#05 A Bastarda - Nahra-Mestre

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A Bastarda

Capítulo I

Londres, fevereiro de 1855

Enquanto enchia os cálices com vinho do Porto, Ann Granville Anson,


a ilha bastarda do duque de Sutherland, observava, pelo re lexo do
espelho do aparador, a interação entre duas mulheres que
representavam extremos opostos.
Julliet Granville, a duquesa de Sutherland, que para todos morrera
havia anos, de uma grave enfermidade, trocava genuínas gentilezas com
a intempestiva Izadora Senior. Clausura e liberdade. Juntas. De mãos
dadas, sorrindo para a vida, desa iando o destino, apesar da situação
em que ambas se encontravam.
Se Ann pudesse escolher a vida de uma das duas, não tinha dúvidas
de que escolheria a vida da tia Julliet. Apesar da liberdade de Izadora,
não seria capaz de sorrir daquela maneira. Muito menos conseguiria
desa iar a sociedade como a brasileira fazia.
Não, Ann jamais seria como Izadora. Principalmente depois de tudo
o que passara.
A estrangeira irreverente, mesmo perdendo todos que amava,
mantinha-se altiva e, ainda que ante os olhos da sociedade inglesa
aquela parecesse uma a irmação infame, Izadora naquele momento era
o epítome da elegância. Não se curvara diante da tristeza. A dor estava
lá, Ann podia ver, mas, ainda assim, a brasileira era sinônimo de vida.
Um sopro de esperança para um futuro incerto.
Lady Julliet Granville também jamais sucumbira, fosse qual fosse o
sofrimento. Ann nunca a vira chorar ou demonstrar fraqueza. Nobreza e
doçura estavam gravadas em cada movimento.
Tão diferentes e ao mesmo tempo tão parecidas.
Ann as invejava pela capacidade de estar sempre sorrindo, como se
as fatalidades do destino não as amedrontassem. Seria tolice não
acreditar num futuro predestinado por uma força maior. Ela acreditava
e tinha certeza de que aquelas duas mulheres tão diferentes foram
colocadas em sua vida por Deus.
— Precisa de ajuda, querida? — a voz da duquesa a trouxe de volta
para o presente.
Com um sorriso meigo, Ann se juntou a elas.
— Espero que a estada de Marcos e da ilha de Aziza aqui conosco
não seja um inconveniente. — Izadora bebericou de seu cálice, logo que
Ann colocou a bandeja em sua frente.
— Tenho certeza de que con ia nele, caso contrário não o colocaria
nesta casa. — Julliet tomou as mãos da brasileira. — Você lembra muito
a sua mãe, ainda mais bonita.
— Vossa graça conheceu minha mãe?
— Ela chegou com Cécile a Londres. Foram os meses mais adoráveis
de minha vida. — Julliet suspirou saudosa. — Lys era tempestade,
Cécile a calmaria. As duas se completavam. — A duquesa desviou os
olhos para Ann. — Assim como vocês duas, como Izabel e minha mãe.
— Baixou o tom de voz com um sorriso travesso. — Sua mãe saiu de
Paris fugida, ela jogou sebo de carneiro quente no rosto da irmã de
Lady Baldwin. — A duquesa não conteve uma risadinha. — Dizem as
más línguas que isso resultou em uma cicatriz terrível.
— Que coisa horrível de se dizer sorrindo, tia Julliet — Ann a
recriminou.
— Pelo que sei, Madame Bourdon mereceu. — A duquesa deu de
ombros. — Principalmente...
— Vossa graça — Pia interrompeu a duquesa com um olhar
recriminador. — O banho que pediu está pronto.
— Mas eu não pedi... — A duquesa ajeitou as saias. — É claro. Bem,
meninas, vou deixá-las a sós. — Acariciou os cabelos da brasileira e a
beijou. — Lamento muito pela sua dor, minha querida. Será bom ter um
homem nesta casa. Marcos e sua sobrinha são muito bem-vindos.
— Obrigada, vossa graça.
— Julliet — e, com uma elegância natural e o porte de uma
verdadeira dama inglesa, a duquesa acompanhou Pia.
Izadora trocou de lugar e se sentou ao lado de Ann.
— Você veio. — Ann tomou as mãos da amiga.
— É muita gentileza sua nos receber — Izadora não escondeu a
emoção.
— A casa é sua, baronesa de Fermoy — não ocultou o sarcasmo.
— Não ainda, o casamento não foi o icializado. Nossa an itriã é Lady
Izabel. — Izadora ergueu o copo para brindar. — Graças a ela, estamos
aqui agora.
A estrangeira caminhou até o aparador e serviu dois generosos
copos de brandy. Ann, que não estava acostumada a beber, assustou-se
com a quantidade. Vulgar, indecoroso, mas extremamente tentador.
— Fale sobre a criança. — A bastarda estava ansiosa para conhecê-
la.
— Marcos a chamou de Lys, uma homenagem a minha mãe. — Um
brilho emocionado cruzou os olhos da estrangeira. — Ela parece um
anjo. Dormimos na casa de John na noite passada. Todos acham que
estou voltando para o Brasil e que Marcos icará por uma temporada
com a criança. Seria estupidez enfrentar uma longa viagem de volta. —
Deu de ombros. — Ideia de Edward, ele acha que, se todos acreditarem
que Marcos está morando aqui, o movimento da casa não chamará
atenção. Bom, as visitas do primeiro-ministro, também não.
— Bom ponto — Ann concordou pegando um copo na bandeja. —
Sobre uma ama de leite e tudo mais que a pequena Lys precise...
— Edward está providenciando. — Ela sorriu com carinho. — Sarah
ofereceu a ama do pequeno Bronwen, chegará com eles no im da tarde.
— Parou por um instante. — Perdi tanto, Ann. Marcos é a única família
que me restou.
Ann se aproximou e abraçou Izadora.
— Não diga isso. Deus lhe deu uma família aqui na Inglaterra. Por
onde você passou, deixou seu encanto e todos caíram de amores pela
brasileira irreverente. Não está sozinha, Iza.
Sem delongar o breve momento de fragilidade, Izadora se recompôs,
virando o copo. Foi então que Ann se deu conta; a estrangeira usava um
vestido claro, de tom perolado. Talvez não tivesse tido tempo para se
preparar.
— Tenho alguns trajes de luto, preparei para quando voltasse ao
convívio da sociedade, já que teoricamente serei uma viúva. Você
poderia ajustá-los — Ann ofereceu receosa.
A estrangeira bufou.
— Edward providenciou um pequeno arsenal de indumentárias
fúnebres. Eu me recuso a usar algo mais de cor preta, além das roupas
de baixo, que são bem elegantes por sinal. — Deu um longo suspiro. —
O luto matou meu pai, Ann. Tenho certeza de que ele não aprovaria
minha reclusão. — Sorriu ironicamente. — Embora escondida nesta
casa, cumprirei as exigências sociais inglesas. Mas gostaria de deixar
claro que, mesmo que meu contrato de casamento não seja válido, não
me privarei do leito conjugal com Edward.
Era impossível não se divertir ao ver que a primeira deliberação da
brasileira para seu novo lar seria abandonar o decoro, as regras sociais
ou qualquer tipo de convenção. Ann não estava enganada, Izadora
traria vida àquela casa. Sem conseguir conter o carinho e a admiração,
abraçou a amiga.
Ainda sorrindo, dava-se conta de que poucas horas naquela casa a
izeram experimentar a sensação de estar livre. A alegria aos poucos se
transformava em uma emoção genuína. Estava viva! Era a primeira vez
em muitos anos que se sentia assim.
Poderia facilmente se acostumar à liberdade. Pelo menos enquanto
pudesse.
— Sinceramente, espero que seu desapego às regras sirva também
para suas convidadas.
Foi a vez de Izadora gargalhar de maneira contagiante.
— Você é sempre uma agradável caixinha de surpresa, doce e frágil
Ann —pronunciou as últimas palavras demoradamente, sem esconder
o sarcasmo. — Fique à vontade para receber seu falso marido sempre
que tiver vontade. Ele não precisa partir amanhã.
— Mesmo que usasse roupas de baixo pretas, não seria capaz de
atrair a atenção de Anthony. Ele sem dúvidas prefere os cavalheiros às
damas. — Ann ponderou a reação de Izadora. — Não falei por mim, mas
por tia Julliet e Pia. — A confusão no rosto de Izadora a incentivou a
explicar. — Elas estão juntas, são um casal, apaixonaram-se antes
mesmo de a duquesa se casar. — A brasileira levou as mãos aos lábios,
com os olhos estatelados, e Ann tentou ignorar a reação. — Sei que não
parece usual e que é ilegal, mas...
— Não me importo com o que pensam. Mas Pia... — parecia formular
pensamentos —, ela parece mais velha...
— Sete anos. Pia era a camareira da tia Julliet quando ela ainda era
solteira.
— Ela pode ocupar o quarto principal ou o mesmo quarto se
quiserem. — A estrangeira parou de falar por alguns instantes. —
Podemos reformar um quarto só para elas...
— Pode ser uma boa ideia. Pia passou o dia preparando o quarto
para receber a ilha de Aziza. — Ann tomou as mãos da amiga. —
Ficaremos no máximo um ano, e mesmo que tudo se resolva elas jamais
poderão icar aqui. Para começarem uma nova vida, precisam fugir,
como Anthony e Greg. A duquesa está acostumada à simplicidade,
morou por quase um ano no porão de Lilleshall. Ela vivia na cabana do
jardim secreto, cortesia de Lucy. Mas John começou a frequentar o lugar
ainda criança. Foi quando Lady Izabel teve a ideia de escondê-la no
porão.
— E onde ela icou escondida por todos esses anos?
— Na casa de caça da propriedade do pai de Viollet. Estava
abandonada e além do mais ica perto de Lilleshall.
— Não consigo imaginar como ela se ingiu de morta estando tão
perto. O duque sabe?
— Não! Nem Lucy nem tia Julliet acham que ele deve saber. Seria
muito arriscado. O motivo pelo qual...
— Por favor, pense bem no que vai me contar — Izadora a
interrompeu. — Não esconderei nada nem de Edward, nem de Marcos.
Talvez eu não seja a pessoa ideal para saber os segredos que
assombram os Baldwins e os Ansons, mas saiba que pode contar
comigo para o que for preciso.
— Obrigada pela sinceridade. Gostaria que soubesse que eu
realmente con io em você, Iza. No momento em que a vi, tive a certeza
de que Lady Izabel estava certa. De alguma forma, ela sabia que você
ajudaria Edward. — Ann se levantou e tirou um envelope do bolso das
saias. — Ela lhe escreveu e me pediu que lhe entregasse no momento
em que eu achasse oportuno. Na ocasião, Lady Bebel queria provar que
devemos dar ouvidos a nossa intuição. Esta carta foi como uma
premonição. Um pedido de socorro. Ela lhe escreveu pedindo que
viesse a Londres, mas não enviou a carta. Izabel me disse que, se você
fosse a mulher certa para Edward, ouviria o chamado.
Ann viu Izadora levar a carta junto ao peito.
— A mensagem chegou através de um jogo de búzios — a
estrangeira confessou.
As duas permaneceram em silêncio por um longo tempo. Nada havia
para ser dito. Apesar da tentação de questionar sobre o tal jogo,
de initivamente não era um momento oportuno.
Era inconcebível, aos olhos humanos, que Izabel chamasse Izadora
com a força do pensamento. Contudo era real, a brasileira viera através
de um pedido silencioso. E, o mais importante, a estrangeira decidira
icar e lutar, por Edward, pelos Baldwins e pelos Ansons.
Ann se levantou e beijou os cabelos da amiga, certa de que Izadora
precisaria de privacidade para ler a carta. Enquanto subia para seu
quarto, sentia o peso da longa viagem castigar seu corpo. Nem mesmo o
alívio e o doce sabor da liberdade era capaz de dissipar a tensão que ela
sentira enquanto trazia a tia de volta para Londres.
Tinha medo, por ela e por aqueles que amava. Medo de não
conseguir levar adiante o plano da condessa viúva. Lady Izabel parecia
ter tudo calculado, cada passo, todos os caminhos sustentados pela
intuição. Ann sabia que jamais conseguiria agir da mesma maneira.
Não era forte como sua tia Julliet, nem tinha a audácia de Izadora.
Ao entrar no quarto onde viveria nos próximos meses, os velhos
conhecidos tremores a tomaram. Era naqueles momentos que o medo
irracional acompanhava a certeza de sua incapacidade.
Depois de um longo e silencioso pranto, acabou se entregando ao
sono profundo.

***

Aquela não era a primeira vez que Marcos visitava a Inglaterra.


Estivera em Londres havia mais de dez anos, na companhia de Joseph
Senior, quando este trouxera Izadora, ainda criança, para apresentar-
lhe suas raízes.
Conhecera seu benfeitor na infância e jamais esqueceria o dia em
que o vira pela primeira vez.
Um leilão de escravos; mesmo que na época já estivessem proibidos,
não deixavam de acontecer.
As poucas tochas iluminavam o su iciente para avaliar a qualidade
das mercadorias. A madrugada fria deixava o espetáculo de horrores
ainda mais assustador. Marcos era só um menino. Um menino e seus
pais.
Naquela noite vira o pai partir. Nunca mais o viu. O homem fora
arrematado por uma bela soma e deixara um único pedido: cuide dela.
As palavras do pai nunca saíram da mente de Marcos. Apesar da pouca
idade, tomara como missão a proteção da mãe. Mesmo que já não
conseguisse mais se lembrar do rosto dele, tinha certeza de que
cumprira a promessa.
Lembrava-se com precisão de todos os cheiros e sons. Seus olhos
ardiam e descon iava que, mesmo com a escassa iluminação, sua
fragilidade seria a ruína do pouco que restava de sua família. Não havia
chorado, de alguma forma as mãos de sua mãe sobre as dele lhe diziam
em silêncio que não tinha o direito de sofrer. Talvez Marlene o tivesse
tranquilizado; decerto, sabia o que estava por vir.
Entre as luzes avermelhadas das tochas que bruxuleavam vacilantes,
ele vira uma mulher, a única dama presente naquele leilão. A cor dela se
fundia com a areia sob seus pés. Vestia branco, os cabelos dourados
caíam nos ombros. Marcos tivera a certeza de ter visto uma divindade.
Lys Senior, naquela noite, fora seu anjo salvador.
Marcos não se lembrava bem da sucessão de fatos. Não era comum
que revisitasse o passado. Mas, diante dos últimos acontecimentos, era
impossível não se lembrar, nostálgico, de como tivera sorte.
Um negro liberto, que havia tido oportunidade de estudo e trabalho
digno. Assim como sua mãe e irmã, que agora jaziam no fundo do mar,
entre milhares de corpos que não resistiram à febre durante a viagem.
Tornara-se secretário ainda moleque. Trabalhara ao lado de Joseph
até o dia em que ele repetira as palavras do homem arrematado no
leilão: cuide dela.
Marcos relanceou o olhar para a cesta ao seu lado, sua sobrinha
dormia alheia ao sacolejar da carruagem. Foi impossível não se lembrar
do pedido feito por Aziza minutos antes de fechar os olhos pela última
vez: cuide dela. Não tinha dúvidas de que aquela era sua missão. Ouvira
seu pai pedir que cuidasse de sua mãe, Joseph lhe pedira que cuidasse
de Izadora e, agora, sua irmã lhe havia feito o mesmo pedido.
Precisaria cuidar não só de Izadora, mas também daquela criança.
— Enviei um bilhete à Sra. Pattel informando sobre nossa chegada —
a voz do primeiro-ministro o trouxe para o presente. — Acredito que as
encomendas para a criança já estejam a caminho. Marie providenciou
tudo.
— Serei eternamente grato, milorde.
Olhou novamente para a sobrinha, daria a vida a ela se fosse
necessário, não permitiria que nada lhe faltasse.
— Também vai precisar de um valete e roupas novas... — Dentro de
uma luxuosa carruagem, a caminho da nova casa de Izadora, Edward
parecia empenhado em manter alguma comunicação. — Tenho certeza
de que Izadora não se lembrará desses pormenores. Posso arcar com
todas as despesas...
— Não se faz necessário, vossa excelência. Sir Joseph me deixou em
uma situação muito confortável; eu poderia até parar de trabalhar se
desejasse.
Marcos viu Edward passar as mãos pelos cabelos, o primeiro-
ministro não escondia a frustração. O barão pigarreou.
— Izadora tem a tendência de se colocar em situações embaraçosas.
Preciso que cuide dela.
Um sorriso irônico lhe escapou. O secretário avaliou o primeiro-
ministro achando o pedido redundante. Edward usara quase as mesmas
palavras de Joseph.
— Dedicarei minha vida a isso, até que julgue que vossa excelência
pode desempenhar tal papel. — O farrusco revelou os dentes
impecavelmente brancos. — Pelo que entendi, o cargo que milorde
ocupa a coloca em risco.
— Eu não queria que fosse assim...
— Eu também não, e posso garantir que Joseph não icaria feliz com
essa situação.
Um desconfortável silêncio se instaurou. Talvez estivesse sendo
impertinente com o primeiro-ministro. Pelo pouco que vira, não tinha
dúvidas sobre os sentimentos de Edward por Izadora. Até mesmo no
Brasil, anos antes, testemunhara a ligação dos dois.
Marcos revirou a bolsa de couro costurada a mão e entregou um
documento a Edward. O primeiro-ministro pegou o papel e Marcos
percebeu o sorriso genuíno, quase aliviado, dele. Podia quase tocar a
alegria do barão.
Embora jamais tivesse experimentado o amor pelo qual Joseph tirara
a própria vida, sabia reconhecer o olhar de um homem apaixonado.
— Joseph pediu que eu lhe entregasse o contrato de casamento
assinado por ele. Também estou com o testamento que diz que o
marido de Izadora não terá direito sobre a Golden, somente um
herdeiro, ou uma herdeira.
Marcos não revelou mais nada. Ajeitou-se na poltrona e cobriu a
criança imaginando que o inverno inglês pudesse ser demais para
alguém tão frágil.
— Ainda assim, eu a quero em segurança, pelo menos até que
entregue o cargo. — Edward devolveu os documentos para Marcos. —
Guarde-os com você e não diga nada a Izadora, quero surpreendê-la.
Marcos sorriu brevemente.
— Posso deixar de mencionar o contrato de casamento, milorde. Mas
Izadora precisa saber da vontade do pai.
— Não é fácil para ela. Izadora está fragilizada...
— Ela é muito mais forte do que imagina, vossa excelência.
Não desejava delongar aquela conversa, não naquele momento. Por
mais que preferisse icar em silêncio tentando se recompor dos últimos
acontecimentos, Marcos não tinha essa opção. Não estava no Brasil, não
poderia montar em seu cavalo e desaparecer entre as montanhas por
dias. Naquele país frio e cheio de pompa, sequer tinha seu próprio
animal.
— Vou contar a Izadora sobre o casamento — o primeiro-ministro
pareceu ponderar melhor. — Depois que se recuperar da viagem,
podemos providenciar tudo de que precisa. — Edward pareceu ler seus
pensamentos. — Imagino que deseje ir até a superintendência da
Golden.
— De fato, vossa excelência. Acredito que amanhã pela manhã já
tenha me recuperado. Quero me colocar a par dos projetos do marquês
para o novo governo dos escravos e conhecer melhor Lorde John, já que
Izadora o nomeou como seu representante.
— Por Deus, homem, você passou por grandes perdas...
— Ninguém perde ninguém, Lorde Edward. Humanos não são
posses. Os orixás decidiram a melhor hora de minha mãe e de minha
irmã e, se iquei, foi por algum motivo. — Marcos relanceou o olhar
para o primeiro-ministro, temendo ter sido ríspido, mas o gesto
expectante de Edward o impeliu a continuar. — Quando chegar minha
hora, terei tempo su iciente para descansar, mas, diante da situação em
que Izadora se encontra, não podemos nos dar ao luxo de parar para
sofrer por quem partiu.
— Minha avó dizia o mesmo. — O sorriso do barão
inexplicavelmente trouxe certo conforto. — Está certo, em dois dias
tomamos todas as providências. Todos acham que saí para uma
pequena viagem, não seria apropriado aparecer amanhã.
Marcos assentiu. Por mais que negasse a tentadora oferta de um dia
de descanso, aproveitaria de bom grado.
Quando chegaram a casa, foram recebidos pela Sra. Pattel, uma bela
senhora, que vestia trajes simples. Pia, como insistiu que fosse
chamada, informou que Izadora, Julliet e Ann estavam descansando.
Pediu à ama de leite, disponibilizada pela marquesa, que levasse a
pequena Lys para seu quarto. Orientou Marcos sobre como chegar a
seus aposentos, desculpando-se pela escassez de funcionários. A
simpática senhora garantiu que em dois dias a casa estaria funcionando
como deveria.
À medida que avançava pelos cômodos, a casa parecia ainda maior
do que do lado de fora. Sentiu-se oprimido diante de tanto luxo. Até
mesmo a escadaria, coberta por um tapete impecável, fazia com que
Marcos sentisse falta da simplicidade do Brasil. Nem mesmo a casa de
Joseph, que era o homem mais rico que conhecera, ostentava tamanha
opulência.
Desses detalhes não se lembrava, a Inglaterra era a terra do poder e
da riqueza. Questionava-se se todos naquela terra viviam daquela
maneira. Sabia que não, que por trás de uma cortina de ostentação,
assim como no Brasil, havia milhares de pessoas morrendo de fome e
frio.
Sentiu-se perdido ao alcançar o topo das escadas e se deparar com
um extenso corredor. Conforme fora instruído, tomou o corredor da
direita e caminhou até a terceira porta. Trazia consigo somente a bolsa
de couro. Seu baú, segundo Pia, seria levado por um criado. Não quis
contestar, embora achasse um abuso desmedido.
Ao longe conseguiu ouvir um choro abafado, seguido por um grito.
Sentiu um frio percorrer-lhe a espinha, lembrou-se de Aziza gemendo
em seu leito de morte. Os pés cansados avançaram pelo corredor, até
parar diante de uma porta. Não deveria entrar, no fundo ele sabia, mas
jamais se perdoaria se fosse negligente com o sofrimento de quem quer
que fosse.
Os dedos longos deslizaram pela maçaneta, revelando um ostentoso
aposento em tons de azul-claro e dourado. O aroma de lavanda tomou
todos os seus sentidos e, como um autômato, se dirigiu até a cama,
caminhando pelo quarto silencioso.
Já não ouvia o pranto que chamara sua atenção no corredor. Diante
de Marcos, estava a beleza mais pura, doce e frágil que ele já vira. A
dama dormia um sono profundo, tinha a respiração leve, o semblante
sereno, os lábios entreabertos.
Marcos se aproximou sem conseguir controlar o impulso de retirar
uma mecha que se soltara do elaborado penteado.
Foi tudo muito rápido. Antes mesmo que ele tocasse o rosto
angelical, uma mão ágil segurou a sua. Os olhos esverdeados se abriram
num rompante. Havia pavor neles, Marcos sentiu. A outra mão dela foi
para debaixo do travesseiro e, antes mesmo que ela revelasse o objeto,
ele viu o brilho de uma lâmina.
Ele não se moveu, continuou encarando os olhos desa iadores que
tentavam esconder o medo. O semblante dela suavizou-se.
— O senhor é... — Aos poucos os dedos pálidos afrouxavam a
pressão contra o pulso dele.
— Marcos — fez uma discreta reverência —, peço perdão pela minha
intromissão, mas ouvi um grito...
As palavras pairaram no ar, ela o avaliava sem soltá-lo. A outra mão
escondia o objeto debaixo do travesseiro novamente.
— Achei que fosse o anjo da morte. Ou alguém enviado por...
— Não creio que em sua religião existam anjos negros, milady. — Ele
deu um passo atrás logo que ela o soltou.
Tentou buscar palavras que o ajudassem a explicar a invasão,
quando um cavalheiro entrou nos aposentos.
— Ann, querida. Está tudo bem? Vi a porta aberta e...
— Anthony, esse é Marcos, amigo de Izadora. — Fez as
apresentações enquanto se sentava na cama. — Parece que tive um
daqueles pesadelos e o acabei perturbando, não me lembro de nada.
O médico ofereceu um sorriso afetuoso aos dois e sentou-se na
beirada da cama.
— Se me derem licença. — Marcos achou melhor deixá-los a sós.
Ao sair do quarto, esqueceu propositalmente a porta entreaberta.
Mais uma vez, seu corpo não obedecia à razão. Encostou-se no corredor
para ouvir a conversa.
— Talvez eu deva icar um pouco mais. — As mãos de Anthony
acariciavam o rosto de Ann.
— Já conversamos sobre isso. Não quero que se prenda por mim.
Gregory o está esperando em Devon.
O médico se levantou e colocou as mãos nos bolsos.
— Pensei em partir esta madrugada, é mais discreto e...
— Não precisa se justi icar Anthony; como eu disse você já fez muito
por mim. Jamais poderei retribuir.
O médico sentou-se novamente.
— Nunca vou me esquecer de você, Ann. É uma amiga muito querida
e tenho certeza de que nós nos veremos novamente. — Ele abaixou os
olhos. — Sinto muito por não ser capaz de honrar meu casamento, sei
que vai encontrar alguém que lhe fará feliz.
— Nem todos têm a sorte de encontrar um amor. Acho que a
incidência de casamentos românticos ao meu redor prova que, diante
das estatísticas, não serei uma dama irrevogavelmente apaixonada. E,
sinceramente, não penso em me casar de novo, mesmo que para todos,
em alguns meses, eu seja uma mulher viúva.
— Deixei Dr. Evans de sobreaviso. Pia sabe onde o encontrar. Caso
você ou a duquesa precisem, por favor, não hesite em chamá-lo.
O médico beijou as mãos de Ann e se levantou.
— Anthony, antes de partir, por favor, examine a sobrinha de Marcos.
Izadora contou que a mãe da menina morreu pouco depois de dar à luz.
Deus sabe como a pequena se alimentou nos últimos dias.
— Farei com prazer. — Anthony fez uma reverência para se despedir.
— Espero que não se importe com minha ausência no jantar. Combinei
de me encontrar com a irmã de Greg...
Ann se levantou em um rompante e se jogou nos braços do amigo.
— Que o Senhor o acompanhe na sua nova vida. — Beijou-lhe a face
com carinho.
— Espero vê-la em breve. — O médico a abraçou.
A essa altura, Marcos já estava em seu novo quarto. Entrara sem
sequer reparar nos detalhes. Em sua mente, uma pergunta ecoou: Quem
é Lady Ann? Arrancou as botas e as meias, deixando-as espalhadas.
Sentou-se de frente para a lareira, no chão, como sempre preferia. O
tapete macio o acolheu e em pouco tempo se viu hipnotizado pelo
crepitar das chamas.
Ela parecia tão frágil, mas havia algo que Marcos não sabia decifrar.
Os olhos brilhavam enquanto o desa iava. Medo? Coragem? Um duelo
silencioso, mas não menos expressivo que ressaltava ainda mais a
doçura, gravada em cada contorno da pele quase translúcida. Lady Ann
era diferente de tudo que ele conhecera. Os parcos minutos desfrutados
em tão doce companhia foram su icientes para que ele desejasse
conhecê-la melhor.
Sorriu ao lembrar que ela pensara que ele era o anjo da morte.
Talvez fosse de fato, sorriu com ironia.
Capítulo II

Marcos agradeceu a refeição frugal, de poucos pratos. A comida fora


disposta na mesa para que todos pudessem se servir. A Sra. Pattel se
justi icou informando que não tinham lacaios su icientes.
Intimamente, Ann achou a falta de criados aconchegante. A duquesa
contava as histórias da mãe de Izadora, divertindo todos. O melhor
jantar que já tivera. Gostava dos jantares em Lilleshall, amara os poucos
de que havia participado ao longo dos anos. Mas a informalidade
daquela refeição a fez, pela primeira vez na vida, sentir-se em casa.
— Devo dizer que o jantar estava maravilhoso, estou encantado com
seu talento culinário, vossa graça. — Edward Baldwin colocou o
guardanapo sobre a mesa. — Conversei com Izadora, ela se recusa a
tomar esta casa como dela. Ficaríamos honrados se aceitasse a casa
como um presente de Lady Izabel.
A duquesa sorriu afetuosamente.
— Sinto-me honrada com o presente, mas não posso aceitar. Sou
uma hóspede nesta casa, Edward. Izabel entregou essa missão a Ann.
Nada mais justo que ela tenha algum lugar para icar depois que tudo
isso terminar. — Ela tocou a mão do primeiro-ministro. — Preciso de
Ann segura, amparada. Principalmente depois que se apresentar como
viúva.
— Fique tranquila, providenciarei para que Anthony deixe a casa
para Ann — Edward concordou.
— Pois bem, inalmente posso perguntar. — Pia suspirou aliviada. —
A que horas devemos servir o jantar?
Ann percebeu que todos a olhavam expectantes. Izadora ofereceu
um sorriso debochado.
— Sei que é um presente generoso, que seria desfeita recusar. Mas,
como viúva de Anthony, não poderei arcar com uma casa deste
tamanho. Não posso aceitar, nem mesmo sei se quero passar o resto de
minha vida em Londres.
Marcos percebeu a melancolia na voz de Lady Ann e controlou o
impulso de tocar a mão dela por baixo da mesa.
— Deveria pensar onde quer estar quando tudo isso acabar, querida.
— A duquesa ofereceu um sorriso afetuoso. — Tenho certeza de que
seu pai e até mesmo seus irmãos não lhe deixarão faltar nada.
— Lady Izabel foi generosa ao deixar a casa para que eu pudesse
icar, mas considero um empréstimo, por tempo indeterminado. — Ela
se virou para Edward. — Agradeço muito, mas não posso aceitar. Não
quero depender da benevolência de ninguém; talvez eu vá para um
convento.
— Eu compro a casa — Marcos falou em um impulso, surpreendendo
Izadora. — Compro e dou o dinheiro para Lady Ann comprar uma
propriedade onde quiser. Enquanto isso, posso custear todas as
despesas. É o mínimo que posso fazer por ter sido tão bem recebido
pelas senhoras.
— Isso não tem cabimento... — Edward começou a falar e Izadora
interveio.
— Aceite a proposta de Marcos. Um cavalheiro que se preze precisa
de casas dignas na cidade e no campo, e esta me parece bem
apropriada. Será um acordo providencial. — A brasileira sorriu
ironicamente e falou em português: — Você parece tão inglês, vejo que
está se divertindo — debochou, ciente de que ninguém compreendia a
última frase.
Marcos tomou um gole de sua taça e secou os lábios com elegância. O
comentário de Izadora o fez sorrir. Não queria se parecer com um
inglês, tinha orgulho de suas raízes. Mas de fato poderia se acostumar
ao conforto que aquelas terras ofereciam. Não se incomodava com o
frio, embora preferisse o calor, e de initivamente não deixaria Izadora
sozinha.
— Talvez devêssemos aprender português — Ann sugeriu torcendo
os lábios.
— Bem, já que estamos resolvidos, a que horas devemos servir o
jantar? — Julliet perguntou para a sobrinha. — Antes de se enclausurar,
suponho que deseja desfrutar de boas refeições.
A tensão se dissipou e Lady Ann pareceu relaxar. Quando foram até a
sala para um brandy, Marcos percebeu os olhares relanceados dela.
Condenou-se por ter sido tão invasivo, grosseiro até. Onde estava com a
cabeça para oferecer dinheiro a uma dama de maneira tão deselegante?
Deveria se desculpar, pressupôs.
Mas se surpreendeu ao ver a pequena Ann tomar as rédeas da
conversa depois que a duquesa e Pia se retiraram.
— Precisamos resolver assuntos práticos. Não vou me fazer de
rogada, pois nem eu nem tia Julliet temos condições de arcar com as
despesas. Lucy irá enviar alguns criados, mas creio que não seja o
su iciente para uma casa deste tamanho. Marcos vai precisar de uma
carruagem e, eventualmente, uma de nós também. Sugiro que Edward
encomende duas iguais, para que possa usá-la em suas visitas a Izadora.
— Fitou Marcos. — Todos devem acreditar que você mora aqui. Assim
ninguém descon iará do movimento na casa. — Virou-se para Edward.
— Em quanto tempo acha que John estará pronto para assumir o
primeiro ministério?
— Ele já está pronto, Lady Ann. John de initivamente nasceu para ser
um parlamentar. Somente uma questão de alianças. Acredito que, em
alguns meses, esse pormenor irá se resolver.
— Acha que conseguimos desmascarar Willian até lá? — Izadora
perguntou apreensiva.
— John e eu estamos trabalhando nisso. — O primeiro-ministro
tocou as mãos da brasileira. — Não quero que se preocupe.
— Quantos meses? — Ann insistiu.
— Seis. É di ícil prever, Lady Ann. Não se trata somente de assumir o
cargo. Precisamos investigar o banco. John acha que deveríamos contar
a Thomas e a David.
— Ainda não. Dê-me um tempo e eu mesma conversarei com John.
— Quando pretende voltar? — perguntou Edward.
— Não pressione Ann. Ela passou os últimos dezoito anos
enclausurada e merece um tempo de descanso — a brasileira o
repreendeu.
— Eu icaria o tempo su iciente para instalar melhor tia Julliet, talvez
um mês ou dois...— Ela abaixou os olhos.
— Fique o tempo que precisar — Edward a tranquilizou. — Só não
sei se conseguirei segurar John.
— Faça o que puder. É importante mantermos em segredo a
presença de tia Julliet.
Marcos observou como Ann parecia ter tudo aquilo sob controle.
Nem mesmo a proposta ofensiva dele parecia tê-la abalado. Mas havia
algo que ele não compreendia, e que estava impelido a descobrir.
Sem delongas, Edward e Izadora se retiraram deixando-os sozinhos.
Um silêncio ensurdecedor tomou o ambiente, até que Marcos
inalmente criou coragem.
— Lamento pela forma rude como propus a compra da casa.
— Não há o que lamentar, pelo visto temos um acordo. Sou
responsável por coordenar a casa de um autêntico cavalheiro, e em
troca o senhor me recompensará generosamente. Como disse, não
posso me dar ao luxo de ser orgulhosa. Mas faço questão de que abata
as despesas pelo tempo que estivermos aqui.
— Não poderia permitir, milady, uma vez que sou seu an itrião.
— Admiro suas habilidades de negociação, acaba de comprar uma
casa que nem estava à venda. Contudo o senhor me contratou para ser
sua an itriã.
Ele coçou o queixo e a itou por alguns instantes.
— Faço questão de arcar com todas as benfeitorias.
— É um acordo justo.
— Também quero acompanhar o livro das inanças da casa. Preciso
saber dos custos com que teria que arcar no futuro.
— Quero que compre uma casa para tia Julliet. Não precisa ser nada
luxuoso, mas num lugar onde ela possa viver com Pia depois que tudo
isso acabar.
— E a senhorita?
— Ainda não me decidi, mas o celibato me parece tentador. — Ela
tomou um gole de vinho do Porto. — Sobre esse assunto não há mais o
que discutir. Devo informar que, caso eu me decida pelo convento,
doarei o resto do dinheiro para caridade?
Sem responder, Marcos ofereceu um sorriso que fez o coração de
Ann parar.
***

Marcos não imaginava como poderia ser insuportavelmente irritante


resolver os assuntos práticos ingleses. Com um cartão de
recomendação de Edward Baldwin, fora bem recebido pelo melhor
alfaiate de Londres. Pagou uma pequena fortuna pelas peças.
Um conjunto completo fora ajustado para que ele não icasse
desprovido enquanto aguardava suas encomendas.
Trajes impecáveis, a voz de Joseph ecoou em sua mente.
Um bom corte era capaz de despertar interesse até mesmo da
rainha, isso ele já havia aprendido. Na Inglaterra não importava ser, e
sim o que se aparentava ter. Mesmo que, graças a Joseph, possuísse uma
fortuna considerável, podia sentir a repulsa dos ingleses pelo seu tom
de pele. Sempre haveria uma sutil, quase imperceptível, contorcida nos
lábios, ou simplesmente a ausência de contato visual.
Não estava acostumado a gastar tanto dinheiro, mas a culpa se
esvaiu quando compreendeu que, mesmo que estivesse usando suas
melhores roupas, ainda assim, não estaria à altura dos suntuosos
padrões ingleses. E, se tinha tantos recursos, os usaria para obter
respeito.
Naquela manhã, antes de sair, pela primeira vez examinara com
cautela os documentos que o velho amigo deixara. Izadora se tornara
uma das mulheres mais ricas do Reino Unido, e a fortuna de Marcos não
o deixava muito atrás.
Pelo menos poderia proporcionar algum futuro a sua sobrinha,
pensou. Mesmo que achasse di ícil ter credibilidade naquele país.
Contudo não voltaria para o Brasil, não havia mais nada naquelas terras
que o izesse querer voltar.
Precisava icar, por Izadora, pelo seu povo e, acima de tudo, por Lys.
Tinha esperanças de que as terras de Manchester que Izadora
mencionara fossem mais acolhedoras e não se incomodaria com uma
vida pacata no campo.
Estava ansioso para se reunir com o marquês de Bristol e ouvir as
ideias para o governo dos escravos. Thomas Hervey já lhe havia feito o
convite, mas Marcos julgara apropriado estar vestido à altura.
Independentemente do que fosse proposto por qualquer um dos
representantes de Izadora, Marcos tinha o poder de vetar qualquer que
fosse a decisão. Joseph o nomeara procurador de sua herdeira, mas
ninguém precisava saber. E o farrusco não desejava usar o poder que
lhe fora instituído. Queria ser respeitado por si mesmo. Agradecia a
Joseph o fato de tê-lo resguardado, mas ao longo da viagem tivera
tempo su iciente para decidir ser um homem do qual ele se orgulharia.
Quando chegou a casa, no vestíbulo retirou a gravata, o colete e o
paletó. Enquanto se despia, libertava-se da armadura, queria sentir os
pés no chão. Saiu pela porta lateral, contornando os jardins. O cheiro de
terra fresca era reconfortante.
O jardineiro recém-contratado adubava os canteiros enquanto batia
o pé direito involuntariamente, cantarolando uma canção animada.
Marcos não tinha dúvidas de que aquela casa se movia pela energia de
damas tão peculiares.
Ali não havia frieza. O calor e o aconchego resplandeciam de cada
parede, mesmo do lado de fora, com o jardim revirado de terra,
formando vários novos canteiros. Aquele lar tinha cheiro de vida.
Depois de um longo caminho ladeando as paredes externas bem-
trabalhadas, ele virou à direita; não conseguiu seguir seu caminho ao
ver a doce e frágil Ann; os cabelos parcialmente soltos, as mãos e a
barra da saia suja de terra, enquanto permanecia sentada sobre o solo
bruto. Ao seu lado, a duquesa instruía pacientemente sobre como soltar
as raízes das plantas. Lady Julliet era elegante e graciosa, parecia
entender do assunto. No mesmo instante, ele lembrou-se de Lys.
A mãe de Izadora tinha o dom de transformar canteiros em
verdadeiras obras de arte. Toda tarde, depois de cumprir suas tarefas
como secretário de Joseph, Marcos encontrava-se com ela no jardim.
Izadora nem sempre estava presente, mas ele jamais faltara àquele
compromisso.
— Marcos — a voz melodiosa da duquesa o chamou para o presente.
— Sente-se bem?
Ele deu alguns passos em direção às damas e fez uma vênia
respeitosa.
— Sinto muito, vossa graça, fui arrebatado por lembranças. O que
estão plantando?
— Gerânios — Ann respondeu levantando a mão para mostrar a
muda. Carregava um sorriso genuíno e uma inocência no olhar, decerto
não era ciente do que podia despertar nos homens.
Ele se abaixou para examinar a folhagem.
— São gerânios pendentes. Originários da África, pelargos; no grego
signi ica cegonha, por causa do fruto, que se assemelha ao bico da ave
— Marcos explicou sem conseguir desviar os olhos de Ann.
— Que interessante, eu não sabia, jamais vira antes esse espécime.
Sr. Marlow, nosso jardineiro, foi quem trouxe as mudas. Fico feliz que
entenda de plantas, quem sabe possa nos ajudar. — A duquesa limpou
as mãos no lenço e Marcos a ajudou a se levantar.
— Será um prazer, vossa graça. A mãe de Izadora me ensinou um
pouco sobre botânica. Por favor, não entenda mal minha modesta
sugestão, mas acho que deveriam ser plantadas nas sacadas dos
quartos. As lores caem em cachos e receio que nesse canteiro não terão
espaço para se desenvolverem.
— Que ideia formidável — Lady Julliet falou animada. — Vou pedir
ao Sr. Marlow que prepare os vasos para plantarmos — disse se
afastando.
Ann permaneceu sentada, Marcos percebeu um traço de insatisfação
em seu rosto. Correndo os olhos pelas mudas organizadas em caixotes a
sua volta, escolheu uma roseira e lhe entregou.
— Ficarão bonitas neste canteiro.
Ann o olhou confusa e ele percebeu que ela não sabia como fazer.
Marcos afundou a haste, cobrindo-a com terra e adubo. Entregou um
galho para Ann. Ela repetiu passo a passo, delicadamente. E juntos
preencheram todo o canteiro.
— Acha que devemos colocar do outro lado? Depois da porta?
— Ficará muito bonito, Lady Ann. — Ele a ajudou a se levantar e
pegou uma caixa de madeira, que continha mais algumas mudas.
— O senhor entende mesmo de plantas. Espero que o canteiro ique
do seu agrado, gostaria de deixar uma lembrança feliz.
— Nem todas irão vingar, sobretudo pelo clima. Mas, com um pouco
de paciência e persistência, tudo é possível. — Ele percebeu que ela o
encarava e se permitiu perder-se nos olhos amendoados por alguns
instantes.
— Sente falta de casa? — ela o surpreendeu se ajeitando no chão,
esperando uma resposta.
Tratava-se de uma pergunta íntima que nem ele mesmo sabia
responder.
— Já não tenho casa, Lady Ann. Não tenho motivos para voltar para o
Brasil.
— Eu me re iro a sua terra, a África.
— Não me lembro de muita coisa, mas a vida não era fácil. —
Naquele momento se deu conta de que já nem se lembrava do seu país
natal.
Ann parecia ter percebido que o levara para um terreno sombrio e
tratou de mudar o assunto.
— Fala inglês perfeitamente — ela abaixou o tom de voz —, melhor
que Izadora, que ela não nos ouça.
Marcos jogou a cabeça para trás e gargalhou com vontade, divertido
com a comparação.
— Se con idenciar que Izadora não era uma boa aluna, promete
guardar segredo? — Ele piscou. — Na casa de Joseph, conversávamos
em inglês e italiano, raramente se ouvia português. Lys achava
importante que soubéssemos outras línguas.
— Pelo que conta, foi tratado como ilho. — Ela parecia deslumbrada
com o que ouvira.
— Lys foi um anjo na vida de minha família, e Sir Joseph, um pai —
contou com orgulho.
— Pelo que vejo, o senhor foi um excelente aprendiz, para ambos.
— Não tenho a opção de ser razoável. — Ele esticou as pernas
adotando uma postura informal, era involuntário sentir-se à vontade ao
lado de Ann. — Certo dia cheguei a casa triste porque tinham zombado
de minha cor, tinha ido levar um documento. Não importava que fosse
um liberto, para os brancos eu sempre serei um escravo — falou
indiferente. — Joseph me repreendeu, disse que jamais deveria
sucumbir ao preconceito, e aconselhou que eu usasse aquela dor para
me superar a cada dia. — Deu de ombros. — Acho que dou sempre o
meu melhor como uma forma de tornar minha presença tolerável ou
necessária.
— Sua presença é adorável — ela falou com os olhos cheios d’água,
visivelmente emocionada.
Marcos não vira pena naquela declaração, via sinceridade e, por um
breve instante, teve vontade de tocar-lhe a face, mas se conteve.
— Não tanto quanto a da senhora.
— Senhorita — ela sorriu brevemente —, mas pre iro que me chame
de Ann.
Ele a itou com intensidade.
— Não acho que deva me dar tamanha liberdade, milady. Já que a
contratei, não posso lhe faltar com o respeito.
— Eu não me importo com protocolos, gosto que as pessoas
queridas me tratem com informalidade; dá a falsa ilusão de não estar
sozinha. E o senhor foi muito generoso.
Um silêncio doce, reconfortante, em que somente a presença dela
resplandecia. Ann voltou ao trabalho e ele a ajudou. Por im, na
companhia da duquesa, Marcos foi até o escritório e relacionou uma
in inidade de espécimes que poderiam ser plantadas no jardim. Ficou
incumbido de conseguir todas as mudas e um livro com ilustrações,
para que pudessem escolher onde seriam plantadas.

Capítulo III
Ao longo dos dias, Ann era tomada por uma alegria infantil ao
desempenhar as mais simples tarefas cotidianas. Cuidar do jardim ao
lado de sua tia e Pia era prazeroso e revigorante. A presença de Marcos
sempre proporcionava grandes ensinamentos.
A pequena Lys, uma distração à parte. Ann se afeiçoara a ela e se via,
a todo momento, impelida a fazer-lhe uma visita. A menina parecia feliz
e ganhara alguns quilos com o passar dos dias.
Seria tentador ignorar o mundo por trás das sebes e viver como se
fosse um recomeço. Talvez passasse algum tempo naquela casa antes de
se dedicar a Deus.
E foi exatamente ao tempo para pensar no que faria no futuro que
ela se agarrou, como desculpa para não dar andamento a seus planos.
Não admitiria em voz alta que tinha medo. Não era corajosa como
Sarah, nem mesmo tinha a audácia de Izadora. Era uma dama comum,
sem muitos atributos. Nada especial para alguém que vez ou outra se
via paralisada pelo medo e pela tristeza.
A melancolia era mais fácil de driblar, embora muitas vezes fosse
vencida. Mas o medo era sua verdadeira enfermidade. Era ele que a
paralisava e a impedia de seguir. Quando tinha Lady Izabel e Anthony
ao seu lado, era mais fácil. Não podia sobrecarregar sua tia Julliet com
seus traumas, esta certamente tinha os próprios demônios para
exorcizar.
Sentia-se só e apenas se dera conta disso ao confessar a Marcos, no
jardim, naquela tarde.
Diante da caixa da arma de duelo, Ann sabia que não podia mais
postergar.
— Só por precaução — falou para si mesma enquanto abria a gaveta
da escrivaninha da biblioteca. — Talvez eu deva esconder em outro
lugar. — Fitou o alto de uma das estantes e calculou como poderia
chegar lá.
Depois de arrastar uma poltrona, retirou os sapatos para tentar
alcançar a parte mais alta. Marcos chegou no exato momento em que
Ann começava a escalar, e ela quase se desequilibrou.
Prontamente, ele se colocou atrás dela e a ajudou a descer.
— O que pensa que está fazendo? — Ele se espantou com o tom
austero em sua voz e logo em seguida suavizou. — A senhorita está
bem?
— Pegue aquela caixa, por favor — ela pediu enquanto tentava subir
novamente.
Com facilidade, ele a pegou pela cintura, colocando-a no chão, e com
passos largos caminhou até a escrivaninha.
— Isso é...
— Por favor, não diga nada, eu estava guardando... — Ela não o
encarou, não queria delongar-se em explicações.
Ann andou até a caixa e tentou pegá-la. Marcos a impediu. A bastarda
nem mesmo tinha percebido como ele havia chegado tão perto. As mãos
fortes repousavam sobre a dela. Com um movimento delicado, ele abriu
a caixa e avaliou a arma disposta.
— Sabe carregar? — avaliou com cautela.
— Não, é só por precaução.
Ele ergueu o queixo dela com os dedos, delicadamente, e encontrou
os olhos amedrontados.
— O que esconde, Lady Ann? Por que uma arma de duelo e por que
esconde uma faca debaixo do travesseiro?
— Não é uma faca, é um punhal. — Ela o encarou determinada.
— Do que tem medo? — insistiu.
Ann sustentou o olhar por alguns segundos e em seguida fechou a
caixa.
— Gostaria de contar com sua discrição sobre esses detalhes. —
Pegou a caixa e caminhou até a porta.
Mais uma vez as mãos de Marcos a impediram, tomando a caixa sem
a menor cerimônia.
— Não estava guardando? Ou pretende levar para os seus
aposentos?
Ela colocou as mãos na cintura.
— Desculpe a sinceridade, mas não lhe devo explicações. Suas
perguntas me deixaram tonta. Vou guardar a caixa e não tocaremos
mais nesse assunto.
— Eu a ajudo. — Desviou o olhar para a estante onde ela pretendia
esconder a caixa. — Já pensou na escrivaninha?
— Seria óbvio e sinceramente não gostaria que alguém encontrasse.
Sem se importar com o que ela dizia, Marcos se abaixou e começou a
avaliar o fundo do móvel. Depois de alguns minutos, encontrou aquilo
que Ann não se dignara a procurar.
— Como eu esperava, um fundo falso, sempre há um. — Ofereceu um
sorriso, que a desarmou. — Mas vamos precisar da chave.
— Talvez eu saiba onde ela está.
Colocando-se de pé, ele se aproximou, e dessa vez Ann pôde
contemplar-lhe o rosto, que se abria revelando os dentes mais perfeitos
que ela já vira.
— A senhorita sabia da existência do fundo falso, não é mesmo?
— Talvez...
— Sabe o que há dentro?
— Não, eu não o abri — tentou se esquivar.
Marcos pegou a caixa novamente, sabia que ela estava mentindo.
— Quando a senhorita encontrar a chave, pode me pedir a caixa, que
lhe entregarei para guardá-la. Não é seguro que uma dama tenha um
objeto desses em sua posse.
Com uma reverência, ele a deixou, à deriva, tentando entender o que
acabara de acontecer.

***

Naquela noite, quando desceu para o jantar, Ann não entendeu a


decepção que sentiu ao ver que Marcos não estava presente. Segundo
Izadora, ele estava na superintendência da Golden, em reunião, na
companhia de John, Thomas e Edward.
A bastarda pouco falou durante a refeição e agradeceu aos céus, pois
todos se recolheram logo depois da sobremesa.
Sem sono, vagou pela sala por algum tempo. Perdeu-se em um
bordado que fazia para a pequena Lys, só se deu conta de que estava
cansada quando seus olhos arderam e ela bocejou. O que estou fazendo?
Esperando? Bufou e foi até a cozinha para tomar um pouco de chá.
— Para quem é essa bandeja? — perguntou para um lacaio que
colocava lores em um pequeno vaso.
— Para o Senhor Marcos, milady — respondeu solícito. — Ele
chegou há pouco.
Ann não ouvira o barulho da carruagem, estivera tão entretida que
perdera a noção do tempo. Movida por um impulso desconhecido,
pegou a bandeja.
— Eu mesma levarei. — Virou-se ignorando os olhares surpresos
dos criados, que até então trabalhavam quietos.
Sabia que deveria se justi icar por ter uma atitude tão... incomum,
mas nem mesmo ela sabia o que dizer. Não era apropriado ir até os
aposentos de Marcos, mas preferia acreditar que não seria tão
escandaloso. Ou seria? Certamente todos os criados comentariam,
ponderou. O fato é que seus pés se moviam involuntariamente. Não se
atreveu a olhar para trás.
Na escada, esforçou-se para manter o equilíbrio da bandeja e,
concentrada, se deu conta de que era a primeira vez que fazia aquele
trabalho. De certa forma, aquela simples tarefa a fez se sentir viva.
Como se aos poucos recuperasse os anos que lhe foram roubados.
Demorou certo tempo até conseguir virar o trinco, apoiando a
bandeja na parede. A prata, que antes estava impecavelmente polida, já
havia sido agraciada com uma generosa porção de molho. O que Marcos
pensaria? Talvez ela não devesse ter se empenhado tanto em manter a
taça de vinho sã e salva.
Empurrou a porta com o pé, um verdadeiro feito. Ainda com os olhos
ixos na bandeja, entrou. Deveria ter batido antes, pensou. Não deveria
entrar no quarto de um cavalheiro daquela maneira. Ao longo do
percurso, deveria ter se dado conta do quanto aquela visita era
inapropriada.
Dentro do quarto, ergueu os olhos desviando-os da bandeja pela
primeira vez. A boca se abriu involuntariamente e, sem que percebesse,
Ann deixou a bandeja cair no chão.
Antes que ela deixasse a bandeja cair, Marcos lia relaxado. Foi rápido,
ela viu, o exato instante em que ele saltou em um pulo. O peito desnudo,
as ceroulas curtas que mal cobriam as coxas. Os músculos de inidos.
Marcos tinha cor de chocolate e foi inevitável morder os lábios.
Com o jantar espalhado no tapete, ela permanecia parada, enquanto
ele, já de pé, se aproximava para recolher os cacos.
Ann o observou enquanto ele se abaixava e enrolava o tapete
recolhendo toda a lambança. Com os pés ixos no chão, via os músculos
dele se contraírem ao realizar pequenos movimentos.
Era como uma escultura, cada contorno perfeitamente desenhado.
Percebeu que ele oferecia um olhar curioso, instigante.
— Desculpe, eu nunca tinha...
— Visto um negro? — ele perguntou com um sorriso largo, que
revelava os dentes impecavelmente brancos.
— Carregado uma bandeja. — Soltou o ar inalmente. — Também
nunca tinha visto um homem nu.
Ele pareceu se dar conta de que não vestia quase nada, mas não se
moveu. Sorriu ainda mais.
— Vejo que trouxe o meu jantar. — Olhou para o tapete enrolado. —
Obrigado pela gentileza, milady, mas acredito que a senhorita tenha
contratado lacaios para essa tarefa.
— Sinto muito... — Ela parou de respirar quando sentiu os lábios
carnudos tocarem sua mão.
Marcos aspirou o aroma doce daquela dama. Beijou a mão macia e
deslizou o polegar pela pele alva. Olhou-a curioso, era instigante vê-la
corar.
— Veio até aqui para pegar sua caixa? — Ele sustentava um sorriso
travesso.
— Eu... — Engoliu em seco e deixou escapar o ar que nem mesmo se
dera conta de que segurava. — É melhor pedir que lhe tragam outra
bandeja. Pelo visto, não sou muito boa com essa simples função.
— A senhorita não me respondeu.
Ann sentia-se ainda mais constrangida com a proximidade.
— O senhor precisa se vestir. — Soltou um gemido frustrado. — Vou
pedir que limpem essa bagunça.
Deu-lhe as costas como se sua visão limitada desse a ele o mínimo de
privacidade para se recompor. Sabia que deveria sair, mas seus pés não
obedeciam.
— Não é necessário, posso me contentar com a caixa de biscoitos
que ganhei da marquesa. Lamento decepcioná-la, mas não vou me
vestir, já passo o dia todo preso nos trajes ingleses; em meus
confortáveis aposentos, recuso-me a vestir algo mais que ceroulas.
— Isso não são ceroulas, mal cobrem as coxas. — Ela se virou. —
Sarah lhe fez biscoitos?
— Posso dividi-los se desejar. Assim poderá me dizer o que a trouxe
até aqui. — Ele bateu a sineta para chamar um dos lacaios.
— O que está fazendo?
— Pedindo chá e alguns bolinhos. Não é isso que os ingleses comem?
— Não podem me ver aqui... Nem o senhor assim...
— Então é melhor se esconder na sala de banho. Harold costuma ser
muito e iciente.
Apavorada, ela se colocou atrás da cortina e esperou que Harold
recolhesse a bagunça. Ficou escondida por um bom tempo, até que o
chá fosse servido e o lacaio deixasse o quarto.
Quando Ann saiu de trás das cortinas, Marcos vestia calças, mas
continuava com o torso nu. Ele permitiu que ela o examinasse e
caminhou até a porta para trancá-la.
— Pronto, ninguém verá que estamos conversando de maneira tão...
— Inapropriada — ela completou rapidamente.
— Íntima — falou ao mesmo tempo.
Marcos se acomodou em uma poltrona e indicou que Ann se
sentasse ao seu lado. A im de se manter ocupada, ela serviu o chá.
— Por que quer tanto a arma?
— Eu só queria guardá-la. — Ela retirou a chave de dentro do bolso
da saia. — Já estou com a chave.
Ele se recostou confortavelmente, tomando um generoso gole de chá.
As chamas da lareira deixavam Lady Ann ainda mais bonita.
— Talvez eu tenha sido ríspida com o senhor. Tem sido tão generoso,
eu não deveria ter lhe respondido daquela maneira.
— Então veio se desculpar.
— Os dois. Escute, não pretendo usar nenhuma daquelas armas, nem
sei se seria capaz — falou baixinho —, é por uma questão de segurança.
— A senhorita já me disse isso.
— Não posso dizer mais nada...
— Sou bom em guardar segredos. E posso ser útil, caso precise.
Ann pegou um biscoito e se deleitou com o sabor familiar. Como
Sarah conseguia?
— Um verdadeiro deleite — Marcos pareceu ler seus pensamentos.
— Tem gosto de lar, Sarah é realmente muito talentosa. Assim como
tia Julliet.
— Sua irmã tem várias habilidades, milady. Devo dizer que tem uma
família muito interessante.
— Sarah não é minha irmã de fato. Ela e John são ilhos de Lucy e do
duque. Meus irmãos são Thomas e David. Sou uma bastarda. — Aos
poucos Ann relaxava, sentia-se bem por poder contar sua história. — O
duque de Sutherland nunca me tratou diferentemente, embora, pelo
que tudo indica, saiba que não sou legítima. Sou ilha de Joana Granville
e Allan Smith, assim como Thomas. Um sangue marcado por tudo que
há de pior. Minha mãe usou a gravidez de outro homem para coagir
Augustus a se casar com ela, e a tia Julliet se ofereceu para me criar e se
casar com ele.
Com os olhos, ela percorreu o torso desnudo pela última vez. Viu
Marcos se levantar e vestir a casaca que estava jogada em cima da
cama. Sem camisa.
— Obrigado por me contar, Lady Ann. Podemos guardar a arma?
— Não sei se deve contar a Edward sobre a escrivaninha — ela
abaixou os olhos —, não ainda. O que vamos encontrar é o desa io que
Lady Izabel me deixou. Ela disse que eu saberia o que fazer. — Respirou
fundo e olhou para cima tentando conter a emoção. — Eu preciso de um
tempo, Marcos. Ainda não me sinto pronta para usar essa chave. —
Então Ann percebeu que, durante todo o tempo, ela estava em suas
mãos.
— Do que tem medo?
— De tudo e de nada. Não tenho medo de morrer...
— Shhhhh... — Ele colocou o dedo delicadamente nos lábios rosados,
a im de silenciá-la. — A vida é uma dádiva, Lady Ann, e deve ser
aproveitada. Não se deseja a morte, ainda pode optar pelo celibato. —
Sorriu.
— Talvez devêssemos ir até a biblioteca. — Ela se colocou de pé
rapidamente, num ímpeto de coragem. — Precisa me prometer que não
dirá nada a ninguém.
— Não precisa ser agora, está tarde. — Destrancou a porta e deu
passagem para ela.
Ann caminhou pelo curto espaço sem olhar para trás. Quando
inalmente se virou, viu que Marcos estava logo atrás dela.
— Boa noite. — Ela sorriu brevemente e abriu a porta para entrar.
Ann esticou o braço para que ele a tocasse. Sentiu-se tola esperando
que ele beijasse sua mão. Observou quando seus dedos foram acolhidos
pelos dele. Marcos tinha mãos ásperas, mas fortes, eram quentes.
Rompendo o contato, ele cruzou a porta, caminhou até a cama e
retirou o punhal, que estava debaixo do travesseiro.
— Não vai precisar disto. — Ele chegou bem perto. — Parece que
tenho a missão de cuidar de mulheres peculiares; foi assim com minha
mãe, com Aziza, com Izadora e, agora, com a pequena Lys. Ninguém me
pediu que cuidasse da senhorita, mas, ainda assim, sinto que devo fazê-
lo. — Fez uma reverência. — Boa noite, Lady Ann.
Ann tentou não pensar muito no que ele dizia. John faria o mesmo,
pensou constatando que Marcos era como um irmão para Izadora. Era o
instinto de proteção dos homens, não era?
Um cavalheiro como Marcos jamais se interessaria por ela. Ele era
inteligente, elegante, culto, possuía um humor próprio e tinha a
capacidade de desarmar qualquer um com aquele sorriso.
Enquanto se trocava, tentou dissipar a imagem do torso nu
parcialmente coberto pela casaca, os ombros largos que a carregaram
com facilidade na biblioteca.
Por mais que soubesse que não deveria, aproveitou a agradável
distração para esquecer o que lhe aguardava dentro da escrivaninha.
Talvez devesse retirar o diário e deixar a trava aberta para que
Marcos pudesse guardar a caixa, ponderou. Contudo, antes de se
decidir, caiu no sono.

***
No gabinete do primeiro-ministro, Marcos observava Lorde Edward
tamborilar os dedos, enquanto Lorde Baldwin, o duque de Sutherland e
Lorde John discursavam incansavelmente.
— Não vê que é uma estupidez deixar Izadora partir assim?! —
Lorde Baldwin estava visivelmente irritado com o ilho.
— Acalme-se, Arthur. — O duque colocou a mão no ombro do amigo.
— Seu pai tem razão, Izadora não tem mais ninguém no Brasil.
— Viollet disse que ela pretendia passar um tempo na Itália antes de
voltar para a América. Talvez Marcos devesse ir atrás dela — John
ponderou.
— Já chega! — Edward bateu sobre a mesa e se levantou, deixando
todos em silêncio.
Sentado, Marcos observou os nobres cavalheiros saírem ainda
discutindo o mesmo tema. Esperou até que desaparecessem pelos
corredores e aproveitou para contemplar a construção.
De initivamente, os ingleses viviam rodeados de luxo.
Quanto tempo demoraria para que os negros fossem vistos como
iguais naquele lugar? Não que Marcos pudesse se queixar de como
estava sendo recebido. Os Ansons e os Baldwins não demonstravam
nenhum tipo de aversão a sua cor, nem mesmo as damas o faziam,
ponderou enquanto caminhava em direção à saída.
Assim como Lady Sarah Hervey, Marcos jamais poderia ser o
primeiro-ministro. Ela, por ser mulher, e ele, por ser negro.
Não que desejasse, embora a política britânica se izesse cada vez
mais interessante, sobretudo pelas diversas perspectivas a que era
apresentado.
Marcos retirou a cartola para entrar em sua carruagem e se assustou
ao perceber que Edward estava lá dentro. Com os olhos fechados e os
punhos cerrados, o primeiro-ministro não escondia a frustração.
— Vossa excelência — cumprimentou-o com tranquilidade.
— Desculpe-me a invasão, mas preciso ver Izadora.
O farrusco bateu no teto da carruagem para que o cocheiro a
colocasse em movimento. Edward batia os pés no assoalho enquanto
tamborilava os dedos. Marcos esperou que o primeiro-ministro
iniciasse a conversa, o que não aconteceu.
— Izadora me incumbiu de negociar as terras de Manchester. O
marquês assinou os papéis hoje. — Ao ver a confusão nos olhos dele,
Marcos explicou. — Ela pretendia lhe fazer uma surpresa, seria
adequado se ingisse não saber. Vocês poderiam passar um tempo em
Manchester, para todos você poderia ter ido à Itália atrás dela. —
Ajeitou-se na poltrona. — Ela é inquieta demais para se manter naquela
casa, hoje mesmo a peguei subornando o cocheiro para que a levasse
para um passeio.
— Izadora é incontrolável.
— Ou, talvez, vossa excelência ainda não tenha aprendido a lidar
com ela. Sugira uma viagem, uma lua de mel. Você pode apresentar o
contrato que Joseph deixou. Tenho certeza de que ela o arrastará para
Manchester, sobretudo depois da o icialização da venda. Poderá icar
livre da pressão que está sofrendo.
— Ela comprou as terras de volta?
Marcos percebeu a emoção na voz do barão.
— Inclusive as que o marquês herdou, milorde. Uma pequena
fortuna, mas pelo que sei é uma terra promissora e produtiva.
— Eu só desejava as terras de meu avô de volta. Não pelo que
produziam, mas sim pelo que simbolizam. Não acredito que ela fez isso.
— Ele sorria.
O clima tenso havia se esvaído. Edward Baldwin parecia o mesmo
menino que chegara ao Brasil anos atrás. Marcos bateu no teto da
carruagem e, quando o cocheiro parou, deu ordens para que os levasse
para a casa dos Baldwins.
— Vá para casa e se prepare para a viagem. Levantará suspeitas se
passar a noite fora. Amanhã, quando for visitar Izadora, eu lhe garanto
que ela estará radiante com a novidade. Se há algo que ela não
consegue esconder, é um segredo.
Edward bateu no ombro de Marcos e o avaliou por alguns instantes.
— Por que me contou sobre a surpresa de Izadora? Achei que nunca
seria desleal a ela.
— Não se trata de deslealdade, milorde. Acompanho algumas
conversas do senhor com Lorde John. Você poderia ter lhe contado,
certamente ele saberia controlar o pai e o duque. Mas vossa excelência
preferiu mantê-la reclusa. Isso con irma minhas descon ianças. Ao se
tornar tão rica, Izadora também se torna um alvo para Willian.
— Acredito que seja pelo ouro.
— Independentemente do motivo, milorde. — Izadora não corre
mais perigo que Lady Ann, pensou, mas não disse, sabia que aquela
certeza era uma intuição. — Precisamos protegê-las.
— Você tem razão. Obrigado pela con iança.
— Estou à disposição, milorde. A propósito, deixei o documento em
sua mesa, gostaria que avaliasse potenciais terrenos para a construção
do hospital dos mineiros. O marquês aprovou a ideia, mas tenho certeza
de que o seu aval terá um peso maior no Conselho.
— Certamente, vou olhar amanhã logo cedo.
— Agradeço imensamente, sobretudo pela aprovação para
construção do duto que lavará o minério. Era um desejo antigo de
Joseph.
— Voltaremos ao Brasil para vê-lo pronto. Sir Joseph fez um bom
trabalho com o senhor. Estou muito feliz que esteja aqui.
— Eu não estaria em outro lugar, milorde.
— Compre você as terras da herança do marquês. Poderia oferecê-
las ao senhor como um presente, mas sua fortuna é muito maior que a
minha. — O barão sorriu largamente. — Ficaremos felizes em tê-lo por
perto.
Quando a carruagem chegou à casa dos Baldwins, o primeiro-
ministro saltou deixando Marcos pensativo. Como ele protegeria
Izadora depois que ela voltasse de viagem?
Capítulo IV

Na manhã seguinte, depois do desjejum, Ann se dedicou a dar


acabamento ao bordado que fazia para a colcha da pequena Lys. O
silêncio da casa a fazia se perder no tempo. Tinha uma habilidade
incomum com a agulha, seu ponto era preciso e ela raramente errava.
Atribuía tamanha habilidade à prática de anos.
Era seu passatempo favorito enquanto estivera enclausurada em
uma cama. Divertia-se quando alguém se dispunha a ler para ela,
sobretudo Lady Izabel. Era emocionante vagar sorrateiramente pelos
corredores da criadagem de Lilleshall, mas ver as lores se formando no
tecido era um verdadeiro deleite.
— A senhorita é realmente talentosa — a voz de Marcos a fez
espetar o dedo.
Ann levou o pequeno ponto de sangue à boca e sugou delicadamente.
Marcos paralisou diante dela, mas logo em seguida se acomodou a sua
frente.
— Achei que tivesse saído. Não costuma acordar tão tarde.
— Estou esperando o primeiro-ministro. — Ele abriu a casaca para
se sentar informalmente.
— Edward já chegou, está lá em cima com Izadora. — Ela deu um
sorrisinho travesso.
— Houve uma comitiva no gabinete do primeiro-ministro, todos
querem Izadora de volta. A marquesa, em nome das outras damas,
organizou uma pequena mobilização.
— Típico de Sarah. — Ann colocou o bordado na cesta. — Vai ser
impossível esconder Izadora nesta casa por muito tempo. Ontem ela
estava especialmente inquieta.
— Izadora comprou as terras de Manchester. Acredito que os dois
passarão uma temporada por lá. Por isso a inquietação. Tenho certeza
de que o campo lhe fará muito bem. — Ele se inclinou para a frente. —
Lorde Edward não tem interesse nas terras que foram herdadas pelo
marquês. A senhorita me pediu que comprasse uma propriedade para
sua tia, acredito que seja um bom negócio, milady.
— Não entendo muito de negócios, mas imagino que aquelas terras
valham muito mais do que esta casa.
— Eu icaria com a outra metade. As terras são produtivas, Lorde
John tem desenvolvido projetos bem visionários para extração de
algodão. Assim a duquesa e a Sra. Pattel poderiam ter alguma renda.
Claro que precisariam de um administrador de con iança, e Lorde
Edward poderia tomar conta...
— O senhor é muito generoso. Está gastando uma pequena fortuna
para me ajudar. Vou aceitar por tia Julliet e por Pia.
— A senhorita poderia construir uma casa lá. Conhece Manchester?
— Íamos sempre para lá quando éramos crianças. Mas a casa estava
malcuidada, precisava de uma bela reforma. Na época os Baldwins não
tinham muitos recursos. Mas não me lembro muito; depois tia Julliet se
ingiu de morta e eu passei quase todo o tempo dentro de um quarto.
— Quantos anos tinha?
— Não tenho vergonha de dizer minha idade, se pretende fazer as
contas. Eu adoeci com doze anos e só me levantei da cama quando
completei vinte e seis. Há um ano.
— Quase quinze anos em uma cama. Do que sofria?
— Arsênico e ópio, um tônico poderoso fornecido pelo meu antigo
médico. Anthony disse que foi um milagre eu ter sobrevivido.
— Como permitiram?
— Até mesmo eu acreditava que estava desenganada. Eu sentia
dores se não tomava o tônico, tremores. Ainda hoje tenho calafrios,
pesadelos. Anthony diz que estou em processo de puri icação.
— Quem a mantinha na cama, Willian?
— Joana, minha mãe, contudo não icaria surpresa se descobrisse
que foi a mando de Willian. Acredito que Izadora também já tenha lhe
contado essa história.
— Talvez ela tenha se esquecido de mencionar o motivo.
Ann pegou o bordado na cesta e o ajeitou sobre as saias.
— Está nesta casa há quase uma semana, estamos em plena
temporada. Suponho que o senhor não tenha providenciado cartões,
uma vez que não vi chegar nenhum convite para bailes ou jantares.
— Agradeço a preocupação, milady. Uso meu cartão apenas para
tratar de negócios. Não é segredo o fato de que esses eventos se
resumem a uma vitrine do mercado de casamento inglês; acho pouco
provável que qualquer dama inglesa cogite desposar sua ilha com um
negro.
— Mas pelo que sei o senhor é muito rico; Izadora me disse que sua
fortuna é maior até do que a de Thomas.
— Não parece ser su iciente para o seu povo, milady.
— Isso o incomoda?
Marcos levou as mãos à nuca e, encostando-se no assento, soltou
uma gargalhada que fez Ann sorrir.
— Casamento não está nos meus planos, milady. Não acho que uma
mulher seja uma mercadoria para ser negociada de tal forma. Minha
religião não condiz com os seus costumes.
Ela o avaliou demoradamente, Marcos parecia sincero.
— Depois que Izadora se casar, pretende continuar no Reino Unido?
— Foi para isso que Joseph me preparou, milady.
— E no que pretende investir? — Ela voltou a atenção para a agulha.
— Gosto de ouvir sobre negócios. Não seria diferente, sendo ilha do
duque de Sutherland.
— Terei uma pequena parte na produção de algodão e irei investir
nos projetos de Lorde John, um negócio promissor, mas uma boa parte
desse dinheiro voltará para o Brasil, milady.
— Ainda tem uma família lá?
— Tenho meu povo. Vou inanciar a construção de um hospital para
os mineiros e suas famílias.
— Os escravos...
— Não por muito tempo, Lady Ann. Com a denúncia do marquês e de
Izadora, há uma pressão para que os trabalhadores sejam comprados
do arrendatário e passem a ser remunerados.
— Foi por isso que veio. — Ela estava visivelmente emocionada. —
Acho que nunca conheci alguém com o coração mais puro do que o
senhor. Está sempre preocupado com todos a sua volta. Não consegue
imaginar o que signi ica para John encontrar um investidor.
A conversa foi interrompida quando Izadora e Edward entraram na
sala. Ela ostentava um elegante vestido verde e um sorriso contagiante.
— Por que não me contou que meu pai havia enviado o contrato de
casamento? — Mesmo com as mãos na cintura, ela não escondia a
felicidade.
— Creio que o primeiro-ministro pretendia fazer uma surpresa.
Marcos se colocou de pé e a abraçou. Quando se afastou, fez sinal da
cruz na testa da estrangeira e sussurrou algo que Ann não conseguiu
compreender.
— Izadora e eu passaremos um tempo em Manchester. Fez um bom
trabalho guardando segredo sobre a compra das terras. — Edward
ofereceu a Marcos um discreto sorriso. — Sugeri a ela que comprasse
parte da produção.
— É uma ideia maravilhosa, querida. — A duquesa entrou com a
pequena Lys nos braços. — Os ares do campo lhe farão bem.
Enquanto todos se acomodavam, Ann pegou a criança nos braços da
tia.
— Pensei que vocês gostariam de nos acompanhar. Edward
reformou toda a casa, tenho certeza de que todos icarão bem
acomodados. — A brasileira não escondia a empolgação.
— É sua lua de mel, querida.
— Será uma honra recebê-las. Não há com o que se preocupar, vossa
graça. Os criados estão na casa há anos, nem mesmo saberão quem é a
senhora.
— Falarei com Pia. O que acha, Ann, não seria adorável?
— Infelizmente não posso ir, querida tia. Estou aguardando a
correspondência de Anthony. Ele icou de mandar um carimbo do
correio de Paris para que eu pudesse enviar cartas para meu pai.
— Claro — a duquesa concordou. — Lucy enviou um recado,
Augustus está preocupado com você e com o bebê. Nesse caso é melhor
que eu ique com você.
Marcos olhou para Lady Ann e, confuso, preferiu não mostrar muito
interesse.
— Não se prive do passeio por esse motivo, vossa graça. — Ele se
ofereceu rapidamente. — No momento estou impossibilitado de deixar
Londres. Estou aguardando que o magistrado designe um porta-voz
para ler o testamento de Joseph para o Conselho.
— Faria companhia a Ann? — Izadora não escondeu a curiosidade.
— Certamente. Sobre as terras que seu marido sugere que eu
compre — assumiu um tom formal de negócios, tentando não cair na
provocação da brasileira. — Em minha negociação com Lady Ann, como
pagamento por esta casa eu deveria comprar uma propriedade para a
Sra. Pattel. Não tenho um particular interesse por algodão, portanto
pensei que parte das terras poderiam ser doadas por Izadora a ela.
— Sei o que está fazendo. — A estrangeira bufou e se inclinou para a
frente. Falava em português sem se importar com os presentes. — Isso
é algum estratagema para que eu permita que arque sozinho com as
despesas da construção do hospital para os escravos.
— É uma troca justa, não acha, Iza? — respondeu em português. — A
duquesa vai precisar de um lugar para morar. Sendo seu marido dono
de todas as terras em volta, ela terá a privacidade de que precisa. Sei o
quanto essas pessoas são importantes para você.
— Você é exatamente como meu pai, Marcos, mas eu sou exatamente
como minha mãe.
Enquanto Izadora esbravejava, percebeu que Ann e a duquesa
conversavam.
— ... por favor aceite, tia Julliet, é a maneira que tenho de lhe garantir
um futuro.
— Bem — o primeiro-ministro tomou as rédeas da conversa —,
podemos partir amanhã. A duquesa avalia as terras e, se gostarem,
teremos o prazer de tê-las como vizinhas.
— Não caia na armadilha de Marcos, Edward.
— Não há armadilha, querida. A Golden arcará com a construção do
hospital, maior e mais equipado, como Marcos sugeriu. Thomas
acredita que uma obra como essa possa elevar a credibilidade da
empresa perante a Coroa.
Marcos não retrucou, poderia resolver facilmente a discussão
apresentando o documento que lhe garantiria a última palavra.
— Talvez eu deva falar pessoalmente com Pia — Edward se ofereceu.
— Ela está orientando a nova governanta — falou a duquesa.
Quando o barão saiu, Lady Julliet e Izadora engataram uma conversa
animada sobre Manchester. Com a pequena Lys no colo, Ann a
acariciava com desmedido carinho.
— A senhora empurrou suas tarefas para a Sra. Pattel, milady? Pelo
que sei, era sua função cuidar do funcionamento da casa.
Ann sorriu. Já o conhecia o bastante para saber que se tratava de
uma provocação, o que era encantador, ela admitiu.
— Deveria ser grato por seus criados serem treinados pela melhor
governanta do Reino Unido. — A bastarda sorriu.
— Achei que a Senhora Pattel estava aposentada. Ouvi dizer que uma
generosa dama lhe deu uma belíssima propriedade — ele entrou na
provocação.
— Tenho certeza de que a Sra. Pattel está se divertindo com a tarefa.
Isso me faz lembrar que um homem de sua importância deveria
oferecer um jantar para seletos convidados. Deve abrir sua casa para a
parte da sociedade inglesa que pensa além de alianças matrimoniais.
Podemos aproveitar a ausência de tia Julliet e Izadora para organizar
uma bela recepção.
— Eu ia me oferecer para receber a sua encomenda, milady. Não
deveria desperdiçar a oportunidade de um passeio como esse. Não
considerarei sua ausência como uma negligência ao seu trabalho.
— Como o senhor é generoso, mas, sobre a a irmação anterior de ter
o coração puro, começo a ter as minhas dúvidas. Parece-me muito
interessado em icar sozinho nesta casa, mas icarei para ajudar a
cuidar da pequena Lys.
Ann se levantou e colocou a criança nos braços de Marcos. De posse
de sua cesta de costura, despediu-se alegando que precisava pedir a
camareira que providenciasse a bagagem da duquesa.
Enquanto ela se afastava, Marcos lhe avaliou a silhueta, não parecia
grávida. Teria tempo para descobrir mais um segredo da misteriosa
Lady Ann.

***

Quando entrou na carruagem, Marcos conseguiu se libertar da


polvorosa agitação das damas na casa. Izadora conseguia deixar todos
eufóricos com a viagem. A ausência da brasileira seria providencial,
pois ele teria tempo de descobrir os reais riscos que ela corria. Aliás,
desejava saber quem era Willian e por que ele era o responsável por
deixar aquelas mulheres enclausuradas.
Sabia que se tratava de um banqueiro com negócios obscuros. Sabia
dos rumores de que era um inescrupuloso falsi icador de moedas de
ouro e de títulos, mas até então ninguém conseguira provar.
Estava óbvio que Lady Ann sabia e talvez esse fosse o motivo para
que fosse mantida na cama por tanto tempo. Contudo Marcos
suspeitava de que havia mais segredos escondidos.
Aos poucos estava sendo inserido em uma investigação delicada,
encabeçada por Lorde Edward e que tinha como maior aliado John
Anson, o futuro primeiro-ministro do Reino Unido, seu futuro sócio.
Marcos seria investidor do projeto de Lorde John em suas brilhantes
engenhocas. Este era talentoso e o negócio parecia promissor.
A chegada a Londres fora bem melhor do que o previsto. Ele
esperava deparar com di iculdades, mas, com a in luência dos amigos
de Izadora, não encontrara nenhuma resistência. Um preconceito
velado, sabia que sua fortuna era interessante aos olhos britânicos.
Talvez Lady Ann tivesse razão, poderia dedicar seu tempo aos
negócios depois que Izadora estivesse o icialmente casada, e Willian
Granville, apodrecendo na Torre de Londres.
Naquela noite, fora convidado para jantar na casa do duque de
Sutherland. Diante do retrato da aristocracia inglesa, Marcos percebeu
como a Sra. Lucy Turner era capaz de gerir aquela casa como uma
verdadeira duquesa e que escondia segredos de toda a sua família.
No meio do jantar, enquanto se mantinha atento a cada conversa,
surpreendeu-se ao sentir a presença de um felino em seu colo. O animal
se manteve ali durante toda a refeição e, quando os cavalheiros se
retiraram para fumar charutos, o bichano o acompanhou.
— É o gato de Lady Ann. — Lucy pegou o animal em seus braços. —
A ilha mais velha do duque. O senhor ainda não teve o prazer de
conhecê-la, ela está em Paris com o marido.
— Sim, soube que está grávida. — Marcos tentou manter a
compostura. — É um bichano adorável.
— Ele se sente muito sozinho, Augustus prefere os cachorros, nem
sempre permite que ele circule livremente.
— Também me sinto sozinho naquela casa, milady. — Ele mantinha
as aparências, mesmo que o duque já tivesse se afastado. — Ficaria
encantado de fazer companhia a tão adorável criatura, até o retorno de
Lady Ann. Como ele se chama?
— Snow. — Ela colocou o gato no colo de Marcos e ele percebeu que
havia, junto ao pelo sedoso, um envelope. — Por favor, entregue a Julliet
— ela sussurrou.
— Agradeço a con iança, milady.
Quando se juntou aos demais cavalheiros, Marcos percebeu o alívio
do duque em se livrar do bichano. Não delongou sua estada, queria
encontrar a misteriosa Lady Ann, para lhe entregar a surpresa.
Mas se decepcionou ao não a encontrar na sala, ao chegar a casa,
como de costume. Em seu quarto, a bela dama dormia profundamente.
Marcos perdeu algum tempo velando seu sono depois de abrir a porta
para que o gato se acomodasse ao lado da dona.

***

A movimentação se estendeu pelo dia seguinte, mas Marcos não


icou para acompanhar a espalhafatosa saída de Izadora. As mudas que
havia encomendado para o jardim haviam chegado e essa fora a
desculpa perfeita para se ausentar. Fez questão de ir buscá-las. Outra
pequena fortuna, ponderou ao entregar o dinheiro ao lorista.
Enquanto isso, Ann permanecia sentada na sala, na companhia de
seu gato e de Lys, enquanto um pequeno exército de criados preparava
a partida de Izadora e sua tia.
— Tem certeza de que não deseja ir? — Pia sentou-se ao seu lado e
contemplou a criança que dormia alheia em sua cesta. — Deveria deixá-
la no quarto dela. Está parecendo Sarah.
— Ela parece gostar do movimento e é uma adorável companhia.
Sabe que não posso ir, Pia.
— Sobre o diário...
— Ainda não o peguei, vou aproveitar a tranquilidade para fazê-lo.
Contou a tia Julliet?
— Não. — Sra. Pattel sorriu com doçura. — Assim como Julliet e
Lucy têm seus segredos, nós duas também temos os nossos. Não acho
que ela deva se preocupar com nada. Foi uma estupidez a vinda de sua
tia para Londres com você, e farei de tudo para mantê-la segura, mas
me preocupo com você, minha querida.
— Não há com o que se preocupar. Em breve poderá viver em
Manchester ao lado da tia Julliet, vão encontrar a paz que tanto
desejam.
— Você tem um coração de ouro, Ann. Não vou permitir que vá para
um convento, poderá morar conosco ou com Lucy e o duque.
Ann abraçou Pia com carinho. Desejava dizer que, caso decidisse
icar, adoraria ter a própria casa. Em tão pouco tempo, já havia se
acostumado à ideia de comandar um lar e de cuidar da adorável Lys.
Talvez devesse se oferecer para ser a preceptora da criança; Marcos
precisaria de alguém para orientar a sobrinha, pensou.
— Precisamos partir. — A duquesa sustentava um olhar carinhoso.
— Edward irá nos encontrar no caminho, para não levantar suspeitas.
— Por favor, tomem cuidado e não abram as cortinas da carruagem.
— Ann se levantou para se despedir.
Alguns minutos depois, a paz reinou naquele lar. Apesar de apreciar
o movimento e toda a agitação de Izadora, um pouco de sossego era
bem-vindo. A ama tentou levar a criança para ser alimentada, mas Ann
fez questão de cuidar pessoalmente disso, na sala, com a ajuda de um
objeto feito de vidro, com um bico de cortiça.
Aconchegada nos braços de Ann, Lys parecia faminta. Sob as
orientações da ama, a lady esperou até que a criança parecesse saciada.
— Deve ser uma experiência encantadora poder amamentar uma
criança.
— Com certeza, milady. Eu aprecio muito meu trabalho.
— E o seu ilho? Como faz para...
— Tive que entregá-lo, senhora. Eu não tinha condições de criá-lo.
— Eu sinto muito...
— Posso levá-la?
— Por favor, deixe-a mais um pouco comigo.
Ann não percebera que Marcos havia chegado. Ele permanecia
parado na porta, enquanto a ilha bastarda do duque acariciava a
pequena Lys em seu cesto. Silenciosamente, a ama deixou o cômodo e
ele se aproximou a passos lentos.
— A senhora será uma ótima mãe, Lady Ann.
— Não sou senhora. — Ela ergueu os olhos, já estava se
acostumando às chegadas sorrateiras dele. — Acho pouco provável que
seja mãe um dia.
— Não se fala em outra coisa na casa do seu pai, ele parece muito
orgulhoso com a chegada do neto.
Ela o avaliou por alguns instantes.
— Fico feliz em saber que a história de minha gravidez é convincente
a ponto de fazê-lo acreditar.
— Não está grávida?
— Seria tecnicamente impossível.
— Mas seu marido... Pelo que sei, a senhora se casou. — Ele retirou a
casaca e se sentou.
Ann observou atentamente enquanto ele retirava os sapatos.
— Foi somente um acordo para que eu pudesse sair de casa. É
importante que acreditem que estou grávida. Assim ganho tempo para
voltar. Uma gravidez delicada poderia ser a desculpa perfeita para
delongar minha ausência.
— E como pretende justi icar a falta da criança quando inalmente
voltar?
— Havia pensado na possibilidade de adotar, mas ainda há pouco me
dei conta de que não teria como mantê-la...
— E a senhorita não pretende contar com a ajuda de sua família —
ele completou, colocando os pés sobre a mesa baixa à frente da
poltrona. — Estive pensando no que disse, sobre oferecer um jantar. Fui
até a livraria, e seu irmão David me contou histórias interessantes.
Como por exemplo a do Capitão James David, que adotou uma criança
negra, que foi dada como presente à Rainha Vitória.
Ann juntou as mãos no colo e ofereceu um sorriso.
— Aposto que ele lhe contou a história da Senhorita Mary Jane
Seacole, que, depois de recusada para ser enfermeira da guerra da
Crimeia, arrecadou fundos para construir um abrigo para soldados
britânicos. Aposto que o senhor irá doar uma generosa quantia.
Ele deu de ombros.
— Já que estou impossibilitado de investir no hospital dos mineiros,
acredito que seja um bom feito.
— Não importa a nacionalidade, não é mesmo, Sir Marcos? —
Mesmo que o tratamento fosse inadequado, Ann gostava de provocá-lo.
— Seu povo tem muitas faces e o senhor não medirá esforços para
ajudá-lo. — Ela colocou a mão sobre a dele. — Procure meu pai, ele
indicará pessoas que possa procurar. Mas acredito que, quando
mencionar o interesse em oferecer um jantar, ele mesmo fará questão
de ser o an itrião.
— Não entendo por que esconder do duque sua situação.
— Não se trata da minha situação. O duque de Sutherland tem duas
mulheres de personalidade forte o su iciente para decidir o que é
melhor para ele.
— Acredito que o cavalheiro que casará com a senhorita sofrerá do
mesmo mal.
— Não me casarei novamente, uma viúva em meu país tem
bene ícios consideráveis.
— A não ser que ela não tenha recursos e, pelo que entendi, a
senhorita foi generosa com seu marido.
— Anthony me deixou algum dinheiro, o su iciente para viver de
forma modesta. — Ela o avaliou por alguns instantes. — Se esse
discurso tiver o intuito de me convencer a deixá-lo arcar com as
despesas da casa...
— Touché, milady. Mas eu iria um pouco além. Como Izadora dará a
sua tia a propriedade, penso que eu ainda deva para a senhorita uma
boa soma. Talvez possa adotar a criança que deseja, a inal.
Sem conter a inexplicável alegria, ela se colocou de pé.
— De initivamente, o senhor é um excelente negociador. Se espera
que eu diga que não serei orgulhosa...
— Shhh — ele se colocou de pé rapidamente e os dedos longos
repousaram mais uma vez sobre os lábios dela —, não precisa dizer
nada agora. Tem o tempo de que precisa para pensar se o seu dinheiro
será destinado à igreja ou a um futuro para a senhorita. — Ele abaixou a
mão. — Estive pensando, se não se incomodar, enquanto estivermos
sozinhos nesta casa as refeições poderiam ser servidas de maneira
informal.
— Como por exemplo?
— Sinceramente acho desnecessárias porções pequenas que mal
cobrem os buracos dos dentes. Por que não um bolo inteiro na mesa, no
lugar dos bolinhos excessivamente doces, cobertos de creme?
Seria impossível não se divertir com a versão masculina de Izadora.
— Vou ver o que posso fazer, milorde, mas, quando tivermos visitas,
teremos que seguir os protocolos ingleses.
— De acordo.
— Estive pensando sobre sua vida social nesta casa, seria
conveniente acomodarmos Pia e tia Julliet no terceiro andar. Podemos
colocar a pequena Lys no quarto ao lado do senhor.
— Aproveite a ausência delas para providenciar, milady.
— Talvez o senhor queira ocupar o quarto principal.
— Estou muito bem instalado, Lady Ann. A única coisa de que sinto
falta é comida de verdade.
Ela fez uma reverência exagerada.
— Se me der licença, vou passar as orientações do seu banquete,
milorde. Por favor, leve a pequena Lys para a ama.
Ele a impediu segurando-a pelo braço.
— Jamais seria um lorde. — Quando se deu conta de que a tocava,
ele a soltou.
— Não é um título que mostra a nobreza de um homem. A propósito,
não tive a oportunidade de agradecer por ter trazido Snow. Foi muito
gentil da sua parte.
— Agradeça à Sra. Turner quando tiver oportunidade.
— Eu o farei, com licença.
Capítulo V

Aquele fora o melhor jantar que Ann já tivera. Com Marcos


escandalosamente descomposto, sem sapatos, colete, gravata e casaca.
Não havia o entra e sai dos lacaios, e o assunto do jantar fora o projeto
do jardim. A bastarda achou graça ao vê-lo apelidar aquela casa de
Grove House Springs.
Seguindo o protocolo, depois do jantar foram juntos para a sala. Ele
lhe serviu um cálice de vinho do Porto e optou por um puro malte.
— Não vai acender um charuto?
— Seria deselegante fumar na presença de uma dama.
Ela mordeu o lábio constrangida.
— Eu gostaria de experimentar.
Ele a observou por um momento, antes de pegar a caixa disposta na
mesa ao lado.
— Sempre surpreendente, Lady Ann.
Ela aceitou o cálice e virou em um só gole.
— Anthony nunca permitiu que eu experimentasse.
— É para isso que os maridos servem, milady. — Ele deu uma longa
baforada e passou o charuto para ela. — Devagar. Não pode tragar.
Ann desfrutou da curiosa sensação da fumaça vagando por sua boca,
soltou uma baforada e tossiu um pouco.
— Devagar, Lady Ann. — Pegou o charuto da mão dela. — Amanhã
poderíamos plantar os gerânios pendentes, o que acha?
— Não vai trabalhar?
— Lorde John enviou um bilhete, não apareceu no jantar que seu pai
ofereceu e falou que se ausentaria pelo resto da semana.
Ela juntou as mãos.
— Espero que ele e Viollet tenham se acertado. Pelo que sei, até
então o casamento não tinha sido consumado.
— De initivamente, discrição não é o forte dos Ansons.
— Nem do senhor. — Ela pegou o charuto logo que ele acendeu
novamente. — Esta casa ica encantadoramente calma sem a presença
de Izadora, não acha?
— Podemos expulsá-la. Como an itriões, poderíamos sugerir que ela
icasse em Manchester por um bom tempo.
Ann gargalhou com a brincadeira.
— Morreríamos de tédio.
— Não comungo da mesma opinião. A propósito, a senhorita já abriu
a gaveta para que eu possa guardar a arma?
Ela abandonou a postura formal e se inclinou para a frente,
agradecendo o fato de não estar usando espartilho.
— Vi que o senhor tramou pelas costas de Izadora com Edward, para
mandá-la para Manchester. Não estou certa se devo con iar no senhor.
— Não traí Izadora, usei de uma informação para protegê-la e não
me sinto culpado por isso.
— E se eu lhe con idenciasse segredos, Marcos, faria o mesmo?
— Não mediria esforços para mantê-la em segurança.
Ela se ajeitou alisando as saias.
— Não acredita que uma mulher possa conseguir isso sozinha?
— Vou lhe con idenciar um segredo, Lady Ann. Tenho o mesmo
número de ações da Golden que Lorde Edward. Joseph me registrou
como ilho e me deu poderes para intervir, quando desejar, nas decisões
de Izadora. Não pretendo usar disso, a menos que se faça necessário
para mantê-la em segurança. Não sou um traidor como imagina, fui leal
ao pai dela.
— Edward sabe da procuração?
— Somente a senhorita, milady.
— Quer me provar que posso con iar em você?
— Con iança não se prova, se conquista, milady. Mas devo alertá-la
de que está em desvantagem; trancada nesta casa, não lhe restam
muitas opções, a menos que deseje revelar a Lorde John que está em
Londres.
— Não!
— Então me diga.
— O que quer saber?
Ele levou as mãos à nuca.
— Comece me contando sobre seu marido; por que um cavalheiro
aceitaria um casamento de aparências para se ingir de morto depois?
Ela se ajeitou na poltrona.
— Anthony ama um outro cavalheiro e fugir foi a única maneira que
encontrou. — Ela pegou o copo de Marcos e deu um gole generoso. —
Lady Izabel, a avó de Edward, foi que conseguiu Anthony para ser o
médico da tia Julliet. Certa vez, quando tive uma crise, o médico que
Joana controlava estava em viagem e Antony me atendeu. Ele
descon iou que eu pudesse sofrer de histeria. Na época todos achavam
que eu estava doente de fato, inclusive eu. — Ela suspirou
profundamente. — Com a autorização do meu pai, que já estava
desesperado, ele tentou abordagens não ortodoxas para uma dama
solteira, e o tratamento deu resultado. Sugeriu que eu diluísse o tônico
que Dr. Lewis havia me receitado. Foi ele quem descon iou que eu não
estivesse doente de fato.
— Abordagens não ortodoxas?
Ela corou.
— Manipulação clitoriana. — A essa altura o vinho do jantar já lhe
dava coragem para prosseguir. Tomou mais um gole do copo de Marcos,
que prontamente se levantou e buscou a garrafa. — Não precisa me
embebedar, eu lhe contarei.
— Só para garantir a coragem, e a con iança — ele revelou os dentes,
fazendo Ann corar ainda mais.
— Quando ele me tocou tão intimamente, eu acreditei que estivesse
interessado. — Sorriu ao se lembrar. — Na época, Marie, mulher de
David, trabalhava como camareira de Sarah e providenciou um pequeno
enxoval para seduzi-lo. Eu tentei beijá-lo e foi então que descobri que
ele apreciava a companhia dos cavalheiros.
— A senhorita se apaixonou por ele.
— Não, não houve sentimentos profundos. Anthony me mostrou que
eu estava viva. Ele me presenteou com Snow, o que foi muito bom,
porque eu me sentia sozinha. Com uma manobra delicada, Lady Izabel
providenciou para que ele se tornasse meu médico. Foi dela a ideia do
casamento.
Marcos estava fascinado, embora de alguma forma se sentisse
incomodado com a visão do médico tocando a pequena Lady Ann.
— Por que mantê-la na cama?
— Eu vi Joana tentando sufocar tia Julliet enquanto ela dormia e
presenciei algumas cenas as quais gostaria de esquecer.
— Por isso o punhal debaixo do travesseiro?
— Lady Izabel queria que eu me sentisse segura — ela sorriu sem
graça —, e funcionou por muito tempo.
— Sente falta dele? Do seu marido, quero dizer.
Ela baixou os olhos e, quando os ergueu, encontrou Marcos; ele
parecia expectante.
— Não, embora seja um estrategista, eu me sinto segura com o
senhor nesta casa. Sei que faria qualquer coisa por Izadora...
— E pela senhorita, e por qualquer dama desta casa.
— Descon io que essa proteção vai além das sebes de Grove House
Springs. — Ela se levantou. — Se o senhor não se incomodar, eu
gostaria de me recolher, acho que bebi um pouco demais.
— Vou acompanhá-la.
De braços dados, eles subiram as escadas, e Ann parou quando
chegou à porta de seus aposentos. Snow mal esperou que a porta se
abrisse e entrou.
— Obrigada. Boa noite, Marcos.
— Deixarei a arma na gaveta da escrivaninha para que a senhorita
possa guardá-la.
— Talvez devêssemos fazer isso juntos. — Beijou-lhe a face. —
Amanhã.

***

A presença de Marcos naquela casa fora agradável surpresa. Ele


tinha a incrível capacidade de deixar Ann à vontade; a ilha bastarda do
duque apreciava as conversas descontraídas e as provocações dele. Um
contato simples, despretensioso, mas que aos poucos semeava
con iança e cumplicidade.
Aprendera, mesmo com sua pouca experiência de vida, a não con iar
nas pessoas. Guardar segredos e jamais dizer tudo que sabia foi o que a
manteve viva. Contudo Marcos a impelia a se abrir, a desabrochar, a
buscar descobrir quem era a mulher adormecida dentro dela.
A ideia de passar o resto da vida em um convento já não parecia tão
tentadora, e Ann tinha certeza de que não seria uma escolha honesta.
No reino de Deus, não havia desejo, e o que aquele africano despertava
dentro dela era ainda maior do que as ondas de calores que a levaram a
supor que estava interessada em Anthony.
Sorriu ao se lembrar de quando, com a ajuda de Marie, reformara
suas roupas de baixo para seduzir o médico tímido. Uma ideia
aparentemente descabida de Lady Izabel, mas que fez a bastarda
enxergar que não era mais uma menina.
Ser tocada de forma tão íntima deveria parecer invasivo,
inapropriado, indecoroso, ela sabia, mas foi prazeroso e jamais
admitiria que passara a se tocar também.
Na noite anterior, depois de se despedir de Marcos, ela se deitou nua
e deixou que os dedos trêmulos percorressem o meio das coxas. O que
pensariam se descobrissem? Nunca havia chegado ao ponto que
Anthony conseguia com os dedos habilidosos, contudo, com o
pensamento em Marcos, soltou um pequeno grito ao sentir o corpo se
desfazer em mil pedaços.
Não precisava ter medo, a certeza de que ele a protegeria estava lá,
cravada em cada pensamento. Contudo seria ilusório pensar que um
homem como ele se interessaria por uma dama tão morbidamente
pálida e desprovida de qualquer atributo.
Com a chave na mão, Ann abriu a porta da biblioteca. Acordou
decidida a colocar um im à onda de angústia e medo. Agachou-se
diante da escrivaninha e, com um pouco de di iculdade, conseguiu girar
a chave, abrindo o fundo falso da mesa.
O diário caiu no chão. Uma encadernação em couro, vermelha, com
as letras em baixo relevo. Os dedos deslizaram sobre o acabamento de
folha de ouro.
Sobressaltou-se ao ver a porta se abrindo. Marcos trazia a caixa,
acompanhado de Snow. Ann não reconheceu a elegante combinação de
calça e casaca, imaginou que fosse uma das encomendas que chegara na
tarde anterior. Ele estava ainda mais elegante do que de costume
quando saía para o trabalho. Foi inevitável não desanimar ao constatar
que ele sairia em breve.
— Como passou a noite, Lady Ann? — Com um movimento elegante,
ele depositou a caixa sobre a escrivaninha e a ajudou a se levantar.
— Bem. — Pegou o diário e aceitou a mão dele. — E o senhor?
— O Senhor está no Céu, milady. A esta altura, posso deduzir que já
podemos abandonar as formalidades.
Ele chegou bem perto e deu-lhe um beijo casto no rosto, o que fez as
pernas dela fraquejarem. O cheiro amadeirado de Marcos era
maravilhoso.
Num movimento hábil, ele pegou a caixa e se abaixou para guardá-la.
— Pensei em fazer a troca dos quartos hoje. — Com o diário
apertado entre braços, ela se sentou em uma das poltronas, precisava
encontrar uma maneira de manter os joelhos irmes. — Sarah fez uma
reforma na sala de banho em Grove House, a água vem direto por um
cano. Não entendi muito bem, mas creio que John poderá explicar-lhe.
Não é uma reforma barata, mas, pelo que ouvi dizer, evita o trânsito de
criados carregando baldes de água. — Ela olhou para o colo. — Estamos
trabalhando com uma escala de criadagem reduzida devido às
circunstâncias e seria muito prático...
— Gostaria de água chegando diretamente em sua sala de banho,
Lady Ann?
— Não é para mim, mas para a pequena Lys e para o quarto do
senhor; seria um conforto...
— Não foi isso que perguntei. — Ele se pôs de pé. — Gostaria de ter
uma sala de banho como a da sua irmã?
— Quem não gostaria de poder se lavar sem a ajuda de criados?
— Então teremos, quero que se sinta à vontade nesta casa, milady.
— Pensei que pudéssemos abandonar as formalidades.
Ele se sentou ao lado dela e olhou intensamente para o diário que, a
essa altura, jazia entre as saias da dama, enquanto as mãos femininas
brincavam com os braços da poltrona.
— Posso? — Fitou a encadernação.
— Eu não li ainda... Pensei...
— Gostaria de ver a capa, milady.
Hesitante, ela o entregou.
— Sobre as formalidades, acho que...
— Sei o meu lugar, Lady Ann. — Os dedos longos acariciaram a
gravação em folha de ouro. — Sarah Granville; jamais imaginei que
guardasse com tanto segredo o diário de sua irmã.
— Sarah Granville foi minha avó. A marquesa recebeu o mesmo
nome como uma homenagem, a pedido de tia Julliet.
— Interessante. Imagino que aqui dentro haja um valioso tesouro.
— Lady Izabel nunca me contou o que há dentro. Ela me incumbiu de
abri-lo quando eu estivesse em segurança, disse que eu saberia o que
fazer.
— Sente-se segura?
— O senhor é dotado de várias habilidades. O que quis dizer com
“Sei o meu lugar?”
Marcos desabotoou a casaca, era nítido como se sentia
desconfortável com as roupas inglesas, e por um instante Ann tentou
imaginar o que ele vestia quando vivia no Brasil.
— É a ilha de um duque...
— Bastarda...
— Um segredo que poucos sabem. Ainda assim, é uma nobre inglesa.
Joseph...
— Jamais perdoaria se me tratasse com intimidade? Devo confessar
que aprecio sua devoção ao seu mentor, mas não tem cabimento tratá-
lo de maneira informal enquanto o senhor me coloca num pedestal.
— E não é onde a senhorita está?
Ela bufou e se levantou, batendo as mãos nas saias.
Involuntariamente, começou a caminhar pelo cômodo.
— Não sou uma dama tradicional. Não tenho recursos, sou uma
foragida e jamais terei uma vida dentro dos padrões.
Ele se recostou esticando as pernas, havia um rastro de um sorriso
irônico que Ann já conhecia.
— Por favor, prove-me que não a devo tratar como uma nobre dama
inglesa.
Com as mãos na cintura, ela o fuzilou com o olhar.
— Tenho vinte e oito anos, passei a vida em uma cama...
— Há controvérsias, já ouvi relatos da Sra. Pattel sobre suas fugas
furtivas, são bem divertidos por sinal.
Ela não resistiu ao sorriso dele.
— Não debutei, certamente morrerei intocada mesmo que todos
acreditem que estou grávida. — Parou por alguns instantes. — Talvez
eu tenha um amante; isso deve contar pontos ao meu favor, não acha?
Marcos se divertia com o esforço de Ann para convencê-lo.
— Não acho que a senhorita se sujeitaria a ser uma amante.
— Eu não disse ser uma amante, e sim ter um amante.
— Na sua terra isso me parece uma distração muito cara, milady.
Como bem disse, não tem tantos recursos.
Ann bufou e se sentou novamente.
— Trate-me como Ann, sem títulos, pompa e iruletes, e eu permito
que leia o diário de minha avó comigo.
Ele ofereceu um sorriso vitorioso e entregou o diário para ela,
levantando-se.
— Aonde vai?
— Tirar essas malditas roupas, temos que fazer o levantamento da
reforma e a troca dos quartos. Sugiro que vista algo mais apropriado,
isso não parece confortável.
Com uma mesura discreta, ele a deixou na biblioteca. A bastarda
sorriu ao constatar que Marcos conseguia o que queria sem muito
esforço, mas ela não se importou, já tinha decidido que compartilharia
com ele os segredos de sua avó.
Capítulo VI

Com um vestido sem espartilho, Ann parou no alto das escadas,


quando se deparou com um quadro de Lady Izabel e Lorde Steve
Baldwin. Juntos, de mãos dadas. Ela não estava sentada, nem ele. Os
dois estavam de pé, sorriam. Uma pintura não usual.
Lembrou-se da condessa viúva lhe contando sobre uma tela, que
icava no gabinete dele, no banco, e imaginou que fosse a mesma.
— Uma bela representação. — A chegada repentina de Marcos já não
a assustava mais.
Ann se virou e viu que ele vestia somente a camisa e as calças, não
usava sapatos.
— Acredito que Edward queira icar com essa pintura. Vou pedir que
a embalem junto com os outros objetos pessoais que encontrarmos.
— É ostentoso demais, não acha? — Marcos continuava avaliando a
obra.
— É uma tradição, assim como os passeios no Hyde Park —
respondeu contemplando o plano de fundo da pintura. — Embora o
fato de estarem de mãos dadas não seja muito apropriado.
Marcos tomou a mão de Ann com cuidado.
— Um gesto aparentemente inocente, não vejo o porquê de tanto
estardalhaço.
— Permita-me confessar que pre iro o senhor assim, na versão
sedutor, a um cavalheiro de negócios. — Ainda de mãos dadas,
começaram a caminhar pelo corredor. — Não pense que me ludibriou
mais cedo no escritório. Eu já pretendia ler o diário com o senhor.
Ele parou de andar e a itou intensamente.
— Peço perdão se em algum momento dei a entender que a desejo
seduzir.
— Também prefere os cavalheiros? — Ela se encolheu, perguntara
no impulso; temia saber a resposta.
— Não, minha cara Ann. Não aprecio cavalheiros, embora dentro da
mina isso seja mais comum do que parece.
— Já foi um mineiro? — Ela abriu a porta do último quarto, onde os
móveis estavam cobertos por lençóis.
Nos aposentos ao lado, os criados iam e vinham carregando móveis e
objetos, caixas. Alheio ao movimento, Marcos abriu as cortinas e
começou a retirar os lençóis.
— Fui tratado como um Senior. Minha mãe sempre fez questão de
trabalhar, aprendi isso com ela: fazer-se útil para retribuir a
generosidade.
— Hoje o senhor não precisa mais trabalhar, tem muitos recursos.
— Eu gosto, não de ter muitos recursos, mas do trabalho. — Ao se
deparar com uma cômoda antiga, ele a avaliou minunciosamente. — O
fato de ter tido a sorte de ser apadrinhado por Joseph não tornou a
minha vida mais fácil. Consegue imaginar como os meus me olhavam,
com repulsa, como se eu fosse um vendido?
— Aposto que todos desejavam ter a mesma sorte. — Ela abriu a
porta de ligação. — Acho que este quarto icaria perfeito.
— É um aposento muito amplo e poderia acomodar bem as duas —
ele concordou.
— Podemos pedir que esvaziem tudo. Assim podem limpar, trocar os
papéis de parede. — Interessada em continuar a conversa, ela se sentou
em um canapé coberto por um pano empoeirado. — Como conseguiu o
respeito deles? Ou veio para cá para fugir?
— Não vim para fugir. Vim para cuidar de Izadora e, pelo visto, da
senhorita. — Ele sorriu. — A igreja. Quando consegui um templo para
que pudéssemos ter um espaço para nossas manifestações religiosas,
eles passaram a me enxergar como um deles.
— Não se sente pertencente a nada, não é mesmo? É isso que
esconde? Não se sentia um brasileiro, nem um africano e nitidamente
não se sente um inglês.
— Particularmente não acredito nessas coisas. Somos todos iguais
perante Deus. Mas a senhora tem razão, o homem tem a estranha mania
de criar estereótipos, em que se tem que ser o que se é. Mas estamos
em constante movimento. Nasci africano, virei brasileiro e estou
destinado a passar o resto dos meus dias como um inglês, mas isso não
muda quem sou.
— Busca a aprovação deles?
Ele ponderou por alguns instantes e inalmente se sentou.
— Seria hipocrisia dizer que não dependo da credibilidade para
fechar negócios, e o dinheiro nem sempre é o su iciente, sobretudo
aqui.
— Por isso queria pagar o hospital, não é?
— Não, vi muitos homens morrerem por falta de cuidados
adequados, queria garantir o mínimo de qualidade de vida para os
mineiros e suas famílias.
— Fico feliz em saber que a Golden irá arcar com os custos. — Ela
sorriu ao ver a careta que ele fez.
— Mesmo que eu continue gastando, não serei capaz de esgotar
meus recursos nesta vida, Lady Ann. Sou um acionista da Golden, tenho
a mesma quantidade de ações que Lorde Edward. Não que as pessoas
saibam, isso só será revelado depois da leitura do testamento de Joseph.
Fora a indecorosa soma que ele me deixou.
— Isso não é um problema.
—Torna-se, uma vez que não sei o que fazer com isso tudo. Mesmo
que eu diversi ique os investimentos, ainda assim, essa quantia vai se
multiplicar, sobretudo com o projeto de Lorde John, que parece muito
promissor.
— Um orfanato. Um lugar onde mães desamparadas possam deixar
seus ilhos e visitá-los até que tenham condições de buscá-los. Um lugar
onde órfãos possam crescer rodeados de amor e cuidados. Gostaria de
ser sua sócia; o senhor faz questão de pagar por esta casa e parte desse
dinheiro eu também gostaria de investir para ajudar os necessitados.
— E onde você moraria?
— Com eles, ou passaria um tempo em Manchester com a tia Julliet,
ou em Lilleshall. Garanto que não me faltará lugar para icar.
— Achei que não quisesse depender das pessoas.
— Nessas condições, eu não me incomodaria. Passaria a maior parte
do tempo com as crianças, e isso certamente me faria feliz.
— Por que não pensa em ter sua própria família?
— Não se encontram com facilidade homens que saibam respeitar
uma mulher. Não quero passar o resto da vida como a mobília de uma
bela casa, ou correndo atrás de um bom casamento para minha ilha.
Tanto tempo em uma cama nos faz ver tudo de uma forma diferente, já
perdi metade da minha vida e realmente gostaria de usar meu tempo
para fazer o bem, assim como você.
— Não é algo a que eu possa me dedicar agora; se puder ter um
pouco de paciência, tenho outras questões para tratar e esse é um
projeto grandioso.
— Não precisamos ter pressa, também não poderei me dedicar a
esse projeto neste momento.
Ele estendeu a mão para selar o acordo.
— Será um prazer inanciar seu orfanato, Ann.
— O senhor é muito generoso, mas não quero abusar da sua
benevolência nem do seu dinheiro. — Ela se colocou de pé e estendeu a
mão para ele. — Vamos ver onde será o novo quarto da pequena Lys.

***

A reestruturação acabou ocupando o resto da semana. Ann só se deu


por satisfeita quando a pequena Lys se instalou no segundo andar.
Homens trabalhavam dia e noite no terceiro piso, para deixar o quarto
da duquesa pronto. A reforma das salas de banho seria feita em etapas,
o que se arrastaria pelo resto do mês.
A bastarda deveria se sentir culpada por ocupar tanto tempo de
Marcos, mas apreciava, e muito, a companhia dele. Era maravilhoso
poder conversar sobre o que quer que fosse. Aos poucos, Ann
desfrutava de uma intimidade que jamais imaginara que pudesse
existir.
Ela estava terrivelmente apaixonada, havia constatado isso no jantar
da noite anterior. E algo lhe dizia que não era do mesmo modo como
fora com Anthony. O médico a encantara e a tratara com carinho; fora
iludida pela carência e pela melancolia que a tomavam. Com Marcos era
diferente, ela se sentia viva e descobria aos poucos uma audácia que
nem descon iava que tinha.
Havia beijado o rosto dele naquela manhã, quando Marcos saía para
resolver alguns assuntos. E não recuaria, sobretudo naquele momento,
em que repetiria a carícia. Ele lia concentrado, enquanto ela bordava
almofadas para o quarto da tia, com Snow enrolado em seus pés.
— Lorde John Anson, o visconde de Trentham, deseja vê-lo, senhor
— a voz da governanta a fez saltar da poltrona.
— Peça um minuto a ele. — Com uma tranquilidade desconcertante,
ele observou a bastarda se esconder atrás da cortina, carregando sua
cesta de bordado.
Quando Lorde John chegou à sala, Marcos ainda sorria. Ela deveria
ter subido para seus aposentos, mas a curiosa Lady Ann não perderia
aquela conversa, certo?
O farrusco não a recriminaria por aquela peripécia, imaginava o
quanto deveria ser entediante a reclusão. Os olhos do visconde
observaram o movimento da cortina, e o outro viu os sapatos femininos
se esconderem entre o amontoado de tecidos rapidamente. Snow
pareceu irritado com a intromissão do convidado e logo se deitou aos
pés de sua dona.
—Desculpe, não sabia que estava acompanhado. — Lorde John
parecia se divertir. — Ela não gostaria de se juntar a nós?
— É bem tímida, milorde. Aprecia ouvir conversas às escondidas. —
Deu de ombros.
— Eu fazia o mesmo, minha irmã Ann me ensinou. Ela era realmente
muito boa em se esconder quando criança. Mesmo quando já estava
acamada, vez ou outra fugia para passear pela casa, sobretudo para
roubar biscoitos.
— Pelo visto é um hábito inglês. — Ele se levantou para servi-los de
um puro malte.
Lorde John relanceou o olhar novamente para a cortina, que estava
imóvel.
— Creio que o assunto que me trouxe seja delicado.
— Não se preocupe, a dama em questão é de minha inteira
con iança. — Entregou o cálice ao visconde.
— Notícias de Izadora?
— Ainda não, mas creio que Lorde Edward irá encontrá-la.
— O senhor não me parece preocupado. É Izadora que está atrás
daquela cortina?
— Não, senhor. Acredito que a conheça o su iciente para saber que
discrição não é o forte dela.
— De fato — John concordou ainda com os olhos grudados no tecido
de veludo. — Tem certeza?
— Tem a minha palavra.
— Com a ausência de Edward, confesso que estou um pouco
apreensivo.
— Algum problema com a campanha, milorde?
— Não, a campanha vai bem. — O visconde tomou um generoso gole
e depositou a cartola na poltrona ao lado. — Meu pai e Lorde Baldwin
têm feito um ótimo trabalho. Estou particularmente preocupado com as
damas de minha família e com Izadora.
— Algum problema?
— Como sabe, o fato de Izadora ser uma herdeira pode colocá-la em
risco. Descon io que o ponto fraco de Willian seja o ouro, mas ainda não
tenho como provar. Os documentos que Lorde Baldwin assinou...
— Não há com o que se preocupar, milorde. O patrimônio dela está
resguardado. Joseph parecia prever que algo aconteceria. — Marcos já
estivera com o visconde em diversas ocasiões e sabia detectar o caráter
de um homem, contudo con iança era algo delicado. De qualquer
maneira, resolveu dar um voto a Lorde John. — Tenho documentos que
podem reverter qualquer perda e a vida dela está segura.
Lorde John passou as mãos sobre os cabelos.
— Todos estão na mira dele. Inclusive minha mulher, que ele
acredita ser meu ponto fraco.
— Pelo que ouvi falar, ele não está errado, milorde.
— Posso proteger Viollet, agora que sei quem é Willian de verdade,
mas, enquanto não conseguirmos provar nada, icaremos à mercê dele.
— Ele se inclinou para a frente. — Minha maior preocupação é minha
irmã Ann. Ela está grávida, em Paris, com um marido que não vale nada.
Como posso ter certeza de que está segura? David esteve comigo esta
semana e me contou que Joana Granville mantinha Ann sob o efeito de
remédios. Sinceramente, descon io que minha irmã nunca esteve
doente de fato e, se realmente esteve na cama por todos esses anos por
causa de um maldito tônico, pode ter sido a mando de Willian.
— Por que ele faria isso?
— Talvez Ann saiba demais.
— E o que pretende fazer?
— Não posso ir a Paris agora, não diante da situação. Também não
quero alertar meu pai; o senhor poderia ir atrás da minha irmã por
mim e ver se aquele maldito patife está cuidando bem dela?
— Tenho ganhado tempo com o magistrado para a leitura do
testamento, milorde. Esse prazo poderá ser providencial, mas só
poderei me ausentar na próxima semana.
— Eu sabia que estava demorando mais do que o normal, e você não
pediu ajuda...
— Estou protegendo Izadora.
John sorriu e pegou a cartola.
— Eu icarei lhe devendo a vida se izer o mesmo por Ann.
Marcos se colocou de pé e bateu no ombro do visconde. Snow, que
parecia compreender a conversa, soltou um miado preguiçoso.
— Pode contar com isso, milorde.
— Consegui negociar a venda da tecelagem, gostaria que fosse lá
comigo, amanhã, para que veja. É um bom negócio.
— Mande uma mensagem com o horário e o endereço, e eu o
encontrarei lá.
— Por favor, deixe meus cumprimentos a sua acompanhante e diga
que será um prazer conhecê-la.
Marcos observou a cortina, permanecia intacta mesmo depois que o
convidado havia partido. Somente após ouvir o barulho da carruagem
se afastando, Ann saiu do esconderijo. Com os pés sobre a mesa, ele
esperou que ela se acomodasse novamente no sofá.
— Agora houve um pedido formal para que eu cuide da senhorita.
Ignorando a provocação, ela se aproximou, seu semblante estava
tenso.
— Como pretende resolver essa situação?
— Não tem um plano?
— Não é hora para brincadeiras, Marcos, John não vai desistir
enquanto não me trouxer de volta a Londres.
— Já pensou em contar a verdade? Seu irmão parece empenhado no
mesmo objetivo que você.
— Por Deus, homem. — Ela bateu as mãos nas saias. — E voltar a
viver presa?
— Não parece gozar de liberdade nesta casa.
— É muito melhor do que antes, aqui posso andar sem me
preocupar com nada. Por favor, não diga nada a ele, não agora. Primeiro
eu preciso...
— Ler o diário — ele foi certeiro. — Entendo que não se sinta
preparada, Ann. Não deve ser fácil. Mas estou com você e não há o que
temer.
Ela abaixou a cabeça. Marcos sentiu o peito apertar diante da
demonstração de fragilidade. Delicadamente, com a ponta do polegar,
acariciou-lhe o queixo. Quando ela o itou, ele lhe tomou as mãos.
— Estou ao seu lado, e nenhum mal vai lhe acontecer. Pode icar
nesta casa pelo resto da vida se desejar.
— John jamais aceitaria que eu vivesse aqui com você. Se ele souber...
— Tenho certeza de que seu irmão quer o melhor para você. —
Apertou-lhe a mão e deslizou os dedos sobre os dela. — Venha, acredito
que já esteja na hora do jantar, preparei uma surpresa para você.
Ela se colocou de pé rapidamente.
— Vou me trocar, desço logo. — Parou por um instante. — Não está
cedo para o jantar?
— Con ie em mim — e lá estava, de novo, o sorriso que fazia o
coração da bastarda parar.
De mãos dadas, caminharam até a porta da casa. Ann estranhou o
caminho, mas o seguiu em silêncio. Logo que saíram em direção ao
jardim, foram recebidos pelo vento frio.
A bastarda se encolheu e rapidamente a governanta apareceu com
duas mantas grossas, de lã de carneiro.
— Ontem conversávamos sobre rotina, e a senhorita pontuou que
poderia ser enfadonho fazer as coisas nos mesmos horários sempre,
sobretudo as refeições. Chegou até a dar razão para Izadora. — Ele fez
uma careta.
De braços dados, contornavam a casa em direção ao jardim de rosas,
poucas haviam sobrevivido ao clima.
Uma grande fogueira foi acesa e, em volta dela, havia almofadas. Uma
mesa baixa estava repleta de frutas, pães e um enorme presunto.
— Queixou-se também do cardápio, se não me falha a memória.
— Não foi uma queixa.
— Uma colocação incisiva, permita-me corrigir.
Ele a ajudou a se sentar e se acomodou ao lado dela.
— “Peras ao vinho, não seria adorável se pudéssemos tê-las no
jantar, em vez da insossa sopa de tartaruga” — ele repetiu a frase dita
na noite anterior.
— Sei o que está fazendo, está me mimando para que eu sucumba
aos seus desejos. Não vou dizer nada a John agora.
— Como faz mau juízo de mim! — Um sorriso debochado se
iluminou. — Não poderia imaginar a visita de seu irmão; o jantar foi
encomendado hoje pela manhã.
— O fato de John ter pedido que garantisse minha segurança não vai
fazer com que eu lhe deva obediência.
— Jamais pediria algo que não fosse capaz de cumprir, milady. — Ele
pegou uma generosa fatia de defumado com as mãos e colocou na boca.
Enquanto mastigava a observou. Ann o avaliava, descon iada.
— Não pode ser só isso. É um homem ocupado o su iciente para se
entreter com os caprichos de uma dama.
— E o que acha que pode ser? — Ele continuou comendo sem deixar
de olhá-la. Estava ainda mais bonita com a manta enrolada no corpo.
— Assim como eu, o senhor não é imune, posso ver em seus olhos,
na grande maioria das vezes.
— Do que está falando?
— Isso que sinto quando estou ao seu lado, não pode ser imaginação.
— Ela abaixou o olhar. — A menos que me tenha como a uma irmã,
assim como Izadora, ou... — Ela se recompôs. — O senhor tem uma
amante.
Ele usou o próprio guardanapo para limpar uma gota de molho que
havia caído no queixo dela.
— Não tenho uma amante. Não acredito em acordos no que tange a
relações íntimas.
— Então o senhor me vê como uma irmã.
— Uma amiga, muito querida e preciosa. — Ele itou os lábios
rosados, que se entreabriam; temeu tê-la magoado ou ter sido mal
interpretado. — Deveria ser proibido tocar uma dama como a
senhorita. — Deslizou a mão sobre a face pálida. — Tão delicada.
Com os olhos fechados, ela respirava lentamente, como se
saboreasse o toque áspero.
— Gosto quando me toca. — Ann abriu os olhos sorrindo. — Quando
beija minha face ou me dá a mão, é sempre tão gentil.
Marcos engoliu em seco, nem percebera quando ela se aproximara
tanto. Podia sentir a respiração doce bem próximo a sua.
— Gostaria que me beijasse. — Ela fechou os olhos.
— Não posso fazê-lo — a voz quase não saiu.
— Mas eu posso — sussurrou antes de se aproximar ainda mais.
Ele precisaria usar todo o autocontrole, ela estava bem perto. Sentiu
o ar lhe faltar quando os lábios doces tocaram os seus. Suave, intenso,
divino. Ela não abriu os lábios e ele desejou que izesse. Para sua
surpresa, Ann deslizou a língua vagarosamente por toda a boca dele.
Marcos entreabriu os lábios ansiando pela invasão, que não veio.
Ela se afastou, sorria. Marcos viu quando inalmente abriu os olhos.
— Fico feliz que também tenha apreciado o beijo. — As mãos dele
estavam sobre as dela.
— Ann...
— Shhhh. — Ela colocou o dedo delicadamente sobre os lábios dele.
— Por favor, não diga nada. Vamos jantar e depois abriremos o diário
de minha avó.
Ela colocou uma uva na boca e sorriu. Em poucos minutos, a tensão
se dissipou e, sem que percebessem, engataram uma discussão
animada sobre a possibilidade de compra da tecelagem.
Londres, 20 de agosto de 1803.
Sarah Granville

Nesta tarde, quando Izabel me entregou esta elegante encadernação


em couro, não demorei muito para entender o que ela desejava. Minha
estimada amiga veio me visitar, como toda semana. Sei que ela se
preocupa, posso ver o motivo todos os dias, re letido no espelho.
Sobretudo depois de cumprir meus deveres matrimoniais; infelizmente
nem sempre consigo ingir indisposição.
Sinto-me uma prisioneira; enquanto Willian passa o dia fora, ico
enclausurada e tenho certeza de que a Sra. Neil, a governanta, faz um
relatório diário de todas as minhas atividades. Acreditei que gozaria de
um pouco de liberdade ao me casar, mas não passou de mera ilusão.
Os poucos momentos em que realmente consigo sentir-me viva
acontecem com as visitas de Izabel. Minha querida amiga teve a sorte de
se casar por amor, já eu fui impossibilitada de me casar com quem
quisesse.
Meses atrás, quando perdi meus pais, que faziam uma viagem a Paris,
perdi também a minha liberdade. Pelo menos, antes, eu podia sair para
visitá-los.
Sem o meu conhecimento e consentimento, meu pai assinou um
contrato de casamento com o homem que despertava em mim o pior dos
sentimentos. Não gostaria de ser ingrata, Willian possibilitou que meu
irmão estudasse e não nos deixou em completa ruína, mas não me
incomodaria de viver ao lado de H. nem que para isso tivesse que plantar
o que comer com as próprias mãos.
Por que não é igual, Senhor? Por que, quando Willian me toca, me
sinto violada, agredida, por que é tão diferente de estar com o meu
amado H.
Não consigo mais dormir e a única refeição que me obrigo a comer é o
jantar, para que meu marido não descon ie. Sou tomada por um medo
irracional, palpitações e uma melancolia que me faz de inhar a cada dia.
Tenho esperanças de que Willian viaje logo, assim poderei encontrar
uma maneira de sair dessa clausura.
Sinto que, ao me dar este diário, Izabel queria que eu escrevesse.
Mesmo que nunca tenhamos conversado abertamente sobre minhas
inquietações, ela queria que eu me comunicasse. Sabe como é di ícil para
mim estar aqui, enquanto a minha vida está lá fora.
Estou tentada a aceitar esse desa io, não só para que alguém algum
dia descubra a verdade, mas para me proteger de mim mesma.

Sarah Granville
Capítulo VII
Marcos ouviu um soluço alto enquanto o corpo da pequena Ann
convulsionava-se em seus braços. Ela parecia imersa nas angústias da
avó, ou nas próprias angústias. Sentindo-se impotente, ele a abraçou
ainda mais forte. Talvez por isso ela postergasse a abertura daquele
diário, talvez já soubesse que a vida de Sarah Granville era como a dela.
Ann suspirou pesadamente e se afastou um pouco, como se buscasse
ar. Estavam no quarto dela, sentados na cama e, enquanto liam a
primeira página do diário, sem que percebesse a doce e frágil Ann se
encolheu no colo dele, como se buscasse se proteger. Estava assustada,
tremia, e sequer a manta grossa de lã era capaz de aplacar os calafrios.
Ele fechou o diário para que icasse com as duas mãos livres.
Paralisada, ela acompanhou os movimentos cautelosos dele; em estado
de alerta, parecia temer que Marcos se afastasse.
— Não vou a lugar algum — prometeu depois que colocou a
encadernação sobre a mesa de cabeceira. — Não quero que tenha
medo, doce Ann. Não vou sair do seu lado, não há o que temer.
Ela o avaliou, os olhos turvos pareciam buscar a verdade. Sem se
importar com o decoro, ele colocou os pés sobre a cama, para que ela
pudesse se aconchegar melhor a ele.
Apesar de se sentir um inútil naquele momento, tê-la nos braços era
um bálsamo. Sabia que seu abraço a confortava, podia sentir, mas
descon iava de que a proximidade fazia melhor a ele.
— Acredita em promessas? — Ele não esperou a resposta, beijou-lhe
os cabelos macios. — Tem a minha palavra de que nenhum mal vai lhe
acontecer. Está me ouvindo?
Num movimento delicado, mas sem romper o contato, Ann ergueu a
cabeça para encará-lo.
— Ela se sentia como eu, uma prisioneira, os sintomas... — Engoliu
em seco. — O que ele fez a ela de tão mau?
— Isso não vamos saber agora. — Continuou acariciando-lhe os
cabelos. — Quer que eu lhe peça um chá?
— Não! Por favor, ique aqui comigo.
Ann sentou-se na cama, aos poucos seus olhos ganhavam vida. Uma
mão tímida tocou a face de Marcos, ele fechou os olhos para se deliciar
com o toque. Foi inevitável levar a mão macia aos lábios e beijá-la com
delicadeza.
— É mesmo um anjo, não é? — indagou ela.
— Não, estou longe da santidade. — Abaixou os olhos, culpado.
Queria tocá-la de uma forma que jamais tocara alguém. Sua vontade era
sentir o corpo fundindo-se ao dela, não só da maneira carnal movida
pelo desejo, queria que suas almas se tocassem. — Mais cedo me
perguntou se sou imune aos seus encantos. Não sou, eu a desejo desde
a primeira vez que a vi nesta cama. — Sorriu ao se lembrar. — Sei que
não sou homem para você, Lady Ann, mas isso não me impedirá de
cuidá-la e protegê-la.
Ela sorriu amplamente e voltou a contornar todo o rosto dele
vagarosamente. Uma tortura angustiante, que fazia Marcos quase
perder o controle.
— Não me importo com castas e linhagens, nada disso tem valor.
Somente isso. — Ela depositou a mão sobre o coração dele.
— Sou um homem negro, Ann. Isso não é bem-visto no seu país, nem
em qualquer outro lugar. Você é a ilha de um duque.
Ela lambeu os lábios.
— Somos todos iguais perante Deus, Marcos. Eu não me importo
com o que os Europeus ou o resto do mundo pense. Nunca me senti tão
bem ao lado de alguém como...
— Não tem experiência para fazer uma a irmação dessas, existe um
mundo lá fora e em breve você poderá...
— Não poderemos. Você, por ser negro; eu, por ser mulher; tia
Julliet, por se apaixonar por uma dama; Anthony, por amar um
cavalheiro. Este mundo não é feito para pessoas fora dos padrões. Certa
vez me disse que Joseph o impeliu a se superar, e é o que vem fazendo
por todos esses anos. Não permitirei que se sinta inferior. — Ela chegou
os lábios bem perto. — Sua pele é linda e toda vez que o vejo tenho
vontade de beijá-lo — a última palavra foi um sussurro, deixando
Marcos louco para tomá-la.
— Não faça isso. — Ele se afastou um pouco e tocou-lhe a face. —
Está fragilizada, e eu jamais me aproveitaria disso.
— Você tem razão, acho que ninguém na minha situação sairia ilesa a
esse diário, não depois de tudo que passei. Todos me cobram para que
eu faça planos para o futuro e eu não sabia o que queria até conhecer
você.
— E o que quer, Lady Ann?
— Ajudar as pessoas, transformar você num dos cavalheiros mais
respeitados do Reino Unido e, se o senhor me quiser, quero passar
meus dias em sua companhia. — Ela abaixou os olhos por um instante
e, quando os ergueu novamente, parecia outra pessoa. — Vivi cercada
de belas histórias de amor e achei que jamais pudesse sentir o mesmo
que eles. Isso que há aqui dentro transborda, faz-me feliz, cura-me,
salva-me, faz-me querer viver. Sei que não faz nem mesmo um mês que
o conheço, e vou compreender se esse sentimento não for
correspondido, mas, se não quiser, peço que me diga agora. Amanhã
mesmo vou para Manchester ou encontramos outro lugar para icar...
— Você não vai a lugar algum...
— Então seja honesto comigo. Quero levar esse sentimento como
algo bom, que me impulsiona, não quero alimentar esperanças...
— Como fez com seu marido.
— Sim, como com Anthony. Mas ele foi honesto comigo e isso me fez
admirá-lo. Ele me trouxe esperanças, Marcos, e quero fazer o mesmo
com esse sentimento que tenho aqui dentro. Você tem razão, eu não
tenho experiência, mas não sou mais uma menina, e, mesmo que não
me deseje ou que corresponda ao que sinto, nada muda. Você tem me
mostrado o que é estar viva de verdade.
— O que acontece com você? Às vezes parece tão frágil e
rapidamente se mostra a mulher mais forte e determinada que conheci.
Nunca imaginei que uma dama pudesse ser tão direta, sobretudo
depois de...
— De me mostrar por inteiro, meu lado sensível? Não sou tão forte
quanto pensa, mas Deus nos dá o que podemos suportar, e ele acha que
eu consigo. Não quero desmerecer meus sentimentos, mas, se o senhor
não sente o mesmo que eu, não vou morrer por isso.
Ele sorriu e a atraiu entre os braços.
— Não, minha pequena Ann, ninguém morre por amor. — Sentiu
uma lágrima arder-lhe os olhos. Estava mentindo, vira de perto o amor
matar um homem. — Desde que coloquei os pés nesta casa, não houve
mais nada que ocupou meus pensamentos senão você.
— Então beije-me. — Ela o itava expectante, e ele sentiu a mão
tímida tocar seu peito.
Marcos fechou os olhos e respirou fundo. Não queria assustá-la com
o desejo que o consumia. Tentou manter o controle.
— Temo que meus sentimentos sejam ainda maiores que os seus —
ele sussurrou com os lábios colados aos dela.
Deu-lhe um beijo casto, contudo queria muito mais. Optou por
repetir o estranho beijo daquela tarde, onde somente sua língua vagava
pelos lábios doces. Ela os manteve fechados, mas ele sentiu quando Ann
lambeu os lábios e as línguas se tocaram brevemente.
— Como aprendeu a beijar dessa maneira? — resolveu saciar a
curiosidade, depois que ela se aninhou novamente em seus braços,
como se nada houvesse acontecido.
Ann tinha o dom de o confundir, virá-lo do avesso e deixá-lo sem
ação, sobretudo depois de um beijo tão intimamente delicioso. Não
podia ser um ogro e cobrir o corpo dela com o seu. Oxalá o ajudasse se
as mãos curiosas que lhe acariciavam a barriga tensa encontrassem o
volume no meio de suas calças.
— Marie disse que as pessoas usam a língua para beijar. Anthony
tinha me beijado uma vez antes de confessar que preferia cavalheiros,
mas foi um beijo casto, sem nada de mais. Então eu imaginei que...
— Nunca deu um beijo de verdade?
— Isso não foi um beijo de verdade?
— Ah, sim, pode apostar que foi real. Mas há muito mais do que isso,
Lady Ann. — Condenou-se por instigá-la.
— Quero que me beije de verdade. — Ela já estava em alerta,
novamente sentada.
Ann parecia sempre pronta para descobrir, experimentar e
desvendar os mistérios da vida. Ele percorreu-lhe os lábios
entreabertos preguiçosamente com a língua, mas não ousou invadi-la.
— Agora durma, minha querida, está tarde.
— Vai me deixar sozinha? — Ela fez um muxoxo.
— Eu não ousaria, vou icar bem perto para garantir que se
comporte.
Marcos se levantou e puxou a manta, cobrindo-a. Apagou a vela e se
acomodou ao lado dela.
— Tem que abrir a boca, não é? Você coloca a língua lá dentro?
Por mais que estivesse tentado a mostrar-lhe, ele se divertia com a
curiosidade dela.
— Existem várias possibilidades.
— Não vai me mostrar?
Ele sentiu o movimento na cama, ela havia se sentado novamente.
— Precisa descansar, venha. — Abriu as cobertas para ela se deitar
novamente. — Se se comportar, posso mostrar alguma coisa.
Rapidamente ela se cobriu.
— Estou pronta. — Deitada de barriga para cima, Ann colocou as
mãos sobre a barriga.
Marcos se aproximou lentamente, roçando o rosto ao dela. Salpicou
beijos pelo queixo e, quando as bocas se tocaram, sugou-lhe bem
devagar o lábio inferior.
— Boa noite, minha pequena curiosa. Precisa descansar e lhe mostro
tudo que existe lá fora.
Logo que o viu deitado, ela se colocou em cima dele e repetiu o que
ele havia feito. Era uma ótima aluna, constatou Marcos. Ele demorou
certo tempo para se acalmar, pois a brincadeira acabou se arrastando
por alguns minutos. Seria maravilhoso poder apresentá-la ao mundo.

***
Quando se virou na cama, a claridade o incomodou. Marcos não se
lembrava de ter aberto a cortina. Sem mesmo abrir os olhos, pôde
constatar que não estava em sua cama. O perfume de Ann estava em
toda parte. Sorriu ao pensar nos avanços que tiveram e afastou os
pensamentos das consequências desastrosas daquela relação.
Ao abrir os olhos, sentiu o coração disparar. Ann não estava na cama.
Parada diante da janela, parecia absorta na neblina que cobria a
paisagem. Mal dava para ver as árvores que rodeavam a casa.
A cerração era a analogia perfeita para os pensamentos de Ann. Aos
poucos os raios rompiam a névoa fazendo com que a imensa nuvem
branca se dissipasse. Um movimento lento, quase agoniante, mas que
tinha certa magia e encanto. Era como se sentia, como se a luz de
Marcos aos poucos a aquecesse e despertasse.
Sentiu um arrepio percorrer todo o seu corpo quando os lábios
carnudos tocaram seu ombro parcialmente descoberto pelo penhoar; a
carícia se estendeu até o pescoço. Marcos passou as mãos por sua
cintura, uma carícia deliciosamente íntima, que Ann desejava desfrutar
para sempre.
— Conseguiu descansar? — a voz rouca daquele homem era capaz
de atingir a profundidade de sua alma.
— Não faz muito tempo que me levantei. — Continuou itando o
horizonte.
— Fiquei velando seu sono depois que... — Ele a trouxe para mais
perto. — Foi um sonho ruim?
— Uma lembrança, eu acho. Algo que havia se perdido com o tempo.
— Virou-se e colocou as duas mãos sobre o peito dele. — Que canção é
aquela que me fez adormecer?
— Um conto que minha mãe cantava para chamar os espíritos. —
Beijou-lhe os cabelos e a apertou contra si.
— Ele estão aqui? Quero dizer, os espíritos podem vir nos visitar?
— Eles estão em todo lugar, uns nos protegem, outros dissipam o
mal. Quando morremos, às vezes continuamos vagando.
— Joseph, você pode vê-lo?
— Não é assim, minha querida. Quer me contar do que se lembrou?
Ela sorriu e beijou o torso desnudo de Marcos.
— Pedi que servissem nosso café aqui. Deveria colocar uma camisa,
o desjejum já deve estar chegando. O que vão pensar se...
— Devo me esconder?
— Não, somente se recompor. Não quero que a camareira o veja
assim.
Ele pegou a camisa que havia deixado jogada no tapete, mas que se
encontrava perfeitamente dobrada em cima da poltrona, perto da
lareira.
— Eu devia ter imaginado que o chamado para ler o diário em seus
aposentos era um convite para me seduzir. — Abriu um largo sorriso e
atiçou a lareira, sem sequer abotoar a camisa. — Agora compreendi o
que quis dizer quando mencionou sua disposição para ter um amante. É
mesmo muito habilidosa na arte da sedução, Lady Ann. Pretende deixar
que os criados saibam que recebo convites para frequentar seu quarto
durante a noite? O que vão pensar?
— Eles se acostumarão. — Sorriu e se aproximou para fechar os
botões da blusa dele um a um, habilidosamente. — Está melhor assim.
— Não quer esconder nossos encontros noturnos, mas não posso
icar à vontade.
— Acredite, você causa um pequeno alvoroço entre as mulheres
quando passa. Felicity, Gale, Carry... Consigo ouvir o suspiro de todas
quando você oferece um sorriso. Principalmente quando anda
descomposto pela casa.
O fato de ela se incomodar com a atenção de outras mulheres não só
o divertiu, mas o fez sentir-se importante. Sem pensar muito, ele a
puxou para seu colo. Deslizou a língua vagarosamente pelo lábio rosado
entreaberto e o sugou com delicadeza, fazendo-a suspirar alto,
deixando-a sem ar.
— É assim que elas fazem?
Ann sorriu e se aninhou nos braços fortes; como era maravilhoso
desfrutar da companhia e do carinho de Marcos.
Quando uma leve batida à porta a sobressaltou, ele não permitiu que
ela se levantasse.
— Pode servir, Carry, por favor — ele pediu com Ann no colo, e a
camareira não escondeu a surpresa ao ver a cena.
Sem sequer olhá-los, ela colocou a bandeja em cima da mesinha. O
gato, que vinha logo atrás da camareira, andou preguiçosamente e
pulou na poltrona vazia. Enquanto isso, Ann tentava se manter
impassível, embora seu rosto ardesse de vergonha.
— Quer que eu o leve? — A criada não sabia a quem se dirigir.
— Duvido que consiga tirá-lo daqui. — A bastarda inalmente
relaxou. — Obrigada.
Logo que a porta se fechou, Ann deu um beijo no rosto de Marcos e
foi se acomodar ao lado do gato.
— Fiquei pensando no que John disse, sobre o suposto interesse de
Willian em me manter na cama. — Ela serviu duas xícaras de café, um
hábito recente, adquirido depois que passara a morar com Marcos e
Izadora. — Tive uma lembrança, não tenho certeza. O dia em que
cheguei ao quarto da tia Julliet e vi Joana tentando sufocá-la com o
travesseiro, Willian estava lá. A bengala dele estava encostada em um
canto e foi o que usei para acertar a cabeça de Joana.
— Do que mais se lembrou?
— Não muito, eu era bem nova. Usava o acesso dos criados para
perambular pela casa. Estava atrás da cortina quando ouvi os gritos
abafados da tia Julliet.
— Acha que foi por isso que a mantiveram na cama por todos esses
anos?
— Eles queriam o diário. Willian me perguntou várias vezes sobre
ele.
— Soube que ele foi bem generoso com você no testamento. Não
compreendo.
— O banco está em meu nome. Mas acho que ele esperava que eu
morresse; ao longo desses anos me visitou e me obrigou a assinar
inúmeros documentos.
— Do que se tratava?
— Não sei dizer, muitas vezes eu os assinava depois de tomar o
tônico, a visão icava turva e as mãos tremiam tanto... Eu demorava
muito tempo e ele perdia a paciência.
— O duque lia esses documentos?
— Não, Willian sempre foi esperto, assim como Joana. Na frente do
meu pai, parecia outra pessoa. Augustus se sente em dívida com ele.
— Não entendo por quê.
— Apesar do título, os Ansons viviam em uma situação inanceira
muito delicada e foi graças ao dote de tia Julliet que meu pai pôde
prosperar. — Ela bebericou o café. — Lady Izabel e o pai dele eram
muito amigos. Foram unidos pela falência depois que Steve Baldwin
morreu. Viveram juntos em Lilleshall por muitos anos. Meu pai e Lorde
Baldwin foram criados como irmãos. Lady Izabel dividiu com eles seu
pequeno rendimento.
— E a mãe do duque? Quero dizer, sua avó paterna.
Ela sorriu melancólica.
— Não teve a oportunidade de criar o próprio ilho.
— Uma dama fora dos padrões, imagino.
— Muito pelo contrário, a mais nobre das damas, mas acredito que
vá descobrir sobre essa história no diário.
Ann se colocou de pé para pegá-lo e Marcos se levantou rapidamente
para impedi-la.
— Não agora, minha querida. Vamos guardá-lo em um lugar seguro e
lemos mais tarde. Vi como icou na noite passada...
— Eu estou bem — garantiu determinada.
— Quero levá-la para um passeio, não esqueci quando disse que
sente falta do movimento da carruagem. Pensei em irmos ao Hyde Park.
— Não posso ser vista.
— Ninguém a verá com as cortinas fechadas, e podemos desfrutar de
mais uma ou duas modalidades de beijo, o que me diz?
— Beijar no Hyde Park. — O semblante de Ann se iluminou. — Isso
me parece escandalosamente inapropriado. Vai beijar meus pés como
fez ontem à noite?
— Havia pensado nos joelhos — ele sussurrou bem perto do ouvido
dela, fazendo-a estremecer.
— Nesse caso acho que não deveria usar meias. Vou me trocar. —
Saiu saltitante, deixando Marcos se divertindo com a empolgação dela.
— Quer que chame Carry para ajudá-la?
— Não precisa, podemos levar um lanche?
— Podemos tudo que você quiser, Lady Ann.
E ele deixou o quarto para ver a sobrinha e se trocar, certo de que
seria uma loucura negligenciar mais um dia de trabalho. Além de ser
arriscado, ponderou. Contudo queria aproveitar cada momento ao lado
de Lady Ann. Temia que, quando ela pudesse desfrutar da tão sonhada
liberdade, não precisasse mais de sua companhia.
Capítulo VIII

— E como elas conseguiram escapar? — Com os pés no colo de


Marcos, Ann se divertia com as histórias de Aziza e Izadora.
— Não conseguiram. Ficaram de castigo por quase um mês. Mas
Joseph tinha o coração mole. Liberou-as da punição e me colocou para
vigiá-las.
— Sua irmã deve ter sido uma mulher muito alegre, eu adoraria tê-la
conhecido.
— Aziza era como um furacão. Por onde passava, deixava tudo de
pernas para o ar — murmurou algo em português que Ann não
conseguiu entender.
— Acredita mesmo que uma pessoa pode viver várias vezes?
— Várias vidas — ele corrigiu. — Temos a chance de voltar em outro
corpo, para fazer a coisa certa. — Retirando os pés dela de seu colo, ele
se inclinou para a frente; a carruagem andava sem pressa enquanto
desfrutavam de um maravilhoso tempo juntos. — Tenho certeza de que
já nos encontramos antes.
— Em outra vida?
— Ou outras...
Eles se itaram por um longo tempo, nem sequer perceberam que
haviam parado. Ann se inclinou e o beijou. Dessa vez, ela se arriscou e
deixou que a língua entrasse dentro da boca dele, mesmo sem saber
como fazer. Ele deixou que ela o desvendasse e, quando resolveu
retribuir o beijo, a porta da carruagem se abriu, fazendo que os dois se
separassem rapidamente.
O olhar assustado de Lorde David Hervey percorreu a carruagem,
demorando-se um pouco mais nos pés descalços de Ann. Ele abriu e
fechou a boca algumas vezes.
— Lorde David, por favor, entre. — Marcos se recompôs e deu lugar
para que o cavalheiro se sentasse ao seu lado.
— Reconheci a carruagem e perguntei ao cocheiro. Estava mesmo a
sua procura, seus livros chegaram. — Olhava descon iado, mas se
justi icou antes de pedir explicações. — Não sabia que tinha voltado,
Ann. Estive com seu pai e ele não falou nada.
— Não é o que está pensando. — Ela se encolheu no assento.
— Não estou pensando nada, estou vendo. Onde está Anthony?
— Por favor, entre — Marcos insistiu. — Não é seguro que Ann seja
vista.
David olhou para seu cavalo, que estava parado ao lado da
carruagem, entregou as rédeas ao cocheiro e entrou.
— Sei que lhe devo explicações... — Ela encarou o irmão, que se
acomodou ao lado de Marcos, de frente para ela.
— Não deveria estar sem sapatos, pode pegar um resfriado...
— Não estou doente.
— Não, você nunca esteve... Está fugindo, Ann?
— Eu precisava sair de casa, eu...
— Ann está hospedada em minha casa, milorde. O que viu...
— Izadora também?
Marcos itou Ann por alguns instantes e a viu esvaziar os pulmões.
— Estava, mas foi para Manchester, é inquieta demais para se
manter escondida. Escute, David...
— Estão escondidas juntas? Está fugindo de Joana, ela está morta...
— Por que não nos acompanha até minha casa? — Marcos
interpelou. — Acredito que tenham muito que conversar.
— Meu cavalo.
— Se não se incomodar, posso ir cavalgando e o senhor faz
companhia a Lady Ann. — Ele se virou para ela. — Você está bem?
— Estou. — Ela tocou as mãos dele sem se importar com a presença
de David. — Obrigada, mas façam a troca num lugar mais discreto; não
sei onde estamos, é melhor não levantar suspeitas.
Quando a carruagem inalmente ganhou velocidade, com David
sentado a sua frente, Ann resolveu romper o silêncio.
— Não vou aceitar que me recrimine por estar...
— Beijando Marcos? Não, não vou recriminá-la por isso. Se decidiu
ter um amante, não é da minha conta.
— Ele não é meu amante, não tecnicamente. Meu casamento não foi
de verdade.
— Do que está se escondendo?
— Anthony não gosta de damas e eu precisava sair da casa de meu
pai; quero dizer Augustus. Fizemos um acordo, casaríamos e cada um
poderia viver como bem entendesse.
— E como pretende levar essa farsa adiante?
— Ele vai morrer, quer dizer, todos vão achar que ele morreu...
— E a criança? É de Marcos, mas ele chegou há pouco, não entendo.
Marcos já estava em Londres?
— Não! Não há criança. Mas foi a maneira que encontrei para
justi icar uma longa estada em Paris.
— Um plano perfeito. Por que isso tudo, Ann?
— David, há muito mais do que possa imaginar. Não pode dizer a
ninguém que estou aqui.
— É do meu avô que se esconde, não é?
— Como sabe?
— Eu não sei. Foi uma descon iança que passou pela minha cabeça.
Depois que minha mãe, quero dizer, nossa mãe, morreu, pensei que
pudesse ter sido ele para...
— Não foi ele.
— Foi você? — O choque no rosto de David fez o sangue de Ann
gelar. — Mas como? Você estava na Inglaterra quando...
— Não fui eu, porém não me arrependeria se tivesse feito.
— Por que nunca pediu ajuda?
— Porque eu não sabia que precisava.
David se abaixou e levou as mãos aos cabelos.
— Como sou patife.
— Não tenho certeza de que foi Willian que me manteve naquela
cama, mas tudo indica que...
— Quem a ajudou a criar esse plano?
— Foi ideia de Lady Izabel. — Omitiu a participação de Lucy e de sua
tia Julliet.
— Não pode acreditar nela, eram irmãos e se odiavam porque Steve
perdeu o banco para Lorde Granville.
— Ele não perdeu, David, ele foi roubado. Assim como os Ansons,
que viveram na mais completa miséria até que Augustus se casasse com
Julliet.
— Do que está falando, Ann, ele é seu avô.
— Um homem que matou a própria mulher e mandou matar a ilha.
Temos o mesmo sangue, nascemos do mesmo ventre. Você sabe de
todas as maldades que nossa mãe seria capaz. Ela herdou isso dele.
— Não é possível. — Ele esfregava o rosto repetidas vezes.
— Entre meus irmãos, você é o mais sensato. Eu pretendia procurá-
lo, mas não agora. Não pode demonstrar que sabe e nem mesmo contar
a ninguém que estou aqui. Garanto que tenho como provar tudo que
estou dizendo.
— Por que não entrega às autoridades? Por que não contou para o
seu pai?
— Augustus não deve saber, ele corre mais risco do que qualquer
um. É passional demais para esconder tudo até que Willian seja punido.
Precisamos provar muito mais para que ele inalmente pague pelos
crimes que cometeu. Lorde Granville é um homem muito importante e
certamente se safaria das acusações de assassinato. John e Edward têm
investigado...
— Inferno. — Ele bateu forte no assento. — Estão todos sabendo.
— John não sabe que estou em Londres e não deve saber agora.
Willian falsi ica moedas e títulos, é nisso que estão trabalhando. Se
conseguíssemos provar isso, ele não sairia ileso, porque seria um crime
contra a Coroa.
— As dívidas dos Baldwins, a família de Viollet, os títulos... — ele
parecia tentar ligar os pontos. — Há quanto tempo esconde isso?
— Não faz muito tempo que soube de toda a verdade. Eu passei
muitos anos acreditando que realmente estava doente.
— Desgraçada! — David amaldiçoou a memória da própria mãe. —
Como não pude ver o que estava debaixo do meu nariz?
A carruagem parou e Ann afagou os cabelos do irmão.
— Eu a deixei sozinha. Fiquei tão preocupado com Sarah que me
esqueci de você. Lembra quando descobri que Joana a tinha
envenenado por todos esses anos? Eu a procurei, mas você não disse
nada, só pediu que eu não contasse nada a ninguém. Pensei que
quisesse protegê-la. Depois Marie desapareceu, e eu...
— Não temos culpa dos erros dos outros, David. Fico feliz em lhe
dizer a verdade. Por favor, entre e eu lhe contarei um pouco mais.
Ao descer da carruagem, David contemplou a elegante casa,
escondida entre as árvores, à beira do Rio Tamisa. Um esconderijo
perfeito, pensou. Ao se virar para ajudar Ann a descer, Marcos já a
amparava. Ele era cuidadoso, sorria contidamente. David teve a
sensação de que naquele simples gesto se comunicavam em silêncio.
Foram recebidos por uma governanta jovem, não tinha mais do que
trinta anos. Em qualquer casa, seria dada como desquali icada para o
cargo, mas ela se mostrou e iciente e encantadoramente simpática. O
livreiro não deixou passar despercebido nenhum detalhe, sobretudo a
presença do gato.
Estava presente no jantar em que Lucy incumbira Marcos de cuidar
do bichano até o retorno de Ann, mas jamais imaginaria que...
— Lucy sabe de sua presença nesta casa, pressuponho — falou logo
que se sentou.
Observou Marcos beijar delicadamente as mãos de Ann.
— Tem certeza de que está bem? — a preocupação do farrusco era
genuína, disso David não tinha dúvidas.
— Por favor, junte-se a nós. — De um jeito particularmente doce,
Ann era capaz de convencer o mais santo dos homens.
— Creio que Lorde David deseja conversar a sós com a senhorita.
— Nada do que diremos é segredo para ele; desejo você ao meu lado,
a menos que tenha outras coisas a fazer.
Sim, ele tinha. Sobretudo depois do recado desaforado que recebera
do magistrado por estar delongando a leitura do testamento. Mas Ann
precisava dele, e Marcos jamais a abandonaria. Polidamente, sentou-se
ao lado dela.
David observava a interação dos dois. Foi impossível não comparar
aquela relação com a de Lucy e Augustus. Uma conexão genuína, que
podia ser sentida em cada sorriso, cada olhar, cada palavra. Os dois não
pareciam se incomodar com a presença dele, e isso tinha certo encanto,
o livreiro não poderia negar.
Durante quase uma hora, Ann contou parte da história a David, que
aos poucos fazia conexões e via um enorme quebra-cabeça se formando
a sua frente.
Contudo Ann omitiu que aquela casa era habitada por mais uma
dama e que possuía o diário de sua avó.
— Marcos já sabia da sua intenção de fuga? Esta casa... eu não
compreendo.
— Devo me desculpar pelo barulho, milorde — Marcos se adiantou.
— Estamos fazendo algumas adaptações para acomodar melhor sua
irmã. A casa foi deixada para ela, por Lady Izabel.
— Está usando o dote de seu casamento?
— Marcos foi gentil o su iciente para comprar a casa e me permitir
icar aqui. Assim terei algum recurso para me manter depois.
— A casa é de sua irmã, milorde. Sou um mero hóspede.
Eles trocaram olhares e David viu Ann beijar o rosto de Marcos. Ele
já havia visto a irmã trocando carinhos com o suposto marido. Mas,
vendo-a agora, percebeu que com Anthony o intercâmbio parecia
super icial, certamente tinha o intuito de manter as aparências. Mas
todos estavam ocupados demais, com suas próprias questões, para
perceber.
Uma questão a ponderar, o que mais haveria se passado enquanto
todos estavam entorpecidos pelo amor? Até então o livreiro poderia se
gabar por cuidar de todos e estar atento às necessidades de cada um,
mas estava completamente enganado.
— E o que pretendem fazer?
— Ainda não tenho um plano formado. Em breve chegará uma carta
para meu pai, informando sobre a morte de Anthony; posso usar a
gravidez como desculpa para permanecer em Paris, mas John está
pressionando, veio até aqui e delegou a Marcos a missão de saber
notícias minhas; receio que ele me queira de volta.
— Marie, o que ela sabe? — inalmente David formalizou a pergunta
que martelava em sua mente desde que ele entrara na carruagem.
— O su iciente para não se sentir desconfortável por esconder de
você a verdade. Ela me ajudou a diluir o tônico e a trocar os frascos.
Também sabe que... — Parou de falar quando se deu conta de que
estava prestes a revelar que durante algum tempo, enquanto ainda era
camareira de Sarah, Marie fora responsável por levar suprimentos para
Julliet. — Sobre os documentos que Willian me obrigava a assinar.
— Não compreendo por que ele faria isso.
— Se Lady Ann, que estava com a saúde frágil, morresse, o duque se
tornaria o herdeiro. Se realmente Lorde Granville tem negócios ilegais,
Lorde Anson seria responsabilizado, porque di icilmente alguém
acreditaria que ele não sabia de nada. — Marcos surpreendeu todos
com sua constatação. — Estou dos dois lados, sei do que Lady Ann me
contou e tenho acompanhado as investigações que Lorde John e Lorde
Edward têm feito.
— Um plano perfeito... — David divagou.
— Não existe plano perfeito, milorde. Nem mesmo o de manter sua
irmã escondida aqui. Por isso devemos ter cuidado.
— Acha que consegue ingir não saber de nada, David? É muito
importante que ninguém descon ie.
— Se Willian não mediria esforços para derrubar Augustus, a quem
sempre fez questão de demonstrar respeito e admiração, ele faria o
mesmo com Lorde Baldwin. Isso me faz pensar que, talvez, ele soubesse
que Marie era ilha de Arthur.
— Isso eu não sei dizer.
Marcos viu o discreto tremor passar pelo frágil corpo de Ann e
institivamente cobriu a mão dela com a sua.
— Se o senhor demonstrar suas descon ianças sobre seu avô para
Lorde John, tenho certeza de que em breve estará a par do que
descobriram.
Um choro infantil fez com que o livreiro se lembrasse da sobrinha de
Marcos. Uma criada chegou trazendo a criança nos braços.
— Perdão, milady. Mas ela não quer comer, receio que sinta dores.
Ann se levantou rapidamente e pegou a criança nos braços. David
observou o cuidado e a habilidade com que a irmã acalmava a criança.
Deixando os dois cavalheiros sozinhos, ela pediu a ele que voltasse em
breve para vê-la.
Quando o livreiro se levantou para partir, Marcos se colocou de pé
rapidamente.
— Não quero que o senhor pense que estou me aproveitando da
fragilidade de sua irmã. Eu jamais a desonraria ou a comprometeria.
Meus sentimentos são sinceros, milorde.
— Não tenho dúvidas disso, pelo pouco que presenciei vejo que
fazem bem um ao outro. Hoje percebi que Ann não é tão frágil quanto
aparenta ser.
— Nem tão forte, milorde.
— Ninguém é. — David sorriu dando um tapinha cortês no ombro de
Marcos. — Não é comigo que deve se preocupar. Quando John descobrir
que Ann está aqui, sobretudo que vivem como se fossem casados, pelo
que conheço dele, não aceitará assim tão fácil. — Ele viu Marcos
balançar a cabeça preocupado. — Gostaria de trazer Marie para vê-la.
— Lady Ann apreciará muito a surpresa, milorde. Apesar de não se
queixar disso, ela sente falta da família. Ficaríamos honrados em
recebê-los no jantar de amanhã e, por favor, traga o pequeno Paul. Lady
Ann tem muito apreço por ele.
— Crianças no jantar. — David sorriu. — Mais uma casa fora dos
padrões. Em que horário devemos chegar?
— A hora que desejar.
— Certo. Não abaixe a cabeça para John. Se ama mesmo Ann, ainda
que pareça incompreensível um amor que nasce em tão pouco tempo,
enfrente-o. Meu primo pode ser um cabeça-dura, mas, se há algo que
ele sabe reconhecer, é a sinceridade dos sentimentos de um homem.
Marcos anuiu e o acompanhou até a porta. Quando viu David se
afastar em seu cavalo, murmurou em português.
— Não foi em pouco tempo. Ann e eu estamos juntos há muitas
vidas.
Londres 1805.
Sarah Granville,

Hoje lady Izabel trouxe uma pintura da minha criança; como cresceu.
Mas ico feliz em saber que está sendo bem cuidada. Mesmo que eu
desejasse que tudo fosse diferente, hoje já não sei como as coisas
poderiam mudar.
Estou grávida, prestes a dar à luz e não consigo amar esta criança que
vai nascer. Tenho sentimentos horríveis. Izabel diz que é uma premonição,
mas não sei se acredito nessas coisas. Foi uma gestação di ícil, sobretudo
depois que viemos para Londres.
Confesso que pre iro o campo; se vou viver enclausurada, que seja
rodeada por belas paisagens. Londres me sufoca, e ver o movimento pela
janela é ainda mais desolador. A cada carruagem, a cada cavalo, a cada
pessoa que contemplo da janela, eu o procuro. Como gostaria de ver H.
novamente.
Queria que ele soubesse que jamais me esquecerei dele e do seu amor.
Logo que esta criança nascer, Willian irá até Paris. Descon io que os
negócios de meu marido e Allan Smith sejam um tanto quanto obscuros.
Eu os ouvi recentemente conversarem sobre uma remessa de ouro que
chegaria em um navio.
Não gosto de Allan, apesar de muito novo ele tem a maldade nos olhos.
O pupilo de Willian não trata bem os criados e frequenta esta casa bem
mais do que eu gostaria. Descon io que meu marido venha pagando os
estudos dele, embora não compreenda por que o rapaz passa tanto tempo
em Londres. Quando meu irmão Harlen vier me visitar, vou procurar
saber melhor sobre esse rapaz.
Willian tem se mostrado desmedidamente atencioso depois da
gravidez, o que deveria ser bom, mas isso me provoca repulsa, por ele e
pela criança que carrego dentro de mim. Vai se chamar Joana se for uma
menina, o nome da mãe de Willian. Ele não parece se importar se eu não
parir um herdeiro. Jamais mencionou o nome para um menino.
Essa devoção de Willian pela criança parece doentia. Ele conversa com
meu ventre e diz que ela vai ser como eu. Não quero que ninguém se
pareça comigo, ninguém deveria viver como eu.
Sou obrigada a me alimentar, embora quase nunca tenha apetite.
Estou cansada e não vejo a hora de me livrar dessa maldita barriga.
Izabel acha que essa repulsa se deve ao fato de eu não ter podido cuidar
do primeiro bebê que pari.
Deus me ajude a suportar de novo esse suplício, não foi assim da
primeira vez. Eu amava a criança que carregava, mesmo que não tivesse
o conforto que tenho hoje.
Gostaria de escrever com mais frequência, isso me faz bem de certa
forma.
Espero que, nas próximas páginas deste diário, possa relatar com
amor a família que tenho. Rogo a Deus todas as noites que me liberte
desta amargura e da melancolia, para que eu possa ser grata por tudo
que tenho.
Capítulo IX

— Por que não contou a Lorde David sobre o diário? — Marcos se


ajeitou na cama depois que Ann colocou o livro na mesa ao lado.
— Nem mesmo Lucy ou tia Julliet sabem da existência dele. Parece-
me algo tão íntimo e até agora não vi nada que possa gerar provas
contra Willian.
— Quer ler mais um pouco?
— Hoje não, estou cansada. Tivemos um dia cheio. Ainda bem que
Lys se acalmou e Dr. Evans falou que são somente gases.
— Como sabia sobre colocá-la de barriga para baixo? Vi minha mãe
fazer com Aziza, mas não me lembrava e não tenho muita experiência
com crianças.
— Eu não sabia, simplesmente soube o que fazer. Deve ser assim
com todo mundo.
— Não quer conversar sobre o que lemos?
— Acho que não, eu continuaria buscando uma maneira de justi icar
tudo que minha mãe fez. Não sei se o que ela fez tem perdão.
— Quem somos nós para julgar ou perdoar alguém, querida? Não
nos cabe essa tarefa.
— Tem razão. — Ela se aninhou junto ao peito irme dele. — Mas não
consigo amá-la, assim como a própria mãe dela.
— Isso pode ter mudado com o tempo. São só escritos aleatórios,
isolados. Ela não escrevia com frequência e icou claro que somente o
fazia nos momentos de angústia.
— Acho que ninguém escreve sobre momentos felizes, Marcos.
Todos icam ocupados demais vivendo, para perder tempo com escritos.
Em quanto tempo acha que Izadora, Pia e tia Julliet voltarão?
— Já se cansou de minha companhia?
— Não é isso, estava justamente pensando por quanto tempo mais
poderemos dormir juntos.
— Eu não pretendia icar esta noite. — Segurou-a pelo queixo
delicadamente, para que ela pudesse vê-lo. — Para um homem é muito
di ícil essa proximidade, temo não conseguir me segurar e assustá-la.
— Você não me assusta.
— Não é certo, não quero comprometê-la.
— Está com medo de John. — Ela sorriu. — Quando fui me despedir
de David, ouvi vocês conversando. Adorei a ideia do jantar.
Ele gargalhou e a apertou junto a si.
— Não se consegue esconder nada de Lady Ann.
— Talvez pudéssemos ocupar o quarto principal. Podemos alegar
falta de espaço, agora que ele vai icar livre. Tem uma porta de ligação.
Marcos permaneceu imóvel, itando o teto.
— O que foi?
— Lorde David tem razão. É muito recente e talvez a senhorita se
arrependa deste tempo. Posso não ser um cavalheiro, Lady Ann, meu
desejo por você muitas vezes desconhece a sanidade.
A mão inocente deslizou para o meio das pernas de Marcos, fazendo-
o arfar.
— Você se toca?
— Do que está falando?
— Sei que dizem que pode trazer doenças terríveis, mas Anthony me
explicou que não há comprovação e que é um meio de inibir a
promiscuidade.
— É bem informada para ser tão inexperiente.
— Foi necessário, para me passar por uma mulher casada. — Sentiu
um volume crescer sob as mãos. — Parece estar crescendo.
Marcos retirou a mão dela e a beijou.
— Não podemos fazer isso.
— Eu toco minha intimidade, como Anthony fazia no tratamento.
Isso me acalma e é ainda mais satisfatório quando penso em você.
— Por favor, não diga isso — suplicou com os lábios colados aos dela.
Sem conseguir se conter, ele a apertou entre os braços e aprofundou
o beijo, podendo sentir o sabor doce dos lábios que tanto desejava. Ann
não hesitou, deixou que a língua bailasse em um ritmo lento, torturante.
Marcos respirava com di iculdade e em pouco tempo a carícia se tornou
urgente.
— Por que não me beijou assim antes? — a voz de Ann quase não
saiu. Marcos a beijou novamente. — Quero que me mostre muito mais.
— Seria uma imprudência. — Ele se afastou cauteloso, tentando se
recompor.
— Não tem camisas inglesas?
Marcos levou o braço ao olho e começou a gargalhar.
— De initivamente, Ann. Você não tem limites.
— Marie que me ensinou.
— Seria um debate interessante para o jantar de amanhã. Devo
perguntar a David onde conseguir?
— Você não ousaria. — Ela mordeu o braço dele.
— Ah, sim. Lorde David, sua doce e frágil irmã está interessada em
experimentar camisas inglesas, pode nos dizer onde consegui-las? —
Marcos falou em tom formal, arrancando uma deliciosa gargalhada de
Ann. A brincadeira se estendeu por alguns minutos.
Depois de algum tempo, Ann se levantou. Marcos imaginou que ela
se prepararia para dormir. Observou-a retirar o penhoar, as ceroulas e a
camisola. Em momento algum deixou de olhá-la. Ann era, sem dúvidas,
uma divindade, o corpo pálido parecia esculpido pelo mais talentoso
artista.
Ela deslizou para debaixo das cobertas.
— Por que não tira a camisa? — pediu enquanto seu corpo se
enroscava ao dele. — Sei que se sente incomodado. — Beijou-lhe o
pescoço como ele havia feito naquela manhã. — Nunca mais o vi com as
ceroulas indecentes.
— Não vou tocá-la até conversar com seu irmão. — Com os olhos
fechados, ele tentava se agarrar ao último io de sanidade que lhe
restava.
— Entendo que queira esperar para me ter como sua, mas quero que
me toque, do mesmo modo que me toco quando penso em você.
— Ann...
Ela começou a desabotoar a camisa dele.
Marcos a encarou como se buscasse em seus olhos a certeza de que
deveria continuar. Ele a segurou pelos pulsos e, num movimento hábil, a
colocou deitada de costas sobre a cama. Ann deu um grito, surpresa.
Um beijo urgente, cheio de fome e desejo, que foi se espalhando pelo
queixo, pescoço, o vale entre os seios, até que ele sugou a ponta rosada.
Ann gemeu e ergueu os quadris.
— Beije-me enquanto me toca.
— Não será possível, minha querida. — O sorriso travesso se desfez
quando ele começou a beijar-lhe a barriga. — Minha boca estará
ocupada.
Sem cerimônia, ele mergulhou no vale entre as coxas dela. A língua
ávida explorava o corpo sedento. Ann se contorcia, gemia e pedia a ele
que não parasse. Marcos continuou sua tortura enquanto observava
Ann convulsionar de prazer.
Ann sentiu os tremores atingirem-na; assustou-se ao constatar que,
pela primeira vez, apreciava aquela sensação. Sentiu o corpo formigar.
Marcos se afastou e a beijou fazendo-a sentir o gosto da própria
intimidade. Quando ele fez menção de se levantar, ela o impediu.
— Aonde vai?
— Preciso fazer a toalete — falou sentindo um desconforto no meio
das pernas.
— Vai se tocar?
— Ann...
— Por favor, deixe-me ver.
Movido por um desejo insano, ele a beijou e, naquela noite, permitiu-
se ir muito além de onde estava disposto a ir.

***

Marcos saiu na manhã seguinte, com certa relutância em deixar Ann


sozinha na cama. Se pudesse, passaria o resto do dia sentindo o corpo
delicado e as mãos atrevidas de Lady Ann. Estava ferrado, constatou ao
perceber que, antes mesmo de a carruagem irromper pelos portões de
Grove House Springs, já sentia saudades.
Um desejo insano, não só de possuí-la, mas de simplesmente
permanecer em sua companhia.
Ann não parecia arrependida quando o procurara no meio da noite
querendo mais. Ela deveria estar dolorida ou constrangida por ter se
entregado de forma tão carnal, mas parecia sedenta e deliciosamente
insaciável.
Preferiu afastar qualquer pensamento que o trouxesse para a razão,
agarrou-se ao fato de que o amor não era algo que se pudesse evitar,
simplesmente acontecia. Como foi com ele, em poucos dias em Londres,
com a ilha de um duque e que possuía irmãos su icientes para
caparem-no caso descobrissem o que andavam fazendo.
Quando a carruagem parou em frente à casa de Lorde John Hervey,
ele resolveu abandonar a culpa e se concentrar nos assuntos que havia
negligenciado.
Foi recebido por um mordomo, que lhe dedicou um olhar enviesado
à primeira impressão, mas que, depois de ver seu cartão de
apresentação, dispensou certa receptividade. Lady Viollet, a bela esposa
de Lorde John, o recebeu muito simpática, mas Marcos percebeu certa
apreensão nela.
— Não imagina quanto agradeço a Deus sua presença aqui — ela
falava baixo. — Lorde Granville está com John no escritório. Vou lhe
mostrar o caminho e o senhor pode se juntar a eles, não gosto que John
ique a sós com ele.
— Não seria inoportuno interrompê-los, milady?
— Pode usar como desculpa algum assunto urgente — em tom de
súplica ela tentava convencê-lo.
— Como quiser, milady — concordou com uma reverência contida.
Seguindo pelo caminho indicado, Marcos ergueu o tronco, precisaria
de todo seu autocontrole para enfrentá-lo. Lady Ann tinha razão, era
necessário muito sangue-frio para ingir ignorância diante daquela
situação.
Ele bateu à porta antes de entrar.
— Desculpe, milorde. Não sabia que estava com visitas.
O semblante de John se abriu e Marcos pôde sentir certo alívio.
— Por favor, entre, Marcos. Lorde Granville, quero que conheça...
— Ah, certo, um secretário negro. Um grande ponto para sua
campanha, meu ilho. — O velho se colocou de pé sem nem mesmo
olhar para Marcos. — Uma estratégia inteligente. Só precisa de modos,
mas não deve ser di ícil domá-lo. Pense no que lhe disse, eu icaria
muito honrado se aceitasse. Vou deixar você trabalhar na sua
campanha, imagino que tenha assuntos urgentes para tratar.
Sem delongas, o banqueiro deixou o gabinete com o queixo erguido,
ignorando completamente a existência de Marcos.
— Sinto muito. — John ergueu o braço pedindo em silêncio que
Marcos se acomodasse. — Tenho certeza de que, quando tomarem
ciência de sua fortuna, não o tratarão novamente dessa maneira.
— Hoje à tarde, não consegui enrolar mais o magistrado.
— Mas Izadora ainda não voltou.
— Ele alega que ela o nomeou como procurador, por isso não há
motivos mais para adiar. Creio que o Conselho o esteja pressionando.
John apoiou a cabeça sobre a mesa.
— Edward deu notícias?
— Ainda não, milorde.
— Inferno! — Tentou se recompor. — Não precisa temer sobre o
testamento, mais cedo ou mais tarde todos saberiam.
— Só achei que seria importante ganhar um pouco mais de tempo.
— Isso é algo que não temos. Willian quer que eu assuma o banco.
Ele o deixou para Ann e supõe que Anthony não seja capacitado caso
algo lhe aconteça.
— Ou talvez não queira que o médico assuma as responsabilidades
pelo crime.
— O que está dizendo?
— Com Lady Ann desenganada, caso algo lhe acontecesse o duque de
Sutherland seria responsabilizado pelos crimes que imaginamos que
Willian cometa. Mas, como ela se casou...
— Claro. — Ele bateu as mãos na mesa. Como constatou isso em tão
pouco tempo? É mesmo muito esperto.
— Um mero observador, milorde.
— Isso nos leva a acreditar que o alvo de Willian seja meu pai. Por
quê?
— Isso não sei lhe dizer, milorde. Mas tenho certeza de que podemos
descobrir.
— Preciso que vá a Paris com urgência. Willian está esperando uma
resposta minha e de qualquer maneira ela teria que assinar os
documentos de procuração. Não acho que ele icaria de braços
cruzados. Minha irmã corre perigo.
— Sua irmã está segura, milorde.
— Como sabe? — Ele coçou o queixo, descon iado.
— Izadora me con idenciou que passariam um tempo juntas na
Itália.
— Mas como? Esta semana mesmo chegou uma carta com o carimbo
de Paris.
— Ela pode ter pedido a alguém que postasse. Preciso que con ie no
que digo. Se eu sair de Londres agora, estará sozinho e irá precisar de
minha ajuda.
— Você está certo, mas não temos garantias, a não ser que saiba
mais do que diz. Sabia o tempo todo que Izadora estava na Itália e não
disse nada.
— Se Lady Viollet lhe pedisse segredo sobre algo que coloca a vida
dela em risco, você certamente guardaria.
— Está certo. — John se levantou e serviu aos dois um cálice de
brandy.
Marcos percebeu que os dois cálices da visita anterior estavam
intocados.
— Não toque nisso. — John retirou os pequenos copos rapidamente.
— Nunca se sabe. — Ofereceu o novo cálice. — Como anda a bela dama?
— Ela está bem, milorde, obrigado por perguntar.
— Não compreendo o porquê de tanto mistério. Ela é inglesa?
— Sim, milorde, de uma família nobre.
— Qual é o problema?
— É uma mulher branca e eu sou...
— Por favor, precisamos romper essas barreiras morais. Estamos no
meio da Modernidade. Você é um homem de muitas posses. Gosta dela
de verdade, ou é só um passatempo?
— Eu a amo. E nós dois sabemos que não é bem assim. A linhagem
ainda é mais importante que o dinheiro no seu país.
— Marcos Senior, somente o seu sobrenome é capaz de convencer
qualquer um.
— Ninguém sabe ainda, milorde, preferi omitir o fato de Joseph ter
me registrado. Acontece que se trata de uma dama casada.
— Isso complica as coisas, meu caro.
— Mas o marido está muito doente, não vai demorar para que ela se
torne viúva.
— Isso facilita, sobretudo se ela não tiver recursos.
— Não, ela não tem.
— E a família?
— A família possui, milorde.
— Ninguém em sã consciência negligenciaria um acordo como esse.
— O fato é que acho pouco provável que a família dela aprove. Mas
isso não tem importância, porque em minha crença casamento não é
um negócio. E é um detalhe irrelevante um papel assinado quando duas
pessoas se amam de verdade.
— E como pretende dar alguma segurança a ela e à família que
possam vir a ter?
— É para isso que existem os testamentos, milorde. Caso o senhor
queira me orientar, eu gostaria de fazer o meu.
— É muito cedo, mal a conhece. Seria prudente esperar mais um
pouco. E se ela for somente uma caçadora de ouro?
— Não, não é. E não tenho para quem deixar todo esse dinheiro
senão para ela e para minha sobrinha.
— Espere que ela enterre o marido, pelo menos. Assim não levantará
suspeitas. E, se pretende viver com ela sem levantar suspeitas, vai
precisar de uma maneira de viver sem que ninguém descon ie. Como
meu pai e minha mãe.
— Obrigada pelo conselho, milorde. — Ele tamborilou os dedos
sobre o carvalho polido. — Pretende aceitar o convite de Willian?
— Diante da sua constatação, eu não tenho alternativa. Faria
qualquer coisa para proteger minha família e, se meu pai for mesmo o
alvo, eu não permitirei.
— É muito arriscado.
— Sei que terei o senhor ao meu lado, Edward não deve demorar a
voltar. Talvez, se Izadora icasse em sua casa sem que ninguém
soubesse que está de volta, pudéssemos mantê-la em segurança.
— Um bom plano, milorde. — Marcos sorriu.
— A que horas devemos nos encontrar na Golden?
— Às três.
Marcos se levantou e estendeu a mão para cumprimentá-lo.
— Obrigado pelos conselhos, milorde, saiba que pode contar comigo
para o que precisar.
— Não sei se estou certo de que Ann está em segurança. Vou esperar
notícias até o im da semana. Caso minha irmã não esteja com Izadora,
eu mesmo vou atrás dela.
— Faço questão de acompanhá-lo, caso esteja errado. — Marcos
caminhou até a porta. — A propósito, Lorde John, poderia me dizer
onde consigo camisas inglesas?
Capítulo X

Apesar do jantar em que receberia David, Marie e Paul, Ann ocupou


os criados com a troca dos quartos. Estava ansiosa pela chegada de
Marcos, mas não estava certa se ele gostaria da mudança. Agora
ocupariam o quarto principal e, o mais importante, poderiam dormir
juntos todas as noites, sem precisarem passar pelo corredor. Bendito
seja quem inventou a porta de ligação, juntou as mãos e a deixou
encostada para que pudesse ouvi-lo quando ele chegasse.
Mas não pôde ouvir, estava ocupada demais se aprontando para o
jantar. Quando inalmente a camareira deixou o quarto, Ann ouviu
Marcos praguejando com seu valete. Colocou-se rapidamente perto da
porta para ouvi-lo.
— Não entendo para que tantas roupas.
— É necessário, milorde.
— Não sou um lorde, rapaz. — Ann conhecia bem o tom de
brincadeira dele.
— Mas é um homem muito importante e o senhor desta casa. — Um
longo período de silêncio se estendeu. — O senhor pediu que eu icasse
atento ao que estão dizendo sobre sua proximidade com Lady Ann.
Posso garantir que não houve nenhum comentário pejorativo ou que
denegrisse a honra dela.
— Isso é bom.
— Na verdade estão todos muito empolgados com a situação, mas há
um certo rumor... Especulam como será quando as hóspedes voltarem.
— Não permita que essa conversa se estenda. Não quero o nome de
Lady Ann em nenhum mexerico, estamos entendidos?
— Perfeitamente, senhor, mas ela é muito querida por todos.
— É assim que deve ser. Trouxe o que lhe pedi?
— Está ali, senhor.
— Muito bom. Agora pode ir, ico com coceira com você me tocando
tanto.
— Mas a gravata?
— Deixe, eu ajeito a gravata dele — a voz de Ann invadiu o ambiente
e fez com que toda a tensão do dia se dissipasse.
Sem nem mesmo esperar que o valete deixasse o quarto, Marcos
avançou em direção a ela e a abraçou.
— Como senti sua falta. — Beijou-lhe o pescoço e aspirou o perfume
doce só dela.
— Também senti sua falta, você demorou. Como foi?
— Prolixo e insuportavelmente lento. Nem preciso mencionar as
expressões de desagrado. Dois superintendentes entregaram o cargo,
não se sujeitariam à liderança de um negro.
— Patifes.
— Não quero falar disso. Tenho uma surpresa para você.
Ann correu até o embrulho em cima da cama. E, sem cerimônias,
começou a abri-lo.
— Um carimbo.
— Não era isso. Mas é um selo do correio de Roma, precisa escrever
para Lorde John e dizer que está em segurança com Izadora. Dê um tom
de con idencialidade à mensagem.
— Como pensou nisso?
— Estive com seu irmão mais cedo e essa foi a forma que encontrei
para ganharmos um pouco mais de tempo.
— Novos cartões? — Ela continuava remexendo os pacotes.
— Por ironia icaram prontos hoje.
— Por que não me disse que tinha o mesmo sobrenome que Izadora?
— Cortesia de Joseph, ainda não encontrou o que queria lhe dar.
Ann balançou uma caixa.
— O que é isso?
— Sua encomenda, milady. Uma pena estarmos esperando visitas
para o jantar. Confesso que estou ansioso para experimentá-la.
— É uma camisa inglesa. — Ela balançava o objeto no ar. — Como
conseguiu?
— Digamos que Lorde John sabia onde consegui-las. — Aproximou-
se com um sorriso travesso nos lábios.
— Está levando a sério o conselho de David de desa iar John, não é?
— Ela deu uma risadinha. — Gostaria muito de ter presenciado essa
conversa.
— Garanto que se divertiria, como me diverti. — Beijou-lhe a cabeça.
— Mas não podemos nos esconder dele por muito tempo.
— Não quero falar sobre isso agora. — Ela mordeu o lábio com as
mãos sobre a casaca.
— Não me olhe assim, teremos visitas para o jantar.
Ela ajeitou a gravata de Marcos.
— Eu li um pouco do diário, enquanto o esperava.
— E então?
— Acho que temos uma pista, minha avó menciona um esconderijo
em Granville House.
— Vamos ver isso mais tarde, querida. Não quero ser indelicado
fazendo nossos convidados esperarem.
— Nossa primeira vez como an itriões de um jantar, jamais imaginei
que isso pudesse acontecer um dia. Minha família é muito importante
para mim, Marcos, e poder recebê-los é...
— Eu sei... — Ele a abraçou. — Será o primeiro de muitos, eu
prometo.

***

O jantar foi agradável e ver a felicidade de Ann ao reencontrar Marie


fez com que o cansaço do longo dia se dissipasse.
— Acho que deveria ver John amanhã e demonstrar suas
descon ianças. Precisamos de aliados — Marcos aproveitou que Marie e
Ann conversavam animadas para iniciar o assunto, depois do jantar,
enquanto desfrutavam de um delicioso licor de jabuticaba, uma
preciosidade da coleção de Joseph, que Marcos herdara. — Ann vai
escrever uma carta para ele e amanhã mesmo providencio o envio. Ela
vai dizer que está com Izadora em Roma. Isso deve acalmá-lo e mantê-
lo focado na campanha.
— Deveríamos contar para Thomas. — David bebericou de seu
cálice.
— Foi a primeira sugestão que dei logo que conheci o marquês.
Lorde Edward receia, alega que Lorde Thomas e Willian são bem
próximos e que Lady Sarah parece ter desenvolvido um desmedido
carinho pelo avô.
— Para mim ainda é di ícil acreditar, imagino para Thomas. É melhor
agirmos com prudência. Vou procurar John amanhã, logo pela manhã.
— David se inclinou para a frente. — Não vai esconder de John por
muito tempo.
— Tenho ciência disso, milorde. Mas preciso que Lady Ann se sinta
segura, ou que esteja em uma situação em que não tenha mais como
postergar.
— Eu poderia acompanhá-lo, no momento certo, claro. Não tenho
certeza se conseguirei apaziguar os ânimos, mas acredito que possa
ajudá-lo. Mas há algo que me preocupa. Não se fala em outra coisa
senão na fortuna do homem misterioso. Quando estávamos a caminho,
vi uma movimentação na porta da superintendência da Golden. Todos
devem estar curiosos para saber quem é o senhor. Amanhã acordará
com uma enxurrada de convites, felicitações e regalos. Como pretende
manter Ann segura se esta casa começar a receber visitas?
— Estamos fazendo uma reforma no terceiro piso, onde ela poderá
icar segura. Sua irmã pensou em tudo.
— Tão estranho o senhor se referir a Ann como minha irmã. Não é
com frequência que escuto tal menção.
— Sua família tem relações tortuosas, não é mesmo, milorde? — Ele
ergueu o cálice. — Isso os aproxima da normalidade.
Snow pulou no colo de Marcos e soltou um miado, como se
concordasse com a conversa.
— Não foi buscar seus livros, tomei a liberdade de trazê-los. Deixei
com a governanta. Incluí um manuscrito não autorizado que conta a
história de Dido Elizabeth Belle.
— A mestiça que se casou com um homem branco. Fico encantado
com sua gentileza, mas espero não estar fazendo nenhuma analogia; ela
tinha o sangue nobre.
— E o senhor tem posses.
— O amor não tem relação direta com o dinheiro, milorde. Eu não
mancharia a linhagem de Ann.
— Não pretende icar com minha irmã?
— Não dentro dos padrões ingleses. Há pouco estávamos
mencionando relacionamentos não usuais. O próprio duque constituiu
uma bela família sem assinar nenhum contrato.
— Não deveria se rebaixar tanto, Marcos. Pelo pouco que o conheço,
vejo que é um cavalheiro de honra.
— Não discuti o futuro com Lady Ann ainda, milorde. Como disse,
seria precipitado. Mas, se não penso em me casar com ela, não é por me
sentir inferior. A luta da minha raça não terminará nesta década, ainda
estamos lutando para ter direitos como os demais seres humanos que
habitam este mundo. Não acredito que imposições possam funcionar.
Seria um caso isolado, como o da Lady Dido Elizabeth Belle. Penso em
uma transformação de mentalidade e posso contribuir com isso não me
casando com a ilha de um duque, mas lutando e dando condições ao
meu povo. E é isso que farei.
— Está mesmo interessado em comprar a tecelagem?
— Sim e, como disse ao senhor, só empregarei negros e mestiços;
não por defesa a minha raça, mas para dar oportunidade a quem não
tem.
— A cada dia o senhor ganha ainda mais o meu respeito.
— Fico feliz em saber disso, milorde.
— Não há razão para formalidades. A inal é o amante de minha irmã.
— Companheiro.

***
Conforme o prenúncio de Lorde David, uma enxurrada de convites e
presentes chegou a Grove House Springs na manhã seguinte. No
desjejum, Ann repassava um a um com desmedida atenção.
— Não vai aceitar o convite da marquesa de Normanby? — Ann
tentou não demonstrar seu desconforto.
— Qual é o problema com a dama?
— Não é segredo que ela faz qualquer coisa para desposar as ilhas
encalhadas — falou com desdém e fez uma careta ao constatar que
também poderia ser nomeada daquela maneira, como as ilhas da
aludida. — Os bailes só tocam valsas, você acharia enfadonho.
Marcos se levantou de sua cadeira e deu a volta para tomar a mão de
Ann. Num movimento involuntário, ela se levantou. Ele a envolveu pela
cintura e se afastou da mesa para que pudessem ter espaço.
— Acabo de me dar conta de que precisarei de aulas de dança,
milady. Concede-me a honra?
— Para que dance com outras damas?
— Sobretudo com as ilhas da marquesa de Normanby, seria uma
indelicadeza de minha parte não retirar pelo menos uma para dançar.
Quantas são?
— Três, e você icaria com vertigem. — Ela cruzou os braços.
— Sua preocupação me deixa lisonjeado, milady. — Beijou-lhe o
pescoço. — Não tenho olhos para mais ninguém.
Ann o encarou buscando sinceridade, mas não tinha dúvidas de que
Marcos retribuía-lhe os sentimentos.
— Senhor, senhora. — A governanta pigarreou. — O marquês e a
marquesa de Bristol desejam vê-lo.
Ann sobressaltou-se e beijou Marcos rapidamente, apressando-se
para subir as escadas.
— Não fugirá das aulas — disse ele.
Ela virou-se e sorriu enquanto ele calçava os sapatos. Marcos pegou
o paletó na cadeira e o vestiu, para atender os convidados.
O valete, e icientemente, apareceu, e seu senhor observou sua
movimentação.
— Deve esperar quinze minutos, senhor. Teremos tempo para ajeitar
suas roupas.
— O inferno que vou deixá-los esperando. De onde venho, isso é
indelicadeza. — Abanou a mão. — Não vou vestir gravata, só o paletó
deve servir.
Conferiu sua imagem no espelho do aparador, antes de se
encaminhar para a sala.
— Que surpresa os receber. É uma honra tê-los aqui.
— Trouxe biscoitos. — A marquesa ofereceu o embrulho, e Snow deu
um miado de satisfação.
— Lamentamos vir sem aviso prévio — Lorde Thomas se adiantou.
— Mas Sarah estava em polvorosa. Disse que você deveria estar cheio
de convites, não se fala em outra coisa senão no testamento de Joseph.
Viemos nos dispor a ajudar a escolher quais deve aceitar.
— Por favor, sentem-se. — Colocou os biscoitos sobre a mesa. — É
muita gentileza. Eu me sinto honrado com o fato de que se deram ao
trabalho.
— Papai queria vir conosco. — Lady Sarah pegou a mão do marido.
— Mas estava ocupado com alguns documentos de campanha de John.
Tomamos café em Ansons House, hoje.
— É um homem de muito prestígio, agora.
— Lorde Thomas, sei que comunga dos meus pensamentos, mas
nesse caso o que tem prestígio é o meu dinheiro. — Logo que a
governanta apareceu, ele pediu que trouxesse café, chá e os convites
que estavam em cima da mesa do desjejum.
— Uma oportunidade para fazer história, não acham? Conseguimos
uma grande vitória com o hospital, ainda temos um longo trabalho pela
frente.
— Deveria escrever uma matéria. — Sarah bateu as mãos
empolgada. — “O cavalheiro de ouro”.
— Parece-me um tanto quanto ostentoso, milady. — Marcos pegou
os convites com o lacaio e os entregou para a marquesa. — O que me
diz?
Um a um, os convites foram escrutinados e separados em três pilhas.
Lorde Thomas e Lady Sarah explicavam com paciência, e com
peculiares pontos de vista, por que aceitar ou não cada um deles.
— Lorde David Hervey — a governanta anunciou mais uma visita.
Involuntariamente, os olhos de Marcos percorreram a cortina,
lamentando que Ann não pudesse se juntar a eles. Com um enorme
embrulho nas mãos, David se espantou ao constatar a presença do
irmão e da prima.
— Viemos ajudá-los com os convites.
— Vim trazer algumas encomendas — falou David entregando o
embrulho ao lacaio.
— Livros? — o marquês perguntou interessado, enquanto via seu
irmão se acomodar.
— Sim — mentiu sem poder dizer que se tratava de tecidos para que
Ann pudesse bordar.
— Acho que, antes de aceitar qualquer convite, seria elegante que
Marcos oferecesse uma recepção. — Sarah sugeriu. — Não seria
delicado, David?
— Decerto — concordou sem muita empolgação.
— É uma ideia brilhante, querida — o marquês não escondia a
admiração pela esposa. — Assim podemos avaliar melhor quem mostra
receptividade.
— Que indelicado — David recriminou o irmão.
— O marquês está sendo realista, milorde. Minha cor pode causar
repulsa. E, de fato, desejo estar onde sou bem-vindo.
— Um grande baile em Grove House — Lady Sarah parecia maquinar
—, ou em Ansons House.
— Seu debute — David debochou enquanto capturava uma generosa
porção de biscoitos. — Nunca me oferece essas delícias quando vai me
visitar.
— Não ique enciumado, David. — Fez uma careta para o primo. —
Espero sinceramente que Izadora volte a tempo. O que acha da segunda
semana de março?
— Seria perfeito, milady.
Conversaram por mais algum tempo, até que a governanta
novamente os interrompeu.
— O visconde de Trentham deseja vê-lo senhor.
A marquesa não escondeu a empolgação ao saber que o irmão se
juntaria a eles. Mais uma hora de conversa se estendeu. Marcos
percebeu o desconforto de Lorde John, que não parou de balançar os
joelhos. Até mesmo a marquesa o repreendeu pela grosseria.
Quando inalmente Lorde Thomas e Lady Sarah resolveram se
despedir, um furacão entrou na sala. Com os cabelos parcialmente
soltos e o vestido de viagem desalinhado, Izadora se jogou nos braços
de Sarah logo que a viu.
Logo atrás dela, Marcos viu, vinha Lorde Edward, com um ar de
reprovação. Rapidamente, colocou-se de pé para cumprimentá-lo.
— Eu disse que era uma imprudência, mas Izadora não me deu
ouvidos.
— E a duquesa?
— A carruagem dela deu meia-volta quando viu a confusão de
cavalos na entrada. Deixei o jardineiro de prontidão para só deixá-la
entrar quando não tiver mais ninguém.
John se aproximou e cumprimentou Edward.
— Como estava o clima em Roma? Foi uma viagem muito breve, não
acha? — Olhou descon iado para Marcos. — Se Izadora está aqui, onde
está Ann?
— Espere até que o marquês vá embora e conversamos — Marcos
falou com o tom irme.
Com a chegada de Izadora, a visita se estendeu um pouco mais.
Porém, logo que Lorde Thomas e Lady Sarah saíram, John colocou as
mãos nos bolsos.
— E então?
— Vamos até o escritório. — Marcos estendeu a mão para que ele
passasse.
— Vou com vocês — Edward se adiantou.
— Fique com Izadora — Marcos soou mais imperativo do que
desejava —, posso resolver este assunto com Lorde John.
— Vou acompanhá-los. — David já estava de pé e, pela sua postura,
Marcos soube que ele não aceitaria recusas.

***
— Ann está nesta casa — Marcos confessou logo que a porta se
fechou. — Lady Izabel deixou este imóvel para que ela se escondesse
depois que forjasse o próprio casamento.
Com os punhos cerrados, de frente para Marcos, John não escondia a
fúria.
— Ann corria perigo na casa de seu pai. Era melhor que ela se
afastasse — David tentou se interpor.
— Você sabia? — Ele não se dignou a olhar para o primo, seus olhos
continuavam fuzilando Marcos, que permanecia parado, sem recuar.
— Descobri há pouco tempo — a resposta de David mal foi ouvida.
— O que mais sabe e me esconde?
— Não sou eu que devo dizer para o senhor. Mas queria tranquilizá-
lo: sua irmã está bem.
— Quero vê-la.
— Não! Não assim, nem agora. Sua irmã sofre de crises noturnas,
efeito do tônico que tomou por todos esses anos. Dr. Anthony deixou
um médico para vê-la com frequência e ele acha melhor evitar que viva
fortes emoções enquanto está em recuperação.
John bateu o braço jogando a poltrona para longe.
— E você naturalmente a ajuda nessas crises. Era ela? Era ela atrás
da cortina? Ann é a dama casada com que tem se deitado?
— Sim, milorde. Não foi planejado, mas Ann e eu estamos juntos.
— Patife. — A mão de John parou no ar quando Marcos o segurou
com força.
— Eu receberia de bom grado se o merecesse, milorde. Não sou um
aproveitador. Vim para esta casa por causa de Izadora, mas sua irmã já
estava aqui. Ela fugiria mesmo se eu não existisse, e eu agradeço aos
céus o fato de estar aqui para protegê-la. Bata-me por ter me
apaixonado, ou por tê-la desonrado. Mas não seria justo, Ann também
tem o direito de ser feliz. — Ele soltou a mão fazendo John dar um
passo atrás.
— Quero ouvir da boca dela que você não se aproveitou...
— Eu vi — David interrompeu. — Ann nunca esteve tão feliz, tão
cheia de vida. Marcos tem razão, fomos negligentes demais, John.
Passamos muito tempo preocupados com o que parecia importante
enquanto nossa irmã era envenenada bem debaixo do nosso nariz. Você
mesmo comentou sobre como era di ícil a recuperação.
— E Anthony?
— Fugiu com um cavalheiro; ele e Ann izeram um acordo pelo qual
o casamento daria liberdade para ambos.
— VOCÊ DORMIU COM A MINHA IRMÃ!
— Não, milorde, tenho dormido com ela todas as noites. E pretendo
fazer isso pelo resto da minha vida.
— Vai se casar com ela. Vou providenciar a anulação do casamento
com o médico e vai arcar com as responsabilidades.
— Pense com coerência, John — David o interpelou. — Na situação
em que estamos, um escândalo como esse a colocaria ainda mais em
risco.
— Deixe-me vê-la.
— Peço que espere até que eu a prepare para isso, milorde. Da
mesma maneira que o senhor se sente traído, ela se sentirá quando eu
disser que contei ao senhor.
— Que se dane...
— Sim, que se dane se ela não quiser mais icar comigo. Mas eu me
importo com o bem-estar dela.
— Vamos embora, John, você precisa esfriar a cabeça.
— Esta conversa não acabou.
— Tenho certeza disso, milorde. Amanhã pela manhã, estarei em sua
casa para pensarmos na melhor maneira de contarmos a ela que o
senhor sabe e que irá apoiá-la.
John deixou o escritório com passos duros. Marcos tocou o ombro de
David.
— Obrigado.
— Não iz nada, e o senhor se saiu muito bem.
Marcos se jogou na poltrona, levando as mãos à cabeça. O dia mal
havia começado e ele já se sentia exausto. Tentou dissipar a tensão e a
culpa. Talvez tivesse agido da mesma maneira com o patife que
engravidara Aziza se tivesse oportunidade. Não culpava Lorde John.
Inesperadamente, um copo de puro malte surgiu a sua frente.
— Eu escutei. — A mão de Lorde Edward repousou em seu ombro.
— Eu não devia ter me ausentado.
— Aconteceria do mesmo modo, milorde, não é algo que eu possa
controlar.
— Não, não é. Aconteceu o mesmo comigo e com Izadora, ainda que
você estivesse sempre nos vigiando. — O primeiro-ministro bateu o
próprio copo no dele.
— E Ann?
— Está lá em cima com Izadora, mostrando as reformas; duvido que
tenha escutado. Ela me parece muito bem.
— Por favor, não conte a ela ainda.
— Eu não faria isso.
— Vou pensar em uma maneira de não a magoar.
O primeiro-ministro pegou a poltrona caída e sentou-se.
— Sabe, Marcos, minha avó sempre disse que a passionalidade
poderia arruinar o mais nobre dos homens. Você conseguiu levar John
ao limite, mas tenho certeza de que, depois que colocar a cabeça no
lugar, ele lutará com mais gana.
— E se ele não se acalmar?
— Lady Viollet o acalmará. — Ele ergueu o copo. — Às damas
perfeitas, que sabem como ninguém domar um cavalheiro selvagem.
— Com exceção de Izadora — Marcos brincou.
— Ela tem suas habilidades.
Capítulo XI

Marcos não quis descer para jantar, alegou estar com dor de cabeça.
Ann aproveitou a companhia de Izadora, Pia e de sua tia, que relatavam
maravilhas sobre as terras de Manchester. A duquesa não poupou
elogios à reforma de seus novos aposentos. Pia não escondia a
felicidade e parecia bem mais jovem do que era de fato. Ann quase não
viu o tempo passar.
Quando retornou aos seus aposentos, trocou-se rapidamente e foi
até os aposentos de Marcos. Ele estava deitado, com um braço sobre os
olhos. Ela se aproximou para cobri-lo, fazendo com que ele mudasse de
posição para olhá-la.
— Não tocou no seu jantar. — Passou a mão pelo rosto dele.
— Estou sem fome.
— Vou mandar chamar o doutor...
— Não é necessário.
— Coma pelo menos um pouco, vou pedir que troquem a bandeja.
— É tão doce e atenciosa. — Ele deslizou o dedo pelo queixo
delicado dela. — Não sou merecedor de tamanha devoção.
— Faz muito mais por mim. — Beijou-lhe a face e tocou a sineta.
Marcos observou Ann receber e instruir o lacaio. Ela parecia já
conhecer seus gostos. Enquanto aguardava o jantar, Ann recolheu as
roupas jogadas pelo quarto, e, pela primeira vez, ele se arrependeu por
ser tão desleixado. Não era justo que ela sempre recolhesse o que ele
deixava largado. Sua mãe sempre reclamava desse mau hábito. Marlene
o fazia recolher enquanto esperava com as mãos na cintura. Deveria ter
aprendido, recriminou-se.
— Vou tentar melhorar.
— Gosto de recolher sua bagunça. — Levou a camisa ao rosto para
cheirá-la. — Parece tolice, mas é como se tivesse vida, as coisas fora do
lugar.
Marcos a observou por um longo tempo e só se sentou quando a
bandeja com o jantar chegou.
— Ficou assustado com o assédio dos convites, ou foi o tumulto
causado por meus irmãos?
— Um pouco de cada. — Ele deu uma garfada e seu estômago
agradeceu.
— Quando tudo isso acabar, poderemos receber todos para um
jantar, ou um baile. Não seria maravilhoso?
— Talvez não queira icar ao meu lado quando tudo isso acabar.
— Tem que parar de dizer isso. Você também pode não me querer ao
seu lado, mas como disse quero aproveitar cada momento.
— Como pode ser tão perfeita?
— Não sou perfeita.
— E se eu errar, Ann? Se izer algo que a magoe?
— Como ir ao baile da marquesa de Normanby? — Ela sorriu
fazendo com que ele sorrisse também. — Vou icar furiosa, mas isso não
será capaz de apagar o que sinto aqui dentro.
— Não vou aceitar esse convite, embora Lady Sarah ache que é o tipo
de evento bem-frequentado. Ela quer organizar um baile para me
apresentar à sociedade.
— Um debute.
— Lorde David fez o mesmo comentário.
— Deve aceitar, querido, será muito importante para você. Mesmo
que eu não possa estar presente ou ter meu próprio baile, estarei aqui
torcendo por você.
Ele afastou a bandeja e a puxou para o colo.
— Ainda vamos a muitos bailes, onde poderá dançar e se divertir.
Vou levar você para conhecer o mundo. Quero que seja a mulher mais
feliz que alguém já conheceu.
— Receio dizer que já sou. Nada do que está lá fora importa quando
estou em seus braços, Marcos. Você é o meu anjo, mesmo com
pensamentos pecaminosos.
— A senhorita não vai me seduzir, milady. Hoje eu só quero sua
companhia e o seu carinho.
Ele a beijou sem pressa, esquecendo-se completamente do jantar.
Quando Ann se afastou, obrigou-o a comer, enquanto contava as
reações de Izadora ao ouvir que estavam juntos.

***

Ao bater à porta da casa de Lorde John na manhã seguinte, Marcos


foi tomado por uma insegurança que jamais vivenciara. Em seu íntimo
queria ser visto como um homem digno de estar ao lado de uma mulher
como Lady Ann. O mordomo, dessa vez, foi mais receptivo do que
anteriormente.
Marcos encontrou Lady Viollet e Lady Lucy sentadas na sala. A
viscondessa ofereceu um sorriso contido, não havia recriminação.
— Vou dizer a John que está aqui. — Saiu deixando-o a sós com Lady
Lucy.
Ficaram em silêncio por algum tempo até que a amante do duque o
surpreendeu com um abraço.
— Eu sabia que a minha menina encontraria alguém especial.
Obrigada por tudo que tem feito por ela. — Lucy afastou-se
recompondo-se. — Desculpe minha exaltação, mas David me procurou
pedindo que eu conversasse com John, quando soube...
— Sinto muito pela situação, milady.
— Não tenho moral para recriminar qualquer relacionamento,
Marcos. Posso chamá-lo assim, não é?
— Claro.
— John está mais calmo. Viollet fez um bom trabalho, mas ainda
assim, como mãe, eu precisava vir.
— Ele sabe da duquesa?
— Não, ainda não devemos revelar.
— Milady, eu estive pensando...
Lucy ouviu atentamente a ideia de Marcos e exultou ao perceber o
quanto ele se preocupava com Ann. John, que o esperava no escritório,
chegou a icar impaciente com a demora para o embate, mas Viollet
conseguiu controlar seus ânimos.
— Vim, como prometido — Marcos anunciou logo que entrou no
gabinete de Lorde John.
— Não vou me desculpar — o visconde foi direto.
— Eu não esperava que izesse. Agiria da mesma maneira em seu
lugar.
O comentário foi capaz de desarmar John, arrancando-lhe um
discreto sorriso.
— Viollet e minha mãe me izeram enxergar que o meu excesso de
proteção pode ser um tanto quanto egoísta. — John aguardou que
Marcos dissesse algo, o que não aconteceu. — Não tem um comentário
ácido para isso?
— Não, milorde. Comungo da mesma culpa, meus sentimentos por
sua irmã me izeram agir de forma igualmente egoísta.
— Não deveria, mas gosto de você. — En im ofereceu um sorriso
sincero. — Onde aprendeu a se esquivar e imobilizar o oponente
daquela maneira.
— Capoeira, milorde.
— Muito bom, talvez deva me ensinar um ou outro golpe.
— Seria como apontar uma arma para minha própria cabeça.
— Não o atacarei, a menos que faça Ann sofrer.
— Isso não irá acontecer.
— Bom, então temos um acordo. Contou a Ann?
— Não tive coragem.
John acenou em concordância.
— David disse que Ann trata sua sobrinha como a uma ilha.
— De fato elas se afeiçoaram muito. Lys, às vezes, só aceita se
alimentar com Ann. — Ele se recostou na cadeira um pouco mais
relaxado. — Se me permite a sinceridade, não vim aqui para discutir
frivolidades. Temos assuntos mais urgentes a tratar. Com a volta de
Lorde Edward e com a participação de Lorde David, podemos trabalhar
com a inco para desmascarar Lorde Granville.
— Vou contar a Thomas. Minha mãe reluta ante a ideia de que eu
diga ao meu pai, e vou respeitar o pedido dela. Sei que ela sabe muito
mais, assim como Ann, mas não vai dizer. Você precisa descobrir...
— Não vou fazer isso. Reúna as forças necessárias. Garanta que a
segurança de Ann não seja comprometida, e o senhor mesmo pode
perguntar para sua irmã o que ela sabe.
— Então marcamos um jantar em sua casa. Podemos surpreender
Ann e fazer com que ela não se sinta sozinha.
— Tenho uma ideia melhor, milorde.
— Marcos, já me provou o su iciente que é melhor que o banana do
Anthony.
— Não me compare com ele. Já é tormento su iciente imaginar que
ele esteve tão perto de Ann por tanto tempo.
John sorriu largamente, recostando-se na cadeira, ansioso para ouvir
o que Marcos havia planejado.

***

Insistente batida à porta de ligação fez com que Marcos saltasse da


cama. Descomposto, caminhou sonolento, encontrando seu valete, que
parecia, como sempre, a postos para vesti-lo.
— Lorde John Anson, o visconde de Trentham, está lá embaixo e
deseja vê-lo, senhor.
— Que horas são? — perguntou esfregando os olhos.
— Um pouco antes das oito, senhor. Imagino que se trate de algo
urgente, mas ele não me parecia a lito.
Marcos pegou a calça das mãos do valete e colocou a camisa sem
abotoá-la.
— Patife!
— O que houve? — Ann apareceu enrolada em um penhoar de
veludo e Marcos fez uma careta, não queria que Harold a visse daquela
maneira.
— John está aqui, vou ver o que ele deseja. Volte a dormir.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não sei, mas em breve iremos saber. — Beijou-lhe os cabelos. —
Harold, ique na porta do quarto da duquesa e não permita que ela
desça até que nossa visita inconveniente tenha partido.
— Perfeitamente, senhor, posso ajudar com a gravata?
— Gravata é o inferno — praguejou arrancando uma risadinha de
Ann e um sorriso inconveniente do lacaio.
No andar de baixo, encontrou John instalado na sala, muito à
vontade. Os pés do visconde jaziam em cima da mesa, e os braços
confortavelmente colocados sob a nuca deram a Marcos a certeza de
que aquela visita não tinha uma justi icativa plausível.
— O que o traz a esta hora? — Jogou-se no canapé, já que sua
poltrona favorita estava ocupada.
Snow rapidamente pulou em seu colo e mostrou os dentes para John.
— Eu devia ter descon iado aquele dia, esse gato não costuma ser
muito amável. Sobretudo com cavalheiros.
O bichano olhou-o descon iado, fazendo John se acomodar como
deveria, em seu assento.
— Desembucha.
— Vim buscá-lo para uma reunião na casa de Thomas, conversei com
ele ontem. Edward já deve estar a caminho.
— Não poderia ter enviado um recado?
John ergueu o tronco, mas recuou ao ver que Snow estava prestes a
atacá-lo.
— Eu não perderia a oportunidade de interromper seu desjejum —
pronunciou a palavra sem esconder o tom pejorativo — ao lado de
minha doce e frágil irmã. — Sorriu largamente.
— É um cavalheiro muito perspicaz, milorde. Vejo que não mediu
esforços para me perturbar, colocando em segundo plano o próprio
desjejum. A que horas saiu de casa? Aposto que Lady Viollet ainda
dormia.
— Patife, não tinha pensado nisso.
Marcos se colocou de pé rapidamente.
— Vou me trocar e informar a sua doce irmã que o desjejum deverá
ser adiado e revertido em um prolongado almoço. Não vou pedir que
lhe tragam nada, pois não quero que ache que é bem-vindo a esta hora.
Snow icará tomando conta de você.
— Eu poderia desa iá-lo por sua insolência. Mas não ousaria, vejo
por que me imobilizou tão facilmente. — Apontou para a camisa aberta
de Marcos.
— Eu icaria lisonjeado com o elogio se comungasse dos mesmos
gostos do falso marido de Ann, mas não aprecio cavalheiros.
Marcos pegou a almofada que John arremessara no ar.
— Vá logo, homem, estou faminto e ansioso para tomar o desjejum
em Grove House.
Após tranquilizar Ann, ele se trocou, vestindo-se impecavelmente.
Poucos minutos depois já estava dentro da carruagem, na companhia
de John, que naquela manhã estava especialmente falante.
Em Grove House, foi recebido com uma enxurrada de perguntas
sobre Ann. A marquesa não parecia desconfortável com as visitas
àquela hora. Conversou com Marcos por um longo tempo e se dispôs a
organizar pessoalmente a ocasião em que Ann saberia que tinha seus
irmãos como aliados.
— Não entendo por que não podemos dizer nada a papai. Também
não consigo acreditar que Willian possa estar envolvido na doença de
Ann. — Lady Sarah parecia apreensiva.
— Mamãe virá nos encontrar; ela não revela os motivos, mas deixou
ordens expressas para não dizermos nada a ele — John tentou
tranquilizar a irmã.
— Será que ele está doente? — A marquesa juntou as mãos,
preocupada.
— Não sofra antes do tempo, querida. Tenho certeza de que sua mãe
irá explicar-lhe.
O primeiro-ministro abriu a bolsa de couro que trazia consigo e
colocou três sacos de moedas, além de algumas notas, sobre a mesa do
marquês.
— Peso, diâmetro e espessura perfeitos. Todas dentro do padrão. As
notas também, todas assinadas pela rainha. Nenhuma falsi icação. Lotes
diferentes e nenhuma irregularidade. Chego a questionar a sanidade de
minha avó.
— Mas você disse que os títulos de seu pai e do pai de Viollet tinham
assinaturas falsas. — Sarah não escondia a a lição.
— Podem ser casos isolados. Algo pessoal. — Edward deu de
ombros.
Marcos capturou uma moeda que caíra do saco e começou a
examiná-la.
— Quais foram as suposições que izeram que acreditasse que meu
avô está envolvido no caso de Ann? — Thomas coçava o queixo. — Eu
posso até acreditar sobre as falsi icações, não restam dúvidas de que as
assinaturas não batem. Mas fazer mal a Ann, não sei se isso é possível.
— Sim, é possível — David, que até então se mantinha quieto,
resolveu se pronunciar. — Tenho pensado muito sobre tudo. A aliança
com os Smiths, o casamento de Viollet, o desaparecimento de Marie.
Phillip chegou a dizer que a queriam morta. Mesmo que nossa mãe
fosse amante de Allan e depois de Philip Smith, o que é doentio, ela não
teria motivos para fazer mal a Marie, a menos que ela saiba mais que...
— Assim como Lucy e Ann — John concluiu.
— Permita-me intrometer, mas acho que, sem as informações que
faltam, não chegaremos a lugar algum. Lady Lucy deve ter motivos para
ter seus segredos. Precisamos fazer com que elas se sintam seguras
para dizer o que sabem — Thomas ponderou.
— Ou o segredo poderia colocar tudo a perder — Sarah divagou. —
Se Ann guarda segredos e por tanto tempo bolou o plano de fuga com
Lady Izabel, ela dará somente as informações necessárias. Minha mãe
não vai dizer nada e Marie é leal o su iciente para se manter calada.
— O único caminho que temos é continuar buscando provas dos
crimes de falsi icação. — Edward deu de ombros. — Tenho trabalhado
nisso há anos.
— Deve haver algo, alguma pista. — Thomas tentava buscar algo na
memória. — David, tente conversar com Ann.
— Sim, David, tente convencê-la a falar, já que Marcos se recusa a nos
dizer tudo que sabe.
Edward e Marcos se entreolharam.
— Marcos não vai dizer nada que Ann não queira. — Não haviam
percebido que Lucy se juntara a eles. — Podem acreditar nas
descon ianças de Lady Izabel, eu con iaria a ela a minha vida, como
con iei a vida de Ann. Willian era conivente com o médico e com Joana.
Ele fazia questão de acompanhar todo o tratamento de perto.
— Como permitiu, mãe? — Sarah já estava de pé ao lado dela.
— Eu falhei, Sarah, todos nós acreditamos na doença de sua irmã.
Quando Lady Izabel descon iou, izemos o possível para tirá-la de
Lilleshall. Corremos muito risco trocando de médico, mas seu
casamento com Thomas já estava certo e isso pareceu acalmar os
ânimos de Willian. Não posso dizer tudo que sei, seria uma
imprudência. A princípio achei que John estava sendo precipitado
contando a vocês, não quero que corram nenhum risco. Willian não
pode descon iar de nada, ele é um homem muito atento e perigoso,
precisa acreditar que nada mudou. — Lucy acariciou o rosto da ilha.
— Por que ele fez questão de que Sarah e John recebessem parte da
herança? — David questionou.
—Pre iro acreditar que é por culpa, David. Mas ele não deu nada aos
meus ilhos; esse dinheiro é só uma parte do que roubou.
— Meu pai não sabe de nada... — John bateu as mãos na mesa.
— E o que queria, John? Que eu revelasse o que sei ao seu pai,
deixando-o vulnerável? Seu pai escolheu viver com uma amante, tem
ilhos bastardos, o que implicou no sacri ício do cargo de primeiro-
ministro e muitas outras coisas que você não consegue imaginar. Se
Augustus soubesse de tudo o que Willian fez, certamente o mataria e
estaria tranca iado na Torre de Londres. Vai me julgar por protegê-lo?
— Mas permitiu que eu soubesse.
— Não tive como controlar, Edward precisava de ajuda e o julgou
apto para ajudá-lo, assim como você con iou em Sarah.
— Não con ia em mim, não é?
Lucy se aproximou de John e se ajoelhou diante dele.
— Não conheço ninguém que tenha o senso de justiça maior que o
seu, meu ilho. Puxou o temperamento de seu pai, mas, com Viollet ao
seu lado, sei que não vai fazer nada de que possa se arrepender. Tenho
muito orgulho de você, meu ilho, e quero acreditar que envolver todos
nesse plano é a melhor decisão que pode tomar. Mas, por favor, tome
cuidado, eu morreria se acontecesse alguma coisa com qualquer um de
vocês.
John se levantou e abraçou a mãe. Lucy se recompôs rapidamente.
— Marcos, eu gostaria de fazer uma visita a Ann, pode me
acompanhar?
— Claro, milady. — Virou-se para Edward. — Gostaria de levar as
moedas para examiná-las.
— Certamente, eu as levarei ao jantar.
Marcos acenou em concordância e se despediu de todos,
acompanhando Lady Lucy.

***

Logo que a carruagem entrou em movimento, Marcos balançou a


cabeça.
— Não é uma situação fácil, milady.
— Já esteve pior. — Lucy bateu de leve nas mãos dele. — Precisamos
tirar Julliet daquela casa. Ela não vai aceitar sair de Londres.
— Acha que conseguimos com facilidade uma casa perto de Grove
House Springs?
Lady Lucy sorriu.
— Que nome encantador, ideia de Ann?
— Não, senhora. Eu a batizei, embora saiba que tudo que plantamos
no inverno não irá vingar. Mas não conte a Lady Ann. Depois mando
repor as mudas, quando o tempo esquentar.
Lucy tirou um cartão do bolso das saias.
— Procure este endereço depois que me deixar em sua casa. Não é
muito longe, a pessoa que o receberá é de minha con iança. Providencie
para que Julliet possa se mudar amanhã. Pia pode ajudá-lo.
Aceitando a missão, Marcos não fez mais perguntas. Mas havia algo
que o consumia.
— Sei que é uma pergunta impertinente, milady. E quero que seja
franca se soar invasiva demais.
— Pergunte o que quiser, Marcos.
— Como pretende se casar com o duque se a duquesa ainda está
viva?
Ela abriu um sorriso acolhedor.
— Nunca pretendi me casar, muito menos me tornar uma nobre.
Tenho rezado para que tudo se resolva logo e Augustus saiba que Julliet
está viva. Mesmo que o casamento deles seja anulado, eu não tenho a
intenção de me tornar a duquesa. Sou a mãe dos ilhos dele, a
companheira de uma vida inteira, e isso me basta.
— Ele não parece pensar da mesma maneira, quero dizer, das poucas
vezes que estive com sua graça, ele me pareceu animado com o
matrimônio.
— Fogo de palha, querido. Con ie em mim, resolverei essa questão.
Mas agora temos assuntos mais urgentes a resolver.
Habilidosamente, ela bateu duas vezes no teto da carruagem,
fazendo que os cavalos acelerassem.
Capítulo XII

Ann bordava concentrada quando viu Lucy entrar.


— Mãe! — Largando a costura de lado, ela correu para abraçá-la.
— Ahhh, minha menina, como senti sua falta. — Beijou-lhe o rosto
com ternura. — Lamento não ter conseguido vir vê-la antes.
— Eu sei. — De mãos dadas com Lucy, a bastarda a levou até o
canapé. — Como está meu pai?
— Radiante com a candidatura de John e com o neto que acha que
está esperando. Ele sente sua falta.
— Acha que ele vai gostar de Lys? — Inclinando-se na cesta, Ann
pegou a criança no colo.
— Ela é adorável, querida.
— Tenho tanto a contar...
— Sua tia, onde está?
— Lá em cima, vou pedir que a chamem.
— Não, peça que levem a pequena Lys. Há algum lugar onde
possamos conversar com privacidade?
Ann chamou a governanta e lhe entregou Lys. Na companhia de Lucy,
foi até o escritório e trancou a porta.
— Está tudo bem?
— Willian quer que John seja seu procurador no banco caso algo
aconteça a ele. Seu pai sentiu-se honrado. — Ela balançou a cabeça. —
John contou a Thomas e Sarah, agora todos sabem, ou presumem, sobre
os crimes de Willian. Vim para tirar sua tia desta casa, ela não está
segura aqui.
— E para onde vai levá-la?
— Lembra-se da Senhora Willy? Marcos está indo lá agora mesmo,
em meu nome, pedir a ela que as acolha.
— Pia vai com ela?
— Ann, querida. As coisas vão se complicar daqui para a frente.
Sarah, John e todos precisam agir como se não soubessem de nada, e
isso é complicado quando não se tem provas. Eles podem en iar os pés
pelas mãos. Vim aqui para lhe perguntar se deseja sair desta casa com
Julliet. Posso mantê-la em segurança e depois tiramos vocês de
Londres; tenho certeza de que Marcos pode nos ajudar.
— Estamos juntos — confessou em um rompante.
— Eu sei, ele me contou. — Ofereceu um sorriso afetuoso. — Estou
muito feliz por você. Mas precisa se decidir, Ann. Se achar que é demais
e que...
— Vou icar. O diário está comigo. Lady Izabel deixou para mim. Ele
fala do esconderijo e outras coisas.
— Lady Sarah deve ter mencionado o motivo, imagino.
— Não sei, ainda não terminei de ler.
— Não o entregue a ninguém, pode contar o que achar pertinente
para ajudar na investigação. Mas nunca diga o motivo, isso cabe a Julliet
e não é algo em que possamos interferir.
— Eu não direi, mas Marcos está lendo comigo.
— Con ia nele?
— Sim.
— Eu também, inexplicavelmente con io nele e sei que fará qualquer
coisa para protegê-la. Vou conversar com sua tia e quero que pense com
calma até amanhã; não será fraca se resolver ir com ela.
— Eu não irei, mamãe. Ficarei e ajudarei meu irmão a colocar Willian
na Torre de Londres. Semana que vem, vou contar a John que estou
aqui; Marcos e David têm razão, não conseguirei me esconder por
muito tempo. Marcos pediu que eu escrevesse uma carta para ele
falando que estava com Izadora em Roma, mas ela está de volta e, caso
se encontrem, meu irmão icará preocupado. Não é justo.
— Sempre pensando nos outros, querida.
— Antes de partir, leve a carta que informa sobre a morte de
Anthony. Nela também informarei sobre minha permanência em Paris.
Para todos os efeitos, estarei lá por algum tempo, devido ao meu estado
emocional. Mas só entregue depois que eu contar a John, está bem?
— Como achar melhor, Ann.
— E não conte a Marcos que me deu a opção de partir. Embora esteja
apaixonada e queira icar ao lado dele, não quero que ele pense que é o
motivo de minha permanência.
— Você mesma pode dizer, minha ilha. Não há relacionamento sem
conversas francas.
— O que vai dizer ao papai quando ele descobrir?
— Seu pai pode até não me perdoar por esconder um segredo como
esse, mas não me arrependo, foi a maneira que encontrei de proteger
minha família. — Beijou-lhe a testa e se levantou. — Marcos disse que
reformaram o terceiro piso. — A porta se abriu e as duas se viraram
para olhar. — Vamos lá, estou curiosa para conhecer as instalações da
duquesa de Sutherland.
— Não é necessário, minha querida amiga. — Julliet sorria
amplamente. — Logo que soube que estava aqui, não resisti. Estava
com saudades.
Lucy insistiu que subissem e, pelo resto da manhã, puderam
conversar à vontade, sem interrupções. Até que Izadora se juntou a
elas.
Londres, 1807.
Sarah Granville,

Sei que prometi escrever com mais frequência, mas tanta coisa
aconteceu depois que Joana nasceu. Felizmente, Willian se envaideceu o
su iciente para me dar liberdade. Consigo ir a bailes, ele viaja com
frequência, Sra. Neil, nossa governanta, se aposentou e inalmente posso
ir e vir sem ser vigiada.
Não poderia deixar de escrever neste momento tão especial. Minha
Julliet nasceu. Como é linda e como se parece com o pai. H. veio vê-la às
escondidas na noite anterior; pude vê-los juntos e por um instante meu
coração se encheu de esperanças. Eles se parecem e, sinceramente, espero
que Willian não ache o mesmo que eu.
H. me prometeu que vamos fugir, pediu um tempo até que pudesse
colocar todas as dívidas em ordem e que tivesse dinheiro su iciente para
cuidarmos juntos de nossa família. Eu o esperarei nem que seja pelo resto
dos meus dias.
Sei que temos que ser cautelosos, mas com a ajuda da minha querida
amiga Izabel tudo ica mais fácil. Posso ver o sol brilhar de novo e en im
me sinto viva novamente.
Com exceção da obra que Willian está fazendo no primeiro pavimento,
na casa reina a mais plena paz. Eu o questionei sobre o novo cômodo, mas
ele desconversou dizendo que não era assunto para damas. Allan Smith
continua vindo com frequência e isso me desagrada. Não gosto do jeito
como ele olha e brinca com Joana; ela tem somente dois anos.
No jantar, antes de viajarem, ele comentou que icaria honrado em se
casar com nossa ilha mais velha. São quase vinte anos de diferença, e ela
é uma criança. Willian não quis conversar sobre o assunto. Izabel acha
que devo mantê-la longe dele, mas meu marido não esconde o orgulho da
ilha, que já fala e anda por toda casa.
Deus permita que eu possa sair daqui logo e levar minhas ilhas
comigo.
***

Ann guardou o diário e desceu apressada, à procura de Marcos;


faltavam algumas horas para o jantar. Estava extasiada com o que
acabara de descobrir. Não sabia que sua tia Julliet também era uma
bastarda.
— Meu Deus! — Com as mãos na boca, ainda em choque com a
revelação, paralisou no meio das escadas, ao ouvir acordes dissonantes
saírem do piano.
Uma pequena movimentação na sala de música. Izadora assassinava
as teclas do piano, enquanto Pia observava Marcos, e a duquesa
arriscava alguns passos de uma valsa.
Ele parecia empenhado em aprender a dança, enquanto Julliet,
pacientemente, ignorando a falta de jeito de seu par, conduzia o bailado
com elegância.
— Não precisa temer, não vai pisar no meu pé. Um, dois, três...
— O que é isso? — Ann questionou, tentada a tapar os ouvidos.
Izadora continuava alheia, tentando acompanhar as partituras.
— Iza! Por favor, pare!
— Quer tocar? — A duquesa ofereceu um sorriso, sem soltar a mão
do seu par. — Estamos tendo aulas de dança, Marcos precisa aprender.
— Assuma o piano, tia Julliet. Ou Izadora nos deixará surdas. —
Rapidamente se aproximou de Marcos.
Ela fez uma reverência elegante e estendeu a mão para que ele
beijasse.
— Concederia a honra dessa dança, milady?
— Com prazer, meu senhor.
Ele tomou as mãos delicadas e beijou-lhe cada um dos nós dos
dedos. Ann pôde ouvir o suspiro das damas.
— Pia? — Izadora fez com que a antiga governanta da marquesa se
levantasse. — Não vamos icar olhando, não é mesmo? Mas eu conduzo,
sempre sonhei em fazer isso.
A duquesa começou a tocar uma canção melodiosa, mas seus olhos
estavam ixos nos passos de Marcos.
— Isso, querido. Mantenha o tronco erguido. Está maravilhoso.
A aula se estendeu até a hora do jantar. Os criados se aglomeravam
discretamente para ver o espetáculo. Até mesmo a pequena Lys desceu
dos braços de sua ama, para participar da festividade.
Ann constatou que se tratava da despedida de sua tia naquela casa e,
ao mesmo tempo que a melancolia a tomava, não podia ser egoísta.
Julliet precisava estar em segurança e era melhor que não estivesse ali.
Estava decidida a escrever a John ou a tentar marcar um encontro
com ele, para revelar seu paradeiro. Já não podia adiar isso e desejava
que tudo se resolvesse o quanto antes, para que pudessem gozar da tão
sonhada liberdade.
— Até que não foi tão mal — ela provocou Marcos, enquanto
caminhavam de mãos dadas, para a sala de jantar. — Pisou no meu pé
somente quatro vezes.
— Ouso dizer que fui melhor que a senhorita; diga-se de passagem,
não é uma exímia dançarina, assassinou meus pés seis vezes.
Ann correu os olhos pelos pés descalços dele e viu a marca dos
sapatos. Balançou a cabeça constatando que ele tinha razão.
— Talvez pela falta de prática.
— Isso não será mais problema, milady. Podemos contratar um
músico para que possamos praticar todas as noites. Mesmo com os pés
em carne viva — exagerou —, é sempre um prazer tê-la em meus
braços. — Puxou a cadeira para que ela se sentasse.
Os lacaios começaram a colocar as travessas na mesa. A maneira
informal de servir o jantar parecia agradar a todos.
— Antes de iniciarmos essa refeição maravilhosa, preparada sob a
supervisão da minha querida Pia — a duquesa ergueu a taça —, eu
gostaria de agradecer a generosidade e o acolhimento de Marcos.
Passamos maravilhosos momentos nesta casa, o senhor sem dúvidas é
um excelente an itrião.
— Um lorde inglês — Izadora debochou.
— Vossa graça, sabemos que sua ausência é provisória. Esta casa
também é sua e seus aposentos continuarão aqui. Por favor, quero que
saibam que eu e Ann icaremos honrados em ter a sua companhia e a da
Sra. Pattel sempre que desejarem.
— Um patife que não poupa lisonjas. — Izadora sorriu com
sarcasmo para o amigo. — Aposto que, quando eu partir, não ouvirei o
mesmo.
— De initivamente não, Iza. Consegue perturbar a paz mesmo
dormindo.
Os dois sorriram juntos, era nítido o carinho que sentiam um pelo
outro.
— Amo você, mesmo que seja um ogro disfarçado de lorde.
— Shhh. — Ele levou os dedos aos lábios. — Não revele meus
segredos dessa maneira.
— Como se ninguém soubesse — Ann entrou na brincadeira.
A duquesa, que observava a interação entre eles, estendeu a mão
para tocá-lo.
— Cuide das minhas meninas. Estou partindo segura de que não
permitirá que nenhum mal aconteça a elas.
— Cuidarei de vossa graça e da Sra. Pattel também.
— Muito bem — Pia interrompeu a troca de amabilidades. —
Ficaremos honradas com a proteção, mas agora vamos ao assado. Toda
essa dança me deixou faminta.
Num clima de descontração e alegria, eles saborearam a deliciosa
refeição. Marcos não percebeu melancolia nas feições da duquesa,
muito pelo contrário, ela parecia aliviada. Talvez por ver a sobrinha tão
cheia de vida.

***

Durante a semana, Ann se manteve ocupada inalizando um bordado


para Marie. Estava feliz com a ocupação e mal teve tempo para pegar no
diário.
Izadora estava especialmente agitada; na verdade Ann percebeu uma
movimentação fora do comum naquela casa. Os criados iam e vinham a
passos apressados. Mesmo que ela não tivesse ordenado, a casa era
limpa com esmero. Imaginou que Marcos estivesse esperando os
visitantes, já que os convites não paravam de chegar, contudo nem
mesmo John apareceu.
Somente David, na companhia de Marie, em breve visita.
— Não acha que esta situação é de extremo mau gosto? — A
bastarda estava inquieta, caminhava de um canto a outro, entediada por
estar presa naquele quarto. — Como ousa fazer uma surpresa me
trancando aqui?
Marcos continuava concentrado em sua tarefa, sequer dignou-se a
olhá-la.
— A convivência com Izadora tem tornado a senhorita um tanto
quanto dramática. Não está presa, saiu pela manhã para visitar sua tia e
até agora estava no quarto de Izadora. — Ele ergueu os olhos e sorriu.
— Pelas portas dos fundos, que degradante. E vi que demoramos
mais do que o su iciente lá. O que está me escondendo, Marcos?
— Já lhe disse, uma surpresa. Venha aqui. — Afastou a cadeira para
que ela se sentasse em seu colo. — Fica ainda mais bela quando está
zangada.
— Eu não estou zangada, estou entediada, curiosa, desesperada,
furiosa! O que tanto faz com essas moedas de ouro? Está parado aí há
quase três horas. O que tanto anota?
Ele se levantou e pegou uma poltrona para que ela se sentasse ao seu
lado.
— Padrão de desgaste. Veja, elas estão separadas por ano. — Limpou
uma com esmero e colocou na balança. — Com essa balança que John
adaptou, podemos calcular precisamente os desgastes e a perda de
ouro. Mas confesso que ainda me enrolo com a conversão de medidas, o
sistema de peso no Brasil é diferente.
— E o que pretende com todo esse trabalho?
— Um estudo minucioso. Ajude-me com essas contas de conversão.
Ela bufou e se levantou.
— Não sou boa em contas como Sarah. — Caminhou em círculos. —
Acredita que, quando passei pelas escadas, Harold estava lá e me
impediu de descer? Há um enorme tecido bloqueando a passagem.
— Ele é muito bem pago para isso, milady. — Sorriu
sarcasticamente.
— Diz que a casa também é minha, mas me impede de ir e vir; já não
bastam os anos...
Ele a calou com um beijo. Por um instante, Ann se esqueceu do que
reclamava, nem mesmo havia percebido que ele se levantara.
— Pode me ajudar limpando as moedas, querida. — Retirou o
relógio do bolso. — Ou pode esperar que venham buscá-la.
Ann não achou as propostas tentadoras, preferia algo mais íntimo e,
decidida a seduzi-lo e a arrancar as informações que desejava, ela o
beijou, conduzindo-o até a cama.
A porta se abriu bruscamente, revelando Izadora e Marie. A
brasileira não pareceu constrangida com a interrupção.
— Não vou me desculpar. — Avançou pelo quarto e puxou a amiga
pela mão. — Vamos, Ann, você precisa se aprontar.
Marie cumprimentou os dois, ela não escondia o desconforto. Marcos
pediu um tempo para as damas, dizendo que ele mesmo levaria Ann até
o quarto onde ela se vestiria. Izadora relutou em deixar os aposentos,
mas Marie foi persuasiva o su iciente para convencer a estrangeira.
Quando as duas inalmente deixaram o quarto, Marcos retirou uma
caixa de dentro da cômoda. Ele se colocou atrás de Ann. Diante do
espelho, beijou-lhe o pescoço parcialmente desnudo.
— Um presente de sua tia Julliet, querida. Ela lamenta não poder
estar presente e me incumbiu de entregar-lhe. — Abotoou o primoroso
colar, de ouro rosé, com um generoso diamante. — Segundo ela,
pertenceu a sua avó. — Beijou-a mais uma vez. — Devo confessar que
gostaria de vê-la vestida somente com ele. É uma peça única, assim
como você.
— Minha avó mencionou este colar no diário. — Ela tocou a peça
observando o próprio re lexo no espelho; Marcos estava atrás dela,
tocando-lhe os ombros. — Foi um presente de H.
Sem conseguir resistir aos encantos de Ann, ele a virou e a beijou.
— Talvez eu possa me despir para você. — Ela respirava com
di iculdade quando ele se afastou.
— Mais tarde, querida. Agora vá, que também preciso me trocar.
— Não vai me dizer o que está tramando? — As mãos agora
experientes deslizaram sobre o volume das calças dele.
— Se não conseguiu arrancar de Izadora, não serei eu quem dirá. —
Ele deu-lhe um beijo casto e se afastou, sabia que não podia resistir a
ela.
— Vai me pagar por isso! — Bufou antes de deixar o quarto.
— Com prazer, milady.
Marcos viu Ann sair e se jogou na cama. Ann Marcelle Granville
Anson, o que será de mim se um dia não me quiser mais? Não havia
respostas, mas certamente seu im seria o mesmo de Joseph. Tentou
afastar os pensamentos nebulosos, não poderia se dar ao luxo, tinha
responsabilidades. Conferiu o relógio e percebeu que ainda teria algum
tempo para terminar suas anotações. Voltou para as moedas de ouro e,
ao empilhar uma dúzia delas na balança, teve a certeza de que estava no
caminho certo.
Capítulo XIII

Ao se olhar no espelho, Ann não se reconheceu. Nunca vira um


vestido tão magní ico; desejou tê-lo bordado. Os ios de ouro davam um
toque elegante e so isticado ao tecido rosa-pálido. Sem dúvidas, era um
traje digno de uma rainha.
Seu cabelo fora preso e ornado com uma lor de plumas da mesma
cor do vestido. Nem tão extravagante, nem delicado. Todo o conjunto a
fazia se sentir dentro de uma pintura. Como a que Willian encomendara
para Sarah Granville.
Quando revelasse a John que estava em Londres, pediria a Viollet
que a pintasse, com aquele vestido e aquele colar que parecia valer uma
pequena fortuna. Uma imprudência, pensou. Aquela joia poderia
garantir o sustento de sua tia por um bom tempo, ou talvez pelo resto
da vida. Contudo a duquesa resolveu presenteá-la e aceitar toda a ajuda
de Marcos.
Ah, o que está aprontando, meu querido?
Uma leve batida à porta a sobressaltou. Suas mãos suavam, por isso
já nem vestia mais as luvas. Pegou-as rapidamente e se surpreendeu ao
ver que Harold vestia um uniforme diferente, bem mais so isticado que
o usual.
— Permita-me ajudá-la, minha senhora. Se não achar inconveniente,
claro.
— Por favor. — Ela estendeu a mão para que ele as calçasse. — Onde
está Marcos?
— Meu senhor pediu que eu a acompanhasse até as escadas, milady.
Está aguardando a senhora lá embaixo.
— E Marie? Izadora?
— Não sei dizer. — Ele permanecia impassível, concentrado em sua
tarefa.
Enquanto caminhavam pelo corredor, Ann tentou arrancar alguma
informação, mas Harold se manteve iel a Marcos, não disse uma
palavra sequer.
— Não vai descer comigo?
— Meu senhor pediu que viesse até aqui, milady.
— Não tem medo que eu caia nas escadas?
O valete titubeou, mas logo em seguida se manteve irme.
— Isso não vai acontecer, senhora, mas de qualquer maneira seria
prudente que segurasse o corrimão.
— Jamais trairia uma ordem de Marcos, não é?
Ele meneou em concordância. Quando Ann desceu o primeiro
degrau, o criado falou:
— Sou leal à senhora também, milady. Se me permite o elogio, está
radiante.
— Obrigada, Harold, vamos ver o que Marcos aprontou.
No meio das escadas, Ann conseguiu sentir uma profusão de cheiros.
A casa parecia um verdadeiro jardim de rosas que combinavam
perfeitamente com seu vestido. Não havia ninguém a sua espera; bem,
foi o que imaginou ao atingir o último degrau.
Para sua surpresa, uma mão esguia foi oferecida para ajudá-la. O
coração de Ann parou quando ela viu o irmão, John, vestindo um traje
de gala. O herdeiro trazia um sorriso acolhedor.
— Como você...? — as palavras pairaram no ar. — Marcos lhe contou
que eu estava aqui? Ou foi Izadora?
— Está belíssima, doce, frágil e inocente irmã. — Ele fez uma vênia
exagerada e tomou-lhe a mão para beijá-la.
— Responda, John.
— Não hoje, Ann. Talvez amanhã eu volte para conversarmos.
— E por que veio aqui? Achei que...
— Não ache que não a estou arrastando para saber de toda a história
por vontade própria. Tenho muitas perguntas. Mas o seu amante me fez
prometer que eu não a pressionaria.
— Marcos não é meu amante — falou rispidamente e aos poucos se
perguntava sobre o que mais John sabia.
— Não, claro que não, ele é o patife que dorme com você todas as
noites. Pelo menos usam camisas inglesas. Quando pretende matar seu
marido? — Ofereceu-lhe o braço para que caminhassem juntos.
Não deram nem dois passos e Marcos surgiu na frente dos dois.
— Milorde, o senhor prometeu se comportar. — Depois de
recriminar Lorde John, Marcos admirou Ann com os olhos.
O farrusco abriu um largo sorriso e diminuiu a distância entre eles.
— Perdoe-me, meu caro e insidioso sócio.
— John — a voz irme de Viollet fez com que todos olhassem para
trás. — Ann querida, como está linda.
— Eu adoraria acompanhá-la, meu amor — Marcos se desculpou. —
Mas, como seu pai não pode estar presente, achei apropriado que seu
irmão a acompanhasse em seu baile de debutante.
— Baile... — Ela se jogou nos braços dele.
— Somente para seus irmãos, não é algo grandioso.
Viollet, ao longe, observava a demonstração de afeto do casal.
Quando Ann se encurvou para beijar Marcos, uma mão surgiu entre
eles.
— O senhor também prometeu se comportar — John fez questão de
lembrá-lo.
— Perdão, milorde. — Marcos se afastou e estendeu o braço para
que Viollet o acompanhasse. — Por favor, leve sua irmã em segurança e
sem questionamentos desnecessários; será um prazer fazer companhia
a Lady Viollet enquanto isso.
— Patife.
John inalmente começou a caminhar em direção ao grande salão.
— Ele a ama de verdade. — Deu de ombros.
— Eu também o amo.
— Sim, eu posso ver. — Deu um beijo na testa da irmã, logo que
chegaram à porta. — Estou feliz que esteja bem.
— Obrigada.
Foi di ícil conter a emoção quando viu todos os seus irmãos ali.
Como sentia falta de sua família.
Marcos não economizara, o grande salão estava impecavelmente
decorado e, bem no centro, havia uma escultura rodeada por uma
cascata de taças de champagne. Ann nunca vira nada parecido.
Não que tivesse propriedade para opinar sobre decoração de bailes,
mas não importava. Marcos tivera o cuidado de preparar um só para ela
e convidar as pessoas mais importantes de sua vida.
Ela sentiu falta do pai, de sua tia Julliet, de Pia e da sua querida
amiga Izabel, que indiretamente era responsável por tudo aquilo.
— Não chore — a voz carinhosa de John a trouxe de volta para o
presente.
— Está tudo tão lindo, John... Eu nunca imaginei que um dia teria...
— Acabou, Ann. Poderá viver tudo que não teve oportunidade. Não
que eu concorde com a situação, mas Marcos parece disposto a fazer
qualquer coisa para fazê-la sorrir. Se isso não é amor verdadeiro, eu não
sei mais o que poderia ser.
Um quarteto de cordas começou a tocar uma valsa e John
rapidamente tomou a irmã.
— Sabe fazer isso?
— Não sou uma exímia dançarina, mas tenho meu charme. — Ela
piscou.
Rodopiaram pelo salão quase vazio, enquanto John tentava manter
os pés sãs e salvos.
— Marcos fez um testamento, sabe disso?
— Ele não disse nada.
John continuou dançando sem delongar a conversa.
— Não vai me contar?
— Desculpe, querida irmã, mas estou proibido de abordar assuntos
sérios esta noite. Só queria deixar claro que não é a única que possui
informações.
John parou de dançar quando viu uma dama, coberta por uma capa,
entrar. Os olhares de todos se voltaram para a porta.
Lucy retirou o disfarce, entregando-o para um lacaio. Graciosamente,
aproximou-se dos ilhos.
— Querida, eu não poderia deixar de vir. Mas não posso icar muito
tempo, seu pai acha que estou na casa de Sarah. John, posso dançar com
sua irmã?
O visconde meneou a cabeça e se retirou, deixando-as no meio do
salão.
— Ah, mãe... — Foi di ícil conter as lágrimas que segurara desde que
vira o irmão ao pé da escada.
— Eu disse que não estava sozinha. — Sem se importar com a nobre
coreogra ia, ela abraçou Ann, ainda dançando. — Tenho certeza de que
Lady Izabel icaria orgulhosa de vê-la. Nunca vou poder agradecer tudo
o que ela fez por você. — Pararam de dançar e Lucy abraçou a ilha
mais uma vez. — Você é a ilha que Deus me deu, Ann, amo-a como se
eu mesma a tivesse carregado no ventre.
— Eu também a amo, mãe. Se não fosse você e...
— Chega de falar do passado, você tem um futuro lindo pela frente.
— Beijou-lhe a testa. — Preciso ir.
Antes que Lucy se afastasse, Sarah Hervey se aproximou das duas.
— Mãe, posso dançar com Ann.
— Claro, querida, divirtam-se.
Ann abraçou a irmã e juntas viram a mãe partir.
— Eu conduzo, sempre quis fazer isso. — Sarah sorriu e tomou a
posição da dança.
— Obrigada por vir, Sarah.
— Eu não estaria em nenhum outro lugar, Ann. Estou feliz em saber
que é bem mais forte do que demonstra ser. Amanhã estarei aqui, temos
muito a conversar, sobretudo a respeito de Marcos. Como se sente?
— Viva. — Inesperadamente, Ann tomou o controle e girou a irmã
mais nova. — E posso garantir que é uma sensação maravilhosa.
Rodopiaram pelo salão, gargalhando. Quando inalmente se
cansaram, pararam por um instante. Os olhos da marquesa desviaram-
se para o pescoço da bastarda.
— Esse colar..., já o vi antes. Não sabia que havia ganhado a joia de
Sarah Granville. É uma peça linda.
— Onde a viu?
— Na tela que Willian tem em casa. É enorme, vai quase até o teto.
Ann respirou fundo e tentou não pensar no que Sarah havia dito.
Mais uma vez foram interrompidas. O marquês de Bristol se
aproximou e, antes que ele pedisse, Sarah entregou a mão de Ann.
— Não imagina a satisfação que sinto em vê-la tão bem. — Ele
mantinha distância, era perceptível seu desconforto. — Nunca tivemos
a oportunidade de conversar, eu sinto muito. Não sabia que...
— Você não tem culpa de nada, Thomas. Talvez fosse movido pelo
amor de irmão e não tinha como descobrir.
— Não me peça que não me sinta culpado. Fui negligente com a sua
situação. Quero que saiba que pode contar comigo sempre.
— Ah, meu irmão. — Parou de dançar e o abraçou. — Sofreu tanto
quanto eu. Não tivemos culpa de nada, somos sobreviventes. — Tocou-
lhe o rosto com carinho. — Amanhã, vamos todos nos encontrar aqui e
podemos conversar.
— Sim, amanhã. — Ele olhou para o lado. — É melhor deixar Marcos
tomar seu posto.
O marquês fez uma reverência e foi ao encontro de Sarah, que o
recebeu com um abraço caloroso. David e Marie dançavam, assim como
Edward e Izadora, Viollet e John.
Marcos não tomou sua mão, icou parado a olhando. O meio sorriso
que lhe causava palpitações estava lá, cheio de promessas e palavras
não ditas.
— Obrigada, meu amor. Hoje é o dia mais feliz da minha vida.
— Não ira os sentimentos de um homem, milady. Pensei que o dia
mais importante da sua vida fosse aquele em que dormimos juntos pela
primeira vez.
Ela sorriu e tomou as mãos fortes dele. Contrariando os protocolos,
beijou-as.
— Cada momento do seu lado é único.
— Concede-me esta dança?
— Não agora, estou tonta de tanto rodopiar. Quero que me leve ao
jardim e que me beije.
— Isso seria comprometedor, milady. Diante da escassez de
convidados, creio que nossa ausência seria notada. — Ele sorria.
— Não me importo. — Ela o abraçou. — Pelo visto, todos sabem de
nós dois, não há o que esconder. Eu o amo e quero que todos saibam
disso.
— Ama-me?
— Talvez eu possa dizer isso no jardim. — Ela o tomou pela mão e o
puxou, chamando a atenção de todos.
Ao longe, John, que dançava com a esposa, levou-a até o centro do
salão e pegou uma taça no meio da escultura, fazendo com que duas se
espatifassem no chão.
— John... — Viollet o recriminou.
— Hoje é dia de festa, querida. — Pegou uma taça para ela, fazendo
outras três se desequilibrarem. — Um brinde ao amor.

***

No dia seguinte, um mensageiro entregou um recado a todos


presentes no baile da noite anterior. A reunião fora transferida para a
casa de John, que alegava não estar em condições de se deslocar.
O visconde recebeu os convidados vestindo um robe de veludo e
segurava um bloco de gelo, enrolado em um pano, junto à cabeça.
— Eu avisei. — Viollet fez uma careta, mas se sentou ao lado do
marido e segurou-lhe a mão.
— Ele já devia ter aprendido — David recriminou o primo e se
serviu de uma generosa porção de biscoito.
— Não vai comer tudo, David. — Sarah retirou o pote da frente dele.
Acompanhado de Ann, Marcos chegou e a primeira coisa que fez foi
entregar um envelope ao an itrião.
— O que é isso? — John perguntou carrancudo, sem se dignar a
abrir.
— A conta das duas dúzias e meia de taças que quebrou ontem. — O
farrusco não escondeu o divertimento.
— Patife.
— Por favor. — O marquês tentou manter o controle. — Onde estão
Edward e Izadora?
— Izadora não está se sentindo muito bem, Edward achou melhor
que ela icasse em repouso.
— Certo — Thomas concordou. — Não quero pressioná-la, mas acho
que tem muito a nos contar, Ann.
— Acabe com a nossa angústia — Viollet pediu enquanto o marido
encostava a cabeça em seu ombro.
Por quase uma hora, Ann contou das descon ianças de Lady Izabel
sobre o irmão, da troca de médicos, dos planos de se casar com
Anthony e da fuga. Respondeu a todas as perguntas tomando cuidado
para não deixar escapar nada sobre o diário e sobre a farsa da morte de
sua tia Julliet.
— Quando pretende matar Anthony? — John perguntou.
— Acho que está na hora.
— Escreva ao nosso pai contando e não se esqueça de mencionar a
perda do bebê. — John aprumou o corpo. — Eu digo a ele que mandarei
alguém buscá-la e que você estará de volta quando estiver estabelecida.
— Não quero voltar enquanto...
— Não vai voltar — o marquês interrompeu —, não até que seja
seguro. — Fuzilou John com o olhar.
— Certo, certo — John concordou e tomou um generoso gole de
refresco.
Marcos retirou da casaca um outro envelope.
— Não vou pagar mais nada — o visconde rapidamente se esquivou.
— É um convite de Willian Granville, para que eu compareça ao
banco; ele parece estar interessado em gerir meus rendimentos.
— O que pretende fazer? — David soltou a mão de Marie e tentou
capturar mais alguns biscoitos.
— Eu vou. Quero ouvir de perto o que ele tem a dizer.
— Não podemos dar garantias se entregar seus recursos — o
marquês se contrapôs. — É uma grande soma, Marcos, precisa pensar
com prudência.
— Não farei nada precipitado, milorde, mas não perderei a
oportunidade de um embate.
— Posso ir com você — David se ofereceu.
— Em outra oportunidade, milorde.
— A quantas anda a avaliação das moedas? — John parecia bem
melhor.
— Falta pouco para que eu apresente um parecer a vocês. — Pegou a
cartola. — Creio que já icamos tempo demais, não é seguro para Ann
icar circulando assim, em plena luz do dia. Espero que compreendam.
— Por favor, Marcos, podemos ter uma conversa de senhoras?
Prometo que não vamos demorar.
Ele assentiu, não negaria um pedido da marquesa.
Na companhia de Marie, Viollet e Sarah, Ann foi até a outra sala.
Ficaram por quase duas horas conversando sobre os mais variados
assuntos, e Sarah satisfez todas as suas curiosidades. A franqueza de
Ann deixou Viollet, em muitos momentos, constrangida. Mas já não
sentia desconforto em abordar assuntos tão íntimos. Surpreendeu a si
mesma quando confessou que ela e John não só haviam consumado o
casamento, mas que ela havia tomado gosto pela intimidade do leito
conjugal.
Despediram-se e todas prometeram fazer uma visita a Izadora no dia
seguinte.

***
Londres 1812.
Sarah Granville,

Como sinto falta de minha amiga Izabel. Depois que Julliet nasceu, as
coisas icaram ainda piores. Há cinco anos, Willian tomou o banco de
Steve Baldwin e proibiu a irmã de vir me visitar. Hoje soube que ela icara
viúva há quase um ano e nem mesmo iquei sabendo. Allan deixou
escapar no jantar, e Willian não pareceu muito feliz por ele compartilhar
essa informação.
Preciso vê-la. Preciso me encontrar com H. Por que ele não me contou
nada sobre Steve em seus bilhetes? Por que Izabel não encontrou uma
maneira de se comunicar? Já faz quase cinco anos.
Achei que fôssemos fugir, mas ele acha arriscado para minhas ilhas.
Ontem, quando fui à modista, vi uma criança na rua e iquei pensando
em como a minha poderia estar. Sei que está bem cuidada, Izabel e H. não
deixariam que nada lhe faltasse. Mas não sei como eles estão, se têm
recursos.
Achei um saco de moedas de ouro, retirei algumas e vou encontrar
uma maneira de entregar a eles. É arriscado entrar onde Willian as
esconde, mas consigo pegá-las quando todos estiverem dormindo. É
degradante ver minha própria imagem escondendo as sujeiras de meu
marido.
Preciso encontrar uma maneira de ver Izabel, de ver H., de reencontrar
minha criança. Deus há de me ajudar.
Capítulo XIV

— O quadro! — Ann fechou o diário rapidamente. — Marcos. —


Correu até o quarto dele, mas não o encontrou.
Sem se importar em se calçar, ela saiu pelo corredor, à procura dele.
Apressou os passos em direção às escadas, mas parou ao ver a porta do
quarto que Marcos ocupava entreaberta.
Ajoelhado no chão, ele retirava as tábuas do assoalho perto da
lareira. Ann viu uma grande quantidade de barras de ouro empilhadas
no chão.
— O que está fazendo?
— Acabei não retirando as coisas que escondi aqui, quando
trocamos de quarto.
— Tem mais?
— Sim, querida. Temos um pequeno tesouro neste quarto.
Ann fechou a porta atrás de si.
— Talvez devêssemos encontrar um lugar mais seguro.
— Alguma sugestão?
— Uma porta falsa atrás de um quadro. Acha que é possível?
— Sim, é possível.
— Minha avó mencionou um esconderijo no diário.
— Sim, você me disse.
— Eu estava lendo, e ela diz sobre Willian usar a imagem dela para
esconder seus crimes. No baile, Sarah me disse já ter visto o colar que
tia Julliet me deu, num quadro enorme, na casa de Willian Granville.
— Se realmente for verdade...
— Sim. — Ela batia as mãos enquanto sentia o coração quase saltar
pela boca. — Lady Izabel me disse que eu encontraria informações
valiosas e que, se eu agisse com cautela, poderia fazer com que Willian
pagasse por todos os crimes que cometeu. Mas não sei o que fazer com
essa informação.
Ele se levantou rapidamente e a abraçou.
— Acalme-se, querida. É só uma pista. Vamos encontrar uma
maneira de averiguar essas informações, eu prometo.
Aos poucos, Ann se acalmou nos braços de Marcos.
— O que pretende fazer com todo esse ouro.
— Vou usar como isca.
— Mas Thomas disse que você poderia perder seu dinheiro, que não
tinha como dar garantia.
— Não vou colocar nosso patrimônio em risco, con ie em mim. Mas,
se Willian realmente é movido pela ganância, ele vai se impressionar
com o que tenho aqui.
— Prometa que não vai dar nada a ele.
— Não posso prometer o que está me pedindo. Se as conclusões
sobre as pistas que sua avó deixou estiverem erradas, entregar alguns
lingotes para Willian será uma forma de tentarmos rastrear, caso ele
resolva me roubar.
— Como faríamos isso?
— Não é algo que uma dama deva saber, mas acredite; nesta cidade
há um pequeno exército de criminosos dispostos a fazer qualquer coisa
por uma boa soma.
— E se ele o roubar?
— Será uma pequena perda perto do que vamos ganhar. — Ajoelhou-
se novamente, para guardar as barras de ouro. — Por que não vai ver
Izadora? Assim que terminar aqui, encontro-me com você.
— Ela não melhorou?
— Encontrei-me com Edward quando ele estava saindo, parece que
continua indisposta.
— Será que...
— É o que ele acredita. — Deu um sorriso satisfeito. — Prometeu
voltar com um médico.
Ann sequer se despediu, deixou Marcos sozinho. Mas o farrusco não
achou ruim, aproveitou o tempo para pensar em uma maneira de entrar
na casa do banqueiro.

***

Willian Granville nunca foi um homem conhecido por ser paciente.


Embora a imagem que formara para seus netos fosse de um homem
complacente e generoso, essas eram qualidades que ele nunca tivera.
Não era habituado a receber pessoalmente os correntistas do banco,
sobretudo se não possuíam uma linhagem aceitável. Não receberia
Marcos Senior em seu gabinete, teria muito trabalho para higienizar
sua sala e se livrar dos resíduos daquele homem que lhe causava
repulsa.
Já havia mandado investigá-lo. Um escravo liberto que caíra nas
graças de Joseph. Um irmão para Izadora. O banqueiro achava que os
dois se mereciam, dois selvagens. Mas o homem não só era dono de
considerável riqueza, como também recebera o poder de gerir, como
bem entendesse, a fortuna da brasileira.
Morava em uma casa que pertencera a Izabel; cortesia de Edward,
imaginou. Sabia que tinha uma sobrinha e que recentemente havia feito
um testamento. Cerrou os punhos, bufando diante da incompetência de
seu secretário, que não tinha conseguido uma cópia do documento.
Quando foi informado da chegada de seu visitante, ele se dirigiu para
o escritório do seu secretário. Willian limpou a cadeira com um lenço
antes de se sentar.
— Lorde Granville, é um prazer revê-lo. — Marcos carregava uma
bolsa de couro.
— Não me lembro de termos nos visto antes. — Com um discreto
movimento de cabeça, ele convidou o farrusco a sentar-se.
— Estivemos juntos por um breve instante, no gabinete de Lorde
John, mas é claro que o senhor não deve se lembrar. Deve fazer muitas
reuniões.
— Não costumo atender pessoalmente meus clientes, exceto quando
têm uma quantia considerável.
— Ainda não sou um cliente, portanto me sinto honrado por tomar
seu precioso tempo. Acredito que tenha uma proposta de investimento.
— Direto ao ponto, uma qualidade louvável, algo inesperado para um
brasileiro.
— Não sou brasileiro, milorde. Sou africano, mas vivi quase toda a
minha vida no Brasil.
— Quase a mesma coisa — deixou escapar com desdém. — Já deve
ter ouvido falar sobre a credibilidade da minha instituição e que posso
garantir um fundo lucrativo.
Sem cerimônia, Marcos abriu a bolsa de couro e retirou um lingote
de ouro.
— Já tenho planos para meus rendimentos, mas de fato preciso
guardar minhas garantias em um lugar seguro. Talvez transformar
algumas barras em papel moeda, para que eu possa fechar negócios.
Willian se recostou na cadeira, mas seus olhos estavam ixos na
barra de ouro que Marcos havia colocado em cima da mesa.
— No que pretende investir?
— Vou continuar injetando capital nos projetos de Lorde John
Anson, mas preciso de um bom fundo para a construção de um orfanato
e a reforma da tecelagem que acabei de adquirir.
— Comprou a tecelagem? — Sem conseguir mais se conter, tocou a
barra de ouro e começou a examiná-la.
— Vinte e quatro quilates, milorde. Tenho algumas aqui comigo.
— Quantas? — Os olhos do banqueiro pareciam não se mover, estava
hipnotizado com a beleza daquela peça. Como um homem como aquele
poderia possuir tamanha preciosidade?
— Quatro.
— Entrou carregando nessa sacola mais de cem libras, sem o menor
esforço; não é à toa que utilizam seu povo para trabalhos pesados.
— Não pertenço a nenhum povo, milorde. Meu coração é do Brasil,
assim como esses lingotes. Pelo que ouvi falar, não sou o primeiro com
quem o senhor se interessa em fechar negócios. O barão de Mauá, por
exemplo, soube que o senhor inanciou a construção da mais
importante ferrovia no meu país.
— Um patife estrategista. Uma questão de tempo até que ele se
afunde na mais completa ruína. — Um sorriso maldoso brotou nos
lábios de Willian.
— Um homem visionário que idealizou todo o escoamento de café.
Se o senhor realmente tiver razão, isso jamais apagará o brilhantismo
do barão.
— Ninguém me passa para trás, rapaz.
Marcos guardou o lingote na sacola e se colocou de pé.
— Nisso estamos de acordo, senhor, penso do mesmo modo. — Fez
uma reverência.
— Vou preparar tudo para que deposite as suas quatro barras de
ouro.
— Não disse que tenho somente essas. Pretendo entregar vinte
lingotes, sendo que só farei a conversão de metade delas.
— Posso mandar buscar ainda hoje.
— Não dei garantias de nada. De onde eu vim, só se fecham negócios
diante de uma bela refeição. Será um prazer recebê-lo para jantar
amanhã em minha casa.
Afrontado, Willian cerrou os punhos. Insolente! Jamais se sentaria à
mesa daquele homem. Sabe Deus o que esse tipo de gente come, pensou
tentando não avançar em cima dele.
Já Marcos, internamente se parabenizava pela brilhante atuação.
Podia sentir o asco em cada palavra, em cada movimento. Sabia fazer a
leitura corporal das pessoas.
— Passar bem, milorde.
Willian se colocou de pé rapidamente.
— Espero o senhor em minha casa amanhã, às oito.
Marcos saiu deixando que o banqueiro achasse que dera a última
palavra. Seu plano havia saído melhor que o esperado, recebera o
convite para conhecer de perto o quadro de Sarah Granville.

***

— Como foi? — Ann se colocou atrás de Marcos para massagear-lhe


os ombros desnudos.
Um contato aparentemente inocente, que ela vira a mãe fazer com o
duque algumas vezes, mas que era extremamente íntimo.
— Repugnante, ele não escondeu o que sente por mim. Talvez
devesse passar algum tempo com sua tia. — Ele a puxou para o colo.
— Está tentando se ver livre de mim?
— Só quero protegê-la. — Beijou-a com fervor, tentando se libertar
das lembranças do encontro daquela tarde.
— Harold preparou seu banho, mas pensei que eu mesma poderia
ajudá-lo.
— Vai tomar banho comigo?
— Não tinha pensado nisso, mas é uma ideia tentadora.
As mãos habilidosas de Marcos começaram a desfazer os botões do
vestido.
— Para onde quer ir quando conseguirmos pegar Willian?
— Manchester, estou curiosa para conhecer onde vamos passar o
resto da vida.
— E esta casa?
— Podemos mantê-la e passar algum tempo aqui. Sobretudo até
construirmos lá.
— Está sugerindo que sejamos hóspedes de Izadora?
— Ela vai precisar de ajuda. E será adorável que Lys cresça na
companhia do ilho que eles estão esperando.
— Não por muito tempo. — Ele a jogou na cama e cobriu o corpo
dela com o seu.
— Izadora pode se acalmar com a maternidade.
— Eu não contaria com isso. — Beijou-a profundamente e se perdeu
no corpo que acreditava ser o seu lar.
***

O primeiro-ministro, Edward Baldwin, havia envelhecido alguns


anos nos últimos meses. A chegada de Izadora fora sem dúvidas a
melhor surpresa que poderia ter, mas a presença da brasileira o
obrigava a tomar decisões que muitas vezes o afastavam da promessa
que izera a sua avó.
Ele seria pai do ilho da mulher a quem amava. Recuperara as terras
de Manchester e poderia vislumbrar um futuro construindo sua própria
família, seu próprio legado. Mas nada era tão fácil quanto parecia, a inal
ele era um Baldwin. Sua linhagem parecia carregar uma maldição, com
exceção de seu pai, que largara tudo para viver o amor.
Depois de uma noite insone, resolveu que contaria a Arthur Baldwin
que Izadora estava em Londres. Também contaria a ele e à condessa
que ganhariam mais um neto, ou neta. Talvez agisse impulsivamente
para justi icar as noites fora de casa, ou talvez já estivesse farto de se
ver em uma rede de segredos e mentiras.
Não se achou no direito de contar que Ann também estava
hospedada na casa de Marcos; sorriu com ironia ao constatar que ela
era a an itriã. Ah, Lady Izabel, quanta falta você nos faz.
Sentado de frente para a lareira do gabinete de Marcos, ele o
aguardava. Ainda era cedo, decerto o farrusco demoraria a descer.
Izadora ainda dormia, Edward a vira ao chegar, mas preferira não a
acordar.
— Não imaginei que chegaria tão cedo — a voz grave de Marcos
preencheu o ambiente e em seguida a porta se fechou atrás dele.
— Estou preocupado. Como foi com Willian?
— Parece que sua avó tinha razão. Quando ele viu o lingote, o olhar
dele se transformou. Vou usá-los como isca, assim podemos rastreá-lo.
Mas isso deixaria esta casa vulnerável, e não sei se acho uma boa ideia
que Izadora e Ann continuem aqui.
— Estava pensando sobre a mesma coisa.
— Talvez devesse voltar com elas para Manchester; sei que não pode
se ausentar por tanto tempo, sobretudo...
— Fui ver a rainha ontem. — Apoiou-se sobre os joelhos. — Deixei
claro que, por motivos pessoais, não poderia continuar no cargo. Foi um
pouco precipitado, eu sei...
— Fez o que seu coração mandou, milorde.
— Em breve, ela deve convidar John para uma conversa. Quando eu
disse que ele era ilho do duque de Sutherland, pareceu bastante
satisfeita. — Passou as mãos sobre os cabelos já revoltos. — Eu falhei,
Marcos. Não consegui levar o cargo adiante, sozinho não iz avanços na
investigação.
O farrusco se levantou e colocou a mão no ombro dele.
— Uma engrenagem é formada de várias peças, cada uma com sua
habilidade e particularidade, e sem dúvidas o senhor trabalhou com
maestria. — Marcos caminhou até a gaveta e retirou uma grossa pilha
de anotações. — O levantamento que fez é brilhante e sem ele eu não
conseguiria examinar com precisão as moedas.
— Já tem algum parecer?
— Estou esperando os demais cavalheiros.
Por algum tempo, Marcos e Edward avaliaram a possibilidade de
levar as damas para Manchester. Seria uma situação delicada, ambos
sabiam que elas seriam reticentes à ideia. Quando tentavam encontrar
uma maneira de convencê-las, Harold os interrompeu informando que
os cavalheiros haviam chegado.
Marcos pediu que os encaminhassem para o escritório. O valete
titubeou e inalmente confessou que os convidados não caberiam
confortavelmente no cômodo, segundo Lady Ann.
Intrigados, seguiram até a sala e se surpreenderam ao ver que os
cavalheiros estavam na companhia das respectivas damas e eram
recebidos por Ann e Izadora, que parecia bem-disposta naquela manhã.
— Miladies, cavalheiros — Marcos os cumprimentou.
— Não seria mais apropriado que os cavalheiros fossem até o
gabinete... — Edward tentou propor.
— Não vão a lugar nenhum — Lady Viollet, que quase sempre se
mantinha discreta, surpreendeu, inclusive o marido, que abriu um
sorriso ao vê-la se impor. — O assunto em questão diz respeito a todos,
direta ou indiretamente.
— Não creio que o assunto interesse às senhoras — Edward insistiu
olhando para Izadora.
— Não estou doente, não me trate como se eu fosse quebrar a
qualquer momento — a brasileira retrucou.
— Não somos frágeis, Edward. — Marie segurou a mão de Ann e de
Izadora, que estavam ao seu lado. — Não há motivos para nos privar da
verdade. Chega de escondermos uns dos outros as informações que
temos. Estamos lutando pela mesma causa.
Marcos percebeu que Ann a olhara assustada, ainda mais pálida.
Mas, com um discreto aceno, Marie pareceu tranquilizá-la.
Marcos esperou que John aprovasse a presença das damas. Olhou
para o sócio, que deu de ombros e não escondeu seu divertimento com
a situação.
— Pois bem. — Ele inalmente se sentou e folheou suas anotações.
— Lorde Edward me entregou três lotes de moedas distintos, mas
julguei o material insu iciente e tive que procurar colecionadores para
conseguir moedas que possuíam mais de quinze anos.
— É de praxe que sejam recolhidas, devido ao desgaste — Viollet
surpreendeu todos com sua observação.
— Exatamente, Lady Viollet. Contudo é mais comum do que parece
encontrar quem prefere ter o ouro debaixo do colchão ao papel moeda.
Sobre esses, possuem marca d’água, e a rainha assina as cédulas uma a
uma. Não há nenhuma fraude no papel moeda.
— Ele não se arriscaria tanto — Sarah ponderou.
— Talvez ele tenha sido um pouco mais audacioso, milady. A moeda
inglesa é conhecida por sua credibilidade, padrão, uniformidade. Claro
que existe o desgaste natural e é nesse quesito que possivelmente
Lorde Granville constituiu sua fortuna. — Marcos retirou uma moeda
do bolso e entregou a John. — 1807, uma moeda rara, obviamente não
saiu ilesa com o passar dos anos, mas o que chamou atenção foi o
desgaste uniforme no diâmetro. Nenhuma ponta, variação.
— Onde conseguiu essa? me parece ser rara. — Lady Viollet parecia
intrigada.
John se remexeu em seu assento.
— Encontrei esta coleção de moedas escondida no piso da casa onde
viveram. — John inalmente confessou. — Seu pai tinha uma coleção
considerável e achei que poderia ser relevante para a pesquisa de
Marcos.
— Não me disse porque descon iou que meu pai tinha essas moedas
como prova, não é? Acha que Willian mandou matar meu pai? — Viollet
levou uma mão ao peito.
— Não vamos tirar conclusões precipitadas — a marquesa
inalmente interveio. — Por favor, continue, Marcos.
— Junto com a coleção que John me entregou, havia alguns
instrumentos de medição, Lady Viollet — achou melhor concluir antes
de acusar. — Até 1827 as moedas apresentam um padrão uniforme de
desgaste. Mas milhares de moedas são cunhadas e temos a amostra de
duas de cada ano, uma intacta e uma com desgaste.
— Talvez ele tivesse deixado para comparar as que vinham do banco
de Willian. — Viollet se calou quando as mãos de John pousaram sobre
as dela.
— De 1848 a 1850 as duas amostras apresentam desgastes
proporcionais. O que nos anos anteriores parecia uma perda de 5%
nesses anos triplica.
— O ano em que meu pai foi o chefe da Casa da Moeda. — Viollet
voltou a colocar a mão no peito.
— E que Allan Smith trabalhou lá — Edward completou. — Um lote
de moedas defeituosas chegou a ser devolvido.
— Em que ano Allan morreu? Em que circunstâncias? — o marquês
perguntou.
— Morte natural pelo que consta, mas o corpo escureceu
consideravelmente e o sepultamento foi feito às pressas. Ele faleceu em
1850 se não me engano. Há uma certa descon iança de que tenha
havido um julgamento dos lordes — Edward explicou.
— Nesse ano, Lorde Richard guardou três moedas — Marcos
continuou —, entre as quais só uma atenderia aos padrões ingleses.
— Como eles faziam isso? Como desgastar uma moeda? — Izadora
perguntou.
— Um processo quase cirúrgico, com ferramentas precisas; até 1848
as moedas eram desgastadas no adiamento — mostrou —, porém, nos
dois anos em que Allan esteve trabalhando na Casa da Moeda, não eram
somente nas moedas do banco de Willian, mas também na cunhagem
delas.
— Não faz sentido. — John balançou a cabeça. — Willian é
ganancioso demais para roubar pó de ouro.
— Em quarenta anos, milorde, mesmo que ele tenha desgastado
somente as moedas que circulavam no próprio banco, acredite que ele
fez uma considerável fortuna.
— E nos anos em que houve a maior perda? Quando meu pai
trabalhava ao lado de Allan. Não acredito que meu pai fosse capaz de...
— Viollet engoliu em seco.
— Não acho que seu pai tenha culpa, Lady Viollet — Edward
interrompeu. — Acredito que ele deixou pistas para denunciar. Nessa
época, Allan era responsável pela recepção da matéria prima.
— Sim, milorde está certo — Marcos completou. — Nesses anos não
houve perda na forma, e sim na qualidade do ouro.
— Allan pode ter en iado os pés pelas mãos — John divagou. —
Richard descon iou e começou a acumular provas. Willian, para se safar,
pode ter mandado executar o próprio sócio...
— E em seguida meu pai, por saber demais — Viollet completou com
a voz embargada.
— São suposições — Ann os interrompeu —, claro que o estudo de
Marcos e as pesquisas de Edward se encaixam, mas não podemos
provar nada se não descobrirmos onde esse ouro está guardado.
— No banco? — Thomas sugeriu.
— Seria óbvio demais. — David coçou o queixo.
— O que a faz pensar que Willian tem um esconderijo? — John
perguntou.
— Talvez Lady Izabel tenha deixado escapar — Ann olhou para
Marcos e em seguida abaixou os olhos.
— O que vamos fazer? — a marquesa perguntou.
— Vou dar vinte lingotes de ouro puro para Lorde Granville, como
isca. Estive com ele ontem à tarde e pareceu interessado nas peças. Vou
jantar na casa dele hoje à noite.
— Vou com você — John se ofereceu de pronto.
— Vamos todos — Thomas se pronti icou rapidamente.
— Com exceção de mim e das damas — Edward completou. — Seria
afrontosa a minha presença. Ficarei com Lady Ann e Izadora, na casa do
marquês, se ele não se incomodar.
— Claro, é mais perto — Thomas concordou rapidamente. — Podem
icar o tempo que precisarem.
— Sua casa não é segura para elas, milorde. — Marcos olhou para
Ann. — Será somente esta noite, receio que Willian imagine que aqui
haja mais ouro escondido e tenho esperanças de que mande alguém
aqui. Depois elas partem para Manchester; Edward e eu chegamos à
conclusão de que é o melhor a fazer.
— Não conte com isso. — Izadora se levantou.
— Deveria ter me contado seus planos a sós, não acha? — Ann já
estava de pé, com as mãos na cintura. — Usa um discurso moderno
a irmando que não se casaria por não acreditar que um homem possa
mandar em sua mulher. Amanhã mesmo, meu pai receberá uma carta
informando que sou viúva. E, como tal, pretendo gozar da liberdade
desse pesado fardo. Não vou para Manchester. — Ela se retirou sem se
despedir.
— Bem, acho melhor irmos. Venho buscá-lo para irmos juntos ao
jantar do meu avô. — Thomas se levantou e estendeu a mão para ajudar
Sarah.
Enquanto todos se preparavam para partir, John, em um aceno
silencioso, pediu autorização para ir atrás da irmã. O visconde
encontrou Ann sentada nas escadas. Os olhos perdidos no horizonte
não demonstravam nenhuma reação.
— Ninguém duvida da sua força. — Ele se sentou ao lado dela,
fazendo com que Ann inalmente o olhasse.
— Eu morreria por qualquer um de vocês. — Deixou escapar as
lágrimas que lhe ardiam os olhos. — Não esperava me apaixonar. Lady
Izabel sempre disse que o amor é fundamental, mas que nos tira do
estado normal. Marcos não tinha o direito...
— Ele só quer protegê-la. Ontem, quando saiu do banco, ele passou
em minha casa. Estava transtornado e fez que me sentisse um tolo. —
Ann sentiu o irmão tocando-lhe a face. — Ele me perguntou como
permiti que izessem com você o que izeram. Eu não soube responder.
— Não foi culpa sua.
— Eu sei que não, mas eu deveria ter feito o que ele está tentando
fazer. Con ie nele, Ann.
— Eu con io, John, mas não se trata de con iança. Essa história é
minha também, sabe que guardo o mesmo segredo que nossa mãe e
que não posso revelar os motivos de Willian, não cabe a mim. Mas
quero que acredite, há um esconderijo e tudo indica que ica na casa
dele. Não vou partir, quero estar aqui quando ele for tranca iado na
Torre de Londres.
— Sabe que isso não vai acontecer; se Willian realmente tem
roubado por todos esses anos, trata-se de um crime contra a Coroa, e
um escândalo desses daria força aos democratas, colocaria a monarquia
em xeque. Lorde Granville provavelmente será julgado e condenado na
calada da noite, Ann.
— Eu estarei lá. — Ela encarou o irmão com determinação.
— Não creio que isso seja possível. — Ele a abraçou. — Não precisa
ir para Manchester. Viollet e eu icaremos honrados em tê-la em nossa
casa. Pelo tempo que for necessário, você, a pequena Lys e seu gato
repugnante. — Sorriu afetuosamente.
— Esta é a minha casa, John. É o meu lugar. E não arredarei o pé
daqui. Irei jantar na casa de Sarah essa noite, para que possam ir à casa
de Willian despreocupados em relação a mim, mas não sairei daqui. E,
mesmo que Marcos decida me expulsar, ou se não me quiser mais, eu
continuarei aqui, pois foi esta casa que Lady Izabel deixou para mim.
— Edward não cobrou por ela, mesmo que Marcos insista em pagá-
la. Você não perguntou, mas ele fez um testamento e deixou metade de
tudo que tem para você. Caso se separem, ou ele morra, você icará com
tudo, inclusive com a pequena Lys.
— Ele não disse nada... — Fungou e aceitou o lenço que John
oferecia.
— Claro que não, é nobre o su iciente para agir em segredo; só
permitiu que eu soubesse para que garantisse seu futuro caso algo
acontecesse a ele.
— Não deixe que nenhum mal lhe aconteça, John.
— Tem a minha palavra. — Prestou continência. — Você me deu um
irmão. Marcos é meu sócio, tem se mostrado um grande amigo.
Ann beijou o rosto do irmão.
— Agora vá. Viollet pareceu abalada com a possibilidade de seu pai
ter sido assassinado por...
— Não brigue com Marcos.
— Não vou dar minha palavra quanto a isso. Sou uma Anson. — Ela
inalmente sorriu.
Sem sair de onde estava, Ann viu o irmão se afastar. A discussão de
Izadora e Edward podia ser ouvida de onde ela estava. Pouco tempo
depois, Marcos pisou no primeiro degrau e os olhos deles se
encontraram.
Ann se colocou de pé e sustentou o olhar.
— É melhor passar a noite em seu antigo quarto. Trate de escolher
um lugar seguro para seu tesouro. Não quero minha casa revirada
quando Lys e eu voltarmos da casa de Sarah.
— Ann... — Ele avançou os degraus e ela ergueu uma mão para detê-
lo.
— Não! Isso não muda o que temos, mas é necessário deixar claro
que não permitirei que ninguém mais decida o que farei. Você me
mostrou a liberdade, Marcos, e não vou abrir mão dela. Disse a você que
teria um amante e não seria uma.
— Somos companheiros...
— Companheiros decidem juntos.
— Lucy esconde segredos do seu pai e nem por isso deixa de ser a
companheira dele.
— Sim, inclusive conversamos recentemente, e ela disse que o amor
verdadeiro é capaz de suportar qualquer contratempo. E, se ela nunca
lhe contou a verdade, foi para protegê-lo.
— Eu também quero proteger você, meu amor. — Sem se importar,
ele subiu até icar perto dela.
— Você mesmo me disse que Willian não escondeu o desagrado em
fechar negócios com você. Sei que o desprezo dele o magoou. Acha que
não me preocupo com você? Está nessa história por minha causa e
parece não se dar conta de que ele não hesitará em lhe fazer mal. Como
acha que me sentiria se algo lhe acontecesse.
— Nada vai acontecer, eu prometo. Preciso que con ie em mim.
— Con iarei, no dia em que con iar em mim. Não sairei daqui.
— Ann. — Ele deslizou a mão pelo rosto delicado dela, ainda
molhado pelas lágrimas.
— Faça o que pedi, Marcos. Vá até o seu antigo quarto e garanta que
o nosso tesouro está seguro. — Deu-lhe um beijo casto nos lábios. — Eu
realmente gostaria de dormir sozinha hoje.
Marcos esperou que ela atingisse o topo das escadas, surpreendeu-
se ao sentir um ardor devido às lágrimas nos olhos.
— Mesmo que não me deseje mais, eu sempre amarei você, meu
pequeno anjo. — Uma lágrima dura escorreu pela face cor de ébano.
— Estaremos juntos até o resto dos nossos dias, meu amor. Mas isso
não signi ica que não iremos nos desentender. — Ela o deixou parado
na escada.
Naquela noite, ninguém desceu para jantar, nem mesmo Marcos, que
com a ajuda de Harold conseguiu alguns homens para vigiarem os
arredores da casa durante a noite. Planejaram uma escala de turnos
para que Ann estivesse segura.
Já amanhecia quando ele inalmente entrou em seu quarto, não o que
Ann havia designado para que ele passasse a noite, mas o quarto deles.
Retirou as roupas, mas não as jogou no chão, deixou-as na poltrona,
perto da lareira.
Atravessou a porta de ligação e se deitou ao lado dela.
— Vamos nos desentender várias vezes, meu amor. — Ele a trouxe
para seus braços e ela gemeu ao sentir as mãos fortes a tocando. — Mas
jamais dormiremos separados.
Capítulo XV

Diante da pintura de Sarah Granville, Marcos se lembrou das


palavras do diário. Estava tudo ali, nos olhos tristes, nos ombros
levemente caídos. Não deixou passar despercebido nenhum detalhe.
— Não é de bom-tom trazer convidados quando se é um convidado
— a voz de Willian fez com que ele observasse o piso mais uma vez.
— Lamento, milorde. Mas, quando comentei com seus netos que
viria, eles izeram questão de me acompanhar.
— Não fecho negócios na presença de minha família, cada um tem
seu código de honra.
— Acredito que já temos um acordo, milorde. Amanhã mesmo
mando entregar o que prometi.
— E quando pretende sacar a quantia?
— Não tenho pressa, talvez no inal do inverno. Seria prudente
esperar o mau tempo para a construção do orfanato.
— Onde pretende construí-lo.
— No terreno da tecelagem, pretendo empregar as mães das
crianças. Assim elas poderão icar perto dos ilhos. É um desejo da
minha senhora.
— Não sabia que era casado.
— Talvez o senhor tenha o prazer de encontrá-la. Não demorará para
que ela chegue de viagem.
Willian torceu os lábios e seguiu para a sala de jantar, sem sequer
chamar seu convidado.
Marcos percebeu que era avaliado durante toda a refeição, contudo o
banqueiro em nenhum momento lhe dirigiu a palavra. A pauta girava
em torno da campanha de John. Não passou despercebido que Willian
via vantagem naquela situação.
Um jogo de xadrez em que todos os cavalheiros à mesa deveriam
interpretar seu melhor papel. O marquês parecia desconfortável com a
situação, enquanto David tentava se manter impassível.
— Pelo menos um de meus netos vai me dar esse orgulho — o
banqueiro continuava discursando, mas Marcos percebeu um sutil
desdém na a irmação. — Thomas deveria aceitar um cargo, para
compreender que pensamentos conservadores são fundamentais para a
manutenção da monarquia.
O marquês ergueu o tronco e abriu a boca para falar, mas Marcos
percebeu que ele se conteve.
— Eu icaria honrado.
A conversa manteve o padrão durante o jantar: Marcos sendo
ignorado pelo seu an itrião; John, exaltado; David e Thomas, diminuídos
sutilmente, em pequenas observações.
Quando inalmente deixaram o covil do lobo, Thomas confessou que
aquele era o procedimento normal de Willian. O marquês parecia
inconformado por não ter percebido antes.

***

Ann estava debruçada sobre o diário da avó quando Marcos chegou a


casa. Ele retirou as roupas sozinho, queria provocá-la, ela sabia. Atiçou
a lareira exibindo o corpo admirável.
Ela já não estava com raiva, sabia que ele faria qualquer coisa para
protegê-la.
— Achei que passaria a noite na casa de Sarah.
— Izadora quis voltar e eu estava ansiosa para saber como foi o
jantar.
— Você tinha razão — ele disse ao se sentar na cama, de frente para
ela.
— Sempre tenho razão, querido. — Ela o beijou castamente.
— O quadro esconde um cômodo.
— Como sabe? Conseguiu entrar lá?
— Seria impossível na presença de Willian. Havia manchas na
moldura, de oxidação, do lado esquerdo, e o piso tinha uma marca em
forma de arco. Parece uma porta pesada, mas está perfeitamente
escondida.
— Eu sabia, agora podemos provar que...
— Vou até a casa de Willian amanhã à noite. Ele combinou de ir até o
White’s com John e Thomas.
— Você não vai sozinho.
— É a única chance que temos, Ann. Precisa con iar em mim.
— E o que vai fazer se conseguir provar que ele guarda o ouro na
própria casa? Acha que Willian não tem pessoas vigiando a casa como
você fez aqui?
O assunto que até então não havia sido discutido veio à tona.
— Foi necessário. — Deu de ombros.
— Sim, eu sei, e não vou me opor a isso.
Marcos se levantou e caminhou até a cômoda; colocou na mão de
Ann algo que ela não conseguiu ver.
— Você se parece muito com ela. — Sentou-se novamente e, com a
mão livre, acariciou-lhe o cabelo.
— Eu nunca a vi, nem mesmo numa pintura.
— Talvez, quando tudo terminar, possamos pegar o quadro e colocar
junto ao de Lady Izabel, no terceiro piso, o que acha? Podemos mandar
pintar uma tela com você e Snow. — Sorriu.
— Marcos...
— Sei que não podemos e não queremos nos casar seguindo os
protocolos ingleses. Não quero que seja obediente a mim, nem ter
qualquer poder sobre você. Quero que seja livre para partir quando
bem entender.
— Não vou a lugar algum.
Ele se ajoelhou e abriu a mão revelando um anel.
— Quero me casar com você, mas não da maneira tradicional, do
meu jeito. — Ele sorriu. — Do nosso jeito. Não quero que ache que sou
só seu amante. Quero ser seu por inteiro, eu não saberia mais viver sem
você, Ann.
Ela se ajoelhou ao lado dele.
— E o que seria do nosso jeito?
— Sem contratos, sem hierarquia... Por favor, diga sim.
Ela o beijou com fervor e, sem a menor cerimônia, jogou-se nos
braços de Marcos, fazendo com que os dois caíssem no tapete que dias
antes fora agraciado com um delicioso jantar.
— Eu amo você, Marcos Senior, e nada me faria mais feliz.
— Existem várias outras coisas que a deixariam mais feliz, querida.
E ele ofereceu a ela, naquela noite, alguns bene ícios de passarem o
resto da vida juntos.
***

Quando Marcos acordou, na manhã seguinte, não encontrou Ann.


Havia um bilhete, deixado por Harold, tranquilizando-o e informando
que este levara Lady Ann para ver a tia.
Não entendeu por que ela havia saído tão cedo, sobretudo porque
não o havia informado sobre seus planos de ir visitar a duquesa.
Sabia que Ann estava segura, algo lhe dizia isso. Mas havia um
pressentimento que Marcos não conseguia identi icar, como se naquele
dia fosse acontecer algo que ajudaria a colocar um im em toda aquela
história.
Enquanto procurava a chave da escrivaninha para pegar a arma, Ann
andava de um lado para o outro, na sala da casa de John, enquanto
esperava o irmão.
— Ann, o que está fazendo aqui a esta hora? — O visconde nem
mesmo tivera tempo de se vestir adequadamente.
— Em seu gabinete, John.
Sem delongas os dois seguiram juntos. Quando o visconde fechou a
porta, ela descarregou:
— Sarah Granville deixou um diário. Mas não posso lhe entregar. Ela
conta dos crimes de Willian e sugere um esconderijo; imaginei que
fosse o quadro que nossa irmã disse ter visto na casa dele. Ontem
Marcos observou marcas no assoalho e uma mancha na moldura. Sei
que é lá e Marcos também sabe. Ele quer ir essa noite à casa de Willian,
sozinho, mas você não pode permitir. Se alguma coisa acontecer com
ele... — Pegou as mãos do irmão em súplica.
— Calma, Ann. Preciso que me explique tudo com calma. Devagar.
Ann repetiu buscando explicar o máximo que podia. John esfregava
os olhos tentando absorver a avalanche de informações.
— Precisamos pensar na melhor maneira, mas tem a minha palavra
de que Marcos não irá lá sozinho. Comeu alguma coisa antes de sair?
— Não, eu mal preguei os olhos.
— Então vamos comer e a levo em casa para conversar com Marcos.
Grata, Ann conseguiu desfrutar de uma farta refeição na companhia
do irmão, Viollet e Flora, que estava a cada dia mais formosa. Passou
algum tempo ouvindo sobre as propostas de casamento que a
debutante recebera, mas John não escondia o desconforto.
No im da manhã, Ann se despediu de Viollet. Já estava pronta para
partir quando John recebeu duas visitas, e dessa vez Ann não teve como
se esconder a tempo.
— Ann, querida. — O duque abraçou a ilha sem esconder a emoção.
— Recebi sua carta logo de manhã, como está se sentindo? Lamento
por Anthony e pela criança. — Ele se afastou o su iciente para olhá-la.
— Essas cartas demoram demais para chegar.
Ann engoliu em seco e abaixou os olhos. Lorde Baldwin, que chegara
com Augustus, a cumprimentou com o mesmo carinho.
— Deus ouviu as minhas preces, Izadora e Ann de volta. — Arthur
levantou as mãos ao céu.
— Pai, Arthur, precisamos conversar — John os interrompeu.
— Meu ilho, a rainha me escreveu. Convidou-nos para um jantar na
próxima semana, está ansiosa para conhecê-lo e ouvir... — o duque,
ainda com a ilha nos braços, não escondia a felicidade.
Ann permanecia atônita, sem saber como reagir. Viollet veio
rapidamente em seu socorro e a ajudou a se sentar.
— No meu gabinete, temos assuntos mais urgentes a tratar — com
um tom irme, John os convidou.
Ann se levantou rapidamente e John fez um sinal para detê-la.
— Não, Ann, acho melhor eu conversar com os dois a sós. Espere
aqui, que a levo para casa. Viollet, por favor, mande chamar minha mãe.
O duque tentou argumentar, mas seguiu para o escritório, atrás do
ilho, acompanhado de Arthur.
Ann se encolheu no sofá. Não contava com a possibilidade de
reencontrar o pai tão cedo. Nem mesmo tivera a oportunidade de dizer
o quanto sentira a falta dele...
Um estrondoso barulho a fez se encolher ainda mais. A voz alterada
do duque podia ser ouvida. A conversa se estendeu por um longo
tempo. Ann nem mesmo percebeu a presença de Viollet ao seu lado, só
voltou a si quando sentiu o abraço da mãe.
— Vai icar tudo bem, querida. Vamos descobrir o tamanho do
estrago, não há nada que não tenha solução.
O duque entrou na sala a passos duros, mas ao ver Lucy se deteve.
— John não está pleno de suas faculdades mentais.
— Augustus — Lorde Baldwin tentou conter o amigo.
— Está delirando, inventou um monte de histórias descabidas. Não
tem condição de assumir um cargo tão importante. Imagine só, Ann
forjando o próprio casamento...
— É verdade, pai. — Ela se colocou de pé, os tremores já não a
continham.
— Imagino que John tenha lhe contado sobre os crimes de Willian —
Lucy não recuou diante da fúria do duque. — Que ele tentou matar a
própria ilha e que manteve Ann na cama por quinze anos, fazendo com
que todos nós acreditássemos que ela estava doente.
— Como sabe que foi ele, mãe? — Ann sentia-se confusa. — Eu achei
que fosse Joana... Não tinha certeza.
— Willian veio pessoalmente me procurar quando trocamos de
médico. — Ela olhou para o duque, que permaneceu parado, estático. —
Precisei ser convincente, demonstrar que Ann não sabia de nada e que
eu também não sabia. O que era uma mentira, porque foi para mim que
Ann correu quando viu Joana tentando sufocar a duquesa.
— Você não me disse nada!
— E não me arrependo disso, Augustus. Ele deixou uma ameaça
subentendida e eu faria tudo de novo para proteger você e os nossos
ilhos.
— Augustus, por você eu nunca quis comprar essa briga, meu
querido amigo. Sei o quanto respeita Willian, mas ele não agiu
corretamente em relação aos títulos que assinei. — Arthur abaixou a
cabeça, envergonhado por ter escondido isso do amigo. — Vamos ver o
relatório que John mencionou. Não podemos descartar a hipótese...
— Enganado, Arthur, pela minha própria família. Meus ilhos, minha
mulher, todos agindo pelas minhas costas.
— Por esse ângulo, minha mãe e Edward também agiram pelas
minhas costas, mas nem por isso vou fechar os olhos.
— Sei que não me acha capaz e pleno das minhas faculdades mentais
— o tom de John era ainda mais forte que o do pai. — Mas faça jus ao
título que carrega, vossa graça, avalie as provas para só assim tirar suas
conclusões, antes de acusar ou defender quem quer que seja.
O duque saiu andando a passos duros. Lucy tomou a mão de Ann e
juntas entraram na carruagem dos Ansons. Logo em seguida, John saiu
na companhia de Lorde Baldwin.
Quando o duque viu a mulher e a ilha entrarem na carruagem, ele
vociferou.
— Leve Ann para casa.
— Ann tem sua própria casa, Augustus. — Ela bateu no teto da
carruagem para que o cocheiro colocasse o veículo em movimento. —
Ann não vive mais debaixo do nosso teto.
— Não tem vergonha de me dizer isso assim, Lucy?
— Não tenho. Fomos negligentes com nossa ilha. Escolheu criá-la
mesmo tendo certeza de que não era sua e eu a assumi como minha,
mas nem por isso protegemos Ann como deveríamos. Ela foi mantida
em uma cama bem debaixo do nosso nariz.
— Você deveria ter me contado quando descobriu.
— E o quê? Você desistiria da construção do estaleiro? Do casamento
de Sarah com Thomas, que era a condição para que Willian inanciasse
seu sonho? Se eu izesse um alarde, talvez nenhum de nós estivesse
aqui agora. Sobretudo você.
— O que quer dizer com isso?
— Pai. Minha mãe é tão vítima quanto todos nós. Não tem o direito
de culpá-la. Eu entendo que Willian o salvou da completa miséria, sei
que há uma dívida de gratidão. Mas ele não é quem aparenta ser. — Foi
impossível conter os ânimos. — Olhe para ela, pode ser a mulher que
você ama, a mãe dos seus ilhos, mas era somente uma governanta.
Entende a posição de fragilidade em que ela sempre se encontrou.
Tendo que ser escondida a cada visita que não suportaria sentar-se à
mesa com um criado...
— Eu não me importo, querida. — As mãos de Lucy tocaram as da
ilha, trocaram um olhar cúmplice.
— Claro que não se importa, sempre foi nobre o su iciente para
colocar os desejos e os interesses do meu pai em primeiro lugar. Sei que
fez o melhor por nós, eu não estaria aqui se não fosse você, Lady
Izabel...
As duas se abraçaram por um longo tempo.
— Desculpem. — O duque abaixou a cabeça. — Eu achei que estava
no controle de tudo... Por quê?
— Querido, entendo como está se sentindo. Escute o que Marcos...
— É verdade, Ann? Você e Marcos...
— Sim, papai, não planejamos nada, aconteceu e eu o amo...
— Isso colocaria a candidatura de John em risco.
Lucy bufou e revirou os olhos.
— Marcos jamais prejudicaria John, pai. Não me importo de viver
como você e Lucy...
Lucy observou as mãos cerradas do duque.
— O que há, Augustus? Sua ilha é boa demais para viver como vivi?
— Fazem parecer que estou errado, mas foram vocês que me
esconderam a verdade, todos vocês. Como querem que eu me sinta? E
não me culpe pela situação em que vivemos, você é que reluta em se
casar comigo.
— Não sou a duquesa e nunca serei. Eu me apaixonei por Augustus
Anson, foi com ele que formei uma família, e não com o duque de
Sutherland. Não quero usar uma tiara, frequentar jantares tediosos ou
des ilar no Hyde Park para ostentar um vestido da última moda. Quero
ver meus netos encherem a casa, poder preparar uma boa refeição,
ouvir meu companheiro contar sobre seu novo negócio e receber o meu
genro negro, os amigos que me aceitam como eu sou de verdade: uma
camponesa escocesa, que veio para Londres para trabalhar com a
duquesa de Sutherland.
Augustus passou as mãos pelos cabelos o resto da viagem. O trajeto
até Grove House Springs foi feito no mais profundo e desconfortante
silêncio.

***

A carruagem mal havia parado e Ann corria até a porta de casa.


Sentiu-se sufocada ao longo do trajeto. Nunca havia presenciado um
momento de tensão entre Lucy e Augustus. A forma como ela se
impusera, sem abaixar a cabeça, era inspiradora, mas ao mesmo tempo
trazia receio de que eles jamais voltassem a se entender.
Quando ela entrou, Marcos já estava de pé, e, para sua surpresa,
completamente vestido. O semblante tenso do farrusco relaxou ao vê-la.
Sem se importar com nada, Ann o abraçou buscando naqueles braços o
conforto pelo qual tanto ansiava.
O reencontro com seu pai não saíra como planejado, e ela não fazia
ideia de como as coisas aconteceriam dali para a frente.
— O que houve, querida? Fui atrás de você quando Harold voltou
sozinho. Onde esteve?
— Fui levar o diário para minha tia, depois fui até a casa de John e...
Marcos a beijou descontando naquela intimidade toda a tensão das
últimas horas. Quando inalmente se afastou e ergueu os olhos,
paralisou. Diante dele estavam o duque de Sutherland e Lady Lucy.
— Vossa graça. — Desvencilhou-se de Ann e fez uma reverência
envergonhada. — Lady Lucy.
— Por favor, vamos nos sentar — Ann os convidou com a voz
trêmula.
Lucy se aproximou dos dois e os abraçou.
— Não precisam se envergonhar pelos sentimentos que têm um pelo
outro.
O duque já estava acomodado em uma poltrona, os olhos
descon iados avaliavam cada detalhe do cômodo.
— Uma bela casa — limitou-se a dizer.
— Lady Izabel cuidou de todos os detalhes, pai.
— John mencionou um diário. Gostaria de vê-lo — o duque foi direto.
Ann olhou para Lucy e em seguida encontrou os olhos confusos de
Marcos.
— Não está comigo.
— Está com Thomas? David? Mande chamá-los. John e Arthur estão
a caminho.
Apesar do tom imperativo e do visível desagrado de Augustus,
Marcos achou que seria certo explicar sua situação ao duque. Não sabia
o que lhe haviam dito, mas seria negligente se não deixasse claras suas
intenções.
— Vossa graça, não sei o que o senhor sabe...
— Imagino que tudo — retrucou rispidamente.
— Quando vim para Londres, não imaginei que encontraria Izadora
em tal situação. Vim para esta casa como hóspede e fui gentilmente
recebido por Lady Ann.
— Comprou a casa, fez um testamento deixando toda a sua fortuna
para minha ilha...
— Ann é a pessoa mais doce e ácida que já conheci, milorde. É capaz
de demonstrar sua fraqueza, mas sua força deixa qualquer cavalheiro
envergonhado. Eu me apaixonei, talvez no primeiro momento em que a
vi, mas tinha convicção de que sua ilha não era mulher para mim.
— Eu o seduzi — Ann o interrompeu, num ímpeto de coragem. —
Não se pode negar o sangue que se carrega, não é mesmo? Seduzi
Marcos, pois encontrei nele algo que nunca achei que fosse possível, e,
mesmo que o senhor se coloque contra, não abrirei mão de estar ao
lado dele. Sou capaz de fugir...
— Ann... — Marcos tentou contê-la.
Lucy, do outro lado da sala, com as mãos nos lábios tentava conter o
divertimento diante da ousadia da ilha.
— Sei que está rindo pelas minhas costas, Lucy. De initivamente, Ann
é sua ilha.
— Talvez por ter coragem de enfrentá-lo, vossa graça, mas permita-
me ponderar que a falta de papas na língua e a determinação em
seduzir é uma característica dos Ansons.
O duque se virou para olhá-la e inalmente sorriu. Ann e Marcos
viram a conexão entre eles. Uma troca silenciosa, repleta de
cumplicidade.
— Ainda estou furioso.
— Não esperava que fosse passar tão cedo. — Lucy deu alguns
passos, diminuindo a distância entre eles. — Marcos querido, não me
julgue mal, mas suas intenções com Ann no momento são irrelevantes.
Nada do que Augustus diga irá impedi-los de icar juntos. Portanto
acredito que vocês têm assuntos mais urgentes a tratar.
— O que John achou disso tudo? — o duque ignorou a provocação da
amante e ixou os olhos em Marcos. — Eu deveria providenciar a
anulação do casamento de Ann e forçar a união de vocês. Não carrego
nenhum preconceito, Marcos. Mas é um cavalheiro inteligente e sabe
que essa união colocaria em risco a campanha de John para primeiro-
ministro.
— Muito me espanta o senhor se preocupar com isso — John entrou
na sala na companhia de Lorde Baldwin —, já que não me julga apto
para o cargo. Está enganado sobre Marcos, ele não é só um cavalheiro
inteligente, mas é leal e tem se mostrado um grande amigo. Não
pretende formalizar um acordo de casamento com Ann, não só para não
comprometer minha campanha, mas também para evitar que toda
família se envolva em um tolo escândalo social. Eu abriria mão da
minha carreira por Ann ou por qualquer um de vocês. Aprendi desde
novo que a única coisa que importa é a família.
Lucy, visivelmente emocionada, aceitou o lenço que Lorde Baldwin
lhe oferecia.
Augustus engoliu as palavras do ilho, era di ícil pensar com
coerência diante da avalanche de informações, mas sabia que havia
muitas peças que não se encaixavam naquele quebra-cabeça.
Logo que os convidados chegaram, Felicity, que buscava o desjejum
de Izadora, correu para avisá-la sobre a pequena confusão na sala.
Ainda de penhoar, a estrangeira desceu na companhia de Edward.
Lorde Baldwin sabia que a brasileira estava em Londres, Edward lhe
contara havia alguns dias, mas ver a ilha de seu grande amigo
carregando um neto dele no ventre fez com que se comovesse, e ele não
conteve a alegria.
Augustus observava a pequena comoção, ainda sentado. Um cálice de
um licor escuro lhe foi oferecido. Marcos deu um sorriso
condescendente.
Edward olhava para o duque, um misto de vergonha e confusão.
Quando todos se acomodaram, Augustus inalmente voltou a si.
— Há algum lugar onde possamos conversar com privacidade? —
perguntou colocando-se de pé.
— Papai, Marcos não me esconde nada e....
— Não, Ann! Eu ainda sou o chefe desta família. Izadora está grávida,
não é um assunto confortável. E você e sua mãe icarão para fazer
companhia a ela.
A brasileira pensou em retrucar, mas achou melhor se calar. Já Ann,
sem dar qualquer explicação, esperou que os cavalheiros se retirassem
e tomou o acesso dos criados para se esconder atrás das cortinas e
ouvir a reunião.
Quando se sentou, o duque viu um pequeno movimento na cortina.
Logo em seguida, Snow, o gato de Ann, se revelou, mostrando os dentes.
— Eu deveria ter imaginado — resmungou.
O felino se acomodou no colo de Marcos logo que este entregou o
relatório na mão do duque.
Quase duas horas de explicações e questionamentos. Era uma
avaliação impecável, o duque não negaria. Aos poucos conseguia
enxergar certa lógica nos fatos apresentados. A documentação era
factível.
Arthur Baldwin completava as lacunas dos anos relacionados ao
desfalque das moedas.
— Richard me procurou... — o duque inalmente se lembrou da
conversa que tivera com o amigo antes de sua morte. — Eu não entendi
muito bem, duvidei de sua sanidade devido à recente perda da esposa.
Ele falava coisas desconexas, eu devia ter lhe dado credibilidade. —
Abaixou a cabeça, debruçando-se sobre os joelhos. — Depois, quando
soube que ele havia entregado Viollet a Phillip, não pude fazer nada.
— Fico feliz por ter consciência de que fomos todos negligentes —
John não escondeu o rancor.
— Vou invadir a casa de Willian essa noite — Marcos os
interrompeu. — É o mais prudente; para qualquer um de vocês seria
arriscado demais. Posso veri icar o que há realmente atrás daquele
quadro e, se houver ...
— Não permitirei que vá sozinho — John foi incisivo. — Fiz uma
promessa a Ann e não deixarei você correr o risco por nós. —
Impassível, virou-se para o pai. — Vossa graça, precisamos de sua
in luência no palácio, para informar de nossas descon ianças. Edward
tem uma relação de desafetos de Willian em Lordes, homens in luentes,
um magistrado; seria prudente tê-los como testemunhas.
— E se não encontrarmos nada? — Marcos perguntou receoso.
— São aliados de minha con iança — Edward garantiu — e que se
esqueceriam providencialmente desse incidente.
— John vem comigo até o palácio. Edward e Arthur se encarregam de
conversar com esses aliados. Quero ver a lista. — O duque cruzou as
mãos no colo.
— Não vou ao palácio. Meu primeiro contato com sua majestade não
acontecerá sob essas condições. Como futuro primeiro-ministro, tenho
uma imagem a zelar. Se não conseguirmos nada que incrimine Willian,
como Marcos supôs, isso colocará em risco meus anseios políticos.
— Está certo, meu ilho — o duque concordou. — Podemos nos
encontrar novamente amanhã, em minha casa, no im do dia.
— Sugiro que aqui seja mais prudente, milorde — Marcos opinou. —
Ann icaria sentida em não poder me acompanhar e não é seguro que
saibam que ela está em Londres.
O duque coçou o queixo, seu intuito era levar a ilha para casa ainda
naquela noite. Mas estava claro que Ann não sairia daquela casa.
Quando inalmente deixaram o gabinete, os cavalheiros encontraram
na sala Viollet, Marie, David, Thomas, Lady Baldwin, Izadora e Lucy.
Ann e Sarah chegaram alguns minutos depois que todos já haviam se
sentado. O duque sorriu para as ilhas, orgulhoso.
Conhecia suas meninas o su iciente para imaginar que estavam
escondidas, atrás das cortinas, ouvindo a conversa. Naquele momento,
a raiva por ter sido enganado deu lugar a um sentimento de alegria.
Criara seus ilhos para honrar o nome que carregavam, estavam todos
juntos e felizes.
— Ann, querida. Sua mãe e eu icaríamos honrados em icarmos para
o jantar.
— Claro, papai, será uma honra para Marcos e para mim termos
todos vocês à mesa.
Enquanto conversavam sobre a gravidez de Izadora e outros
assuntos, o duque, que se sentara propositalmente ao lado de Marcos,
abaixou o tom de voz.
— Fez um trabalho brilhante com a análise das moedas.
— Fico lisonjeado com o elogio, vossa graça.
— Vou levá-lo para sua alteza real. — Ele bebericou de seu cálice. —
Estou à procura de um novo inanciador para o estaleiro. Se Lorde
Granville realmente cometeu todos esses crimes, terei que devolver
uma soma considerável à Coroa.
— Será um prazer fazer negócios com o senhor, vossa graça.
— Marcos, agora não faça desfeita com seu sogro e me ofereça uma
das preciosas aguardentes da coleção de Joseph.
Capítulo XVI

— Lady Ann, não sei se é uma boa ideia deixar que saia sozinha
novamente — Harold, o valete de Marcos, manejava a arma receoso.
— Não estarei sozinha, você vai comigo.
— Precisa mesmo desta arma?
— Precaução, Harold. Como estou?
Ann deu uma volta. Vestia calças e um conjunto completo de trajes
masculinos. A cartola por cima dos cabelos presos deixava seu disfarce
ainda mais convincente.
— Um perfeito cavalheiro, milorde. — Tomando cuidado para não a
tocar, o valete ajeitou a gravata. — O que pretende dizer às damas lá
embaixo?
— A verdade.
— Ficarei com a arma, milady. Só a entregarei em último caso.
Ann beijou o rosto do criado.
— Obrigada, Harold. Podemos descer?
Na agitada sala de Grove House Springs, as damas perfeitas estavam
particularmente agitadas. Ann chegou no exato momento em que Sarah,
a marquesa de Bristol, repassava o que aconteceria naquela noite. Sem
entrar na sala, Ann deixou a irmã discursar.
— David e Thomas se encontrarão com Willian no White’s. Meu pai
vai fazer uma visita ao banqueiro e vai insistir em aguardá-lo. Enquanto
isso, Marcos e John vão aproveitar a distração dos criados e tentar ver
se há algo atrás do quadro.
— E se houver? — Viollet perguntou, receosa.
— Edward e Lorde Baldwin estarão a postos com os demais lordes,
para pegá-lo em lagrante. Ouvi dizer que, se for julgado culpado pelos
lordes, Willian terá a punição ainda esta noite.
Ann entrou na sala, deixando as damas boquiabertas.
— Não esperavam que eu icasse aqui, não é?
— Onde conseguiu essas roupas? — Sarah não escondia a surpresa.
— Desculpe, Izadora, mas precisamos pegar um conjunto de Edward
e adaptar. Harold, o valete de Marcos, me ajudou.
— Quero uma dessas. — Viollet já estava de pé. — Vou com você.
— Vamos todas. — Izadora largou o cálice sobre a mesa.
— Não deveria estar bebendo — Marie ponderou —, e não acho que
deva ir.
— Não me diga o que fazer. Vamos precisar de suas habilidades para
ajudar Harold a nos vestir. Vamos todas para o meu quarto. Acredito
que haja roupas de Edward para todas.
Pela próxima hora, Harold e Marie se concentraram em transformar
as damas em verdadeiros cavalheiros. Quando inalmente conseguiu
um minuto a sós com Marie, Ann perguntou o que a a ligia:
— E minha mãe? Achei que viria para cá.
— Ela e minha mãe foram ver a duquesa. Acredito que a levarão para
Ansons House.
Ann sentiu um breve tremor tomar seu corpo, mas se conteve. Não
podia se dar ao luxo de fraquejar, aquela seria uma noite decisiva e não
havia espaço para medo, angústia ou receios.

***
O plano corria como esperado. De onde estavam, John e Marcos
podiam ouvir o vai e vem de criados atendendo às peculiares exigências
do duque, que aguardava o sogro. Mas, somente quando Augustus pediu
que servissem a refeição improvisada na sala de jantar, foi que os dois
conseguiram se aproximar do quadro.
Marcos tinha certeza de que podia render qualquer um dos criados
com um simples golpe, mas ainda assim seu corpo era tomado pela
adrenalina. Parecia que todos os seus sentidos estavam aguçados,
precisava icar atento ao menor dos sinais.
John puxou a moldura, fazendo com que a pesada porta rangesse
sobre o assoalho. Rezava para que o barulho de pratos e copos do
duque fosse o su iciente para abafar o som que faziam.
Um cômodo um pouco menor que o próprio quarto, Marcos tentou
comparar. Prateleiras do piso ao teto repletas de lingotes de ouro. John
tentou avançar dentro do cômodo, mas Marcos o impediu.
— Não, John, precisamos sair e sinalizar para Edward.
O visconde suspirou e se virou para Marcos, que já estava perto da
janela pela qual entraram. Não conseguiu resistir ao impulso de avaliar
melhor o cômodo. A excitação de segundos antes deu lugar a uma fúria
insana.
Ao se virar para sair, percebeu que não estava sozinho. Paralisou
sentindo o sangue se esvair.
Willian segurava um punhal e tinha um sorriso debochado nos
lábios.
— Vejo que tenho visitas para um brandy.
Sem dizer nenhuma palavra, John deu passos cautelosos em direção
à saída, mas já estava encurralado. Willian o encostou em uma das
prateleiras. O visconde esperava que o velho izesse qualquer
movimento em falso, uma oportunidade para se esquivar.
Tentou golpeá-lo, mas Willian foi mais rápido, abrindo um talho na
mão do visconde. Num impulso, este pensou em acertar o banqueiro
novamente, mas Marcos já havia avançado; num movimento ágil,
imobilizou o conde segurando-o pelos braços, fazendo com que o
punhal caísse no chão.
Marcos usou o próprio lenço para amarrar Lorde Granville. Em
seguida retirou o lenço de John e improvisou um curativo. Levaram
Willian para a sala onde Augustus já havia ordenado que os criados se
retirassem.
— Belo capataz, vossa graça. — O banqueiro sorriu com ironia.
— Sou um homem de muitas habilidades. — Marcos o olhou com
desprezo. — Posso ser negro, selvagem, desprezível, mas não sou um
criminoso.
Com as mãos amarradas, Willian cuspiu no rosto do farrusco, que se
manteve impassível. Movido pela fúria, John golpeou o banqueiro.
— Não seja covarde, John. — Marcos colocou a mão no ombro do
amigo.
— Ficaria tudo para você e sua família, Augustus.
— Esse dinheiro pertence à Coroa, Willian.
— Eu me afeiçoei a você. Você me lembra a minha Sarah. — O
banqueiro olhou para baixo. — Passei muitos anos acreditando que
você fosse ilho dela, mas você e Julliet se casaram e eu vi John nascer...
— Não sou um maldito Granville! Sou John Turner Anson. — Pegou-
o pelo colarinho, e o duque o impediu.
— Julliet nunca gerou uma criança. — Com os cabelos desfeitos, o
duque confessou, ainda segurando o ilho. — Lucy pariu John, os lençóis
foram trocados e a criança que carregou naquela noite foi gerada na
barriga dela.
Willian praguejou. John tentou atacá-lo novamente, mas o duque
retirou o ilho do cômodo. Marcos chegou bem perto e ofereceu um
sorriso irônico.
— É isso, Willian Granville, foi movido pela dúvida e pela culpa
durante todos esses anos. Sem se esquecer da ganância, é claro.
Morrerá sem saber se o duque de Sutherland é ou não ilho da sua
Sarah. Mas, para provar que não sou como você, vou lhe dar um
presente. Julliet é de fato uma bastarda.
Marcos saiu deixando a porta aberta, os gritos de Willian podiam ser
ouvidos do lado de fora. Um a um, os membros do júri daquela noite
entravam na casa do maior banqueiro da Inglaterra.
O magistrado foi o primeiro a entrar no cômodo onde Willian
guardava o ouro. Com um simples aceno de cabeça, informou seu
veredito ao duque. Logo depois se retirou e os outros sete entraram.
Augustus foi chamado do lado de fora. Ele deixou o julgamento
enquanto a casa mergulhava no mais profundo silêncio. Entrou na
carruagem parada do outro lado da via.
— Vossa alteza sereníssima.
— E então?
— O ouro voltará ainda hoje para a Casa da Moeda, achei mais
apropriado do que os cofres reais.
— Sábia decisão.
— Lorde D., o magistrado, vai acompanhar a devolução, vossa alteza.
Mas eu gostaria de permissão...
— Não tenho esse poder, vossa graça. Mas garanto que a morte de
Willian não será investigada.
O duque de Sutherland fez uma reverência e voltou para a casa na
qual um homem era condenado, e um cofre, esvaziado.
Era na calada da noite que casos como aquele eram julgados. No
completo silêncio e em um pacto de segredos. Não era o primeiro
julgamento de que Augustus participava. Fez questão de ir na mesma
carruagem que Willian até o lugar onde a pena seria cumprida.
Willian não seria o único a se despedir da vida naquela noite. Havia
dois lordes que se bene iciavam com as transações obscuras do
banqueiro. Edward izera um trabalho muito bom, o duque pensou com
orgulho, um autêntico Baldwin.
No campo aberto, cortado pela gelidez da noite, uma grande fogueira
foi acesa.
Envergonhado, Thomas se aproximou do avô. Willian seria para
sempre o maior criminoso do Reino Unido.
— As coisas poderiam terminar de modo diferente se você...
— Fico feliz em ser quem sou. Em não ter sido o que desejavam que
fosse. Mas sou grato ao senhor por ter me dado o meu bem mais
valioso.
— Não seja ingrato, Thomas, iz muito por você; era para você ter
sido espancado até a morte, pelo seu pai, se não fosse por mim. Será o
conde de Snowdon agora. — Willian sorriu com ironia.
— Eu preferiria morrer a viver essa vergonha. Seu nome não vale
mais nada.
— Para meia dúzia de lordes estúpidos.
— E para a rainha. Adeus, Lorde Granville, espero que Deus o receba
com compaixão.
Escondidas na escuridão, as damas, na companhia de Harold,
observavam a estranha movimentação. Haviam acompanhado tudo, de
dentro da carruagem; fora um milagre que coubessem todas, talvez
graças à falta das volumosas saias.
Sarah observava de longe Thomas se afastar do avô, com a cartola na
mão. Ele não olhou para trás. A marquesa relanceou Ann e deixou as
damas. Conseguiu chegar a tempo de ver o marido entrar na
carruagem. Com trajes masculinos, interpelou o cocheiro e subiu no
veículo.
Ann se virou para Marie.
— Não vi David nem Edward. Por favor, volte para casa com Izadora.
Está frio demais para ela e o bebê. Não é fácil para Thomas e não é para
David também. — Virou-se para o valete de Marcos. — Harold, leve-as.
— Não posso deixá-la sozinha, milady. Se formos com a carruagem,
como a senhora e Lady Viollet voltarão para casa?
— Veja quantas carruagens há aqui, Harold. Acha que eu e Viollet
não conseguiremos alguém para nos deixar em casa? Aproveite que
Izadora não reclamou.
— Está realmente frio — a brasileira se limitou a dizer, mas estava
abalada com a sordidez da cena que se montava.
Harold titubeou, mas assentiu, saiu arrependido por ter deixado a
arma nas mãos de Lady Ann.
— Não sei o que está pensando, mas não faça nada de que possa se
arrepender, Ann — a voz oscilante de Viollet fez com que Ann a olhasse.
— Talvez devesse ir com Harold.
— Não vou a lugar algum. O que pretende fazer vai trazer alívio, mas
a culpa vem na mesma medida. O sofrimento maior, Ann, vem quando o
alívio supera a culpa. Isso nos faz sentir iguais a eles.
Ann olhou para trás e viu que Harold havia voltado; ou, talvez,
sequer houvesse saído. O valete estendeu a mão e ela entregou-lhe a
arma. Sentiu a mão de Viollet se entrelaçar à sua. Saindo de trás da
árvore, as duas caminharam, juntas, para onde John e Marcos
contemplavam a grande fogueira.
Frente a frente, Arthur Baldwin e Willian Granville trocaram olhares
mortais.
— Precisa decidir como vai ser, Augustus.
— Eu me recuso a tomar essa decisão. — O duque cruzou os braços e
se virou ao ver dois cavalheiros se aproximando.
Não os reconheceu e agradeceu aos céus, imaginando que eram
portadores de ordens superiores. Não precisaria decidir o im de
Willian.
— Queime-o vivo.
Augustus piscou confuso, não reconhecendo o cavalheiro de voz tão
peculiar. Ele tinha a voz...
— Por favor, pai — Ann retirou a cartola causando espanto nos
presentes.
Em seguida Viollet também se revelou, e, mesmo a certa distância,
John, que observava o movimento, a reconheceu.
— Eu não estava errado, estava mesmo com o diário esse tempo
todo, não é? — Willian travou o maxilar quando foi pego por dois
homens. — Não é diferente de mim, bastarda inútil, matou a própria
mãe.
O banqueiro parecia fora de si. Debatia-se enquanto era arrastado
para a morte.
Ann viu o momento exato em que ele foi jogado no fogo. Um urro
estridente e uma cena de que se lembraria por muitas e muitas noites.
O duque abraçou a ilha.
John envolveu Viollet em seus braços e juntos caminharam
abraçados para a carruagem.
Marcos a olhava pedindo explicações.
— Eu precisava vir. — Com os olhos marejados, ela o encarou.
O duque, enquanto a conduzia até a carruagem, teve vontade de
questionar a ilha sobre a acusação referente à morte de Joana, mas
achou que o momento não era oportuno.
— Onde está esse diário, Ann?
— Na sua casa. Irá encontrá-lo quando chegar.
Ann deixou que o pai fosse sozinho na carruagem, não suportaria
uma enxurrada de perguntas. John e Viollet partiram com Lorde
Baldwin. Marcos conseguiu convencê-los a não irem até a casa do
duque.
— A duquesa está em Ansons House? — Marcos perguntou
enquanto a envolvia em uma manta, dentro da carruagem.
— Sim, está esperando por ele.
— Quer ir para lá?
— Não acho que deva. Quero ir para casa.
Marcos concordou e bateu no teto da carruagem para que seguissem
outro caminho.
— Matou mesmo sua mãe, Ann? — ele perguntou baixinho, ela
envolvida em seus braços.
— Esse segredo eu jamais vou revelar.

***

Com um copo de conhaque na mão, o duque de Sutherland se sentou


em sua poltrona favorita. Lucy não viera recebê-lo. Já deveria estar no
quarto, imaginou.
Era um cavalheiro que sabia reconhecer os próprios erros. Havia
sido injusto com ela e com John.
Jamais se esqueceria daquela noite, sobretudo das palavras de
Willian. A imagem de Lady Izabel se fez presente. Ela fora sua mãe.
Viveram em Lilleshall durante longos anos e ela ajudara seu pai a não se
afundar na mais completa ruína.
Sarah Granville... Lembrou-se da dama dos olhos tristes e que tinha
uma doçura incomum. Sempre atenciosa e carinhosa, ela não seria sua
mãe. Disposto a dar um im às dúvidas, Augustus se levantou e foi até o
gabinete. Imaginou que o diário pudesse estar lá.
Logo na porta, avistou a silhueta de uma dama. Em estado de alerta,
ele se aproximou cauteloso. Sentiu o coração falhar quando ela se virou.
— Julliet...
— Augustus. — Alheia ao choque do cavalheiro, ela correu para
abraçá-lo.
O duque demorou algum tempo para retribuir o carinho e se dar
conta de que ela estava ali, viva.
— Sinto muito pelo seu pai, hoje... — foi tudo que ele conseguiu
dizer.
— Imagino o que tenha acontecido esta noite. — Ela recuou para
olhá-lo. — Não lamento pelo que aconteceu com Willian. Ele não era
meu pai.
Augustus sentiu as pernas falharem. Buscou a poltrona mais
próxima.
— Onde está Lucy?
— Minha querida amiga achou que seria melhor que
conversássemos a sós. Ela não tem culpa de nada.
— Você forjou a própria morte...
— Foi necessário, só assim poderíamos viver em paz.
— Willian disse que descon iava que eu fosse ilho...
— De Sarah Granville; sim, Augustus, somos irmãos do mesmo pai e
da mesma mãe.
— Por isso nunca quis consumar o casamento. Você me contou sobre
Pia e logo em seguida Lucy chegou...
— Isso não importa. Você precisa saber a verdade.
— Não vejo sentido no que está dizendo, é muita informação para
uma única noite.
— Lamento que seja assim. Mas seu pai — sorriu —, nosso pai, me
fez prometer que eu não lhe contaria a verdade enquanto Willian
pudesse colocá-lo em perigo. — Com os olhos marejados, ela continuou.
— E, quando ele ateou fogo naquela cabana, depois de nosso
casamento, matando Sarah e Harry, eu tive certeza de que era o melhor
a fazer.
— Foi Willian que...
— Sim, Augustus, não foi uma vela. Willian colocou fogo na cabana e
matou nosso pai e a própria mulher.
— Por que você quis reconstruir aquele lugar? Eu e Lucy, John e
Viollet... aquele lugar amaldiçoado.
— Harry e Sarah se apaixonaram antes mesmo de ela se casar com
Willian. Os Ansons estavam falidos, ou foram levados à ruína
providencialmente, segundo o diário de nossa mãe. Ela engravidou e
icou reclusa em um convento até dar à luz você. Voltaria e se casaria
com Harry para buscar você. Mas Willian já tinha armado tudo e o
acordo de casamento já estava assinado.
O duque levou uma mão ao rosto. E a duquesa afagou-lhe os cabelos.
— Izabel levou você para o nosso pai. Sarah começou a enviar
dinheiro. Eles icaram separados por quase cinco anos e, quando se
reencontraram, Joana já havia nascido. Então ela engravidou de mim.
— Cometemos incesto, Julliet.
— Não cometemos, Augustus, nunca nos deitamos juntos, assim
como você sabe que nunca se deitou com Joana.
— Eu não sei, morrerei com essa dúvida.
— Joana já estava grávida de Allan quando forjou aquela noite. Ela
tentou, mas você estava desacordado.
— Como sabe?
— Talvez ela tenha se confessado.
— Como é possível? Não sei se acredito em tudo isso.
— O diário dela está em cima da mesa. É seu. — Suspirou
profundamente. — Quando minha mãe me contou tudo e pediu que me
casasse com você, encontrei a oportunidade de sair daquela casa e icar
com Pia. Eu não me dei conta de que me tornava cúmplice da mais bela
história de amor. — Sorriu fracamente. — Era o que Izabel sempre
dizia. Nosso pai construiu a cabana para ela.
— Lady Izabel me perturbou até que eu a reconstruísse com as
próprias mãos. — O duque enxugava as lágrimas, envergonhado por
deixar escapar as próprias emoções.
— E você a refez para Lucy. Eu disse a você, quando ela colocou os
pés em Lilleshall.
— Tivemos um casamento peculiar, vossa graça. — Ele ofereceu a
mão à duquesa. — Onde esteve por todos esses anos?
— Mais perto do que imagina. — Ela se levantou e beijou o rosto do
irmão. — Está tarde, preciso ir.
— Esta casa é sua, Julliet.
— Esta casa é de Lucy, assim como Lilleshall. Ela, sim, é a verdadeira
duquesa.
— Precisamos providenciar os papéis da anulação; podemos alegar
que Willian a manteve presa. — Levantou-se para olhá-la.
— Não, meu querido irmão. — Tocou o rosto do duque com carinho.
— Você continua sendo um duque viúvo, livre para se casar quando
bem entender. — Sorriu largamente. — Ou quando Lucy quiser, e eu
serei uma desconhecida camponesa em Manchester. Não precisa dizer
aos seus ilhos, talvez possamos tomar um brandy quando resolver
visitar Edward.
— Vamos providenciar novos documentos, vossa graça. Mas faço
questão de que reveja John e conheça Sarah. São seus sobrinhos, é a sua
família. Essa é uma história que merece ser contada.
— Estarei na casa de Ann. Marcos foi muito generoso comigo me
dando algumas terras.
— Não sei o que sobrará depois que eu tiver que abandonar a
construção do estaleiro — ele olhou para baixo —, mas não permitirei
que lhe falte nada.
— Esse dinheiro certamente foi o que ele tirou do nosso pai e de
Lorde Baldwin. Ofereça sociedade a Arthur, seria uma forma justa de
devolver o que foi roubado. — Ela sorriu e fez uma reverência. — Lucy
disse o quanto esse projeto é importante para você. Ela temia que
sofresse mais pela perda do estaleiro do que pela verdade.
Augustus parou pensativo e deu de ombros.
— Talvez ela tenha razão.
Observou Julliet sair. Seria di ícil digerir os recentes acontecimentos.
Sim, demoraria certo tempo. Cedo ou tarde iria se recompor, contudo o
estaleiro era o projeto a que se dedicara nos últimos dez anos, o projeto
de uma vida, através do qual ele inalmente poderia se afastar da
política.
— Está tarde, querido. Já pedi que lhe preparassem algo para comer.
Pia trouxe presunto. Venha para a cama, Augustus.
Ele ergueu os olhos, naquele momento não importava mais se
conseguia ou não conter as emoções. Augustus viu sua vida passar nos
olhos de Lucy.
— Você sabia de tudo.
— Sinto muito.
— Não conseguirei me deitar agora. É di ícil ligar todos os pontos.
— Venha comer. — Ela se aproximou e, tocando a barba cerrada,
beijou-lhe nos lábios. — Há três dias não se alimenta direito, podemos
conversar sobre o que quiser. Estou feliz que não exista mais segredos
entre nós. Não me cabia contar...
O duque a calou trazendo-a para perto de si.
— Obrigado por tudo, baronesa de Knayth. Não há mais desculpas
para que não se torne a duquesa de Sutherland. Seria uma forma
elegante de se redimir.
Lucy abriu um sorriso.
— Talvez antes da posse de John? — Sorriu e o pegou pela mão.
Sentaram-se à mesa de jantar. Lucy olhou para os lugares vazios,
imaginando que em breve todos estariam ocupados.

***

Dois meses depois.


— Meus caros amigos, nunca estive tão feliz em colocar os pés nesta
casa. Hoje é um dia de festa e comemoração não só para minha família
ou para os tories, mas também para todo o Reino Unido. Deus me
concedeu uma família maravilhosa, uma mulher única e ilhos dos quais
eu me orgulho. A marquesa de Bristol, conhecida pela maioria de vocês,
é uma dama de visão única, sem dúvidas uma mulher à frente de seu
tempo. Minha ilha Ann, que por muitos anos se manteve acamada, tem
um coração de ouro e pretende dedicar-se integralmente a projetos
sociais, acolhendo os menos favorecidos. Mas hoje estou aqui para
homenagear o meu herdeiro, um exemplo de integridade, justiça e
caráter. John Anson, ao ser nomeado o primeiro-ministro, não só me
deixou orgulhoso como pai, ele me deixou com esperanças como
homem inglês. — O duque de Sutherland retirou o lenço e secou o
rosto. — Com o olho no futuro e na Modernidade, ele não só tem
conseguido revolucionar os meios de produção no campo como
também nos faz re letir sobre uma nova política. Um governo de
possibilidades e oportunidades. E é com muita honra que estarei ao
lado dele como ministro das relações internacionais, quando
poderemos trabalhar juntos para o futuro desta nação. A duquesa e eu
— olhou para Lucy, ao seu lado, com desmedido carinho, alisando a
aliança recém-colocada — estamos orgulhosos de Lorde John Anson.
Ao longe, ainda no púlpito, ele viu um peculiar cavalheiro, que
retirou a cartola por um breve instante; somente para que o duque o
reconhecesse. Foi imperceptível em meio ao barulho, depois de seu
discurso.
De pé, John era aplaudido como herói. E Julliet Hughes Anson estava
lá, vestida como um cavalheiro, no meio da multidão. Augustus sorriu
para a irmã, feliz em saber que em breve todos se reuniriam em
Lilleshall.
Capítulo XVI

A primavera chegou trazendo a exuberância única dos jardins de


Lilleshall. Marcos sorriu ao comparar e constatar que precisaria refazer
os canteiros de Grove House Springs; nenhuma lor que plantara ao
lado de Ann sobrevivera ao inverno. Contudo o amor que foi semeado
junto com as rosas parecia crescer a cada dia. Isso o deixava
assustadoramente feliz.
Com os pés no chão, vestido de branco, ele andava de um lado para o
outro, no quarto em que fora obrigado a passar a noite. Longe de Ann.
Abaixou a cabeça e pediu a Deus que não permitisse que Ann o
deixasse e que o Senhor pudesse lhe conceder a graça de, no dia em que
ela morresse, ser levado também. Assim como Sarah Granville e Harry
Anson, que plantaram o amor cujas sementes geminariam pelo resto da
eternidade.
Ouviu o som do atabaque tocando com perfeição. Izadora, com o
ventre abençoado, tocava o som que Marcos, ainda criança, lhe havia
ensinado. Mergulhou em um misto de ansiedade e angústia enquanto
todos se dirigiam para o jardim.
Posicionavam-se para a cerimônia de casamento de Edward e
Izadora, Ann e Marcos. Seria uma cerimônia um pouco fora dos
padrões, o que não parecia agradar muito o duque de Sutherland.
Augustus soltava impropérios toda vez que sentia os pés tocando a
grama.
— Parece que todos estão vestindo as mesmas roupas com que
dormiram. — Contorceu a boca ao ver que Arthur também havia
aderido às calças brancas e à camisa fora da calça. — Pelo menos uma
gravata, Lucy. — Continuava praguejando enquanto a duquesa achava
graça. — E esse cheiro?
— É um defumador, Augustus. Izadora explicou que as ervas são
queimadas para puri icar. — A duquesa abriu o último botão da camisa
que o duque insistia em fechar. — Deveria icar bem perto, para ver se
consegue conter os nervos. Depois que assumiu o cargo ao lado de John,
anda ranzinza.
— Sinto muito, é muito trabalho...
— Eu nunca acreditei que fosse mesmo se aposentar da carreira
política, vossa graça. — Ela o beijou, e juntos caminharam até seus
lugares.
Ann chegou à sacada no exato momento em que John colocava a mão
sobre o ventre de Viollet. Podia ver tudo lá de cima. Uma espectadora
da felicidade de seus irmãos. Seus olhos se encontraram com os de sua
tia Julliet e Pia, que eram sem dúvidas as convidadas de honra para uma
longa temporada em Lilleshall, pelo menos até que a casa delas em
Manchester estivesse pronta.
Ann voltou para o quarto e olhou pela última vez seu re lexo no
espelho. O vestido branco que ela mesma bordara trazia motivos
geométricos, de cores vivas, na barra das saias. Tocou o delicado colar
de contas, Marcos havia lhe dado no jantar anterior.
Parou de respirar quando ele surgiu atrás dela. Ann não se virou.
Ele retirou uma lor do arranjo da penteadeira e lhe entregou.
Ficaram se olhando pelo re lexo por um longo tempo, até que ele
inalmente abaixou os olhos.
— Ann, eu...
Ela se virou e tocou o rosto de Marcos com carinho.
— Não está confortável, não é? Mesmo que todos estejam sem
sapatos e com roupas brancas, como Izadora pediu, ainda não é o que
desejava...
Ele ergueu os olhos.
— Vi seu pai pagar uma pequena fortuna ao reverendo para que ele
abençoasse nossa união. Ele alegou que não temos contrato...
— Isso não importa, meu amor.
Ele a abraçou e beijou-lhe os cabelos.
— Não, querida, não importa se temos ou não um contrato. Mas me
importo com o fato de nossa união ser abençoada por dinheiro, e não
por acreditar no que realmente sentimos.
— Não precisamos fazer isso. — Ela deu um passo atrás.
— Mas você...
— Nós. Primeiro ele celebrará o casamento de Izadora e Edward,
podemos fugir. — Ela sorriu largamente.
— E Lys?
— Tenho certeza de que estará bem cuidada.
Marcos a abraçou contra si e a beijou profundamente. Ann foi
surpreendida quando ele a tomou nos braços e começou a caminhar em
direção ao acesso dos criados.
— Vamos fugir?
— Amanhã, querida.
— Então para onde estamos indo?
— O dia está bonito demais para não tomarmos um banho de rio.
Vamos ter a benção de Iemanjá e tenho certeza de que ela não se
importa se temos ou não um contrato, ou se temos a mesma cor.
— Você está louco! Todos vão vir atrás de nós.
— Tenho certeza de que não virão. Talvez eu tenha mencionado
meus planos para a duquesa, quando a vi logo cedo. Foi ela que me
incentivou a ser sincero com você. — Sorriu apressando os passos. —
Lucy deixou escapar que, possivelmente, um farto desjejum tivesse sido
esquecido lá.
Finalmente ele a colocou no chão e correram juntos, para longe da
vista de todos. Para longe de todas as hipocrisias e convenções inglesas.

***

No meio da tarde, com as roupas ainda molhadas, Ann abriu a porta


do jardim secreto. A cabana estava lá, parecia ainda mais bonita. Fora
poucas vezes àquele lugar.
Marcos a envolvia enquanto caminhavam em direção à porta do
casebre, nenhuma palavra era dita.
Um lugar construído para sua avó e que estava presente na história
dos Ansons. Queria que seu amor com Marcos também fosse celebrado
ali.
Mas, ao passar pela janela, viu que o recanto já estava ocupado. A
lareira acesa revelou que seu pai e sua mãe já estavam ali. Não olhou
muito, mas eles se beijavam.
Não lhe restava alternativa senão aceitar a proposta de Marcos de
fugirem para uma longa viagem, ainda naquela noite. Mas antes ela
passaria no quarto de Lys para se despedir.
De mãos dadas com o seu companheiro, Ann sorriu ao constatar que
em sua lua de mel poderia ser quem quisesse. Uma marquesa, uma
cortesã, uma viúva, uma estrangeira ou até mesmo uma bastarda.
FIM

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