
Às artes, às ciências, à filosofia, à educação parece
caber a tarefa de abrir brechas na segurança do que já se
pensou e colocar perguntas novas. Estarmos atentos às
potencialidades e negatividades desses processos pode
garantir a nossa sobrevivência cultural, estética, social e
política. Perscrutar as diversas manifestações socioculturais
contemporâneas pode levar-nos a constatar que ainda há
vida para além do artificialismo do mundo.
Se há uma marca fundamental em nossa época,
em face dos desafios das transformações contínuas, ela
concerne à necessidade de encontrarmos senhas de acesso
à intelegibilidade desses fenômenos e situarmo-nos em
um debate cujo desejo é o de contribuir para um exercício
reflexivo.
Seguindo Maffesoli (1995, p. 65),
191
a preocupação com fatores fundamentais da cognição
humana em inteligências artificiais, acabamos por entender
ligações indissociáveis entre mente e corpo e por afastar a
certeza das concepções estritamente racionalistas. A razão
engendra sensibilidades. Essas inevitavelmente engendram
os processos intelectivos.
No âmbito dos estudos da literatura comparada,
tem-se a possibilidade de diálogos interdisciplinares,
interculturais e intersemióticos. Ao considerar
positivamente a diversidade, a multiplicidade, a
reciprocidade, esse campo do conhecimento promove
intercâmbios teóricos e metodológicos entre diferentes
artes e territórios do saber, elaborando-se como um
espaço reflexivo para a compreensão sensível e a crítica
do fenômeno literário. Dentro dessa perspectiva, o diálogo
da literatura com a educação pode contribuir para formas
de apalpar os fenômenos humanos que se formam na
contemporaneidade.
O que significa ser contemporâneo?
Essa questão constitui assunto de singular
importância no contexto de nossa discussão. Na verdade,
alude ao título do livro de Agamben (2009), O que é o
contemporâneo? e outros ensaios. Com esse autor, aprendemos
que todos os tempos são obscuros para quem deles
experimenta a contemporaneidade.
2009, p. 59).
193
de tudo se tornar mais bem definido era a promessa de
uma ordem capaz de “reduzir a complexidade social”, de
organizá-la. No lugar da pluralidade de religiões, dialetos
e costumes, há uma ordenação em prol de alianças
nacionais. O conjunto de representações através das quais
“uma época narra a história a si mesma” – as mitologias, os
contos e as lendas (da pré-modernidade) – estruturalmente
plurais – foi substituído pela formação de grandes sistemas
ideológicos. A ciência foi concebida como a melhor forma
de entender as verdades. A razão justifica o indivíduo como
senhor do mundo e da História, só “[...] tem valor aquilo
que é acabado, o que pode entrar numa ordem utilitária”
(MAFFESOLI, 2004, p. 17).
É fato que a segurança de uma representação que
dava unidade política e ideológica a sistemas de crenças
sofreu sérios abalos. Palavras-chave, como indivíduo,
história e razão tornaram-se defasadas em face da realidade
contemporânea, ganhando força noções mais voláteis.
Na concepção de Maffesoli (2004), empiricamente, pode-
se aceitar a hipótese de o indivíduo, a história e a razão
cederem lugar a uma fusão afectual que se encarna no
presente à volta de imagens “comuniais”. O indivíduo
– fragmentado – emerge como persona e desempenha
diversos papéis nas tribos às quais adere. A identidade
fragiliza-se e as identificações, que já são múltiplas,
multiplicam-se. Cada qual só existe no e através do
olhar do outro. O processo atual remete para a realidade
quotidiana, em que a heteronomia prevalece. Mudança
paradigmática que se alia a uma inversão de tempo – o
que importa não é mais a História linear, mas as múltiplas
histórias humanas. O tempo contrai-se em espaço. Um
“presentismo” contamina as representações e as práticas
sociais, em especial as dos jovens.
Literatura infantil e juvenil
16
A descoberta da criança, como ser diferenciado do adulto, em conformação
com o desenvolvimento da ideologia burguesa, da formação da família
unicelular, marca, para alguns estudiosos, o início da literatura infantil.
17
As Fábulas, de La Fontaine; Os Contos de Mamãe Gansa, de Charles
Perrault; os contos maravilhosos recolhidos pelos Grimm; os escritos por
Andersen; entre outros, considerados os livros pioneiros do mundo literário
infantil, constroem-se em diálogos com textos da antiguidade, perpetuando-
educação18 em uma dinâmica cultural, social e histórica
que engendrou o desenvolvimento da literatura infantil
e juvenil como gênero específico (ZILBERMAN, 1987).
Contexto no qual, para cooperar com a família e com
a escola na educação dos pequenos, configurou-se uma
espécie de ficção preparada para desenhar uma pretensa
realidade homogênea e orientada por princípios da
ordem para o progresso – modelo que perseguia o veraz
e o didático e cuja evidência emerge com narrativas
presas ao tempo linear do relato, um discurso autoritário
do narrador e a predominância do aspecto referencial
da mensagem. Vale ressaltar aqui que, nas dobras que
enlaçam as artes e a história, permanecem mistérios que
nelas se inscreveram – cifras da História humana que –
195
culturais. Morin (2003, p. 27) diz que “[...] o poder
imperativo e proibitivo do conjunto dos paradigmas, das
crenças oficiais, das doutrinas reinantes e das verdades
se por meio das histórias orais. São narrativas que permanecem vivas,
ora pelo caráter premonitório, ora pelos valores universais – morte, vida,
sexo, sobrevivência, fome, poder –, que estão inscritos no avesso desse
tecido textual pela ambiguidade, ambivalência, indeterminação temporal e
magia que os caracterizam. Sob o selo da razão instrumental, no entanto,
transfiguram-se muitos dos caracteres literário, lúdico, erótico e mágico
dessa literatura.
18
Na educação dos pequenos, normalmente vinculada à família e à escola,
tornou-se fundamental investir, prioritariamente, nos aspectos do
desenvolvimento do conhecimento de áreas da ciência e da orientação ética
e moral.
19
Essa literatura tem raízes muito longínquas: os contos maravilhosos, os
contos de fadas, as fábulas; em suma, o conjunto de narrativas que veio a
constituir a literatura infantil no século XVIII desenvolveu-se a partir da era
oral do mito, quando os princípios pagãos fundem-se aos do espiritualismo
cristão, na passagem da Era Clássica para a Romântica. Tal literatura, antes
de ser dirigida para os adultos, incorporada pela tradição oral popular,
transforma-se em literatura para crianças.
estabelecidas determina os estereótipos cognitivos”. E o
declínio dessa ideologia demora a acontecer. Como afirma
Maffesoli (20012, p. 107), ela continua “[...] a difundir nas
várias instâncias oficiais (educação, política, social)”. Além
da rotina e do preconceito, que permanecem assombrados
pelo espectro desses princípios, faz-se necessária uma
recusa à recondução do dogma e do conformismo. Na visão
desse sociólogo, graças ao desenvolvimento tecnológico,
está renascendo um imaginário de antiga memória20.
Para ele, concerne à nossa era categorias como
o cotidiano e o imaginário. Àquele não cabe mais sua
crítica, mas dizer sim à vida; a este cabe coesão da vida
social. Esse imaginário (categoria estigmatizada pela razão,
porque solicita o sensível) reaparece graças à tecnologia
– aos objetos inanimados diz: vocês têm vida. Ele não
Literatura infantil e juvenil
20
O autor refere-se a mitos, contos maravilhosos e contos de fadas, narrativas
de raízes muito longínquas.
Tal capacidade de sensibilizar leitores, de desafiar
o intelecto a perscrutar articulações que se escondem
no jogo do verbo desdobra-se em diversas formas e em
inúmeros estilos, a engendrar em palimpsesto uma extensa
rede discursiva, a qual abarca, em seu tecido, elementos
do passado e do futuro enovelando-os no efêmero do
presente. Nessa tessitura inscreve-se o convite para
descortinarem-se saberes, desconstruir o que está pronto e
reengendrar múltiplas compreensões. Aceitar esse convite,
como leitor, é dispor-se ao encanto do encontro, uma vez
que a literatura fala de nós para nós mesmos. Em suma,
a literatura, em sua amplitude, versa sobre a tessitura
humana que se configura ao longo da história em diversas
eras civilizatórias, em diferentes formas de sociedades e
197
sobre o mundo. Retomando as reflexões de Maffesoli – um
cotidiano que se reflete em uma dinâmica de rearticulações
da ordem de afinidades eletivas, como tribos religiosas,
sexuais, musicais –, sem centro preciso e sem periferias
discerníveis, podem exemplificar as obras:
• As mãos dos pretos (HOWANA, 2008);
• King & King (HANN; STERN, 2012);
• Cena de rua (LAGO, 1994); e
• Zubair e os labirintos (MELLO, 2007).
A narrativa As mãos dos pretos – do livro Nós matamos
o cão tinhoso, do moçambicano Howana (2008) – mesmo
sendo para adultos, tem forte ressonância entre crianças
e jovens, podendo, portanto, ser apropriada pela literatura
infantil e juvenil. No conto, inscreve-se a relação de
aspectos identitários que surgem de nosso pertencimento a
culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e nacionais.
O enredo, protagonizado por uma criança, desconstrói o
mito bíblico da criação do homem a partir de um único
barro com que Deus teria feito Adão, e interpõe a questão
identitária do negro21.
Já King & King, de Haan e Stern (2012) é a história de
um príncipe – sem nome – que se vê obrigado a casar para
assumir o trono. A rainha, sua mãe, convoca princesas dos
mais diversos reinos. O jovem, no entanto, não se sente
atraído por nenhuma das candidatas que se apresentam.
Certo dia, porém, chega ao castelo a princesa Madeline
e seu irmão Lee. O jovem herdeiro, ao ver a princesa e o
irmão, sente seu coração pulsar muito forte. Ele se apaixona
perdidamente. Não pela princesa, mas pelo príncipe irmão
que a acompanha. Diante de tal surpresa, a rainha não
se opõe ao desejo do filho, e os preparativos iniciam-se
para a grande festa de casamento dos dois príncipes.
A narrativa resgata características dos contos maravilhosos
Literatura infantil e juvenil
21
Uma análise completa desse conto pode ser vista em Cunha (2014).
a narratividade pelo percurso do olhar e do virar das páginas.
O figurino do protagonista e seus gestos delicados são
elementos compositivos que tecem o enredo contrariando
as normas de gênero socialmente construídas. Destaca-se
uma oposição ao modelo socialmente aceito que induz
ao jogo de uma competição entre a heteronormatividade
e a homoafetividade. O enigmático título King & King
alia-se ao jogo de cena e à relação temporal da narrativa
cujo protagonista é um príncipe herdeiro. O conjunto
de elementos sugere a temática da homossexualidade.
Assunto esse ainda polêmico, inscreve-se na literatura
para crianças tecido com delicadeza. O diálogo do verbal
com o imagético propicia compreender uma realidade que
se manifesta por meio de signos estéticos. Esse jogo lúdico
199
sociais definidores do papel de gênero. Aqui, é possível
lembrar Darnton (1986, p. 78), historiador que, ao estudar
as versões orais e tradicionais dos contos maravilhosos,
comenta: “[...] eles diziam aos camponeses como era o
mundo; e ofereciam uma estratégia para enfrentá-lo”.
Em Cena de rua – um enredo plástico e um tema
do cotidiano, sensível e reflexivo – obra realizada à
semelhança de uma reportagem televisiva22, Lago (1994)
apresenta fotogramas em sequência ligados por uma
lógica de implicação. Isso, sem auxílio do verbal, move
a narrativa cujos conflitos, vividos pelas personagens no
tempo, especializam-se gerando a cena – meio da rua,
congestionamento de trânsito, um menino de rua. A
circularidade constrói para o protagonista uma vida sem
saída. As cenas compõem-se de figuras deformadas e
cores fortes, que causam impacto ao olhar do leitor. Essa
22
LAGO, Ângela. Entrevista concedida a Maria Zilda da Cunha. Belo
Horizonte, 2001. Não publicada.
construção hiperboliza a crueldade da vida de uma cidade
grande, dando a visão de um cotidiano perverso. Pessoas
são monstros. A deformação, dada pela câmara, é também o
ponto de vista do narrador. A ambiguidade, os movimentos,
a deformação, os flagrantes em contraste, o distanciamento
(grandes planos e os closes) que a reportagem fílmica
possibilita abrem brechas para outros pontos de vista. O
conflito, como princípio de montagem, coloca a percepção
e a memória como elementos dominantes no processo de
articulação do significado, detonando efeitos no intérprete.
A semelhança do livro com telas projetivas e televisivas –
símbolo de comunicação do mundo midiático – cria um
circuito de relações que pressupõe agentes sem os quais
o processo não poderia ser efetivado. Estabelece-se, assim,
uma relação dialogal – o espectador participa de uma
transação a que assiste e legitima. Imagem e realidade
Literatura infantil e juvenil
201
viagem por labirintos. A fragmentação dos múltiplos
espaços e a intervenção do passado no presente, através
da memória, leva à consciência da instância que narra,
ora observador, ora imerso na narrativa. O texto tece-se
em camadas de sentidos. Assim como o faz Zubair na
narrativa, “[...] desembrulhando uma, duas, três vezes, o
tecido espesso abraçava um livro em que se lia: Os treze
labirintos”. Verifica-se: o livro dentro do livro e leitura
dentro da leitura. Camadas labirínticas prendem o leitor à
história, por meio da escrita, das imagens e do constructo
do próprio livro como objeto. O aparecimento do segundo
livro traz à tona uma intricada relação de internarratividade.
O livro, como um elemento modular, interagindo
com o todo dentro de uma biblioteca com muitos livros,
também é uma biblioteca, na medida em que suas
interfaces com outros encadeiam feixe de conexões.
A rede de interfaces pela qual se tem acesso a todos
os livros retoma uma imagem mítica – a biblioteca da
Alexandria –, um centro contendo toda a literatura, as
imagens narrativas e o conhecimento do mundo. Essa é a
ideia do hipertexto.
O hipertexto, a partir de 1990, ganhou forma de
hipermídia com a integração na tela do computador,
por meio de links, de imagens, sons, animações em uma
complexa combinação entre texto, hipertexto, multimídias
e multilinguagens. Fundiram-se formas de comunicação: a
escrita, a audiovisual, as telecomunicações e a informática
em um único ambiente digital. Nesse cenário de
hibridação, a escrita aparece sob a forma de vínculos não
lineares entre fragmentos associativos, interligados por
conexões conceituais (campos), indicativas (chaves) ou por
metáforas visuais (ícones) que remetem de um percurso de
leitura a outro, num clicar de botão. O hipertexto entra
Literatura infantil e juvenil
203
do leitor como um processo que se modifica sem cessar,
adaptando-se em relação ao contexto e jogando com
dados disponíveis. A leitura ganha esse caráter lúdico,
mas exige esforço intelectual e a decisão de querer ou não
imergir nesses meandros textuais, com o risco de retornar
a pontos mais complicados.
Segundo Machado (2002, p. 254), a forma labiríntica
da hipermídia repete a forma labiríntica do chip, ícone por
excelência da complexidade em nosso tempo.
Experiências em hipermídia valem ser visitadas
e exploradas. Aqui, sugerimos as realizadas por Ângela
Lago23. Entre essas comentamos rapidamente OH!24 Um
misto de desafio, mistério e humor, uma narrativa que
é um jogo assombrado. O enredo é construído visual e
23
Disponível em: <http://www.angela-lago.com.br>. Acesso em: 11 out. 2017.
24
Vale considerar outro aspecto importante da produção contemporânea para
crianças e jovens:o imaginário da morte – assunto também explorado por
Maffesoli (1998; 2014) e estudado por nós, no exame de livros, de filmes, de
HQ, de animações e games (mas não contemplado neste artigo).
sonoramente. Sendo destinado a crianças, o encadeamento
vai ocorrendo com a intervenção de seu receptor munido
de um instrumento de comando — o mouse. A constituição
sonora dessa hipermídia é feita de samplers, em que
os arquivos de áudio não se encontram disponíveis. A
linguagem sonora é fundamental para marcar a sintaxe e a
temporalidade da narrativa. O receptor é colocado no jogo
da sintaxe dos corpos sonoros.
O ambiente digital agrega, em suas infovias,
múltiplas linguagens e múltiplas mídias que resultam no
próprio espaço narrativo, exploração que vai requerer do
internauta atenção, repertório, coordenação, escolhas e
identidade cultural.
Na esteira de Ângela Lago, Roberta Asse, também
arquiteta e autora de livros para crianças e jovens, realiza
Literatura infantil e juvenil
25
Obra finalista do 57º Prêmio Jabuti, em 2015.
escolar, muitas vezes, escamoteia problemáticas que ainda
são polêmicas.
Considerações finais
Pensar na literatura infantil e juvenil considerando
as dobras que a entrelaçam à educação, no contexto
contemporâneo, significa apontar para questões de
enfrentamento e busca de canais de inteligibilidade que
questionem a História, suas representações e a própria
dinâmica do conhecimento humano. Impulso esse de
reflexão que nos levou a mapear alguns dos desafios
de nosso tempo e a pensar naqueles que a escola tem
a encarar, em especial, se pensarmos na formação do
205
para formulação de diferentes conceitos estéticos.
Os espaços textuais (re)tecem-se em fluxos operativos
entre a participação do autor e do leitor e, agora, da
tecnologia que participa da concreção da obra. Nossa
era traz uma “[...] sinergia de fenômenos arcaicos com o
desenvolvimento tecnológico.” (MAFFESSOLI, 2004, p.
22.). Os trânsitos e diálogos diferenciados atestam uma
ecologia cultural bastante complexa, que se traduz por
via do imaginário, fertilizado pela própria inventividade de
que o texto artístico é portador.
A apreciação estética é lúdica, mas, ao mesmo tempo,
reflexiva, tornando-se capaz de regenerar sentimentos
e fundar pensamentos críticos a respeito do concreto
histórico, posto que entram em jogo releituras da História,
do concreto social, da herança cultural, da vida vivida, da
literatura por meio de vozes dissonantes na apresentação
de uma verdade polifônica. Se os códigos verbais e não
verbais tornam-se essenciais para a construção dos
sentidos, códigos de sistemas sociais, culturais e literários
também constituem estratégias discursivas.
Os desafios da educação passam pela compreensão
das consequências epistemológicas e existenciais que as
transformações – que estão ocorrendo – têm imposto às
reflexões intelectuais de nosso tempo. Não podemos
deixar-nos cegar pelas luzes das tecnologias, mas é
necessário entrever, em seus matizes, projetos novos – isso
demanda coragem e força para lidar com o que se mostra
intempestivo.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros
ensaios. Chapecó: Ed. Argos, 2009.
Literatura infantil e juvenil
1995.
CUNHA, Maria Zilda da. As mãos dos pretos, de Luís
Bernardo Howana. In: Myths Revisited. Lisboa: Humus, 2014.
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DARTON, Robert. O grande massacre dos gatos e outros
episódios da história cultural da França. São Paulo: Graal,
1986.
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HONWANA, Luis Bernardo. Nós matamos o cão tinhoso.
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LAGO, Angela. Cena de rua. Belo Horizonte: RHJ, 1994.
MACHADO. Arlindo. Pré-cinema & pós-cinema. SP:
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MAFFESOLI, Michel. O tempo retorna: formas elementares
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______. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo.
Rio de Janeiro: Atlântica, 2004.
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______. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e
Ofícios, 1995.
MELLO, Roger. Zubair e os labirintos. SP: Companhia das
Letrinhas, 2007.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo.
Lisboa: Instituto Piaget, 1991.
______. Os sete saberes necessários à educação do futuro.
8. ed. São Paulo: Cortez, 2003.
SANTAELLA, Lucia. A ecologia pluralista da comunicação.
207
A hora e a
vez da criança
211
adultos, terão que cozinhar, cuidar de suas casas e de
seus filhos (se desejarem ter filhos). Meninas e meninos
dirigirão carros, se assim o desejarem, ou jogarão bola.
Quando a humanidade vai entender que essa
questão de gênero precisa ser revista por completo, mas
com cuidado para não descambar para um preconceito
às avessas? Temos meninas e meninos com diferentes
comportamentos e vontades. Saibamos respeitar e
entender a criança em sua plenitude. E vamos lembrar
que criança não é um vir a ser; ela é criança, plena em
sua infância e inteira para a idade que tem. Já abordei essa
questão em meu livro Nos bastidores do imaginário: criação e
literatura infantil e juvenil (RAMOS, 2006).
Não foi à toa que um dia encantei-me pela literatura
infantil e juvenil e venho lutando desde então para que ela
e a própria criança sejam vistas com seriedade, não como
um vir a ser. Literatura infantil e juvenil não é um vir a
ser literatura adulta. Assim como nem a criança nem o
jovem são um vir a ser adulto. Nietzsche (2000, p. 140)
já sabia disso: “Assim como não apenas a idade adulta,
mas também a juventude e a infância têm valor em si, não
devendo ser estimadas tão só como pontes e passagens.”.
Nesse ponto, vamos pensar como a literatura infantil
e juvenil é uma grande aliada para falarmos sobre qualquer
assunto. Mas falo aqui de literatura e não de livrinhos para
crianças e jovens que não são literatura. Para exemplificar,
recorro às palavras de Colasanti (2005), que ilustram
bem o assunto. Essa autora, ao responder a pergunta “O
que você entende por qualidade em literatura infantil e
juvenil?”, no livro O que é qualidade na LIJ? Com a palavra o
escritor, disse o seguinte:
213
nela, apesar do artista, e não porque estivesse
comprometida desde o início com algum conjunto
de ideias que o amarrava. Em suma: para Camus, a
ideologia não deveria fazer parte das intenções do
ato criador. Mas não poderia deixar de fazer parte
da experiência de vida do artista. E desse modo,
seria como todos os outros materiais que compõe
esse tesouro: iria inspirar, influenciar, percorrer as
entrelinhas, funcionar como manancial subterrâneo,
fornecer sentidos ocultos, e tanta coisa mais.
215
Figura 1 – A Centopeia
Fonte: foto de Marcia Nicolau (2016).
Meu encontro foi com 32 alunos, do grupo misto
(três e quatro anos) e do grupo A, da Creche Professora
Rosa Maria Pires. Por uma fração de segundos, enquanto
eu via aquelas crianças entrando no auditório, pensei:
não posso colocá-las sentadas nessas cadeiras com essa
centopeia tão linda aqui no palco. Elas vão querer brincar!
Convidei-as, então, para sentarem no palco comigo.
Primeiro, contei que eu era uma menina inventadeira e que,
por volta dos meus seis anos, eu inventei um cavalo voador
com quem viajava todas as noites pelo céu; contei que eu
virava uma princesa para viajar com meu cavalo voador,
mas que eu era uma princesa aventureira. Quanto mais
eu contava, mais elas arregalavam os olhinhos, fascinadas.
Quando elas já estavam completamente soltas, falando
sobre seus bichos inventados, fiz a ponte com a centopeia,
Literatura infantil e juvenil
217
26
Trata-se de um programa de apresentações. Ver: <www.prezi.com>.
Quem lá estava acabou vivenciando uma dessas raras
oportunidades que acontecem sem planejamento prévio.
A partir do relato de Fernanda, acabamos vivenciando
uma pequena palestra que não estava nos planos, mas
que foi deliciosa. Algumas professoras presentes no
auditório disseram que quem não estava lá perdeu um dos
momentos mais mágicos do seminário, mas essa fala é por
conta delas.
O fato é que pudemos trocar experiências e pensar
sobre teoria e prática lado a lado nos processos de criação
e como podemos aproveitar um livro em sala de aula,
mostrando os milhares de desdobramentos possíveis
quando existe um bom professor mediador de leitura
em cena. A leitura de Fernanda, seguida de minha fala,
mostrou como isso é possível.
Literatura infantil e juvenil
219
Será que deveríamos procurar já na infância
os primeiros traços de atividade imaginativa?
A ocupação favorita e mais intensa da criança é
o brinquedo ou os jogos. Acaso não poderíamos
dizer que ao brincar toda criança se comporta
como um escritor criativo, pois cria um mundo
próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu
mundo de uma nova forma que lhe agrade? Seria
errado supor que a criança não leva esse mundo
a sério; ao contrário, leva muito a sério a sua
brincadeira e dispende na mesma muita emoção.
A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que
é real. Apesar de toda a emoção com que a criança
catexiza seu mundo de brinquedos, ela o distingue
perfeitamente da realidade, e gosta de ligar seus
objetos e situações imaginadas às coisas visíveis e
tangíveis do mundo real. Essa conexão é tudo o
que diferencia o ‘brincar’ infantil do ‘fantasiar’.
O escritor criativo faz o mesmo que a criança que
brinca. Cria um mundo novo de fantasia que ele
leva muito a sério, isto é, no qual investe uma
grande quantidade de emoção, enquanto mantém
uma separação nítida entre o mesmo e a realidade.
A linguagem preservou essa relação entre o brincar
e a criação poética.
Vocês dizem:
— Cansa-nos ter de privar com crianças.
Têm razão.
— Cansa-nos, porque precisamos descer ao seu
nível de compreensão.
Descer, rebaixar-se, inclinar-se, ficar curvado.
Estão equivocados.
— Não é isso que nos cansa, e sim, o fato de termos
de elevar-nos até alcançar o nível dos sentimentos
das crianças.
Elevar-nos, subir, ficar na ponta dos pés, estande a
mão.
Para não machucá-las.
221
da infância são anos de uma vida verdadeira e não anos
de uma vida por vir a completar-se no futuro, quando as
crianças tornarem-se adultas.
Que possamos respeitar cada dia mais as crianças,
os jovens e a literatura infantil e juvenil. Que possamos
entender cada estágio de vida como um estágio pleno e
cheio de sonhos e desejos. Que não tenhamos medo
no imaginário no poder e muito menos dos livros, dos
temas complicados ou tidos como polêmicos, pois viver
é polêmico. Que nenhum adulto tenha medo de encarar
a vida de frente e, consequentemente, de encarar os livros
que tratam da vida de forma aberta e sem rodeios.
Vamos educar nossas crianças e jovens para os
sentimentos e fazer deste mundo um mundo mais humano.
E que todos os seminários, simpósios e congressos de
literatura infantil e juvenil sejam pioneiros como esse
seminário foi, incluindo a criança e o jovem em sua
programação, pois teoria e prática andam de mãos dadas,
não nos esqueçamos disso. Nunca.
Referências
COLASANTI, Mariana. Depoimento. In: OLIVEIRA, Ieda de.
O que é qualidade em literatura infantil e juvenil? Com a
palavra o escritor. São Paulo: DCL, 2005.
FREUD, Sigmund. ‘Gradiva’ de Jensen e outros trabalhos.
Volume IX das obras completas. Tradução de Maria Aparecida Moraes
Rego. Comentários e notas de James Strachey. Colaboração de Anna
Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
HELD, Jacqueline. O imaginário no poder. Tradução de
Carlos Rizzi. São Paulo: Summus Editorial, 1980. Coleção
Novas Buscas em Educação.
KORCZAK, Janusz. Quando eu voltar a ser criança.
Tradução de Yan Michalski. Direção da coleção de Fanny
Abramovich. São Paulo: Summus Editorial, 1981. Coleção
Literatura infantil e juvenil
Nilma Lacerda
27
Em sua concepção inicial, este texto foi apresentado em mesa-redonda com
Marilda Castanha e mediação de Fabíola Farias, no Circuito Literário Praça
da Liberdade, realizado em Belo Horizonte, de 12 a 16 de novembro de 2014.
Na edição para o 7° Seminário de Literatura Infantil e Juvenil, buscou-se
desenvolver com mais consistência e propriedade certos conceitos.
feito para ela, com mais ou menos acertos, e realizam, às
vezes, tarefas admiráveis para alcançar esse desejo. Mas o
fato é que a criança não quer o livro infantil, não nasce
querendo. Produto cultural que depende das práticas de
uma sociedade, livro é muito diferente de chocalho ou
outro brinquedo. O chocalho ela quer, qualquer animal
quer: buliçoso, sonoro, atrai a curiosidade dos filhotes de
mamíferos.
O livro é um aprendizado, como andar, como viver
por muito tempo. Fiquemos com essas duas perspectivas.
Feitos quadrúpedes, resolvemos ser bípedes, quando na
ordem dos primatas nos estabelecemos na família dos
hominídeos. Aprendemos a colocar a coluna vertebral de
pé, com todos os danos físicos que isso possa acarretar ao
longo do tempo. Como aprendemos a viver muito, com
Literatura infantil e juvenil
225
feito boba, olhando com admiração aquela rosa
altaneira que nem mulher feita ainda não era.
E então aconteceu: do fundo do meu coração, eu
queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como
eu queria. (LISPECTOR, 1997, p. 68).
227
face voltada para o outro lado. Se já estão vendo a morte,
por que pedir um livro que fale dela? Porque veem-na e
não a veem. Porque não se sabe como é a morte. Criamos
ficções sobre a morte, mas o fazemos sem nenhuma certeza
sobre o acerto dessas criações. A morte só é científica do
ponto de vista físico. Do lugar da mente, desse lugar em que
dizemos eu, nada sabemos em verdade sobre a morte. Mas
o livro, o livro sabe.
Sabe da morte lenta das pitangas que não são colhidas,
sabe da morte lenta da criança que não tem afeto e experimenta
o frio. Sabe, e traz palavras, matéria de que somos feitos, para
consolar, como aquelas que Primo Levi busca em Dante e
traz ao companheiro no campo de Auschwitz (LEVI, 2000),
completamente desumanizados ambos.
229
E, tendo sentido a vida, terá sentido a morte? É do que
suspeito. Quanto a mim, em momentos da mais extrema
solidão, é aos livros que recorro. Entre tantos possíveis, a
Bíblia tem um lugar cativo. Uma coleção de livros reunidos
em um só volume, com variações editoriais conforme o
credo. Lá estão os romances, a poesia, a crônica, o didático,
o informativo. É na Bíblia que, pensando aprender o
divino, aprendemos o humano. No Ocidente, não há o que
tenha sido escrito que não tenha antes passado por lá: os
horrores, as sublimidades. O mesmo deve acontecer com
os livros sagrados de outras culturas.
Cada livro literário recorta sua parte de horror ou de
sublimidade e propõe ao leitor a partilha dessa condição,
mediada pelos personagens, seres construídos de palavras.
Ao acompanhá-los, criamos nossas próprias respostas
para o enigma da existência. Quando o protagonista de
Guilherme Augusto Araújo Fernandes (FOX, 1995)
pergunta aos outros personagens da narrativa o que é uma
memória, permite à leitora dizer: memória é o perfume
que fica quando a coisa passou. Permitirá tantas outras
respostas quantas forem as leitoras, os leitores.
Em nossa sociedade, a criança é o excedente. Não
conta para muita coisa, em verdade. Por isso, necessita
ser tão cuidada, protegida, falada em sua mudez. Porque
continua não falando: infante, do latim infans, ántis “[...]
que não fala, que tem pouca idade, novo, pequeno, criança”,
diz o dicionário Houaiss (2009). Conheço pelo menos três
casos em que um juiz, em famílias divididas, decidiu pela
criança, sem pedir a opinião dela sobre com quem gostaria
de ficar. Entre elas, Bernardo está perto de mim, e eu saberia
bem o que ele tinha a dizer, o que teria dito se tivesse sido
ouvido. Mas nem a doença, nem a internação ou os gritos
que dava fizerem com que fosse ouvido. De Bernardo,
Literatura infantil e juvenil
231
O livro infantil surge em época abastada, quando esse
excedente que é a criança pode ter livros pensados para
suas necessidades. Não só para mostrar belas gravuras,
contar peripécias sedutoras, mas para falar da existência,
do que é humano e pedir partilha, como a rosa no copo
d’água ou a pitanga na árvore.
A literatura para crianças e jovens – a literatura que
crianças e jovens também podem ler –, costumo dizer, não é
ainda reconhecida em grande parte pela academia, tal qual
a criança na sociedade. Tem sempre um juiz para dizer:
decido isso por você, em nome da lei. Em nome da lei,
nós, os adultos junto às crianças, poderíamos empreender
a tarefa difícil e trabalhosa de colocar os livros infantis ao
alcance delas, para que efetivamente os queiram. Tal qual
as pitangas de Clarice, permitir que cheguem a seu destino:
Referências
Literatura infantil e juvenil
233
As vozes da rua
na poesia de
Cecília Meireles28
Gloria Kirinus
28
Este texto foi publicado, originalmente, na Revista da Biblioteca Mário de
Andrade, São Paulo, v. 57, p 195, 1999.
Hoje, aqui, detenho-me sobre o canto ambulante,
quase anônimo do vendedor que anima as ruas com sua
voz que promete um pouco de tudo: utensílios, guloseimas,
frutas, flores e sonhos.
Quanta matéria-prima viva para o jogo de poetar era
jogada na rua para deleite da menina Cecília. Sim, a voz
que não quer desprender-se do canto, na voz do vendedor
ambulante, já se revela nessa infância, ávida de sons,
imagens, significados. Nenhuma voz se anunciava em
vão para os ouvidos naturalmente receptivos da criança
e da poeta. Como não guardar na memória, e no coração,
aquela voz especial? Aquela voz que vinha “[...] risonha,
leve, uma voz sem tormento” (MEIRELES, 1980, p. 47):
Sorvetinho sorvetão
Literatura infantil e juvenil
Sorvetinho de ilusão
Quem não tem duzentos réis
Não toma sorvete não.
Uma pausa de uns três ou quatro passos. Depois:
236
Sorrrrrrvete, iaiá!
Olha a fama do bom sorvete,
Sinhá.
Balangadim tá to`adinho...
237
São pregoeiros de verdades do ser, de verdades sentidas,
impossíveis de disfarçar; são aquelas verdades inseparáveis
da voz que denuncia e anuncia, na força da ação, sua
emoção mais secreta. Pregões que ora se desprendem
alegres e descontraídos e ora conotam sentimentos
contidos, quase recolhidos, tristes, tristes.
Muitos ecos dessa infância, que soube nutrir-se
das vozes da rua, podem ser recuperados pelo leitor de
poesia de Cecília Meireles. Em especial, em Ou Isto e Aquilo
(MEIRELES, 1990), a poeta traz de volta todo esse fascínio.
Basta observar o poema Pregão do vendedor de lima
(MEIRELES, 1990), que já se anuncia claro no título,
relevando na riqueza de sua poesia a oralidade residual
alojada no poema:
Lima rima
Pela rama
Lima rima
Pelo aroma
O rumo é que leva o remo
O remo é que leva a rima.
O ramo é que leva o aroma
Porém o aroma é da lima.
É da lima o aroma
A aromar?
É da lima-lima
Lima da limeira
Do ouro da lima
O aroma de ouro
Do ar!
239
normal, aguardam respostas. A resposta afirmativa do
leitor não se escuta, mas se pressupõe.
O jogo do comércio, da troca, da oferta e da
demanda são regulares e equivalentes nesse jogo de leilão.
Entre perguntas e respostas, bem-dispostas no jogo de
dísticos que rimam entre si, cumprem o papel principal
da cumplicidade de valores que cativam pelo pacto tácito
com o leitor e com a rima, a função da troca, do encontro,
do acerto.
O Leilão de jardim, de Cecília Meireles (1990), é tão
imaterial, disfuncional e nada utilitário, como aquele
sorvetinho de ilusão que transportava o leitor para o
universo mágico, quase inacreditável do anticonsumo.
A natureza da poesia é dialógica e plena de vozes, de
ecos, de rumores, de pregões. Tanto faz que ela se manifeste
em verso ou em prosa. Pouco importa que apareça em
contos, romances ou poesias. Antes de promover divisões
reducionistas, prefiro acreditar na natureza mito-poética
e integrada do ser humano. E prefiro compreender que
na linguagem reside a fonte natural da expressão poética.
Nesse sentido, é difícil aceitar o discurso monológico de
Bahktin (2000) em torno da poesia. Convido, portanto,
Meschonic (1990, p. 255-256) para ajudar-me a pensar
sobre este assunto:
241
Barca dos livros – uma
biblioteca com alma
Tânia Piacentini
245
destacamos:
a) A Escola Vai à Barca: a atividade ocorre todas as
quartas-feiras, de março a dezembro. Consta de
visita previamente agendada de turmas de alunos,
e dura cerca de uma hora, dependendo da faixa
etária dos visitantes. São três visitas, um grupo pela
manhã e dois grupos à tarde. A visita é dividida em
dois momentos; o primeiro, de leitura individual
ou em pequenos grupos e exploração do acervo;
logo após, o momento da leitura em voz alta ou de
narração de histórias. O primeiro momento serve
para que as crianças explorem o acervo da biblioteca
autonomamente, folheando os livros e lendo as
ilustrações e os textos ou ouvindo a leitura feita pelo
mediador. Esse período é variável, de acordo com a
idade e interação de cada grupo, e sua importância
reside na proximidade com o livro. Nessa etapa,
participam todos os mediadores de leitura, aqui
considerados os professores e demais acompanhantes
das crianças (estagiários, pais e outros), bibliotecária
e contadores de histórias da Barca dos Livros. O
segundo momento, de leitura em voz alta e narração
de histórias, fica a cargo da equipe da Barca. Os livros
e as histórias são preparados de acordo com a faixa
etária de cada grupo (as escolas recebem documento
de orientação aos professores e acompanhantes
dos alunos e trazem autorização de uso de imagem
para divulgação do evento; as crianças, professores
e acompanhantes recebem orientação impressa para
fazerem carteirinha de leitor).
b) Núcleo de Estudos e Pesquisas em Literatura: análise
do acervo, crítica de livros, produção de resenhas,
comentários e textos sobre as obras literárias.
Literatura infantil e juvenil
247
dos Livros expressa-se nos sorrisos dos leitores, na alegria
das crianças, na emoção das pessoas de todas as idades
que participam de nossas atividades e que vêm à barca
para buscar livros, trocar impressões, enfim, participar
do encantamento e afetividade que o mundo dos livros
empresta à vida cotidiana.
Sobre as autoras
e os autores