03.COUTINHO JORGE, M. A. - A Faca de Lichtenberg

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A FACA DE LICHTENBERG

T enho sobretudo necessidade de lhes falar


com inteira franqueza e de lhes dizer, ainda
que isso m e custe, a inteira verdade. Se­
nhores, a medicina que eu devo lhes ensi­
nar é uma ciência por fazer;. . .
F. Magendie, Leçons sur les fonctions et les
maladies du système nerveux

E u digo toda a verdade: não toda, porque


dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é
impossível, materialmente: as palavras fal­
tam. É mesmo por este impossível que a
verdade tem a ver com o real.
J. Lacan, Têlévisiorí1

}. Lacan denominou a International Psychoanalytical Association


de SAMCDA, abreviatura de Sociedade de Auxílio M útuo Contra
o Discurso Analítico, acrescentando que Freud sabia, a partir da
experiência que tivera com seus prim eiros discípulos, que concebia
com esta finalidade a organização para a qual legara o discurso
psicanalítico.3 Não deixa de surpreender que encontremos no texto
freudiano a precisa indicação das palavras de Lacan, que são, na
verdade, textualm ente as de Freud: “ Visto que a ciência oficial lan­
çara um anátema solene contra a psicanálise e tinha declarado um
boicote contra médicos e instituições que a praticassem, achei que
seria conveniente os partidários da psicanálise se reunirem para uma
troca de idéias amistosa, e para apoio m útuo. Isso, e nada mais, foi

59
60 sexo e discurso em Freud e Lacan

o que esperava alcançar com a fundação da Associação Psicanalítica


Internacional. Mas tudo leva a crer que era querer demais. Do mesmo
modo que os meus adversários iriam descobrir que não era possível
lutar contra a corrente do novo movimento, assim também eu aca­
baria percebendo que este não seguiria a direção que eu desejava
vê-lo seguir.”4
Qual foi, com efeito, a experiência de Freud com estes primei­
ros discípulos? Para responder a esta pergunta, nada melhor do que
ler o texto que o próprio Freud escreveu sobre o assunto, A história
do m ovim ento psicanalítico, no qual não é difícil evidenciar que,
pelo menos em seus prim órdios, a história do movimento psicanalí­
tico é a história da resistência à psicanálise.
Nesse trabalho publicado em 1914, Freud se dedica quase ex­
clusivamente a estabelecer a crítica às distorções que a psicanálise
sofrera através da palavra de seus primeiros d'scíp-K-s
Logo no parágrafo inicial, Freud introduz o ton t, ral do que
tratará: “ Não é de se estranhar o caráter subjetivo desta 'cntribuição
que me proponho trazer à história do movimento psicana.- 'co, nem
deve causar surpresa o papel que nela desempenho, pois a ,'sicaná-
lise é criação minha; durante dez anos fui a única pessoa que se
interessou por ela, e todo o desagrado que o novo fenômeno desper­
tou em meus contemporâneos, desabou sobre a minha cabeça em
forma de críticas. Embora, de muito tempo para cá, eu tenha deixado
de ser o único psicanalista existente, acho justo continuar afirmando
que ainda hoje ninguém pode saber melhor do que eu o que é psi­
canálise, em que ela difere de outras formas de investigação da vida
m ental, o que deve, precisamente, ser denominado de psicanálise
e o que seria melhor chamar de outro nome qualquer. Ao repudiar
assim o que me parece nada menos que uma usurpação, estou
indiretam ente levando ao conhecimento dos leitores deste Jahrbuch,
os fatos que provocaram modificações em sua editoria e form ato.” '
A partir daí, o relato será o repertório das dissidências de seus
diversos discípulos e Freud não poupará nenhum daqueles que julga
terem se oposto de algum modo a sua descoberta.
Breuer escapuliu bastante precocemente ao formular a teoria
dos “ estados hipnóides”, colocando por terra o próprio conceito de
inconsciente, assim como o de recalcamento — “ pedra angular sobre
a qual repousa toda a estrutura da psicanálise” (Freud) — , que na
época ainda era chamado por Freud de defesa.
a faca de Lichtenberg 61

Dirigindo-se a uma reunião da Sociedade de Psiquiatria e Neu­


rologia de Viena, presidida por Kraft-Ebing, para dar uma confe­
rência, Freud percebe que “ o silêncio provocado pelas minhas comu­
nicações, o vazio que se formou em torno de mim, as insinuações
que me foram dirigidas, pouco a pouco me fizeram compreender que
as afirmações sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses,
não podem contar com o mesmo tipo de tratam ento dado ao comum
das comunicações. Compreendi que daquele momento em diante eu
passara a fazer parte do grupo daqueles que ‘perturbaram o sono
do m undo’, como diz Hebbel, e que não poderia contar com objeti­
vidade e tolerância.”6
Nos EUA, J. J. Putnam, professor de neuropatologia da Uni­
versidade de Harvard, entregou-se à sua inclinação filosófica e fez,
segundo Freud, uma “ exigência impossível: que a psicanálise se colo­
casse a serviço de uma concepção filosófico-moral particular do
Universo” .7
Ainda nos EUA, Brill rompeu com Freud por não concordar
que a psicanálise fosse praticada por não-médicos. Freud, no entanto,
não deixa de afirm ar que nos EUA a difusão do movimento psicana-
lítico, posterior à de Putnam, deveu-se a Brill e a Jones que “ em
suas publicações chamaram a atenção de seus compatriotas, com
incansável persistência, para os fatos fundamentais facilmente obser­
váveis da vida cotidiana, dos sonhos e da neurose” .8 Mas quando,
em seguida, Freud comenta que “ Brill reforçou essa contribuição
com sua atividade médica e com as traduções de minhas obras, e
Jones com suas conferências instrutivas e seu talento para o debate
nos congressos nos EUA”9, não podemos discernir se Freud está
fazendo uma crítica ou um comentário elogioso a Brill, pois ainda
sobre os EUA ele dirá mais à frente: “ Nos EUA, ainda é verdade
que a profundidade de compreensão da análise não acompanha a sua
popularidade.”10
“ A França” , diz Freud, “ é o país que se tem mostrado menos
receptivo à psicanálise” , e os trabalhos de Régis e Hesnard “ tenta­
ram diluir os preconceitos dos seus compatriotas contra as novas
idéias com uma minuciosa exposição, a qual, entretanto, nem sem­
pre denota compreensão, sobretudo no tocante ao simbolismo” . 11
Ainda na França, Janet afirmava que “ tudo de bom na psica­
nálise é repetição dos seus pontos de vista com insignificantes modi­
ficações, e o mais não presta” .12 Além disso, também afirmava que
62 sexo e discurso em Freud e Lacan

a psicanálise era um produto do ambiente de Viena. Quanto a isso,


Freud comenta que às vezes se sente inclinado a “ supor que me
acusarem de ser*vienense é apenas um substituto eufemístico de
outra acusação que ninguém ousa fazer abertam ente”13, ou seja, sua
origem judaica.
Quanto à própria Viena, diz Freud, ela “ tem feito o possível
para negar sua participação na gênese da psicanálise. Em nenhum
outro lugar a indiferença hostil da parte erudita e educada da popu­
lação para com o analista é tão evidente como em Viena.”14
O famoso psiquiatra alemão Bleuler escreve um artigo em 1910,
intitulado “ A psicanálise de Freud: uma defesa e algumas observa­
ções críticas” , que Freud qualifica de “ complacente” para com os
adversários da psicanálise e m uito rigoroso quanto às falhas de seus
partidários: “ Essa característica do artigo talvez explique por que
o parecer público de um psiquiatra de tam anha reputação, de capa­
cidade e independência tão indiscutíveis, não teve uma influência
m aior sobre seus colegas.”15
Em 1913, Bleuler m ostrará o verdadeiro sentido daquela com­
placência original, escrevendo um artigo, “ Crítica da teoria freu­
diana” , que, no dizer de Freud, “ abala tanto a estrutura da teoria
psicanalítica, que nossos adversários devem ter ficado satisfeitos com
a ajuda que lhes foi dada por esse defensor da psicanálise” .13
Finalmente, o terceiro capítulo deste trabalho de Freud é dedi­
cado a comentar os desvios teóricos de dois de seus mais importantes
discípulos, Adler e Jung: “ Desejo apenas m ostrar que essas teorias
contrariam os princípios fundamentais da psicanálise (e em que
pontos os contrariam ) e que por essa razão não devem ser conheci­
das pelo nome de psicanálise.”17
Q uanto a Adler, ele abandonou a Sociedade de Viena, fundou
a “ curiosa” Sociedade de Psicanálise Livre e criou a Psicologia Indi­
vidual. Quais são as três grandes divergências que Freud enumera
na teoria de Adler? Contribuições úteis à psicologia do ego, tradu­
ções supérfluas, embora admissíveis, dos fatos analíticos para o novo
“ jargão” e distorções e inversões desses fatos quando não obedecem
às exigências do ego: “ Adler foi absorvido de tal forma pela estrei­
teza ciumenta do ego que leva em conta apenas os impulsos instinti­
vos agradáveis ao ego e por ele estimulados; a situação neurótica,
na qual os impulsos se opõem ao ego, é precisamente aquela que
fica além do horizonte de A dler.”18
a faca de Lichtenberg 63

Freud relata que Jung lhe escrevera dos EUA, em 1912, “ van­
gloriando-se de que suas modificações da psicanálise haviam vencido
as resistências de m uitas pessoas que até então não queriam nada
com ela. Repliquei que aquilo não constituía nenhum motivo de
vanglória, e que quanto mais ele sacrificasse as verdades da psica­
nálise conquistadas arduam ente, mais veria as resistências desapare­
cendo.”19
Freud acrescenta que essa modificação era “ mais uma vez, nada
mais do que impelir para o segundo plano o fator sexual na teoria
psicanalítica.”20 “ A libido sexual foi substituída por um conceito
abstrato, sobre o qual se pode dizer com segurança que continua
tão enigmático e incompreensível para os entendidos quanto para os
leigos.”21 E ainda: “ Criou-se um novo sistema ético-religioso que, tal
qual o sistema adleriano, estava destinado a reinterpretar, distorcer
ou alijar os achados efetivos da análise. A verdade é que essas pes­
soas detectaram algumas nuanças culturais da sinfonia da vida e
mais uma vez não deram ouvidos à poderosa e prim ordial melodia
das pulsões.”22
A teoria de Jung, “ que visa substituir a psicanálise, significa
um abandono e uma deserção da mesma” .23
É no final deste violento artigo que Freud se vale da metáfora da
faca de Lichtenberg: “ Mudou o cabo, e botou uma lâmina nova, e
porque gravou nela o mesmo nome espera que seja considerada como
o instrumento original.” 24

Considerando-se, então, que a história da psicanálise em seus


primórdios, tal como contada pelo próprio Freud, é, na verdade, a
história da resistência à psicanálise, é preciso nos determos em dois
trabalhos de Freud intitulados Resistências à psicanálise (1925) e
Uma dificuldade no caminho da psicanálise (1917).
Neste último trabalho, Freud desenvolve, de um modo bastante
abrangente e geral, os motivos pelos quais a psicanálise desenvol­
veria de imediato uma forte resistência em muitos homens. Isso se
daria, sobretudo, devido às duas descobertas principais da psicaná­
lise: “ - • • a de que a vida das nossas pulsões sexuais não pode ser
inteiramente domada, e a de que os processos mentais são, em si,
inconscientes, e só atingem o eu e se submetem ao seu controle por
meio de percepções incompletas e de pouca confiança — , essas duas
64 sexo e discurso em Freud e Lacan

descobertas equivalem, contudo, à afirmação de que o eu não é o


senhor da sua própria casa.”25 E acrescenta mais à frente: “ Não é
de espantar, então, que o eu não veja com bons olhos a psicanálise
e se recuse obstinadam ente a acreditar nela.”28
Freud denomina a isso de o terceiro golpe, o golpe psicológico
que o homem sofreu, que é o do descentram ento do sujeito em
relação a si mesmo. A esse respeito, diz ele, dirigindo-se a um su­
posto interlocutor: “ O que está em sua m ente não coincide com aqui­
lo de que você está consciente; o que acontece realm ente e aquilo
que você sabe, são duas coisas distintas.” 27 Trata-se, aqui, da exis­
tência do saber do O utro e da excentricidade do sujeito em relação
ao eu. Trata-se, ainda, do caráter em inentemente imaginário do eu,
no qual Lacan insistirá desde o trabalho sobre O estádio do espelho
— o eu é um objeto im aginário e sede da alienação fundam ental,
sede do desconhecimento, do não querer saber do O utro. Para ilus­
trar isso, e acrescentando que os poetas, que não sabem o que dizem,
dizem ainda assim as coisas antes dos outros, é que Lacan cita, no
seminário sobre o eu, a frase de Rimbaud: “Je est un autre.”'3
Para nós, o que interessa aqui é que Freud situa as resistências
à psicanálise ao nível do eu, da instância narcísica por excelência.
O golpe psicológico no narcisismo dos homens, diz Freud, sucede-se
a outros dois. O prim eiro, o golpe cosmológico, dado por Copérnico
no século XVI, foi o que descentrou a Terra do centro do Universo
e o segundo, o golpe biológico, foi o dado por D arw in, ao form ular
a teoria da ascendência anim al do h om em .29
No artigo sobre Resistências à psicanálise, Freud situa o proble­
ma de modo mais específico. Formula que a fonte de desprazer que
um a criança experim enta ao ver um rosto estranho, que o homem
piedoso aplaca ao começar um a nova estação com um a prece e sau-
d ar os primeiros frutos do ano com uma bênção, e que motiva um
camponês a se recusar a com prar uma foice que não possua a m arca
que lhe é familiar, é a mesma — a fonte desse desprazer é a exi­
gência feita à m ente por algo que é novo.30
Freud continua dizendo qüe uma recepção particularm ente des­
favorável foi concedida à psicanálise e passa a estudar os motivos
“ da resistência à psicanálise, dando ênfase específica ao caráter
composto dessa resistência e na variada soma de valor aportada por
seus com ponentes” .31
De saída, é a resistência por parte dos médicos que ele aborda,
dizendo que “ se alguém conseguisse isolar e dem onstrar a substância
a faca de Lichtenberg 65

ou as substâncias hipotéticas relacionadas às neuroses, não teria ne­


cessidade de se preocupar com oposição por parte da profissão mé­
dica” .32 E mais à frente: “ O ra, tanto os experimentos de Charcot
quanto as observações clínicas de Breuer nos ensinaram que os sinto­
mas somáticos da histeria também são psicogênicos — isto é, que são
precipitados de processos m entais que percorreram seu curso.”33
Prossegue Freud: “ A psicanálise apoderou-se dessa nova compreen­
são e começou a considerar o problem a da natureza dos processos
psíquicos que conduziam a essas conseqüências inusitadas. A direção
assumida por essa investigação não encontrou, porém, a simpatia
da geração contem porânea de médicos. Eles haviam sido ensinados
a respeitar apenas fatores físicos, anatômicos e químicos. Não estavam
preparados para levar fatores psíquicos em consideração e, portan­
to, enfrentaram-nos com indiferença ou antipatia. Obviam ente tinham
dúvidas de que eventos psíquicos permitissem algum tratam ento
científico exato, qualquer que fosse esse tratam ento. Como um a rea­
ção excessiva contra um a fase anterior, durante a qual a medicina
fora dom inada pelo que foi conhecido por ‘filosofia da N atureza’,
encaravam abstrações como aquelas com que a psicologia está obri­
gada a trabalhar, como nebulosas, fantásticas e místicas; ao passo
que simplesmente se recusavam a acreditar em fenômenos notáveis
que poderiam ter sido o ponto de partida de pesquisas. Os sintomas
das neuroses histéricas eram encarados como im posturas e os fenô­
menos do hipnotism o, como embuste. Os próprios psiquiatras, cuja
atenção estava sendo constantemente compelida para os mais inusi­
tados e espantosos fenômenos mentais, não m ostravam inclinação
para examinar seus pormenores ou investigar suas vinculações. Con-
tentavam-se com classificar o variegado conjunto de sintomas e re-
metê-los até onde podiam , a distúrbios etiológicos somáticos, ana­
tômicos ou químicos. D urante esse período m aterialista, ou melhor,
mecanicista, a medicina realizou avanços formidáveis, embora tam ­
bém mostrasse um a compreensão míope dos mais difíceis e im por­
tantes problemas da vida.”34

Nesse ponto, após esta extensa, embora necessária, citação de


Freud, é preciso fazer um parêntese para abordar um momento fun­
dam ental da história da medicina.
Tal momento foi, na verdade, isolado com relevo recentemente
pelo historiador C. Lichtenthaeler, em suas conferências publicadas
66 sexo e discurso em Freud e Lacan

sob o título Histoire de la médecine.i5 Segundo ele, foi F. Magendie,


fisiologista, farmacologista clínico e neurologista francês (1783-1855),
que instaurou um a ruptura radical com o passado da medicina e
inaugurou a medicina propriam ente m oderna.
Magendie encontra a medicina, no início do século X IX , numa
situação profundam ente confusa, mergulhada num a imensidão de es­
peculações. Magendie considerava a medicina de sua época um verda­
deiro ‘saco-de-gatos’, no qual prevalecia uma espécie de delírio teó­
rico que fazia com que o médico, ao invés de destacar as leis da
natureza, impusesse suas próprias leis. A medicina, para ele, era cons­
tituída de idéias preconcebidas e fórmulas que nada explicavam.38
As contribuições de Magendie podem ser resumidas da seguin­
te m aneira. Tratava-se, para ele, não mais de pôr em evidência fic­
tícias “ propriedades vitais” pela observação e pela experiência, mas
de estudar as funções do organismo, e isto exclusivamente por meio
da experimentação laboratorial. Seu objetivo declarado era o de de­
m onstrar a existência de fenômenos físicos e químicos nos seres vivos.
Isto o impelia a introduzir na fisiologia e na patologia os princípios
que já haviam sido demonstrados na física e na química. A fisiolo­
gia e a patologia deveriam, para ele, se tornar também ciências ex­
perimentais. Deste modo, Magendie se opunha a Bichat e a todos
os médicos de seu tempo.
Como diz Lichtenthaeler, foi Magendie, entre 1810 e 1840, que
fundou a medicina moderna, no seu essencial, com um verdadeiro
‘program a revolucionário’, cujas seis principais teses constituíam sua
revolução experimental:

1. A fisiologia e a medicina ainda estão para ser criadas como


ciências.
2. A física e a química já são verdadeiras ciências — ciências
experimentais — , opostamente à medicina. Magendie exemplificava
dizendo: se enviarmos vinte médicos, da mesma faculdade de Paris,
para ver um paciente, eles prescreverão vinte tratamentos diferentes.
Físicos e químicos, ao contrário, são unânimes em qualquer parte
do mundo, porque eles não formulam nada que não tenha sido veri­
ficado, antecipadamente, através de experiências.
3. Física e química são não apenas modelos para a fisiologia,
mas seus dois principais pilares. Desde a época de Aristóteles e Ga­
leno até o fim do século X V III, os impulsos dados às pesquisas fi­
siológicas provinham quase exclusivamente de observações anatômi-
a faca de Lichtenberg 67

cas. A fisiologia era uma anatomia animata. Foi por volta de 1800
que a física e a química põem a anatomia em segundo plano e se
tom am as principais fontes de informação para os fisiologistas. Clau-
de Bemard, aluno célebre de Magendie, disse que seu mestre passa­
ra a vida a dem onstrar a existência de processos físicos e químicos
nos seres vivos.
4. A fisiologia deve ser retom ada em sua base, exclusivamente
com o auxílio-da experiência, apoiando-se na física e na química.
Para Magendie, o importante era que a fisiologia lidasse com os
fatos, os quais são os únicos fundamentos da ciência. Trazer os fatos
à tona, cada vez em m aior número, apreender as relações que exis­
tem entre eles e as leis que os regem, é o que interessa.
5. A fisiologia é um a ciência médica autônoma, e não somente
um ramo da física e da química. Mas a fisiologia só pode ser ex­
plorada cientificamente por meio da física e da quím ica.
6. A patologia é a fisiologia patológica. A mera observação dos
sinais clínicos e das lesões macroscópicas é estéril, pois ela se esgota
em descrições sem trazer à tona as causas e os mecanismos das per­
turbações mórbidas. Ao invés de favorecer o progresso, ela conduz
a medicina a um impasse. As desordens funcionais se produzem antes
das lesões orgânicas e não o contrário •

Fizemos este longo parêntese para poder situar o contexto sim­


bólico imediato em que são proferidas as palavras de Freud, quando
diz que os médicos “ haviam sido ensinados a respeitar apenas fato­
res físicos, anatômicos e químicos. Não estavam preparados para
levar fatores psíquicos em consideração e, portanto, enfrentaram-nos
com indiferença ou antipatia. Obviamente tinham dúvidas de que
eventos psíquicos permitissem algum tratamento científico exato,
qualquer que fosse esse tratamento. Como uma reação excessiva con­
tra uma fase anterior, durante a qual a medicina fora dominada pelo
que foi conhecido por ‘filosofia da Natureza’, encaravam abstrações
como aquelas com que a psicologia está obrigada a trabalhar, como
nebulosas, fantásticas e místicas, ao passo que simplesmente se recusa­
vam a acreditar em fenômenos notáveis que poderiam ter sido o ponto
de partida de pesquisas.”3'
Desse modo, podemos situar de maneira precisa a tentativa de
Freud em esclarecer os pressupostos de sua doutrina, ao mesmo tem­
po que os motivos da resistência à psicanálise. Mais do que isso, é
68 sexo e discurso em Freud e Lacan

im portante notar que Freud se valia com a m aior freqüência de ana­


logias em relação às ciências naturais.
Basta ler um trecho de um texto de Freud intitulado Linhas de
progresso na terapia psicanalítica, de 1919, particularm ente im por­
tante na m edida em que, para responder à crítica que condenava o
fato de que após tanta análise do sujeito não sobreviesse um a sínte­
se, ele se vale de um a com paração com a química: “ Chamamos de
psicanálise o processo pelo qual trazemos o m aterial m ental recal­
cado para a consciência do paciente. Por que ‘análise’ — que signi­
fica dividir ou separar, e sugere um a analogia com o trabalho, levado
a efeito pelos químicos, com substâncias que encontram na nature­
za e trazem para os seus laboratórios? Porque, em um im portante
aspecto, existe realmente um a analogia entre os dois trabalhos. Os
sintomas e as manifestações patológicas do paciente, como todas as
suas atividades mentais, são de natureza altam ente complexa; os ele­
mentos desse composto são, no fundo, motivos, impulsos instintuais.
O paciente, contudo, nada sabe a respeito desses motivos elementares,
ou rião os conhece com intim idade suficiente. Ensinamo-lo a com­
preender a m aneira pela qual essas formações mentais, altam ente
complicadas, são compostas; remetemos os sintomas aos impulsos
instintuais que os motivaram ; assinalamos ao paciente esses motivos
instintuais, que estão presentes em seus sintomas, e dos quais até
então não tinha consciência — como o químico que isola a substân­
cia fundam ental, o ‘elem ento’ químico, do sal em que ele se com­
binara com outros elementos e no qual era irreconhecível. D a mes­
ma form a, no que diz respeito àquelas manifestações m entais do
paciente que não são consideradas patológicas, mostramos-lhe que
apenas em certa medida ele estava consciente da sua motivação —
que outros impulsos instintuais, dos quais permanecera em ignorân­
cia, haviam cooperado na causação dessas manifestações. Mais uma
vez, esclarecemos os impulsos sexuais no homem ao dividi-los em
seus elementos componentes; e, quando interpretam os um sonho,
ignoramos o sonho como um todo e derivamos associações dos seus
elementos em separado. Essa bem fundam entada comparação da ati­
vidade médica psicanalítica com um procedimento químico poderia
sugerir à nossa terapia um a nova direção. Analisamos o paciente —
isto é, dividimos os processos m entais em seus componentes elemen­
tares e demonstramos esses elementos instintuais nele, isoladamente;
o que seria mais natural do que esperar que também o ajudemos a
fazer um a nova e m elhor combinação deles? Os senhores sabem que
a faca de Lichtenberg 69

essa exigência tem sido realmente proposta. Disseram-nos que, após


a análise de uma mente enferma, deve-se seguir uma síntese. E, rela­
cionada com isso, tem-se expressado a preocupação de que o pacien­
te recebe análise demais e muito pouca síntese; e segue-se então um
movimento para colocar todo o peso nessa síntese, como o principal
fator no efeito psicoterapêutico, para, nela, ver-se uma espécie de
restauração de algo que foi destruído — destruído, por assim dizer,
pela vivissecção. Senhores, não posso achar que essa psicossíntese
nos estabelece qualquer nova tarefa. Se me permitisse ser franco e
rude, diria que se trata apenas de uma frase vazia. Limitar-me-ei a
observar que se trata, simplesmente, de forçar tanto uma comparação,
que ela deixa de ter qualquer sentido, ou, se preferirem , que é uma
exploração injustificável de um nome. Um nome, no entanto, é ape­
nas um rótulo aplicado para distinguir uma coisa de outras coisas
semelhantes, não um símbolo, uma descrição de seu conteúdo ou uma
definição. E os dois objetos comparados precisam apenas coincidir
num único ponto, podendo ser inteiram ente diferentes um do outro
em tudo o mais.”38
Freud acrescentava logo em seguida os limites dessa compara­
ção com a química: “ Aquilo que é psíquico, é tão único e singular,
que nenhum a comparação pode refletir a sua natureza. O trabalho
da psicanálise sugere analogias com a análise química, mas o sugere
também, na mesma medida, com a intervenção de um cirurgião, ou
com as manipulações de um ortopedista, ou com a influência de um
educador. A comparação com a análise química tem a sua limitação:
porque, na vida m ental, temos que lidar com tendênciàs que estão sob
uma compulsão para a unificação e a combinação. Sempre que con­
seguimos analisar um sintoma em seus elementos, liberar um im­
pulso instintual de um vínculo, esse impulso não permanece em iso­
lamento, mas entra imediatamente numa nova ligação.”39
Da leitura destas passagens de Freud é preciso extrair algumas
conclusões que a eloqüência de seu texto não perm itiria contrariar:
1. a história do movimento psicanalítico em seus primórdios é a his­
tória da resistência ao próprio discurso psicanalítico. 2. esta resis­
tência à psicanálise teve seu maior respaldo no interior do discurso
médico. 3. os motivos desta resistência da m edicina estão, entre outros
fatores, grandemente dependentes do fato de que a medicina come­
çava a se im por enquanto aplicação prática de diversas ciências
(atualidade da moderna medicina) e a chegada da psicanálise ecoa­
70 sexo e discurso em Freud e Lacan

va como um retrocesso às especulações filosóficas e místicas, nas quais


ela estivera envolvida em época imediatamente anterior ao advento
do discurso psicanalítico.
Que num nível teórico mais radical e diferenciador não se tra­
tava mesmo de inserir a prática psicanalítica na prática médica, o
próprio Freud se empenhou em dem onstrar em diversos momentos de
sua obra, e especificamente em um fexto dedicado a tratar exclusiva­
m ente esta questão — a questão da análise leiga.40

Notas

1. Citado em Bernardes de Oliveira, A., A evolução da medicina, Liv


Pioneira Ed., 1981, S. Paulo, p. 372.
2. Lacan, J., Télévision, Seuil, Paris, 1974, p. 9.
3. Lacan, op. cit., p. 33.
4. Freud, S., A história do movimento psicanalítico, Obras Completas
vol. XIV, p. 57.
5. Freud, s.. op. cit., p. 16.
6. Freud, S., op. cit., p. 32.
7. Freud, S., op. cit., p. 43.
8. Freud, S., op. cit., p. 43.
9. Freud, S., op. cit., p. 43.
10. Freud, s., op. cit., p. 46, nota de rodapé.
11.‘ Freud, S., op. cit., p. 44.
12. Freud, S., op. cit., p. 44.
13. Freud, s., op. cit., p. 52.
14. Freud, s., op. cit., p. 52.
15. Freud, s., op. cit., p. 53.
16. Freud, s., op. cit., p. 53-54.
17. Freud, s., op. cit., p. 63.
18. Freud, s., op. cit., p. 69.
19. Freud, s., op. cit., p. 73.
20. Freud, s., op. cit., p. 73.
21. Freud, s., op. cit., p. 77.
22. Freud, s., op. cit., p. 77.
23. Freud, s.. op. cit., p. 81.
24. Freud, s., op. cit., p. 81.
25. Freud, s.. Uma dificuldade no caminho da psicanálise, Obras Com-
pletas, Vol. XVII, p. 178.
26. Freud, S., op. cit., p. 178.
27. Freud, S., op. cit., p. 177.
28. Lacan, Le séminaire, Livre II, Seuil, p. 16.
29. A esse respeito, consultar o trabalho de Assoun, P. L., Freud, Co­
pernic et Darwin, publicado in Ornicar? n.° 22.
a faca de Lichtenberg 71

30. Freud, S., Resistências à psicanálise, Obras Completas, Vol. XIX,


p. 265.
31. Freud, S., op. cit., p. 267.
32. Freud, S., op. cit., p. 267.
33. Freud, S., op. cit., p. 267.
34. Freud, S., op. cit., p. 267-268.
35. Lichténthaeler, C., Histoire de la médicine, Fayard, Paris, 1978.
36. Vide epígrafe.
37. Freud, S., op. cit., p. 267.
38. Freud, S., Linhas de progresso na terapia psicanalitica, Obras Com-
pletas, Vol. XVII, p. 201-203.
39. Freud, S., op. cit., p. 203.
40. Freud, 'S., A questão da análise leiga, Obras Completas, Vol. XX,
p. 205.

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