Alice No País Da Mentira

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PEDRO BANDEIRA

PEDRO BANDEIRA
Depois de brigar com seu melhor amigo, Alice
viaja ao maluquíssimo País da Mentira, desco-
brindo que as mentiras não são todas iguais.
Há algumas até engraçadinhas, como a Men-
tira Caridosa, mas outras horrorosas, como a

ALICE NO PAÍS DA MENTIRA


Calúnia e a Mentira Cabeluda. Fugindo desta,
Alice acaba chegando ao País da Verdade e
ali descobre que falar a verdade nem sempre
é bom: há algumas, como a Verdade Absolu-
ta, que podem ser tão feias quanto a Mentira
Cabeluda! Depois de muito humor, confusões,
perigos e descobertas, a menina volta pra casa
tendo aprendido a importância do perdão...

Ilustrações
Osnei Rocha

MANUAL DO PROFESSOR

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f!)PITA NGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS

- EDITORA
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� PITANGUA
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MANUAL DO PROFESSOR

PEDRO BANDEIRA

ALICE NO PAÍS
DA MENTIRA

Ilustrações Osnei Rocha


1 a EDIÇÃO, 2018

Professor,
confira no final
do livro a seção
s”
“Para saber mai

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© PEDRO BANDEIRA, 2018

COORDENAÇÃO EDITORIAL Maristela Petrili de Almeida Leite


EDIÇÃO DE TEXTO Marília Mendes
COORDENAÇÃO DE EDIÇÃO DE ARTE Camila Fiorenza
DIAGRAMAÇÃO Isabela Jordani, Cristina Uetake
ILUSTRAÇÕES DE CAPA E MIOLO Osnei Rocha
COORDENAÇÃO DE REVISÃO Elaine Cristina del Nero
REVISÃO Andrea Ortiz, Renata Brabo
COORDENAÇÃO DE BUREAU Rubens M. Rodrigues
PRÉ-IMPRESSÃO Everton L. de Oliveira, Vitória Sousa
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO INDUSTRIAL Wendell Jim C. Monteiro
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
LOTE

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Bandeira, Pedro
Alice no País da Mentira : manual do professor / Pedro
Bandeira ; ilustrações Osnei Rocha. – 1. ed. – São Paulo :
Editora Pitanguá, 2018.

ISBN 978-85-60805-77-8

1. Literatura infantojuvenil I. Rocha, Osnei. II. Título.

18-17836 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura infantojuvenil 028.5
2. Literatura juvenil 028.5

Cibele Maria Dias – Bibliotecária – CRB-8/9427

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Todos os direitos reservados

EDITORA PITANGUÁ LTDA.


Rua Padre Adelino, 758, sala 4 – Quarta Parada
São Paulo – SP – Brasil – CEP 03303-904
2018

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lissa,
Para Me lia

Michele, ,
e Beatriz .
etas
minhas n

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SUMÁRIO

1. A calúnia calunienta 8

2. Diga a mentira! 15

3. Verdade é uma mentira mal contada 21

4. Mentiras de todo jeito 27

5. A Boa Mentira 34

6. O Zoológico das Piores Mentiras 40

7. A Mentira Cabeluda 47

8. Uma Verdade de peso 54

9. Verdade de guarda-chuva 59

10. Tem gente que não gosta de ouvir a Verdade 65

11. O ataque da Dúvida 71

12. A cueca do seu avô subiu no telhado 77

13. O Calabouço das Piores Verdades 87

14. A melhor e a pior comida do mundo 94

15. O biscoito de chocolate 103

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Apresentação
dos personagens
Alice Barão Mimi
É uma menina cheia de ou Barão de
ideias, quer saber de tudo Minch-ráuzen
e vive inventando novas Esse é o comandante
brincadeiras, novos mundos. do País da Mentira.
Mas está muito zangada com Mente tanto que
Juninho, seu melhor amigo. deixa Alice maluca!

Juninho
Vizinho e melhor
amigo de Alice.
Os dois brincam
juntos e o garoto
nem sabe por que
sua amiga está
brava com ele.

A Boa Mentira
A Mentira Cabeluda Essa daí só mente pra fazer
Esta é mais horrível do que bem às pessoas, e por
o pior dos pesadelos! Todo isso todo mundo gosta das
mundo foge dela! mentirinhas dela!

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Sábio Didi ou
Diógenes de Sínope
Além de sábio, é muito simpáti-
co, embora só tenha mãos direi-
tas. Sabe tudo, tudinho mesmo!

Bruxa da Dúvida
Que horror de bruxa! Voa
numa vassoura e seus
ataques são destruidores! As
pobres das Verdades têm de
viver fugindo dessa malvada!

Filósofo Totó ou
Filósofo Aristóteles
Esse daí é tão importante
que nem aparece nesta
história!

Verdade Absoluta
É tão horrorosa que todo mun-
do prefere ouvir uma mentira
mais ou menos cabeluda a se-
quer ouvir falar dessa verdade!

Cozinheira da
Duquesa
Essa vive cozinhando o
tempo todo e tem uma boa
receita para biscoitos de
fazer as pazes.

E mais algumas Verdades e uma


porção de Mentiras!

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1 A CALÚNIA
CALUNIENTA

Eu queria que você conhecesse a Alice.


A Alice, assim nos seus melhores dias, com a corda
toda, perguntadeira, cheia de ideias, sempre disposta a
inventar alguma nova maneira de ser feliz. Não a Alice
deste dia, assim tão triste e tão zangada.
Por que ela está assim tão triste e tão zangada? Por-
que ela foi caluniada.
Pobre Alice! Até aquele dia ela nem tinha ideia do que
significasse a palavra “calúnia”, mas acabou recebendo a
calúnia em cheio, bem no rosto, como uma bofetada.
“Ai, que calúnia mais calunienta!”, remoía ela.
E foi caluniada no quintal da Casa da Vovó, justo
o lugar onde ela mais gostava de estar, de inventar, de
dividir alegrias com o Juninho, seu melhor amigo, que
morava bem ao lado. Qual foi a calúnia? Nem vou con-
tar. Basta você ficar sabendo que o Juninho acusou Ali-
ce de ter feito uma coisa bem feia, coisa que ela nunca
fez nem nunca faria. Entendeu? Então basta você ima-
ginar agora alguma calúnia bem horrorosa que alguém
poderia fazer pra você, porque a calúnia do Juninho foi
exatamente igual à que você pensou.
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Como? Você também não sabe o que quer dizer “ca-
lúnia”? Deixa ver... Hum... Eu acho que é um tipo de
mentira que... Bom, acho que não sei direito... Olha, é
melhor nós dois passearmos junto com a Alice nesta
história pra ficar sabendo. Vamos lá.
Pobre Alice! A surpresa dela foi tão grande ao ouvir
essa mentira (justo vinda da boca do Juninho!) que ela
nem tentou se defender, nem saiu aos berros, chamando
o Juninho de mentiroso. Não. O que ela fez foi entrar na
Casa da Vovó, calada, vermelha como um tomate. Ela
queria fugir de tudo.
Pra onde fugir? Lugar melhor não poderia haver do
que o Sótão da Casa da Vovó.
O que é “Sótão”? Bom, eu nunca estive em nenhum,
mas já ouvi falar. É um lugar que quase não existe mais,
só em casa de velhinhas. É um espaço grande, entre o
forro e o telhado, onde as velhinhas deixam suas lem-
branças ficarem cobertas de poeira.
Chegar ao Sótão era fácil: no andar de cima da Casa
da Vovó, no final do corredor, uma pequena escada leva-
va a um alçapão que se abria para o Sótão, um lugar mal
iluminado, cheio de móveis sem uso, pacotes, caixas,
tudo bem empoeirado.
Alice sabia há muito tempo da existência daquele
lugar, mas nunca tinha decidido xeretar ali. Desta vez,
porém, ela pensou que aquele seria um bom lugar pra se
ficar só. Não subiu lá pra chorar. Ela só queria ficar so-
zinha um pouco, pra pensar na mentira do Juninho. Na
calúnia. Não, ela não achava que o Juninho era o ­culpado
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pela mentira. Aos poucos, ela foi chegando à conclusão de
que a mentira do Juninho é que era a culpada.
– Ah, se eu pudesse, eu esganava essa mentira!
Bom, esganar de verdade acho que ela não esgana-
ria, pois tinha aprendido que esganar significa apertar
um pescoço até o dono do pescoço perder a respiração.
Isso ela não queria, pois a mentira do Juninho não
respirava – ela ca-lu-ni-a-va, o que era muito pior.
No Sótão, no meio dos trastes, lá estava um espe-
lhão refletindo a Alice e boa parte dos trastes espalha-
dos pelo Sótão. Quase encostado no Espelho, havia um
grande Baú todo cheio de taxões e enfeites de metal que
teriam sido dourados um dia, mas que já estavam escu-
recidos. Devia ter-se passado mesmo um tempão pra es-
curecer tanto dourado.
Alice sentou-se no chão, sobre as tábuas empoeira-
das. Abraçou as pernas e ficou remoendo a mentira do
Juninho, aquela coisa horrorosa, feia mesmo.
“Ah, que mentira cabeluda!”
Do outro lado, dava pra ver o Sótão do Espelho,
igualzinho ao Sótão da Vovó. Só que tudo ao contrário.
Na parede do Sótão do Espelho, ela viu um quadrinho
pendurado, onde estava escrito “Lar doce lar” e, no seu
lado, no Sótão da Vovó, no quadrinho pendurado esta-
va escrito:

ral ecod ral


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“Não deveria ser ao contrário?”, estranhou a meni-
na, mas logo se esqueceu daquilo e pôs a mão no fecho
do Baú.
“Ah, se eu pegasse a mentira do Juninho!”
O que haveria dentro do Baú? Bom, se ela desse
uma espiadinha, acho que não faria mal algum, até
porque, pelo jeito, como a Vovó era velhinha mesmo, há
muito tempo não subia no Sótão pra fuxicar dentro do
Baú. Fuxicar era com a Alice.
O fecho abriu-se facilmente, logo que Alice me-
xeu nele. Levantou a tampa, com esforço. Lá dentro, só
viu uma porção de roupas velhas. Foi aí que ela perce-
beu uma luz fraquinha, azulada, logo ao seu lado. Olhou
para o Espelho. Lá estava o Baú do Sótão do Espelho,
também de tampa aberta. Era de dentro do Baú do Es-
pelho que vinha a luz!
“Que coisa mais estranha...”, estranhou ela, lem-
brando-se de que também tinha estranhado a frase
invertida do quadrinho. Estava até estranhando tanta
estranheza.
Estendeu o dedo, devagar, para o Espelho...
Mais uma coisa estranha! A face do Espelho era
mole como gelatina, não dura como devem ser os es-
pelhos.
“Ah, aí dentro do Baú do Sótão do Espelho acho que
tem coisas maravilhosas de encontrar!”
Estendeu o braço, que atravessou molemente a face
do Espelho. Em seguida enfiou a cabeça e logo se viu do
outro lado.
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Na bagunça do Sótão, encontrou jogados pelo chão
um grande baralho de cartas e um tabuleiro de xadrez,
com todas as suas peças espalhadas. Depois, uma cai-
xa cheia de fotografias. Fotos antigas, amareladas. Uma
delas mostrava uma menina de cabelo escorrido como o
dela, descalça, encostada em um muro todo manchado
e com um vestidinho branco, bem antigo. A menina era
a cara da Alice.
E o Baú do Sótão do Espelho? Quanta coisa tinha lá
dentro! Roupas de alguma menina assim da idade dela,
mas de um tempo em que roupa de menina era cheia de
babados e laçarotes. Havia até um chapéu todo enfeita-
do, cheio de plumas, que coube direitinho na cabeça da
Alice.
Encontrou uma pilha de livros. Bonitos, coloridos,
de histórias. Alice abriu o primeiro. Estava escrito em
inglês e você pode escolher: ou esta história se passa
na Inglaterra, ou a Vovó da Alice era neta de alguma
inglesa que tinha se mudado para o Brasil há muito
tempo.
Junto das roupas embabadadas, havia um aven-
talzinho com um bolso do lado. Alice experimentou o
avental por cima de sua calça e blusa modernas. Com
o avental e com o chapéu, mirou-se no grande Espelho
e achou-se uma coisa mais ou menos assim como duas
pessoas, uma antiga e uma moderna.
“Como alguém pode viver no antigamente e no hoje
em dia ao mesmo tempo? Bom, acho que é só querer,
não é?”
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Continuou remexendo no Baú. Havia uma garrafi-
nha com uma etiqueta amarrada no gargalo, onde esta-
va escrito “Beba-me”. Mas nada havia dentro dela pra
beber. Logo achou uma caixinha onde estava escrito
“Coma-me” na tampa. Mas também estava vazia.
Descobriu uma pimenteira que também trazia uma
etiqueta: “Pimenta da Cozinheira da Duquesa”.
“Quem será essa Duquesa?”, cismou a menina. “E
por que a cozinheira dela veio guardar esta pimenteira
justo no Baú da Vovó?”
A pimenteira não estava vazia e, ao ser sacudida
quando a menina a tirou do Baú, pelos buraquinhos da
tampa saiu uma nuvenzinha de pimenta em pó. E a nu-
venzinha flutuou até atingir o nariz da Alice!
E, quando pimenta em pó entra por algum nariz
adentro, o que acontece é um...
– ... AAAA...
... um grande...
– ... AAA...
... bem grande...
– ... AAA ...
... maior ainda...
– ... AAAATTTCHIMMMM!

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2 DIGA A
MENTIRA!

Você já viu alguém espirrar de olhos abertos? É cla-


ro que não. Pra espirrar, todo mundo fecha os olhos bem
fechados, bem apertados, não é? Pois foi isso que Alice
fez. Mas, quando abriu novamente os olhos...
Estava num lugar muito diferente do Sótão do
­Espelho!
Diferente como? Diferente demais, pois Alice viu-
-se dentro de uma caverna! Uma caverna úmida, al-
tíssima e larguíssima, iluminada apenas por algumas
lanternas penduradas ao longo das paredes de pedra.
Ao seu redor, percebeu uma porção de pequenos
movimentos, uma agitaçãozinha que logo desapareceu
pelas escuridões em volta, atrás das pedras, em cada bu-
raco ou desvão que houvesse. Dos cantos onde a agitação
havia desaparecido, Alice ouvia uma porção de murmú-
rios. Um coro de cochichos.
Não sentiu medo nenhum. Ela não era de sentir
medos assim, só por causa de uma coisa boba como de
repente ter saído de um sótão empoeirado e ver-se no
meio de uma caverna escura, cercada por uma multidão
de cochichadores misteriosos.

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E perguntou bem alto, para os murmúrios ouvirem:
– Quem é que está se escondendo por aí e ­cochichando
ao mesmo tempo? É brincadeira de esconde-esconde?
Pois pra brincar de esconde-esconde a gente tem de ficar
bem quietinho no esconderijo, senão a brincadeira não
tem graça.
O eco de sua voz reboou pelas paredes de pedra.
Os cochichos pararam por um segundo e logo voltaram,
ainda mais excitados, como se discutissem alguma coi-
sa entre eles. Eles? Quem eram esses “eles”?
– Quem são vocês? – perguntou Alice, falando
bem alto.
Os cochichos pararam e uma voz veio do fundo da
caverna:
– E quem não é você?

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– Quem eu não sou? Eu não sou uma porção de gen-
te. Sou uma só. Eu sou Alice.
– Alice? – continuou a voz. – Que tipo de Mentira
não se chama Alice?
– Tipo de mentira?! Que história é essa? Eu não sou
mentira nenhuma. Sou uma menina.
Dos cantos, de todos os vãos e esconderijos, várias
figuras começaram a aparecer. Mas continuaram a dis-
tância, ressabiadas, estranhando a recém-chegada. Mes-
mo de longe, Alice notou que se tratava de uma porção
de gentes, de gentinhas e de gentonas, mas umas gentes
estranhas, cada uma diferente da outra. De comum, só
tinham duas coisas: todas exibiam narizes compridos e
pernas muito curtas, tão curtas que os pés vinham quase
logo depois da barriga, como os pinguins.
À frente das gentes, destacou-se um personagem
narigudo, de bigode espetado, roupa antiga cheia de ga-
lões e com um chapéu de três bicos. Suas pernas eram
curtinhas e segurava uma velha lanterna.
– Entendi. Agora diga a mentira.
Alice achou que seria mais educado chamar aquele
engalanado tão pomposo de “senhor” e corrigiu:
– O senhor quer dizer “diga a verdade”, não é?
– Ora, você não entende de lógica? – devolveu o enga-
lanado. – Se você é uma mentira, está mentindo quando
diz que se chama Alice e que é uma menina. Pra saber
quem você é, eu tenho de pedir que você fale a mentira,
porque assim você será obrigada a fazer o contrário, que
é falar a verdade, porque você é uma mentira ­mentirosa,
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e nós ficaremos sabendo que tipo de mentira você é. Isso
porque, se você for uma verdade, é nossa inimiga e temos
de botar você pra fora daqui.
– Não estou entendendo nada – protestou Alice. – O
senhor deve ser o chefe de todos, não é? Quem é o senhor?
– Eu não sou o chefe e não sou o Barão de Minch-
-ráuzen, e você não pode me chamar de Barão Mimi.
Alice fez um “puf” de chateação:
– Eu não perguntei quem o senhor não é. Já sei que
o senhor não é qualquer pessoa que eu já vi antes. Quero
saber quem o senhor é.
– Eu sou uma verdade.
Alice entendia cada vez menos:
– Uma verdade? Mas o senhor não disse que as ver-
dades são suas inimigas?
– Não disse.
“Vim parar numa terra de malucos!”, pensou a
menina. “Bom, se eles são loucos, eu tenho de fazer o
que ele pediu: pensar com a lógica dos loucos. Pra mim,
que não sou nem um pouquinho louca, é lógico que esse
sujeito é um grande mentiroso. Hum... deixe-me ver...
Ele me mandou ‘falar a mentira’ e disse que eu sou uma
mentira que precisa ser mandada falar a mentira pra
ser obrigada a falar a verdade verdadeira. Acho que é
isso. Vou jogar o jogo dele.”
Voltou-se para o engalanado e ordenou:
– Diga a mentira, toda a mentira, somente a menti-
ra, nada mais que a mentira. Quem é o senhor? Quem
são vocês? Que lugar maluco é este?
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O engalanado tirou um lenço rendado da manga do
casaco e enxugou a testa:
– Muito bem, eu sou o governador de todas as mentiras
do País da Mentira. Sou o famoso Barão de M
­ inch-ráuzen,
mas você pode me chamar de Barão Mimi.
A boca de Alice não se escancarou como a minha
se escancararia se, de repente, eu estivesse em uma ca-
verna escura e úmida, em pleno País da Mentira e na
frente do mentiroso-chefe, porque Alice não era de se
escancarar à toa:
– E por que vocês estavam querendo brincar de es-
conde-esconde comigo?
– Nós, as Mentiras, vivemos brincando de esconde-
-esconde, porque mentira vive escondida. É por isso que
moramos nesta caverna, porque mentira tem de se es-
conder em esconderijos, senão todo mundo descobre.
Esconde-esconde é conosco mesmo. A gente só não
pode brincar direito é de pegador.
– Por quê?
– Porque mentira tem perna curta e todo mundo
pega a gente fácil, fácil.

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3 VERDADE É
UMA MENTIRA
MAL CONTADA

Alice estava começando a achar que a maluquice


do Barão até que tinha a sua lógica. A menina começava
a entender que a coisa era bem simples: bastava fazer
aquele pessoal falar mentira falando a verdade. Ou falar
a verdade falando mentira, ou... sei lá. A Alice estava
entendendo direito. Eu é que não entendi nada!
– Quer dizer, então, Barão Mimi, que todas essas
gentes estranhas daqui são mentirosas?
A expressão do Barão mudou e o mentiroso veio
com esta:
– Não. Essas pessoas são incapazes de dizer uma
mentira. Aqui tudo o que se diz é verdade verdadeira.
– Como?!
– Você jamais ouvirá uma mentira por aqui. Eu, por
exemplo, quando estava caçando nas estepes da Rússia,
encontrei de repente um lobo que abria a boca, faminto,
prestes a pular em cima de mim. Mas minha espingarda
estava descarregada. Foi então que eu...
“Ai, ai, ai!”, pensou a menina. “Pelo jeito, a ordem
que eu dei pra que ele parasse de mentir como um ­doido
já perdeu o efeito...”
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E reforçou:
– Barão Mimi: diga a mentira, toda a mentira, so-
mente a mentira, nada mais que a mentira.
Na mesma hora, a expressão do Barão voltou ao
normal (ou ao anormal, sei lá!) e ele mudou o discurso:
– Isso. Todos nós somos mentiras. E olhe que toda
hora aparece por aqui alguma mentira nova, como você.
O que esse povo inventa de mentira você não faz ideia!
Por isso, temos por aqui todo tipo de mentira. Mentiras
diferentes, mentiras de todo jeito.
– Ora, Barão! Mentira é sempre igual. É uma coisa
feia, muito ruim, muito má!
– Espere um pouco, menina, espere um pouco.
Você ainda não viu nada, se pensa que mentira é só coi-
sa feia. Eu sei que, lá no mundo das gentes que pregam
mentiras e nos inventam, todos são hipócritas e vivem
falando mal de nós, as Mentiras. Mas dizer a verdade
nem sempre é possível. A vida, só com a Verdade, torna-
-se insuportável!
– Não! – impacientou-se a menina. – Só a Verdade
é lógica! Só a Verdade é justa! Vocês não sabem o que é
a Verdade!
– Sabemos sim!
A discussão entre os dois começava a esquentar
e várias Mentiras em volta começaram a cercar Alice,
palpitando.
– Sabemos sim! Sabemos sim! Sabemos sim!
Uma delas, com cara de menino travesso, puxou
Alice pela manga e disse, rindo:
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– Verdade é uma Mentira mal contada!
Outra, com cara de cigana, virou Alice para o seu
lado e afirmou, cara a cara:
– Verdade é a Mentira que está acontecendo!
Uma mentira engraçada, igualzinha a uma bone-
ca de pano, puxou o avental de Alice, fazendo a menina
baixar a cabeça para ouvi-la:
– Verdade é uma Mentira bem pregada, dessas que
ninguém desconfia!
Pelo jeito, eram todas as Mentiras contra Alice,
mas ela não se entregava, porque não conseguia se es-
quecer da mentira do Juninho:
– Vocês estão querendo é me confundir! Mentira é
uma coisa que faz mal às pessoas!
O Barão afastou delicadamente as Mentiras que
cercavam Alice e continuou, com a calma de um pro-
fessor:
– Ora, Mentira Alice, nós não queremos fazer mal
às pessoas. Podemos até ajudá-las!
Alice não aceitou:
– Ajudar?! Mentiras prejudicam, não ajudam!
O Barão sacudiu a cabeça, insistindo:
– Raciocine comigo: já pensou se os jogadores de
cartas não usassem o Blefe?
– Blefe? O que é isso?
– É aquele ali, veja!
Alice viu um sujeito de bigode fininho e colete
­colorido, com as pontas de uma porção de cartas de
­baralho aparecendo em todos os bolsos.
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– O Blefe – continuou o Barão – é uma mentirazinha
desafiadora que serve pra fazer os adversários pensarem
que o blefador tem nas mãos um jogo melhor do que o
deles, caem no engano e acabam perdendo a partida.
Alice tocou o queixo com um dedo, pensou um
pouco e respondeu:
– Bom, quando eu jogo mico-preto com o Juninho e
os outros amigos, eu sempre finjo que o mico não está co-
migo para o Juninho pensar que o danado está na mão
de algum outro jogador. Isso é um blefe?
– É exatamente isso.
– Nesse caso, acho que os jogos de carta iam perder
toda a graça sem o senhor Blefe...
– É claro! E já pensou se as crianças reinadoras
sempre confessassem suas peraltices?
– Hum... Aí, todas as crianças iam ter de ficar de
castigo o tempo todo...
– Que coisa mais triste, não é? – continuou o Barão.
– E já pensou se os médicos dissessem sempre a verdade
para seus pacientes que estão prestes a bater as botas?
Verdades do tipo “Mas com que cara mais pálida o se-
nhor está! Garanto que não passa de hoje à noite!”.
– Coitados! – lamentou a menina. – Aí os moribundos
iam calçar as botas do desespero antes de bater as outras...
– Está vendo? Você tem de concordar comigo que as
mentiras podem ser uma escolha muito boa. E já pensou se...
Alice achou que o Barão estava tentando enganá-la,
na certa porque o efeito da ordem de dizer a m
­ entira já
estivesse enfraquecendo, e reforçou:
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– Não me enrole, Barão Mimi! Diga a mentira, toda
a mentira, somente a mentira, nada mais que a mentira!
– Eu não estou falando verdade nem mentira, Men-
tira Alice. Eu estou ar-gu-men-tan-do!
– Pois eu não aceito esses argumentos. Mentira é o
contrário da verdade e pronto!
– Que nada! As mentiras são diferentes como as
pessoas são diferentes. Aqui, no esconderijo do País da
Mentira, tem a mentira que você quiser.
Alice não tinha se esquecido da mentira do Juni-
nho e reclamou:
– Eu não quero mentira nenhuma, Barão Mimi. Só
estou interessada num tipo de mentira. É uma mentira
horrível, uma mentira que...
– Não, não, não! Não escolha ainda, sem ter co-
nhecido todas nós. Você vai ficar até tonta com a nossa
­variedade!

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4 MENTIRAS DE
TODO JEITO

O Barão levantou um pouco mais a lanterna, ilumi-


nando melhor a menina, e falou, bem alto:
– Queridas Mentiras, quero apresentar uma nova
Mentira que foi inventada ainda agorinha. O nome dela
é Alice. A Mentira Alice, que é bem bonitinha, não deve
prejudicar ninguém.
As gentes, as gentinhas e as gentonas já estavam
por ali mesmo e não faziam outra coisa senão examinar
a recém-chegada. E a recém-chegada pôs-se a observar
atentamente aquele povo tão estranho: havia uns feiosos,
barbudos, e outros até pareciam pessoas comuns. Havia
alguns bonitinhos, como um bebê de pernas curtinhas
que era a cara do Juninho, se o Juninho ainda fosse
um bebezinho.
– Mas, Barão Mimi, mentira é coisa feia. Aqui tem
umas que não são lá essas belezas, mas mentira tem de
ser muito pior que isso. Por que vocês não são tão feios
como as mentiras devem ser? – perguntou a menina.
– Ora, Alice! Quando eu estava lutando na Guerra da
Crimeia e os russos avançavam com seus canhões, eu...
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“Ai, ai, ai!”
– Diga a mentira, toda a mentira, somente a ­mentira,
nada mais que a mentira.
Imediatamente, o Barão mudou o assunto:
– Como eu ia dizendo, não são todas as mentiras
que são feias. Ah, não! Depende da mentira – e o Barão
apontou um deles, com cara de gaiato. – Examine, por
exemplo, nosso amigo ali.
– Aquele que não para de rir? Quem é ele?
– É o Primeiro de Abril. Vive fazendo brincadeiras,
mas tudo coisa pequena, sem má intenção nenhuma. É
parente da Potoca, aquela ali, miudinha, que só preten-
de divertir.
– E aquele ali, com cara de bobo?
– Aquele é o Engano. É parente da Bobagem. Gente
boa, que não faz mal a ninguém. É como o Mal-Entendi-
do, que, no fundo, não passa de um distraído.
A atenção de Alice foi atraída por uma outra, uma
mulherzinha que batia com a palma da mão na testa a
toda hora.
– Estranhou essa? – riu-se o Barão. – Essa é a Gafe. É
casada com o Fora. Nem são bem mentiras. A Gafe, por
exemplo, é sobrinha do Engano. Todos uns bobalhões!
Havia duas mentiras ridículas, com línguas com-
pridas, que não paravam de cochichar uma no ouvido
da outra. O Barão apresentou-as, com um sorriso:
– Essas são quase gêmeas. Uma é a Fofoca e a outra
é o Fuxico. São quase iguais, mas têm de tomar cuidado...
– Por que cuidado?
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– Porque, se exagerarem nas fofocas e nos fuxicos,
elas podem virar uma mentira muito perigosa... Bom,
mais tarde você vai ficar sabendo.
Antes que Alice insistisse pra ficar sabendo em que
as duas se transformariam, uma mentira com cara de
boba tropeçou e estatelou-se no chão.
– Ha, ha! – riu-se o Barão. – Essa é uma estabanada!
É a Patacoada! Ninguém acredita nela. É igual à Lorota,
uma brincadeirinha à toa!
– E aquela ali?
A menina apontava para uma gordona, toda altiva,
supermaquiada e empetecada como se estivesse pronta
para o Baile da Cafonice.
– Aquela? Oh, ninguém simpatiza com ela. É a Ma-
dame Vanglória. Pensa que é melhor do que as outras!
Ela até tem um filho. É aquele jovenzinho ali, todo em-
polado. O nome dele é Bravata. Vive se bacaneando!
No fundo do grupo havia uma figura com jeito de
professora, vestindo uma túnica branca. Conversava
com outra mulher, que tinha um olhar sonhador e a
toda hora mergulhava uma pena de ganso num tinteiro
e punha-se a escrever num caderno bem grande. O Ba-
rão notou que Alice examinava as duas e apresentou-os:
– Essas são duas joias do País da Mentira. Aquela
com cara de grega é a Fábula e a outra é a Ficção, que
vive criando todo tipo de história, de conto, de poesia, de
novela, coisas assim.
Alice aproximou-se da personagem que escrevia
com a pena de ganso e notou que escorriam lágrimas
em seu rosto.
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– Diga a mentira – ordenou, já se prevenindo de
mais alguma maluquice. – Por que a senhora está cho-
rando?
– Não estou chorando – respondeu a escrivinhadora,
sem parar de escrever. – Estou escrevendo um poe­ma
muito triste e tenho de fingir tão completamente, que
chego a fingir que é dor a dor que deveras sinto...
“Ai! Nem adiantou mandar que ela falasse a menti-
ra...”, concluiu a menina. “Até falando a verdade essa tal
de Ficção vem com maluquices!”

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O Barão comentou:
– Está vendo, Mentira Alice? Nem esta nem a Fá-
bula dizem a verdade, assim, na batata, pois tudo o que
elas contam não aconteceu.
Alice discordou:
– Ora, mas fábulas e histórias não são mentiras!
São coisas inventadas pra agradar os outros. Eu adoro
histórias e acho um desaforo chamar isso de mentira!
– Não é mesmo? – concordou o Barão. – Mas, como
o que elas dizem é tudo inventado, as pobres têm de vi-
ver aqui, no País da Mentira.
– Pois eu acho isso uma coisa muito errada – pal-
pitou a menina. – Em vez de morar no País da Mentira,
essas senhoras deviam se mudar para o País da Ima-
ginação, onde elas ficariam muito mais confortáveis do
que nessa caverna maluca!
O Barão fez um gesto com a cabeça, concordando:
– Você disse “Imaginação”? Então isso é com aque-
la menina ali. Veja.
O que Alice viu foi uma garotinha que flutuava no
ar, como um anjo, feliz da vida, sempre contente.
– E que tal esta outra? É a Imaginação das Crian-
ças. O nosso xodó.
A menininha Imaginação era uma doçura mesmo,
e Alice aproveitou pra apontar para o bebezinho que era
a cara do Juninho:
– E este, Barão?
– Outra doçura, Alice. Esta é a Mentira Inocente.
A gente se diverte demais com ela, e todo mundo quer
pegar a Mentira Inocente no colo.
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Alice olhou bem para o bebezinho e franziu as so-
brancelhas:
“Será?...”
Mas seu pensamento foi interrompido pelo Barão
Mimi, que apresentava uma senhora, toda enrugadinha,
de touca e saia rodada, com os olhos mais bondosos que
Alice já tinha visto.
– Veja esta, Mentira Alice. É o Conto de Fadas!
Alice olhava fascinada para a aparição sorridente
do símbolo de tantas histórias emocionantes que a Vovó
sabia contar, enquanto o Barão continuava:
– Já sei que você vai dizer que Conto de Fadas não é
mentira, Mentira Alice. Mas gente adulta vive sorrindo
com superioridade e dizendo que lobos que falam com
meninas de chapeuzinho vermelho e mocinhas que dei-
xam o cabelo crescer mais que a altura de uma torre não
passam de bobagens. E, se a Bobagem tem de viver aqui,
no País da Mentira, o Conto de Fadas também, não é?
– Não é não, Barão Mimi – protestou Alice. – Boba-
gem é dizer que Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel são
bobagens!

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5 A BOA
MENTIRA

A cara do Barão, como já vinha acontecendo de


vez em quando, mudou completamente, e o engalana-
do personagem empolou-se, retomando suas velhas
mentiras:
– Aproveitando a ocasião, agora eu queria lhe con-
tar sobre o dia em que os russos estavam bombar­deando
nossas tropas na Guerra da Crimeia e eu tinha de atra-
vessar as linhas inimigas pra pedir reforço ao nosso ge-
neral. Daí, como eu vi uma bala saindo de um de nossos
canhões, não tive dúvida: agarrei-me na bala e...
“Ai, ai, lá vamos nós de novo!”
– Diga a mentira, toda a mentira, somente a menti-
ra, nada mais que a mentira.
– Como eu ia dizendo, nós somos mesmo muito dife-
rentes. Eu, por exemplo, além de Barão de ­Minch-ráusen
sou conhecido como a Bazófia, um tipo de mentira que se
conta pra todo mundo pensar que a gente é mais do que
realmente é.
Nessa hora, Alice percebeu uma senhora, com a
cara mais bondosa do mundo, dizendo para a exagerada
Mentira Vanglória:
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– Como a senhora está elegante! Como está bonita!
O Barão notou que Alice sorria vendo a senhora
mentir para a outra, que suspirava com o elogio, feliz da
vida, e explicou:
– Esta senhora é muito querida por aqui, Mentira
Alice. É a Mentira Caridosa.
– Caridosa? Não entendi...
– É fácil: vamos dizer que a sua vizinha acabou de
ganhar nenê. Mas um nenê – sabe? – do tipo feinho, todo
amassadinho, de orelha de abano, mais parecendo um
joelho enrugado. E lá vem sua vizinha, toda lampeira,
mostrar o filhinho pra você. O que você vai dizer? Acha
que é justo dizer a verdade: “Mas que porcaria de bebê a
senhora tem”?
Alice torceu o nariz:
– Ora, é claro que não! Num caso como esse, eu ia
fazer um agradinho no queixo do bebê e dizer “Mas que
gracinha! Bilu-bilu-bilu!”.
O Barão riu-se às gargalhadas:
– Ha, ha! Está vendo? Nessa hora você usa os servi-
ços de nossa amiga ali, a Mentira Caridosa!
Alice teve de confessar que o Barão estava certo:
– É... acho que várias vezes eu usei essa Mentira Ca-
ridosa. Semana passada, minha tia apareceu em casa de
roupa nova, uma blusa roxa com bolas cor de abóbora
e uma calça verde-alface, toda justa. A coitada veio se
exibindo, crente que estava elegantérrima e... o senhor
sabe o que eu tive de dizer?
– Acho que sei...
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– Eu tinha vontade de dizer que ela estava horro-
rosa, mas engoli em seco e disse: “Mas como a senhora
está... hum... elegaaaante, tchi-tchi-a...”
– Está vendo? Você é uma Mentira Mentirosa das
boas! Não deve ser uma mentira muito forte, das bem
pregadas, porque seu narizinho é muito pequeno e suas
pernas não são curtas o bastante. Só precisamos desco-
brir direitinho qual é o tipo exato de mentira que você é,
pra saber como usá-la na hora certa.
O grupo, de repente, abriu-se, dando passagem a
uma visão deslumbrante: apesar de ter um nariz um
pouco espetado, era a mais linda fada que Alice jamais
tinha visto desenhada em seus livros de histórias. Usava
um vestido leve como o ar, que brilhava como se um céu
azul claro pudesse mostrar-se estrelado feito noite de lua
nova.
A menina ficou maravilhada! Nunca poderia ima-
ginar que haveria de encontrar uma beleza daquelas
justo no País da Mentira!
– Barão! Quem é essa?
Orgulhosamente, o Barão fez uma mesura em dire-
ção à fada e apresentou:
– Mentira Alice, conheça a nossa rainha: a Boa
Mentira!
– Boa Mentira? Que nem a Mentira Caridosa?
– Ainda melhor. Ela é usada quando alguém falta
com a verdade pra ajudar outro alguém sem prejudicar
ninguém. A Fada Boa Mentira mente pra proteger pes-
soas e salvá-las das dificuldades.
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– Ela é linda mesmo, Barão Mimi!
O Barão fez que sim com a cabeça e continuou:
– Dizem que, do Outro lado, há uma jovem que pa-
rece uma cópia desta, mas isso só pode ser inveja desse
povo sem graça lá do Outro Lado!
– Outro lado? Que outro lado é esse? Hum... já sei.
Deve ser o País da Verdade, não?
– Sim, o nosso grande inimigo! É como a “cara” da
“coroa” e a “coroa” da “cara”. As duas vivem grudadas,
mas nunca se encontram. E é mesmo muito melhor que
nunca se encontrem! Mas, infelizmente, essas danadas
do País da Verdade vivem querendo nos dominar. Mais
que isso: vivem querendo acabar com a gente!
À frente de Alice, a Boa Mentira resplandecia,
enchendo de luz a imensa caverna.
– Ah... – suspirou a menina. – Seria muito triste
se alguém acabasse com uma fada assim, tão maravi-
lhosa...
Alice lembrou-se daquela vez em que, sem querer,
tinha quebrado um bibelô na sala da casa do Juninho e
o menino, para protegê-la, acusou-se para a mãe, dizen-
do que tinha sido ele mesmo o culpado.
“Puxa... Naquele dia, o Juninho usou a Fada Boa
Mentira pra me ajudar...”
O Barão Mimi continuava orgulhoso, apresentando
seus governados:
– Está vendo, Mentira Alice? É por isso que nós,
as Mentiras, vivemos em guerra com as Verdades. As
Mentiras são muito mais interessantes. Nós damos um
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jeito nos problemas, nós disfarçamos as dificuldades e
ajudamos o mundo a ser um lugar mais tranquilo, mais
interessante de viver. Nós...
– Ora, senhor Barão – cortou Alice. – Quer dizer
então que neste país maluco só tem mentira boazinha?
Essas mentirinhas que o senhor me apresentou nem po-
dem ser chamadas de Mentiras. São Falsas Mentiras. E
as Mentiras de Verdade? Hum... quer dizer... e as men-
tiras mesmo, as MENTIRAS com letras grandes? Aque-
las que fazem mal a todo mundo? Aquelas que...
O Barão sorriu amarelo e confessou:
– Sei, Mentira Alice. Sei muito bem do que você está
falando. Mas essas são tristemente especiais. Você tem
certeza de que quer conhecê-las? Então, venha comigo.
Vamos conhecer o Zoológico das Piores Mentiras! Mas
prepare-se, porque o negócio não é brincadeira não!
“Ah, aposto que agora eu pego a Mentira do Juni-
nho!”, pensou Alice, na mesma hora.

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6 O ZOOLÓGICO
DAS PIORES
MENTIRAS

O Barão ergueu a velha lanterna e guiou a menina


para os fundos da caverna, seguido por um cortejo es-
tranhíssimo, formado por uma multidão de mentiras de
pernas curtas.
Quanto mais andavam, mais frio ficava o ar, e o lu-
gar pareceria assustador para qualquer pessoa que não
fosse a Alice. Não. Ela não iria ficar assustada como
uma boba, justo na hora em que estava perto de encon-
trar a Mentira do Juninho. Além disso, ela queria ter o
prazer de provar ao Barão que mentira é uma coisa feia
e pronto.
Chegaram a um ponto em que a caverna se afunila-
va e dava numa porta maciça, de ferro.
O Barão tirou da cinta uma grande chave e enfiou-a
na fechadura.
Nhéééc... – fez a porta, abrindo-se pesadamente.
Logo depois do nhéééc, ouviu-se um urro assombro-
so, reboando do outro lado da porta.
– Ai! – exclamou o Barão. – Deve ser a Mentira Ca-
beluda, furiosa novamente!
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Ao ouvir falar “Mentira Cabeluda”, a maior parte
das mentiras de pernas curtas que acompanhavam a du-
pla recuou, apavorada:
– A Mentira Cabeluda! A Mentira Cabeluda!
E essa maior parte escafedeu-se dali. Só uma meia
dúzia das mais corajosas continuou junto dos dois.
O Barão pegou no braço da menina e procurou
acalmá-la:
– Não tenha medo, Mentira Alice. As grades das
jaulas são bem fortes.
– Não estou com medo, Barão – tranquilizou Alice.
– Estou é ansiosa pra conhecer essa fera. Vamos!
E passou na frente do Barão, entrando corajo-
samente no Zoológico da Piores Mentiras do País da
Mentira.
– Cuidado, Mentira Alice! – avisou o mentiroso-
-chefe. – Não chegue perto das grades!
A Menina viu-se num corredor largo e comprido,
ladeado por jaulas, como seria em um zoológico co-
mum, se os zoológicos comuns fossem instalados dentro
de cavernas.
O urro assustador vinha do fundo do corredor, mas,
quando os visitantes foram percebidos pelos ocupantes
das outras jaulas, um coro de urros medonhos juntou-se
ao urro inicial.
Foi um pandemônio! As poucas mentiras que ti-
nham tido a coragem de entrar com o Barão e com Alice
deram meia-volta e desapareceram na mesma hora.
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– Que bagunça, Barão! – protestou Alice, sem medo
nenhum. – Com esse barulho todo, nem vai dar pra gen-
te conversar!
Por sorte, naquele país esquisito o comando mági-
co funcionava para enfrentar qualquer dificuldade, e o
Barão gritou:
– Digam a mentira! Toda a mentira! Somente a
mentira! Nada mais que a mentira!
Na mesma hora, os urros cessaram e Alice sentiu-
-se aliviada com o silêncio:
– Ufa! Agora melhorou. Mas eu não entendi uma coi-
sa, senhor Barão. O que é que tem a ver mentira com urros?
O Barão sorriu:
– Fácil, Mentira Alice! As mentiras perigosas ur-
ram urros de mentira, é claro. E ordenar que elas só
falem a mentira obriga que as danadas fiquem quietas,
porque, se o urro é de mentira, o silêncio é de verdade,
compreendeu?
– Não.
– Ótimo! Se você disse “não”, e é uma mentira men-
tirosa, quer dizer que você diria “sim” se fosse verdade e
isso mostra que você entendeu tudo direitinho.
– Mas eu não entendi nada!
– Está bem, Mentira Alice, está bem. Já entendi
que você entendeu. Não precisa mentir mais.
“Esse Barão ainda vai acabar passando a loucura
dele pra mim!”, pensou a menina. “Ele está convencido
de que eu sou uma mentira como todas as outras. Bom,
o jeito vai ser aceitar a maluquice dele...”
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– Venha, Mentira Alice. Venha conhecer as menti-
ras de que todo mundo tem medo! Aposto que você vai
reconhecer algumas, sem que eu tenha de apresentar.
Veja, esta aqui, na primeira jaula.
Alice olhou para dentro da jaula e lá viu um ho-
mem de terno e gravata e charuto na mão que, ao perce-
ber que tinha plateia, começou a discursar:
– Meus queridos eleitores! Vocês sabem que eu
sempre dediquei minha vida à felicidade de vocês! Vo-
tem em mim, que eu prometo construir três pontes, uma
em cima da outra, sobre o rio que atravessa vossa cida-
de. Se não houver nenhum rio atravessando a cidade,
podem deixar que eu construo também o rio! Prometo
que... prometo que... prometo que...
O Barão chegou bem perto de Alice e perguntou:
– E então? Preciso contar quem é esta daqui?
– Não – respondeu a menina. – Esta é fácil. É a
Mentira de Político.
– Fácil mesmo. Ela tem uma irmã gêmea, a Dema-
gogia, muito parecida com ela.
Ao lado havia uma jaula ocupada por uma figura ma-
gra, encovada, barbada, que dava desprezo só de olhar.
– Essa daí, Mentira Alice, é o risco que correm a
Fofoca e o Fuxico. Se exagerarem, as duas podem ficar
como ela. É a Difamação!
– Que horrível, Barão Mimi! Mas que cheiro tão
ruim é esse? Puf! Vem daquela ali. Parece até que nun-
ca tomou banho na vida. Por que vocês não a obrigam a
tomar um banho?
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– Não é possível, Mentira Alice – respondeu o Ba-
rão. – Essa é a Mentira Deslavada. Se a gente der um
banho nela ela vira Mentira Lavada e perde a razão de
continuar mentindo.
– E esta outra? – apontou Alice, procurando ficar lon-
ge da outra mentira tão fedida. – Gozado... uma hora ela pa-
rece uma coisa, mas logo fica diferente! Por que isso?
– Porque ela é a Falsidade, Mentira Alice. Vive mu-
dando de aspecto. E note a companheira de jaula dela: é a
Fraude, que volta e meia a gente encontra abraçada com a
Mentira de Político. A Fraude, por sua vez, é irmã gêmea
daquela figura horrorosa ali: é a Corrupção.
Alice ainda examinava o desprezível aspecto da
Corrupção quando, da próxima jaula, duas vozes roucas
começaram a berrar insultos. Cada tipo mais tremendo
do que o outro, e o Barão, segurando a menina pelo bra-
ço, ajudou-a a afastar-se dali.
– Vamos pra longe, Mentira Alice. Essas duas nem
dá pra aguentar! Tape os ouvidos. Essas são a Injúria e
a Calúnia!
Alice parou de repente e fez força pra livrar-se das
mãos do Barão:
– Espere um pouco, Barão Mimi! Essa Calúnia eu
quero ver de perto. Acho que é a ela que eu procuro!
Tapou os ouvidos pra não ouvir tantos xingamentos
e falsas acusações e encarou o bicho feio que o mentiroso-
-chefe tinha apresentado como sendo a Calúnia. Mas
achou estranho: aquela Mentira não tinha o menor jeito
do Juninho...
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– Está bem, Barão. Acho que não deve ser esta. Va-
mos em frente.
A próxima era uma personagem com ar bem sério,
que olhou firme nos olhos da visitante:
– Pode confiar em mim! Pode confiar em mim!
– Que coisa maluca! – comentou Alice. – Por que eu
deveria confiar nela? Que mentira é essa?
O Barão baixou a cabeça. Mesmo sendo um menti-
roso de pai e mãe, ele tinha seus princípios:
– Essa é uma vergonha, Mentira Alice. É a Traição...
– Ah, dessa eu quero distância – disse a menina.
– Vamos conhecer a próxima.
Enquanto se afastava da Traição, Alice não parava
de pensar:
“Até agora, nem uma dessas se parece com a Men-
tira do Juninho. Onde é que essa danada se escondeu?”

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7 A MENTIRA
CABELUDA

Logo adiante, uma mentira franzina encolhia-se.


Assim que percebeu a aproximação dos dois visitantes
do Zoológico das Piores Mentiras, furtivamente procu-
rou esconder-se nos fundos da jaula.
– E essa daí, tão tímida? Quem é?
– Tímida? Traiçoeira, você deveria dizer. Dessa
ninguém gosta. Vive escondida aí, sem amigos nem en-
tre as mais horrorosas das mentiras. É a Mentira Covar-
de que, por desleixo ou preguiça, procura esconder res-
ponsabilidades não assumidas. Uma coisa doida que...
ahran... ahum... Coisa doida aconteceu quando eu che-
guei a São Petersburgo, depois da maior nevasca que o
mundo já viu!
– Ai, ai, ai! Barão, diga a men...
– Eu estava exausto, amarrei o cabresto do meu
cavalo na ponta de uma vareta de ferro que estava es-
petada na neve e acomodei-me pra passar a noite. De
manhã, quando acordei, estava deitado na praça de uma
cidadezinha e... nada do meu cavalo! Teria sido roubado
durante a noite?
– Diga a ment...
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– Que nada! É que eu havia parado pra descansar
justo em cima de uma cidadezinha que tinha sido
­totalmente coberta pela neve no dia anterior. Com o sol
da manhã, a neve derretera sem que eu percebesse e,
adormecido, fui descendo suavemente, até continuar
dormindo no chão firme da praça. Mas o meu cavalo
relinchava de desconforto – coitado! –, amarrado como
estava na cruz do campanário da igreja, cuja ponta eu
tinha confundido com uma vareta de ferro espetada na
neve. Daí, não tive outro jeito senão...
Como você já percebeu, o comando de dizer somente
mentiras pra parar com a confusão daquele país tão ma-
luco tinha uma validade temporária. Por isso, naquele
instante, enquanto o Barão punha-se a contar suas po-
tocas, urros ameaçadores novamente levantaram-se de
todas as jaulas! O efeito do comando havia se esgotado,
tanto para o Barão quanto para as outras mentiras.
E Alice tomou as devidas providências, berrando
com toda a força:
– Digam a mentira, toda a mentira, somente a men-
tira, nada mais que a mentira!
Como você já esperava, os urros cessaram na mes-
ma hora e o Barão retomou o assunto, como se nada ti-
vesse acontecido:
– Como eu ia dizendo, a Mentira Covarde é...
Alice cortou, apontando pra uma nova jaula:
– Barão Mimi, veja que interessante: esta daqui fi-
cou quietinha enquanto todas as outras mentiras urra-
vam. Por quê?
– Pif! – fez o Barão, com desdém. – Dessa aí eu pas-
so longe!
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– Por que, Barão? Quem é ela?
– É a mais desprezada por todas nós, Mentira Alice.
É a Mentira por Omissão, uma mentira muda, a Menti-
ra que mente mesmo sem falar!
“Puxa, numa coisa pelo menos esse mentiroso-
-chefe tem razão”, raciocinou Alice. “Aqui tem mentira
pra todo gosto! Ou pra todo desgosto...”
Os dois continuavam avançando através do longo
corredor úmido e mal iluminado, entre as jaulas que
aprisionavam os mais tremendos monstros. À medi-
da que avançavam, um fedor começava a empestear
tudo em volta. Já estava se tornando insuportável,
e Alice ia protestar com o Barão, quando, desta vez
bem de perto, ouviu-se novamente o tremendo urro.
E que urro!
– Barão! – exclamou a menina. – O que é isso?
Antes que o mentiroso-chefe pudesse responder,
Alice viu-se ao pé de uma jaula imensa e, do outro lado
das grades, bem pertinho dela, lá estava uma figura as-
sustadora de verdade!
Alice deu um pulo pra trás, refugiando-se atrás do
Barão, e viu que até mesmo o mentiroso-chefe, governa-
dor do País da Mentira, estava tremendo de medo.
E ninguém teve de apresentar a figura monstruosa
para Alice...
Era um bicho enorme, peludo, barbado, com uma
cabeleira comprida e desgrenhada, de onde pululavam
piolhos e baratas... Tinha os olhos esbugalhados e a
bocarra aberta, de onde escorria uma baba ­grossa e
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­esverdeada. E, além da baba, daqueles beiços ­bafejava-se
um mau hálito capaz de infeccionar quem chegasse
mais perto!
Não, o monstro não precisava ser apresentado. Só
poderia ser...
– A Mentira Cabeluda!
Que horror! Aquilo deveria representar a soma de
todas as barbaridades que Alice tinha conhecido no
Zoológico das Piores Mentiras. Aquela era a Pior Menti-
ra, nada poderia ser tão horrendo quanto ela!
“A Mentira do Juninho?”, pensou a menina, tre-
mendo de emoção.
Não, não poderia ser, nem de longe. Da fala do seu
amigo querido jamais poderia sair alguma coisa medo-
nha como aquela!
“Será... será que eu estou errada?”, continuava ela a
matutar. “Então, qual será a Mentira do Juninho?”
Horror! Nesse momento, as garras peludas da Men-
tira Cabeluda sacudiram as grades da jaula. Sua força
era tremenda!
– Não fuja! Não fuja, Mentira Alice! – gritou o Ba-
rão, que já estava mentindo de novo e dizia tudo ao con-
trário do que queria. – Fique onde está!
Mas o aviso veio tarde demais! A Mentira Cabeluda
já conseguira entortar as grades e seu corpanzil medo-
nho espremia-se entre elas, procurando escapar! Seus
olhos injetados de sangue fixavam-se em Alice. A meni-
na era seu alvo!
Apavorado, o Barão gritava suas mentiras:
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– Ela não pensa que você não é uma mentira porque
suas pernas não são compridas e seu nariz não é peque-
no! Ela não quer destruir você! Não fuja!
Sem perder a calma, Alice logo viu que era só ti-
rar os “nãos” do que o Barão Mimi falava pra entender
que a fera babante estava prestes a arrebentar a jaula e
devorá-la!
O braço peludo da Mentira Cabeluda estendeu-se
para Alice. A menina safou-se e correu na direção da
grande porta de entrada do Zoológico das Piores Men-
tiras.
Atrás de si, ouviu um CRÁS! e adivinhou que a jau-
la viera abaixo! Passos pesados ressoavam pelas paredes
e pelo piso de pedra, correndo pra pegá-la!
Mais forte ainda, porém, no meio daquela barulhei-
ra toda, a menina ouviu a voz do Barão, agora mudada,
que, estranhamente, passava a gritar:
– Alice, aprenda a escolher o seu caminho! Você
tem de descobrir a diferença! Aprenda a escolher o seu
caminho, Alice!
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Alice atravessou a porta e viu-se de novo na imensa
caverna, lotada por todas as mentiras, que se puseram a
correr feito baratas tontas ao ver que, atrás da menina em
fuga, a Mentira Cabeluda vinha babando de ódio!
Como fugir do monstro? Não parecia haver qual-
quer porta ou abertura que servisse para escapar daquela
caverna. Tudo continuava bem escuro, sem indicação de
uma luz de saída.
Repentinamente, a multidão de mentiras abriu-se,
formando uma longa ala entre todos eles, como se indi-
cassem um caminho para a fugitiva. Alice olhou e, no
fim daquela passagem, um grande Espelho flutuava a
meio metro do chão!
“O Espelho do Sótão da Vovó!”
Já sentindo o bafo da Mentira Cabeluda e vendo
atrás de si refletida no Espelho a carantonha da fera,
prestes a agarrá-la, Alice não hesitou: deu um pulo e
atirou-se na direção do Espelho!
Enquanto seu corpo atravessava molemente o Es-
pelho, como se ele fosse feito de gelatina incolor, a meni-
na pensava, aliviada:
“Ufa! Que bom voltar para o Sótão da Vovó! Chega
da maluquice dessas mentiras!”
Fiuuuum...
Lá atrás, do fundo da caverna do País da Mentira,
continuava a ressoar a voz do Barão Mimi:
– Aprenda a escolher o seu caminho! Você tem de
descobrir a diferença! Aprenda a escolher o seu cami-
nho, Alice!
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8 UMA VERDADE
DE PESO

O salto de Alice não terminou no Sótão da Vovó.


Ah, que lugar mais diferente do País da Mentira, aquele
onde Alice aterrissou!
Era uma campina vasta, ensolarada, sem uma só
nuvem no céu, brilhando de tanta luz! Toda aquela sen-
sação de liberdade, porém, tinha um estranho limite: a
distância, para todos os lados que olhasse, a menina via
grades muito altas, uma fileira de grades, cercando tudo,
completamente.
Um pouco à frente de onde a menina tinha chegado,
havia um caminho de pedras que dava numa encruzilha-
da. E ali estava um sujeito obeso, sentado num banquinho.
Por incrível que pudesse parecer à menina, o sujeito prote-
gia-se debaixo de um guarda-chuva, apesar do bom tempo.
Alice andou até ele. Logo que chegou perto, viu
que o peso exagerado do gordão forçava o banquinho,
que se quebrou, derrubando-o no chão, numa queda
espetacular!
– Ooops! – fez o sujeito, levantando-se e pegando ou-
tro banquinho em uma pilha de banquinhos que tinha
atrás de si.
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Voltou a sentar-se e o novo banquinho vergou-se e
esfacelou-se, novamente derrubando o pobre homem.
– Oooops! – fez ele, sacudindo-se da poeira e ar-
mando mais um banquinho, que se arrebentou outra
vez, e o desastrado caiu no momento em que Alice per-
guntava:
– Desculpe, meu senhor. Por que insiste em sentar-
-se, se sabe que o banquinho vai quebrar?
– Porque sou uma Verdade. E a Verdade tem de es-
tar sempre bem assentada – respondeu o gordo, arman-
do mais um banquinho do estoque atrás de si e caindo
novamente. – Oooops!
– Mas então por que o senhor se senta em banqui-
nhos fracos como esses?
– Porque as bases da Verdade são muito frágeis.
Oooops!
Desta vez Alice ajudou o caído a levantar-se,
­comentando:
– Mas é que, com o seu peso...
O homem interrompeu-lhe a frase:
– Este é o Peso da Verdade. Ooops!
Alice perdeu a paciência: como ia poder perguntar
alguma coisa ao homem, se ele não parava de cair?
– Espere um pouco! Fique caído aí só por um minu-
tinho. Preciso saber uma coisa. Onde está todo mundo?
– Todo mundo está no mundo inteiro.
– Ora, o senhor entendeu o que eu perguntei. Não
quero saber do “mundo inteiro”. Isso é só um modo de
dizer. Onde estão as pessoas deste lugar?
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– Só há um modo de dizer a Verdade – respondeu
o outro, levantando-se, sacudindo-se e armando um
novo banquinho. – E neste lugar não há pessoas. Só
há Verdades.
– Neste caso, onde estão essas “Verdades”?
– Estão na reunião com o Sábio. É pra lá que eu
estou indo – levantou-se, sentou-se no banquinho e... –
Oooops!
– Mas o senhor não está indo para lugar nenhum!
O senhor está é tentando ficar sentado nesses banqui-
nhos. E devo lhe dizer que não está sendo muito bem
sucedido...
– É que eu não sei qual desses dois caminhos da en-
cruzilhada leva ao Sábio. Por isso, não posso ir pra lugar
nenhum! Oooops!
Alice desistiu. O gordão era maluco demais. E, já
que não tinha mesmo mais nada pra fazer, decidiu que
o melhor seria ir para onde estava o povo daquele lugar.
O maluco tinha dito que havia uma reunião com um
certo “Sábio”. Bom, se o tal Sábio fosse sábio mesmo,
talvez pudesse indicar a ela como voltar para o Sótão
da Vovó.
Mas qual dos caminhos escolher?
“Aprenda a escolher o seu caminho, Alice!”, tinha
dito o Barão Mimi.
“Mas como eu vou conhecer a diferença entre um
caminho e outro?”, pensava ela.
– É fácil – intrometeu-se o homem, como se tives-
se adivinhado seu pensamento. – Há o caminho da
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­esquerda e o caminho da direita. É só decidir no par ou
ímpar. A sua mão esquerda é ímpar e a direita é par. Jo-
gue par ou ímpar consigo mesma e vá pela estrada que
ganhar o jogo.
A menina achou boa a sugestão, mas perguntou:
– E por que o senhor não fez a mesma coisa pra es-
colher como chegar à reunião com o Sábio?
– Porque as minhas duas mãos são direitas!
– Ué... Então não tem ninguém canhoto neste lugar?
– É claro que tem. Eles usam a outra mão direita.
Resposta mais maluca do que esta Alice nunca ti-
nha ouvido, mas achou boa a sugestão do gordo, pois ela
sim tinha duas mãos, uma direita e uma esquerda.
– Par! Ímpar!
Ganhou a direita e para lá encaminhou-se Alice.

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9 VERDADE DE
GUARDA-CHUVA

O caminho subia por uma pequena ladeira. Che-


gando no alto dela, Alice viu um vale com uma multi-
dão de guarda-chuvas e sombrinhas coloridas cobrindo
quase todos os verdes da paisagem. Bem no centro da
multidão, havia um grande tonel deitado sobre a relva.
Desceu naquela direção, abrindo caminho entre o
mar de uma gente esquisitíssima que, debaixo de seus
guarda-chuvas, olhava-a de lado, pelo jeito achando-a
muito mais esquisita.
A multidão cercava o grande tonel.
De dentro dele, Alice viu sair um velho de barbas
brancas, vestindo um camisolão surrado e sandálias
mais gastas ainda. E o mais engraçado é que o velho saía
do tonel já de guarda-chuva aberto numa das mãos e, na
outra, uma lanterna acesa, igualzinha à do Barão Mimi!
– Bom dia – cumprimentou ela, timidamente.
O velho olhou-a firme, examinando-a de alto a baixo:
– Quem é você?
– Sou Alice...
– Alice? Você não é nenhuma Verdade conhecida.
Então, deve ser uma Mentira.

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Alice fez uma cara desanimada:
– Ai, ai, ai! Mais um que me chama de “mentira”! Já
estou ficando cansada dessa história. Meu nome é Alice.
E eu sou uma menina. Igual às outras!
O velho levantou um pouco mais a lanterna e olhou-
-a de perto:
– Igual às outras?! Pelo que estamos vendo, você é
muito pior do que as outras, pois tem pernas compridas.
Deve então ser a Mentira de Perna Longa. Se todas as
mentiras começarem a ser inventadas do seu jeito, nós
nunca mais poderemos pegá-las! Mentiras de Perna
Longa! Era só o que nos faltava!
Aí Alice protestou:
– Escute aqui, seu sábio: em vez de ficar pensando
que eu sou uma mentira de perna longa, por que não
conclui que, se eu não tenho pernas curtas, eu não sou
uma mentira? Não seria mais lógico?
– Não – respondeu o velho. – O lógico é concluir que,
se as mentiras têm pernas curtas, o aparecimento de
uma de perna comprida significa que você é uma menti-
ra pior que as outras, pois é uma mentira que mente até
o comprimento das pernas, só pra nos enganar!
– Isso não é lógico. A lógica é que...
O velho levantou uma de suas mãos direitas, inter-
rompendo:
– Não nos venha falar de lógica! De lógica entende-
mos nós!
– Ah, é? Bom, eu já me apresentei: sou uma menina e
meu nome é Alice. E quem é o senhor? Que lugar é este?
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O velho acalmou-se subitamente e respondeu, de
um modo gentil:
– Nosso nome é Diógenes de Sínope, mas pode nos
chamar de Sábio Didi, se você quiser.
Alice olhou em volta, procurando outro velho de
camisola e barbas brancas, pra entender quem eram
aqueles “nós” a quem o velho se referia. Como não en-
controu nenhum, a menina só poderia mesmo chegar a
uma conclusão:
“Pronto! Fui cair no meio de mais gente maluca!
Esse velho fala de si mesmo como se fosse uma porção
de pessoas! Bom, o jeito é aceitar o jogo.”
– Prazer, Sábio Didi. E por que os senhores ficam
segurando essa lanterna acesa, se o tempo não poderia
ficar mais claro do que está?
– Estamos procurando um homem honesto, que só
fale a verdade! – respondeu o velho sábio. – Mas está di-
fícil, menina, está difícil...
– Oh, então os senhores já aceitaram que eu sou uma
menina, não é? Que alívio!
– Hum... uma menina? Não é lógico. Por aqui, só
quem tem pernas normais somos nós, as Verdades, ou
mentiras tão mentirosas que mentem até a própria apa-
rência, como as mulheres vaidosas...
As suspeitas de Alice confirmavam-se, então. A
menina tinha atravessado o Espelho para o Outro Lado.
Estava no País da Verdade. Ufa! Agora não p
­ recisava
mais ficar mandando os outros falarem a mentira, pra
que falassem a verdade e deixassem que ela e
­ ntendesse
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pelo menos um pouquinho daquela loucura toda aonde
seu próprio espirro a tinha levado.
– Este é o País da Verdade, não é?
– Verdade – respondeu o Sábio Didi. – Aqui você só
vai encontrar verdades das mais verdadeiras. Mentira,
aqui, não tem vez. Nós, as Verdades, ficamos o tempo todo
tentando acabar com as mentiras, assim como as mentiras
ficam procurando nos destruir. Mas o problema é que nem
nós nem elas podemos ganhar essa guerra...
– Por quê?
– Porque, pra continuarmos sendo Verdades, pre-
cisamos da existência do Outro Lado. Se não houver
o inverso da moeda, nós não existiremos mais. Para
existirmos, é preciso que haja o avesso de nós mesmos.
Do mesmo modo que a Mentira, pra existir, precisa
contrastar com a Verdade, a Verdade precisa da exis-
tência da Mentira. Se nós destruirmos as mentiras, va-
mos ser o quê, já que não teremos nada com que nos
comparar?
Alice teve de concordar. Era um raciocínio bem
maluco, mas parecia lógico.
O velho olhava cismado para a menina. Coçou a
barba, pensou muito e concluiu:
– Hum... acho que agora descobrimos: você é menti-
rosamente uma mentira!
A menina sacudiu a cabeça, desanimada, sem sa-
ber mais o que fazer pra convencer o sábio:
– Ai, ai, já cansei de dizer aos senhores que não sou
verdade nem mentira, sou uma menina e pronto!
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– Você é uma mentira, das mais mentirosas! Sabe
como nós descobrimos? Por que você não usa guarda-
-chuva. E todas as verdades usam guarda-chuva!
– Eu só uso guarda-chuva quando está chovendo!
– protestou Alice. – Além do mais, quando eu espirrei,
estava sem guarda-chuva.
– Quando espirrou? Não entendemos o que tem a
ver espirro com guarda-chuva...
– Deixem pra lá, Sábio Didi. Mas a minha curiosi-
dade é esta mesmo: por que vocês, as Verdades, estão
sempre de guarda-chuva aberto, se nem está ameaçando
chover?
– Se você fosse uma de nós, menina, saberia muito
bem que é por causa dela!
– Dela? Quem é essa?
– Nem adianta contar. Só uma Verdade de verdade
poderia compreender o perigo que ela significa para nós!

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10 TEM GENTE QUE
NÃO GOSTA DE
OUVIR A VERDADE

A visita forçada de Alice ao País da Verdade estava


sendo bem mais difícil de compreender do que a aven-
tura no País da Mentira. Além da história do guarda-
-chuva, havia mais dois outros pontos que precisavam
ser tirados a limpo:
– Sábio Didi, por que tudo aqui é tão iluminado?
Por que não há nem nuvens no céu?
– Porque a Verdade, pra ter valor, tem de viver às
claras.
– Hum... é um lugar muito claro mesmo, mas não
entendi por que tudo está cercado por grades tão altas...
O velho encolheu-se e baixou a cabeça:
– Verdade é uma coisa perigosa de se dizer... Por
isso, ficamos todas presas aqui, porque tem muita gente
que não gosta de ouvir a verdade. Todo mundo adora ser
enganado...
Alice enlaçou o braço do velho, como se ele fosse
um vovô carinhoso.
– Oh, Sábio Didi, não fiquem tristes. Podem estar cer-
tos de que ninguém pode viver sem a Verdade. Eu mes-
ma vim parar aqui porque estava muito triste com uma

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mentira. Pois acabei de visitar o País da Mentira e des-
cobri que elas são todas diferentes, nem todas são más.
Mas agora, conhecendo o seu país, estou vendo que, ao
contrário, a Verdade é uma só e...
O Velho pôs a mão sobre a mãozinha de Alice:
– Uma só? Que nada! Nós somos tão diferentes
quanto as Mentiras. Venha. Vamos lhe mostrar.
Levantou-se com a agilidade de um jovem e, levan-
do a menina pela mão, guiou-a por entre aquele munda-
réu de Verdades cobertas com guarda-chuvas:
– As Verdades, menina, dependem do ponto de vis-
ta, das necessidades, das oportunidades. Por isso, elas
sempre são diferentes.
Alice viu uma mulher luminosa, radiante. Até o
guarda-chuva dela era iluminado!
– Esta é a Sinceridade...
– Linda!
– Aquela ali é a Autenticidade...
– Puxa, dessa não dá pra duvidar!
– Esta outra é a Exatidão...
A Exatidão, ao ser apresentada, aproximou-se de
Alice e mediu-a com uma fita métrica. Depois, mediu a
barba do Sábio Didi. Por fim, afastou-se, dizendo:
– Exato!
Chegaram a um sujeito muito elegante, vestido de
fraque e cartola.
– Este é o Rigor...
Ao lado do Rigor, estava outra Verdade, com a cara
mais emproada possível.
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– É o Caráter. Não muda nunca de expressão.
Em seguida, Alice notou uma jovem sentada à
frente de um bastidor, desligada de tudo, sem olhar pra
ninguém, que bordava caprichosamente uma linda ta-
peçaria.
– Esta é uma das mais respeitadas Verdades que te-
mos aqui, Alice – explicou o Sábio Didi. – É a Fidelida-
de. Nós a chamamos de Penélope.
– Esta tem nome próprio? Por quê?
– É uma bela história. Uma vez, o marido dela, cha-
mado Ulisses, saiu para a guerra e ninguém mais tinha
notícias dele. Todo mundo dizia que ele havia morrido
em uma batalha contra os troianos. Daí, como o reino
de Ulisses era muito rico e como Penélope era muito
bonita, vários pretendentes começaram a se aproximar
da suposta viúva, querendo se casar com ela. Penélope,
muito pressionada pelos pretendentes à sua mão, pro-
meteu que escolheria um deles para esposo logo que
acabasse de tecer uma tapeçaria. Mas, como ela amava
muito o marido e não aceitava que ele tivesse morrido,
toda noite desfazia tudo aquilo que havia bordado de dia,
de modo que a tapeçaria nunca ficava pronta. E ela es-
tava certa: um dia Ulisses voltou da guerra, acabou com
os cobiçosos pretendentes e os dois continuaram sendo
felizes para sempre!
Alice aplaudiu:
– Que história linda, Sábio Didi! Essa Penélope ser-
viria pra representar a Dedicação, ou o Amor Verdadei-
ro, ou...
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– Não, Alice. Isso tudo fica no País dos Bons Sen-
timentos. Já fomos lá, quando éramos criança. Mas de-
pois acabamos caindo no País dos Maus Sentimentos e
deu um trabalhão pra sair de lá. Tinha o Ódio, a Inveja,
a Cobiça, a Ganância... Nem queira saber!
Chegaram perto de uma outra Verdade, que ficava
o tempo todo com o indicador apontando para os outros.
– Esta é uma das nossas mais necessárias Verda-
des, menina – apresentou o Sábio Didi. – É a Denúncia.
Mas vive sempre meio insegura, coitada...
– Insegura? Por quê?
– Porque, se for confundida com a Delação, ela se
torna uma das Piores Verdades!
– Não digam, Sábio Didi! Quer dizer que vocês aqui
também têm um zoológico?
– Não.
– E onde estão essas Piores Verdades?
– Estão na cadeia.
– Puxa... cadeia é pior que zoológico, não é?
O Sábio Didi parou subitamente o passeio:
– Se elas são piores, têm de ficar num lugar pior.
Ficam no Calabouço das Piores Verdades!
Alice lembrou-se do sufoco que tinha sido a visita
ao Zoológico das Piores Mentiras e já ia perguntar mais
sobre o tal calabouço, quando o que viu à sua frente dei-
xou-a de boca aberta:
– Sábio Didi, quem é essa? Que coisa espetacular!
Destacando-se na multidão de Verdades, a menina
via a fada mais linda deste mundo! Se não tivesse duas
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mãos direitas e um narizinho tão delicado, Alice podia
jurar que era a irmã gêmea da Boa Mentira! E se não
estivesse de guarda-chuva aberto, é claro...
Da linda fada, seus olhos se voltaram para o sábio,
que sorria, enlevado:
– O que você está vendo, Alice?
– Estou vendo a fada mais deslumbrante deste e de
todos os mundos...
Os olhos do Sábio Didi encheram-se de lágrimas,
emocionado:
– Ah, estamos felizes de saber disso, Alice! Se o
que você está vendo é mesmo tão maravilhoso assim,
isso significa que você é uma ótima menina! Agora te-
mos certeza de que você não é uma mentira, pois esta é
a Verdade-de-cada-um. A aparência dessa Verdade de-
pende de como cada um vê a sua própria Verdade... É
você mesma que, no seu íntimo, é tão linda quanto ela!
Alice ia até corando com o elogio, quando, de re-
pente, aquela festa terminou!

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11 O ATAQUE
DA DÚVIDA

Uma jovem Verdade vinha correndo de longe, esba-


forida, e gritando:
– Sábio Didi! Sábio Didi! Ela está nos atacando
­novamente!
Foi uma balbúrdia! Todas as Verdades começaram
a correr de um lado pra outro, a encolher-se debaixo de
seus guarda-chuvas e sombrinhas, gritando:
– Ela! É ela novamente! Estamos perdidos!
O velho sábio imediatamente puxou Alice pra bai-
xo do seu guarda-chuva:
– Proteja-se, menina! Ela é mortal!
Alice olhou para o céu. Que coisa mais impressio-
nante! Uma revoada de corvos negros cercava uma bru-
xa mais horrenda do que a bruxa da Branca de Neve!
Cavalgando uma vassoura e dando voos rasantes como
um bombardeiro, a danada gargalhava...
– Qui-qui-qui-qui! Ca-ca-ca-ca-cá!
... enquanto lançava bolas de fogo na direção das
Verdades, que corriam sem direção, desesperadas!
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As bolas explodiam em cima dos guarda-chuvas,
numa sucessão de explosões coloridas como fogos de
artifício!
O barulho era demais, e Alice teve de gritar no ou-
vido do velho:
– Sábio Didi, quem é essa? O que está acontecendo?
– É a Dúvida! Ela vive tentando abalar a confiança
de nossas Verdades! Se não resolvermos as dúvidas que
aparecem, como vamos afirmar que o que representa-
mos é Verdade?
“Ah...”, concluiu a menina. “Então é por isso que as
Verdades usam guarda-chuva... Pra se protegerem da
Dúvida!”
– São as Bolas de Fogo da Dúvida! – uma das Verda-
des gritava. – Protejam-se!
Uma Verdade mais estabanada tropeçou e seu guar-
da-chuva caiu-lhe de uma das mãos direitas. Na mesma
hora, a Bruxa da Dúvida percebeu a oportunidade e não
perdeu tempo, acertando a cabeça da vítima em cheio!
“Bum!”
Como numa mágica, a pobre Verdade desapareceu
feito uma bolha de sabão, estourando no ar!
– Sábio Didi! Sábio Didi! – imploravam as Verdades
mais próximas. – O que vamos fazer? Ela vai destruir a
todas nós ! Já pegou algumas de nós!
O velho sábio assumiu o comando:
– Vamos resistir, Verdades! Coragem! Corram ao
Arsenal da Verdade! Tragam os Axiomas! Vamos jogar
pesado com essa danada!
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Alice viu algumas Verdades mais fortes e mais dis-
postas saírem correndo pra cumprir a ordem e p
­ erguntou:
– Aquiciômas?! O que é isso?
– Artilharia antiaérea! – explicou o Sábio Didi, aos
berros. – São as poucas afirmações que ninguém discute
e todo mundo aceita.
– Ainda não entendi direito...
– Axiomas são Verdades Indiscutíveis. Um amigo
nosso nos deu um exemplo: “Nada pode ser e não ser ao
mesmo tempo”. É como você, que não pode ser Alice e
não ser Alice ao mesmo tempo. O nome desse amigo é
Aristóteles, mas, se você o encontrar, pode chamá-lo de
Filósofo Totó, que ele não liga.
As Verdades que tinham ido buscar as armas já es-
tavam de volta e corajosamente começavam a lançar os
tais Axiomas na direção da Bruxa da Dúvida. Os Axio-
mas subiam como raios e estalavam em fagulhas ao des-
truir as Bolas do Fogo da Dúvida! Os corvos perdiam o
equilíbrio, soltando penas negras pra todo lado!
Vendo-se cercada pelos Raios-Axiomas, a Bruxa
da Dúvida sacudia o punho fechado para o lado do Sá-
bio Didi:
– Ah, miseráveis Verdades! Vou embora, mas vol-
tarei! Eu voltarei! Qui-qui-qui-qui! Ca-ca-ca-ca-cá! Vocês
não se livram de mim! Nunca se livrarão de mim! Nunca
se livrarão da Dúvida!
E voou em retirada, seguida pelos corvos, enquanto as
Verdades gritavam de alegria e abraçavam-se, vitoriosas!
Alice batia palmas:

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– Essa batalha foi demais! Por sorte, vocês tinham
muitos Axiomas no arsenal.
– Nada disso, menina – informou o sábio. – Os
Axiomas são muito poucos.
– São poucos? – admirou-se Alice. – E agora? E se a
Bruxa da Dúvida voltar? Vai faltar munição!
– Não. Os Axiomas são poucos, mas são indestru-
tíveis. Podem ser usados vezes sem fim! Logo, o nosso
pessoal vai recolher tudo o que a gente usou e guardar
de novo no arsenal, até a próxima provocação da Dúvi-
da. E a Dúvida, minha menina, pode atacar a qualquer
hora! A luta contra a Dúvida nos fortalece!
Nessa altura, o Sábio Didi resolveu impedir que a co-
memoração durasse muito e mandou fazer o levantamento
das baixas da batalha. Quando recebeu os resultados, sa-
cudiu a cabeça, desanimado, comentando com a menina:
– É sempre assim! Tem gente cabeça-dura que se
sente tão segura do que sabe que nem teme a Dúvida!
Olhe só: perdemos duas Verdades Teimosas que es-
tavam fazendo doutorado e sentiam-se tão certas das
ideias que defendiam que ficaram em campo aberto sem
guarda-chuva! Coitadas...
Havia também mais duas Verdades Inseguras que
tinham desaparecido sob as Bolas de Fogo da Bruxa da
Dúvida por não se defenderem direito, mas o resto es-
tava bem, fora um ou outro arranhão ou queimadurazi-
nha de nada.
A glória de todos foi encontrar uma Verdade Hu-
milde que, apesar de ter sido fortemente bombardeada,

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tinha conseguido defender-se de todas as bolas de fogo
da Dúvida, rebatendo uma a uma e saindo com suas
Verdades ainda mais fortalecidas.
Com lágrimas nos olhos, emocionada, a jovem Ver-
dade Humilde perfilou-se para receber uma medalha de
bravura das próprias mãos do Sábio Didi. Muito compe-
netrado, o velho sábio alfinetou a medalha na roupa da
Verdade Humilde, dizendo:
– Receba com orgulho esta condecoração, Verdade
Humilde, pois tua coragem mais uma vez demonstrou
que uma Verdade de verdade só pode provar a si mes-
ma se não tiver medo da Dúvida! Você soube aproveitar
o ataque da Dúvida pra provar a força da sua Verdade.
Pra você, a Dúvida foi uma fada e não uma bruxa. De
agora em diante, você será conhecida como a Verdade
Provada!
– Viva! – gritavam todos, que não conseguiam bater
palmas, mas batiam palma com dorso da mão, pois to-
das só tinham mãos direitas. – Viva a Verdade Provada!

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12 A CUECA DO SEU
AVÔ SUBIU
NO TELHADO

Alice não tinha compreendido direito o discurso:


– Mas como pode a Dúvida ser uma bruxa perigosa
para alguns e uma fada maravilhosa para outros?
O velho encolheu os ombros:
– Não é a Dúvida que é uma coisa ou outra. Na bata-
lha de hoje, duas Verdades Teimosas, esnobes como elas
só, viraram fumaça com o ataque da Dúvida, enquanto
a Verdade Humilde até ficou mais forte com o mesmo
ataque. Depende do modo que cada um recebe a Dúvida,
menina. É preciso saber escolher os caminhos!
– Gostei da explicação e da aventura, Sábio Didi –
confessou Alice. – Ninguém pode com a Verdade! Agora
eu sei que dá pra enfrentar a Dúvida quando ela é bruxa
e até o mau hálito de qualquer Mentira Cabeluda: é só
jogar uma Verdade, assim, na lata!
O velho levantou a mão, discordando:
– Não é assim, menina. A Verdade não pode ser jo-
gada assim, como você diz, “na lata”. Verdade é como
homeopatia: tem de ser dita aos poucos, em pequenas
doses, pra não assustar.
– Ué! Não entendi...
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– É simples. Vamos mostrar pra você.
Chamou uma jovem Verdade que passava por perto
e perguntou:
– Amiga Verdade, vamos supor que você acabou de
saber que o avô de um amigo seu tinha subido no telha-
do pra fazer um conserto, caiu de lá e morreu. Você sabe
que esse amigo gosta muito do avô e que ele poderia ficar
desesperado quando recebesse a notícia de uma só vez.
Como você agiria?
A Verdade convocada nem pestanejou:
– É simples. Primeiro, pra preparar o espírito do
meu amigo, eu enviaria uma mensagem dizendo: “A
cueca do seu avô subiu no telhado”.
– Sim?
– Em seguida, eu mandaria outra mensagem as-
sim: “A cueca do seu avô caiu do telhado”.
– E depois?
– Fácil! E eu terminaria a comunicação dizendo: “O
seu avô estava dentro da cueca”!
Alice caiu na gargalhada:
– Ah, mas que coisa sem jeito! E depois, o que você
ia dizer? Que a cueca morreu? E, depois, que o avô mor-
reu junto com a cueca?
– Está bem, está bem – concordou o velho. – Vamos
dizer que o exemplo não ficou bem claro. Então vamos
chamar um especialista. Verdade Cuidadosa, venha cá,
por favor!
Um sujeitinho com cara de sonso apresentou-se,
sorrindo timidamente.
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– Agora você, Verdade Distraída. Venha cá. Você
será a Mulher do Fazendeiro e a Verdade Cuidadosa
fará o papel do Capataz. Vamos representar para a visita
a pecinha “Verdade é como homeopatia”.
E o próprio velho começou, assumindo o papel de
narrador:

A mulher de um fazendeiro,
muito rica na verdade,
tinha ido fazer compras
lá nas lojas da cidade.
Bem na praça principal,
a olhar pra um cartaz,
de repente deparou
com seu velho capataz.

Ora vejam quem encontro!


Que me contas, capataz?
Como está nossa fazenda?
Tudo vai na santa paz?

Eu de lá cheguei agora,
pra contar para a patroa:
na fazenda tudo bem,
lá vai tudo numa boa!

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Já comprei o que queria
e pra lá quero voltar.
Mas trocando em miúdos
nada mais tens pra falar?

A não ser por um detalhe,


incidente bem vulgar,
coisa pouca, uma bobagem,
pouco tenho pra contar...

Coisa pouca, tu me dizes?


Ora, fala-me depressa!
O que houve de verdade,
Que coisinha será essa?

Uma coisa bem pequena,


foi o que aconteceu.
Pra falar bem a verdade,
foi seu burro que morreu...
Mas afora o ocorrido,
vou contar para a patroa:
na fazenda tudo bem,
lá vai tudo numa boa!

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Ai, o pobre do meu burro,
que eu queria tanto bem!
Mas por que ele morreu?
Não vais me contar também?

A contar sou obrigado,


vou dizer desta maneira:
pois o burro foi queimado
no incêndio da cocheira...
Mas afora o ocorrido,
vou contar para a patroa:
na fazenda tudo bem,
lá vai tudo numa boa!

Que desgraça! A cocheira


então se incendiou?
E desgraça como essa
como ela se passou?

É que o fogo veio vindo


do incêndio da mansão,
que queimou de cima abaixo,
virou tudo só carvão...

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Mas afora o ocorrido,
vou contar para a patroa:
na fazenda tudo bem,
lá vai tudo numa boa!

Minha casa se queimou?!


Ai, mas que calamidade!
Como foi que aconteceu
Tão cruel fatalidade?

Foi a vela do velório,


deu um vento e ela caiu,
pegou fogo nas cortinas
e a tudo consumiu!
Mas afora o ocorrido,
vou contar para a patroa:
na fazenda tudo bem,
lá vai tudo numa boa!

Um velório, tu me dizes?!
Mas o que aconteceu?
Meu rapaz, não fique quieto,
diga logo quem morreu!

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Quem morreu foi sua mãe,
lá, deitada no caixão.
E a coitada queimou toda,
não sobrou nem um torrão...
Mas afora o ocorrido,
vou contar para a patroa:
na fazenda tudo bem,
lá vai tudo numa boa!

Mas que horror, a minha mãe!


Como isso sucedeu?
Ela estava muito bem!
Mas do que ela morreu?

Foi por causa do desgosto


que a matou do coração
vendo o genro se enforcar
numa trave do porão...
Mas afora o ocorrido,
vou contar para a patroa:
na fazenda tudo bem,
lá vai tudo numa boa!

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Ai, ai, ai! O meu marido
decidiu se enforcar?
Mas o que aconteceu
para ele se matar?

Num joguinho de baralho


seu marido se meteu.
Apostou tudo o que tinha
e esse tudo ele perdeu...
Perdeu terras e a fazenda,
perdeu joias, perdeu gado
e, assombrado, descobriu
que estava arruinado.
Nada mais tinha de seu
e matou-se, indefeso,
quando soube que o juiz
ordenou que fosse preso...
Mas afora o ocorrido,
vou contar para a patroa:
na fazenda tudo bem,
lá vai tudo numa boa!

Ha, ha, ha! Lá na fazenda,


lá vai tudo numa boa!
Ha, ha, ha! Lá na fazenda,
lá vai tudo numa boa!

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Enquanto os atores dançavam, cantando o refrão
“na fazenda tudo bem, lá vai tudo numa boa”, as Ver-
dades aplaudiam com entusiasmo. Mas Alice, só por
educação, preferiu não comentar com o Sábio Didi que
aquele jeito de dizer a verdade era maluco demais. E
aplaudiu também, só pra agradar:
– Muito bem! Bravo! Essas Verdades deviam tra-
balhar na televisão! Estou adorando as Verdades, Sábio
Didi. São todas umas gracinhas! Um pouco maluqui-
nhas, mas deliciosas!
O velho sábio sacudiu a cabeça, com um ar de des-
gosto:
–  Nem todas, menina, nem todas... Temos as outras!
– As outras? Que outras?
– As Piores Verdades! Pra aprender a escolher,
você precisa saber quem são elas.
Alice lembrou-se dos sustos que tinha passado no
Zoológico das Piores Mentiras, mas não queria parecer
mal-educada:
– Bom, não precisa se incomodar...
– Incômodo nenhum, menina, incômodo nenhum...
Vamos lá. Venha conhecer o Calabouço das Piores
Verdades!

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13 O CALABOUÇO
DAS PIORES
VERDADES

O sábio Didi guiou Alice até um morrinho onde


se encravava uma porta de madeira trancada com um
cadeado. Fechou o guarda-chuva, encostou-o ao lado da
porta e abriu o cadeado com uma chave bem parecida
com a que o Barão Mimi havia aberto o Zoológico das
Piores Mentiras. Logo na entrada, havia uma escada de
pedras, que descia para a escuridão. Com a lanterna, o
Sábio ia iluminando a descida.
Logo no final da escada, Alice ouviu gemidos de
cortar o coração.
– Pelo jeito, alguém está com dor de barriga, Sábio
Didi...
– Ah, menina! Espere um pouco pra conhecer
quem é que está gemendo! É o nosso maior problema!
Haviam chegado a um calabouço úmido e ater-
rorizante, que ecoava os gemidos. Desta vez não havia
jaulas, mas, ao longo das paredes, Alice viu vários per-
sonagens acorrentados pelos tornozelos a bolas de ferro
que pareciam pesar uns dez quilos cada.
– Que horror! – exclamou a menina.
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Ao perceber o espanto da visitante, uma aparição
esquálida, tresloucada, quase se atirou pra cima de
Alice, sendo detida apenas pela grossa corrente que a
­prendia:
– Foi ela! Foi ela! Foi ela!
Alice olhou para o Sábio Didi e balançou a cabeça:
– Esta é a Delação, não é?
– Acertou, menina, acertou. É nela que a Denún-
cia pode se transformar se não tiver cuidado com o que
diz. A Delação é uma vergonha pra todas nós, Verdades
Honestas. Por causa dessa daí, muita gente não gosta da
Verdade. Ei, Cuidado!
Alice teve de dar um pulo pra trás, pois a próxima
Verdade também se jogava em sua direção, mas desta
vez armada com um porrete!
– Saia daí, Verdade-doa-a-quem-doer! Respeite as
visitas! Alice, vamos andar bem no meio do calabouço,
pois há algumas Verdades bem agressivas por aqui!
Uma a uma, Alice foi conhecendo Verdades que
bem poderiam ficar ocultas por uma Boa Mentira. Mas
uma delas era ainda mais surpreendente:
– Sábio Didi! Essa daí está pelada! Com a umidade
daqui, vai acabar se resfriando!
– Vai nada, Alice. Ela não pode se vestir. É a Verda-
de-nua-e-crua...
Aproximavam-se da escuridão do fundo do cala-
bouço, e os gemidos estavam cada vez mais perto. Nesse
momento, a luz da lanterna do Sábio Didi iluminou uma
figura assustadora! Era magro, com os tornozelos presos

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a correntes fixadas a duas bolas de ferro, e erguia um
grande livro acima da cabeça. Vestia um camisolão sujo,
tinha os cabelos desgrenhados, sebosos, os olhos esbu-
galhados, os dentes estragados e gemia como uma alma
penada de filme de terror!
– Ai, ai! – gemeu o Sábio Didi. – A Verdade Absoluta!
O Sábio Didi apertou o braço de Alice, impedindo que
a menina se aproximasse daquela coisa monstruosa. Mas
o louco, ao botar os olhos na menina, parou de gemer e
passou a berrar, com uma voz fortíssima, brutal:
– Só eu tenho a Verdade! Só eu tenho a Revelação!
Só eu estou certo! Não acredite em mais nada! Está tudo
escrito aqui! No Livro! No Livro! Tudo escrito!
Foi se enfurecendo enquanto falava. Seu fanatis-
mo era demais e multiplicava sua força, a ponto de seus
avanços conseguirem arrastar as bolas de ferro!
– Vamos sair daqui, Alice. Nunca confie em alguém
de um livro só. Essa Verdade está mais furiosa do que o
normal. É melhor não arriscar!
– Só eu tenho a Verdade! Só eu! Só eu! – continuava
a berrar o fanático.
– Que coisa mais assustadora, Sábio Didi!
– A Verdade Absoluta é a mais perigosa de todas nós.
– Mas por que Absoluta? – perguntou Alice. – Como
um Axioma?
– Nada disso! Axiomas são Verdades Indiscutíveis,
que todo mundo aceita, sem que ninguém tenha de im-
por. A Verdade Absoluta é uma fanática que quer impor
seu tipo de Verdade a todo mundo!

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A Verdade Absoluta babava de raiva, forçava-se para
alcançar Alice, arrastando as bolas acorrentadas a seus
tornozelos e sacudindo seu livrão acima da cabeça:
– A Única Verdade não tem tipos! Só há uma Verda-
de! É a minha! A minha é a única Verdade!
– Cuidado, Alice! Não a deixe chegar perto de você!
– alertava o Sábio Didi. – Se ela te alcançar, você vai fi-
car só com uma ideia na cabeça, dizendo que o resto do
mundo está errado!
– O resto do mundo está errado! – berrava o malu-
co, sacudindo o livro. – Só eu estou certo! Só eu tenho a
Revelação!
– Está vendo, Alice? – continuava o Sábio. – A
Verdade Absoluta quer impor a opinião dela a você e
anular todas as outras possibilidades que podem aba-
lar o que ela tem como única Verdade. Ela quer impor
um só livro que diz ser a Certeza Absoluta, negando
quaisquer outras ideias. Ler um livro só é saber uma
coisa só e ficar com uma Certeza Fanática. Quem lê
muitos livros fica sabendo de uma porção de opiniões
e pensa sobre cada uma delas, sempre tendo dúvidas
e sempre procurando mais, querendo saber mais. A
Certeza só leva ao fanatismo. É a Dúvida que estimula
o progresso. Cada vez que você resolve uma Dúvida,
sua Verdade fica mais forte. E se você duvidar de novo,
vai melhorar a sua Verdade e conseguir outra mais
forte ainda!
– Mas, afinal de contas, a Dúvida é uma bruxa ou
uma fada?

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– Depende de como se encara a Dúvida, Alice! Ela
rejeita as Verdades Frágeis e é um escudo contra as Ver-
dades Absolutas. Se a Dúvida te provocar, te fizer pen-
sar melhor sobre cada coisa que você aprende, ela pode
ser uma fada transformadora! A Verdade Verdadeira
não pode ser alcançada em um livro só! Ela só pode ser
procurada em muitos livros, em todos os livros!
– Mas ninguém pode ler todos os livros que exis-
tem! – objetou Alice.
– É claro que não! Por isso, todo mundo continua
procurando em muitos livros novas soluções para os
desafios da vida, estudando, pesquisando, discutindo,
acertando, errando, e o mundo anda pra frente!
– Vou te pegar, Alice! – berrava o doidão. – Vou te
pegar!
Apavorados, os dois começaram a recuar para a
saída, mas já era tarde! A Verdade Absoluta agarrava a
corrente de uma das bolas e começava a girá-la no alto
da cabeça! Logo conseguiu grande impulso e soltou a
bola na direção de Alice!
– Cuidado, menina!
A menina abaixou-se, e a bola de ferro passou per-
tinho de sua cabeça! Presa pelos tornozelos, a Verdade
Absoluta, de pernas abertas, com uma das bolas de fer-
ro atirando-a à frente e com a outra bola vindo por trás,
passou também por sobre Alice e foi chocar-se com o
Sábio Didi, derrubando-o no chão!
– Eu sou a Verdade Absoluta! Absoluta! Só eu, só eu
tenho a Verdade! – berrava ela, atracada ao Sábio, que

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procurava segurá-la, para impedir que ela pulasse sobre
Alice.
– Fuja, menina! – gritava o Sábio Didi. – Fuja da
Verdade Absoluta! Ela quer destruir a beleza que existe
dentro de você! Fuja!
Alice não esperou segunda ordem e saiu correndo,
do mesmo jeito que havia fugido do País da Mentira.
A Verdade Absoluta conseguiu livrar-se do velho
sábio e, arrastando as bolas de ferro, com uma expres-
são tresloucada, erguendo seu livro, gritava:
– Eu vou te pegar! Vou te pegar! Só siga o que eu
digo! Sou a Dona da Verdade! Eu vou te pegar! Só leia
este livro! Só este livro traz a Verdade!
A mão da Verdade Absoluta, uma garra disforme,
estendeu-se e agarrou o chapéu emplumado de Alice,
arrancando-o! Mas a menina safou-se, correndo a valer!
Enquanto corria, atrás de si a menina ouvia a voz do Sá-
bio Didi, que, estranhamente, aconselhava:
– Aprenda a escolher! Você tem de descobrir a dife-
rença! Aprenda a escolher, Alice!

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14 A MELHOR E
A PIOR COMIDA
DO MUNDO

Fugindo o mais rápido que conseguia, Alice chegou à


encruzilhada onde havia encontrado o gordão, que lá con-
tinuava, quebrando banquinhos e estatelando-se no chão.
– Oooops! Oooops! Oooops!
“Nesta encruzilhada, sobrava um caminho. É por lá
que eu vou!”, decidiu a menina. Enfiou-se pelo caminho
da esquerda e, repentinamente, nem as ameaças da Ver-
dade Absoluta nem os Oooops! eram mais ouvidos.
A paisagem mudava completamente. Dessa vez, o
caminho serpenteava por um bosque bem fechado. Aos
poucos, as árvores foram rareando e a menina encon-
trou-se numa clareira. À sua frente, estava um casteli-
nho pequeno e muito antigo. Só não parecia um castelo
perfeito porque tinha chaminés em lugar de torres. E
todas fumegando!
“Que castelo mais esquisito! Bem, vamos ver o que
há nele.”
Andou até o que parecia ser a porta principal. Ali
estava um cartaz que dizia “Cozinha da Duquesa”.
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“Hum... acho melhor procurar a entrada social des-
te castelinho...”, pensou a menina. “Só pessoas muito ín-
timas devem entrar pela porta da cozinha...”
Deu a volta no castelo, mas, em cada porta que en-
contrava, sempre havia o mesmo cartaz: “Cozinha da
Duquesa”.
Acabou voltando à porta maior. Desta vez ela es-
tava aberta e uma mulher gorda, de avental e colher de
pau na mão, olhava-a desconfiada:
– Quem é você? O que quer aqui? O jantar ainda
não está pronto.
– Eu... bem, eu sou Alice. É que eu estava fugindo
da Verdade Absoluta e...
– Fugitivo é gelatina de framboesa em assadeira
untada com manteiga da Guiné – cortou a mulher, seca-
mente. – E aqui não é lugar de fugitivos. Aqui é a Cozi-
nha do Castelo da Duquesa.
– Da Duquesa? Ela está?
– Não está. Só chega na hora do jantar. E vá entrando
logo porque eu não posso ficar perdendo tempo.
Alice lembrou-se da pimenteira que tinha encon-
trado no Baú do Sótão do Espelho e perguntou:
– A senhora é que é a Cozinheira da Duquesa?
– Não está vendo? Ande logo que eu tenho panelas
no fogo.
Alice entrou atrás da mulher e... Bem, a menina ja-
mais tinha entrado em qualquer castelo, mas conhecia
muitos deles pelas ilustrações de seus livros de contos de
fadas. E o interior daquele castelinho não se parecia em

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nada com o que ela imaginava de castelos: tudo era uma
enorme cozinha, com vários fogões a lenha, todos acesos
e todos cheios de panelas fumegantes!
– O jantar ainda vai demorar – disse a Cozinheira
da Duquesa. – Enquanto isso, você pode ir comendo a
sobremesa.
– A sobremesa? – espantou-se Alice. – Mas sobre-
mesa a gente come depois das refeições!
– Quem é que entende de comida aqui? – perguntou
a Cozinheira com ar de superioridade. – Sou eu ou é você?
– Perdão... é que eu...
– Você não sabe o que é perdão. “Perdão” é biscoito
de chocolate com recheio de baunilha. É este aqui, pode
pegar.
– Não tem com recheio de morango?
– Tem, mas com recheio de morango é perdão de
mentiroso, que finge perdoar, mas não perdoa coisa ne-
nhuma.
– E sorvete?
– Sorvete não serve. É só uma desculpinha. Derrete
logo e perde o valor.
– E este biscoito?
– Isso é sequilho. Esfarela logo. Não passa de des-
culpa esfarrapada.
Alice pegou o biscoito de chocolate com recheio de
baunilha. Como ainda não tinha almoçado nem jantado
e não queria perder o apetite para o almoço (ou para o
jantar), guardou-o no bolso do avental, pra depois do al-
moço (ou do jantar, sei lá).

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A cozinheira andava de um fogão para o outro, de
uma panela para a outra, mexia, provava e chegava sem-
pre à mesma conclusão:
– Hum... está faltando pimenta! Tenho de pôr mais
pimenta! Mais pimenta!
E salpicava o conteúdo de cada panela com uma
pimenteira igualzinha à que Alice havia encontrado no
Baú.
– O que a senhora está cozinhando? – perguntou
Alice.
– Nesta panela? Estou cozinhando a melhor ­comida
do mundo!
– A melhor comida do mundo? – e a menina já co-
meçou a pensar em seus pratos prediletos. – E qual é a
melhor comida do mundo?
– É língua, ora essa!
– Língua?! Nunca ouvi dizer que língua seja a me-
lhor comida do mundo...
– O que pode haver de melhor do que a língua,
menina? É a língua que une os povos, que aproxima as
pessoas. Se não houvesse a língua, como a gente ia se en-
tender? Sem a língua como é que os poetas iam escrever
seus versos? O que é que os escritores iam fazer com as
suas ideias? Com a língua se ensina, se reza, se explica,
se canta, se descreve, se elogia, se demonstra, se afirma.
Com a língua dizemos “Mãe”, “Paz”, “Amor”. O que pode
haver de melhor do que a língua, menina?
Alice teve de concordar com a Cozinheira da Du-
quesa. Quer dizer, concordou com a história de a ­língua

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falada e escrita ser uma coisa muito boa, mas não pode-
ria concordar com aquela panelada de língua ensopada
ser a melhor comida do mundo...
A cozinheira andou até outro fogão e passou a me-
xer em outra panela.
– E agora? – perguntou Alice. – O que a senhora
está cozinhando?
– Estou cozinhando a pior comida do mundo!
– A pior? E que comida é essa?
– É língua, claro!
– Língua?! Mas a senhora não disse que língua era
a melhor comida do mundo?
– A língua é o que há de pior, menina. É ela que
divide a humanidade, que separa os povos. É a língua
que usam os maus políticos quando querem nos enga-
nar com suas falsas promessas. É a língua que usam
os vigaristas quando querem trapacear. É a língua que
mente, que engana, que explora, que blasfema, que in-
sulta, que xinga, que bajula, que calunia, que vende, que
seduz, que corrompe. Com a língua, dizemos “maldito”,
“canalha”, “ódio”. O que pode haver de pior do que a lín-
gua, menina?
Dessa vez, lembrando-se da batalha contra a Dúvi-
da no País da Verdade, Alice discordou:
– Não está certo! O Filósofo Totó, que eu não conheço,
mas que deve ser uma pessoa muito importante, diz que
uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. É uma
coisa que ele inventou, um tal de Axioma, que serve tam-
bém como raio contra bruxas bombardeiras, que ­jogam

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dúvidas em todo mundo. E um Axioma é uma Verdade
Indiscutível. Como pode então a língua, ao mesmo tempo,
ser a melhor e a pior de todas as coisas?
– Depende de a pessoa conhecer bem ou não conhe-
cer direito a própria língua, menina. Quem não conhece
a língua, quem conhece poucas palavras da língua, não
entende o que ouve nem consegue falar o que pensa. É
preciso aprender bem a própria língua, pra não ser en-
ganado por quem a conhece. Aprenda a escolher, me-
nina. É preciso saber escolher. Você tem de descobrir a
diferença! Aprenda a escolher!
Alice ficou matutando:
“A língua depende do uso que se faz dela? É... Até
os tais Axiomas dependem do uso que se faz deles...”
A Cozinheira da Duquesa remexia em um caldei-
rão e provava seu conteúdo, concluindo:
– Ah! Está faltando pimenta! Mais pimenta! Mais
pimenta!
– E agora? O que a senhora está cozinhando? – per-
guntou a menina.
– Orelhas de frango.
– Orelhas de frango?! – espantou-se a menina. –
Mas frango não tem orelha!
– Como não tem? Então por que é que as galinhas
vêm correndo quando a gente entra no galinheiro fa-
zendo pi-pi-pi-pi-pi e jogando milho pra elas? E por que
elas fogem quando a gente diz xô, galinha? Não há nada
mais importante do que orelhas, menina! A língua
pode estar dizendo uma coisa e a orelha ouvindo outra!

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É difícil aprender a ouvir, Alice, nem adianta preferir
orelhas grandes como as dos elefantes em vez das in-
visíveis, como as dos beija-flores. Muita coisa depende
mais do modo que se ouve do que do modo que a coisa é
dita. É preciso aprender a ouvir! Aprenda a ouvir, me-
nina Alice!
“Língua boa e língua má... Orelhas que ouvem bem
e orelhas que ouvem mal... Dúvidas que se combatem
com Axiomas e Dúvidas que nos defendem da Verdade
Absoluta. Como é que se descobre a diferença?”, con-
fundia-se Alice.
Vendo a menina pensativa, a Cozinheira da Duque-
sa voltou-lhe as costas e mergulhou sua colher de pau
no caldeirão.
– Mas agora eu não tenho tempo pra conversas
nem sei se você tem orelhas de elefante ou orelhas de
beija-flor. De que adianta ficar falando coisas se a gente
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não sabe como é que os outros estão ouvindo? Tenho
mesmo é de terminar o jantar, antes que a Duquesa che-
gue. Hum... vamos experimentar o tempero... Ui! Está
faltando pimenta! Está faltando pimenta! Mais pimenta!
Mais pimenta!
E salpicava pimenta em todas as panelas, em quan-
tidade! Parecia que aquela pimenteira era inesgotável
como os Axiomas, e aquelas comidas já deviam estar se
tornando intragáveis!
– Mais pimenta! Mais pimenta! – falava a Cozinhei-
ra, agora vindo apimentar os doces e biscoitos que esta-
vam perto de Alice.
E uma nuvem de pimenta levantou-se! L
­ evantou-se
até o nariz de Alice que...
– ... AAAA...
... foi formando um grande...
– ... AAA...
... bem grande...
– ... AAA...
... maior ainda...
– ... AAAA...
Perdida na nuvem de pimenta, a voz da Cozinheira
da Duquesa dizia:
– Aprenda a escolher! Você tem de descobrir a dife-
rença! Aprenda a escolher, Alice!
– ... AAAATTTCHIMMMM!

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15 O BISCOITO
DE CHOCOLATE

Você se lembra, não é? É impossível espirrar de


olhos abertos. Então é claro que Alice teve de fechar
os olhos bem fechados pra espirrar e, quando abriu os
olhos um segundo depois...
Estava de novo no Sótão da Vovó!
Olhou em volta. Na parede do Sótão da Vovó, o qua-
drinho mostrava a frase “Lar doce lar” e, no Sótão do
Espelho, a frase era

ral ecod ral


Pronto. Tudo estava em ordem outra vez.
Mas ainda faltava uma coisa. Talvez a coisa mais
importante para Alice.
A menina pegou rapidamente o tabuleiro e a caixa
com as peças de xadrez de dentro do Baú, desceu cor-
rendo as escadas e chegou radiante no quintal da Vovó.
E foi gritando:
– Juninhoooo! Juninho, cadê você?
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O menino estava sentado no galho da goiabeira, a
passagem mais fácil entre o quintal de sua casa e o quin-
tal da Vovó. E a menina foi encontrá-lo de cabeça baixa,
envergonhado.
– Alice... eu... – começou o menino, quando viu a
amiga. – Eu queria dizer que...
Alice subiu agilmente na goiabeira e chegou perto
de Juninho em tempo de pôr o dedo na frente de seus
lábios:
– Não precisa dizer nada, Juninho. Eu aprendi
que a língua às vezes diz uma coisa e as orelhas ou-
vem outra, completamente diferente. Eu agora escolhi:
o que eu achava que tinha ouvido não era o que você
tinha dito.
– Hum... não estou entendendo...
– Não precisa entender. Quem não estava entenden-
do nada era eu. Mas agora estou aprendendo a escolher
o caminho certo. Olhe: eu trouxe um biscoito delicioso
pra gente comer...
Pegou o biscoito de chocolate com recheio de bau-
nilha do bolso do avental, partiu ao meio, ofereceu uma
metade ao amigo e ficou com a outra para si.
– Este é o biscoito do Perdão. Você come uma meta-
de e eu perdoo o que eu acho que você disse e eu como a
outra metade e me perdoo por ter achado que você disse
o que você não disse...
– Hein?! Que disse-me-disse é esse?
– Deixe pra lá! Vamos comer o biscoito e tudo fica
certo. Está tudo certo, não está, Juninho?
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Com a boca cheia, o menino sorriu, radiante:
– É claro que está, Alice!
– Sabe, Juninho? – revelou a menina. – Tudo o que
se estraga pode ser consertado. É só querer, não é?
– Acho que é...
– Então tudo acabou. Vamos brincar. Venha!
Os dois desceram da goiabeira e Alice convidou:
– Vamos jogar xadrez?
– Mas eu não sei jogar xadrez!
– Nem eu. A gente inventa. Olha: estas são as Ver-
dades e estas são as Mentiras. Este é o Barão Mimi e este
é o Sábio Didi...
– E quem fica com a Verdade e quem fica com a
Mentira?
– Eu fico com a Verdade.
– Não, quem fica sou eu.
– Então vamos tirar no par ou ímpar – sugeriu ela,
lembrando-se do gordão do País da Verdade.
– Ímpar!
– Par!
– Ganhei!
– Não vale, vamos fazer melhor de três.
– Par!
– Par!
– Nós dois ganhamos!
– Ei, você não tem mais um biscoitinho daquele?
– Daquele não, mas lá na cozinha da Vovó tem uma
lata cheia com todo tipo de biscoito.
– Biscoito da Vovó! Oba, são os melhores! Vamos!
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E lá se foram os dois, correndo, em busca dos bis-
coitos da Vovó.
Alice estava feliz. Tinha feito a escolha certa e com
isso havia conseguido recuperar a amizade do Juninho.
É... Alice estava aprendendo a escolher. Talvez, ao longo
de sua vida, nem sempre ela consiga fazer a escolha cer-
ta. Mas tinha aprendido o caminho.
Bom, agora eu já vou indo. Adeus, ou... até breve! A
gente se encontra em algum outro livro por aí.

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VERDADES DE MENTIRA
E MENTIRAS DE
VERDADE

Nesta história, no meio de tanta mentira e de tanta


verdade, há algumas verdades (ou mentiras bem conta-
das!) que já existiam antes de Alice no País da Mentira
ser escrito. Veja só:

A primeira Alice
Lewis Carroll, um inglês que nasceu em 1832 e
morreu em 1898, gostava muito de contar histórias para
a filha de um amigo, chamada Alice Liddell. Certa vez,
numa viagem de barco, ele inventou uma história bem
maluca em que a personagem principal tinha o nome da
menina. A história era tão boa que ele escreveu-a em um
livro chamado Alice no País das Maravilhas e logo em ou-
tro, chamado Através do Espelho e o que ­Alice encontrou lá,
dois livros maravilhosos. A personagem Alice talvez seja
o marco verdadeiramente inaugural da Literatura In-
fantojuvenil, pois é o primeiro livro que usa uma criança
com sua imaginação e seus sonhos como protagonista.
A “minha” Alice é do mesmo jeito: usa seu humor, sua
graça e sua imaginação pra aprender a diferença entre a
Verdade e a Mentira.
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O Barão Mimi, ou Barão de Minch-ráuzen
Esta é a maneira brasileira de pronunciar o sobre-
nome de um militar alemão chamado Hieronymus Karl
Friedrich, o Barão von Münchhausen. Esse mentiroso,
que viveu de 1720 a 1797, depois de aposentado vivia con-
tando exageradas e fantasiosas aventuras pelas quais ele
afirmava ter passado em guerras e caçadas. Um cientista
alemão chamado Rudolph Erich Raspe (1737-1794) nar-
rou essas mentirinhas em um pequeno livro chamado
As aventuras do Barão de Münchhausen. Logo em seguida,
vários outros escritores imitaram o tal Raspe, e o mais
famoso deles foi Gottfried August Büerger (1747-1794),
cujo livro As aventuras do Barão de Münchhausen é um
clássico do humor. As mentiras que o personagem Barão
Mimi conta são resumos das mentiras inventadas por
Büerger.

Guerra da Crimeia
O Barão Mimi toda hora fala na tal Guerra da Cri-
meia, onde ele teria passado por muitas aventuras. Essa
guerra, que aconteceu de verdade entre 1854 e 1856, foi
um desastre em que morreu muita gente e que envolveu
a Rússia, a França, a Inglaterra e mais mercenários de
outros países. Naturalmente, essa guerra ainda não tinha
ocorrido quando Büerger escreveu seu livro. Portanto,
esta é uma mentira inventada pelo Pedro Bandeira.

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A personagem Ficção diz a Alice: Estou escre-
vendo um poema muito triste e tenho de fingir tão
completamente, que chego a fingir que é dor a dor
que deveras sinto...

A personagem cita o trecho de um poema escrito por


Fernando Pessoa, o grande poeta português que nasceu
em 1888 e faleceu em 1935. O trecho do poema é este:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente,
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.

O Sábio Didi, ou Diógenes de Sínope


Diógenes de Sínope foi um filósofo grego que nasceu
em 413 a.C. e morreu em 323 a.C. Ele queria viver sem
luxo algum, somente com o necessário, e dizem que mo-
rava dentro de um tonel. Contam que, às vezes, ele saía
com uma lanterna acesa na mão, em pleno dia, dizendo
que estava à procura de um homem honesto. Certa vez,
o imperador Alexandre, chamado “o Grande”, visitou-o
e perguntou se ele precisava de alguma coisa. Em vez de
pedir algo de valor, Diógenes disse que tudo o que queria
do imperador é que ele se afastasse de sua frente, pois
seu corpo fazia sombra e ­estava ­bloqueando a luz do Sol.

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A Fidelidade de Penélope
Penélope é uma personagem da Odisseia, uma
obra literária muito antiga. Deve ter sido escrita entre
os ­séculos X e VIII a.C., e sua autoria é atribuída a um
grego chamado Homero, mas, como a coisa é muito an-
tiga mesmo, nunca vai se ficar sabendo disso direitinho.
A Odisseia é um poema longo, muito belo, que conta as
aventuras do herói Ulisses, no que ele se envolve ao vol-
tar da guerra de Troia para a Ilha de Ítaca, onde morava
antes de sair para a luta. No livro que você acabou de ler,
há um resuminho da história de Ulisses e do amor de
Penélope.

O Filósofo Totó, ou Aristóteles


Aristóteles foi um dos mais importantes filósofos da
humanidade, nascido em 384 a.C. e falecido em 322 a.C.
Foi aluno do filósofo Platão, que, por sua vez, foi aluno do
filósofo Sócrates. Aristóteles foi professor do futuro impe-
rador Alexandre, o Grande, aquele mesmo que tapava o
Sol ao falar com o Sábio Diógenes.

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AUTOR E
OBRA

© Will Sandrini
Meu nome é Pedro Bandeira. Nasci em Santos em
1942 e mudei-me para São Paulo em 1961. Cursei Ciências
Sociais e desenvolvi diversas atividades, do teatro à publici-
dade e ao jornalismo. A partir de 1972 comecei a publicar pe-
quenas histórias para crianças em publicações de banca até,
desde 1983, dedicar-me totalmente à literatura para crian-
ças e adolescentes. Sou casado, tenho três filhos e uma porção
de netinhos.

Alice no País da Mentira é uma história que me diver-


tiu muito quando eu a inventei. E, se eu a inventei, tudo não
passa de mentira, não é? É claro que é! Desde pequeno, eu sem-
pre tive muito jeito pra isso. Pra escrever histórias? Não. Pra
contar mentira. Quando eu era criança e vinha com minhas
mentirinhas, acabava levando bronca: “Menino mentiroso! Já
de castigo!”. O gozado é que, muito mais tarde, quando come-
cei a contar minhas mentiras por escrito, todo mundo passou
a dizer: “Mas que criativo!”. Pois é: em mentira escrita todo
mundo acredita... E mentira é uma coisa muito feia, você não
acha? Nem sempre. Há mentiras de todo jeito e há verdades
também que... Bom, você acabou de ler Alice no País da Men-
tira e descobriu por você mesmo, não descobriu? E, se gostou
da descoberta, trate logo de ler as outras mentiras que eu contei
por escrito. São muitas! Tem O fantástico mistério de Feiu-
rinha, A droga da obediência, A marca de uma lágrima,
Descanse em paz, meu amor... São tantas mentiras que, se
eu ainda fosse criança, ia ficar de castigo toda hora!

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PARA SABER MAIS
Quem inventou este livro fui eu, o velho Pedro Ban-
deira, um escritor paulista que há 40 anos vive inventando
histórias para jovens. Eu acabo de falar “inventando” (ou
melhor, eu acabo de escrever “inventando”...) porque todo
­escritor escreve histórias que não aconteceram, a não ser na
imaginação dele. Mas imaginação não é mentira, você não
concorda? Pois esta é a minha vida: inventar histórias pra
divertir seus alunos, pra fazê-los sonhar, pra vê-los mergu-
lhar junto comigo na delícia da própria imaginação deles!
Nesta história, a menina Alice mete-se em uma aven-
tura fantástica, só pra poder entender o que se esconde no
significado de cada palavra, como “calúnia” e “demagogia”,
por exemplo. E faz uma viagem de imaginação como se
cada palavra de um dicionário pudesse ganhar vida e ficar
pulando na sua frente, pra que você possa entender direi-
tinho aquilo que ela quer dizer. Isso porque, como eu e a
Alice pensamos, cada detalhe da nossa vida, cada sentido
de nossas ações, está guardadinho dentro de uma palavra
especial, uma palavrinha que, se seu aluno não entender o
que ela diz, ele nem percebe o que ela significa na vida dele.
E daí não entende nadinha do que está acontecendo!
E esta divertidíssima Alice, curiosa como ela só, mete-
-se no mundo da mentira e no mundo da verdade, pra des-
cobrir a diferença entre cada palavra da nossa língua, o que
cada uma significa direitinho, pra nunca mais se confundir
e pra entender tudo o que se diz a sua volta, a vida inteira.
Muita gente poderia dizer “Ora, mas pra isso bastaria ler o
dicionário!”. Talvez sim, mas ficar lendo o dicionário é mui-
to chato! Ninguém fica lendo o dicionário o tempo todo, por
isso é muito mais divertido entender as coisas brincando
com elas, conversando com elas, chorando com elas, rindo
com elas, de mãos dadas com elas, como vivem os namora-
dos que se amam de verdade! E esse é o papel da Literatura!

Pedro Bandeira

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PEDRO BANDEIRA

PEDRO BANDEIRA
Depois de brigar com seu melhor amigo, Alice
viaja ao maluquíssimo País da Mentira, desco-
brindo que as mentiras não são todas iguais.
Há algumas até engraçadinhas, como a Men-
tira Caridosa, mas outras horrorosas, como a

ALICE NO PAÍS DA MENTIRA


Calúnia e a Mentira Cabeluda. Fugindo desta,
Alice acaba chegando ao País da Verdade e
ali descobre que falar a verdade nem sempre
é bom: há algumas, como a Verdade Absolu-
ta, que podem ser tão feias quanto a Mentira
Cabeluda! Depois de muito humor, confusões,
perigos e descobertas, a menina volta pra casa
tendo aprendido a importância do perdão...

Ilustrações
Osnei Rocha

MANUAL DO PROFESSOR

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