#05 A Bastarda - Nahra-Mestre
#05 A Bastarda - Nahra-Mestre
#05 A Bastarda - Nahra-Mestre
Capítulo I
***
Capítulo III
Ao longo dos dias, Ann era tomada por uma alegria infantil ao
desempenhar as mais simples tarefas cotidianas. Cuidar do jardim ao
lado de sua tia e Pia era prazeroso e revigorante. A presença de Marcos
sempre proporcionava grandes ensinamentos.
A pequena Lys, uma distração à parte. Ann se afeiçoara a ela e se via,
a todo momento, impelida a fazer-lhe uma visita. A menina parecia feliz
e ganhara alguns quilos com o passar dos dias.
Seria tentador ignorar o mundo por trás das sebes e viver como se
fosse um recomeço. Talvez passasse algum tempo naquela casa antes de
se dedicar a Deus.
E foi exatamente ao tempo para pensar no que faria no futuro que
ela se agarrou, como desculpa para não dar andamento a seus planos.
Não admitiria em voz alta que tinha medo. Não era corajosa como
Sarah, nem mesmo tinha a audácia de Izadora. Era uma dama comum,
sem muitos atributos. Nada especial para alguém que vez ou outra se
via paralisada pelo medo e pela tristeza.
A melancolia era mais fácil de driblar, embora muitas vezes fosse
vencida. Mas o medo era sua verdadeira enfermidade. Era ele que a
paralisava e a impedia de seguir. Quando tinha Lady Izabel e Anthony
ao seu lado, era mais fácil. Não podia sobrecarregar sua tia Julliet com
seus traumas, esta certamente tinha os próprios demônios para
exorcizar.
Sentia-se só e apenas se dera conta disso ao confessar a Marcos, no
jardim, naquela tarde.
Diante da caixa da arma de duelo, Ann sabia que não podia mais
postergar.
— Só por precaução — falou para si mesma enquanto abria a gaveta
da escrivaninha da biblioteca. — Talvez eu deva esconder em outro
lugar. — Fitou o alto de uma das estantes e calculou como poderia
chegar lá.
Depois de arrastar uma poltrona, retirou os sapatos para tentar
alcançar a parte mais alta. Marcos chegou no exato momento em que
Ann começava a escalar, e ela quase se desequilibrou.
Prontamente, ele se colocou atrás dela e a ajudou a descer.
— O que pensa que está fazendo? — Ele se espantou com o tom
austero em sua voz e logo em seguida suavizou. — A senhorita está
bem?
— Pegue aquela caixa, por favor — ela pediu enquanto tentava subir
novamente.
Com facilidade, ele a pegou pela cintura, colocando-a no chão, e com
passos largos caminhou até a escrivaninha.
— Isso é...
— Por favor, não diga nada, eu estava guardando... — Ela não o
encarou, não queria delongar-se em explicações.
Ann andou até a caixa e tentou pegá-la. Marcos a impediu. A bastarda
nem mesmo tinha percebido como ele havia chegado tão perto. As mãos
fortes repousavam sobre a dela. Com um movimento delicado, ele abriu
a caixa e avaliou a arma disposta.
— Sabe carregar? — avaliou com cautela.
— Não, é só por precaução.
Ele ergueu o queixo dela com os dedos, delicadamente, e encontrou
os olhos amedrontados.
— O que esconde, Lady Ann? Por que uma arma de duelo e por que
esconde uma faca debaixo do travesseiro?
— Não é uma faca, é um punhal. — Ela o encarou determinada.
— Do que tem medo? — insistiu.
Ann sustentou o olhar por alguns segundos e em seguida fechou a
caixa.
— Gostaria de contar com sua discrição sobre esses detalhes. —
Pegou a caixa e caminhou até a porta.
Mais uma vez as mãos de Marcos a impediram, tomando a caixa sem
a menor cerimônia.
— Não estava guardando? Ou pretende levar para os seus
aposentos?
Ela colocou as mãos na cintura.
— Desculpe a sinceridade, mas não lhe devo explicações. Suas
perguntas me deixaram tonta. Vou guardar a caixa e não tocaremos
mais nesse assunto.
— Eu a ajudo. — Desviou o olhar para a estante onde ela pretendia
esconder a caixa. — Já pensou na escrivaninha?
— Seria óbvio e sinceramente não gostaria que alguém encontrasse.
Sem se importar com o que ela dizia, Marcos se abaixou e começou a
avaliar o fundo do móvel. Depois de alguns minutos, encontrou aquilo
que Ann não se dignara a procurar.
— Como eu esperava, um fundo falso, sempre há um. — Ofereceu um
sorriso, que a desarmou. — Mas vamos precisar da chave.
— Talvez eu saiba onde ela está.
Colocando-se de pé, ele se aproximou, e dessa vez Ann pôde
contemplar-lhe o rosto, que se abria revelando os dentes mais perfeitos
que ela já vira.
— A senhorita sabia da existência do fundo falso, não é mesmo?
— Talvez...
— Sabe o que há dentro?
— Não, eu não o abri — tentou se esquivar.
Marcos pegou a caixa novamente, sabia que ela estava mentindo.
— Quando a senhorita encontrar a chave, pode me pedir a caixa, que
lhe entregarei para guardá-la. Não é seguro que uma dama tenha um
objeto desses em sua posse.
Com uma reverência, ele a deixou, à deriva, tentando entender o que
acabara de acontecer.
***
***
No gabinete do primeiro-ministro, Marcos observava Lorde Edward
tamborilar os dedos, enquanto Lorde Baldwin, o duque de Sutherland e
Lorde John discursavam incansavelmente.
— Não vê que é uma estupidez deixar Izadora partir assim?! —
Lorde Baldwin estava visivelmente irritado com o ilho.
— Acalme-se, Arthur. — O duque colocou a mão no ombro do amigo.
— Seu pai tem razão, Izadora não tem mais ninguém no Brasil.
— Viollet disse que ela pretendia passar um tempo na Itália antes de
voltar para a América. Talvez Marcos devesse ir atrás dela — John
ponderou.
— Já chega! — Edward bateu sobre a mesa e se levantou, deixando
todos em silêncio.
Sentado, Marcos observou os nobres cavalheiros saírem ainda
discutindo o mesmo tema. Esperou até que desaparecessem pelos
corredores e aproveitou para contemplar a construção.
De initivamente, os ingleses viviam rodeados de luxo.
Quanto tempo demoraria para que os negros fossem vistos como
iguais naquele lugar? Não que Marcos pudesse se queixar de como
estava sendo recebido. Os Ansons e os Baldwins não demonstravam
nenhum tipo de aversão a sua cor, nem mesmo as damas o faziam,
ponderou enquanto caminhava em direção à saída.
Assim como Lady Sarah Hervey, Marcos jamais poderia ser o
primeiro-ministro. Ela, por ser mulher, e ele, por ser negro.
Não que desejasse, embora a política britânica se izesse cada vez
mais interessante, sobretudo pelas diversas perspectivas a que era
apresentado.
Marcos retirou a cartola para entrar em sua carruagem e se assustou
ao perceber que Edward estava lá dentro. Com os olhos fechados e os
punhos cerrados, o primeiro-ministro não escondia a frustração.
— Vossa excelência — cumprimentou-o com tranquilidade.
— Desculpe-me a invasão, mas preciso ver Izadora.
O farrusco bateu no teto da carruagem para que o cocheiro a
colocasse em movimento. Edward batia os pés no assoalho enquanto
tamborilava os dedos. Marcos esperou que o primeiro-ministro
iniciasse a conversa, o que não aconteceu.
— Izadora me incumbiu de negociar as terras de Manchester. O
marquês assinou os papéis hoje. — Ao ver a confusão nos olhos dele,
Marcos explicou. — Ela pretendia lhe fazer uma surpresa, seria
adequado se ingisse não saber. Vocês poderiam passar um tempo em
Manchester, para todos você poderia ter ido à Itália atrás dela. —
Ajeitou-se na poltrona. — Ela é inquieta demais para se manter naquela
casa, hoje mesmo a peguei subornando o cocheiro para que a levasse
para um passeio.
— Izadora é incontrolável.
— Ou, talvez, vossa excelência ainda não tenha aprendido a lidar
com ela. Sugira uma viagem, uma lua de mel. Você pode apresentar o
contrato que Joseph deixou. Tenho certeza de que ela o arrastará para
Manchester, sobretudo depois da o icialização da venda. Poderá icar
livre da pressão que está sofrendo.
— Ela comprou as terras de volta?
Marcos percebeu a emoção na voz do barão.
— Inclusive as que o marquês herdou, milorde. Uma pequena
fortuna, mas pelo que sei é uma terra promissora e produtiva.
— Eu só desejava as terras de meu avô de volta. Não pelo que
produziam, mas sim pelo que simbolizam. Não acredito que ela fez isso.
— Ele sorria.
O clima tenso havia se esvaído. Edward Baldwin parecia o mesmo
menino que chegara ao Brasil anos atrás. Marcos bateu no teto da
carruagem e, quando o cocheiro parou, deu ordens para que os levasse
para a casa dos Baldwins.
— Vá para casa e se prepare para a viagem. Levantará suspeitas se
passar a noite fora. Amanhã, quando for visitar Izadora, eu lhe garanto
que ela estará radiante com a novidade. Se há algo que ela não
consegue esconder, é um segredo.
Edward bateu no ombro de Marcos e o avaliou por alguns instantes.
— Por que me contou sobre a surpresa de Izadora? Achei que nunca
seria desleal a ela.
— Não se trata de deslealdade, milorde. Acompanho algumas
conversas do senhor com Lorde John. Você poderia ter lhe contado,
certamente ele saberia controlar o pai e o duque. Mas vossa excelência
preferiu mantê-la reclusa. Isso con irma minhas descon ianças. Ao se
tornar tão rica, Izadora também se torna um alvo para Willian.
— Acredito que seja pelo ouro.
— Independentemente do motivo, milorde. — Izadora não corre
mais perigo que Lady Ann, pensou, mas não disse, sabia que aquela
certeza era uma intuição. — Precisamos protegê-las.
— Você tem razão. Obrigado pela con iança.
— Estou à disposição, milorde. A propósito, deixei o documento em
sua mesa, gostaria que avaliasse potenciais terrenos para a construção
do hospital dos mineiros. O marquês aprovou a ideia, mas tenho certeza
de que o seu aval terá um peso maior no Conselho.
— Certamente, vou olhar amanhã logo cedo.
— Agradeço imensamente, sobretudo pela aprovação para
construção do duto que lavará o minério. Era um desejo antigo de
Joseph.
— Voltaremos ao Brasil para vê-lo pronto. Sir Joseph fez um bom
trabalho com o senhor. Estou muito feliz que esteja aqui.
— Eu não estaria em outro lugar, milorde.
— Compre você as terras da herança do marquês. Poderia oferecê-
las ao senhor como um presente, mas sua fortuna é muito maior que a
minha. — O barão sorriu largamente. — Ficaremos felizes em tê-lo por
perto.
Quando a carruagem chegou à casa dos Baldwins, o primeiro-
ministro saltou deixando Marcos pensativo. Como ele protegeria
Izadora depois que ela voltasse de viagem?
Capítulo IV
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Sarah Granville
Capítulo VII
Marcos ouviu um soluço alto enquanto o corpo da pequena Ann
convulsionava-se em seus braços. Ela parecia imersa nas angústias da
avó, ou nas próprias angústias. Sentindo-se impotente, ele a abraçou
ainda mais forte. Talvez por isso ela postergasse a abertura daquele
diário, talvez já soubesse que a vida de Sarah Granville era como a dela.
Ann suspirou pesadamente e se afastou um pouco, como se buscasse
ar. Estavam no quarto dela, sentados na cama e, enquanto liam a
primeira página do diário, sem que percebesse a doce e frágil Ann se
encolheu no colo dele, como se buscasse se proteger. Estava assustada,
tremia, e sequer a manta grossa de lã era capaz de aplacar os calafrios.
Ele fechou o diário para que icasse com as duas mãos livres.
Paralisada, ela acompanhou os movimentos cautelosos dele; em estado
de alerta, parecia temer que Marcos se afastasse.
— Não vou a lugar algum — prometeu depois que colocou a
encadernação sobre a mesa de cabeceira. — Não quero que tenha
medo, doce Ann. Não vou sair do seu lado, não há o que temer.
Ela o avaliou, os olhos turvos pareciam buscar a verdade. Sem se
importar com o decoro, ele colocou os pés sobre a cama, para que ela
pudesse se aconchegar melhor a ele.
Apesar de se sentir um inútil naquele momento, tê-la nos braços era
um bálsamo. Sabia que seu abraço a confortava, podia sentir, mas
descon iava de que a proximidade fazia melhor a ele.
— Acredita em promessas? — Ele não esperou a resposta, beijou-lhe
os cabelos macios. — Tem a minha palavra de que nenhum mal vai lhe
acontecer. Está me ouvindo?
Num movimento delicado, mas sem romper o contato, Ann ergueu a
cabeça para encará-lo.
— Ela se sentia como eu, uma prisioneira, os sintomas... — Engoliu
em seco. — O que ele fez a ela de tão mau?
— Isso não vamos saber agora. — Continuou acariciando-lhe os
cabelos. — Quer que eu lhe peça um chá?
— Não! Por favor, ique aqui comigo.
Ann sentou-se na cama, aos poucos seus olhos ganhavam vida. Uma
mão tímida tocou a face de Marcos, ele fechou os olhos para se deliciar
com o toque. Foi inevitável levar a mão macia aos lábios e beijá-la com
delicadeza.
— É mesmo um anjo, não é? — indagou ela.
— Não, estou longe da santidade. — Abaixou os olhos, culpado.
Queria tocá-la de uma forma que jamais tocara alguém. Sua vontade era
sentir o corpo fundindo-se ao dela, não só da maneira carnal movida
pelo desejo, queria que suas almas se tocassem. — Mais cedo me
perguntou se sou imune aos seus encantos. Não sou, eu a desejo desde
a primeira vez que a vi nesta cama. — Sorriu ao se lembrar. — Sei que
não sou homem para você, Lady Ann, mas isso não me impedirá de
cuidá-la e protegê-la.
Ela sorriu amplamente e voltou a contornar todo o rosto dele
vagarosamente. Uma tortura angustiante, que fazia Marcos quase
perder o controle.
— Não me importo com castas e linhagens, nada disso tem valor.
Somente isso. — Ela depositou a mão sobre o coração dele.
— Sou um homem negro, Ann. Isso não é bem-visto no seu país, nem
em qualquer outro lugar. Você é a ilha de um duque.
Ela lambeu os lábios.
— Somos todos iguais perante Deus, Marcos. Eu não me importo
com o que os Europeus ou o resto do mundo pense. Nunca me senti tão
bem ao lado de alguém como...
— Não tem experiência para fazer uma a irmação dessas, existe um
mundo lá fora e em breve você poderá...
— Não poderemos. Você, por ser negro; eu, por ser mulher; tia
Julliet, por se apaixonar por uma dama; Anthony, por amar um
cavalheiro. Este mundo não é feito para pessoas fora dos padrões. Certa
vez me disse que Joseph o impeliu a se superar, e é o que vem fazendo
por todos esses anos. Não permitirei que se sinta inferior. — Ela chegou
os lábios bem perto. — Sua pele é linda e toda vez que o vejo tenho
vontade de beijá-lo — a última palavra foi um sussurro, deixando
Marcos louco para tomá-la.
— Não faça isso. — Ele se afastou um pouco e tocou-lhe a face. —
Está fragilizada, e eu jamais me aproveitaria disso.
— Você tem razão, acho que ninguém na minha situação sairia ilesa a
esse diário, não depois de tudo que passei. Todos me cobram para que
eu faça planos para o futuro e eu não sabia o que queria até conhecer
você.
— E o que quer, Lady Ann?
— Ajudar as pessoas, transformar você num dos cavalheiros mais
respeitados do Reino Unido e, se o senhor me quiser, quero passar
meus dias em sua companhia. — Ela abaixou os olhos por um instante
e, quando os ergueu novamente, parecia outra pessoa. — Vivi cercada
de belas histórias de amor e achei que jamais pudesse sentir o mesmo
que eles. Isso que há aqui dentro transborda, faz-me feliz, cura-me,
salva-me, faz-me querer viver. Sei que não faz nem mesmo um mês que
o conheço, e vou compreender se esse sentimento não for
correspondido, mas, se não quiser, peço que me diga agora. Amanhã
mesmo vou para Manchester ou encontramos outro lugar para icar...
— Você não vai a lugar algum...
— Então seja honesto comigo. Quero levar esse sentimento como
algo bom, que me impulsiona, não quero alimentar esperanças...
— Como fez com seu marido.
— Sim, como com Anthony. Mas ele foi honesto comigo e isso me fez
admirá-lo. Ele me trouxe esperanças, Marcos, e quero fazer o mesmo
com esse sentimento que tenho aqui dentro. Você tem razão, eu não
tenho experiência, mas não sou mais uma menina, e, mesmo que não
me deseje ou que corresponda ao que sinto, nada muda. Você tem me
mostrado o que é estar viva de verdade.
— O que acontece com você? Às vezes parece tão frágil e
rapidamente se mostra a mulher mais forte e determinada que conheci.
Nunca imaginei que uma dama pudesse ser tão direta, sobretudo
depois de...
— De me mostrar por inteiro, meu lado sensível? Não sou tão forte
quanto pensa, mas Deus nos dá o que podemos suportar, e ele acha que
eu consigo. Não quero desmerecer meus sentimentos, mas, se o senhor
não sente o mesmo que eu, não vou morrer por isso.
Ele sorriu e a atraiu entre os braços.
— Não, minha pequena Ann, ninguém morre por amor. — Sentiu
uma lágrima arder-lhe os olhos. Estava mentindo, vira de perto o amor
matar um homem. — Desde que coloquei os pés nesta casa, não houve
mais nada que ocupou meus pensamentos senão você.
— Então beije-me. — Ela o itava expectante, e ele sentiu a mão
tímida tocar seu peito.
Marcos fechou os olhos e respirou fundo. Não queria assustá-la com
o desejo que o consumia. Tentou manter o controle.
— Temo que meus sentimentos sejam ainda maiores que os seus —
ele sussurrou com os lábios colados aos dela.
Deu-lhe um beijo casto, contudo queria muito mais. Optou por
repetir o estranho beijo daquela tarde, onde somente sua língua vagava
pelos lábios doces. Ela os manteve fechados, mas ele sentiu quando Ann
lambeu os lábios e as línguas se tocaram brevemente.
— Como aprendeu a beijar dessa maneira? — resolveu saciar a
curiosidade, depois que ela se aninhou novamente em seus braços,
como se nada houvesse acontecido.
Ann tinha o dom de o confundir, virá-lo do avesso e deixá-lo sem
ação, sobretudo depois de um beijo tão intimamente delicioso. Não
podia ser um ogro e cobrir o corpo dela com o seu. Oxalá o ajudasse se
as mãos curiosas que lhe acariciavam a barriga tensa encontrassem o
volume no meio de suas calças.
— Marie disse que as pessoas usam a língua para beijar. Anthony
tinha me beijado uma vez antes de confessar que preferia cavalheiros,
mas foi um beijo casto, sem nada de mais. Então eu imaginei que...
— Nunca deu um beijo de verdade?
— Isso não foi um beijo de verdade?
— Ah, sim, pode apostar que foi real. Mas há muito mais do que isso,
Lady Ann. — Condenou-se por instigá-la.
— Quero que me beije de verdade. — Ela já estava em alerta,
novamente sentada.
Ann parecia sempre pronta para descobrir, experimentar e
desvendar os mistérios da vida. Ele percorreu-lhe os lábios
entreabertos preguiçosamente com a língua, mas não ousou invadi-la.
— Agora durma, minha querida, está tarde.
— Vai me deixar sozinha? — Ela fez um muxoxo.
— Eu não ousaria, vou icar bem perto para garantir que se
comporte.
Marcos se levantou e puxou a manta, cobrindo-a. Apagou a vela e se
acomodou ao lado dela.
— Tem que abrir a boca, não é? Você coloca a língua lá dentro?
Por mais que estivesse tentado a mostrar-lhe, ele se divertia com a
curiosidade dela.
— Existem várias possibilidades.
— Não vai me mostrar?
Ele sentiu o movimento na cama, ela havia se sentado novamente.
— Precisa descansar, venha. — Abriu as cobertas para ela se deitar
novamente. — Se se comportar, posso mostrar alguma coisa.
Rapidamente ela se cobriu.
— Estou pronta. — Deitada de barriga para cima, Ann colocou as
mãos sobre a barriga.
Marcos se aproximou lentamente, roçando o rosto ao dela. Salpicou
beijos pelo queixo e, quando as bocas se tocaram, sugou-lhe bem
devagar o lábio inferior.
— Boa noite, minha pequena curiosa. Precisa descansar e lhe mostro
tudo que existe lá fora.
Logo que o viu deitado, ela se colocou em cima dele e repetiu o que
ele havia feito. Era uma ótima aluna, constatou Marcos. Ele demorou
certo tempo para se acalmar, pois a brincadeira acabou se arrastando
por alguns minutos. Seria maravilhoso poder apresentá-la ao mundo.
***
Quando se virou na cama, a claridade o incomodou. Marcos não se
lembrava de ter aberto a cortina. Sem mesmo abrir os olhos, pôde
constatar que não estava em sua cama. O perfume de Ann estava em
toda parte. Sorriu ao pensar nos avanços que tiveram e afastou os
pensamentos das consequências desastrosas daquela relação.
Ao abrir os olhos, sentiu o coração disparar. Ann não estava na cama.
Parada diante da janela, parecia absorta na neblina que cobria a
paisagem. Mal dava para ver as árvores que rodeavam a casa.
A cerração era a analogia perfeita para os pensamentos de Ann. Aos
poucos os raios rompiam a névoa fazendo com que a imensa nuvem
branca se dissipasse. Um movimento lento, quase agoniante, mas que
tinha certa magia e encanto. Era como se sentia, como se a luz de
Marcos aos poucos a aquecesse e despertasse.
Sentiu um arrepio percorrer todo o seu corpo quando os lábios
carnudos tocaram seu ombro parcialmente descoberto pelo penhoar; a
carícia se estendeu até o pescoço. Marcos passou as mãos por sua
cintura, uma carícia deliciosamente íntima, que Ann desejava desfrutar
para sempre.
— Conseguiu descansar? — a voz rouca daquele homem era capaz
de atingir a profundidade de sua alma.
— Não faz muito tempo que me levantei. — Continuou itando o
horizonte.
— Fiquei velando seu sono depois que... — Ele a trouxe para mais
perto. — Foi um sonho ruim?
— Uma lembrança, eu acho. Algo que havia se perdido com o tempo.
— Virou-se e colocou as duas mãos sobre o peito dele. — Que canção é
aquela que me fez adormecer?
— Um conto que minha mãe cantava para chamar os espíritos. —
Beijou-lhe os cabelos e a apertou contra si.
— Ele estão aqui? Quero dizer, os espíritos podem vir nos visitar?
— Eles estão em todo lugar, uns nos protegem, outros dissipam o
mal. Quando morremos, às vezes continuamos vagando.
— Joseph, você pode vê-lo?
— Não é assim, minha querida. Quer me contar do que se lembrou?
Ela sorriu e beijou o torso desnudo de Marcos.
— Pedi que servissem nosso café aqui. Deveria colocar uma camisa,
o desjejum já deve estar chegando. O que vão pensar se...
— Devo me esconder?
— Não, somente se recompor. Não quero que a camareira o veja
assim.
Ele pegou a camisa que havia deixado jogada no tapete, mas que se
encontrava perfeitamente dobrada em cima da poltrona, perto da
lareira.
— Eu devia ter imaginado que o chamado para ler o diário em seus
aposentos era um convite para me seduzir. — Abriu um largo sorriso e
atiçou a lareira, sem sequer abotoar a camisa. — Agora compreendi o
que quis dizer quando mencionou sua disposição para ter um amante. É
mesmo muito habilidosa na arte da sedução, Lady Ann. Pretende deixar
que os criados saibam que recebo convites para frequentar seu quarto
durante a noite? O que vão pensar?
— Eles se acostumarão. — Sorriu e se aproximou para fechar os
botões da blusa dele um a um, habilidosamente. — Está melhor assim.
— Não quer esconder nossos encontros noturnos, mas não posso
icar à vontade.
— Acredite, você causa um pequeno alvoroço entre as mulheres
quando passa. Felicity, Gale, Carry... Consigo ouvir o suspiro de todas
quando você oferece um sorriso. Principalmente quando anda
descomposto pela casa.
O fato de ela se incomodar com a atenção de outras mulheres não só
o divertiu, mas o fez sentir-se importante. Sem pensar muito, ele a
puxou para seu colo. Deslizou a língua vagarosamente pelo lábio rosado
entreaberto e o sugou com delicadeza, fazendo-a suspirar alto,
deixando-a sem ar.
— É assim que elas fazem?
Ann sorriu e se aninhou nos braços fortes; como era maravilhoso
desfrutar da companhia e do carinho de Marcos.
Quando uma leve batida à porta a sobressaltou, ele não permitiu que
ela se levantasse.
— Pode servir, Carry, por favor — ele pediu com Ann no colo, e a
camareira não escondeu a surpresa ao ver a cena.
Sem sequer olhá-los, ela colocou a bandeja em cima da mesinha. O
gato, que vinha logo atrás da camareira, andou preguiçosamente e
pulou na poltrona vazia. Enquanto isso, Ann tentava se manter
impassível, embora seu rosto ardesse de vergonha.
— Quer que eu o leve? — A criada não sabia a quem se dirigir.
— Duvido que consiga tirá-lo daqui. — A bastarda inalmente
relaxou. — Obrigada.
Logo que a porta se fechou, Ann deu um beijo no rosto de Marcos e
foi se acomodar ao lado do gato.
— Fiquei pensando no que John disse, sobre o suposto interesse de
Willian em me manter na cama. — Ela serviu duas xícaras de café, um
hábito recente, adquirido depois que passara a morar com Marcos e
Izadora. — Tive uma lembrança, não tenho certeza. O dia em que
cheguei ao quarto da tia Julliet e vi Joana tentando sufocá-la com o
travesseiro, Willian estava lá. A bengala dele estava encostada em um
canto e foi o que usei para acertar a cabeça de Joana.
— Do que mais se lembrou?
— Não muito, eu era bem nova. Usava o acesso dos criados para
perambular pela casa. Estava atrás da cortina quando ouvi os gritos
abafados da tia Julliet.
— Acha que foi por isso que a mantiveram na cama por todos esses
anos?
— Eles queriam o diário. Willian me perguntou várias vezes sobre
ele.
— Soube que ele foi bem generoso com você no testamento. Não
compreendo.
— O banco está em meu nome. Mas acho que ele esperava que eu
morresse; ao longo desses anos me visitou e me obrigou a assinar
inúmeros documentos.
— Do que se tratava?
— Não sei dizer, muitas vezes eu os assinava depois de tomar o
tônico, a visão icava turva e as mãos tremiam tanto... Eu demorava
muito tempo e ele perdia a paciência.
— O duque lia esses documentos?
— Não, Willian sempre foi esperto, assim como Joana. Na frente do
meu pai, parecia outra pessoa. Augustus se sente em dívida com ele.
— Não entendo por quê.
— Apesar do título, os Ansons viviam em uma situação inanceira
muito delicada e foi graças ao dote de tia Julliet que meu pai pôde
prosperar. — Ela bebericou o café. — Lady Izabel e o pai dele eram
muito amigos. Foram unidos pela falência depois que Steve Baldwin
morreu. Viveram juntos em Lilleshall por muitos anos. Meu pai e Lorde
Baldwin foram criados como irmãos. Lady Izabel dividiu com eles seu
pequeno rendimento.
— E a mãe do duque? Quero dizer, sua avó paterna.
Ela sorriu melancólica.
— Não teve a oportunidade de criar o próprio ilho.
— Uma dama fora dos padrões, imagino.
— Muito pelo contrário, a mais nobre das damas, mas acredito que
vá descobrir sobre essa história no diário.
Ann se colocou de pé para pegá-lo e Marcos se levantou rapidamente
para impedi-la.
— Não agora, minha querida. Vamos guardá-lo em um lugar seguro e
lemos mais tarde. Vi como icou na noite passada...
— Eu estou bem — garantiu determinada.
— Quero levá-la para um passeio, não esqueci quando disse que
sente falta do movimento da carruagem. Pensei em irmos ao Hyde Park.
— Não posso ser vista.
— Ninguém a verá com as cortinas fechadas, e podemos desfrutar de
mais uma ou duas modalidades de beijo, o que me diz?
— Beijar no Hyde Park. — O semblante de Ann se iluminou. — Isso
me parece escandalosamente inapropriado. Vai beijar meus pés como
fez ontem à noite?
— Havia pensado nos joelhos — ele sussurrou bem perto do ouvido
dela, fazendo-a estremecer.
— Nesse caso acho que não deveria usar meias. Vou me trocar. —
Saiu saltitante, deixando Marcos se divertindo com a empolgação dela.
— Quer que chame Carry para ajudá-la?
— Não precisa, podemos levar um lanche?
— Podemos tudo que você quiser, Lady Ann.
E ele deixou o quarto para ver a sobrinha e se trocar, certo de que
seria uma loucura negligenciar mais um dia de trabalho. Além de ser
arriscado, ponderou. Contudo queria aproveitar cada momento ao lado
de Lady Ann. Temia que, quando ela pudesse desfrutar da tão sonhada
liberdade, não precisasse mais de sua companhia.
Capítulo VIII
Hoje lady Izabel trouxe uma pintura da minha criança; como cresceu.
Mas ico feliz em saber que está sendo bem cuidada. Mesmo que eu
desejasse que tudo fosse diferente, hoje já não sei como as coisas
poderiam mudar.
Estou grávida, prestes a dar à luz e não consigo amar esta criança que
vai nascer. Tenho sentimentos horríveis. Izabel diz que é uma premonição,
mas não sei se acredito nessas coisas. Foi uma gestação di ícil, sobretudo
depois que viemos para Londres.
Confesso que pre iro o campo; se vou viver enclausurada, que seja
rodeada por belas paisagens. Londres me sufoca, e ver o movimento pela
janela é ainda mais desolador. A cada carruagem, a cada cavalo, a cada
pessoa que contemplo da janela, eu o procuro. Como gostaria de ver H.
novamente.
Queria que ele soubesse que jamais me esquecerei dele e do seu amor.
Logo que esta criança nascer, Willian irá até Paris. Descon io que os
negócios de meu marido e Allan Smith sejam um tanto quanto obscuros.
Eu os ouvi recentemente conversarem sobre uma remessa de ouro que
chegaria em um navio.
Não gosto de Allan, apesar de muito novo ele tem a maldade nos olhos.
O pupilo de Willian não trata bem os criados e frequenta esta casa bem
mais do que eu gostaria. Descon io que meu marido venha pagando os
estudos dele, embora não compreenda por que o rapaz passa tanto tempo
em Londres. Quando meu irmão Harlen vier me visitar, vou procurar
saber melhor sobre esse rapaz.
Willian tem se mostrado desmedidamente atencioso depois da
gravidez, o que deveria ser bom, mas isso me provoca repulsa, por ele e
pela criança que carrego dentro de mim. Vai se chamar Joana se for uma
menina, o nome da mãe de Willian. Ele não parece se importar se eu não
parir um herdeiro. Jamais mencionou o nome para um menino.
Essa devoção de Willian pela criança parece doentia. Ele conversa com
meu ventre e diz que ela vai ser como eu. Não quero que ninguém se
pareça comigo, ninguém deveria viver como eu.
Sou obrigada a me alimentar, embora quase nunca tenha apetite.
Estou cansada e não vejo a hora de me livrar dessa maldita barriga.
Izabel acha que essa repulsa se deve ao fato de eu não ter podido cuidar
do primeiro bebê que pari.
Deus me ajude a suportar de novo esse suplício, não foi assim da
primeira vez. Eu amava a criança que carregava, mesmo que não tivesse
o conforto que tenho hoje.
Gostaria de escrever com mais frequência, isso me faz bem de certa
forma.
Espero que, nas próximas páginas deste diário, possa relatar com
amor a família que tenho. Rogo a Deus todas as noites que me liberte
desta amargura e da melancolia, para que eu possa ser grata por tudo
que tenho.
Capítulo IX
***
***
***
Conforme o prenúncio de Lorde David, uma enxurrada de convites e
presentes chegou a Grove House Springs na manhã seguinte. No
desjejum, Ann repassava um a um com desmedida atenção.
— Não vai aceitar o convite da marquesa de Normanby? — Ann
tentou não demonstrar seu desconforto.
— Qual é o problema com a dama?
— Não é segredo que ela faz qualquer coisa para desposar as ilhas
encalhadas — falou com desdém e fez uma careta ao constatar que
também poderia ser nomeada daquela maneira, como as ilhas da
aludida. — Os bailes só tocam valsas, você acharia enfadonho.
Marcos se levantou de sua cadeira e deu a volta para tomar a mão de
Ann. Num movimento involuntário, ela se levantou. Ele a envolveu pela
cintura e se afastou da mesa para que pudessem ter espaço.
— Acabo de me dar conta de que precisarei de aulas de dança,
milady. Concede-me a honra?
— Para que dance com outras damas?
— Sobretudo com as ilhas da marquesa de Normanby, seria uma
indelicadeza de minha parte não retirar pelo menos uma para dançar.
Quantas são?
— Três, e você icaria com vertigem. — Ela cruzou os braços.
— Sua preocupação me deixa lisonjeado, milady. — Beijou-lhe o
pescoço. — Não tenho olhos para mais ninguém.
Ann o encarou buscando sinceridade, mas não tinha dúvidas de que
Marcos retribuía-lhe os sentimentos.
— Senhor, senhora. — A governanta pigarreou. — O marquês e a
marquesa de Bristol desejam vê-lo.
Ann sobressaltou-se e beijou Marcos rapidamente, apressando-se
para subir as escadas.
— Não fugirá das aulas — disse ele.
Ela virou-se e sorriu enquanto ele calçava os sapatos. Marcos pegou
o paletó na cadeira e o vestiu, para atender os convidados.
O valete, e icientemente, apareceu, e seu senhor observou sua
movimentação.
— Deve esperar quinze minutos, senhor. Teremos tempo para ajeitar
suas roupas.
— O inferno que vou deixá-los esperando. De onde venho, isso é
indelicadeza. — Abanou a mão. — Não vou vestir gravata, só o paletó
deve servir.
Conferiu sua imagem no espelho do aparador, antes de se
encaminhar para a sala.
— Que surpresa os receber. É uma honra tê-los aqui.
— Trouxe biscoitos. — A marquesa ofereceu o embrulho, e Snow deu
um miado de satisfação.
— Lamentamos vir sem aviso prévio — Lorde Thomas se adiantou.
— Mas Sarah estava em polvorosa. Disse que você deveria estar cheio
de convites, não se fala em outra coisa senão no testamento de Joseph.
Viemos nos dispor a ajudar a escolher quais deve aceitar.
— Por favor, sentem-se. — Colocou os biscoitos sobre a mesa. — É
muita gentileza. Eu me sinto honrado com o fato de que se deram ao
trabalho.
— Papai queria vir conosco. — Lady Sarah pegou a mão do marido.
— Mas estava ocupado com alguns documentos de campanha de John.
Tomamos café em Ansons House, hoje.
— É um homem de muito prestígio, agora.
— Lorde Thomas, sei que comunga dos meus pensamentos, mas
nesse caso o que tem prestígio é o meu dinheiro. — Logo que a
governanta apareceu, ele pediu que trouxesse café, chá e os convites
que estavam em cima da mesa do desjejum.
— Uma oportunidade para fazer história, não acham? Conseguimos
uma grande vitória com o hospital, ainda temos um longo trabalho pela
frente.
— Deveria escrever uma matéria. — Sarah bateu as mãos
empolgada. — “O cavalheiro de ouro”.
— Parece-me um tanto quanto ostentoso, milady. — Marcos pegou
os convites com o lacaio e os entregou para a marquesa. — O que me
diz?
Um a um, os convites foram escrutinados e separados em três pilhas.
Lorde Thomas e Lady Sarah explicavam com paciência, e com
peculiares pontos de vista, por que aceitar ou não cada um deles.
— Lorde David Hervey — a governanta anunciou mais uma visita.
Involuntariamente, os olhos de Marcos percorreram a cortina,
lamentando que Ann não pudesse se juntar a eles. Com um enorme
embrulho nas mãos, David se espantou ao constatar a presença do
irmão e da prima.
— Viemos ajudá-los com os convites.
— Vim trazer algumas encomendas — falou David entregando o
embrulho ao lacaio.
— Livros? — o marquês perguntou interessado, enquanto via seu
irmão se acomodar.
— Sim — mentiu sem poder dizer que se tratava de tecidos para que
Ann pudesse bordar.
— Acho que, antes de aceitar qualquer convite, seria elegante que
Marcos oferecesse uma recepção. — Sarah sugeriu. — Não seria
delicado, David?
— Decerto — concordou sem muita empolgação.
— É uma ideia brilhante, querida — o marquês não escondia a
admiração pela esposa. — Assim podemos avaliar melhor quem mostra
receptividade.
— Que indelicado — David recriminou o irmão.
— O marquês está sendo realista, milorde. Minha cor pode causar
repulsa. E, de fato, desejo estar onde sou bem-vindo.
— Um grande baile em Grove House — Lady Sarah parecia maquinar
—, ou em Ansons House.
— Seu debute — David debochou enquanto capturava uma generosa
porção de biscoitos. — Nunca me oferece essas delícias quando vai me
visitar.
— Não ique enciumado, David. — Fez uma careta para o primo. —
Espero sinceramente que Izadora volte a tempo. O que acha da segunda
semana de março?
— Seria perfeito, milady.
Conversaram por mais algum tempo, até que a governanta
novamente os interrompeu.
— O visconde de Trentham deseja vê-lo senhor.
A marquesa não escondeu a empolgação ao saber que o irmão se
juntaria a eles. Mais uma hora de conversa se estendeu. Marcos
percebeu o desconforto de Lorde John, que não parou de balançar os
joelhos. Até mesmo a marquesa o repreendeu pela grosseria.
Quando inalmente Lorde Thomas e Lady Sarah resolveram se
despedir, um furacão entrou na sala. Com os cabelos parcialmente
soltos e o vestido de viagem desalinhado, Izadora se jogou nos braços
de Sarah logo que a viu.
Logo atrás dela, Marcos viu, vinha Lorde Edward, com um ar de
reprovação. Rapidamente, colocou-se de pé para cumprimentá-lo.
— Eu disse que era uma imprudência, mas Izadora não me deu
ouvidos.
— E a duquesa?
— A carruagem dela deu meia-volta quando viu a confusão de
cavalos na entrada. Deixei o jardineiro de prontidão para só deixá-la
entrar quando não tiver mais ninguém.
John se aproximou e cumprimentou Edward.
— Como estava o clima em Roma? Foi uma viagem muito breve, não
acha? — Olhou descon iado para Marcos. — Se Izadora está aqui, onde
está Ann?
— Espere até que o marquês vá embora e conversamos — Marcos
falou com o tom irme.
Com a chegada de Izadora, a visita se estendeu um pouco mais.
Porém, logo que Lorde Thomas e Lady Sarah saíram, John colocou as
mãos nos bolsos.
— E então?
— Vamos até o escritório. — Marcos estendeu a mão para que ele
passasse.
— Vou com vocês — Edward se adiantou.
— Fique com Izadora — Marcos soou mais imperativo do que
desejava —, posso resolver este assunto com Lorde John.
— Vou acompanhá-los. — David já estava de pé e, pela sua postura,
Marcos soube que ele não aceitaria recusas.
***
— Ann está nesta casa — Marcos confessou logo que a porta se
fechou. — Lady Izabel deixou este imóvel para que ela se escondesse
depois que forjasse o próprio casamento.
Com os punhos cerrados, de frente para Marcos, John não escondia a
fúria.
— Ann corria perigo na casa de seu pai. Era melhor que ela se
afastasse — David tentou se interpor.
— Você sabia? — Ele não se dignou a olhar para o primo, seus olhos
continuavam fuzilando Marcos, que permanecia parado, sem recuar.
— Descobri há pouco tempo — a resposta de David mal foi ouvida.
— O que mais sabe e me esconde?
— Não sou eu que devo dizer para o senhor. Mas queria tranquilizá-
lo: sua irmã está bem.
— Quero vê-la.
— Não! Não assim, nem agora. Sua irmã sofre de crises noturnas,
efeito do tônico que tomou por todos esses anos. Dr. Anthony deixou
um médico para vê-la com frequência e ele acha melhor evitar que viva
fortes emoções enquanto está em recuperação.
John bateu o braço jogando a poltrona para longe.
— E você naturalmente a ajuda nessas crises. Era ela? Era ela atrás
da cortina? Ann é a dama casada com que tem se deitado?
— Sim, milorde. Não foi planejado, mas Ann e eu estamos juntos.
— Patife. — A mão de John parou no ar quando Marcos o segurou
com força.
— Eu receberia de bom grado se o merecesse, milorde. Não sou um
aproveitador. Vim para esta casa por causa de Izadora, mas sua irmã já
estava aqui. Ela fugiria mesmo se eu não existisse, e eu agradeço aos
céus o fato de estar aqui para protegê-la. Bata-me por ter me
apaixonado, ou por tê-la desonrado. Mas não seria justo, Ann também
tem o direito de ser feliz. — Ele soltou a mão fazendo John dar um
passo atrás.
— Quero ouvir da boca dela que você não se aproveitou...
— Eu vi — David interrompeu. — Ann nunca esteve tão feliz, tão
cheia de vida. Marcos tem razão, fomos negligentes demais, John.
Passamos muito tempo preocupados com o que parecia importante
enquanto nossa irmã era envenenada bem debaixo do nosso nariz. Você
mesmo comentou sobre como era di ícil a recuperação.
— E Anthony?
— Fugiu com um cavalheiro; ele e Ann izeram um acordo pelo qual
o casamento daria liberdade para ambos.
— VOCÊ DORMIU COM A MINHA IRMÃ!
— Não, milorde, tenho dormido com ela todas as noites. E pretendo
fazer isso pelo resto da minha vida.
— Vai se casar com ela. Vou providenciar a anulação do casamento
com o médico e vai arcar com as responsabilidades.
— Pense com coerência, John — David o interpelou. — Na situação
em que estamos, um escândalo como esse a colocaria ainda mais em
risco.
— Deixe-me vê-la.
— Peço que espere até que eu a prepare para isso, milorde. Da
mesma maneira que o senhor se sente traído, ela se sentirá quando eu
disser que contei ao senhor.
— Que se dane...
— Sim, que se dane se ela não quiser mais icar comigo. Mas eu me
importo com o bem-estar dela.
— Vamos embora, John, você precisa esfriar a cabeça.
— Esta conversa não acabou.
— Tenho certeza disso, milorde. Amanhã pela manhã, estarei em sua
casa para pensarmos na melhor maneira de contarmos a ela que o
senhor sabe e que irá apoiá-la.
John deixou o escritório com passos duros. Marcos tocou o ombro de
David.
— Obrigado.
— Não iz nada, e o senhor se saiu muito bem.
Marcos se jogou na poltrona, levando as mãos à cabeça. O dia mal
havia começado e ele já se sentia exausto. Tentou dissipar a tensão e a
culpa. Talvez tivesse agido da mesma maneira com o patife que
engravidara Aziza se tivesse oportunidade. Não culpava Lorde John.
Inesperadamente, um copo de puro malte surgiu a sua frente.
— Eu escutei. — A mão de Lorde Edward repousou em seu ombro.
— Eu não devia ter me ausentado.
— Aconteceria do mesmo modo, milorde, não é algo que eu possa
controlar.
— Não, não é. Aconteceu o mesmo comigo e com Izadora, ainda que
você estivesse sempre nos vigiando. — O primeiro-ministro bateu o
próprio copo no dele.
— E Ann?
— Está lá em cima com Izadora, mostrando as reformas; duvido que
tenha escutado. Ela me parece muito bem.
— Por favor, não conte a ela ainda.
— Eu não faria isso.
— Vou pensar em uma maneira de não a magoar.
O primeiro-ministro pegou a poltrona caída e sentou-se.
— Sabe, Marcos, minha avó sempre disse que a passionalidade
poderia arruinar o mais nobre dos homens. Você conseguiu levar John
ao limite, mas tenho certeza de que, depois que colocar a cabeça no
lugar, ele lutará com mais gana.
— E se ele não se acalmar?
— Lady Viollet o acalmará. — Ele ergueu o copo. — Às damas
perfeitas, que sabem como ninguém domar um cavalheiro selvagem.
— Com exceção de Izadora — Marcos brincou.
— Ela tem suas habilidades.
Capítulo XI
Marcos não quis descer para jantar, alegou estar com dor de cabeça.
Ann aproveitou a companhia de Izadora, Pia e de sua tia, que relatavam
maravilhas sobre as terras de Manchester. A duquesa não poupou
elogios à reforma de seus novos aposentos. Pia não escondia a
felicidade e parecia bem mais jovem do que era de fato. Ann quase não
viu o tempo passar.
Quando retornou aos seus aposentos, trocou-se rapidamente e foi
até os aposentos de Marcos. Ele estava deitado, com um braço sobre os
olhos. Ela se aproximou para cobri-lo, fazendo com que ele mudasse de
posição para olhá-la.
— Não tocou no seu jantar. — Passou a mão pelo rosto dele.
— Estou sem fome.
— Vou mandar chamar o doutor...
— Não é necessário.
— Coma pelo menos um pouco, vou pedir que troquem a bandeja.
— É tão doce e atenciosa. — Ele deslizou o dedo pelo queixo
delicado dela. — Não sou merecedor de tamanha devoção.
— Faz muito mais por mim. — Beijou-lhe a face e tocou a sineta.
Marcos observou Ann receber e instruir o lacaio. Ela parecia já
conhecer seus gostos. Enquanto aguardava o jantar, Ann recolheu as
roupas jogadas pelo quarto, e, pela primeira vez, ele se arrependeu por
ser tão desleixado. Não era justo que ela sempre recolhesse o que ele
deixava largado. Sua mãe sempre reclamava desse mau hábito. Marlene
o fazia recolher enquanto esperava com as mãos na cintura. Deveria ter
aprendido, recriminou-se.
— Vou tentar melhorar.
— Gosto de recolher sua bagunça. — Levou a camisa ao rosto para
cheirá-la. — Parece tolice, mas é como se tivesse vida, as coisas fora do
lugar.
Marcos a observou por um longo tempo e só se sentou quando a
bandeja com o jantar chegou.
— Ficou assustado com o assédio dos convites, ou foi o tumulto
causado por meus irmãos?
— Um pouco de cada. — Ele deu uma garfada e seu estômago
agradeceu.
— Quando tudo isso acabar, poderemos receber todos para um
jantar, ou um baile. Não seria maravilhoso?
— Talvez não queira icar ao meu lado quando tudo isso acabar.
— Tem que parar de dizer isso. Você também pode não me querer ao
seu lado, mas como disse quero aproveitar cada momento.
— Como pode ser tão perfeita?
— Não sou perfeita.
— E se eu errar, Ann? Se izer algo que a magoe?
— Como ir ao baile da marquesa de Normanby? — Ela sorriu
fazendo com que ele sorrisse também. — Vou icar furiosa, mas isso não
será capaz de apagar o que sinto aqui dentro.
— Não vou aceitar esse convite, embora Lady Sarah ache que é o tipo
de evento bem-frequentado. Ela quer organizar um baile para me
apresentar à sociedade.
— Um debute.
— Lorde David fez o mesmo comentário.
— Deve aceitar, querido, será muito importante para você. Mesmo
que eu não possa estar presente ou ter meu próprio baile, estarei aqui
torcendo por você.
Ele afastou a bandeja e a puxou para o colo.
— Ainda vamos a muitos bailes, onde poderá dançar e se divertir.
Vou levar você para conhecer o mundo. Quero que seja a mulher mais
feliz que alguém já conheceu.
— Receio dizer que já sou. Nada do que está lá fora importa quando
estou em seus braços, Marcos. Você é o meu anjo, mesmo com
pensamentos pecaminosos.
— A senhorita não vai me seduzir, milady. Hoje eu só quero sua
companhia e o seu carinho.
Ele a beijou sem pressa, esquecendo-se completamente do jantar.
Quando Ann se afastou, obrigou-o a comer, enquanto contava as
reações de Izadora ao ouvir que estavam juntos.
***
***
***
Sei que prometi escrever com mais frequência, mas tanta coisa
aconteceu depois que Joana nasceu. Felizmente, Willian se envaideceu o
su iciente para me dar liberdade. Consigo ir a bailes, ele viaja com
frequência, Sra. Neil, nossa governanta, se aposentou e inalmente posso
ir e vir sem ser vigiada.
Não poderia deixar de escrever neste momento tão especial. Minha
Julliet nasceu. Como é linda e como se parece com o pai. H. veio vê-la às
escondidas na noite anterior; pude vê-los juntos e por um instante meu
coração se encheu de esperanças. Eles se parecem e, sinceramente, espero
que Willian não ache o mesmo que eu.
H. me prometeu que vamos fugir, pediu um tempo até que pudesse
colocar todas as dívidas em ordem e que tivesse dinheiro su iciente para
cuidarmos juntos de nossa família. Eu o esperarei nem que seja pelo resto
dos meus dias.
Sei que temos que ser cautelosos, mas com a ajuda da minha querida
amiga Izabel tudo ica mais fácil. Posso ver o sol brilhar de novo e en im
me sinto viva novamente.
Com exceção da obra que Willian está fazendo no primeiro pavimento,
na casa reina a mais plena paz. Eu o questionei sobre o novo cômodo, mas
ele desconversou dizendo que não era assunto para damas. Allan Smith
continua vindo com frequência e isso me desagrada. Não gosto do jeito
como ele olha e brinca com Joana; ela tem somente dois anos.
No jantar, antes de viajarem, ele comentou que icaria honrado em se
casar com nossa ilha mais velha. São quase vinte anos de diferença, e ela
é uma criança. Willian não quis conversar sobre o assunto. Izabel acha
que devo mantê-la longe dele, mas meu marido não esconde o orgulho da
ilha, que já fala e anda por toda casa.
Deus permita que eu possa sair daqui logo e levar minhas ilhas
comigo.
***
***
***
***
Londres 1812.
Sarah Granville,
Como sinto falta de minha amiga Izabel. Depois que Julliet nasceu, as
coisas icaram ainda piores. Há cinco anos, Willian tomou o banco de
Steve Baldwin e proibiu a irmã de vir me visitar. Hoje soube que ela icara
viúva há quase um ano e nem mesmo iquei sabendo. Allan deixou
escapar no jantar, e Willian não pareceu muito feliz por ele compartilhar
essa informação.
Preciso vê-la. Preciso me encontrar com H. Por que ele não me contou
nada sobre Steve em seus bilhetes? Por que Izabel não encontrou uma
maneira de se comunicar? Já faz quase cinco anos.
Achei que fôssemos fugir, mas ele acha arriscado para minhas ilhas.
Ontem, quando fui à modista, vi uma criança na rua e iquei pensando
em como a minha poderia estar. Sei que está bem cuidada, Izabel e H. não
deixariam que nada lhe faltasse. Mas não sei como eles estão, se têm
recursos.
Achei um saco de moedas de ouro, retirei algumas e vou encontrar
uma maneira de entregar a eles. É arriscado entrar onde Willian as
esconde, mas consigo pegá-las quando todos estiverem dormindo. É
degradante ver minha própria imagem escondendo as sujeiras de meu
marido.
Preciso encontrar uma maneira de ver Izabel, de ver H., de reencontrar
minha criança. Deus há de me ajudar.
Capítulo XIV
***
***
***
***
— Lady Ann, não sei se é uma boa ideia deixar que saia sozinha
novamente — Harold, o valete de Marcos, manejava a arma receoso.
— Não estarei sozinha, você vai comigo.
— Precisa mesmo desta arma?
— Precaução, Harold. Como estou?
Ann deu uma volta. Vestia calças e um conjunto completo de trajes
masculinos. A cartola por cima dos cabelos presos deixava seu disfarce
ainda mais convincente.
— Um perfeito cavalheiro, milorde. — Tomando cuidado para não a
tocar, o valete ajeitou a gravata. — O que pretende dizer às damas lá
embaixo?
— A verdade.
— Ficarei com a arma, milady. Só a entregarei em último caso.
Ann beijou o rosto do criado.
— Obrigada, Harold. Podemos descer?
Na agitada sala de Grove House Springs, as damas perfeitas estavam
particularmente agitadas. Ann chegou no exato momento em que Sarah,
a marquesa de Bristol, repassava o que aconteceria naquela noite. Sem
entrar na sala, Ann deixou a irmã discursar.
— David e Thomas se encontrarão com Willian no White’s. Meu pai
vai fazer uma visita ao banqueiro e vai insistir em aguardá-lo. Enquanto
isso, Marcos e John vão aproveitar a distração dos criados e tentar ver
se há algo atrás do quadro.
— E se houver? — Viollet perguntou, receosa.
— Edward e Lorde Baldwin estarão a postos com os demais lordes,
para pegá-lo em lagrante. Ouvi dizer que, se for julgado culpado pelos
lordes, Willian terá a punição ainda esta noite.
Ann entrou na sala, deixando as damas boquiabertas.
— Não esperavam que eu icasse aqui, não é?
— Onde conseguiu essas roupas? — Sarah não escondia a surpresa.
— Desculpe, Izadora, mas precisamos pegar um conjunto de Edward
e adaptar. Harold, o valete de Marcos, me ajudou.
— Quero uma dessas. — Viollet já estava de pé. — Vou com você.
— Vamos todas. — Izadora largou o cálice sobre a mesa.
— Não deveria estar bebendo — Marie ponderou —, e não acho que
deva ir.
— Não me diga o que fazer. Vamos precisar de suas habilidades para
ajudar Harold a nos vestir. Vamos todas para o meu quarto. Acredito
que haja roupas de Edward para todas.
Pela próxima hora, Harold e Marie se concentraram em transformar
as damas em verdadeiros cavalheiros. Quando inalmente conseguiu
um minuto a sós com Marie, Ann perguntou o que a a ligia:
— E minha mãe? Achei que viria para cá.
— Ela e minha mãe foram ver a duquesa. Acredito que a levarão para
Ansons House.
Ann sentiu um breve tremor tomar seu corpo, mas se conteve. Não
podia se dar ao luxo de fraquejar, aquela seria uma noite decisiva e não
havia espaço para medo, angústia ou receios.
***
O plano corria como esperado. De onde estavam, John e Marcos
podiam ouvir o vai e vem de criados atendendo às peculiares exigências
do duque, que aguardava o sogro. Mas, somente quando Augustus pediu
que servissem a refeição improvisada na sala de jantar, foi que os dois
conseguiram se aproximar do quadro.
Marcos tinha certeza de que podia render qualquer um dos criados
com um simples golpe, mas ainda assim seu corpo era tomado pela
adrenalina. Parecia que todos os seus sentidos estavam aguçados,
precisava icar atento ao menor dos sinais.
John puxou a moldura, fazendo com que a pesada porta rangesse
sobre o assoalho. Rezava para que o barulho de pratos e copos do
duque fosse o su iciente para abafar o som que faziam.
Um cômodo um pouco menor que o próprio quarto, Marcos tentou
comparar. Prateleiras do piso ao teto repletas de lingotes de ouro. John
tentou avançar dentro do cômodo, mas Marcos o impediu.
— Não, John, precisamos sair e sinalizar para Edward.
O visconde suspirou e se virou para Marcos, que já estava perto da
janela pela qual entraram. Não conseguiu resistir ao impulso de avaliar
melhor o cômodo. A excitação de segundos antes deu lugar a uma fúria
insana.
Ao se virar para sair, percebeu que não estava sozinho. Paralisou
sentindo o sangue se esvair.
Willian segurava um punhal e tinha um sorriso debochado nos
lábios.
— Vejo que tenho visitas para um brandy.
Sem dizer nenhuma palavra, John deu passos cautelosos em direção
à saída, mas já estava encurralado. Willian o encostou em uma das
prateleiras. O visconde esperava que o velho izesse qualquer
movimento em falso, uma oportunidade para se esquivar.
Tentou golpeá-lo, mas Willian foi mais rápido, abrindo um talho na
mão do visconde. Num impulso, este pensou em acertar o banqueiro
novamente, mas Marcos já havia avançado; num movimento ágil,
imobilizou o conde segurando-o pelos braços, fazendo com que o
punhal caísse no chão.
Marcos usou o próprio lenço para amarrar Lorde Granville. Em
seguida retirou o lenço de John e improvisou um curativo. Levaram
Willian para a sala onde Augustus já havia ordenado que os criados se
retirassem.
— Belo capataz, vossa graça. — O banqueiro sorriu com ironia.
— Sou um homem de muitas habilidades. — Marcos o olhou com
desprezo. — Posso ser negro, selvagem, desprezível, mas não sou um
criminoso.
Com as mãos amarradas, Willian cuspiu no rosto do farrusco, que se
manteve impassível. Movido pela fúria, John golpeou o banqueiro.
— Não seja covarde, John. — Marcos colocou a mão no ombro do
amigo.
— Ficaria tudo para você e sua família, Augustus.
— Esse dinheiro pertence à Coroa, Willian.
— Eu me afeiçoei a você. Você me lembra a minha Sarah. — O
banqueiro olhou para baixo. — Passei muitos anos acreditando que
você fosse ilho dela, mas você e Julliet se casaram e eu vi John nascer...
— Não sou um maldito Granville! Sou John Turner Anson. — Pegou-
o pelo colarinho, e o duque o impediu.
— Julliet nunca gerou uma criança. — Com os cabelos desfeitos, o
duque confessou, ainda segurando o ilho. — Lucy pariu John, os lençóis
foram trocados e a criança que carregou naquela noite foi gerada na
barriga dela.
Willian praguejou. John tentou atacá-lo novamente, mas o duque
retirou o ilho do cômodo. Marcos chegou bem perto e ofereceu um
sorriso irônico.
— É isso, Willian Granville, foi movido pela dúvida e pela culpa
durante todos esses anos. Sem se esquecer da ganância, é claro.
Morrerá sem saber se o duque de Sutherland é ou não ilho da sua
Sarah. Mas, para provar que não sou como você, vou lhe dar um
presente. Julliet é de fato uma bastarda.
Marcos saiu deixando a porta aberta, os gritos de Willian podiam ser
ouvidos do lado de fora. Um a um, os membros do júri daquela noite
entravam na casa do maior banqueiro da Inglaterra.
O magistrado foi o primeiro a entrar no cômodo onde Willian
guardava o ouro. Com um simples aceno de cabeça, informou seu
veredito ao duque. Logo depois se retirou e os outros sete entraram.
Augustus foi chamado do lado de fora. Ele deixou o julgamento
enquanto a casa mergulhava no mais profundo silêncio. Entrou na
carruagem parada do outro lado da via.
— Vossa alteza sereníssima.
— E então?
— O ouro voltará ainda hoje para a Casa da Moeda, achei mais
apropriado do que os cofres reais.
— Sábia decisão.
— Lorde D., o magistrado, vai acompanhar a devolução, vossa alteza.
Mas eu gostaria de permissão...
— Não tenho esse poder, vossa graça. Mas garanto que a morte de
Willian não será investigada.
O duque de Sutherland fez uma reverência e voltou para a casa na
qual um homem era condenado, e um cofre, esvaziado.
Era na calada da noite que casos como aquele eram julgados. No
completo silêncio e em um pacto de segredos. Não era o primeiro
julgamento de que Augustus participava. Fez questão de ir na mesma
carruagem que Willian até o lugar onde a pena seria cumprida.
Willian não seria o único a se despedir da vida naquela noite. Havia
dois lordes que se bene iciavam com as transações obscuras do
banqueiro. Edward izera um trabalho muito bom, o duque pensou com
orgulho, um autêntico Baldwin.
No campo aberto, cortado pela gelidez da noite, uma grande fogueira
foi acesa.
Envergonhado, Thomas se aproximou do avô. Willian seria para
sempre o maior criminoso do Reino Unido.
— As coisas poderiam terminar de modo diferente se você...
— Fico feliz em ser quem sou. Em não ter sido o que desejavam que
fosse. Mas sou grato ao senhor por ter me dado o meu bem mais
valioso.
— Não seja ingrato, Thomas, iz muito por você; era para você ter
sido espancado até a morte, pelo seu pai, se não fosse por mim. Será o
conde de Snowdon agora. — Willian sorriu com ironia.
— Eu preferiria morrer a viver essa vergonha. Seu nome não vale
mais nada.
— Para meia dúzia de lordes estúpidos.
— E para a rainha. Adeus, Lorde Granville, espero que Deus o receba
com compaixão.
Escondidas na escuridão, as damas, na companhia de Harold,
observavam a estranha movimentação. Haviam acompanhado tudo, de
dentro da carruagem; fora um milagre que coubessem todas, talvez
graças à falta das volumosas saias.
Sarah observava de longe Thomas se afastar do avô, com a cartola na
mão. Ele não olhou para trás. A marquesa relanceou Ann e deixou as
damas. Conseguiu chegar a tempo de ver o marido entrar na
carruagem. Com trajes masculinos, interpelou o cocheiro e subiu no
veículo.
Ann se virou para Marie.
— Não vi David nem Edward. Por favor, volte para casa com Izadora.
Está frio demais para ela e o bebê. Não é fácil para Thomas e não é para
David também. — Virou-se para o valete de Marcos. — Harold, leve-as.
— Não posso deixá-la sozinha, milady. Se formos com a carruagem,
como a senhora e Lady Viollet voltarão para casa?
— Veja quantas carruagens há aqui, Harold. Acha que eu e Viollet
não conseguiremos alguém para nos deixar em casa? Aproveite que
Izadora não reclamou.
— Está realmente frio — a brasileira se limitou a dizer, mas estava
abalada com a sordidez da cena que se montava.
Harold titubeou, mas assentiu, saiu arrependido por ter deixado a
arma nas mãos de Lady Ann.
— Não sei o que está pensando, mas não faça nada de que possa se
arrepender, Ann — a voz oscilante de Viollet fez com que Ann a olhasse.
— Talvez devesse ir com Harold.
— Não vou a lugar algum. O que pretende fazer vai trazer alívio, mas
a culpa vem na mesma medida. O sofrimento maior, Ann, vem quando o
alívio supera a culpa. Isso nos faz sentir iguais a eles.
Ann olhou para trás e viu que Harold havia voltado; ou, talvez,
sequer houvesse saído. O valete estendeu a mão e ela entregou-lhe a
arma. Sentiu a mão de Viollet se entrelaçar à sua. Saindo de trás da
árvore, as duas caminharam, juntas, para onde John e Marcos
contemplavam a grande fogueira.
Frente a frente, Arthur Baldwin e Willian Granville trocaram olhares
mortais.
— Precisa decidir como vai ser, Augustus.
— Eu me recuso a tomar essa decisão. — O duque cruzou os braços e
se virou ao ver dois cavalheiros se aproximando.
Não os reconheceu e agradeceu aos céus, imaginando que eram
portadores de ordens superiores. Não precisaria decidir o im de
Willian.
— Queime-o vivo.
Augustus piscou confuso, não reconhecendo o cavalheiro de voz tão
peculiar. Ele tinha a voz...
— Por favor, pai — Ann retirou a cartola causando espanto nos
presentes.
Em seguida Viollet também se revelou, e, mesmo a certa distância,
John, que observava o movimento, a reconheceu.
— Eu não estava errado, estava mesmo com o diário esse tempo
todo, não é? — Willian travou o maxilar quando foi pego por dois
homens. — Não é diferente de mim, bastarda inútil, matou a própria
mãe.
O banqueiro parecia fora de si. Debatia-se enquanto era arrastado
para a morte.
Ann viu o momento exato em que ele foi jogado no fogo. Um urro
estridente e uma cena de que se lembraria por muitas e muitas noites.
O duque abraçou a ilha.
John envolveu Viollet em seus braços e juntos caminharam
abraçados para a carruagem.
Marcos a olhava pedindo explicações.
— Eu precisava vir. — Com os olhos marejados, ela o encarou.
O duque, enquanto a conduzia até a carruagem, teve vontade de
questionar a ilha sobre a acusação referente à morte de Joana, mas
achou que o momento não era oportuno.
— Onde está esse diário, Ann?
— Na sua casa. Irá encontrá-lo quando chegar.
Ann deixou que o pai fosse sozinho na carruagem, não suportaria
uma enxurrada de perguntas. John e Viollet partiram com Lorde
Baldwin. Marcos conseguiu convencê-los a não irem até a casa do
duque.
— A duquesa está em Ansons House? — Marcos perguntou
enquanto a envolvia em uma manta, dentro da carruagem.
— Sim, está esperando por ele.
— Quer ir para lá?
— Não acho que deva. Quero ir para casa.
Marcos concordou e bateu no teto da carruagem para que seguissem
outro caminho.
— Matou mesmo sua mãe, Ann? — ele perguntou baixinho, ela
envolvida em seus braços.
— Esse segredo eu jamais vou revelar.
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