O Encanto de Um Patife - Canalhas - Loretta Chase

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Loretta Chase

Serie Canalhas (Scoundrels) 01

O ENCANTO DE UM PATIFE
The Lion's Daughter (1992)

Disponibilização e Tradução: Gisa


Revisão: Fabiana Brun
Revisão final e formatação: Mare.
Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Para Esme Brentmor não importa que a vingança não seja coisa de
mulheres. Está determinada a vingar o assassinato de seu amado pai, um
enigmático aristocrata inglês que passou os últimos anos de sua vida em um
exílio auto-imposto. A honra a obriga a não permitir que nada nem ninguém se
interponha em seu caminho. E isso inclui o bonito desonesto que, desde que
apareceu em sua vida organizada, colocou tudo de pernas para o ar e cujos
encantos não compensam seu caráter preguiçoso e irresponsável.
Tendo perdido toda sua herança nas mesas de jogo, Varian St. George,
Lorde Edenmont, trata de viver o dia a dia graças a seu engenho e
encantadoras maneiras. Sendo um homem cujo lema na vida é a lei do
«mínimo esforço» — preferivelmente sob os suaves lençóis das camas de
mulheres bem dispostas — não quer ver-se envolvido em uma amalucada
busca com uma ruiva de mau gênio armada até os dentes.
E dessa maneira, obrigados a viajar juntos por terras exóticas, o peculiar
casal descobrirá muito em breve que tocar pode produzir perigosas faíscas…

Série Scoundrels
1. The Lion's Daughter (1992)
2. Captives of the Night (1994)
3. Lord of Scoundrels (1995)
4. The Mad Earl’s Bride in “Three weddings and a kiss” (1995)
5. The Last Hellion (1998)

NOTA DA AUTORA

O livro Travels in Northern Greece («Viaje pelo norte da Grécia»), do coronel William
Martin foi publicado em 1835. Este texto, e Journey through Albania («Périplo pela Albânia »),
do John CAM Hobhouse (publicado em 1817) foram minhas principais fontes de informação
sobre o século XIX na Albânia. Por essa razão, Ioanina e Preveza, por exemplo, são na novela
cidades da Albânia, embora em nenhum mapa moderno aparecem dentro das fronteiras desse
país.
No tempo em que se desenvolve esta história, não existia o alfabeto albanês; até muito
recentemente, inclusive a fonética moderna utilizava diferentes maneiras de transliterar esta
língua, dependendo de cada escritor, ou de se se tratava do dialeto do norte ou do sul. Em
consequência, os primeiros escritores que viajaram a Albania transliteravan o albanês tal e

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como soava — algo que não é tarefa fácil para o ouvido inglês — ou, no caso dos nomes de
lugares, tiravam do latim, do grego, ou utilizavam as versões italianas. Para simplificar as
coisas, eu optei — salvo em uma ou duas exceções — por utilizar o albanês contemporâneo.
Por isso Esme não vive em Durazzo, ou Drus, ou Duratzo, ou Dyrrachium, mas em Durrës.
Por outra parte, deixei algumas expressões turcas da época, como «Pelo Alá». Embora se
utilizam em estranhas ocasiões na Albania contemporânea, certamente foram muito comuns
durante o século XIX.
Quero agradecer a meus pais, George e Resha Chekani, por me ajudar a esclarecer outros
muitos problemas linguísticos, e a resolver alguns enigmas históricos e políticos; também
agradeço a ajuda de minha irmã, Cynthia Drelinger, a meus tios, Mentor, Steve e George
Kerxhalli; e a minhas primas Skander e Mariana Kerxhalli. Estas últimas passaram três meses
conosco a princípios de 1991, sendo dos primeiros visitantes albaneses nos Estados Unidos
depois de mais de cinqüenta anos.
Como sempre, estou profundamente em dívida com meu marido, Walter, por sua crítica
construtiva, seus conselhos, sua sabedoria e seu apoio moral.
É obvio, qualquer atrocidade que possa haver neste texto é — sem dúvida alguma—
somente culpa minha.

Prólogo

Otranto (Itália), meados de setembro de 1818

Jason Brentmor deixou de lado a nota que sua cunhada entregou. Passeou
os olhos com o olhar perdido pelo azul mar Adriático, que brilhava sob o sol de
início do outono, e depois pelo terraço de pedra do palácio de seu irmão, até
que encontrou com o olhar azul de Diana. Então sorriu.
— Tranquiliza-me verificar que minha mãe não se abrandou com a idade —
disse ele. — Não desperdiça as palavras, não é mesmo? Como já sabe durante
os últimos vinte e quatro anos não me olhou com bons olhos. Para ela sou
ainda aquele moço imprudente que desprezou sua herança para viver entre os
bárbaros turcos.
— Ou seja, como o filho pródigo — respondeu Diana divertida.
— Exato. Somente precisaria me jogar de joelhos a seus pés e pedir
perdão para que eu e minha filha mestiça fôssemos aceitos de novo no seio
dos Brentmor. Que demônios você escreveu, querida?
— Só contei que tinha me encontrado com você em Veneza, na primavera.

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E também mandei uma cópia de meu novo testamento. — Diana apontou o


delicado jogo de xadrez que estava em cima da mesa, ao lado da
espreguiçadeira. — Esse jogo foi seu em outro tempo. Agora deveria ser o dote
de Esme.
— Esse foi o presente de bodas que fiz para você — disse ele.
— Teria preferido ter você em minhas bodas — respondeu ela. — Mas já
falamos de todos os nossos arrependimentos em Veneza, não é assim? E
tivemos três gloriosas semanas para compensar por tudo aquilo.
— OH, Diana, eu gostaria tanto…
Ela afastou o olhar.
— Espero que não comece a ficar muito sensível, Jason. Já sabe que é algo
que não suporto. Nós dois pagamos um preço muito alto por nossos enganos.
Mesmo assim, tivemos Veneza, e agora você está aqui. O passado não mais
existe. E não quero que nossos filhos tenham que pagar por isso, como se
tivessem vivido em um espantoso melodrama. Sua filha necessita de uma casa
e um marido apropriado, na Inglaterra, que é o lugar ao qual pertence. Leiloei
o jogo de xadrez e sei que vale uma grande quantidade de dinheiro.
— Ela não necessita…
— É obvio que sim, sobretudo se quiser que tenha um matrimônio feliz.
Com o dote apropriado, e sua mãe introduzindo-a de novo na sociedade, Esme
poderá escolher entre os melhores solteiros disponíveis. Já completou dezoito
anos, Jason. Não pode ficar na Albânia para acabar encerrada em algum harém
turco. Você mesmo disse isso. Assim volta com ela para casa e faz as pazes
com sua mãe. E não discuta com uma mulher moribunda.
Jason sabia que ela estava morrendo. Tinha começado a suspeitar no dia
que voltavam de Veneza. De outra maneira, não teria se atrevido a voltar para
a Itália tão rápido pela segunda vez. Entre uma visita e outra, a Diana de
dourados cabelos se converteu em um fantasma de si mesma: suas elegantes
mãos tinham adquirido uma triste fragilidade, com veias azuladas que
bombeavam sem força o sangue por debaixo de uma pele quase transparente.
Mas mesmo assim estava decidida a demonstrar firmeza; sempre tinha sido
orgulhosa e teimosa.
Ele se afastou do corrimão de pedra e, desviando o olhar de seu rosto

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ainda formoso, pegou da mesa a rainha negra do jogo de xadrez. As diminutas


pontas do elaborado vestido renascentista gravado na figura de xadrez
brilharam sob a luz do sol. Embora imaginasse que aquele jogo de xadrez
fosse uma antiguidade de mais de duzentos anos, estava completo e em
perfeito estado.
— Obrigado — disse ele. — Teria que voltar com Esme tão logo seja
possível.
— E isso o que significa?
— Significa que agora mesmo não posso — respondeu ele. — Mas espero
poder fazê-lo logo. — Seus olhos se cruzaram com o olhar de recriminação
dela. — Tenho outras obrigações, querida.
— Mais importantes que as que tem com sua própria família?
Ele voltou a colocar a rainha negra em seu lugar e se aproximou de Diana
colocando amavelmente uma mão sobre seu ombro. Odiava fazê-la se zangar,
mas tampouco era capaz de mentir.
— Os albaneses cuidaram de mim quando não tinha nada — disse ele. —
Deram-me uma esposa amante com quem tive uma forte e valente filha. Eles
proporcionaram um propósito digno para minha vida, dando-me a
oportunidade de fazer algo bom. E agora meu país de adoção necessitam de
minha ajuda.
— Ah! — disse ela em voz baixa. — Não tinha pensado nisso. Viveu com
eles mais de vinte anos.
— Se fosse algo sem importância, não duvidaria em partir. Sei que
demorei muito tempo morando lá e que está começando a ser difícil para
Esme, como você diz. Mas nesse momento Albânia está à beira do caos.
Ela ficou olhando fixamente.
— Sempre houve distúrbios — explicou ele. — Mas ultimamente as
sublevações parecem estar orquestradas. Encontrei um armazém de armas
inglesas roubadas, que entraram por contrabando no país. Estou seguro de
que há alguém realmente ardiloso por trás de tudo o que está acontecendo e,
desgraçadamente, parece ter uns seguidores igualmente sagazes.
— Uma conspiração, tio Jason?
Jason e Diana se voltaram para a porta, onde estava de pé o filho de doze

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anos dela, Percival, com seus olhos verdes brilhando de emoção. Jason tinha
esquecido do moço, que tinha se retirado discretamente fazia mais de uma
hora com a desculpa de provar o traje albanês que seu tio havia trazido.
— Que bonito e elegante está — disse sua mãe. — E ficou perfeito.
Era verdade. As estreitas calças com seus característicos trançados de
tecido se ajustavam a seu corpo como feito sob medida, assim como a negra
guerreira curta que vestia Percival por cima da folgada camisa de algodão.
— Fiz cortarem o traje na medida de Esme. É como ela está acostumada a
vestir-se sempre. Temo que seja um pouco masculino — disse Jason passando
uma mão pelo escuro cabelo ruivo do moço. — Sabe? Vestido assim passaria
por seu irmão gêmeo. O mesmo cabelo, os mesmos olhos…
— São seus olhos e seu cabelo — interrompeu Diana.
Percival colocou-se de lado e, com a típica indiferença que os jovens têm
pela vida e os riscos, subiu no muro de pedra do terraço. Ao longe, o mar
acariciava suavemente as rochas íngremes da costa.
— Só que eu nunca fui tão magro — acrescentou Jason sorrindo. — Não é
tão mau para um moço, mas quase exasperam em Esme. Porque como é tão
pequena e magra, os outros esquecem que já é uma mulher. E não gosta nada
que a tratem como a uma menina.
— Eu adoraria conhecê-la — disse Percival. — Eu não gosto das garotas
muito femininas. Quase todas são insuportavelmente tolas. Sabe jogar xadrez?
— Temo que não. Pode ser que eu ensine quando voltarmos à Inglaterra.
— Então, está pensando em voltar, tio? Alegro-me muito de ouvi-lo. Isso é
o que mais deseja mamãe, já sabe. — Sentado no muro de pedra, com as
pernas penduradas nos lados, Percival entreabriu os olhos contra o sol e ficou
olhando à volta da apenas visível linha de costa ao outro lado do mar: a costa
da Albânia. — Quando faz bom tempo — começou a dizer— , mamãe e eu
saímos aqui e os saudamos com a mão, e imaginamos que você e Esme podem
nos ver e devolvem a saudação. É obvio que isso não contamos a ninguém,
não é verdade, mamãe? Nem sequer lorde Edenmont. Ele pensa que saudamos
os pescadores.
— Edenmont? — repetiu Jason incrédulo. — Não se refere a Varian St.
George? Diana, que demônios está fazendo aqui esse tipo?

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— Vive aqui — respondeu ela com um meio sorriso. — De modo que o


conhece.
— Ouvi falar dele em Veneza. Era do círculo de Byron. Partiu da Inglaterra
para escapar de seus credores, para não mencionar sua afeição aos lençóis das
condessas. — Jason se interrompeu recordando a presença de Percival.
Sentou-se em uma espreguiçadeira e sussurrou com convicção— : Esse
homem é um parasita, um libertino e um folgado. O que quis com «vive aqui»?
— Quero dizer que vive a custa de meu marido.
— Um parasita, o que digo. Seu nome arrasta a pior fama…
— Por isso, obviamente, tem que viver a custa de outros. Eu penso que
lorde Edenmont não é mais que uma hera ornamental, que vive subindo pelas
paredes, de outra maneira, vulgares e aborrecidos edifícios públicos: ou seja,
de Gerald e de outros como ele. Varian é muito decorativo. Tem essa beleza
sombria e ameaçadora que costuma ser fatal para as sensibilidades femininas…
e para sua sensatez.
Olhou a careta que fez Jason ao ouvir suas palavras e não pôde evitar que
escapasse uma risada.
— Não para a minha, querido. Só o que sinto por ele é pena e,
ocasionalmente, agradecimento. Se lorde Edenmont se rebaixou a brincar de
ser o lacaio de uma mulher adoentada e a babá de seu precioso filho, essa é a
desgraça desse cavalheiro. Percival e eu estamos encantados com sua
presença, não é assim, querido? — acrescentou ela em um suave tom de voz.
— É um péssimo jogador de xadrez. Embora, por outro lado, seja bastante
inteligente — disse Percival pensativamente. — E além disso, diverte a mamãe.
Jason tomou a mão de Diana.
— É assim?
— O mais importante é que é muito amável com o Percival — sussurrou
ela. — Mas meu filho necessita a você, Jason. Gerald o detesta. Temo que
quando eu não esteja…
— Papai está vindo! — gritou Percival. — Sua carruagem acaba de dobrar a
esquina. — O moço saltou do muro. — Vou recebê-la, posso? — Sem esperar
que respondessem, agarrou a mão de seu tio e a estreitou saudando-o, para
logo sair correndo do terraço.

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Jason se ajoelhou ante Diana.


— Amo você — disse.
Ela rodeou os ombros com seus débeis braços.
— Agora é melhor que vá — disse ela. — Que seu irmão não encontre você
aqui e estrague nosso dia. Eu também o quero carinho, e estou muito
orgulhosa de você. Mas, por favor, poderia tentar apressar-se em voltar para a
Inglaterra com Esme?
Jason engoliu a saliva e concordou com a cabeça.
— Não se preocupe por mim — disse ela com firmeza. — Pensa em quão
felizes fomos os dois juntos em Veneza. Fez-me realmente muito feliz.
Ele a abraçou com os olhos empanados por lágrimas. Não pediu que o
perdoasse, porque sabia que já tinha perdoado. E não disse adeus, porque
sabia que ela não suportava as despedidas. Só a beijou uma vez mais e se foi.

Não querendo preocupar a sua mãe, Percival não havia dito que se
converteu em espião. Nunca em seus doze anos de vida tinha encontrado a um
homem que pudesse admirar realmente; não até que conheceu seu tio Jason.
Mas o respeito que sentia por ele como herói de guerra chegou de repente, no
momento em que ouviu seu tio falando de sublevações, contrabando e
conspiração. Com uma vaga noção de que poderia fazer chegar a seu tio
informação secreta de valiosa importância, Percival começou a farejar por
Otranto ou quando o tempo inclemente ou as altas horas da noite o
confinavam dentro de casa, pelo palácio onde vivia, escutando às escondidas
as conversas dos outros e procurando todo tipo de pistas.
Como a maioria das pessoas que andam procurando problemas, Percival os
encontrou em seguida.
Três noites depois da visita de Jason, o moço estava escondido no estreito
balcão de ferro forjado sob a janela do escritório de seu pai, bisbilhotando o
interior através da abertura entre as cortinas. Como a janela não estava bem
fechada, Percival podia ouvir perfeitamente a conversa.
O visitante de seu pai bem poderia ser grego, como pretendia, mas não
era um comerciante — e é obvio não tinha vindo para jogar xadrez com ele,

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como seu pai tinha feito acreditar a todos. O que queria o senhor Risto era
uma imensa quantidade de rifles britânicos e pequenas quantidades de outros
tipos de armas e munição. Seu pai havia dito que fazer contrabando desse tipo
de mercadoria era cada dia mais difícil e o senhor Risto tinha respondido que
seu chefe estava perfeitamente a par disso. Logo esvaziou uma grande bolsa
repleta de moedas de ouro sobre a escrivaninha de seu pai. Sem sequer
pestanejar, seu pai rabiscou algo sobre uma parte de papel e depois de
explicar o significado daquela mensagem em código, a deu ao senhor Risto.
Mas o senhor Risto negou com a cabeça e disse que não podiam fazer assim.
Parecia que não estava convencido de que seu pai fosse manter sua parte do
trato. Aquilo fez seu pai ficar enfurecido.
O senhor Risto queria que ele desse uma amostra de boa fé, e nenhuma
outra coisa mais que o jogo de xadrez poderia convencê-lo. Seu pai respondeu
que aquele jogo de xadrez tinha pertencido à família durante várias gerações e
que valia várias vezes o preço daquelas armas. Além disso, estava realmente
ofendido por aquela repentina falta de confiança depois de meses fazendo
negócios com o chefe do senhor Risto, Ismal. A discussão continuou até que,
ao final, o senhor Risto disse que se conformaria com uma das peças do jogo
de xadrez. Quando seu pai pôs objeções, o senhor Risto começou a colocar de
novo as moedas de ouro na bolsa. Muito irritado, seu pai agarrou a rainha
negra a contra gosto, desparafusou a base da figura, enrolou o pedaço de
papel com a mensagem em código, colocou-o dentro da peça e a deu ao
senhor Risto.
O senhor Risto voltou de repente a comportar-se amavelmente, deu a mão
a seu pai e prometeu que devolveria a peça de xadrez quando a mercadoria
chegasse a Albânia. Logo os dois homens saíram do escritório.
Armas britânicas. Contrabando. Albânia. É obvio, tudo aquilo era bastante
incrível, dizia Percival a si mesmo enquanto passava o olhar nublado pelo
escritório vazio. Certo que tinha sonhado tudo e nesse momento estava
profundamente adormecido em sua própria cama.
Percival conseguiu convencer-se de que tudo aquilo não tinha sido mais
que um sonho até o dia seguinte pela tarde, quando seu pai e todo o serviço
da casa ficaram a procurar por toda parte a rainha negra que faltava no jogo

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de xadrez, e que seu pai afirmava ter desaparecido inexplicavelmente.

Capítulo 1

Otranto (Itália), finais de setembro de 1818

Varian St. George se apoiou no muro do terraço e olhou por volta do mar.
A brisa marinha o acariciava prazerosamente, movendo apenas os brilhantes
cachos negros que caíam sobre sua fronte. Como um mar inflamado de azul
sob o abrasador sol de outono, o Adriático avançava lentamente para a linha
de escarpados da borda oposta. Em sua imaginação via montanhas de gelo
que o mar se esforçava em engolir em suas profundidades. Por mais que
aquelas chamas azuis arranhassem as montanhas, elas continuavam ali,
imperturbáveis, tão impenetráveis como o Vasto Império Turco que pareciam
defender.
Lorde Byron havia dito que ali podia encontrar a mulher mais formosa do
mundo. Pode ser que assim fosse. Mas parecia um caminho muito longo,
mesmo para ir procurar à própria Afrodite. É obvio, Varian não precisava ir tão
longe em busca de beleza. As mulheres perseguiam um lorde Edenmont de
vinte e oito anos onde estivesse, e estava seguro de ter no oeste da Europa
mulheres suficientes para satisfazer até ao homem mais voluptuoso.
Aquela noite, por exemplo, tinha uma entrevista com a esposa de olhos
escuros de um banqueiro, e isso era o futuro mais longínquo que Varian
necessitava ou estava disposto a preocupar-se. O resultado daquele encontro
estava fora de questão. Poderia fingir que acreditava nos virtuosos protestos
que a senhora expôs durante a primeira hora, ou talvez menos, dependendo
de quanto tempo ele gostasse de interpretar aquela comédia. Mas no final
acabariam fazendo exatamente o que desde o começo os dois estavam
dispostos a fazer.
Entretanto naquele momento os pensamentos de lorde Edenmont não
estavam postos na senhora do banqueiro, mas na família que o tinha
agasalhado e alimentado durante aquele verão.
Uma semana antes tinham espalhado as cinzas de Lady Brentmor sobre o

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Adriático. Havia falecido segurando entre as mãos a mão de seu filho, no


mesmo dia que toda a casa se dedicava a procurar freneticamente uma valiosa
peça de xadrez perdida.
Embora Variem já soubesse que tinha uma enfermidade incurável, sua
morte o havia emocionado e afligido. Apesar de sua crescente debilidade,
aquela mulher nunca pareceu estar doente. Agora suspeitava que tivesse
vivido aqueles poucos meses finais lançando mão de suas últimas forças só por
causa de Percival. Mesmo assim, não tinha ocultado a verdade de seu filho. De
fato tinha sido o mesmo Percival quem tinha explicado a Varian as regras do
jogo de Lady Brentmor do pouco que conhecia.
— Mamãe diz que não tem medo de morrer — havia dito a Varian. — Mas
o que não pode suportar é que todo mundo esteja triste e preocupado por ela.
E eu acredito que tem razão. Se estivermos tristes, fazemos que ela fique
triste. E para ela é muito mais saudável estar alegre, não lhe parece? —
Olhando Varian com uma séria expressão afirmativa, tinha acrescentado: — A
princípio não estava confiando muito em você, mas tem feito rir a mamãe e
você lê com muito mais expressão que papai ou que eu. Se quiser eu posso
ensiná-lo a jogar bem o xadrez.
De modo que, somente porque divertia lady Brentmor e a distraía de suas
dores, Percival estava disposto a aceitá-lo. Para Varian aquilo pareceu
comovedor até o dia que descobriu que o menino acreditava que ele era um
idiota sem remédio. Entretanto, o moço considerava que seu pai era ainda
muito mais idiota, e não havia dúvida de que não gostava absolutamente, o
que, para Varian era uma amostra do bom gosto e da inteligência superior de
Percival.
Tendo descoberto muito tempo atrás que seu pai o detestava, Percival
havia devolvido o favor despreocupando-se cortesmente de seu pai. O moço
tinha o afeto de sua mãe, o que já era suficiente para ele. Até aquele
momento.
Não que a infeliz situação da família do Percival fosse algo que
preocupasse Varian. Nunca tinha tido carinho por meninos, especialmente aos
adolescentes precoces como Percival. Não estava disposto a compadecer-se
daquele moço. Mas desgraçadamente Percival lembrava a Varian de seus

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irmãos menores. Aquele menino possuía o mesmo dom para meter-se em


problemas que Damon e o mesmo talento para justificar-se de maneira séria e
lógica que Gideon.
Agora e sempre, quando pensava nos irmãos que tinha abandonado,
Varian sentia uma pontada parecida com remorso. E ultimamente estava
começando a sentir o mesmo tipo de pontada por causa de Percival. Desde a
morte de lady Brentmor, sir Gerald não deixava de menosprezar e repreender
a seu filho de maneira desumana. Aquele comportamento teria sido já
bastante desagradável em qualquer circunstância. Mas vindo imediatamente
após a perda da adorada mãe era algo desmesuradamente cruel.
Varian tirou o relógio do bolso. Normalmente não teria levantado da cama
antes do meio-dia, mas no dia anterior tinha afastado Percival do caminho de
sir Gerald levando-o para dar uma volta pelo castelo de Otranto e depois à
catedral. Exausto, Varian tinha ido dormir à uma hora mais cedo que de
costume, e como resultado disso despertou quase ao amanhecer.
Disse a si mesmo que estava bem assim. Encontrou-se com sir Gerald à
hora do café da manhã e anunciou seus planos para partir. Possivelmente
tentaria ir a Nápoles, em primeiro lugar. Não que tivesse dinheiro suficiente
para chegar até lá, mas de qualquer modo já tinha viajado por meia a Itália
sem recursos. Tinha um velho título, um rosto e um porte de aparência
agradável e um encanto devastador. E tudo isso ele tinha aprendido há muito
tempo; era quase tão útil como o dinheiro no bolso.
Para sorte de Varian St. George, o mundo estava cheio de arrivistas como
sir Gerald, que além do título que seu pai tinha comprado, não era mais que
um comerciante. Como outros tantos arrivistas, era, é obvio, um esnobe.
Jantar de vez em quando com um ou dois aristocratas dava a ele a ilusão de
mover-se entre os círculos da elite. E nunca era difícil encontrar um aristocrata
que estivesse disposto a consumir uma comida grátis com alguém.
Varian, muito mais interessado que a maioria, estava disposto a consumir
alguns jantares ainda mais. Era até capaz de concordar converter-se em
hóspede da casa. Embora odiasse a comida que servia sir Gerald, beber seu
vinho, dormir em sua luxuosa habitação de convidados e ter que permitir que
os criados do barão lhe apresentassem seus respeitos. Mas em troca, Varian

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consentia a sir Gerald que deixasse usar seu antigo nome tão frequentemente
como o desejasse.
Era uma pena ter que abandonar um refúgio tão conveniente antes de ver-
se obrigado a isso. Mas de qualquer modo sir Gerald retornaria logo a
Inglaterra. Partir agora não ia fazer com que melhorasse absolutamente a
situação de Varian… E é obvio que ia piorar bastante a do Percival, maldito
seja! O que ia ser daquele moço, que aparentemente não tinha ali outro amigo
além ele, quando Varian partiu?
Tirando com resolução a grave situação de Percival dos seus pensamentos,
Varian se dirigiu para a sala de jantar.

Durrës, Albânia

Da distância, a casa do Durrës parecia um desvencilhado montão de


pedras amontoadas em um escarpado elevado por cima do Adriático. Era
menor que as anteriores casas de adubo nas quais tinham vivido. Estava
composta somente por duas pequenas salas: uma para morar e outra para
armazenar as provisões. Mas para Esme Brentmor era uma casa bonita.
Durante toda sua vida ambulante, aquela era a primeira vez que vivia em uma
casa bem em cima do mar.
Possivelmente o Adriático não fosse de um azul tão profundo como o
Jônico, mas tampouco era tão aprazível. No verão, os ventos alísios do norte o
faziam encrespar-se. Em outono e inverno, os violentos temporais do sul
sopravam com frenesi como se quisessem arrancar a casa de seus alicerces.
Em vão. Apesar de a pequena estrutura gretada parecer estar a ponto de cair
em pedaços sob a mais suave brisa, era tão sólida como o próprio escarpado
de pedra sobre o qual se assentava, desafiando com idêntico aprumo tanto os
temporais de inverno como as abrasadoras brisas do verão.
O mar os abastecia de pescado fresco quase todo o ano. A pouca distância
do escarpado, a horta que tinha plantado Esme florescia sobre uma terra
surpreendentemente fértil. Era a primeira vez que pode cultivar durante mais
de uma estação, e o mais generoso de todos; proporcionava a eles milho,

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legumes e verduras. Mesmo as galinhas, na sua maneira particularmente


irritável, pareciam felizes.
Mas Esme, naquele momento não era feliz. Sentou-se com as pernas
cruzadas sobre a dura borda do escarpado, com os olhos cravados em suas
mãos entrelaçadas, enquanto falava com sua melhor amiga, Donika, que ia
partir ao dia seguinte a caminho da Saranda, para casar-se.
— Nunca mais voltarei a vê-la — disse Esme com tristeza. — Jason diz que
logo teremos que retornar a Inglaterra.
— Mamãe me disse, mas não partirá antes de minhas bodas, não é? —
perguntou Donika com preocupação.
— Temo que sim.
— OH, não! Peça-lhe por favor. Só um mês a mais.
— Já perguntei e não serviu de nada. Fez uma promessa a minha tia
inglesa, que está morrendo.
Donika suspirou.
— Então não podemos fazer nada. Uma promessa no leito de morte é
sagrada.
— Ah, sim? Pois para ela não há nada sagrado. — Esme lançou uma pedra
à água. — Faz vinte e quatro anos ela rompeu a promessa de matrimônio que
tinha feito a ele. Por quê? Porque uma vez ele se embebedou e cometeu um
engano tolo, como poderia ter acontecido com qualquer homem jovem. Perdeu
uma parcela de terreno jogando nas cartas, isso é tudo. Mas ela disse que era
um ser débil e baixo, e que não podia casar-se com ele.
— Isso não foi muito amável. Deveria ter perdoado aquele engano. Eu o
teria feito.
— Pois ela não o fez. Mas ele perdoou a ela. Foi visitá-la duas vezes nesse
ano. Disse que aquilo não foi culpa dela, mas que foi obrigada por seus pais.
— Uma moça deve obedecer a seus pais — disse Donika. — Não pode
escolher um marido por si mesma. Mas mesmo assim acredito que não
deveriam ter quebrado sua promessa de matrimônio.
— Foi ainda pior que isso — disse Esme zangada. — Após um ano de ter
rompido com meu pai, casou-se com seu irmão. Ela pertencia a uma família
nobre e rica, e já pode imaginar o que isso tranquilizava a família de Jason.

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Aceitaram-na rapidamente, mas meu pai partiu do país para sempre.


— Os ingleses são muito estranhos — disse Donika com sensatez.
— Não são muito normais — concordou Esme. — Quer que diga o que
escreveu meu avô inglês quando chegaram notícias de meu nascimento? São
palavras que ainda me queimam o coração. «Não era suficiente», dizia de mim
em sua odiosa carta, «que tivesse desonrado o nome dos Brentmor com sua
imprudente depravação. Não era suficiente que tivesse perdido as
propriedades de seu avô, para romper o coração a sua mãe. Não era suficiente
que saísse fugindo de seus enganos em lugar de ficar aqui, como um homem,
para assumir as consequências dos mesmos. Não. Tinha que acrescentar a
nossa vergonha a impureza dos bandidos turcos, casando com uma dessas
desprezíveis mulheres bárbaras e infectando o mundo com outro desses
selvagens pagãos.»
Donika ficou olhando horrorizada sem acreditar no que ouvia.
— Em inglês soa ainda pior — confirmou Esme fazendo uma careta. — E
essa é a família para a qual meu pai quer levar-me.
Donika se aproximou dela e colocou um braço tranquilizador por cima do
magro ombro de sua amiga.
— Sei que é muito duro — disse ela, — mas pertence à família de seu pai.
Ao menos até que se case. E pode ser que não demore muito em fazê-lo.
Estou segura de que seu pai buscará um marido na Inglaterra. Vi a alguns
ingleses. São mais altos que os francos, e alguns até bastante fortes e bonitos.
— OH, sim! E estou segura de que estão morrendo de vontade de dar
boas-vindas a uma pequena e feia bárbara na família.
— Você não é feia. Tem uma cabeleira espessa e formosa, cheia de fogo —
disse Donika afastando umas mechas de ondulado cabelo vermelho da fronte
de Esme. — E tem uns olhos formosos. Minha mamãe diz o mesmo. Formosos
como folhas de carvalho, diz ela. E também tem uma pele muito suave —
acrescentou, roçando ligeiramente a bochecha de Esme.
— Não tenho seios — disse Esme com tristeza. — E tenho os braços e as
pernas como palitos.
— Minha mãe diz que não importa que uma moça pareça fraca desde que
seja forte. Também ela era fraca, mas mesmo assim deu a luz sete meninos

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

sadios.
— Eu não quero dar filhos a um estrangeiro — soltou Esme. — Não quero
ir à cama com um homem que não saiba falar minha língua, nem criar a um
menino que nunca aprenderá a falá-la.
— Na cama não é preciso que fale — lhe disse Donika com uma risada
tola.
Esme lhe dirigiu um olhar de reprovação.
— Não deveria ter contado nunca o que me disse Jason sobre como se
fazem os meninos.
— Me alegro que o faça. Porque agora já não estou assustada. Não me
parece que seja algo tão difícil, embora ao princípio possa dar um pouco de
vergonha.
— Também é bastante doloroso ao princípio, acredito — disse Esme
momentaneamente distraída por aquele interessante tema. — Mas já me
disseram duas vezes e não acredito que possa ser pior que ter uma bala
metida no corpo.
Donika lançou um olhar de admiração.
— Você não tem medo a nada, pequena guerreira. Se pode enfrentar aos
bandidos, não vai ter problemas com nenhum de seus familiares ingleses. Mas,
mesmo assim vou perder você. Se ao menos seu pai pudesse encontrar um
marido aqui — disse Donika olhando para o mar e suspirando.
— Isso é o mesmo que querer encontrar uma montanha de diamantes. O
fato é que eu pareço muito mais uma garota, e seria melhor soldado que
esposa. Um homem deve ser muito velho ou estar muito desesperado para me
querer, quando pode conseguir uma mulher completa, formosa e dócil pelo
mesmo preço.
Donika lançou uma pedra à água.
— Disseram-me que Ismal a quer — disse Donika após um momento. —
Não é velho nem está desesperado, mas sim é jovem e muito rico.
— E é muçulmano. Preferiria que me metessem em azeite fervendo antes
de acabar em um harém — disse Esme com firmeza. — Mesmo a Inglaterra,
com a família que me odeia, seria melhor que isso. — ficou pensando um
momento e logo acrescentou: — Não tinha contado isso antes, mas uma vez

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tive medo de que isso acontecesse.


Donika se voltou para ela.
— Quando tinha quatorze anos, e tinha ido visitar minha avó no Girokastro
— continuou Esme — Ismal e sua família estavam ali. Ele começou a me
perseguir pelo jardim. Eu pensei que se tratava de um jogo, mas… — Se
interrompeu ruborizada.
— Mas o que?
Embora não tivesse ninguém mais que pudesse ouví-las, Esme baixou a
voz.
— Quando me apanhou, beijou-me… na boca.
— Seriamente?
Esme moveu a cabeça de um lado a outro à maneira que têm os albaneses
de afirmar.
— E o que sentiu? — perguntou-lhe Donika com impaciência. — É tão
bonito como um príncipe. Com um formoso cabelo dourado e os olhos como
pérolas azuis…
— Foi algo úmido — interrompeu Esme. — Eu não gostei absolutamente.
Dei-lhe um murro, sequei a boca e saí dali gritando. — ficou olhando a sua
amiga. — E ele ficou ali, deitado no chão e rindo-se. Acreditei que estava
louco, e fiquei aterrorizada pensando que possivelmente seu avô pensasse
fazer uma oferta por mim, e que teria que me casar com esse menino louco de
boca úmida e acabar vivendo em seu harém… mas não aconteceu nada. Ou se
fez alguma oferta, possivelmente Jason a rechaçou.
Donika se pôs a rir.
— Não posso acreditar nisso. Deu- um murro no primo do Alí Pachá?
Poderiam tê-la executado.
— O que teria feito você? — perguntou Esme.
— Pedir ajuda, é obvio. Mas nunca teria passado pela sua cabeça pedir
ajuda. Você não pode deixar de acreditar ser um soldado. Não, você acredita
que é todo um exército.
Esme dirigiu o olhar para o mar. A partir de agora, cada dia que passasse a
afastaria um pouco mais de tudo aquilo que conhecia e queria… para sempre.
— Meu pai não é nem um pretendente não desejado nem um inimigo —

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disse Esme em voz baixa. — Não posso lutar contra ele. Quando ao final me
confessou que queria voltar para casa, senti-me tão destroçada que não pude
discutir com ele. Tive que contar a você quão mal estou para poder desafogar,
mas não dê importância. Sei o que é que tenho que fazer. Não pode ir sem
mim, e eu o quero muito para tentar convencê-lo que fique aqui. Farei por ele
tudo o que esteja em minha mão.
— Não acredito que vá passar tão mal — a tranquilizou Donika. — Ao
princípio sentirá falta de seu lar, mas assim que case e tenha filhos a seu
cuidado saberá que é muito feliz. Pensa como sua vida ali pode ser rica e cheia
de experiência.
Seu olhar passeou por cima do mar enfurecido e Esme somente viu vazio
ao longe. Mas, milagrosamente, sua amiga estava apaixonada pelo homem
que sua família tinha escolhido para seu marido. Esme decidiu que já era muito
sentir pena dela mesma. Basta de tristeza. Esse era um momento muito feliz
para a Donika e era muito cruel estragá-lo — Assim será — disse Esme
conformada. — E ensinarei a meus filhos albanês em segredo.

Otranto

— Tenho que pedir-lhe um favor, Edenmont — disse sir Gerald a Varian


enquanto ele se servia a segunda taça de café. — Tinha esperado poder partir
muito em breve para a Inglaterra, mas minhas obrigações não me permitem
isso. Quero pedir que leve o Percival com você a Veneza.
— É obvio que seria uma honra para mim — murmurou Varian
educadamente, — mas…
— Já sei que é muito que peço — interrompeu o barão, — mas não tenho
outra opção. Nesse momento não posso cuidar do moço. Trata-se de algo difícil
e tedioso de explicar, mas basta que lhe diga que tenho nas mãos uma
negociação muito delicada, para dizer de algum modo, e não posso ter o
menino a meu lado, me chateando todo o tempo.
Varian ficou olhando inexpressivamente sua taça de café.
— Não será por muito tempo. Espero poder aliviá-lo dessa carga em um ou

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dois meses.
Um mês? Ou dois? Pensou Varian colocando outro torrão de açúcar no
café.
— É obvio eu me encarregarei de todos os gastos — disse sir Gerald.
Logo extraiu do bolso do peitilho de sua camisa um talonário de banco e o
deixou ao lado do pires de Varian.
Varian ficou olhando o talonário tratando de guardar a mesma compostura
que quando ficava olhando uma boa mão de cartas, com seus olhos cinza tão
inescrutáveis como a fumaça.
— Para os pequenos gastos — disse seu anfitrião. — É obvio que me
encarregarei de conseguir as passagens e os alojamentos adequados, tanto
durante a viagem como em Veneza.
— Veneza, nesta época do ano, é uma cidade muito úmida — disse Varian.
— Bom, não tem por que preocupar-se com nada. Não me importa o
tempo que demore em fazer a viagem, se é que quer visitar algum outro lugar
no caminho, compreende-me? Darei a vocês um criado para que os
acompanhe e também pagarei seus serviços. Da maneira que você preferir.
As passagens pagas, uma fortuna para pequenos e um criado. Para um
homem com uma libra, três xelins e seis pences no bolso, aquela oferta era tão
irresistível como pretendia sê-lo.
Varian levantou o olhar da taça de café para ver o olhar impaciente de seu
anfitrião.
— Como eu já disse, sir Gerald, será para mim uma honra fazer esse favor
— disse Varian.

Tepelena, Albânia

Alí Pachá, o matreiro déspota que governava Albânia, era velho, gordo e
estava doente. Periodicamente tinha arrebatamentos de loucura. Eles o
conduziam a atos de uma selvageria tão sádica que mesmo os albaneses,
acostumados à brutalidade de um mundo no qual a vida humana era muito
barata, achavam digno de mencionarem.

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O fato é que a maioria da população continuava sendo fiel, e que até


sentiam orgulho de seus triunfos, era evidente não só seu estoicismo, mas
também sua aguda perspicácia política. Havia montões de monstros dispostos
a governar às oprimidas massas do Império turco. É obvio, Alí era o único
monstro a quem o sultão não podia fazer seu escravo. Em consequência, o
sultão não podia fazer dos albaneses seus escravos. Somente respondiam ante
o Alí — quando concediam responder ante alguém — e ele não era um
estrangeiro, mas um albanês, um dos seus. Nem sequer tinha se preocupado
por aprender turco. Para que incomodar-se, quando de qualquer modo não
pensava escutar aos turcos?
Como os albaneses, Jason Brentmor tinha uma ideia clara de como era o
maquiavélico visir. Consciente do valor de Alí, e de seu poder militar e político,
e pesando as vantagens de um homem com um caráter infestado de defeitos,
Jason ainda sentia que Alí Pachá, o Leão da Ioanina, era muito mais preferível
que qualquer das alternativas disponíveis.
Depois de uma íntima associação que durava já mais de vinte anos, Jason
tinha chegado a conhecer muito bem ao Alí. Mas enquanto abandonava o
palácio do visir, Jason desejou que seu amigo não o conhecesse tão bem
assim. É obvio que, como cidadão britânico — havia dito Alí— , Jason era livre
para abandonar Albânia no momento em que o desejasse, mas…
Bom, o que o longo «mas» do Alí queria dizer era: «Como pode me
abandonar em um momento como esse, depois de tudo o que eu tenho feito
por você?».
— Tem muita razão — disse Jason a seu companheiro Bajo, enquanto se
dirigiam de volta da Tepelena àquela tarde. — E veja que não sabe nem a
metade do que está acontecendo. Se os rebeldes tiverem êxito, Albânia se
afundará no caos e os turcos poderão entrar facilmente para oprimir a seu
povo. Alí duvida de que os levantamentos levem a alguma parte, mas neste
momento não quer ter mais problemas, porque está tratando com os gregos
para se unam a sua revolução.
— Se os gregos se unem, sob seu comando, seríamos capazes de derrotar
os turcos — disse Bajo. — Mas Alí é velho. Temo que não fique muito tempo.
— Já viveu sua época. Deveria chegar a cumprir os cem anos.

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Bajo ficou olhando surpreso.


— Não falou de suas suspeitas sobre o Ismal?
— Não podia fazê-lo. Alí esteve muito preocupado com seu grande projeto
para dar-se conta de que o que temos entre mãos é algo mais que uma série
de distúrbios isolados. Se se inteirasse de que estão tramando uma
conspiração… e de que seu próprio primo está por trás…
— Seria um banho de sangue — concluiu sucintamente Bajo. Seu olhar se
adoçou, compassivo. — Ah, Leão Vermelho, tem que enfrentar a isso sozinho,
se quiser que se solucione tudo sem uma grande matança!
Jason suspirou.
— Dei-me conta disso faz um quarto de hora. Tive todo o tempo do mundo
para pensar nisso enquanto fazia ver que estava escutando os extraordinários
planos do Alí para desfazer o jogo dos turcos. — interrompeu-se um momento
e olhou a seu redor, mas não havia ninguém à vista. — Acredito que fiz ver que
era possível que me assassinassem — disse em voz baixa.
Bajo meditou um momento aquelas palavras e logo assentiu com a
cabeça.
— Muito inteligente. Se Ismal quer ter êxito, terá que tirá-lo do meio. Se
acreditar que já está morto, não necessita ser tão cauteloso. Enquanto isso,
poderá ir aonde queira e fazer o que tiver que fazer sem incômodos espiões e
assassinos que o persigam por toda parte.
— Essa não é a única razão — disse Jason. — Acredito que Ismal é muito
ardiloso para dar ele mesmo a ordem afim de que me matem, ao menos nessa
fase inicial do jogo. Parece-me que está tratando de me atar às mãos, e a
melhor maneira de fazê-lo é ter a Esme como refém. Esteve insistindo muito
nos últimos tempos no desesperadamente apaixonado que está dela. Parece-
me que está tentando seqüestrá-la e fazer com que pareça um ato de paixão.
Algo que Alí não duvidaria em acreditar; já seqüestrou a muitas mulheres e
moços, certamente porque se apaixona por ambos os sexos.
— Vejo grandes vantagens em fazer ver que morreu — disse Bajo. —
Então ela já não seria de nenhuma utilidade para o Ismal e a deixaria em paz.
— Mas eu não quero ter que me arriscar sequer a isso. Quero tirá-la da
Albânia — disse Jason com firmeza. — Eu estive meditando e sei que causará

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uma grande dor, mas não vejo outra solução. Esme tem que acreditar que
estou morto ou nunca partirá daqui sem mim. Tem que se assegurar de que
acredite e levá-la a Inglaterra. Dar-te-ei dinheiro e os nomes de algumas
pessoas em Veneza em quem posso confiar para que a conduzam até minha
mãe.
— Por Alá, Leão Vermelho! O que está me pedindo? Quer que convença a
sua filha de que está morto e depois consiga que a pobre criatura parta daqui
em pleno luto? Sua filha é uma mulher muito teimosa. Como vou conseguir
convencê-la para que vá viver com uns estrangeiros desconhecidos?
— Não tem que dar tempo para que ela pense — respondeu Jason
bruscamente. — E se causar algum problema, golpeia-a na cabeça e amarre as
mãos. É para seu próprio bem. É melhor que passe umas quantas horas de
desconforto e uns quantos dias de luto antes do que ser raptada ou
assassinada. Não me obrigue a escolher entre ela e Albânia. Amo esse país e
arriscaria minha própria vida por ele… mas amo muito mais a minha filha.
Bajo deu de ombros.
— Bom, depois de tudo você é inglês. — Bajo dirigiu um sorriso ao Jason.
— Farei o que me pede. Ela é uma mulher que vale mais que dois homens
bons. Digo-o frequentemente. E uma vez que Esme esteja a salvo, longe
daqui, voltarei para ajudá-lo. Imagino que quer que vá agora mesmo, não?
— Não, ainda não. Primeiro é preciso me assassinem. Será melhor que o
façamos mais ao norte. Tenho que cair no rio e ser engolido pela corrente nas
gargantas profundas. Não queremos que ninguém se dedique a procurar meu
corpo, não é assim?

Capítulo 2

Bari, Itália

— «Quem logo abandonou seus encantos por uma sorte vulgar» - citou
Percival. — O que significa?
Varian se deteve na soleira da porta com a toalha entre as mãos.
Percival tinha pedido que visitassem aquele dia os postos de pescado, que

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se dizia que existiam no porto do Bari desde antes da época dos romanos. A
zona cheirava realmente como se tivesse existido, e que não a limpavam desde
o começo dos tempos. Ali Varian tinha visto como o moço consumia uma dúzia
de ostras e outra de ouriços do mar, seguidas por meia dúzia de almejas.
Embora Varian não tivesse participado do festim, o fedor do pescado aderiu
também a seu corpo de maneira permanente. Aquele era o terceiro banho que
tomava e por fim parecia ter desaparecido o aroma.
Acabou de secar o cabelo com a toalha, logo o penteou para trás e entrou
na sala de estar. Farejou o aroma do menino ao passar ao lado do Percival,
mas seu criado o tinha esfregado até na consciência. Não ficava nenhum
indício do fedor a pescado.
Percival voltou a repetir o verso de Childe Harold.
— Imagino que «sorte vulgar» é um eufemismo - disse o menino. — Se
refere Byron às mulheres de má reputação? Não ocorre a que outra coisa pode
estar se referindo. Mas por que abandonar a que amava por uma fulana,
quando se supõe que já está farto de fulanas? E por que fala de «sorte»
quando se sente tão infeliz?
— Não estou seguro de que deva explicar. — disse Varian, enquanto
deixava-se cair em uma fofa poltrona ao lado do fogo. — E não acredito que
seu pai aprovasse você lendo os versos de lorde Byron.
— É obvio que não o aprova — assentiu Percival levantando o olhar do
livro. — Mas papai não está aqui e você sim. E não se parece absolutamente
com ele. De fato, mamãe dizia que é como Childe Harold, de modo que se
poderia concluir que é a pessoa mais apropriada para me explicar como devia
sentir-se ele. Parece uma espécie de herói mal-humorado. Agora bem, se
passar a vida desfrutando dos prazeres, como pode ser tão infeliz?
— Pode ser que se arrependa de seus pecados.
— Eu acreditava que os homens libertinos somente fazem isso quando já
são velhos decrépitos. A gota, como tenho entendido, reformou a muitos
pecadores.
— Pode ser que Childe Harold tenha dor de dente — disse Varian
recostando-se confortavelmente contra o respaldo de seu assento.
Sentia-se aliviado ao perceber que Percival havia tornado de novo a ser ele

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mesmo. O menino tinha estado estranhamente tranquilo e se comportou muito


bem durante todo o caminho até Bari, como um fantasma triste que olhava
sem entusiasmo do guichê da carruagem durante horas e fazia tudo o que
Varian lhe pedia sem protestar. Parecia que os crustáceos tinham revivido o
natural aspecto de Percival. E não parecia que tivessem afetado o seu
estômago. De noite, o menino tinha engolido comida suficiente para alimentar
a um elefante. Onde demônios colocava tanta comida? Era o menino mais
esquálido que Varian jamais tinha visto fora dos subúrbios onde viviam os
pobres.
— Pecou com a senhora Razzoli? — perguntou Percival após um momento.
— Rinaldo dizia que você foi seu cavalheiro servente, mas isso não é mais que
uma expressão idiomática, não é assim? Quando a visitou em sua casa,
estiveram…?
— Conversando — disse Varian. — É uma mulher muito culta. E me parece
algo vulgar fofocar com os criados, Percival.
— Sim, isso também diz minha avó, mas também é muito interessante.
Criados sabem tudo.
— Espero que sua avó se alegre de ter a você e a seu pai de volta na
Inglaterra.
O menino seguiu com amabilidade aquela mudança na conversa
— Bom, faz tudo o que pode, isso diz ao menos ela, pelo menos desde que
não tem a ninguém mais a seu lado. O tio John, a quem todos chamavam Jack,
era o major. Acredito que morreu antes que eu nascesse. E o tio J… — Percival
duvidou por um instante, logo fechou o livro e aproximou sua poltrona da de
Varian. Em um tom de voz baixo e confidencial, acrescentou: — Querem fazer
crer que o tio Jason também morreu, mas não é verdade.
— O irmão de sua mãe? — perguntou Varian. Já sabia que o irmão mais
velho de sir Gerald tinha morrido por causa da gripe anos atrás. Mas não tinha
ouvido falar de nenhum outro Brentmor.
— O irmão mais novo de papai — explicou Percival. — Partiu da Inglaterra
faz muitos anos e eles sempre têm feito ver que tinha morrido, porque
estavam muito zangados com ele. Mas não está morto. Ainda vive e… é um
herói.

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— Deve ser um herói muito discreto — disse Varian. — Nunca tinha ouvido
falar dele.
— Ouviu falar do Alí Pachá, o governador da Albânia? — perguntou Percival
golpeando com o dedo a capa de seu livro. — Por isso estou lendo esse livro.
Lorde Byron fala do Alí Pachá e dos albaneses, e ali está meu tio. Faz muitos
anos que vive ali e o chamam de Leão Vermelho. Puseram-lhe esse apelido por
seu valor e por ser ruivo. Tem a mesma cor de cabelo que eu… e acredito que
isso é algo muito estranho entre os albaneses.
— Perdoa Percival, mas não vejo a relação que há entre esse poema e um
de seus familiares. E nunca ouvi falar de nenhum Leão Vermelho. Onde leu
algo sobre esse tipo?
Percival elevou as sobrancelhas.
— Não acredito ter dito que eu tenha lido algo sobre meu tio.
— Então, como sabe tantas coisas de um familiar ao quem todo mundo dá
por morto? — perguntou Varian dirigindo ao moço um olhar interrogativo.
Percival se moveu um pouco, como intranquilo, mas após um momento se
inclinou para trás em sua poltrona com expressão pensativa.
— Pode ser que seja um sonho — sugeriu Varian.
— Não, não é um sonho.
— Então, um conto de fadas.
— Não. É totalmente certo. — Percival mordeu o lábio. — Posso
demonstrar isso. — Disse — Se é que me desculpa durante um momento.
Percival saiu correndo da sala, deixando Varian observando inquieto o
fogo. Depois de um momento, o menino retornou trazendo consigo uma pilha
de roupa. Colocou os objetos sobre a poltrona: umas calças de lã adornados
com uns trancados de tecido, uma guerreira negra com adornos dourados e
uma camisa larga de algodão.
— São um presente de tio Jason — disse Percival. — Assim é como se
vestem os albaneses, ou ao menos alguns deles. Disse-me que tinha pensado
que não ia querer vestir o traje típico escocês até que fosse velho. Mamãe me
disse que não devia mostrar essa roupa a ninguém, porque papai poderia
chegar a descobrir tudo. Mas você não vai contar nada a papai, não é assim?

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— Contar o que? — perguntou Varian, apesar de suspeitar qual ia ser a


resposta.
— Que o tio Jason veio nos visitar.
Percival tomou um diminuto pedaço de fios do bolso da guerreira e alisou
uma ruga que havia na camisa albanesa.
Depois de meia hora Varian já conhecia mais da metade da história. Jason
os tinha visitado duas vezes: uma longa estadia em Veneza — enquanto sir
Gerald estava de viagem procurando uma vila no sul da Itália — e uma breve
visita de poucos dias antes que lady Brentmor morresse. A partir dos
comentários inocentes que fazia Percival — entre eles, os elogios das
intermináveis virtudes de seu tio — Varian imaginou que Jason Brentmor tinha
sido algo mais que um cunhado para Diana.
Varian não podia culpá-la por ter sido infiel a um marido como sir Gerald.
Tampouco o surpreendia que seu amante fosse seu cunhado. Ao contrário,
recebeu bem a notícia. Varian já tinha suspeitado que levava uma vida infeliz,
mesmo deixando à parte sua enfermidade. Sentiu um estranho alívio ao saber
que alguém a tinha feito feliz durante um tempo.
— Bom, estou encantado de que tenha tido a oportunidade de conhecer
seu maravilhoso tio — disse Varian quando o menino terminou de contar a
história. — Entretanto, está tarde e deverá levantar amanhã cedo se queremos
ir visitar a igreja de São Nicolás.
Varian tinha planejado já sua própria visita para aquela mesma noite: uma
relaxada exploração dos encantos de certa dama de olhos negros que
encontrou no castelo de Bari.
— Mas ainda não contei as coisas terríveis que tenho feito — disse Percival
baixando seus verdes olhos.
— Eu não sou seu padre confessor — respondeu Varian com um timbre de
impaciência na voz. — Enquanto não Enquanto não tenhas dissecado teus
variados espécimes à hora de comer, ou tenha enchido minha cama de pedras,
seus pecados acredito que são coisa sem importância…
— Dei a ele a rainha negra — disse Percival com voz abafada. — Por
acidente, quero dizer. Mas se papai chegasse a descobrir seria capaz de me
mandar a um colégio interno na Índia. Ameaçou milhares de vezes de fazê-lo,

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mas mamãe nunca deixava.


Varian, que tinha se posto de pé, disposto a levar ao Percival à cama nos
braços se fosse necessário, agora voltou a sentar. Depois de uma busca sem
fim, a rainha negra que se supunha ter sido roubada, e pela qual sir Gerald
tinha estado disposto a oferecer mil libras de recompensa por sua devolução,
aparecia agora. Varian não podia acreditar no que acabava de ouvir. Ficou
olhando Percival com os olhos entreabertos.
— Você o que?
— Quero dizer que dei ao tio Janson minha pedra…, a de nervuras verdes e
rugosas…
— Não me parece que essa pedra de características tão especiais venha ao
caso — interrompeu Varian.
— Sinto muito, senhor. Tem muita razão. Isso não…, bom, não vem ao
caso nesse momento. O fato é que, estávamos no escritório. E como tínhamos
chegado ali tampouco acredito que seja pertinente nesse momento, não é? —
perguntou Percival olhando para cima esperançoso.
— Não nesse momento.
— Bem, isso é um alívio, por que…
— Percival.
— Sim, senhor, é verdade. Para contar de maneira mais sucinta que seja
possível: tropecei com o jogo de xadrez e derrubei varias peças no chão. Em
meu estado de agitação, pensei o poderia me fazer papai se soubesse… —
disse Percival afastando rapidamente o olhar dos olhos de Varian, bom,
acredito que coloquei a rainha negra no lenço de tio Jason, por engano, porque
mais tarde me dei conta de que a pedra de cores estava ainda em meu bolso.
Quando papai nos disse que tinha desaparecido a rainha, dei-me conta do que
tinha acontecido. Mas não podia contar-lhe não é assim?
Se a rainha estava em poder de Jason, queria dizer que estava agora na
Albânia, desgraçadamente longe do alcance de um jovem nobre sem um
centavo.
— Suponho que não. — Varian voltou a ficar de pé. — Estou certo que
ficou emocionalmente mais tranquilo depois dessa confissão, Percival, e com
mais vontade de descansar.

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Percival ficou olhando pensativo.


— A verdade é que, agora que me confessei, sinto-me obrigado a fazer
algo.
— Sim. Volte para cama.
— O que quero dizer é que deveríamos devolver a rainha negra. Vale dizer
que papai está disposto a oferecer mil libras para recuperá-la e — fez um gesto
com a mão para o este — está justamente nessa direção.
— Nessa direção está o Império turco. Não seja absurdo, Percival. A não
ser que seu tio resolva devolvê-la, essa rainha já está perdida.
— Só demora um ou dois dias para chegar ali de barco — disse Percival. —
Tio Jason vive na costa. Não será necessário que entremos no país. Basta que
façamos uma simples parada no porto, como a maioria dos barcos de
passagem fazem a cada dia, vindo de toda parte.
— Nós? — perguntou Varian surpreso. — Se pensa que vou alugar um
barco para que me leve a Albânia em companhia de um menino de doze anos,
o herdeiro único de seu pai…
— Papai pagaria bastante pelo resgate, e sei que nos deu um montão de
dinheiro para os gastos de viagem e que temos um montão de tempo para
viajar.
— Não, Percival. E agora vai para cama.
Percival não foi à cama até várias horas mais tarde e lorde Edenmont, que
já tinha esquecido à dama de olhos negros, ficou acordado até o amanhecer
observando o cintilação do fogo que ardia entre as brasas que se foram
consumindo.

Olhando infeliz à escuridão, Percival disse a si mesmo que tinha tido muita
sorte que lorde Edenmont não fosse tão perspicaz como mamãe. Podia ter
despertado suas suspeitas ao ver o muito que tinha comido. Ela sabia que
estava acostumado a comer muito quando estava inquieto.
Aquele dia se fartou porque sabia que tinha que dizer a lorde Edenmont
uma mentira a respeito da rainha negra. Tinha feito. As armas roubadas
estavam a caminho da Albânia e a única pessoa a quem podia confiar sua

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informação era a seu tio Jason, especialmente desde o momento em que seu
pai estava envolvido no assunto. Desgraçadamente, não podia mandar uma
carta ao tio Jason. Ele havia dito que os homens poderosos da Albânia tinham
espiões que interceptavam com regularidade as cartas de outros.
O qual significava que teria que dizer pessoalmente. O que queria dizer
que tinha que enganar a lorde Edenmont. E isso era o que tinha feito com que
Percival se sentisse agora como uma pessoa malvada.
Não importava que as pessoas dissessem que lorde Edenmont era uma
pessoa matreira — inclusive o tio Jason pensava assim. — Sua excelência
sempre tinha sido amável com sua mãe e tratava o próprio Percival de maneira
agradável. Mas já não voltaria a ser amável com ele de novo, pensou Percival
com arrependimento, assim que se inteirasse da verdade. Embora isso
somente pudesse acontecer no caso de que lorde Edenmont mordesse o anzol.
E era possível que não o fizesse.
O negrume da escuridão da noite estava começando a desaparecer pelo
horizonte quando Percival ouviu lorde Edenmont entrando no quarto de banho
que havia ao lado de seu dormitório. Fechando os olhos, Percival disse a si
mesmo que não deveria lamentar-se por estar tratando de levar adiante suas
obrigações, especialmente quando poderiam salvar assim centenas de vidas.
Além disso, não podia esperar que lorde Edenmont estivesse sempre a seu
lado. Cedo ou tarde chegariam a Veneza e sua excelência partiria. O tio Jason
partiria logo para a Inglaterra com a prima Esme. Isso seria muito mais duro
que despedir-se para sempre da companhia de lorde Edenmont. Tinham que
estar juntos. Tinham que formar uma família, como queria sua mãe.
Esses pensamentos tranquilizaram a consciência de Percival, como o fazia
a voz de sua mãe toda noite. Logo depois, enquanto o sol do amanhecer
lançava reflexos dourados sobre o Adriático, adormeceu.

Tepelena, Albânia.

Ismal, o formoso príncipe de cabelos dourados e olhos de diamante azul,

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reclinou-se em seu divã e ficou olhando pensativo a bela e ornamentada peça


de xadrez que tinha na mão.
— Jason não vai partir? — perguntou a Risto.
— Alí o convenceu para que fique aqui e o ajude a deter os distúrbios.
— Não gosto nada disso. Já conseguiu interceptar uma boa quantidade de
armas. Não podemos permitir que continue interferindo em nossos planos.
— Quer que o eliminemos, senhor?
— Isso seria politicamente pouco aconselhável. O Leão Vermelho é uma
pessoa muito querida, inclusive por quem apóia nossos esforços para derrotar
ao Alí. Não posso me arriscar que suspeitem que eu o assassinei. Felizmente,
já estava preparado para esse contratempo. — Ismal sorriu a seu devoto
criado e espião. — Ele fez muito mais do que supunha ao persuadir ao inglês
para que desse esta amostra de «garantia».
Risto inclinou a cabeça.
— Queria trazer o jogo completo. Pensei que poderia ser um bom
complemento a seus tesouros. Além disso, os preços de sir Gerald são
excessivos — acrescentou em tom de desaprovação.
— Quero ter as modernas armas inglesas, e ele é o único fornecedor em
quem confio — respondeu Ismal dando de ombros. — Mas foi um estúpido ao
entregar algo escrito, mesmo em código, sua letra é muito conhecida.
— Acredita-se que sou um bárbaro estúpido, senhor. Não confiava que
recordaria os detalhes corretamente.
— Isso será muito útil. — Ismal acariciou a cabeça da rainha negra. —
Ficarei com essa mensagem, pode ser que seja de utilidade. Agora me parece
que poderei tirar proveito. — Elevando o olhar para seu criado, continuou: —
Quero enviar uma ordem para que seqüestre a filha do Leão Vermelho…
imediatamente. Jason se dará conta de que deverá aceitar o preço da noiva
por ela, e uma vez que a garota esteja em minhas mãos, ele não se atreverá a
dar um passo contra mim.
— Pode ir queixar se ao Alí.
— Não acredito que se atreva a arriscar a vida da garota dessa maneira. —
Ismal deu voltas à peça de xadrez entre as mãos. — Assegure-se de que isso
esteja nas mãos de Esme quando a seqüestrarem. Se Jason se atrever a opor

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alguma resistência, poderia dizer que ela nos traiu, e a peça de xadrez seria a
prova disso. Direi ao Alí que consulte com os britânicos, que não acredito que
tenham dificuldade alguma em descobrir que a peça pertencia ao irmão do
Leão Vermelho. E não haverá nenhuma dúvida de sua traição quando mostrar
esta mensagem escrita por seu irmão. Alí sabe que o Leão Vermelho viajou
para a Itália duas vezes esse ano para ver sua família. Tanto meu primo como
os britânicos chegarão facilmente à conclusão de que Jason e seu irmão
estiveram roubando armas em proveito próprio. E então ambos os governos
vão sentir-se muito desgostosos.
Seus olhos azuis brilharam enquanto passava para Risto a peça de xadrez.
— Acredito que agora se dá conta de quão poderosa pode ser uma rainha…
para um jogador que sabe como utilizá-la.
Continuando, Ismal se pôs a rir.

Durrës

Esme despertou no momento em que sentiu uma mão apoiada em seu


ombro e se endireitou na cama de um salto. A habitação estava ainda às
escuras.
— Papai? — disse dirigindo-se à negra sombra que havia a seu lado. Mas
apesar de ter pronunciado aquele nome, sabia que quem estava ali não era
Jason.
— Sou eu, Bajo — respondeu a figura.
Esme sentiu um calafrio de inquietação.
— Onde está Jason?
Houve uma longa pausa e logo ouviu um suspiro. Muito antes que Bajo
começasse a falar com ela seu coração acelerou.
— Sinto muito, minha menina.
— Onde está ele?
— Ai, pequena! — Bajo apoiou a mão sobre o ombro da garota. — Tenho
que dar más notícias, minha pequena guerreira. Seja forte, dispararam em
Jason.

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Não! Não! Gritou o coração de Esme, mas sua língua continuou em


silêncio. Agarrou com as mãos aos lençóis e mordeu os lábios, negando-se a
tornar a gritar e a chorar como se fosse uma débil mulher.
— Fomos… Caímos em uma emboscada… nos estreitos do rio Vijose —
disse Bajo. — Dispararam nele pelas costas e caiu pelo escarpado até o rio que
flui ao fundo do despenhadeiro. Terá que agradecer a Deus que fosse assim.
Uma morte rápida… e o rio o engoliu, de modo que os traiçoeiros assassinos
não puderam levar a seu senhor a cabeça em sinal de triunfo.
Jason. Seu forte, valente e amado pai. Tinham disparado nele pelas costas
como se fosse um ladrão vulgar … A fria corrente do rio tinha arrastado seu
corpo, destroçando-o contra as cruéis rochas… Esme fechou os olhos e apertou
os dentes. E ao fazê-lo afogou a pena atroz que sentia com a raiva.
— Quem o assassinou? — perguntou ela. — De quem devo me vingar?
— Não, pequena. A filha do Leão Vermelho não deve derramar sangue —
reprovou ele. — Os assassinos estão mortos. Eu me encarreguei disso. Mas
não temos tempo para continuar falando. O assassinato do Jason não foi mais
que o princípio, e agora você está em grande perigo. Depressa — segurou-a
fazendo-a levantar-se da cama.
Esme soltou da mão de Bajo e se deu conta de que estava tremendo. Com
esforço ficou de pé. Sempre dormia completamente vestida, com roupas de
homem, e com a pistola ao alcance da mão. Um dos primos de Bajo ficava
sempre fora do quarto, de guarda, inclusive quando Jason estava em casa,
mas não queria que a encontrassem despreparada se o povo fosse
subitamente atacado.
— Ter pressa para que? Aonde vamos?
Bajo segurou seu rosto e a rodeou com as mãos em um gesto de amparo.
— Ao norte, a Shkodra.
Bajo acendeu uma vela e logo começou a dar voltas pela habitação,
recolhendo os pertences da garota e colocando em uma bolsa de viagem.
Apenas consciente do que estava fazendo, Esme agarrou o gorro de lã e o pôs,
sem deixar de olhar nem um momento a Bajo.
Enquanto fazia a bagagem, ele começou a falar nervosamente.
— Vínhamos para cá a toda pressa, porque Jason suspeitava que Ismal

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estava planejando seqüestrar você. Agora já não há dúvida disso. É obvio que
mentirá… jogando a culpa do assassinato aos bandidos. E Alí estará muito
destroçado para dar-se conta de que Ismal, enquanto isso, seqüestrou a outra
simples mulher. — Bajo fez uma pausa. — Por isso devemos partir agora
mesmo daqui. Nem ocorra pensar em vingança. Se não tiver pressa fará com
que recaia sobre você mais vergonha ainda. Não acredito que tenha vontade
de acabar convertida na concubina do homem que assassinou a seu pai.
— Nós contaremos tudo ao pachá de Shkodra — disse Esme. — Ele me
ajudará. Ismal me deve uma compensação.
— O pachá ajudará a que escape do país — respondeu Bajo. — Isso é
tudo. E isso é o que Jason pretendia que fizesse, e nós faremos que se cumpra
seu desejo.
Seu olhar cruzou com o aterrorizado olhar de Esme e rapidamente olhou
para outro lado.
— Não — disse ela com voz afogada. — Não estará pensando em me
mandar a Inglaterra? Sozinha?
Bajo jogou a bolsa de viagem ao ombro e se aproximou da porta, onde se
deteve.
— Já sei que é duro pequena guerreira, mas não temos outra escolha. Ou
tem coragem de fazê-lo ou será feita concubina de Ismal… e se for assim, seu
pai terá morrido por nada.
Mais tarde, disse-se ela. Mais tarde teria tempo de pensar e encontraria a
maneira de vingar-se.
Sem acrescentar nenhuma palavra mais, Esme recolheu várias coisas que
Bajo tinha esquecido, meteu-as em seu pequeno alforje de viagem, agarrou
seu rifle e saíram da casa.
Em poucos minutos chegavam ao porto de Durrës. Começava a amanhecer,
mas a costa estava ainda coberta por uma névoa tão espessa que os primeiros
raios do sol não eram mais que pequenos brilhos rosados sobre um grosso
manto de cor cinza. O barco de Bajo estava discretamente amarrado a certa
distância do embarcadouro principal. Enquanto se aproximavam da costa,
Esme divisou o perfil de uma embarcação de carenagem longa, um pélago,
como estavam acostumados a chamá-los ali. Entretanto, aquelas eram

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embarcações estranhas de se ver nessa época do ano, já que estavam muito


mal equipadas para resistir aos fortes vendavais do outono.
Após um momento pôde distinguir várias figuras que se aproximavam
envoltas na névoa. Apesar de virem a pé, ela parou e ficou olhando para Bajo.
— Estrangeiros — sussurrou ele.
Após um momento suas palavras se confirmaram, enquanto o vento levava
até seus ouvidos uma mescla de conversação em albanês, inglês e italiano.
— Não… zoti… o barco, por favor, eu rogo, senhor… me matará.
Conforme as figuras se aproximavam deles, suas vozes se faziam cada vez
mais claras, e Esme pôde ouvir a voz aguda de um menino que falava com um
acento inglês de classe alta.
— Não se preocupe. Meu tio vive nessa cidade.
— Por favor, jovem amo, espere um momento…
— Vejo ali umas pessoas, vamos perguntar
O casal estava quase a seu lado. Apesar parecerem bastante inofensivos,
Esme deixou cair seu fardo sobre a areia e colocou a mão no seu rifle. Bajo,
com atitude de alerta, ficou a seu lado, com o rifle também preparado.
— Tom-gat-je-ta — disse o menino.
Não era mais que um menino, um menino inglês, que falava com o mesmo
acento que seu pai.
— Tungjatjeta — respondeu ela cautelosamente à saudação do menino.
Animado, o menino se aproximou correndo para eles.
— Vamos — sussurrou Bajo a Esme. — Não temos tempo a perder.
— É inglês — respondeu ela.
Durante um instante, Esme ficou assombrada pensando se os sentidos a
estariam enganando, pois o moço tinha um aspecto muito parecido ao dela.
Inclusive levava no ombro um pequeno alforje de viagem. Logo, quando já
estava quase do seu lado, pensou que sem dúvida devia estar sonhando. A
débil luz do amanhecer se refletiu em um arbusto de cabelo da mesma cor de
seu pai. Ela retrocedeu um passo enquanto o menino parou com o olhar
cravado no rifle de Bajo. Seu gordo companheiro o seguia uns quantos passos
atrás.
— Oh, desculpe! Parece que os assustamos — disse o menino. — Como

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terá que…? — Logo depois de pigarrear acrescentou: — Kush-sha-pi… Ah, ah!,


Jason? Quero dizer que é meu tio. Meu tio. Jason. Meu ja-ji. O Leão Vermelho,
sabe?
— Shasha? — repetiu Esme surpreendida.
Jason era… o tio daquele moço? Incrédula, aproximou-se mais do menino
e sentiu que todas as suas dúvidas acabavam naquele momento: tinha o
mesmo cabelo que seu pai, os mesmos olhos que seu pai… e dela, é obvio.
A seu lado Bajo baixou o rifle.
— É como se fosse seu irmão — disse ele.
O menino ficou olhando a Esme com o mesmo assombro.
— Quem é você? — perguntou ela em inglês.
Ele se deteve seu lado, com o olhar fixo em seu rosto.
— Fala inglês. Pelo amor de Deus, parece… mas o tio Jason disse que era…
uma… ou não o é? — Imediatamente o menino avermelhou. — Oh, querida,
que estupidez de minha parte! Meu nome é Percival Brentmor, sou o sobrinho
do Jason.
— O sobrinho do Jason — repetiu Esme aturdida.
— Sim, como está?
Esme sentiu uma estranha vontade de começar a rir. Ou a chorar. Não
sabia exatamente o que. Ouviu um retumbar ao longe, muito longe. Ou
possivelmente se enjoou. Os ouvidos assobiavam.
— Percival — disse ela com a boca seca. — O sobrinho do Jason.
— Sim. E você é… Esme, não é assim?
O estrondo se fez mais forte. Bajo tinha dado a volta. Certamente também
ele tinha ouvido.
Esme passou o olhar de Bajo ao menino que acabava de se apresentar
como Percival, o sobrinho do Jason. O menino falava muito depressa, mas ela
quase não o ouvia. Tinha todos os sentidos fixos no estrondo que pouco a
pouco aumentava de volume. Não era uma tormenta. Eram homens a cavalo.
Bajo levantou de novo o rifle.
— Vá — ordenou ao menino secamente em inglês, ao mesmo tempo em
que o empurrava para trás. — Volta para seu barco… rápido, menino. Agora!
— Do que se trata? Bandidos?

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— Vá! — gritou ela. — Corre, maldito seja!


Deu-lhe outro forte empurrão. Dessa vez ele captou a mensagem e se
voltou para trás. Seu assustado companheiro já estava quase no barco. O
menino lançou um olhar perplexo a Esme e logo saiu correndo atrás dele.
O retumbar dos cascos de cavalos se aproximava a toda velocidade para
eles e Bajo estava gritando a ela que se pusesse a correr. Mas os cavaleiros,
que chegavam pelo oeste, dirigiam-se diretamente para o menino inglês, que
ainda estava bastante longe de seu barco. Se ela e Bajo se pusessem a correr
para seu barco, seu primo podia ser alcançado pelo fogo cruzado.
Apenas tinha pensado quando o retumbar dos cascos se converteu em um
rugido denso que levantava uma negra nuvem de pó no caminho para a praia.
Em meio da densa névoa, o grupo de cavaleiros não era mais que uma massa
formando redemoinhos de figuras negras. Ignorando os gritos desesperados de
Bajo, Esme elevou o rifle e começou a disparar, fazendo a atenção dos
cavaleiros se dirigir para ela. Uns tiros de resposta começaram a assobiar ao
lado de sua cabeça.
Pôs-se a correr para o refúgio de um bote voltado para baixo que havia
sobre a praia e viu outras figuras que se aproximavam dela. Os camaradas de
Bajo. O som de uma bala roçou sua orelha. Chegou a seu refúgio, agachou-se
atrás do bote e voltou a carregar seu rifle.

As explosões que se ouviam, tiraram Varian de seu sonho e o fizeram ficar


em pé de repente. Deu uma olhada pela cabine, mas não viu nem rastro de
Percival. Varian jogou a camisa sobre os ombros, colocou as calças e as botas,
lançou mão de suas pistolas e saiu correndo pela coberta.
Na praia, entre a espessa névoa, pôde distinguir uma massa de homens a
cavalo, enquanto aumentava um estrondo de disparos e gritos de guerra.
Saltou ao cais e pôs-se a correr para o campo de batalha.
— Percival — chamou Varian.
Quando passava do cais à areia da praia, ouviu um chiado agudo e se
voltou para ali. Meia dúzia de cavaleiros estavam perseguindo uma figura
magra que corria torpemente por cima da areia. Durante um instante, um leve
raio de luz crepuscular abriu caminho entre a bruma e iluminou o arbusto de

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cabelo ruivo do açoitado.


Com o coração pulsando com tanto estrondo como os cascos dos cavalos
que se aproximavam do menino, Varian apontou a arma e abriu fogo.
Enquanto apontava e disparava a outra pistola, viu um cavalo caindo sobre a
areia feito uma bola. Com dedos trementes, começou a carregar de novo a
primeira arma. Ouviu um ruído ensurdecedor muito perto dele e logo um
estalo. E um repentino brilho de dor o deixou envolto na escuridão.

Com suavidade, Esme limpava a areia do rosto do homem inconsciente.


Poderia ter sido mais fácil jogar um balde de água na cabeça, mas
possivelmente o teria despertado muito de repente, e a cacetada que tinham
dado certamente já causava suficiente dor tal como estava.
O barco balançava e a água salpicava do balde que tinha ao lado,
molhando as calças de Esme. Embora, de qualquer modo, já estavam
molhadas, rasgadas e cheias de areia. Esse era seu único mal — ao menos,
físico. — Alguns dos outros não eram tão facilmente suportáveis: tinham
morrido na luta dois dos primos de Bajo e vários de seus amigos tinham ficado
feridos. Townfolk tinha se encarregado dos últimos e se ficou no povoado para
cuidar deles.
Ainda não tinham recolhido os cadáveres dos seis intrusos quando Bajo
tinha ordenado embarcar no piélago. Tinha levado o inglês sobre seus ombros
até o barco e, apesar das queixas dela, deixou-os a salvo a bordo e ordenou ao
capitão que fosse para o sul, para Corfú. Logo Bajo tinha voltado para a praia
para preparar o resgate do menino, o primo de Esme.
Esme olhou para o rosto altivo que descansava entre seus joelhos. Que
demônios teriam conduzido aquele homem até ali, com um menino indefeso,
desarmado e desprotegido?
A verdade era que o rosto daquele inglês tinha algo realmente diabólico,
além de possuir uma fria beleza, pensou ela, observando os cachos grossos de
cabelo negro que caíam sobre a fronte. Seu atento escrutínio continuou
lentamente para as sobrancelhas negras e muito arqueadas, e para as escuras
pestanas; desceu logo o olhar pelo perfilado nariz e, passando pela boca

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grossa de lábios esculturais, chegou até a dura e angulosa mandíbula. Tinha


um rosto arrogante. Petro, o marinheiro que tinha descido à praia com o
menino, havia dito que aquele tipo era um lorde inglês.
Os olhos de Esme posaram sobre uma mão que repousava sobre o ventre
plano do inglês. Dedos longos, com as unhas bem recortadas e limpas, exceto
por uns quantos grãos de areia da praia de Durrës que tinham ficado presos
ali. Nem um calo, uma ferida ou um arranhão afetavam a elegante perfeição
daquelas mãos. Olhou suas próprias mãos bronzeadas, duras e fortes, e logo
olhou as grossas calças sujas. Seu ventre se contraiu com excitação. Assim era
como se sentia sempre que se encontrava com os compatriotas de seu pai: a
mesma sensação de não estar no lugar adequado, a mesma sensação de tensa
antecipação de sua dissimulada apreensão e desprezo. Alguns a olhavam sem
vê-la, como se fosse invisível, e às vezes aquilo era pior ainda que a mais
aberta condescendência. Sabia que todos eles a olhavam como se somente
fosse um pouco melhor que um animal.
Todos os ingleses que tinha conhecido até então não eram mais que
soldados. Mas aquele homem era um lorde. E mesmo inconsciente como
estava parecia olhá-la com desprezo. Seus olhos — pensou ela enquanto
voltava a deter o olhar em seu rosto — deviam ser frios e duros como uma
rocha.
Isso não importava absolutamente, disse a si mesma. A opinião que
pudesse ter dela não tinha nenhuma importância. Tirou o trapo do balde com
um gesto brusco e zangado, colocou na fronte do inglês… e no momento ficou
imóvel. Afastou as mãos de seu rosto, enquanto ele começava a mover os
lábios sem produzir som algum e, pouco a pouco, seus olhos começavam a
abrir-se.
O coração dela acelerou como se fosse uma égua assustada. Tinha os
olhos cinza, mas não frios como a pedra. Cinza fumaça. Enquanto se fixavam
nela com lentidão, a rigidez de suas feições se abrandou, e apartou o trapo
molhado da fronte com mãos trementes.
Tinha um rosto de anjo sombrio. Durante um vertiginoso instante, ela
pensou que se tratava de Lúcifer em pessoa, derrubado por algum iracundo
Todo-poderoso.

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— Percival — murmurou ele. — Obrigado… — Logo piscou. — Quem é


você?
Sua voz suave e rouca era também como a fumaça, e enervadora como o
ópio. Esme soltou um rápido suspiro e disse a si mesma que tinha que
despertar.
— Meu nome é Zigur — respondeu ela.

Capítulo 3

A semelhança daquele menino com o Percival era impressionante: os


mesmos olhos felinos de viva cor verde, o mesmo nariz pequeno e reto, e o
mesmo queixo enérgico. Até relatava os eventos do amanhecer com a mesma
lógica paciente do Percival, embora de uma forma muito mais sucinta que ele.
Tendo quase uma total semelhança com Percival, a serenidade fria de Zigur
não fazia nada a não ser divertir, já que o menino não podia ser mais que um
par de anos mais velho que Percival — teria quinze anos, no máximo. — Mas a
cabeça de Varian doía terrivelmente, tinha os músculos duros e o relato que
estava escutando não tinha nenhum pingo de comicidade.
— Meu pai, Jason, é o tio do menino, Percival — estava explicando Zigur.
— Essa manhã me inteirei que meu pai foi assassinado e que tinham enviado a
vários homens para me seqüestrar e me entregar aos caprichos de seu senhor.
Na confusão da luta no porto, esses homens levaram por engano o meu primo.
Zigur inclinou lentamente para trás o grosso gorro de lã e Varian pôde ver
que o cabelo que aparecia debaixo, tal como os olhos, era idêntico ao de
Percival. Então entendeu o que o menino estava tentando explicar. Por isso
tinha ouvido Varian, naquelas terras estavam acostumados a raptar e violar a
meninos de ambos os sexos. Percival estava em mãos de uns pederastas.
Varian devia ter um aspecto tão doente como realmente se sentia, pois
Zigur acrescentou rapidamente:
— Você não tem com que preocupar-se, efendi. Era eu que queriam. Com
o Jason morto, não tenho mais parentes para vingar o insulto. Esses vilões são
recrutados com a mesma facilidade que se recolhem calhaus na praia. Mas

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meu primo é inglês, e Alí Pachá quer que seu governo o ajude a estender seus
domínios. Esses vilões sabem, como o sabe toda Albânia, que ofender a um
inglês é convidar a que o cruel Alí se vingue de maneira muito desumana.
Assim que os seqüestradores descubram que o menino é inglês, o deixarão
livre em um dos povoados do sul, onde não lhe será difícil encontrá-lo pelo
amigo de meu pai, Bajo.
— Mas esses homens mataram Jason — disse Varian sentando-se de
repente. No momento se arrependeu de ter se movido. Notou uma explosão na
cabeça que parecia partir em dois o crânio. Voltou a deitar-se. — E também
me atacaram. Isso fizeram a dois ingleses em questão de dias.
O rosto do Zigur se contraiu em uma dura expressão.
— A família de Jason o repudiou faz muitos anos. Aqui se considera
albanês. Naturalmente, esse assassinato provocará um derramamento de
sangue, mas isso não é assunto dele, efendi. E quanto a você, não teria
acontecido nada se estivesse afastado do caminho desses vilões. Se tivessem
pretendido matá-lo, agora sua cabeça descansaria sobre a areia de Durrës.
Zigur duvidou por um instante e logo colocou uma pequena mão fria na
fronte de Varian.
— Tem um pouco de febre — disse o menino. — Tente descansar.
Navegamos para Corfú, onde poderá encontrar soldados britânicos que o
escoltem até o palácio de Alí, na Tepelena. E ali estará a salvo o meu primo
Percival, eu prometo. Alí o protegerá como se fosse um estranho e prezado
diamante, e seus amigos britânicos se assegurarão de que Alí Pachá não peça
uma recompensa muito grande em troca de sua hospitalidade. É um assunto
fácil de solucionar. Queira Deus que todas as coisas sejam tão simples —
murmurou enquanto voltava a segurar de novo o trapo úmido.
Mais tarde, Varian teria tempo de sentir saudades de sua própria
docilidade. Entretanto, no momento parecia existir certa esperança em meio
daquele pesadelo de medo e dor. Não tinha nem o valor nem a decisão para
fazer com que o barco retornasse. E mesmo que o fizesse, para que ia servir?
Quanto ao que sabia daquelas terras e suas pessoas, para Varian era como
estar na Lua. Tinha que confiar no jovem bastardo de Jason porque,
simplesmente, lorde Edenmont não tinha nem a menor ideia de que outra

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coisa podia fazer.

Esme tinha cheirado a tormenta no ar na última hora da tarde. Quando se


levantou, ao entardecer, viu a confirmação refletida nos olhos da tripulação.
Aquele barco não tinha sido construído para resistir um tempo tão turbulento.
Inteirou-se de que o dinheiro era o que tinha convencido ao capitão a
aventurar-se naquela viagem em uma época tão próxima à estação das
tormentas. Agora se via claramente que se arrependia de sua avareza.
— Não podemos continuar — disse o capitão. — Avise ao barão inglês que
teremos que procurar terra para desembarcar.
Esme olhou preocupada para a costa. Não havia ali perto nenhum porto
onde se refugiar, sabia, e o ligeiro barco já estava sendo sacudido com força
pelo vendaval e o fluxo das ondas. Viu uma luz que cintilava na distância.
— Não acredito que seja boa ideia dizer a ele — respondeu ela. — Tem a
cabeça machucada e não entende o que está acontecendo. Espera que
tenhamos dificuldades?
Aquela última não era uma pergunta.
— Se não tivermos força suficiente para manobrar, teremos que colocá-lo
em um bote — respondeu o capitão com tristeza. — Oferecerei dois homens
competentes para que os levem até a costa.
Ela ficou meditando. Em um bote pequeno correriam menos perigo ao
atravessar o fluxo das ondas. E se não chegassem a terra agora, já não
poderiam fazê-lo até que tivesse passado a tormenta. É obvio que Petro não
poderia servir de grande ajuda. Já tinha começado a queixar-se e a rezar fazia
várias horas. Gordo, vago e sujo, era o pior marinheiro com o qual jamais
cruzou. Embora fosse difícil determinar sua origem, era bastante claro que se
tratava de um inepto em pelo menos cinco das sete línguas que dizia poder
falar. Apesar de tudo, com dois robustos marinheiros a seu dispor, ela mesma
poderia se virar para chegar a terra.
— Façamos isso agora — disse ela com calma. — Eu desejo menos que
você ter um nobre inglês morto nas mãos. O barco poderá resistir a tormenta.
Mas se o lorde continua a bordo muito mais tempo, não acredito que possa

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resistir.
Quando alcançaram a margem, o inglês tinha conseguido sobreviver com
muita dificuldade à travessia, passando a maior parte dela pela borda do
barco, vomitando. Mesmo assim, não se queixou nem uma vez — diferente de
Petro, quem acabou derramando lágrimas suficientes para fazer com que o
bote se afundasse, enquanto rogava ao Alá e ao Jehová e a todos os Santos
por turno, pedindo que tivessem piedade de sua alma. — Sem preocupar-se
com o estado de seus passageiros, os dois marinheiros italianos não deixavam
de remar com força, enquanto Esme se dedicava a observar a água em busca
de possíveis obstáculos e se assegurava de que os dois marinheiros de água
doce não acabassem caindo ao mar.
Quando por fim chegaram a terra firme, o inglês saltou a terra enquanto
outros ficavam olhando com desespero a desolada paisagem que os rodeava. A
seu redor se estendia um vasto terreno baldio, sem sinal algum de habitantes
humanos. Mas ali poderiam encontrar algo. Esme sabia. Um refúgio. Poderiam
acampar ali com suficiente comodidade. E ela já tinha dormido outras vezes ao
relento, inclusive sob a chuva. Desgraçadamente, seu paciente necessitava um
teto sobre sua cabeça, se não quisesse que contraísse um resfriado fatal, e
isso era algo que ela não desejava absolutamente. Aquele inglês tinha causado
no momento suficientes complicações.
— Ajudem o inglês — ordenou aos marinheiros enquanto agarrava sua
arma e jogava o saco de viagem ao ombro. — Você, Petro, carrega a sua
esteira e mantém a boca fechada. Temos que ir para o oeste a toda velocidade
e não temos tempo para nos entreter com lamentações.

Quando Varian despertou por fim do que esperava fervorosamente que


não tivesse sido nada mais que um pesadelo, o sol já tinha saído. Ou ao menos
isso pensou ele. Pois pela porta entreaberta pôde ver uma luz cinzenta em
lugar de escuridão. Continuava chovendo sem descanso, e tinha se formado
um pequeno lago na entrada do refúgio com dois charcos gêmeos sob o par de
fendas que chamavam de janelas.
Fechou duas vezes os olhos, somente para voltar a abri-los ante a mesma
cena surpreendente. As pedras grosseiras das paredes eram negras e viscosas,

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e o lençol sobre o qual estava deitado estava úmido e furado. Doía-lhe a


cabeça como se todos os condenados do Hades estivessem saltando em cima
dele, tinha a boca cheia de areia e sal e seu estômago vazio se retorcia de
fome.
— Maldita Seja — grunhiu.
Uma mão pequena e fria tocou sua fronte. Surpreso, voltou-se para
encontrar a seu lado com um par de olhos verdes. Não tinha se dado conta que
Zigur estava sentado a seu lado.
— No momento não tem febre — ela disse. - Isso moço é bom sinal. Não
podemos acender fogo, e tinha medo que se resfriasse, mas vejo que é mais
forte do que tinha imaginado.
— Minha cabeça vai quebrar em mil pedaços — se queixou Varian. —
Joguei pela borda minha última refeição, nesse barco a ponto de naufragar e já
nem lembro quando foi a última vez que comi algo. Estou molhado, cheio de
imundície e…
— Nesse caso deve estar contente por não ter também febre e calafrios.
Como eu estou, já que minha bolsa de remédios está ainda no barco. Os
calafrios não são nada com que se preocupar, cuidando-se bem — tratou de
explicar provocando com isso obviamente a exasperação de Varian. — Mas o
que poderíamos fazer a respeito sem alho e sem ervas medicinais?
Pouco a pouco e sentindo muita dor, Varian se ergueu e se apoiou nos
cotovelos. Viu que a manta de Zigur estava estendida a seu lado, sobre um
retângulo relativamente seco do sujo chão, e se perguntou com amargura que
tipo de insetos teriam estado passeando por ali durante a noite. Estava seguro
de que as roupas do menino não tinham sido lavadas desde o longínquo dia
em que se encontrou com ele. Varian desejou que Jason tivesse dedicado um
pouco mais de tempo a dar a seu bastardo, lições de boas maneiras e noções
de higiene pessoal.
— Em tal caso estou seguro de que suas pedras mágicas devem estar já
no fundo do mar, até mesmo o barco — disse ele. — Embora não é que o
deseje, é obvio.
— Não. O resto dos marinheiros chegará aqui ao despontar o dia. Vi o
barco flutuando, embora estava bastante maltratado. Acredito que navega à

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deriva, porque perdeu o mastro. Petro foi com os dois marinheiros para
recolher do barco tudo o que necessitamos. Lamento ter que lhe dizer que
teremos que ficar aqui bastante tempo. Suponho que terão que trocar o
mastro assim que o tempo o permita. Isso e outros trabalhos de reparação —
disse fazendo um gesto com as mãos — nesta época do ano, levará várias
semanas antes que o barco possa voltar a navegar de novo.
— Semanas? Quer dizer que ficaremos parados aqui?
O olhar de desespero para Varian dava a entender o miserável, imundo e
incômodo que lhe parecia aquele chiqueiro. Então viu duas serpentes que
cruzavam pela parede.
O menino se sentou com as pernas cruzadas e com uma expressão
surpreendentemente paciente e explicou:
— Estamos na desembocadura do rio Shkumbi. Toda a região próxima à
costa é de pântanos, embora haja uns quantos povos muito pobres. Para viajar
por terra necessitaríamos cavalos, e o lugar mais próximo onde poderíamos
alugá-los está para o oeste, a umas vinte milhas inglesas daqui.
— Deve estar brincando. Não há nenhum cavalo em vinte milhas?
— Não estamos na Inglaterra nem na Itália. Meu país é muito pobre, e os
cavalos são um bem muito valorizado. Que louco se dedicaria a manter um
estábulo em um enorme pântano? Aqui nem sequer se pode alugar uma mula.
— Não estará dizendo que tenho que ficar nesse chiqueiro durante várias
semanas? — Varian meneou a cabeça horrorizado. — Isso é impossível.
Enviaremos alguém a procura de cavalos ou a que contrate outro barco.
— Se a sorte sorrisse, conseguiria que cumprissem essa missão em menos
de um mês. — O moço ficou olhando as pequenas mãos imundas. — Como
você deseje, efendi. É você um grande lorde inglês. Andar deve estar além do
que pode permitir-se. Além do que uma viagem desse tipo poderia destroçar
suas formosas botas.
Varian deu uma olhada a suas botas cheias de barro e sal, e logo voltou a
olhar aquele garoto com desconfiança.
— Não parece que goste muito dos lordes ingleses, não é assim?
— Lamento-o muito, Oh grande lorde! Se minhas palavras o ofenderam —
disse Zigur ainda com o olhar cravado. — É culpa de minha ignorância. Não

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estou acostumado a estar frequentemente em companhia de príncipes.


— É um pequeno pilantra impertinente e não é necessário que esbanje
essa falsa humildade comigo. Além desta dor infernal que tenho na cabeça,
meus sentidos funcionam perfeitamente. — Lutando contra os músculos que
pareciam desprender-se dos flancos da cabeça, Varian se sentou. — Crê que
sou tolo completo, não é verdade? Se tivessem quebrado sua cabeça não se
sentiria nesse momento tão presunçosamente superior.
— Eu acredito que se os turcos me tivessem dado o golpe que deram a
você nesse momento já estaria morto — replicou o moço com um meio sorriso.
— Você tem uma cabeça maravilhosamente dura, efendi.
Varian tocou com cautela o enorme galo que tinha junto à têmpora e deu
um coice de dor.
— Todos os lordes ingleses são uns cabeças duras, não sabia?
O menino sorriu abertamente fazendo com que a expressão de seu rosto
se transformasse, e Varian se deu conta pela primeira vez que tinha um rosto
bastante distinto do Percival, embora seguisse parecendo-se com ele em
muitos aspectos. A boca era diferente, mais larga e de lábios mais grossos, e o
conjunto de suas feições era muito mais delicado. Em resumo, esse moço era
formoso. Naquele momento Varian pôde dar-se conta de por que podia atrair
aquele moço qualquer tipo de apetite em um homem, apesar de que a
compreensão fosse puramente intelectual. Por depravado que fosse, lorde
Edenmont sempre tinha confinado seus desejos carnais às mulheres adultas. A
ideia de utilizar meninos para o prazer era algo nauseabundo para ele.
Tratando de apagar da cabeça a imagem de Percival ou daquele pobre
herdeiro do Jason a mercê de algum gordo e libidinoso sarraceno, Varian
voltou a fixar sua atenção no sorriso de Zigur.
— É verdade que não sou capaz de suportar a enfermidade e a dor sem
me queixar — disse ele. — E também é certo que me aterroriza a ideia de
destroçar minhas queridas botas. Mas tampouco tenho nenhuma vontade de
apodrecer em meio de um pântano, obrigado. Se ocorrer a você alguma
alternativa sensata, então será melhor que a coloquemos em prática.

Esme ficou ao lado do inglês, às vezes dormindo, durante toda a noite

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seguinte, dizendo a si mesma que estava fazendo o que era correto. Tinha
razão a respeito das imperfeições que a tormenta tinha causado no barco,
coisa que Petro e outros confirmaram a sua volta. Não tinha mais vontade de
atrasar-se naquela terra baldia do inglês. Queria ver seu primo a salvo, e longe
da Albânia, o antes possível, para poder encarregar-se de tomar as rédeas de
sua própria vida. Quanto antes chegassem a Tepelena, antes aconteceria isso.
Nas atuais circunstâncias, a melhor alternativa era percorrer a pé as quase
cem milhas para o sul, isso supunha.
Além disso, se esperavam até poder partir por mar, acabariam em Corfú,
com os ingleses, e ali estaria Bajo para obrigá-la a partir para a Inglaterra.
Tinha estado muito paralisada sob os efeitos da má notícia para discutir com
ele na manhã do dia anterior em Durrës, e nem sequer tinha podido pensar
com calma. Mas após, tinha tido tempo de sobra para expor sua situação.
Esteve pensando em seu pai, que tinha sido assassinado por sua culpa.
Nunca mais poderia voltar a divertir-se ou a rir com ele. Nunca mais poderia
voltar a sentar-se orgulhosa do seu lado, enquanto ele a apresentava a seus
amigos — como sua filha, sua pequena guerreira. — Nunca mais voltaria a
escutar sua voz amável, sempre amorosa, até quando a repreendia. Seu
amado pai, que não desejava outra coisa mais que retornar com ela para viver
entre sua própria gente, tinha sido assassinado como um cão… por culpa dela.
Com ele, sua vida não seria jamais inteiramente vazia, sem importar aonde
fossem. Sem ele, não tinha nada, somente a pena… e a ninguém com quem
poder compartilhá-la.
Durante todo aquele longo dia tinha tratado de afastar a tristeza de sua
mente, levantando uma fortaleza ao redor de seu coração dolorido e fazendo o
que tinha que fazer. E durante aquele dia interminável sua raiva foi crescendo
até o ponto de chegar a pensar que acabaria ficando louca. Não podia fugir a
nenhuma parte com a esperança de que encontraria paz para um coração que
gritava pedindo vingança. Bajo estava equivocado. Ele não tinha matado os
assassinos de seu pai. Ismal ainda estava com vida. E para a filha do Leão
Vermelho só havia um caminho: pagar sangue com sangue.
Não ia ser difícil. Primeiro se asseguraria de que Percival saísse a salvo do
país, e depois aceitaria o Ismal. Com o Jason morto, Ismal teria que pagar ao

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Alí o preço da noiva, e certamente seria um preço muito alto. Mas ia custar ao
Ismal muito mais que jóias e moedas, e quando arrebatasse a vida de seu
jovem corpo, sua honra ficaria lavada. Ela também teria que pagar a sua vez
por esse crime, sabia claramente — possivelmente com sua própria vida ou
acabando no leito de um dos atuais favoritos do Alí. — Não tinha medo.
Contanto que pudesse limpar sua alma maltratada por meio de vingança,
poderia suportar qualquer destino que devesse cumprir.
A seu lado, o inglês se movia inquieto e gemia. Tinha tentado aliviar sua
ferida, e esquentar seus ânimos, pois sabia que os dores deviam ser terríveis.
Também sabia que estava profundamente preocupado pelo Percival. Mesmo
assim, aquele lorde não teria agora aquele galo em sua dura cabeça, nem
razão alguma para estar preocupado, se tivesse ficado no lugar ao qual
pertencia. Por outro lado — pensou outra vez consigo mesma, — os enganos
daquele inglês tinham conseguido atrasar sua partida para Corfú. A terrível
confusão em que a tinha metido lhe tinha dado também uma nova
oportunidade.
Esme ficou olhando-o por cima do ombro. Não estranhava que estivesse
gemendo. Havia voltado a cabeça para o outro lado e o lado machucado de sua
cabeça estava apoiado na dura superfície do chão. Ela se levantou e
cuidadosamente colocou seu corpo inconsciente do outro lado. O débil gemido
parou. Logo voltou a deitar de novo dando as costas a ele.
Estava começando a adormecer quando sentiu um foco de calor em suas
costas. Em sonhos, o inglês se deslocou para a manta dela. Ela estava a ponto
de afastar-se quando ele se moveu, resmungou algo e logo jogou o braço
sobre ela.
Esme levou um susto e seu coração começou a pulsar amalucado. Com
cuidado, segurou o braço e tentou levantá-lo. Mas era como tentar levantar
uma coluna de pedra. Ele estremeceu e se apertou mais ainda contra ela,
rodeando-a com o braço. Um lençol de calor a envolveu.
Esme não estava acostumada a preocupar-se com o frio, acostumada
como estava a aceitá-lo e ignorá-lo. Mas aquele homem estava doente e o
abrigo era um lugar frio e úmido. Tratava de esquentar o corpo, isso era tudo.
Disse a si mesma que nenhum mal podia haver nisso e fechou os olhos. Por

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muito que se esforçasse, sentia-se miseravelmente só e a pena a enchia de frio


por dentro. Ser abraçada daquela maneira era até reconfortante.
Estava voltando a adormecer quando ele murmurou algo ininteligível, e
sua mão se deslizou para cima de seu peito, por cima de sua camisa, até cobrir
um de seus pequenos seios.
Um medo cego a percorreu. Esme levantou a mão e o golpeou com força
enquanto se liberava de seu abraço.
— Mas o que…?
A mão dele agarrou a seu pulso e imediatamente Esme se encontrou
arremessada de costas, enquanto o inglês se debruçava sobre ela. Quando
tentou revolver-se, ele se colocou completamente em cima dela, agarrando
suas mãos e apertando contra o chão a ambos os lados de sua cabeça. Em
seguida ele colocou as duas pernas ao redor das pernas dela antes que Esme
pudesse dar uma joelhada entre as pernas.
Por um momento Esme ficou muito estupefata para mover-se. Nunca em
sua vida enfrentou um adversário de movimentos tão rápidos. Pensava que
aquele homem devia estar muito cansado e débil. Mas era terrivelmente rápido
e desconcertantemente eficaz. Mesmo assim, começava a ofegar e suas
maldições não eram mais que um grunhido afogado. Aqueles insultos não a
incomodavam absolutamente. Ela sabia amaldiçoar em cinco línguas
diferentes. O que estava incomodando era o peso daquele corpo rígido em
cima do dela e uma desconcertante sensação de impotência. Mas não por
muito tempo, disse a si mesma. Depois de tudo ele estava ferido e ela não.
— Maldito porco inglês — grunhiu ela golpeando suas pernas com força.
Com o pé golpeou ao Petro que estava dormindo do outro lado dela. Ele
despertou aterrorizado.
— Socorro! Socorro! — gritou em grego Petro enquanto saía a toda pressa
debaixo das mantas. — Ladrões! Assassinos!
— Calado, idiota! — soltou o inglês. — Acende a lanterna. Não há nenhum
ladrão, maldito seja. É uma garota!

Petro levou uma eternidade para encontrar e acender o abajur que

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cheirava a mil demônios. Enquanto isso, Varian tinha liberado a sua


companheira do peso de seu corpo e de seu gorro de lã. Não que precisasse
examiná-la mais de perto. Reconhecia um corpo feminino assim que topava
com ele, e tinha sido totalmente consciente de que sua mão se curvou sobre
um diminuto e muito firme peito, inconfundivelmente feminino. Estava
sonhando que se encontrava na cama com uma mulher e despertou de repente
para dar-se conta de que, efetivamente, assim era. Uma garota, corrigiu-se em
silêncio, enquanto seus olhos cinza se fixavam na brilhante cabeleira ruiva.
Uma garota que possivelmente tinha entrado na puberdade tão somente um
dia antes.
Ela estava sentada com as pernas cruzadas, olhando-o fixamente. Varian
sentiu vontade de lhe dar uns açoites. Não gostava nada que tirassem o sarro
dele. E muito menos gostava de ter escapado da morte por um fio duas vezes
em apenas quarenta e oito horas. Um pouco mais e poderia ter encontrado a
faca dela atravessando suas costelas. Mas por mais furioso que estivesse, não
era completamente insensível. Se aquela garota não era o filho do Jason, sem
dúvida era sua filha. Seu nome era Esme. Um nome saxão, e não tinha
nenhum sentido negar sua assombrosa aparência com o Percival. O que
significava que aquela moça acabava de perder a seu pai, o que era uma razão
mais que suficiente para estar arisca. Além disso, as liberdades que
inconscientemente ele tomou com seu jovem corpo deviam tê-la aterrorizado.
— Lamento, fui tão… violento — disse ele com firmeza. — Mas me pegou
de surpresa e pensei que estava sendo atacado.
O verde olhar da garota se transformou em uma expressão de puro
desprezo.
— Atacado? Não eram minhas mãos que rondavam por lugares onde não
tinham que estar.
— Estava adormecido! — respondeu ele como desculpa. — Como ia, ou
seja, onde estavam minhas mãos?
— Tem razão — concordou Petro com entusiasmo. — Como ia acariciar a
alguém que acreditava ser um menino? A meu senhor não interessam os
meninos. E todo mundo sabe…
— Não estava acariciando, maldito seja. Estava dormindo e…

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— Pôs as mãos em meu seio! — acusou ela. — Acredita que sou uma
concubina para não fazer nenhuma objeção? Eu só tentava me afastar e você
atuou como se estivesse tentando assassiná-lo. E como não era suficiente me
submeter de uma maneira tão vergonhosa, ainda tentou me tirar a roupa.
— Tirei sua faca para que não pudesse me matar e tirei o chapéu, ou como
chamam a essa monstruosidade medieval — respondeu ele devolvendo o gorro
de lã.
— Não importa como o chamamos. Não tinha nenhum direito. Se meus
homens estivessem aqui, o teriam matado por esse insulto.
Ela colocou o horrível gorro de lã sobre a cabeça e escondeu a longa
cabeleira. Varian percebeu que as mãos dela tremiam. Parecia que a tinha
assustado de verdade. A pobre garota deve ter imaginado que estava tentando
violá-la.
— Peço que me perdoe — disse ele. — Não sou completamente consciente
quando me acordam de repente. Mas não deveria ter me enganado. Parece-me
o mais natural ter pensado, ao descobrir, que estava sendo objeto de algum
engano perigoso. Ladrões, assassinos… como ia saber?
— Tem razão — acrescentou Petro. — Pensei isso mesmo ao despertar de
repente. Tolo, é muito tolo — repreendeu-a — que uma moça se faça passar
por um menino. E dizer mentiras não é bom.
— Como pode ser tão estúpido? — exclamou ela. — Há um tipo que
mandou seus rufiões atrás de mim, uma garota ruiva, e que voltará a mandá-
los assim que descubra que meu primo é um moço. Não é uma tarefa muito
difícil. Quantos albaneses ruivos acredita que há? — perguntou ela. — Eu
nunca ouvi falar de nenhum, exceto eu mesma.
Ela dirigiu seu olhar acusador para Varian, quem parecia sentir-se pior por
momentos.
— Já sei que não é o melhor disfarce, mas Bajo e eu não planejávamos
nos demorar tanto para que pudessem me buscar com atenção — continuou
explicando ela. — Se os homens que me perseguiam não tivessem visto meu
primo, teriam se posto a procurar por toda parte e eu teria tido tempo de
escapar.
Varian não podia negar que tinha razão. Era culpa dele que a moça não

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tivesse conseguido escapar a tempo, e também era sua culpa que Percival
estivesse agora em mãos de uns pervertidos.
— Estou de acordo que sou o responsável por todo esse terrível problema
— disse ele. — E considerando meu comportamento estúpido, não deveria me
surpreender sua decisão de não me confiar esse segredo.
Aquilo pareceu aplacar um pouco o aborrecimento da garota, pois sua
resposta foi algo menos beligerante.
— Pensei que todos estaríamos a salvo se não soubessem. Poderiam ter
me tratado de maneira especial, ou dito algo comprometedor por equívoco e…
alguém poderia ser informado e teriam acabado por me descobrir.
Também aquilo tinha sentido. Para o jovem que era, tinha que reconhecer
que tinha uma boa cabeça sobre os ombros. A boca de Varian relaxou em um
amplo sorriso.
— Percival havia dito que seu tio não só era um homem valente, mas
também muito ardiloso — disse ele. — Percebo que herdou dele essas duas
qualidades, assim como sua aparência.
O desafio desapareceu de seus olhos de cor verde intensa e foi substituído
por uma expressão de causar pena.
— Eu era para o Jason um filho e uma filha. — Sua voz tinha um timbre
tremente. — Ele me ensinou tudo o que sei. Falo perfeitamente quatro línguas
e sei turco suficiente para amaldiçoar. — Engoliu a saliva. — Sou uma
excelente atiradora tanto com rifle como com faca. Posso defender a mim
mesma e também a vocês dois. Logo verão que não há nenhuma necessidade
de que me tratem com especial deferência só porque sou mulher.
Varian devia ter posto uma expressão um tanto duvidosa — e como não,
enquanto olhava aquela criatura com aspecto de duende com enormes olhos
verdes, porque ela elevou o queixo e endireitou sua postura.
— Não sou uma mulher débil e assustadiça nem vou fazer um grande
escândalo por um pequeno engano. Esquecerei o insulto cometido contra
minha pessoa e os levarei a Tepelena… se você puder esquecer minha pequena
ofensa por tê-lo enganado.
— Isso é muito… generoso de sua parte — disse Varian, — mas…
— Não há nada o que temer — interrompeu ela impaciente. — Sou uma

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lutadora e tenho cicatrizes que o demonstram. Aqui — disse ela assinalando


um de seus braços. — E aqui — acrescentou golpeando a coxa. — Mas os
homens que dispararam em mim estão mortos. Minha gente me chama
«pequena guerreira». Pode perguntar a qualquer um na Rogozhina e eles o
dirão.
— Atiraram em você? — repetiu Varian com um calafrio percorrendo sua
nuca.
— Oh, sim.
Ela levantou a manga da camisa e mostrou a cicatriz. Seu esbelto braço
era suave e delicado, muito mais branco que suas mãos fortes e bronzeadas.
— Não é necessário que me mostre mais — disse ele rapidamente. —
Acredito em você.
Deus, que tipo de porco é capaz de disparar contra um corpo frágil como
este? Perguntou-se ele.
— Ainda lhe dói a cabeça, efendi? — perguntou ela preocupada. — Você
ficou pálido. Talvez devesse voltar a deitar-se.
Enjoado pelo esforço por tentar encontrar algo de sentido naquela garota,
e em tudo o que estava acontecendo, Varian se deitou de boa vontade. Não
era conveniente tratar de raciocinar com ela agora. Sua mente estava
transtornada pela desgraça. Inclusive sua solicitude se devia só ao medo.
Apesar de tudo, era comovedora a maneira como a garota o agasalhava,
como se pensasse que se tratava de um menino doente. E também parecia ter
decidido que era tão perigoso como um menino, posto que voltou a deitar-se
ao lado dele e ordenou ao Petro que se colocasse do outro lado, para que seu
senhor pudesse compartilhar o calor de seus corpos.
Ela continuava sendo igualmente solícita na manhã seguinte, até que,
vendo-a recolher as coisas para a viagem, Varian falou amavelmente que não
pensava ir a nenhuma parte.
O rosto dela adquiriu uma expressão pétrea.
— Porque não confia em uma mulher para que os guie?
— Uma jovem — corrigiu ele. — E não é que desconfie de você, mas…
Ela não esperou para escutar o resto, simplesmente agarrou suas bolsas e
saiu do abrigo. Apesar dos gemidos assustados de Petro, Varian esteve tentado

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de deixá-la partir. A alternativa, sabia, era ter que atá-la.


O problema residia em que, deixá-la partir só era equivalente a assassiná-
la. E não podia esquecer que ela e seus amigos tinham salvado sua vida. Assim
Varian cerrou os dentes e pôs-se a andar atrás dela.

Capítulo 4

Provavelmente Alí teria água na boca quando o visse, pensou Esme


quando se aproximavam de Rogozhina dois dias depois. Apesar de que na
corte do visir estavam alguns dos mais formosos jovens do Império turco, ao
lado daquele lorde inglês todos pareciam gnomos. Alto e muito bonito, movia-
se com todo o arrogante aprumo de um sultão, mesmo enquanto avançavam
pelos enlodados pantanais, com as correntes de água cobrindo até os joelhos.
Sua insolência era uma maneira de ganhar o respeito, pois em sua esfera se
abusava dos dóceis. Além disso, seu aspecto poderia chegar a fazer que mais
de uma cortesã ficasse a chorar.
Sua pele era tão lisa e suave como a de uma concubina consentida,
embora sua beleza fosse puramente masculina, uma combinação irresistível
para muitos homens. — Mas eles podiam desejar em vão.
Petro havia dito que o lorde inglês era um viciado nas mulheres. Apesar de
saber-se quão licencioso era aquele homem, as mulheres italianas revoavam a
seu redor como as moscas sobre o esterco. É obvio, como tinha alardeado o
fofoqueiro Petro, o lorde escolhia sozinho às mais formosas e sofisticadas
dentre aquelas que se ofereciam de maneira tão desavergonhada.
O marinheiro tinha compartilhado essa informação com ela enquanto seu
senhor dormia. Se Esme pretendia realizar aquela viajem com eles, deveria ter
um olho posto em seu senhor, advertiu Petro, para que não pretendesse nada
com as virtuosas mulheres albanesas e os colocasse a todos em uma
sangrenta briga.
— É difícil que encontre alguém que o queira no caminho para Tepelena —
tinha respondido Esme. — Não é muito normal encontrar cortesãs por esta
comarca. Assim advirta-o que deverá esperar. Alí poderá proporcionar todas e
quantas queira quando chegarmos.

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— Não, tem que dizer-lhe você, porque não me escuta nunca. Diz que não
pode entender o inglês que falo. Você terá que dizer e explicar claramente
como fez na outra noite. Nunca o tinha visto tão zangado. Por um momento
acreditei que estava disposto a te pegar. Mas você o repreendia e ele não fazia
outra coisa mais que sorrir e escutar.
Agora o inglês já não ria. Seus olhos cinza estavam fixos no humilde povo
que tinham à frente e os traços de seu rosto ficaram tensos.
— Rogozhina — disse ela. — Eu havia dito que chegaríamos aqui antes que
caísse a noite.
— Disse-me que era uma cidade importante. Não vejo mais que seis
casas, ou chiqueiros. E é difícil distinguir onde acaba o musgo e onde começa a
pedra das paredes.
— Falei a você que é um importante cruzamento de caminhos — disse ela.
— Aqui se unem dois ramais da antiga via Egnatia romana, uma desde a
Apolônia e a outra desde Durrës.
— Pois então me parece que os romanos acabaram com o dinheiro para
sua manutenção. Embora César Augusto possuísse os visionários poderes
concedidos pelos deuses dos quais fazia ornamento, atrever-me-ia a desafiá-lo
por definir como duas grandes estradas, isso que não é mais que um caminho
em meio de muito lodo, no meio de nenhuma parte. Avançamos durante dois
dias pelos pântanos, para chegar a esse grupo de barracos cobertos de barro
que, até onde posso ver, foram abandonadas por seus habitantes humanos a
pelo menos seis séculos.
— Possivelmente esperava uma cidade como Paris, efendi?
— Estava esperando chegar a algum lugar que tivesse algo que ver, por
longínquo que fosse, com a civilização.
Esme experimentou um poderoso desejo de disparar sua bota para o
traseiro dele, mas disse a si mesma que aquele lorde era como um menino
mimado e não podia comportar-se melhor. E além disso, ao ser tão infantil, era
bastante fácil dirigi-lo. Não fosse assim, teriam tido que ficar encerrados no
pequeno refúgio junto à desembocadura do Shkumbi.
Felizmente, ele precisava dela a seu lado muito mais do que ela
necessitava dele. Na Inglaterra poderia ter sido um lorde poderoso, mas na

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Albânia estava tão desamparado como um menino.


Efendi era como ela o chamava, desde o primeiro momento, na
brincadeira. Claro que era um tratamento de respeito, mas para um professor
ou um padre. Poderia chamá-lo «montão de miúdos», por isso podia entender
ou lhe importava entender. Por Alá, esses lordes ingleses eram ignorantes e
provincianos, e pareciam evidentemente orgulhosos de sê-lo.
— Não acredito que tenha que te advertir que não deves fazer esse tipo de
comentário entre os aldeãos — disse ela naquele momento, — já que é um
cavalheiro inglês, e Jason sempre dizia que os verdadeiros cavalheiros são
muito educados.
— Eu não sou um cavalheiro. Não sou mais que um pedaço de barro
andante cheio de pulgas.
— Mesmo assim devo advertir para não cortejar as mulheres.
Ele voltou a cabeça lentamente para ela.
— Perdão?
— Parece-me que não é surdo. Disse que não corteje as mulheres se
quiser sair da Rogozhina inteiro. Se cruzarmos com alguma prostituta aviso
você, mas isso é bastante improvável. Na Albânia há muito mais homens que
mulheres, e estas estão ciosamente protegidas. Por exemplo, um muçulmano
deve pagar mais de mil piastras por uma noiva. Isso é um investimento
importante. Por favor, tenha isso sempre em mente.
Ele deu uma olhada à massa de estruturas habitáveis de pobres formas
sob a chuva cinza, e logo voltou a olhá-la.
— É obvio que o farei. Obrigado pela advertência. Seria espantoso que
enlouquecesse pelas hordas de donzelas que há em Rogozhina me esperando.
— Não é necessário que seja tão sarcástico — disse ela.
— Eu gostaria de saber quem colocou na sua cabeça que me dedico a
cortejar a todas as mulheres com as quais cruzo — disse ele.
Nesse momento, Petro se arrastava miseravelmente a muitos metros atrás
deles. Embora fosse possível que não pudesse ouvir o que diziam, Esme
preferiu não revelar quem era seu informante. Não queria que aquele senhor
soubesse que se dedicou a mexericar dele com seu criado.
— Tem aspecto de que assim é — disse ela. — E estaria muito interessada

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em ver como o faz, deve ser um espetáculo divertido, mas acredito que
poderei esperar até que cheguemos a Tepelena.
— Ver-me?
— Cortejar — esclareceu ela. — É obvio que não sinto nenhuma
curiosidade em ver o resto. Isso é um assunto privado.
— Esme — disse ele, — tem alguma ideia do que está falando?
— Sim. Jason me contou isso, porque não tenho família que me possa
proteger. Pensava que era melhor que entendesse desses assuntos, posto que,
do contrario, alguns homens poderiam utilizar minha ignorância contra mim.
— Já vejo.
— Está surpreso?
— Não, só… — Fez uma pausa e se voltou completamente para ela. Ela
também se deteve, perguntando-se por que parecia tão preocupado.
— E o que me diz da família de sua mãe? — perguntou-lhe. — E sua mãe?
— Morreu quando eu tinha dez anos. Jason e eu passamos uma época
muito difícil, porque sempre o requeriam em alguma parte. Minha avó vive em
Girokastro, mas todo o resto de minha família morreu.
E agora também Jason, pensou ela sentindo uma pontada de pena que
começava no coração e obstruía a garganta. Voltou a andar de novo.
— Mas isso aconteceu faz muito tempo — acrescentou ela com firmeza. —
Falemos de outra coisa.

Entretanto, não tiveram tempo de mudar o tema que de maneira tão


desconsiderada Varian tinha mencionado. Sua chegada foi descoberta em
seguida, e após um momento toda Rogozhina tinha saído de suas casas para
dar as boas-vindas.
Era um povo muito maior do que Varian tinha imaginado. Em um momento
se viram rodeados por uma multidão de homens cujas mãos seguravam outra
multidão de mulheres e meninos, falando todos de uma só vez e sem que ele
pudesse entender uma só palavra do que diziam. Nem tampouco Petro, é
obvio, que se queixava de que falavam em um dialeto ininteligível.
A cabeça de Varian doía e começou a notar que apitavam seus ouvidos.

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Estava cansado e faminto, e tão sujo que tinha vontade de sair de sua própria
pele. Se Esme não tivesse cuidado da situação, teria acabado sentando
naquele momento no chão para ficar a chorar.
Tal e como ela tinha previsto, aos aldeãos não chamaram a atenção o
andrajoso moço pelo que pretendia fazer-se passar Esme, e em seguida a
deixaram de lado enquanto formavam um coro ao redor de Varian. Entretanto,
ela se colocou no momento habilmente a seu lado e conseguiu que prestassem
a ela toda a atenção. Graças a Esme, menos de uma hora depois Varian
colocava seu dolorido corpo em um tanque de madeira cheio de água
fumegante.
Era o tanque da roupa que estava situado na sala central que unia um
grupo de casas de campo. Pertencia à numerosa família de seu anfitrião, Maliq.
Na cozinha, que se encontrava na habitação do lado, podiam ouvir as vozes
das mulheres enquanto preparavam um festim para homenagear a sua
excelência. Justo a seu lado, no pequeno corredor que havia atrás da porta da
lavanderia, estava Petro, obedientemente ocupado em escovar a roupa de seu
senhor.
A maior parte do guarda-roupa de Varian tinha ficado no barco. Nenhum
dos membros da tripulação tinha demonstrado estar tão louco para
acompanhá-los, ao preço que fosse, e três pessoas a pé não podiam carregar
muita bagagem. O que significava que Varian possuía exatamente três mudas
de roupa interior, uma jaqueta, um grosso casaco e dois pares de calças.
Apesar de estar acostumado a trocar de roupa várias vezes ao dia, Varian
tinha pensado que poderia aguentar perfeitamente durante dois ou três dias
até que chegassem a Tepelena. Não é que não pudesse esperar e assistir às
numerosas festas para as quais costumavam convidá-lo, mas jamais teria
sonhado que aquela viagem incluía toneladas de barro e a suficiente
quantidade de insetos para encher a abadia do Westminster.
Estava ensaboando o pescoço e observando a trágica condição em que
tinha ficado sua cara camisa, quando Esme apareceu pela porta, parou em
seco e logo deu meia volta correndo para sair dali.
As gargalhadas do Petro se ouviram ao longo de todo o corredor.
— Filho do chacal — gritou ela. — Por que não me avisou para que não

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entrasse?
— Mil perdões, minha pequena —respondeu ele com ironia. — Acreditei
que tinha vindo correndo para me esfregar as costas.
— Isso não tem nenhuma graça — gritou ela. — Além disso, é um criado
muito ineficaz por deixar que alguém interrompa seu senhor quando está
tomando um banho. Não tem respeito por sua intimidade?
— Respeito? — repetiu Petro. — Por Alá, mas se a metade das mulheres da
Itália viram seu…
— Petro — gritou Varian da banheira.
Petro se apressou a aparecer à porta.
— Sim, senhor?
— Te cale.
— Sim, senhor.
O corredor ficou completamente em silêncio.
Varian acabou em seguida de banhar-se, vestiu o enorme penhoar que seu
anfitrião emprestou e chamou os dois.
Esme entrou no quarto e, sem olhá-lo, recolheu as toalhas que ele tinha
deixado no chão e as colocou no cabide que havia na banheira. Logo se sentou
no chão, em sua típica posição com as pernas cruzadas, e ficou olhando as
mãos.
Petro ficou junto à porta com aspecto servil.
— Tem que pedir desculpas Petro, por suas brincadeiras de mau gosto —
disse Varian. — Inclusive agora, nosso jovem amigo deve estar vigilante para
que não o descubram, e eu não tenho nenhuma vontade de que nos pilhem
graças a ti.
Petro se deixou cair rapidamente de joelhos antes de começar a dar
cabeçadas contra o chão de uma maneira exageradamente lisonjeadora.
— Milhares, milhares de desculpas, minha pequena! — disse ele
desfazendo-se em adulações. — Que eu seja maldito para sempre, que me
apodreçam os braços e as pernas, e caiam a partes, que eu…
— Não seja ridículo — disse ela. — Não vá pensar que nunca antes tinha
visto um homem sem camisa. — Quando Petro ficou de pé com rapidez e
voltou para uma postura mais digna, ela ficou olhando a Varian e um ligeiro

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tom rosado tingiu suas bochechas. — Tudo o que pude ver foram os ombros, e
além disso só por um instante, e…
— E também a banheira é bastante profunda — acrescentou Varian.
O rubor das bochechas dela ficou mais intenso.
— Assim é. Além disso tinha a cabeça em outra parte, garanto a você, ou
do contrário jamais teria entrado aqui de uma maneira tão precipitada. Acaso
não tinha pedido eu mesma que preparassem o banho? Mas esqueci, por que…
— Porque vinha a toda pressa para me contar algo, suponho — disse
Varian ficando de cócoras diante dela. — Do que se trata?
Ela lançou um rápido olhar ao corredor, logo se voltou para Varian e
sussurrou:
— Mataram a Esme.
— Perdão?
— Faz dias chegou a notícia do seqüestro a Rogozhina. Por isso todos
saíram para nos receber e por isso todos se preocuparam em nos deixar
cômodos.
— Agora eu entendo — disse Petro. — Fiquei muito surpreso em ver todas
as mulheres saindo à rua para nos receber, até com os meninos.
— Mas faz dias? — perguntou Varian. — Isso é impossível. Como…?
— Na Albânia, as notícias voam pelos ares como os pássaros — disse ela.
— Sim, senhor — interrompeu Petro antes que ela pudesse continuar
falando. — Gritam de uma montanha até a mais próxima. Com uns chiados
que destroçam os ouvidos. E precisa ver as caras que põem…
— Isso não me importa. O que dizem de seu… do assassinato de Esme? —
perguntou Varian.
— Bajo deu a notícia, da maneira que contou Petro. Disse que mataram o
Jason e tomaram como refém um jovem lorde inglês — explicou ela. — Mas
também contou que Esme foi assassinada durante o ataque daqueles rufiões.
Não vê quão inteligente foi? A esta altura essas notícias já teriam chegado
para os ouvidos dos assaltantes que estão me perseguindo, ou seja, a Esme,
e…
— E desse modo já não haverá mais tentativas de seqüestro.
— Agora já não temos com que nos preocupar — disse ela em tom

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confidencial. — Tudo sairá como disse, inclusive melhor. Ninguém poderá


imaginar que não sou quem pretendo ser, e essa gente nos ajudará a seguir
nosso caminho. Certamente mais ao sul deve ter muita gente procurando o
Percival, ou pode ser que já o tenham encontrado e agora esteja a salvo. Por
outro lado, nesse momento os rufiões que nos perseguem devem estar
assustados tanto da cólera do Alí como da do senhor que os enviou.

Naquele mesmo momento, a umas trinta milhas ao sul de Rogozhina,


vários rufiões descontentes estavam discutindo com estridentes sussurros
enquanto um moço de doze anos dormia a seu lado. A metade das pessoas
opinava que simplesmente deveriam abandoná-lo ali mesmo, já que os
homens de Alí Pachá deveriam estar atrás de sua pista. A outra metade
argumentava que o menino não representava mais que um desafortunado
engano. Entretanto, se sofresse algum dano, nem sequer Ismal poderia
protegê-los. Por outra parte, o menino não tinha causado problema algum,
exceto cada vez que alguém se aproximava de sua bolsa de viagem de pele.
Apesar de ter demonstrado que somente continha pedras sem nenhum valor,
chegaram à conclusão de que o moço estava provavelmente desequilibrado
pelos recentes acontecimentos.
— A somente uma milha para o oeste está a casa do padre — lembrou
Mehmet. — Podemos deixar o menino com ele.
— Sim, boa falta nos faz um padre — disse Ymer. — Essa peça de xadrez
que nosso senhor deu a você me parece que está maldita. Desde que a
levamos conosco não tivemos nada mais que problemas. Quando chegamos a
casa, a garota tinha partido. Quando nos aproximamos da costa, a metade dos
habitantes de Durrës estava esperando com as armas preparadas. Mataram
dois de meus primos e seqüestramos um menino inglês, o filho de um lorde,
por engano. Agora o Leão Vermelho está morto, e também sua filha, e vão
acusar a nós de tudo o que aconteceu. Alí vai nos torturar até que morramos.
A menção da maldição fez que o grupo ficasse tenso e incômodo.
— Enterra-a — sugeriu um deles.
— Isso não fará desaparecer seu poder maligno — disse outro. — Será

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melhor que a entreguemos ao padre, junto com o menino.


— Ismal ficará furioso. Supunha-se que essa peça de xadrez tinha que
voltar para suas mãos.
— Mas em poder da garota, estúpido! A garota está morta e Ismal não
pode esperar de nós que a levemos de volta agora. Alí vai nos assar em um
espeto!
— Será melhor nos escondemos nas montanhas; e que o façamos agora
mesmo se queremos conservar nossas cabeças em seu lugar.
Enquanto outros seguiam discutindo, Mehmet ficou de pé e se aproximou
do moço adormecido, abriu sua bolsa de couro e colocou dentro a rainha negra
de xadrez, envolta em um trapo, entre as pedras.
Ao retornar ao lado de seus companheiros, disse-lhes:
— Temos que levar o menino ao padre, porque não nos pagaram para
matar a um menino, a não ser para raptar a uma garota. Cedo ou tarde
alguém levará o menino até Alí para que cuide dele, ou o entregará aos
britânicos em Corfú. Pode ser que os fatos façam a peça de xadrez retornar às
mãos do Ismal. Se não for assim, é que não era esse seu destino. — deu de
ombros. — E se essa coisa estiver realmente maldita, será melhor que esteja
longe do alcance de suas mãos.

Várias horas mais tarde, Percival estava deitado em uma dura cama de
armar na miserável cabana de um dos padres albaneses. O fogo meio apagado
da chaminé criava estranhas sombras na escuridão do quarto. Pela janela não
se via mais que escuridão, sem uma só estrela.
Na cama de armar que estava junto à parede oposta, o padre roncava
profundamente. A série irregular de roncos, bufados e assobios era
sintomática, pensou Percival, da obstrução nasal que o senhor Fitherspine, seu
último tutor, tinha padecido. Aqueles sons pareciam tão naturais que poderia
ter chegado a pensar que os últimos três dias não tinham sido nada mais que
um sonho. Mas não era assim e tratar de convencer-se do contrário não ia
solucionar nada.
O padre se pôs a chorar ao contar a Percival que seu tio Jason e sua prima

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Esme tinham morrido. Percival não acreditou. Tudo aquilo tinha parecido tão
estranho: o padre dando a terrível noticia em latim, pois não tinham nenhuma
outra língua em comum, enquanto pelas laterais de seu bojudo nariz caíam fios
de lágrimas. Mas Percival tampouco ia ficar a chorar agora. Se fosse vencido
pelas lágrimas, seria vencido em todos os sentidos. Precisava pensar.
Aproximando a bolsa de pele de viagem, tirou dela o objeto que não se
atreveu mais que a tocar enquanto o padre estava acordado e o
desembrulhou. Ali estava. A rainha negra. Ela era a prova evidente de que não
tinha estado sonhando. Aquele bandido a tinha metido na bolsa… depois de
uma azeda conversação com os outros, da qual Percival só tinha entendido
uma palavra: Ismal. Estava seguro disso, porque tinha ouvido varia vezes.
Agarrou a rainha negra pela cabeça e desenroscou a base da figura. E
ficou pasmado… porque a parte de papel ainda estava ali. Tirou-o perplexo e
através da leve luz das brasas estudou a mensagem de seu pai.
Tratava-se de um código ridiculamente simples. Não terei que fazer nada
mais para decifrá-lo que usar o alfabeto, substituindo a Z por A, e assim todas
as letras. Então as palavras apareciam em latim. Sem gramática, mas o
suficientemente explícito. O barco era o Rainha da Meia-noite, que deixaria a
carga no Preveza a princípios de novembro.
Isso era tudo o que Percival pôde compreender. Não chegava a entender
por que seu pai tinha deixado algo que poderia incriminá-lo por escrito. Ou por
que Ismal não tinha destruído a nota, a menos que não tivesse chegado a
recebê-la. Mas, sobretudo, Percival se perguntava por que demônios aquele
bandido tinha colocado a rainha na mochila de couro.
Era importante sabê-lo. Fosse qual fosse a explicação, tinha que ser algo
feio, porque aqueles tipos eram feios e outro tipo tão feio quanto eles tinha
assassinado o seu tio e a sua prima.
Percival atirou o papel às brasas, mas imediatamente voltou a tirar dali e
apagou as faíscas. Tentou frear com seu aborrecimento as lágrimas que se
amontoavam nos olhos. Seu tio Jason jamais teria feito algo tão covarde.
Tinham-no assassinado enquanto tentava salvar a Albânia do homem a quem
era dirigida aquela mensagem. Aquela informação poderia ser útil a alguém, e
esse alguém jamais acreditaria em um menino de doze anos sem uma prova. A

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missão do Percival era fazer chegar essa nota… e fazer com que o mundo
soubesse que seu pai era um simples contrabandista, um criminoso — Oh,
céus!, e acaso fora o responsável, até de maneira involuntária, da morte de
seu próprio irmão.
— Oh, mamãe! — sussurrou Percival olhando com tristeza a rainha negra,
— diga o que tenho que fazer.

Capítulo 5

Nem Maliq nem seus companheiros suspiraram ou babaram durante o


jantar com o lorde inglês. Certamente eles não eram dissolutos moradores de
uma corte corrupta. Embora fossem amáveis e hospitaleiros, tinham muito
orgulho para dedicar-se a adulá-lo.
O que não queria dizer que não sentissem curiosidade. Embora por
Rogozhina passassem muitos visitantes com o passar do ano, um estrangeiro
era uma espécie estranha, e o exótico recém-chegado era, além disso, alto,
simpático e atrativo. Seu aspecto, sua vestimenta e seu comportamento
pareciam para eles completamente fascinantes, embora tivessem a dignidade
de não demonstrá-lo de maneira descarada.
Ao menos não no caso dos homens, corrigiu Esme a si mesma enquanto o
acompanhava ao dormitório e cruzava com duas jovens roliças e formosas que
os observavam do outro lado da porta com a boca aberta. Quando ele eu a
volta para desejar boa noite, elas riram bobamente enquanto se retiravam.
Tolas, pensou Esme desdenhosamente. Se soubessem o depravado, folgazão e
inútil que é o inglês.
Durante o jantar, Esme se viu obrigada a apresentar de maneira
apropriada seu acompanhante. Quando chegaram ao povoado, ele tinha um
aspecto tão cansado e doente que tiveram que postergar as formalidades;
antes tinham que deixar que o jovem lorde se recuperasse da viagem. Não se
deu conta até a hora do jantar de que jamais tinha sido honrada com uma
apresentação formal. Tinha dormido a seu lado durante três noites, mas nem
sequer sabia seu nome. «O barão inglês», era tudo o que ela tinha ouvido

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dizer ao Petro e ao capitão quando falavam dele — como se seu nome fosse
muito sagrado para pronunciá-lo em voz alta.
— Diga a eles seu nome —sussurrou ela enquanto as mulheres traziam a
comida à mesa. — Eu não sei.
Com uma série de sílabas curtas e entrecortadas, ele soltou uma série de
ridículos nomes: Varian Edward Harcourt St. George, barão Edenmont do
condado de Buckingham, Inglaterra. Logo dedicou a ela o mais desprezível e
presunçoso dos sorrisos, como se a estivesse desafiando a que os recordasse.
Embora tivesse sentido vontade de dar-lhe uma bofetada, Esme voltou-se para
seus anfitriões e ofereceu amavelmente uma tradução do que significavam
seus nomes, ao final da qual puderam ouvir uma série de risadas jocosas entre
a audiência.
— Que demônios disse a eles? — sussurrou ele fazendo cócegas na orelha.
— St. George é Shenit Giergi, um santo que eles reconhecem — disse ela.
— disse a eles que o barão era algo como um rei e que condado é um dos
pashaliks da Inglaterra.
— E o que tem de tão gracioso nisso?
Ela deu de ombros.
— Pode ser que acharam graça em seu nome de batismo. Disse-lhes que
vinha do latim, Varian — respondeu ela pronunciando as vocais com acento
albanês. — Significa «volúvel».
— Mais tarde vou dar uns açoites — ameaçou ele.
Entretanto, pôs-se a rir e toda a companhia riu com ele, e alguém disse
que sua risada soava como a música.
Embora ela duvidasse muito de que sua excelência tivesse a ousadia de
açoitá-la, Esme não se sentia entusiasmada por estar a sós com ele.
Empurrou-o dentro do dormitório ficando junto à porta aberta com a mão no
pescoço. Tinha decidido que seu único dever ali era comprovar que tinha tudo
o que necessitava. Logo poderia se afastar dele durante o resto da noite.
Era um quarto pequeno. Mas apesar disso, e por tratar-se de uma casa de
campo, era bastante luxuoso. Poucas casas tinham mais de dois quartos. Mas
a do Maliq tinha seis, e o que ocupavam naquele momento certamente estava
preparado para acomodar aos dignitários das autoridades que os visitavam.

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Em lugar de sofás, as camas de armar construídas contra o muro para servir


de cama, a pequena sala estava ocupada por um grande catre e uma chaminé.
Não só tinham destinado ao inglês os almofadões mais macios e as mantas
mais grossas, mas também intimidade, uma estranha comodidade por aqueles
lugares.
Ao lado da chaminé tinham colocado dois pequenos cântaros cheios de
água quente, e de uma corrente por cima do fogo pendurava um caldeirão. Ela
tinha lavado antes as mãos e o rosto, algo que com muita dificuldade teria
considerado como suficiente. Não foi necessário que Petro lhe dissesse quão
exigente era seu senhor com a higiene. Ela tinha nariz e olhos, não era assim?
Tinha visto o limpo que estava sua camisa, e já não recordava quando era a
última vez que a sua tinha reluzido daquela maneira.
Mesmo assim, Esme jamais teria sonhado em impressionar os
estrangeiros. Sabia muito bem o que era ir ao povo do lado, ou ao rio mais
próximo, carregada com baldes de água, para esquentá-los um após o outro.
Mas já que se supunha que ela era um moço, o sobrinho de Petro, nesse
momento tinha que deixar que aquele trabalho as mulheres fizessem, além do
que não tinha nenhuma vontade de ficar com uma carga mais.
— Aqui poderá estar tranquilo e cômodo — disse dando uma olhada à
habitação. Seu olhar se deteve por um momento nas jarras de água
fumegantes e notou o agradável aroma de sabão que desprendiam as toalhas
dobradas. — Já foram todos para cama. Ninguém virá incomodá-lo até que
amanheça, e nesse momento já estarei aqui para traduzir.
Ele se sentou na borda do catre, pôs uma das musculosas panturrilhas em
cima da outra perna e tirou uma das botas.
— Não acredito que possa voltar já que não vai — disse ele. — Não quero
que fique dormindo com o Petro e com todos esses homens, e tampouco pode
ir dormir com as mulheres.
— Tinha pensado que preferia estar sozinho.
Ela ficou olhando incômoda enquanto ele deixava uma bota no chão e
começava a tirar a outra.
— Prefiro que fique perto de mim — disse ele. — Quando não a tenho à
vista ponho a imaginar todo tipo de desastres. Além disso, não poderia pregar

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olho a noite toda nesse estado. Não tem nada que ver com seu gênero, eu
asseguro. Se fosse Percival, sentiria exatamente o mesmo. Recorda o que
passou quando ele decidiu sair sozinho do barco.
— Não é o mesmo — respondeu ela. — Por uma parte, meu primo e eu
não nos parecemos em nada, exceto exteriormente; por outra…
— Esme, pode discutir comigo até o dia do Julgamento Final, se quiser,
mas o que posso assegurar é que não vou dormir absolutamente esta noite se
for.
O que significava que no dia seguinte ia estar muito cansado para seguir a
viagem e a culpada de tudo seria ela. Esme se calou, aproximou-se do catre,
agarrou uma manta e a jogou no chão, ao lado da chaminé.
— Isso não quer dizer que tenha que dormir no chão — disse ele
levantando do catre. — É obvio que é você que deve dormir na cama.
— Eu posso dormir perfeitamente no chão, estou acostumada — disse ela
com convicção. — Meus ossos não são tão frágeis como os seus.
Ele sorriu.
— Pode ser que não, mas os seus não estão tão bem acolchoados.
— São mais jovens e mais flexíveis — disse ela desdenhosamente.
— Parece que estou decrépito?
Esme o olhou de cima abaixo com gesto ressentido, observando seu corpo
perfeitamente bem proporcionado.
— Não queria dizer isso. Mas que seja um homem adulto e forte não quer
dizer que tenha mais resistência. Eu posso dormir perfeitamente no chão,
enquanto que você certamente despertaria a meia noite incômodo e com frio.
Aconselho que desfrute de um leito suave agora que tem a oportunidade.
— Mas eu estou determinado que você o desfrute — disse ele. — E sou
muito teimoso quanto a me comportar como um cavalheiro. — Seu sorriso se
converteu em uma careta zombadora. — Temos que começar a brigar,
senhora? trata-se de que vejamos quem dos dois é mais obstinado?
— Eu não…
O resto da frase foi uma série de palavras entrecortadas porque Esme se
encontrou de repente nos braços dele, que a depositou sobre o leito. No
momento, ela ficou de pé, mas ele pôs as mãos sobre os ombros.

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Imediatamente, Esme se separou de seu corpo corpulento e se deitou para


trás na cama, apertando as coxas.
— Não acredita que poderá me derrotar tão facilmente, efendi — declarou
ela. — Se não me soltar e sair de meu caminho sentirá o peso de minha bota
sobre seu nobre pé.
Aquelas palavras eram muito desafiantes, mas não sortiram nenhum
efeito. Ao cabo de um momento após haver pronunciado, ela se encontrou
aterrissando de costas sobre a cama. E antes que pudesse ficar de novo de pé,
ele a agarrou pelas pernas. Esme se retorceu em retirada, e enquanto lutava
tratando de recuperar o equilíbrio, ele conseguiu tirar uma das botas e, após
um momento, a outra.
— Agora já pode saltar sobre meus pés, se quiser — disse ele segurando a
sua prisioneira ainda pelos tornozelos, — mas não deveria destruir minhas
queridas meias, pequena gata selvagem.
— Seda — mofou ela dele, desconcertantemente consciente dos longos
dedos que sujeitavam seus tornozelos. — Só a uma concubina ocorreria usar
seda nos pés.
Ele ficou olhando as grossas meias que levava ela nos pés.
— Muito mais agradáveis que a lã furada. Se for boa garota, é possível que
eu mande meias de seda da Itália, para seu enxoval. E tem as meias ainda
molhadas — acrescentou ele. — Isso não é nada saudável.
Ela tratou de livrar-se de suas mãos, mas ele tirou as duas meias de lã
com a mesma facilidade com que a tinha despojado das botas. O coração de
Esme começou a pulsar com rapidez. Chegou à conclusão que devia ter muita
experiência despindo às mulheres de suas roupas. E por que demônios não a
soltava de uma vez? Pela maneira como a olhava, dir-se-ia que nunca antes
tinha visto um pé.
Ela se ruborizou de vergonha. Não é que tivesse os pés muito sujos, mas a
verdade era que tampouco estavam muito limpos. Nada que ver com a limpeza
e o aroma de sabão que desprendia do cabelo dele. À luz das velas e do fogo
da chaminé, seu cabelo negro reluzia como se fosse azeviche.
— Tem uns pés muito magros — disse ele com um leve tom de surpresa na
voz. — Com uns ossos finos e magros, como os de um passarinho.

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Logo passou um dos dedos por seu tornozelo, e a chama de calor que
provocou essa carícia subiu pelos joelhos dela e a fez tremer.
Ele levantou a cabeça e quando a olhou foi como se o ar que os separava
começasse a vibrar como as cordas de um bandolim. À luz ambarina do
dormitório seu rosto recém barbeado brilhava limpo como o mármore branco e
gentil, mas seus olhos cinza pareciam negros abismos com um estranho e
absorto olhar. Uma mecha de cabelo negro caía sobre uma sobrancelha e deu
vontade de afastá-lo do rosto. Aquele desejo a fez sentir-se débil e
melancólica.
— Se afaste de mim — disse ela em um tom de voz tão suave que não
pôde reconhecer como dela.
— Oh! — Ele piscou e se desvaneceu a brilhante calidez de seus olhos. —
Eu sinto — se desculpou soltando-a. — Tinha esquecido que… Bom, é que…
tem um pé muito formoso. — Também a voz dele soou com um timbre
estranho.
Pulsava-lhe o coração quase saindo do peito, como se fosse um inseto
golpeando contra uma janela.
— Tenho os pés sujos — disse ela de maneira cortante.
— Me perdoe, por favor. Não pretendia que… Bom, suponho que ninguém
se preocupa muito por você, não é assim? — Ele ficou de pé. — Se quiser se
lavar, posso sair um momento do quarto.
Sem esperar que ela respondesse, ele abandonou o quarto. Depois de um
momento de dúvida, Esme agarrou as jarras de água quente. Com uma
rapidez furiosa as jogou por cima e logo se esfregou grosseiramente dos pés à
cabeça. Não tinha água suficiente para lavar o cabelo, de modo que o
desenredou da melhor maneira que pôde, com os dedos, e logo o recolheu em
um rabo para mantê-lo afastado do rosto.
Quando ouviu os passos dele que retornava, estava já ficando de novo a
camisa. Agarrou uma manta e se cobriu com ela.
— Ainda não estou vestida — disse Esme em voz baixa.
— Isso é perfeito. O sobrinho de nosso anfitrião, ou seu primo ou neto ou
o que seja, deu uma camisa de dormir limpa para você.
A porta se entreabriu ligeiramente e ele introduziu uma mão para

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aproximar aquele objeto.


Completamente ruborizada, Esme a arrancou das mãos e a pôs com
pressa. Chegava muito abaixo dos joelhos.
— Eu…, agora já estou vestida — disse ela sentindo-se repentinamente
como uma tola.
O que podia importar a ele que ela estivesse limpa ou suja? Ela não era
mais que uma pequena e feia selvagem, seu guia e sua intérprete, isso era
tudo.

Ao outro lado da porta, Varian duvidava. Havia muitos lugares em


todas as partes. Acaso deveria deixar o quarto para ela sozinha. Ali estava
suficientemente longe de outros homens. Estaria o bastante segura. Mas ele
não queria deixá-la sozinha. Ela estava muito só no mundo… e era tão jovem.
Não deveria divertir-se com ela. Embora fosse muito jovem, não era uma
menina, e é obvio que ele tampouco o era. Ele não era o irmão mais velho que
brincava com ela fazendo palhaçadas. Fazia muito tempo que Varian St.
George tinha deixado atrás a inocência. De qualquer modo, tinha sido o
primeiro a surpreender a si mesmo ao ver-se ali brincando com seu pé, e a um
passo de começar algo pior. Aquela voz aguda e desconcertada… Certamente
ela tinha visto em seus olhos seu interesse, ou tinha notado.
Não importava, disse a si mesmo. Era impossível que ela soubesse do que
se tratava. Podia fazer ver que não tinha acontecido nada. De fato, nada tinha
acontecido. Tudo tinha acontecido em sua cabeça, que obviamente se
transtornou com o golpe. Algo nada surpreendente dadas as circunstâncias.
Ele abriu a porta, entrou… e esteve a ponto de cair de costas.
Esme estava de pé, ao lado do fogo, em uma postura rígida e desafiante e
com a cor do rosto muito forte. Se soubesse o que a luz das chamas revelava
através do fino tecido de sua camisa de dormir, provavelmente teria ruborizado
ainda mais. Mas ele não ousou dizer-lhe. Isso era o que um cavalheiro tinha
que fazer. E assim fez ele, de momento… Mas, Deus, tinha visto algo mais doce
que aquilo? A ligeira protuberância de seus ternos seios jovens, e uma suave
cintura que rodeava uns magros e esbeltos quadris, e mais abaixo umas firmes
e bem torneados coxas, e…

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Em poucas palavras, era uma ninfa que teria chegado a fascinar à própria
Artemisa.
Com atraso, Varian se deu conta de que estava comendo com os olhos
aquele corpo jovem na flor do crescimento. Céus, esperava que ela não se
desse conta disso!
— É tão… magra — disse ele.
— Meu pai dizia que as mulheres de sua família amadureciam com atraso
— disse ela elevando a mandíbula. — Mas logo crescerei.
Varian pensou que gostaria de estar ali quando isso acontecesse. E disse
em voz alta:
— É obvio. Tem muito tempo pela frente.
Logo se aproximou do catre e recolheu um travesseiro e duas mantas
mais.
— Uma de minhas amigas cresceu duas polegadas entre seu primeiro e
seu segundo filho — disse ela à defensiva.
— Uma de suas amigas? — Ele se voltou para ela apertando
inconscientemente a almofada contra seu ventre. — A que idade se casam as
mulheres na Albânia?
— Doze, treze, quatorze anos — respondeu ela dando de ombros. —
Normalmente buscam um marido ao nascer e se casam quando estão em
idade de ter filhos. Mas Jason não quis fazer isso comigo, porque ele não tem
os costumes desse país.
— Pelo amor de Deus, eu diria que não. — Varian colocou o travesseiro e
as mantas em cima da que tinha jogado ela antes no chão. — Na Inglaterra as
moças esperam ter dezoito anos para entrar na Bolsa de Matrimônios, ao
menos entre as classes altas. Mesmo então, duvido muito que a maioria delas
seja o suficientemente adultas para converter-se em mães.
Ela ficou olhando pensativa.
— Sim. Já imaginava que estavam muito mais protegidas — disse.
Para alívio dele, ela se moveu de onde estava ao lado da chaminé e se
aproximou do catre, que ao contemplá-la fez ficar com a boca aberta e
franzindo as sobrancelhas.
— Acredito que vais ter frio, eu já estou acostumada — disse ela sem

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afastar a vista da cama.


— Minha querida moça, ontem à noite dormi em uma tenda com goteiras
em meio de um tufão.
— Mas tinha um corpo a cada lado que dava calor.
Esse não era o momento de que recordasse aquilo, pensou Varian. Teria
sido realmente acolhedor compartilhar o leito com ela, mas essa noite não
tinham ao Petro de acompanhante, e naquele instante, como tantas outras
vezes, tinha começado a experimentar inquietantes sentimentos por essa
jovem e inocente moça. Imagine que voltava a ter sonhos tão lascivos, ou
possivelmente ainda mais, como os que tinha estado tendo durante as últimas
noites? Então, ao menos, ela estava bem protegida dentro de sua armadura de
robustas roupas de lã. Agora entre suas depravadas mãos e a inocente carne
fresca dela só havia um tecido tão bom como nada. Não, não deveria nem
sequer pensar nisso.
— Estarei o suficientemente quente aqui, junto ao fogo — disse ele. — De
verdade, Esme, não necessito de uma cama. Quero que o considere como se…
como se fosse uma compensação, sabe? Pela maneira tão rude com que a
tratei antes — disse ele tentando improvisar algo. — E… e por ter sido um
companheiro de viagem tão exaustivo, e porque poderia seguir sendo.
Ela virou-se e ficou olhando, com a leve careta de um sorriso em seu sério
semblante.
— De modo que a cama é minha vingança, efendi?
— Exatamente.
Deixando escapar uma pequena risada, ela subiu ao catre e se acomodou
em sua acostumada postura de Buda.
— Em tal caso, vou desfrutar ao máximo. É muito suave — acrescentou
ela.
Varian suspirou enquanto tirava a jaqueta.
— Isso espero.
Logo tirou o lenço do pescoço e o atirou no chão.
— É um pouco descuidado — disse ela. — E ademais vai esfriar o pescoço.
— Preferiria que me estrangulasse com o lenço? E é o que pensa ao ficar aí
me olhando enquanto me dispo?

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— Não tinha me dado conta de que fosse se despir completamente. Vai ter
muito frio — disse ela . — E além disso não é muito apropriado despir-se sem
antes ter apagado as velas.
— E também é bastante difícil encontrar os botões às escuras. Poderia,
simplesmente, colocar a cabeça debaixo da manta? A menos que, é obvio,
prefira admirar minha beleza masculina — acrescentou ele de maneira
provocadora.
Aquilo não a fez ruborizar-se, como ele esperava. Ela ficou olhando
friamente durante um momento e logo, com a mesma frieza, meteu-se sob as
mantas e lhe deu as costas.
— Petro tinha razão — disse ela com desprezo. — Não tem nenhum pingo
de decência. E, além disso, é vaidoso. Embora não me surpreenda
absolutamente, depois de ter visto como ficam as mulheres entusiasmadas
quando o olham. — Logo bocejou. — De qualquer modo, se quer passear nu
pelo quarto, é seu problema. Pode ser que a atividade o mantenha aquecido.
— Que quadro tão elegante me pintou — disse ele em tom de queixa
apesar de si mesmo. — O décimo segundo barão do Edenmont dançando em
couros como se fosse um… um…
— Um fauno — acrescentou ela. — Ou um sátiro. Ou talvez como Eros.
Mas não, é muito velho para isso.
— Eros seria perfeito. Ao menos me atribui algum tipo de qualidade
divina…
— Era cego.
Varian se deu por vencido e, rindo de si mesmo, apagou as velas. Quando
chegou à última, a que estava mais perto da cama, se deteve para olhá-la.
Estava deitada de lado, feita um novelo, acomodada entre as mantas. A luz da
vela lançava raios ardentes sobre seu cabelo. Uma parte dele desejou acariciar
aquele cabelo. Outra parte, de maneira absurda, queria meter-se na cama com
ela. Mas não fez nenhuma das duas coisas.
— Boa noite, senhora — disse ele.
— Neten e olhe, Varian Shenit Giergi — respondeu ela.
Aquelas palavras em albanês chegaram a seus ouvidos como uma carícia.
Varian duvidou por um momento, e logo voltou-se com resolução, apagou a

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vela e se dirigiu a seu solitário colchão no chão.

Capítulo 6

Embora supondo que Lushnja estava a apenas dez milhas ao sul, o grupo
de Varian não pôde chegar ali antes do por do sol. A ponte mais próxima sobre
o rio Shkumbi estava a várias milhas ao oeste da Rogozhina. Conseguiram
cruzar justo minutos antes que a ruinosa estrutura se afundasse no rio.
Uma vez tendo deixado para trás o incidente, tiveram que enfrentar a um
vasto território de atalhos intransitáveis. A chuva tinha alagado os caminhos,
de modo que precisaram desviar-se bastante para o oeste, passando perto das
colinas. Pegos nos limites daquela zona costeira e pantanosa, o pequeno grupo
avançava muito lentamente. Sob o toró, mesmo a cavalo, não viajavam muito
mais rápido do que tinham previsto fazer a pé.
Entretanto, naquele momento, Varian estava consciente do ambiente
natural que os rodeava. Tinha a cabeça voltada para outros assuntos, como
por exemplo, nos homens que formavam sua escolta. Era impossível imaginar
um grupo de acompanhantes menos tranquilizador que aquele.
Esme havia dito que se tratava de bons lutadores nos quais podia confiar.
Era verdade que tinham um aspecto bastante feroz: altos e musculosos, com
os rostos duros e curtidos rematados por espessos bigodes sob os capuzes das
imundas capas. Sem dúvida, seus gestos secos e o tom baixo de suas
conversas estavam perfeitamente calculados para ganhar confiança de um
inglês.
A seu lado, Esme parecia menor e mais vulnerável que nunca, e
terrivelmente necessitada de amparo. O fato de que os outros não
suspeitassem que na realidade fosse uma mulher, não era tão tranquilizador
dado as práticas comuns naquelas terras. Pareceu a Varian que aqueles tipos
se fixavam muito nela. Começou a suspeitar o que poderia cruzar pela cabeça
deles, embora ela não parecia dar-se conta.
Incomodava a Varian tê-la sempre em mente. Mas tinha que admitir que
era uma moça realmente encantadora. Já tinha se dado conta disso mesmo

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antes de ter dado uma olhada a seu corpo de ninfa. Sua pele bronzeada pelo
sol era suave e lisa, seus grossos lábios ainda mais suaves, tanto que dava
desejos de beijá-la. E aí precisamente residia o problema. Não era mais que
uma menina, e a Varian St. George não atraíam as meninas, e além disso não
devia estar pensando em sua boca ou em nenhuma outra parte de seu corpo.
Mas não podia deixar de pensar nela. Repassou mentalmente muitas vezes
o momento inquietante em que ela tinha acariciado o pé e ficou olhando
hipnotizado seus inocentes e profundos olhos verdes, e havia sentido a
primeira traiçoeira sacudida de desejo.
Por alarmante que tivesse sido aquilo, Varian assegurava a si mesmo que
era fácil explicar aquela atração que sentia. Fazia semanas que não tinha uma
mulher. Aquilo, unido a penosa viagem sob um incessante toró por um terreno
endiabradamente difícil, tinha transtornado sua cabeça. Via Esme como se
fosse uma mulher porque assim desejava vê-la, e porque era a única pessoa
de sexo feminino que havia a seu redor.
De todos os modos, um celibato temporário não ia matá-lo. Era um
cavalheiro e, embora admitisse seu caráter dissoluto, possuía certamente
suficiente honra para manter as mãos quietas. Desgraçadamente, duvidava de
poder dizer o mesmo dos homens que os escoltavam.
Quando por fim se detiveram para passar a noite, e os albaneses
começaram a preparar o acampamento, Varian ficou ao lado de Esme.
— Acredito que será melhor para você que continue compartilhando meu
quarto — disse ele.
Ao ver o gesto de rebelião que tomava corpo em seus olhos e a elevação
teimosa de seu queixo, Varian acrescentou:
— Discutir comigo é uma perda de tempo. Já sei que vai dizer que sou
insensato e que estou louco. Mas, sendo assim, não acredita que vou fazer
caso omisso do que me diga?
— Se estiver louco — respondeu ela com uma paciência exagerada, —
como pode saber o que é o melhor?
— Disse que acredito não que saiba — respondeu ele ainda com mais
paciência. — Pode ser que o que penso seja idiota, mas é o melhor que posso
fazer minha querida menina.

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Ela ficou pensando naquelas palavras, com uma expressão meditativa que
parecia uma réplica cômica do Percival, quando ficava observando com intriga
um espécime geológico.
— Já vejo — respondeu ela ao cabo de um momento. — É mais ou menos
como ontem à noite. Tem algum tipo de ideia desenquadrada de que deve
cuidar de mim. Está vendo perigos onde não há, da mesma maneira que não
os via em Durrës, onde sim havia. Pelo Alá, está realmente confundido. Estou
começando a pensar que sua mãe o deixou cair de cabeça quando foi um
bebê.
Varian manteve o olhar com o rosto inexpressivo.
— Tem que ser paciente com as pessoas mentalmente desequilibradas.
— Ter-me-iam que fazer Santa pela paciência que tenho contigo —replicou
ela. — Não deixou de se queixar ou de ser cínico desde que começamos a
viagem. Como se o fato de que o desaprove pudesse fazer melhorar o tempo
ou que se arrumassem por arte de mágica os caminhos que ficaram alagados
pela água.
Varian se deu conta de que tinha estado todo o tempo de mau humor. Ao
sentir-se aborrecido consigo mesmo, tinha demonstrado seu desgosto com
tudo o que o rodeava.
— Sinto-me terrivelmente fatigado — disse ele. — Vivi sempre muito
protegido e tenho medo de tudo, embora seja um medo infundado. Viajar por
seu país é algo muito duro, e até agora não tinha passado nem um só dia de
penúrias em toda minha vida.
— Vá, e um homem desse tipo acredita que poderá me proteger. Nunca
tinha ouvido algo mais estúpido.
Ela começou a afastar-se de seu lado.
Varian a agarrou suavemente pelo braço e a fez deter-se.
— Estúpido ou não, quero que se mantenha afastada dos outros — disse
ele. — Se a observarem de perto, certamente descobrirão que não é o que
parece ser. Jantaremos juntos em meu quarto e passará a noite nele. É a única
coisa sensata que podemos fazer.
Ela negou com a cabeça.
— Esme — sussurrou ele com voz rouca, — embora esteja fatigado, ainda

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sou maior que você e levo muito a sério o que digo.


— Entendo, efendi.
— Mas mesmo assim não está de acordo.
Ela duvidou um momento, logo assentiu com a cabeça e estalou a língua.
Onde diabos estava o problema? Enquanto ele tentava demonstrar que
falava da maneira mais convincente, deu-se conta de que ela o olhava com um
brilho de diversão nos olhos.
— Posso saber o que é o que parece tão divertido? — perguntou ele. —
Acaso tenho uma mosca no nariz?
Ela assentiu de novo e, embora ele não sentisse nada, instintivamente
soltou seu braço para apalpar o nariz.
— Está a quatro dias em meu país e ainda não se deu conta de algo muito
simples — disse ela: — quando meneamos a cabeça de um lado a outro, isso
significa «sim», e quando a inclinamos isso significa «não». Não dizia que
somos gente atrasada? Pois assim é.
Logo se pôs a rir, claramente divertida por sua inteligente resposta.
— Vejo que está disposta a fazer de mim o alvo de suas piadas até que
cheguemos a Tepelena — disse ele. — Terei que resignar-me a fazer o papel do
tolo, eu o grande rei inglês do pashalik do Buckinghamshire. Somente espero
que rei seja algum tipo de nobre e não a palavra albanesa para asno.
Isso também pareceu diverti-la, já que enquanto se afastava para ir
recolher sua bagagem ainda continuou rindo um bom momento.

Aquele jantar foi o mais agradável que tinham compartilhado até o


momento. Ainda evidentemente divertida pela conversação que acabavam de
ter, ela não tomou cada uma de suas palavras como uma ofensa, como estava
acostumada a fazer. Aquela noite jantaram frango, arroz, azeitonas, pão e um
queijo fedorento, mas Varian não se queixou de nada. Sabia que tinha tido um
comportamento bastante desagradável durante o dia e pensou que era melhor
não pôr mais a prova a paciência dela. Poderia ter um arrebatamento e acabar
gritando até fazer se apresentassem ali seus patrícios.
Felizmente, uns quantos goles daquela espécie de licor de uvas
envenenado, que eles chamavam rakí, fez com que o resto da noite

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transcorresse de uma maneira muito mais tranquila. Aparentemente destilado


nos infernos de Hades, era um demoníaco licor espirituoso, mais potente que
qualquer vinho italiano. Os homens o bebiam com a comida como se fosse
água mineral. Naquele momento, as canções e as risadas que ouvia fora,
advertiram a Varian que já estavam bêbados, e sem dúvida Petro era o mais
bêbado de todos eles. Uma razão mais para manter a Esme afastada de seus
companheiros de viagem, pensou Varian convencido.
— O que estão cantando? — perguntou ele.
Esme acabava de limpar seu prato de comida. Ficou de pé e apareceu à
entrada do quarto, segurando o toldo com a mão enquanto olhava fora. A
chuva converteu-se em uma suave garoa.
— É o relato de como Alí Pachá conquistou Preveza — disse ela. — Têm
algumas partes um pouco estúpidas, mas em geral é bastante boa.
As vozes daqueles tenores pareciam o lamento de um canto fúnebre.
Certamente eram as influências do Oriente, com sua habitual tendência às
escalas menores, pensou ele.
Ela deixou cair o toldo e se dirigiu ao centro do quarto, junto ao montão de
mantas sobre as quais estava recostado Varian.
— Quer que traduza para você? — perguntou- ela enquanto se deixava cair
elegantemente em sua posição de pernas cruzadas diante dele.
— Não, se for uma façanha de guerra. Sou um homem pacífico. Um ocioso
folgazão, como você dizia.
— Nieri i plogët — disse ela. — Homem ocioso, ossos fracos.
Aos ouvidos dele, o albanês era uma língua rouca e gutural, tão dura e
suficiente como suas mantas. Entretanto, quando ela o pronunciava em voz
baixa, aquelas sílabas duras se faziam sensuais e intensas. A noite anterior, a
acariciante canção de sua «boa noite» pronunciada em voz baixa quase tinha
chegado a conseguir que se desfizesse.
Aquela lembrança o fez sentir-se de novo intranquilo.
— Ensina-me — disse ele.
Ela elevou as sobrancelhas.
— Trata-se de uma língua muito antiga, sabe? com muitas inflexões. Como
o latim, mas mais difícil de pronunciar. E as consoantes farão travar sua língua.

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— Não me importa — disse ele. Logo se levantou de sua postura recostada


para sentar-se com as pernas cruzadas, como fazia ela. — Isso me manterá
ocupado até que formos dormir. E, além disso, darei a você uma oportunidade
perfeita para que me ponha em ridículo.
— Poderia morrer de rir, efendi. E então somente ia ficar Petro como
intérprete.
— Não, porque também eu estarei morto, ter-me-ei afogado com minha
própria língua.
— Muito bem. Mas tenho que adverti-lo que não vai ser nada fácil. — Ela
se calou um momento, pensativa. — Será melhor que não comecemos pelas
declinações ou vai se pôr a chorar. — A seguir ergueu uma de suas fortes e
magras mãos. — Döre… emano. Pode ser definido e indefinido. Döre, dourar.
Mas suponho que não notará a diferença.
Ele dirigiu um olhar inexpressivo.
— Não é importante — disse ela pacientemente. — Ninguém vai esperar
que seja um perito. Diga da melhor maneira que possa.
— Dou-la — respondeu ele muito sério.
— Não, não. Não é «l» a não ser «r».
Ela voltou a pronunciar o «r» gutural, dobrando ligeiramente a língua para
demonstrar como fazê-lo.
Varian era perfeitamente capaz de imitar aquele som e sabia que não
podia brincar com ela. Por outra parte, como podia resistir, quando ela oferecia
de uma maneira tão ingênua sua deliciosa língua para que a examinasse
atentamente?
A boca de uma menina, disse uma voz com tom de recriminação do fundo
de sua mente. Mas ele não a escutou.
Varian St. George nunca, durante toda sua vida, tinha ouvido vozes
interiores que o advertissem e estava muito mal preparado para começar a
fazer caso agora. A consciência que pudesse ter era desesperadamente
decrépita. Um simples vislumbre de tentação bastava para afogá-la.
— Doh-dah — disse ele.
Ela ficou olhando com a estóica resignação de um tutor enfrentado a um
menino com deficiências mentais. Ficou a procurar nomes simples, lançando

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mão dos objetos que havia pelo quarto, mas nada parecia ser o bastante
simples. Varian escutava e a olhava com atenção e logo repetia cada palavra.
Decidida a ensinar sua língua para aquele inglês de cabeça dura, Esme se
aproximou dele para se permitir estudar melhor os movimentos de seus lábios
e de sua língua, enquanto formava as sílabas.
— Köke — disse ela apontando a cabeça. — Estas sílabas soam quase
como o inglês, não parece? — Logo tocou o reto e bem desenhado nariz com a
ponta de um dedo. — Undë.
Sobrancelhas, olhos, bochechas, orelhas, boca — ela foi recitando cada
uma dessas partes do corpo em sua língua, com a persistente paciência que
teria um missionário tentando salvar a um pecador. — Tão perto dele; tão
insinuantemente perto. Ele tinha vontade de tocá-la, de passar seu dedo pela
sedosa e dourada bochecha dela.
— Gojë — disse apontando o dedo para sua boca. — Venha, isto não é tão
duro.
Não, sua boca era branda, suave e úmida. «Venha», havia dito ela.
— Kokë, syrtë, undë — disse ele em voz baixa, perfeitamente.
Aproximou-se um pouco mais dela. Desejava aquela boca, e isso era o
único no mundo que queria ou sabia naquele momento.
— Gojë — sussurrou ele.
Seus lábios roçaram os dela, a mais ligeira carícia de um beijo, mas algo
se fez pedacinhos em seu interior, algo como medo, e ele se inclinou para trás
em seguida, assustado.
Mas não tão assustado como ela. Seus olhos verdes estavam abertos como
pratos e o olhavam estupefata. Logo seu rosto começou a avermelhar. Elevou a
mão e o esbofeteou com tal força em uma bochecha que os ouvidos de Varian
zumbiram e os olhos ficaram frágeis.
— Isso não foi divertido — disse ela e começou a esfregar os lábios com
força.
Enquanto dava uma massagem com os dedos no rosto, Varian pensou que
nunca antes se encontrou com uma resposta mais desarmadora, ou
apropriada. — Já tinha sido esbofeteado antes, em estranhas ocasiões, embora
nem de longe tão forte. Mas nunca ninguém limpou um de seus beijos com

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essa desesperada repulsão.


Entretanto, o que esperava? Como tinha se atrevido a aproximar sua boca
da inocente boca dela? Demônios, e como não fazê-lo, sendo ela como era e
encontrando-a tão… encantadora? E assim era, assombrosamente
encantadora, mesmo estando zangada, com seu espantoso aspecto de menino
e aquele horroroso gorro de lã.
Entretanto, naquele momento, o problema mais urgente para Varian era
como acalmá-la. Tinha que admitir que tinha experimentado um momento de
loucura transitiva, mas agora já tinha recuperado de novo o controle sobre si
mesmo. Por outra parte, todos os homens que havia fora estavam bêbados.
— Tampouco ontem pareceu divertido o comportamento do Petro, mas não
provocou uma comoção cerebral — disse Varian com um azedo tom de voz.
— Ele não me insultou — disse ela com frieza.
— Asseguro a você, Esme, que não pretendia insultá-la.
— Sei, somente estava brincando. Estava fazendo ver que não podia
pronunciar as palavras…
— E você estava brincando comigo somente um momento antes — a
interrompeu. — Pode ser que queira seguir jogando.
Aquelas palavras a acalmaram um pouco. Era muito curioso e realmente
conveniente quão fácil aceitava ela a vingança como uma desculpa. Mas Varian
teria desejado que ela não ficasse repisando seu caso com aquela terna
expressão no rosto. Queria apagar aquele beijo, fazer cócegas, ou fazer algo…
algo que ofendesse ainda mais sua dignidade e estava seguro de que o
resultado seria o desaparecimento daquela careta. A verdade é que parecia
que Varian fosse um menino de doze anos. Provavelmente por causa de uma
prematura senilidade, provocada por anos de vida dissipada e…
— Muito bem — disse ela. — O tratei como se fosse um tolo e por isso fez
o mesmo. Mesmo assim, deveria adverti-lo que mantenha esse tipo de
vinganças nas palavras, efendi. Do contrário, a caminho de Tepelena vamos
acabar em um banho de sangue. Insultar a outra pessoa é como dar um tiro —
explicou ela. — E isso só se paga com sangue. E pode ser que em algum
momento um de nós se sinta tentado a realizar um disparo fatal.
Que Deus cuidasse daquela moça. Parecia não ver diferença alguma entre

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ser beijada e ser esbofeteada. –Ela o chamou de vaidoso? Em sua companhia


não ia ser por muito mais tempo.
— Estou completamente de acordo — disse ele. — Acredito que errei com
o beijo. Por sorte você não demorou em tomar a revanche, de maneira que
não terei que passar o resto da noite acordado, me perguntando que maneira
horrível foi encontrar para acabar comigo.
— Não, nem eu terei que passar a noite em claro tramando maneiras
apropriadas de torturá-lo.
Esme se calou e voltou a cabeça para um lado, escutando com atenção.
Lá fora só se ouvia o suave murmúrio da garoa.
— Outros já foram dormir — disse ela. — Será melhor que façamos o
mesmo.
Enquanto a ajudava a dispor as mantas, Varian se deu conta sem surpresa
de que ela colocava a seu a seu lado, como se nada tivesse acontecido. Era
claro que não assumia que «beijo de vingança» pudesse significar que sua
virtude estava de algum modo em perigo. Nesse caso, as palavras para
tranquilizá-la que ele tinha pensado dizer teriam causado o efeito contrário, e
necessariamente a teriam alarmado.
Tinha beijado, mas de uma maneira tão breve que mal se podia chamar a
isso um beijo, e é obvio não pretendia aproveitar-se daquela garota enquanto
dormia. De fato, pensava ficar acordado até que ela dormisse e logo colocaria
sua manta a certa distância para não ter ocasião de voltar a tocá-la
inconscientemente em meio da noite. Demônios, nesse momento não podia
permitir-se nenhum pingo de indecência, pensou ele com tristeza.

Esme despertou quando ainda era de noite e com a quase


desconhecida sensação de um peso sobre seu corpo. Um braço rodeava sua
cintura, e um corpo esbelto pressionava contra suas costas. Ela estava envolta
na manta como se fosse um casulo e nenhuma parte do corpo dele tocava sua
carne, embora ela sentisse perfeitamente cada um de seus viris músculos e de
seus tendões como se estivesse nu. As imagens que aquela sensação produziu
fizeram que se ruborizasse e se mexesse incômoda.
Ele resmungava algo junto a sua nuca e seu braço a mantinha firmemente

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presa. Então, de repente, moveu-se para o outro lado e o pesado calor que a
envolvia se desvaneceu. Varian se mexeu entre as mantas.
— Maldita seja — ouviu sua voz em um murmúrio de queixa.
Ela se voltou e viu que ele se sentou.
— Despertei-a — ele disse.
— Estava acordada — disse ela dirigindo-se a seu corpo entre sombras. —
Está a ponto de amanhecer.
— Estive esmagando você durante toda a noite? — disse com um tom de
voz que parecia zangado.
— É muito grande, mas não um elefante. Não me esmagou.
Só me pôs nervosa, acrescentou para si mesma. Ser abraçada daquela
maneira a fazia sentir-se algo mais que incômoda: fazia que algo em seu
interior ficasse a pulsar com força, como um bando de andorinhas batendo as
asas. O mesmo havia sentido quando os lábios dele tinham roçado os seus. E
uma terrível doçura, que apareceu e desapareceu em um instante, e depois
disso uma rajada de vibrações em seu interior. Não deveria ter sentido nada, e
aquilo era algo que a surpreendia.
— Sinto — disse ele. — Não haverei… não a insultei, verdade?
— Não.
Depois houve uma longa pausa. E logo ele disse em um tom
completamente normal:
— E posso confiar em que você não me tenha insultado, verdade,
senhorita?
— Não! O que é o que…? — Ela sentiu que ardia seu rosto. — Oh, é uma
brincadeira!
— É uma ideia muito inquietante — murmurou ele. Manteve por um
momento a respiração e depois continuou: — Me refiro a que faz um momento
senti claramente que algo me picava e eu esperava que tivesse sido você, por
que…
— Acaso quer que o pique?
— Porque de outra maneira deve ser algum inseto que me picou. Há por
aqui uma grande quantidade de insetos desse tipo e só um do seu, e as
menores possibilidades parecem ser menos desencorajadoras, sabe?

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Em tal caso não teria que dormir tão perto, efendi. Suponho que as
pulgas acham você mais apetitoso, e por isso as minhas se foram para você —
acrescentou ela com ar de culpabilidade.
— Não tinha intenção de dormir tão perto. Simplesmente aconteceu assim.
Suponho que devo parecer uma pessoa muito incômoda.
O ar estava ligeiramente carregado com a fresca promessa da manhã e o
negrume da noite começava a dissipar-se, deixando um sombrio véu cinza de
luz de amanhecer. Ele se sentou no chão com os joelhos levantados e os
braços cruzados por cima. Mesmo entre as sombras do amanhecer parecia à
obra de um escultor, muito formoso para ser feito de carne e ossos mortais. De
fato era um ser inquietante, pensou ela. E embora tivesse que centrar sua
mente em sua obrigação, em vingar a morte de seu pai, em lugar disso aquele
homem fazia sua mente dirigir-se para ele e se aderir à sua.
— Sim — disse ela.
— Não vai acreditar, Esme, mas normalmente sou uma companhia muito
agradável. É um de meus poucos talentos. Posso agradar quase a todo mundo.
Duvidou um momento e logo seguiu falando em um suave tom de voz.
— Do contrário, certamente a essa altura teria morrido de fome. Olhe, só
tenho meu sobrenome é isso, o nome. Isso e uma habilidade para agradar é o
que me dá de comer, e proporciona roupa e cavalos.
Ela se voltou para ele olhando-o como se não acreditasse.
— É completamente certo —assegurou ele. — Como minhas irmãs sem
título, as pulgas, eu sou um parasita. Mas um parasita encantador. Por
exemplo, nunca pico.
— Acredito que possa ser amável — disse ela. — Ao menos com as
mulheres, ou do contrário não teria tantas.
— Eu gostaria de saber exatamente o que esteve contando Petro de mim.
Mas asseguro que seja o que seja é um tremendo exagero…
— Disse-me que foi um viciado nas mulheres, e que todas se lançavam a
seus braços de maneira desavergonhada, e que dessa forma desfrutou na
Itália das mais formosas mulheres. Entendi que na Itália há muitas mulheres
belas — concluiu ela de maneira muito expressiva.
— Não fui precisamente um monge, mas…

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— De qualquer modo, não me surpreende que possa ser encantador. Só o


que me surpreendeu é que fosse pobre.
Esme não tinha vontade de seguir refletindo sobre a quantidade de bocas
que ele teria beijado, e não de brincadeira, nem nos voluptuosos corpos que
teriam acariciado seus longos e suaves dedos, e que não teriam voltado atrás
sob suas carícias.
— Não tenho nem um centavo — disse ele. — E não estou exagerando.
— Então já temos uma coisa em comum — disse ela.
— Entretanto, duvido que isso a faça melhorar a opinião que tem de mim.
— Minha opinião não tem nenhuma importância.
— Se não tivesse, não deveria estar me incomodando agora em te
convencer do bom companheiro que sou realmente. Eu gostaria que pusesse
um pouco de atenção e deixasse de me distrair — se queixou ele. — Queria
explicar uma coisa que aconteceu faz dois séculos, antes que você desviasse
minha promiscuidade.
— Me perdoe efendi.
Segurando as mãos, Esme deu-lhe toda a atenção, e se deu conta de que
era muito difícil não esboçar um sorriso. — Com aquela expressão séria no
semblante e o cabelo negro despenteado, tinha o aspecto de um colegial
carrancudo.
— Estava tentando explicar que não nasci com mau caráter — disse ele em
tom de recriminação. — A culpa é das pulgas e do pó. E inclusive essas coisas
eu posso suportar com bastante estoicismo, se me assegura que tomarei
regularmente banhos quentes e que poderei trocar de roupa frequentemente.
Mas ter que dormir com as mesmas roupas sujas com as que viajo cada dia,
para depois me levantar e passar outra terrível jornada com as mesmas roupas
da noite, enquanto que os mesmos insetos seguem alimentando-se de mim e
reproduzindo-se na minha costa, bom, isso é o que me faz sair do sério.
Ela dirigiu um sorriso, embora estivesse olhando para outro lado.
— Ah, Varian Shenit Giergi, se disser de si mesmo que não tem um
centavo, não imagino como pode levar esse tipo de vida. Banhos quentes
sempre que gosta, e cada dia roupa limpa. Duvido que mesmo a mais cordata
das concubinas de um homem rico saiba o que são esses luxos. E se essa é a

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maneira como está acostumado a viver, não me admira que esta viagem o faça
ficar nervoso. Tentarei ser mais pormenorizada no futuro.
— Vejo que continua pensando que sou infantil — disse ele. — Quer que eu
explique como é essa vida e deixar que você julgue mesmo o infantil que
parecem essas coisas?
— Como quiser —respondeu ela dando de ombros. — Já é muito tarde
para voltar a dormir e os outros se levantarão em seguida.
— Em tal caso, me deixe que a entretenha um momento. Deixa que eu
pinte um quadro.
Ele estirou seu esbelto corpo para recostar-se para trás apoiado nos
cotovelos, e fechou os olhos.
Logo começou a falar, com uma voz suave e sonhadora enquanto descrevia
como era um luxuoso quarto, com o chão coberto de formosos tapetes…, a
lenha ardendo na lareira…, uma enorme banheira de cobre, brilhante e
profunda, cheia de água fumegante. Também havia sabão, com essência de
ervas e flores, e uma donzela que a ajudava a banhar-se. Porque se tratava de
Esme, que relaxava no luxuoso e aromático banho…, logo se levantava da
banheira como uma Afrodite saindo da água…, e era envolta em toalhas
grossas e suaves. Estava descrevendo o Paraíso, mas aquilo era mais que uma
pintura. Suas palavras e o sonhador tom das mesmas chegaram a ela até a
alma e afizeram sentir uma pontada de desejo.
Nem sequer se deu conta de que tinha fechado os olhos até que os suaves
e tranquilos sons de suas palavras cessaram de repente. Abrindo os olhos,
Esme sentiu que ele a estava olhando de uma maneira muito estranha, com
uma expressão sem vislumbre de sorriso. Ela se ruborizou e olhou para outro
lado.
— Oh, Deus! — murmurou ele, e logo ficou de pé e saiu a toda pressa do
quarto.

Capítulo 7

Ignorando os homens que meio adormecidos ficaram olhando atônitos,


Varian pôs-se a correr para o rio. No caminho esteve a ponto de tropeçar com

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o Petro, que saía detrás de uns arbustos arrumando rapidamente as calças.


— O que se passa, senhor? — gritou ele a Varian enquanto este passava a
toda pressa a seu lado.
— Nada.
— Mas está zangado, senhor. É pelo garoto? Por Alá! o que tem feito desta
vez esse pequeno diabo? — perguntou Petro pondo-se a correr a seu lado.
— Não estou zangado — grunhiu Varian. — Vou lavar-me um pouco e não
necessito que me escolte. Vá dedicar-se a seus assuntos e trate de pôr um
pouco de café a ferver, e sendo possível não aja como se acabasse de sair do
esgoto.
— Lavar-se? — disse Petro com voz alta. — No rio? Vai congelar você e
suas partes íntimas e cairão como se fossem cassetetes de gelo.
— Vá preparar o café, maldito seja, e me deixe em paz!
Petro deu um suspiro comovedor, logo deu de ombros e voltou de novo
para o acampamento, sem dúvida para informar a seus companheiros que seu
senhor tinha perdido a cabeça.
Isso não estaria muito longe da verdade, pensou Varian. A verdade era
que o senhor já quase não podia reconhecer a si mesmo. Quando os turcos o
tinham golpeado na cabeça possivelmente tinham aberto alguma oculta porta
mental para a parte mais escura da alma de Varian. Porque somente o mais
corrupto e depravado dos homens pode sentir desejos sexuais por uma
menina.
Prometeu a si mesmo que não a tocaria, e tinha despertado com seu
esbelto corpo esmagado pelo seu, rígido e ardendo de desejo. Mesmo quando
estavam sentados falando tranquilamente, aquilo não era absolutamente
normal. Esteve dando todo o tempo desculpa a si mesmo: que ela não era
realmente uma menina, não para os costumes de seu país; que era o
suficientemente adulta para ter filhos, quer dizer o suficientemente adulta para
deitar-se com um homem.
Sabia que desejá-la era errado, e que por muitos raciocínios que fizesse
isso não ia mudar. Porém, de uma vez, sua voz suave e profunda estava
demasiado boa, e também o sussurro daquele corpo magro que se ajustava
perfeitamente entre seus braços. E por isso não deixava de dizer tolices, e de

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dar mais desculpa, e odiava a si mesmo porque não podia deixar de fazê-lo.
Tinha sucumbido a seus encantos como um colegial, refletiu Varian com
decepção, confundido por uma garota que o tinha deixado sem sentido no
momento em que a tinha olhado. E além disso, tinha atuado como um menino,
tratando de ganhar um pouco de carinho ou de tolerância por sua parte, ou,
maldita seja, ao menos que sentisse pena por ele.
O tiro tinha saído pela culatra, não é verdade? Falar do banho, de todos
aqueles luxos, fazia com que a imagem de sua mente ardesse: seu esbelto e
inocente corpo saindo do banho e deitando-se em seus braços abertos…, sua
pele nua e molhada roçando seu…, sua suave e provocadora boca oferecendo
toda sua inocência.
Varian soltou um grunhido e se ajoelhou junto à beira do rio. Fechando os
olhos, colocou as mãos nas frias águas da corrente e ofegou pela impressão.
Sem duvida lavou o rosto. Mas não era suficiente. Necessitava uma penitência
para recordá-lo com pavor a próxima vez que se deixasse arrebatar por sua
asquerosa luxúria.
Varian apertou os dentes e começou a tirar a roupa.

— Parece-me que ficou louco — disse Petro enquanto recolhia as mantas


que Esme passava.
Ela tinha enviado o pouco disposto marinheiro para que fosse em busca de
seu senhor, e Petro tinha chegado ao rio a tempo para ver sua excelência que
emergia nu e tiritando da água gelada.
— Esteve se queixando dos insetos e da sujeira — respondeu ela, sem
revelar nenhuma de suas preocupações. — Além disso, é inglês, e os ingleses
têm costumes estranhos.
Não contou a sua excelência o que pensava até que estivessem prontos
para porem-se em marcha, e Petro estava muito longe deles para poder ouvi-
la.
— Por que tinha que fazer uma coisa tão estúpida? — repreendeu-o ela. —
Estive cuidando de você para nada? Não é o suficientemente difícil a viagem
para você? O rio já é bastante frio em pleno verão. Mas agora poderia chegar a
parar o sangue nas veias e fazer que congelassem os membros.

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— Pois a verdade é que eu achei a experiência muito… tonificante —


respondeu ele. — E o sangue ainda flui por minhas veias.
— Está louco. E lembro que, se ficar doente não penso voltar a me fazer
de enfermeira. Sentarei ao lado de seu leito de morte e rirei.
— Não seja tão negativa, carinho. O sol começou a brilhar hoje e seu
cenho franzido poderia assustá-lo.
Esme mudou de humor em seguida, mas não por medo de que o sol
desaparecesse. Foram aquelas palavras acariciadoras que a fizeram fechar a
boca. Quando ele pronunciava seu nome, aquela voz sussurrante parecia
chegar ao mais profundo de seu ser. E havia algo pior ainda.
«Carinho.» Tinha-a chamado dessa maneira e tinha feito com que
recordasse o roçar de seus lábios sobre os dela e a quente pressão do corpo
contra o seu. Aquelas lembranças provocavam um conjunto de inquietantes
sensações que a deixavam desorientada e melancólica, como se estivesse
metida em um doce sonho.
Esme não era uma pessoa propensa ao auto-engano. Supunha o que era o
que a inquietava, e não podia haver nada mais surpreendente. Petro havia dito
que seu senhor era muito mulherengo. E mais, ela mesma duvidava de que
qualquer mulher pudesse passar muito tempo em companhia de uma beleza
tão atrativa sem que isso afetasse, de uma maneira completamente dissoluta
se sua vaidade particular não o evitava. Desgraçadamente, seu rosto e seu
corpo não delatavam nada de seu débil caráter, como tampouco o fazia o som
sussurrante de sua persuasiva voz. Quando alguém admira um formoso palácio
e quer viver nele, refletiu Esme, nunca para e pensa nos ratos que certamente
rondam pelo porão.
Ela não era uma Santa e, sendo mulher, também tinha certas
suscetibilidades femininas. Isso o entendia. Mas isso não queria dizer que
aprovasse ou desejasse dar rédea solta a sua fragilidade. Em sua vida não
havia lugar para esse tipo de tolices.
Além disso, aquilo era mortificador. Como ele teria rido ao saber o que sua
pequena, fraca e feia intérprete sentia. Se tivesse sido uma beleza alta e
voluptuosa…, mas não o era e jamais chegaria a sê-lo. Ao menos deveria estar
agradecida por isso. Dado que ele nunca a ia desejar, e desse modo sua

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virtude nunca seria posta a prova. Tinha já muitas razões para culpar a si
mesma e para sentir-se aflita. Certamente não precisava jogar mais vergonha
sobre seu dor.
Durante algo mais de uma hora avançaram em silêncio, e Esme sentiu que
ele a observava em várias ocasiões. Mas ela manteve com resolução seus
olhos postos no perigoso caminho que tinha sob seus pés.
— Está zangada comigo? — perguntou ele ao fim.
— Sim — respondeu ela. — Não deveria estar, porque acredito que não
pode evitar ser como é. Mas, de qualquer modo, não facilita as coisas. Tem o
dom de se colocar sempre em problemas.
— Pelo amor de Deus! Ainda está zangada porque fui banhar-me no rio?
— Não sei o que se pode fazer com você — disse ela. — É como esses
meninos pequenos que parecem estar todo o tempo inventando novas formas
de machucar-se. Como não posso atá-lo ou colocar uma correia na sua
cintura, estou segura de que quando chegarmos a Tepelena já estará morto,
faça o que eu faça por evitá-lo. Então, Alí me jogará a culpa. Se no dia estiver
de bom humor, tão somente fará que me disparem de um canhão. Se não for
assim, possivelmente me fará assar em um espeto, ou me arrancará os
membros um a um. Escolha o que escolher, estou segura de que será uma
morte muito humilhante. Em suas mãos é estranho que alguém morra com
dignidade.
— Estou vendo. O que a preocupa não é minha sobrevivência, mas a sua.
— É obvio que me preocupa a sua sobrevivência — respondeu ela
friamente. — Você é um visitante em meu país e eu tenho que cuidar para que
esteja a salvo e cômodo aqui.
— Mas além disso, não importa nem um pouquinho o que me acontece.
— E do que ia servir, quando você mesmo não se preocupa com você? Eu
não gosto de embarcar em causas perdidas.
A maneira como ele tragou o ar profundamente foi claramente audível por
cima do ruído dos cascos dos cavalos.
— Bom, isso não é muito amável de sua parte — disse ele. — Mas a
verdade quase nunca o é, já sei. Não é que pessoalmente tenha tido muitas
relações com a verdade, mas… Maldita seja! se você apenas me conhecer.

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Ela esteve a ponto de sentir pena por ele. Nunca tinha pensado que algo
que dissesse poderia desarmar sua arrogância.
— Isso é bastante certo — disse ela depois de um incômodo momento de
silêncio. — Eu só sei o que vejo. Pode ser que estejamos envoltos em
circunstâncias extenuantes.
Ele ficou pensativo.
— Pode ser que sim. Ou pode ser que não. O que passa é que… Bom, não
importa. «Extenuantes» — continuou dizendo ele em voz mais baixa. — É
admirável o vocabulário inglês que tem.
— Minha língua é muito mais formosa — disse ela, — mas às vezes a sua
oferece uma maior variedade de palavras.
— Terei sempre em mente. Vejo que pode escolher entre uma grande
quantidade de vocábulos para fazer encontrar exatamente cada matiz do que
deseja comunicar.
Ela assentiu e estalou a língua.
— Você não sabe minha língua e por isso não pode entender. Em albanês
terá que comunicar os matizes, como você diz, com o tom e a expressão da
voz. É algo muito mais sutil. Com mais sentimento.
— Certamente é assim. Embora por desgraça, pareceu-me que quem fala
sua língua é muito pouco sentimental.
Esme sentiu uma desagradável pontada na consciência. Mas a ignorou.
Pareceu-lhe uma idiotice responder aquela indireta, vindo de um libertino falido
e arrogante.
— Isso que diz me parece muito errado. Em Rogozhina, meus compatriotas
o trataram como a um príncipe. Que mais queria?
— Seus patrícios foram inesquecivelmente amáveis e carinhosos — disse
ele. — Possivelmente não me expliquei bem. Referia-me a você.
— Parece que não tenho sentimentos?
Ele se moveu incômodo no selim e soltou uma gargalhada zombadora.
— Não é exatamente isso o que queria dizer. Cuida de mim de uma
maneira muito amável, sem dúvida, e agradeço isso; a verdade é que me
salvou a vida…
Esme esperou mas sua excelência não disse nada mais para lhe esclarecer

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a que se referia.
— Então não entendo do que está se queixando — disse ela com tom
altivo. — Quando o descobrir, fará a honra de compartilhá-lo comigo?

Chegaram a Lushnja ao meio dia, e ali Varian teve seu primeiro encontro
com a dura realidade de um julgamento tribal na Albânia. Dias atrás dois
homens brigaram e um deles tinha matado ao outro. O assassino escapou, e
os chefes de sua tribo tinham queimado sua casa e suas terras. Começava
outra inimizade de sangue entre famílias.
Embora Esme se assegurasse de que seus hóspedes não sofreriam
nenhum ataque, Varian se negou a deter-se naquele povoado. Nem sequer a
promessa de um banho quente o convenceu.
— São bárbaros — disse ele quando passavam junto aos campos
queimados. — Se deve castigar a um homem que assassinou, suponho, mas
por que castigar também a sua mulher e seus filhos queimando as
propriedades?
— Outros cuidarão de sua família — disse ela com voz sufocada. — Ao
menos não estarão metidos em problemas por culpa de suas propriedades.
Meu pai me disse que na Inglaterra podem colocar na prisão a um homem e a
sua família por não ter um centavo.
Isso foi muito profundo para Varian, pois o próprio lorde Edenmont tinha
estado na prisão por suas dívidas. E era verdade que em seu país não se
necessitava queimar para destroçar a vida de alguém.
De qualquer forma, ele preferia estar brigando com ela em vez de passar
as horas envolta em um frio silêncio. Varian não estava acostumado à frieza, e
estava mais desacostumado ainda ao tão descarado desdém; isso era algo que
o zangava muito mais que qualquer frieza que pudesse ter imaginado.
Mas não sabia como lutar contra ela. Todos as tentativas que fazia para
defender-se soavam como queixa…, e tão somente o faziam aparecer ainda
mais infantil aos olhos dela. Era algo mortificador pensar que Edenmont, que
era capaz de conseguir que a mais ogra das viúvas o tratasse de maneira
cálida, não pudesse fazer com que aquela moça adolescente o olhasse com um

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mínimo de doçura.
Aí se via quão baixo tinha caído: desejando que brigasse, que se risse dele
— era melhor que seu gelado desprezo.
— É verdade — disse ele, — mas nós os ingleses damos muito valor ao
dinheiro. Isso é o que nos distingue de outras nações menos civilizadas —
acrescentou tratando de provocá-la.
— Vocês, os ingleses, somente reconhecem uma civilização: a sua —
respondeu ela. — Albânia construiu magníficos templos e criou grandes obras
de arte, enquanto seus antecessores viviam igual a animais em covas e
palhoças. Os romanos instalaram aqui a seus nobres filhos, na Apolônia, para
treiná-los como guerreiros, e esses homens navegaram através dos mares
para conquistar lugares selvagens, como sua pequena ilha. Ao longo dos
tempos uma nação atrás da outra tentou nos vencer e nos dominar, mas não
puderam ainda nos moldar a seu capricho: nem os gregos, nem os romanos,
nem sequer os turcos. Durante séculos nos impuseram suas leis, e ainda são
os próprios turcos os únicos que falam turco. Quanto tempo necessitaram os
normandos para converter a seu povo em franceses? Uma semana? — concluiu
ela com desprezo.
— Isso é simplesmente porque nós somos extremamente hospitaleiros. E
absolutamente tão obstinados como vocês. É claro que sua gente conservou
uma única língua porque não são capazes de aprender outra.
— Como é possível que seja tão ignorante? Eu falo quatro línguas
perfeitamente e até posso me expressar em turco.
— Mas você é meio inglesa.
Ela lançou um olhar homicida.
— Esse é o mal olhado de que falava Petro? — perguntou Varian. — É
bastante impressionante, devo reconhecer. Se eu não fosse uma pessoa tão
profundamente malvada, deveria me calar durante quatro dias seguidos.
— Esteve me provocando deliberadamente — acusou ela. — Por quê? Você
gosta de ver como me zango?
— Sim. Tem umas réplicas maravilhosas. Eu gostaria de ceder meu posto
na Câmara dos Lordes. Estou convencido de que animaria muito as sessões.
Esme na Inglaterra. Aquela perspectiva o deixou surpreso. O que poderiam

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fazer os ingleses com ela, com sua ninfa furiosa? Se lhe acrescentassem uns
quantos anos — Esme aos dezoito, por exemplo — e a colocasse no Almack's,
entre o brilho das aborrecidas luzes da sociedade, o que aconteceria?
Então Varian teve uma pequena dúvida, pensou que ao menos uns poucos
homens perceptivos poderiam chegar a ver nela o que ele tinha visto. Embora
ela não se parecesse com nada que tivesse conhecido antes, e virtualmente
possuía a maioria das qualidades que se desaprovam nas mulheres, algum
desses homens poderia dar uma olhada naqueles apaixonados olhos verdes e
esquecer por completo tudo o que até então tinha acreditado sobre as
mulheres.
Ela estava olhando para outro lado e em suas bem delineadas bochechas
podia ver-se um ligeiro rubor.
— Já vejo — disse ela. — Está se divertindo comigo. Seguramente pareço
um bom bufão de palácio.
— Os bufões, devo particularizar, eram em geral os únicos membros da
corte que se atreviam a dizer a verdade.
— Claro — replicou ela com voz cansada. — E faziam rir a todos, assim
como eu.

Detiveram-se para preparar o acampamento antes do pôr-do-sol e, pela


primeira vez, sua excelência teve um pouco de utilidade. Ajudou não só a tirar
as ferramentas agrícolas dos cavalos, mas também a montar as barracas e a
recolher lenha para o fogo. Esme pensou que estava tentando ser serviçal,
mas a ele não parecia importar sua incompetência, já que era óbvio que os
dois estavam se divertindo. E ele também parecia divertir-se. Esme ouviu
umas fortes gargalhadas devidas à tradução do Petro, sem dúvida equivocada.
Ele não tinha permitido a ela aproximar-se dos outros. Sua alteza real
tinha marcado um lugar ao lado dos cavalos onde ela tinha que estar até que
sua barraca estivesse montada, a menos que quisesse sofrer algum castigo
completamente insuportável.
Não era necessária aquela ameaça, pois Esme compreendia perfeitamente
por que tinha que manter-se afastada dos homens. Se eles descobrissem qual
era seu verdadeiro sexo, poderiam falar demais, mesmo sem propostas e

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talvez sendo companhias equivocadas. Uma simples palavra, um pronome


feminino no lugar de um masculino, poderia levantar suspeitas, e não se podia
estar seguro de onde poderiam cruzar-se com os espiões do Ismal.
Mesmo assim, Esme se deu conta de que não podia esperar ali com calma.
Nunca tinha sido boa esperando, e agora se sentia tão intranquila que tinha
vontade de ficar a gritar. A culpa era de sua excelência. Ele a fazia ficar tensa e
zangar-se sem razão e, levada por seu aborrecimento, encontrava a si mesma
atuando exatamente como a pessoa incivilizada que ele pensava que era.
Quantas vezes o tinha insultado? Pelo menos umas centenas. Sim,
também era culpa dela, por provocá-lo, e por tratá-lo como um menino
indefeso, e estando a ponto de cair do cavalo cada vez que ela mostrava o
menor sinal de inteligência.
«Extenuante.» Nem que fosse a palavra mais escura e complicada de vinte
línguas. E ainda por cima havia dito que o inglês era preciso, quando ele não
era capaz de produzir uma cadeia de palavras precisas naquela maldita língua
para explicar-se bem.
E além disso, havia dito que ela não tinha sentimentos. Ela, que levava um
profundo luto pela morte de seu pai. Ela, preocupada e certamente muito mais
que qualquer outro por seu jovem primo. Acaso teria que ter passado todo o
caminho choramingando e queixando? Ou possivelmente sua excelência tivesse
preferido ouvi-la relatar com detalhes seu plano de vingar-se, e o resultado de
morte certa que derivaria disso. Ou talvez tivesse preferido ouvi-la gemer
pateticamente porque ficou sozinha em seu próprio país, e os poucos que
ainda se preocupavam com ela tinham decidido enviá-la a uma terra
estrangeira com uma família que a desprezava.
Sim, tinha montões de sentimentos a mostrar, como sentir-se bastante
indecisa. Deveria contar também que sua presença não fazia mais que piorar
as coisas?
Da clareira do bosque que havia diante chegou a voz rouca de Varian e as
gargalhadas do resto dos homens. Esme deu um chute numa pedra. Ali estava
ele, encantando a todos, como estava acostumado a fazer sempre. E ali estava
ela, distraída em seus pensamentos, porque o som de sua voz fazia todo seu
ser derrubar-se para ele e não podia ficar ali por muito que o desejasse.

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Lançou outra pedra para os matagais e desejou poder infligir de algum


jeito um dano maior a alguém. Desejava ter o pescoço do Ismal entre as mãos
naquele momento, porque poderia estrangulá-lo tão facilmente como se fosse
um frango. Tudo era culpa dele, tudo o que tinha acontecido, incluindo a
presença daquele inglês.
— Está tentando pavimentar o caminho para mim, você sozinha? Que boa
ideia, senhora.
Esme voltou-se rapidamente. Não o tinha ouvido aproximar-se.
— Estava me aborrecendo — disse ela baixando o olhar. — É melhor chutar
pedras que objetivos vivos.
— Tanta vontade tem de me dar uma patada? — perguntou ele. — O que é
o que fiz agora?
— Tem me feito ficar aqui, sozinha, enquanto você se divertia com os
outros. Estive esperando sozinha, ouvindo como ria e a mim ninguém contou a
piada.
— É obvio que não. Não eram adequados para os inocentes ouvidos de
uma jovem dama. Além disso, não teria entendido. — Fez uma pausa. — Ao
menos, espero que não.
Ela levantou a cabeça.
— Eles contam histórias picantes e você não me deixa ouvir?
— Não importa que tipo de histórias contavam. Já sabe por que tem que
se manter afastada desses homens, Esme, de maneira que não tem por que
me olhar de uma maneira tão feroz.
— Podia ter me dado algo para que fazer — se queixou ela. — Ficar
esperando aqui só e sem fazer nada é muito aborrecido.
A leve sombra de um sorriso curvou os lábios dele.
— Me perdoe — ele disse. — Não tinha nem ideia de que tinha tanta
saudade de minha companhia. Que cruel fui privando-a dela.
Para sua consternação, Esme sentiu um calor que tingiu suas bochechas.
Levantou o queixo.
— Assim é, efendi, meu formoso deus. Machucou-me o coração. Pensei
que teria que ir ao rio e me atirar nele.
Ela ficou ereta e começou a caminhar passando a seu lado. Ele esticou um

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braço e a deteve agarrando sua mão com suavidade.


Esme olhou sua mão grande e forte, e logo o olhou aos olhos e notou que
seu coração acelerava.
— Só estava brincando — disse ele. — Já sei que prefere a companhia do
diabo à minha.
— Acredito que são mais ou menos o mesmo — respondeu ela com
azedume. — Não é necessário que me prenda. Não penso escapar. Não tenho
aonde ir.
— Sinto muito. — passou a mão pouco a pouco pelo braço deixando ali
onde a tocava um formigamento de calor. Ao final a soltou. — Quer que diga
ao Petro que faça companhia a você esta noite? Não posso deixá-la sozinha.
— Petro — esse velho assustadiço ia ser seu guardião? Como se atrevia?
Mas Esme sabia muito bem. Sua alteza real não queria estar em sua reles
companhia.
— Acredita que eu necessito? — chiou ela. — Será que não está bem da
cabeça? Me diga onde tenho que dormir e me arranjarei sozinha. Aqui mesmo,
se quiser. O que tenho que temer? Sequestradores… quando resulta que estou
morta? Bestas selvagens? Por aqui não há animais perigosos. E além disso,
tenho meu rifle e minha faca…
— E é uma mulher — interrompeu ele. — Assim não se empenhe em me
convencer do quão é capaz de se defender. Recorda que eu sou inglês, e vai
contra nossos costumes deixar às mulheres arrumarem-se sozinhas. Já é
muito pouco habitual que viaje comigo sem levar uma acompanhante, mas
dificilmente poderia proporcionar uma quando se supõe que é um menino.
Ele suspirou e a seguir começou a caminhar de volta para sua barraca.
Depois de um momento de dúvida, Esme o seguiu.
— Acredito que faz uma montanha de um grão de areia — disse ela
enquanto o seguia e entrava com ele na habitação. — Se preocupa por nada. E
se essa é a maneira inglesa de agir, devo dizer que me parece estúpida e tola.
Meu pai ensinou a me defender sozinha e a não andar sempre me protegendo
e me escondendo atrás de outros. Não sou uma menina e me ofende que me
trate como tal.
Ele estava de costas para ela tirando a capa. Colocou-a esticada no chão e

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deu a volta para olhá-la.


— Com sua permissão, senhora — disse ele, — como deseja que a trate?
Todo seu corpo vibrava com aborrecimento. Só um louco se atreveria a
provocá-lo mais ainda. O cérebro de Esme dizia que se calasse, mas ela não
podia lhe fazer caso.
— Como me pareço — soltou ela. — Como um menino. Inclusive um
menino de doze anos, como meu primo, se é que o considera um homem, não
um menino indefeso.
Ele avançou para ela e, de repente, tirou-lhe o gorro e o atirou em cima da
capa. A espessa cabeleira caiu sobre os ombros e ela se sentiu naquele
momento como se a tivesse despido. Deu um passo para trás, mas ele a
segurou pelos ombros. Não com muita força. Poderia ter soltado facilmente.
Mas não desejou fazê-lo e se odiou a si mesmo por isso.
— Não pode mudar de sexo só por levar um gorro — disse ele. — Não é
um menino, e isso não vai mudar por muito que o deseje. É uma condenada
mulher briguenta e não deixa de me provocar-me. Estou tentando me
comportar como um cavalheiro… por que tem que se empenhar em fazer tudo
tão difícil? — Suas mãos se moveram para cima, subiram pelo pescoço dela até
rodear o rosto com elas. — Por que, Esme?
Ela não sabia. Por dentro sentia uma grande inquietação que a consumia.
Sempre tinha sido tão equilibrada, tão por cima da vaidade… Mas observando
aquele belo e dissipado semblante, Esme desejava desesperadamente ser
também formosa, para dessa forma atrever-se a tocá-lo.
Fechou os olhos. Se não o via, tampouco sofreria.
— Oh, não! — sussurrou ele tão perto dela que seu fôlego lhe acariciou a
pele.
Um rápido calafrio a percorreu de cima abaixo. E quase no mesmo instante
ela sentiu a suave boca dele apoiando-se contra seus lábios. Uma chuva de
centelhas estalou em seu interior, com um delicioso sentimento de alegria.
Instintivamente, ela o agarrou pelas mangas, para mantê-lo ali.
Milagrosamente, aquilo funcionou. Sentiu um calor que percorria todo seu
corpo e os lábios dele se colaram aos dela, como o orvalho matinal sobre uma
rosa em floração. Durante um longo momento se sentiu tão formosa como um

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botão de rosa, com todo seu ser abrindo-se com prazer tal como uma flor se
abre sob o calor primaveril do amanhecer.
Apenas lhe roçava a face com as mãos que seguravam o rosto. Esme só
sentia uma ligeira pressão enquanto os lábios dele se moviam docemente por
cima dos seus, mas aquilo provocava uma pulsante onda de doçura, enquanto
ele se demorava naquela carícia… como se aquela boca lhe parecesse deliciosa,
como se estivesse desfrutando do que saboreava nela.
Mas isso era impossível. Só o que ele podia sentir era curiosidade. Embora
ela fosse para ele de outra espécie, não deixava de ser uma mulher, como com
tanta convicção ele tinha recordado fazia um momento. Por ser um viciado
nas mulheres, era natural que se dedicasse a investigar inclusive aquele
espécime penoso. Somente queria brincar com ela e descobrir se era como as
demais mulheres.
Esme afastou a cabeça para trás e abriu os olhos com surpresa, como
saindo de um sonho.
— Já é suficiente —disse com tom cortante.
— Não, não é.
A voz dele era suave e sedosa como o veludo. Suas mãos revolviam
carinhosamente o cabelo dela, e seu olhar, como de fumaça quente, moveu-se
lentamente de sua boca a seus olhos e de novo a seus lábios.
— É suficiente para satisfazer sua curiosidade — respondeu Esme com
firmeza ficando outra vez rígida.
Deveria ter se soltado por completo dele, pois seu corpo estava muito
perto, e isso fazia com que ela desejasse, por doentio que fosse, recostar a
cabeça sobre seu peito. Mas a tensão que sentia a fez ser cautelosa. Ela o
tinha provocado fazia um momento e ele parecia ter encontrado uma maneira
devastadora de colocá-la em seu lugar.
— Não se trata absolutamente de curiosidade — disse ele. — Entendo-a
bastante bem, e nunca me pareceu tão trabalhoso compreender algo. Não quer
que me preocupe com você. Não quer que a compreenda. Nem sequer quer
gostar de mim. E muito especialmente não quer que eu goste de você como
mulher. Bem, tampouco eu quero me preocupar com você, ou compreendê-la,
ou que eu goste de maneira nenhuma. — Ele voltou a baixar lentamente as

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mãos até as apoiar nos ombros dela. — Mas nada disso saiu como queríamos,
não é verdade? Deus, quanto tempo passou desde a primeira vez que nos
vimos? Menos de uma semana? Ou o tempo passa aqui tão lento, ou acontece
algo que entre nós?
Então Esme já não se afastou dele. Suas palavras não eram
completamente claras, por muito que ele possuísse um imenso vocabulário em
inglês. Entretanto, a intuição de Esme preencheu os claros. Ela entendia
perfeitamente o que ele estava tentando dizer, apesar de que quase não podia
dar crédito ao que ouvia. Ele sentia o mesmo que ela, ou algo muito parecido.
Mas isso não significava nada, disse a si mesmo. Não era mais que um
capricho. Possivelmente uma necessidade masculina. Nada mais.
Ela se afastou vários passos e jogou os cabelos sobre o rosto. Sua cabeça
se inclinou até quase roçar os pés dele. Desejava que ele a protegesse. Sentia-
se muito exposta. Entretanto, não tinha vontade de salvar-se disso.
— Você e eu temos muitos problemas na cabeça, efendi. — Esme começou
a falar no tom mais razoável, com os olhos fixos no chão. — A viagem é lenta e
difícil, e esses problemas, assim como as diferenças que há entre nós,
perturbaram-nos. Estando todo o dia juntos, com nossos problemas e nossas
diferenças, não é difícil que sintamos algum tipo de… irritação. Eu também
penso, às vezes, que vai me deixar louca. Não me surpreende que você possa
sentir o mesmo.
— Sim, assim é. — Sua voz era seca, e ela notava a tensão que ele estava
enfrentando. — Suponho que a beijei em um acesso temporário de loucura.
— Sim — disse ela. — E eu devia me encontrar no mesmo estado para
permitir isso.
— Isso é um alívio. Ao menos não estava agradando. Minha vaidade está
já bastante danificada. Agradeço que tenha me evitado um a mais.
Sua vaidade? Seus sentimentos? E o que tinha ela? Acaso pensava que ela
era de pedra?
— O que quer que eu diga, efendi? Me diga. Não tenho experiência alguma
na matéria. Deveria dizer que estava ardendo de desejo?
— Sim, maldita seja! Eu sim o estava.
Ela manteve a respiração e o olhou fixamente.

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— Estava — repetiu ele em um tom de voz mais tranquilo. A seguir


agarrou sua capa e voltou-se. — Isso a incomoda? Como se já não tivesse uma
opinião o bastante ruim de mim.
Logo abriu o toldo da barraca e partiu.

Capítulo 8

Depois de enviar Petro à barraca, para que fizesse companhia a Esme,


Varian castigou a si mesmo na fria corrente do rio. Logo, como uma dose extra
de auto-castigo, foi comer com os homens. Aquilo acabou sendo uma
condenação surpreendentemente suave. Já antes, quando os ajudava a montar
o acampamento, tinham chegado a estabelecer uma espécie de relação. Não
era completamente impossível comunicar-se com eles. Um dos homens, o mais
jovem, sabia umas quantas palavras de inglês. Varian já podia entender
algumas palavras de albanês e os gestos também ajudavam. Quando se
encontravam muito perdidos, acabavam desenhando no chão de terra com um
pau.
O trabalho de tentar entender e fazer-se entender a ele mesmo oferecia
certa distração de seus problemas. Mas quando acabou o jantar e os homens
ficaram a cantar, Varian se encontrou dirigindo repetidamente o olhar a sua
barraca. Sem dúvida os homens estavam cantando canções de guerra, mas a
música soava como se fosse um canto fúnebre.
Levantou-se.
— Natën e mirë — disse.
Agimi, que falava um pouco de inglês, passou-lhe a garrafa de rakí.
— Toma. Bom, esquente-se. Necessita.
Varian sorriu. Eles o tinham estado advertindo de maneira amável e
paciente contra os banhos no rio. Muito frio. Ruim para o pulmão, insistiam. E
além disso, fazia Zigur zangar-se. Agimi tinha segurado a cabeça e a tinha
sacudido de um lado a outro como querendo dizer que as reprimendas do
menino faziam com que doesse a cabeça.
Varian tomou a garrafa de rakí.
— Obrigado — disse. — Faleminderit.

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Agimi deu de ombros.


— S'k gie. De nada. Necessita-o.
Pode ser que tivesse razão. Mas o que mais necessitava, pensou, era
desculpar-se, e ainda não sabia como podia fazê-lo.

Esme estava jogando com o Petro o vinte e um quando Varian entrou. Ela
nem sequer se incomodou em olhá-lo.
— Ah, senhor, por fim está aqui! — disse Petro deixando as cartas. —
Posso ir agora?
— Parece-me que não gosta muito de seguir jogando — disse Varian. —
Não dá a sensação de que está ganhando.
Petro ficou de pé.
— Com ele não há quem ganhe. Jogou-me um mal olhado e desapareceu
toda minha sorte.
Varian olhou Esme com o cenho franzido. Ela devolveu um olhar frio.
— Pois então, sai fora e no arbusto busca uma serpente — disse ela. — E
corte sua cabeça com uma faca de prata. Quando a cabeça secar, guarde-a
junto com uma medalha do Shenit Giergi e a leve a um padre para que a
benza.
Petro agarrou uma corda que levava ao redor do pescoço. Dela pendurava
uma estranha pedra.
— Tenho um amuleto contra o diabo — disse Petro. — Uma parte do céu,
de uma estrela cadente. Mas suas bruxarias são muito fortes para ele.
— Todo mundo sabe que os meteoritos só são bons contra os disparos,
velho supersticioso — disse ela. — Mas garanto que diz isso porque tem medo
de matar uma serpente. — Ela deu de ombro. — Não é tão perigoso. Amanhã
eu conseguirei uma.
— E outra para mim? — perguntou Varian.
— Eu não joguei mal olhado em você, efendi — murmurou ela enquanto
recolhia as cartas. — Além isso não existe.
Petro deu um grito afogado.
— Não diga isso. Podem jogar um mal olhado.

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— Se acreditasse nessas tolices —respondeu ela zangada, — deveria ter


dito que me jogaram faz uma semana, quando chegaram ao porto de Durrës
com meu primo.
— Que ingrata! Se nós não tivéssemos aparecido, teriam seqüestrado você
e então…
Varian pôs uma mão no ombro do Petro.
— Vá já — ele disse. — E não volte até que o chame.
— Voltar, senhor? Não me deixará de novo a sós com ela? — Petro juntou
as Palmas das mãos como suplicando. — Por favor, senhor, outra vez não.
Apunhalou-me em mil partes com sua língua.
— Se não a incomodasse não aconteceria isso — disse Varian. — Vá um
momento com os homens, mas não se embebede, ou açoitarei você com a
vara.
O marinheiro partiu, murmurando ressentido algo que parecia ser turco.
Varian deixou a garrafa de rakí no chão, pensou por um momento, e a
seguir se sentou em frente dela, ao estilo índio, como fazia Esme.
Ironicamente, pensou que suas calças iam ficar destruídas.
— Vim para me desculpar — disse ele. — Não me comportei como um
cavalheiro.
Esme embaralhou o maço, alinhou as cartas perfeitamente e logo as
deixou no chão diante dela.
— É verdade. — colocou as mãos sobre os joelhos. — De qualquer modo,
aceito a desculpa.
— Beija?
Ela elevou a vista com os enormes olhos verdes brilhando com surpresa.
— Beija — repetiu ele — Quer dizer «trégua», não?
— Sim — disse ela. — Não…, não, eu devo dizer também minha parte, ou
do contrário não se promete de verdade uma trégua. — O olhar dela posou na
manta. — Você disse antes que tenho tornado impossível para você comportar-
se como um cavalheiro.
— Isso foi…
— Não, me deixe acabar. — Ela apertou as mãos que tinha sobre os
joelhos. — Parece tão difícil porque não sou uma dama. Sei, Jason me disse

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isso muitas vezes. Nunca poderei ser uma dama para os princípios de sua
gente. Nem sequer o sou entre minha própria gente. As demais mulheres
albanesas não são como eu. Têm melhores maneiras, muito melhores. Eu nem
sempre estou contente comigo mesma. Às vezes faço e digo coisas das quais
mais tarde me arrependo. Mas parece ser tarde, muito tarde, então está feito.
Embora tenha muita vontade, nem sempre sei refrear meu temperamento.
Quase nunca. Muitas vezes não posso enfrentar a minha impaciência… e outras
a meus sentimentos. Minha avó dizia que levava um demônio dentro de mim.
Eu não acredito nos demônios, mas é verdade que às vezes me sinto assim.
Ela apertou um punho e o colocou junto ao peito.
— Aqui. Um demônio feroz. Assim é como sou. E não posso evitá-lo —
concluiu com tristeza enquanto afastava a mão do peito.
Aquilo era uma confidência, e confessar não teria sido fácil para ela. Desde
o começo, quando ela se negou a mostrar qualquer emoção pelo assassinato
de seu pai, Varian tinha compreendido que a filha do Leão Vermelho encerrava
seus sentimentos dentro dela. Agora ela tinha devotado uma pequena
desculpa, tinha aberto um espaço de seu coração. Aquilo fazia seu próprio
coração sentir-se culpado.
Varian tinha vontade de poder proteger aquela moça entre os braços,
enquanto assegurava que não tinha que culpar-se por nada absolutamente.
Deu-se conta de que estava se inclinando para ela.
— Eu sei. — Desdobrou as pernas e se inclinou para trás, apoiando-se em
um cotovelo para pôr mais distancia entre eles. — Isso explica tudo.
Ela lançou um olhar receoso.
— Acredita nisso?
— Oh, sim! É muito simples. Um tópico, a verdade, embora eu não goste
de admiti-lo. Eu sou um tolo e estúpido inseto revoando sem rumo fixo. Você é
uma pequena que não deixa de arder nem um momento. O estúpido inseto vê
o brilho da formosa chama, e sem pensar nas consequências, algo que é
bastante maior para saber, lança-se direto para ela. Então queima as asas e,
como o imbecil desajeitado que é, joga a culpa à chama.
Esme se balançou para frente, voltou a pegar o maço de cartas,
embaralhou-as de novo e logo as colocou outra vez no chão. Observando suas

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hábeis mãos, Varian recordou como o tinha agarrado pelas mangas. Não, não
deveria pensar nisso, se não quisesse que a cabeça começasse outra vez a dar
voltas em si mesmo. Queria um pouco de paz, essa trégua que tinha pedido,
porque queria ficar a seu lado nessa noite, honestamente.
— Não sou um bom homem — disse ele. — Tenho um caráter odiosamente
fraco. Se houve um equivoco aqui, foi sobretudo o que eu tenho feito. Sou
egoísta e irrefletido. Sempre fui. Do contrário jamais teria trazido Percival aqui.
— Por que o trouxe, efendi?
Varian ficou olhando as cartas fixamente. Ainda não havia dito. Tinha
evitado habilmente esse tema, não querendo enfrentar os seus fulminadores
enganos. Por uma peça de xadrez. Um brinquedo? Quase podia ouvir sua
réplica, e a risada contida no tom baixo de sua voz.
— Devemos buscar uma peça de xadrez — disse ele. Imediatamente notou
que acendia seu rosto. Ele, Edenmont, ruborizou-se. Bom, ele merecia.
Quando se obrigou a olhá-la, viu que seus olhos estavam muito abertos. E
logo, por cima de tudo, brilhou em seu rosto um sorriso.
— Sinto — disse ela. — Sinto muito, Varian Shenit Giergi, que sua mãe o
golpeasse na cabeça tantas vezes.
— Não foi inteiramente ideia minha — tratou de desculpar-se ele. — Seu
primo tem uma grande habilidade em fazer as coisas mais descabeladas
parecerem perfeitamente razoáveis.
— Tem só doze anos — disse ela voltando a embaralhar as cartas.
— Não, tem a inteligência de um menino de quinze.
Ela colocou o baralho de cartas diante dele.
— Corta.
— Não pretende ler a minha sorte?
— Não, pretendo dar em você uma surra no vinte e um, senhor, enquanto
continua contando sobre essa peça de xadrez.

Embora Esme só ganhasse de sua excelência uma vez, passaram uma


noite bastante tranquila, e já era muito tarde quando decidiram chamar o
Petro. Apesar da ameaça de provar a vara, o homem entrou cambaleando.
Entretanto, seu senhor só dirigiu a ele algumas palavras de recriminação

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

antes de levantar-se.
— Não é muito melhor que eu tolerando as privações — murmurou ele. —
O licor é a única alegria que pode encontrar no momento. Por que não ia se
embebedar? Oxalá eu pudesse fazer o mesmo.
Esme se deu conta de que preparava sua cama o mais longe possível dela
ou o que permitia o tamanho da barraca. Era melhor assim, pensou. Se sua
excelência sentia alguma necessidade masculina, possivelmente desejaria
aliviá-la com quem quer que tivesse à mão, até com ela mesma. Essa era uma
das muitas coisas que diferenciavam os homens das mulheres, havia dito
Jason, até mesmo aqueles que tinham muito bom caráter. Era um demônio que
a maioria dos homens parecia possuir.
Aquele homem tinha comparado a ela com uma formosa chama e a si
mesmo como inseto noturno. Mas Esme pensou que essa era sua maneira de
explicar «Quando a luxúria se apodera de um homem — tinha advertido Jason,
— dirá algo, e fará algo, e alguns homens podem seduzir inclusive somente
com as palavras. Às vezes a astúcia pode ser tão perigosa como a força. Se
estiver bem preparada e armada, pode ter uma oportunidade de evitar a um
atacante. Mesmo você, por pequena que seja, pode chegar a ganhar, se eu
ensinar. Mas o que tem que fazer pequena guerreira, quando um homem
suspire por você e diga que está ferindo o coração?»
Aquilo era muito ridículo e complicado.
«Deveria me por a rir — havia dito ela em confidência.»
«Isso o deixaria furioso.»
«Então tentará me atacar, mas eu estarei preparada.»
Por ingênuo e abominável que fosse, aquele homem a tinha beijado e ela
não tinha levantado nenhuma mão contra ele. Com sua mente masculina, ele
tinha falado de desejo, e no profundo de seu ventre, um calor feminino tinha
começado a pulsar como resposta.
Era melhor que ele dormisse longe dela.
Além disso, Esme tinha que refletir sobre tudo o que tinha contado o
barão. O assunto da rainha negra a tinha desconcertado. Se seu primo tinha
dado aquela peça ao Jason, por que não havia dito nada a seu pai? Jason tinha
ensinado a Esme a horrível carta de sua mãe e a amável missiva de sua

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

cunhada. Aquilo não tinha sentido. Percival tinha que estar equivocado e o
lorde inglês tinha cometido um grave engano de julgamento ao viajar a Albânia
em companhia de um menino.
Mesmo assim, lorde Edenmont tinha um motivo compreensível. Estava
sem um centavo, tinha contado, e na Itália podia viver com mil libras durante
muitos meses.
— E depois? — tinha perguntado ela.
— Oh! Me preocuparei com o «depois» quando ele estiver convertido em
«agora».
Esme olhou em seu futuro e se preocupou com ele naquela hora.

Teriam passado o dia seguinte também tranquilos, se lorde Edenmont


não houvesse tornado a tomar banho no rio pela manhã. Quando retornou,
tinha o cabelo molhado em brilhantes cachos e Esme ficou tão furiosa que,
possivelmente pela primeira vez em sua vida, ficou sem palavras. Só ficou
olhando e em seguida partiu. Cavalgaram até a Poshnja em um silêncio tenso.
Chegaram ao povoado pouco depois do meio-dia. Planejaram ficar ali de
noite para que sua excelência pudesse tomar um banho quente, ou ao menos
temperado, e para refrescar sua fastidiosa alma enquanto eles repunham
provisões.
Desta vez só uma pequena parte da população lhes deu as boas-vindas, o
que era estranho. Igualmente intrigante era a agitação que notava Esme entre
as pessoas do povo. Ela desmontou rapidamente do cavalo e agarrou pelo
cangote a um menino que ficou olhando a lorde Edenmont como se ele
acabasse de descer a cavalo da lua.
— O que aconteceu? — perguntou ela. — Onde estão todos os homens?
O menino conseguiu sair de seu atordoamento o suficiente para explicar
que Poshnja tinha sido assaltada por bandidos. Em pleno dia, um pouco antes
que chegasse o grupo do lorde inglês, um bando armado tinha chegado ao
povoado e tinha roubado boa parte dos mantimentos e das reservas de grão.
Inclusive tinham roubado várias barras de pão que tinham deixado à
intempérie para que se esfriassem.
Esme soltou o menino e olhou ao seu redor. Agimi e outros homens de sua

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escolta estavam falando nervosos com um ancião. Embora sua excelência


parecesse não ter se informado de nada. Estava muito ocupado deslumbrando
ao Petro, cujos dotes para a tradução eram evidentemente falhas. Esme se deu
conta de que os músculos de seu aristocraticamente cinzelado semblante
ficavam tensos e rígidos de irritação no momento em que voltava sua cabeça,
procurando-a com o olhar.
Quando por fim a localizou, ficou olhando durante um longo momento,
logo sorriu e deu de ombros em um gesto de impotência. Ela quis devolver o
sorriso, mas seu orgulho não o permitia. Esme se aproximou dele com o
queixo levantado, para traduzir o que diziam quem estava dando as boas-
vindas e a amável resposta de lorde Edenmont.
Durante todo esse tempo, seu guarda albanês se dedicou a seus próprios
assuntos. Enquanto Hasan, o ancião do povo, conduzia a sua excelência para
uma casa para oferecer a habitual boas-vindas, a metade dos homens de lorde
Edenmont seguiam ainda sobre suas montarias.
Bem, tampouco se podia esperar deles que sentassem tranquilamente para
tomar café e fumar seus cachimbos, enquanto os ladrões se dedicavam a
roubar comida a seus patrícios. Assim explicou Esme quando deu a notícia a
lorde Edenmont…, meia hora mais tarde, uma vez que tinha se assegurado de
que seus homens estavam na pista dos ladrões.
— Enviou-os para perseguir os bandidos e não me disse nada? —
perguntou ele em um sussurro rouco. — Eu sei que não tem vontade de falar
comigo, mas ao menos deveria ter me informado disso.
— Não podia interromper quando Hasan estava no meio do rito de boas-
vindas — respondeu Esme enquanto seu anfitrião aproximava uma bandeja. —
Além disso, não poderia tê-los detido.
— Se estavam fazendo o que acreditavam que era sua obrigação, não ia
pretender detê-los — disse ele. — Só teria gostado que me informassem, ou
que ao menos alguém fizesse ver que estava me consultando.
— Que sentido comum podem esperar eles de um homem que se dedica a
banhar-se nas águas geladas de um rio, não uma vez mas duas em seis horas?
— Vi que Petro tirava um piolho da cabeça. O que supõe que eu devia
fazer?

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Eu teria jogado Petro ao rio.


Ele ficou olhando e riu. Quando Hasan a olhou inquisitivamente, Esme
explicou que o lorde inglês ria com alegria ao ver a seu redor tantos rostos
amáveis e tão boa comida.

Os homens voltaram algumas horas mais tarde, enquanto Varian estava se


barbeando, com bendita água quente. Quem deu a notícia foi Petro, não Esme.
Esme ainda não o tinha perdoado pelo banho gelado daquela manhã. Bom,
graças ao céu, ela não o entendia. Em caso contrário, possivelmente ela
mesma o teria jogado no rio.

Varian se olhava em seu pequeno espelho entortando os olhos para


barbear-se. O que teria dado por um espelho adequado, no qual pudesse ver
algo mais que um par de centímetros de pele de uma vez. Tratou de recordar
se tinha visto algum espelho em alguma das casas que tinha visitado. Pode ser
que não fossem comuns nesses povoados. Perguntou-se se Esme teria visto
alguma vez o semblante em um espelho ou só teria vislumbrado alguns
brumosos reflexos de si mesma em um charco ou em um cubo de água.
— Capturaram aos ladrões? — perguntou ele.
— Mataram um — respondeu Petro. — Feriram a outros dois, mas puderam
escapar. Trouxeram de volta os animais e o grão. Mas o pão desapareceu. Além
disso, temo que terão de cortar o braço de Agimi,.
— O que? — Varian se voltou tão depressa que esteve a ponto de fatiar
uma orelha.
— A bala entrou muito profunda e com um ângulo estranho, e não saiu
pelo outro lado.
— Atiraram nele? — Varian jogou sua navalha de barbear. — Demônios,
sabia que algo assim poderia acontecer. Onde está? Chamaram o médico?
— Que médico? Aqui? — Petro meneou a cabeça. — Há um velho que sabe
dessas coisas. Diz que terá que cortar o braço antes que o veneno chegue ao
coração.
— Por todos os demônios! — Varian ficou a guerreira. Pobre Agimi. Que
idade teria? Não era mais que um moço, talvez dezoito ou dezenove anos. Mas

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

essas coisas aconteciam. Quantos jovens tinham perdido algum membro


lutando contra as tropas de Napoleão?. — Espero que ao menos não esteja
consciente. Onde o levaram?
— Está na casa do lado. A pequena bruxa está com ele, pôs-se a uivar
como um gato moribundo e não deixa que ninguém se aproxime.

Esme não estava uivando quando Varian entrou na pequena casa, embora
sua voz cortasse como um látego enquanto advertia aos homens, que por sua
vez gritavam furiosos com ela. Ao final, ficou de pé desafiante ao lado da cama
de armar de Agimi, com uma faca na mão, e os homens, incrivelmente,
recuaram para trás.
Varian abriu caminho entre o grupo. Quando estava junto à cama de
armar, no quarto se fez um pesado silêncio.
Esme ficou olhando com os olhos verdes acesos de ira.
— Que não se aproximem — disse ela. — Não me importa o que diga. O
primeiro que se aproximar eu matarei. E depois irei matando a todos, um a
um.
— Vais matar também, a mim? — perguntou Varian aproximando-se.
— A você também, se permitir que cometam essa atrocidade. — Olhou ao
Agimi assentindo com a cabeça, ele devolveu o olhar sem entusiasmo.
— A ferida não é tão séria como parece. Eu sofri duas feridas como essa. Posso
tirar a bala e curar o braço, mas eles não confiam em mim. Não vão ajudar. Só
acreditam nesse velho enganador daí — disse ela fazendo um gesto com a faca
para um velho e enrugado Matusalém que tremia em um canto murmurando
para si mesmo.
Varian se voltou para olhar Agimi e observou o sujo buraco em seu braço
que gotejava sangue ressecado.
— Esse velho pode ser que esteja senil — disse em voz baixa, — mas a
ferida é muito feia. Tive amigos em Waterloo, atendidos por cirurgiões, e
quase sempre fizeram o mesmo. É melhor perder parte de uma extremidade
do que a vida.
— Eu estou viva — disse ela batendo com o pé. — Curei a ferida que tenho
no braço, onde atiraram. Crê que menti? Pensa que são somente

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

fanfarronadas? Duas vezes — disse ela. — O braço que a bala atravessou


agora sustenta a faca. E estou de pé sobre uma perna onde entrou outra bala.
Onde estaria agora, se tivessem feito a carnificina que estão planejando fazer
com ele?
A visão que aquelas palavras conjuraram fez com que uma arrepiante
sensação de náusea o rodeasse e o quarto começou a dar voltas ao redor dele.
Varian deitou lentamente e conseguiu focar de novo o quarto em que estava.
— De acordo — disse ele. — O que necessita?
Ela relaxou lentamente os ombros, aliviada.
— Necessito um bom fogo, para poder limpar as facas e as outras
ferramentas nas chamas. Necessito rakí para fechar a ferida. E que alguém vá
procurar minha bolsa de viagem. Os instrumentos que preciso estão nela,
assim como os remédios: resina de pinheiro, casca verde de lenha velha e cera
branca de abelhas. Também necessitarei um pouco de azeite de oliva e trapos
limpos de lã.
— Para uma pomada? — perguntou ele surpreso.
— Sim, uma muito boa. Um velho da Shkodra me ensinou…, ele tirou a
bala do meu braço. A pomada rebate o veneno e ajuda a sarar a carne. Por
isso minhas cicatrizes são tão pequenas.
— Como tenho que dizer a eles para que atendam você?
— Dëgjoni — murmurou ela.
Varian se voltou para o grupo de homens.
— Dëgjoni! — disse-lhes de maneira cortante.
Esme deu uma olhada aos rostos preocupados que a olhavam, logo, com
voz clara e firme, deu suas ordens em albanês.
Os homens olharam para ela e logo olharam para Varian.
Varian já estava a ponto de assentir com a cabeça quando se lembrou.
Meneou a cabeça ao modo de afirmar dos albaneses ao tempo que lhes dizia:
— Sim. Po, o que Zigur disse.

O alto inglês ficou ao seu lado enquanto Esme atendia o paciente. Ela
desejou não ter insistido para que lorde Edenmont ficasse a seu lado enquanto
atendia ao Agimi, pois estava claro que, dos dois, quem mais sofria era sua

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excelência. Quando ela introduziu lentamente sua fina faca na ferida aberta, o
rosto de Varian ficou pálido como a neve. Mesmo assim, manteve-se firme ao
lado de Agimi, segurando o ombro do jovem com suas aristocráticas mãos.
Agimi sofria tudo aquilo em silêncio. Tinha recusado o láudano que oferecia e
pediu que dessem rakí em lugar disso. Ela esperou que o licor o atordoasse o
suficiente. Mas não estava segura. O jovem ficou com o olhar cravado no teto
e os lábios firmemente apertados.
— Maldita seja — murmurou o barão, — eu estou a ponto de liquidar
minhas dívidas e ele não deixou escapar nem um gemido.
— Ele é um Shqiptar — informou Esme em voz baixa. — Um filho das
águias. Forte e valente. — Logo murmurou algo em sua própria língua
enquanto rebuscava na ferida com a ponta da faca, e a seguir sorriu, ao
localizar a bala. — Ah! Era o que eu pensava. Sairá muito facilmente.
O quarto estava em completo silêncio. Sua excelência tinha falado para
que os outros saíssem e os deixassem sozinhos. Mati também tinha ficado com
eles, para ajudar a manter Agimi quieto.
Esme empurrou a bala para fora e, continuando, com as valiosas tenazes
que Jason tinha comprado para ela, agarrou-a e a deixou cair em uma terrina
que tinha apoiado no regaço.
Ouviu lorde Edenmont soltar um apagado gemido.
— Faremos um buraco — disse ela ao Agimi. — E poderá pendurar isso no
pescoço e rir dela quando contar sua história aos outros: quando contar como
aqui, na Poshnja, queriam cortar seu braço só para conseguir tirar essa
pequena bala.
Agimi esboçou um leve sorriso.
Ela jogou mais rakí na ferida. Ele apertou a boca, mas não deixou escapar
nenhum som.
— Parece-me que sua ferida já está muito bêbada, Agimi. Será melhor que
trate de dormir.
Ele meneou a cabeça fracamente. Continuando, Esme aplicou a pomada e
cobriu a ferida com o tecido de lã, que atou com força.
— Durma — repetiu ela. — Fecha os olhos e tenha paciência com seu
braço bêbado. Já acabamos — disse logo olhando a lorde Edenmont.

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Seu rosto estava cinza. Tinha um aspecto bastante pior que Agimi. De
modo que ela deu-lhe o rakí.
Ele tomou um gole rápido, e logo ofereceu a garrafa ao Mati.
— Não é preciso que fique — disse ela a sua excelência. — Eu ficarei para
cuidar dele. Tenho que trocar a atadura dentro de poucas horas.
— Não deveria fazê-lo. Está esgotada. Diga ao Mati ou a um dos outros
para que o façam. Se houver algum problema eles avisarão. Você vem comigo
— disse ele com voz rouca.
Ajudou-a a recolher os instrumentos e os remédios, e foi colocando
cuidadosamente em sua bolsa de pele.
— E agora vai tomar um banho quente reparador, e depois vai comer e
beber algo. E depois vai explicar onde demônios aprendeu a realizar operações
cirúrgicas.

Capítulo 9

— Esta não é minha roupa.


Cobrindo o peito com as mantas, Esme franziu o sobrecenho olhando as
roupas novas. Varian as tinha empilhado sobre a cama de armar de palha
tecida na qual ela estava sentada. Naquele momento, ela só usava uma camisa
muito longa. Uma camisa de Varian. Sua última camisa limpa.
— São uma doação — disse ele. — Calças, camisa e camiseta. Ah, sim, e
um vestido — acrescentou colocando um vestido comprido de lã vermelha
sobre a pilha. — Enquanto gritava com os homens, eles começaram a imaginar
que era uma garota. Isso explica parcialmente por que eram tão reticentes que
operasse ao Agimi. Quando os fiz sair, tiveram uma longa conversa a respeito
de você. Alguém deu-se conta da cor de seus olhos. Estavam nos olhando
fixamente, recorda. A evidência concludente foi esta — disse tocando
suavemente seu cabelo. — Quando nosso anfitrião recolheu as taças de café,
encontrou um cabelo vermelho na bandeja.
Ele se sentou no beirada da cama de armar.
— Não tinha percebido que estava mudando o cabelo, Esme.
— Eu sei que deveria ter raspado — murmurou isso ela. — Mas não tive

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tempo.
— Bom, agora já é muito tarde — disse ele rapidamente.
Se Esme decidisse que tinha que barbear a cabeça, certamente o faria por
muito que ele protestasse dando cabeçadas contra uma parede, porque não ia
fazer caso algum dele. E dizia que os ingleses eram obstinados.
— De qualquer modo, esse descobrimento parece ter atuado a meu favor
— continuou explicando ele. — E quando deduziram que você era a filha do
Leão Vermelho, sentiram-se totalmente solidários com minha situação. Não é
isso o que significa kokëndezur?
Ela se ruborizou.
— Significa temerário. Ser um exaltado.
— De qualquer modo, pareciam estar muito orgulhosos de ti. Dizem que
não tem medo, que é um leão, como seu pai. E também dizem que é uma
pessoa muito inteligente. — Varian fez uma pausa. — E dizem que por isso
Ismal a quer como esposa.
Ela apertou os lábios.
— Há rumores de que ficou a chorar quando chegou a notícia de sua morte
— continuou Varian. — Não pensava que esse homem estivesse apaixonado
por você.
— Isso é o que dizem?
— Oh, sim! Petro não podia acreditar no que ouvia. Os fez repetir seus
comentários várias vezes, para assegurar-se de que não os tinha entendido
mal. Contou-me que Ismal é muito rico e poderoso. Um marido muito
desejável. Case-se com ele e viverá rodeada de grandes luxos. — Varian ficou
olhando. — Entretanto, parece-me ter entendido que esse Ismal é um pouco
velho para você, não é assim?
— É jovem — disse ela. — Acredito que tem vinte e dois anos.
Um jovem, quase da mesma idade que ela, pensou Varian com uma
pontada de irritação.
— Mas será sem dúvida um feio selvagem — disse ele.
— Considera-se uma pessoa muito interessante. Têm um formoso cabelo
de cor dourada pálido e uns olhos como pérolas azuis.
De qualquer modo, pensou Varian, aquele tipo tinha que ser um bruto.

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Uma criatura grande e pesada, com um pescoço como o tronco de um


carvalho. E com umas mãos enormes e torpes.
Varian se sentia irritado e doente, e muito cansado. Não era suficiente que
ela o tivesse arrastado pela mais vasta terra perdida da mão de Deus desse
lado da Sibéria. Não era suficiente que tivesse passado todos os dias e a
metade das noites tenso com a preocupação do que podia ter acontecido com
Percival e doente de desejos por aquela mulher. Não era suficiente ela por-se a
brigar com vinte homens, insultando e humilhando a cada um deles, incluindo
a sua própria escolta, e logo deixasse que lorde Edenmont se encarregasse de
fazer as pazes com eles. Ele tinha estado a seu lado enquanto operava o
Agimi, porque ela tinha pedido, e não quis que pensasse que não tinha
confiança em suas habilidades. Tinha tratado de afastar a vista daquela
horrível ferida; entretanto, não tinha se atrevido a fazê-lo para que ela não
pensasse que era uma pessoa fraca.
Mas nenhum desses purgatórios tinha sido suficientes. Agora todo o povo
sabia quem era ela, e dentro de poucas horas, graças a seus rápidos métodos
de comunicação, essa notícia chegaria ao inimigo. Um inimigo que parecia ser
jovem, rico, bonito, poderoso e surpreendentemente bem amado. Isso não
deveria deixá-lo surpreso. Essa gente desconcertante já tinha admirado antes
a um monstro: Alí Pachá.
A inquieta voz de Esme o tirou de seus pensamentos.
— Estará se perguntando — disse ela — por que um homem como esse ia
se meter em problemas, matando meu pai e tentando me seqüestrar.
— Estou me perguntando muitas coisas diferentes — disse ele.
— Eu tampouco o entendo. Pode escolher entre centenas de mulheres de
seu harém. Mulheres que foram criadas para levar o véu. Mulheres formosas
cujo sangue não está mesclado. Mesmo assim, se Ismal imaginasse que podia
me conseguir, teria posto muito mais empenho em meu rapto. Jason não
acredita nas dívidas de sangue e não poderia ter me levado de volta para a
Inglaterra uma vez que eu tivesse perdido a virtude. Aqui, o homem é o
culpado e deve oferecer uma compensação; lá, a desonra é para a mulher.
E em seu caso poderia ter sido muito pior ainda, pensou Varian. Mesmo
Jason se casando realmente com sua mãe, as leis inglesas não reconhecem

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outros ritos matrimoniais além dos da Igreja anglicana. Tecnicamente, Esme


poderia ser considerada uma filha bastarda, e a sociedade podia usar com
entusiasmo desse tecnicismo. Ilegítima e desonrada, converter-se-ia em uma
pária.
— Nisso, por desgraça, tem muita razão — admitiu ele. — Nessas
circunstâncias, Jason seria obrigado a aceitar o matrimônio.
— Como Ismal bem sabe. Educaram-no no estrangeiro. É muito consciente
de que meu pai não poderia fazer nada contra ele. Não havia necessidade de
que o assassinasse — disse ela de maneira contundente. — Até mesmo teria
me devotado a ele voluntariamente, ao saber que a vida de meu pai estava em
perigo. Muitas mulheres têm que suportar piores maridos que Ismal, por
razões muito menos importantes. Não teria sido um sacrifício tão grande para
mim.
Para Varian parecia terrível imaginar aquela feroz e jovem ninfa encerrada
em um harém. Mesmo assim, sabia que as mulheres podem suportar coisas
piores, mesmo na Inglaterra. Entre as classes altas, as famílias formavam
alianças por terras, dinheiro e poder. Os filhos e as filhas não são mais que
peões desse jogo. Mesmo quando escolhem por si mesmos, raramente o amor
tem algo que ver nisso.
Mas Varian estava convencido de que aquela garota teria se casado até
mesmo com Satanás, se fosse necessário, para proteger seu pai. Que tipo de
homem teria sido Jason, para ter tido uma filha como aquela e ter merecido
tanto amor?
— Suponho que poderia ter sofrido coisas piores — disse ele. — Mas pode
estar certa de que Ismal iria sempre atrás de você e ia estar sempre a sua
disposição quando pedisse.
Ela fez uma careta de asco.
— Não necessito de escravos. Só o que faria seria contribuir com o que
fizessem as outras mulheres e me preocuparia pela felicidade e o bem-estar de
meus filhos. E se Deus é generoso, teria tido muitos.
Varian piscou surpreso.
— Quer ser mãe?
— Sim. O que tem de surpreendente nisso?

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— O que tem de surpreendente? — repetiu ele. — Demônios, Esme, toda a


sua existência está cheia de uma emoção atrás de outra. Atiraram em você,
tentaram sequestrá-la, os lordes ingleses caem inconscientes a seus pés. Salva
uns estrangeiros de um naufrágio e logo os conduz, sem ajuda, por entre
pântanos da extensão da Austrália. A apenas algumas horas vi você enfrentar
e desafiar a metade desse povoado para que brigassem com você, e vi sua
faca apontando diretamente a meu coração. De onde demônios pensa tirar
tempo para criar seus filhos? — perguntou ele. — Que pobre diabo vai ser
capaz de ficar a seu lado o tempo suficiente para fazer um filho?
— Não me referia a esse momento— disse ela com calma.
— Alivia-me muito ouvir isso — disse ele. — Já que sou o único pobre
diabo que há pelos arredores, estava, naturalmente, um pouco preocupado.
Embora, apesar de tudo, me alegro de não precisar agradá-la, querida, porque
temo que hoje me deixou esgotado.
Ela se ruborizou.
— Não estava me referindo a tê-los com você!
— Oh! — disse Varian olhando para outro lado. — Isso me deixa muito
aliviado. Porque se estivesse se referindo a mim… e estivesse pensando em
agora… Bem, todos sabemos como é quando coloca algo na cabeça, Esme. Se
vinte homens fortes não foram capazes de fazê-la mudar de opinião hoje,
como poderia um tipo fraco e quase exausto negar algo a você nessa noite?
Ela abriu a boca e no mesmo momento voltou a fechar. O rubor começou a
surgir e sua expressão ficou pensativa.
— Agora está me provocando — disse ela. — Por isso está fazendo
brincadeiras indecorosas.
— Isso mesmo.
— Parece-me que causei a você um grande transtorno — disse ela em tom
arrependido. — Agora que sabem que não estou morta, deve estar preocupado
de que Ismal volte a mandar seus homens outra vez atrás de nós.
— Entre outras preocupações.
— Sinto-o — disse ela. — Mas já está feito, efendi.
— Sei.
— Mas não tem por que se preocupar, Ismal não se atreverá a nos atacar

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agora.
— Não, certamente não. Mas não se trata de algo que poderia esperar
razoavelmente. O que me preocupa vem de nenhuma parte, e me produz um
inimaginável horror.
— Se preocupa muito — disse ela. — Estão aparecendo profundas rugas na
testa.
— E está deixando meu cabelo grisalho — disse ele. — Posso sentir.
— Não, isso não. — Ela se colocou de um lado da cama de armar para
deixar lugar para ele, e logo estapeou com a mão grossa o travesseiro que
havia a seu lado. — Hajde. Vem aqui.
Varian ficou olhando aquela diminuta mão apoiada sobre o travesseiro.
— Perdão?
— Apoie a cabeça aqui — disse ela. — Isso fará com que desapareçam as
rugas de sua testa, assim como suas preocupações.
Varian sentiu um ligeiro calafrio de ilusão, mas isso foi tudo. Estava sem
dúvida nenhuma esgotado, física e mentalmente. Ela precisaria ter feito todo o
trabalho, mas ser um impotente espectador teria resultado ainda muito mais
difícil. Ela não podia correr nenhum perigo com ele naquela noite, e sabia.
Varian se deitou e fechou os olhos. Só por um momento, disse a si mesmo.
E em seguida sairia de sua barraca.
— Falarei das montanhas — disse ela em voz baixa. Suas mãos frias
posaram sobre a testa dele. — Formosas montanhas que se elevam até o céu,
onde revoam as águias, nossos pais.
Os dedos dela começaram a massagear a fronte e magras correntes de
prazer começaram a percorrer o corpo de Varian.
— As águas dos rios descem por elas frias e claras, salpicando as brancas
ladeiras das montanhas, e alegres enquanto fluem.
Ele começou a sentir sua mente mais clara e fria, apesar de que sob a
carícia dela notava uma calidez que começava a penetrar nos músculos duros.
— Tem umas mãos formosas — murmurou ele.
Ele notou uma breve pausa, apenas um batimento do coração, antes que
ela continuasse massageando suavemente e relaxando-o.
— Correm ao encontro dos bosques que há nas ladeiras — continuou

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dizendo ela— onde a brisa sopra entre os abetos, despertando os cantos dos
pássaros.
Sua voz foi se perdendo em imagens longínquas de pinheiros que
murmuravam. Eram suas mãos que criavam aquela suave música, enquanto
Varian deslizava profundamente em uma escuridão como de veludo, uma
escuridão que o envolvia com uma cálida alegria assombrosamente parecida
com a paz.

Esme ficou olhando enquanto dormia, seus traços finamente esculpidos


tocados pelas sombras fantasmagóricas que a chama vacilante de um abajur
de azeite provocava. Tinha que apagar a luz. Tinha que partir, ou ao menos
fazer a cama em qualquer outra parte daquela pequena barraca. Mas não se
decidia. Com um ato de generosidade, ele a tinha feito baixar suas defesas.
Necessitava dele, mas teria cortado o pescoço antes de admiti-lo, — e ele
tinha aparecido. Colocou-se a seu lado, contra meio povoado, apesar de não
dever nada a ela, nem sequer lealdade.
Ficou com ela, ajudando-a enquanto curava aquela horrível ferida, embora
certamente se sentisse doente por causa de sua natureza sensível,
desacostumado à miséria, a violência e a fealdade. Mas assim tinha sido desde
o começo. Isso era tudo o que ele tinha ensinado.
Não deveria tê-lo feito realizar aquele viagem com ela. Ele não entendia a
sua gente. Para ele, Albânia não era mais que fealdade e brutalidade, e tinha
obrigado a que suportasse tudo isso.
Esme olhou suas mãos, que estavam tremendo. Formosas, havia dito ele.
Mas eram duras e estavam bronzeadas. Boas mãos para o trabalho, para a
briga, mas não formosas. Isso não.
O que pensaria ele se soubesse do porque irem a Tepelena, e porque o
tinha colocado em tantos problemas? O que poderia pensar se imaginasse que
essas mãos que disse serem formosas logo seriam manchadas com o sangue
de um homem?
Meu Deus, não permita que conheça nunca a verdade. Apesar de tudo, não
deixe que esse homem chegue a suspeitar que sua generosidade chegou a ela,
ao coração e a envenenou com vergonhosos desejos.

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O abajur de azeite chispava e fumegava, e o ar da habitação parecia


carregado, convertendo-se em uma massa opressiva que pulsava com o bater
de seu coração. Esme desejou partir, muito longe, onde pudesse respirar de
novo tranquilamente, com o espírito livre de cadeias.
Mas isso era impossível. Mas ao menos podia escapar da excessiva
proximidade de seu esbelto corpo. Somente tinha que se levantar e cruzar a
barraca. Levantou-se para cobri-lo com a manta.
Ele se moveu e deixou escapar um suspiro. Abriu os olhos, que eram como
escuros atoleiros brilhantes, e sua boca se curvou em um adormecido sorriso.
— Tem umas mãos formosas —disse ele em voz baixa. Logo segurou os
dedos trêmulos e os aproximou dos lábios.
Roçou-lhe os nódulos com a boca e o pulso dela acelerou em resposta.
Não. Seus lábios formaram aquela palavra, mas nenhum som saiu de sua
boca.
Não. Outra vez quando ele voltava sua mão, e uma vez mais não saiu som
algum de sua boca. Tinha que falar, ou admitir sua vergonha, mas já se sentia
bastante envergonhada por não poder pronunciar uma simples palavra.
Os lábios dele pousaram na suave palma de sua mão e Esme prendeu a
respiração enquanto o prazer se apoderava dela, cortante como uma adaga
afiada. Foi só um instante, mas certamente ele não necessitava nada mais
para perceber a clamorosa mensagem de seu coração. Quando por fim sua
boca se separou da palma de Esme, nela ficou um formigamento de sensação.
Pensou que tinha que afastar-se dele, mas seu absorto olhar prateado a
mantinha presa no mesmo lugar.
— Necessito de você — sussurrou ele e no momento se levantou e a puxou
contra seu corpo.
O magro corpo de Esme se acomodou sobre o de Varian sem lutar, embora
tivesse um montão de razões para resistir em seguida. Conhecia sua força e
sua rapidez. E também sabia de que maneira suas carícias podiam ofuscar sua
razão e fazer com que a fronteira entre o bem e o mal deparecesse.
Se não protestasse ou resistisse, seria arrastada rapidamente para sua
própria desgraça, porque sabia perfeitamente quem era ele e o que era e o que
pretendia. Mas seu coração deu saltos de alegria quando as mãos de Varian

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agarraram seu cabelo e aproximaram seu rosto do dele. Ela sabia que estava
perdida, que a desonra estava começando a rondar. Mas a boca dele estava só
a um suspiro de distância e Esme a desejava com tanta vontade que estava a
ponto de começar a chorar.
Ela fechou os olhos e ele afundou em um longo beijo que fez o mundo
começar a dar voltas enlouquecidas a seu redor. Seus finos dedos desenharam
linhas que formigaram calor por sua cabeça, e seus pensamentos começaram a
pulverizar-se como faíscas de um fogo que chiava. O corpo rígido dele
pressionava contra o dela e os músculos tensos de Esme começaram a relaxar
como metal fundido. Varian roçou os lábios com a língua e Esme, obediente a
sua amável insinuação, abriu-os para recebê-la.
O frio contato da carne dele dentro dela foi uma comoção, mas só por um
instante, antes que um prazer extasiado a embriagasse por completo. A língua
dele empurrava contra a sua e o sabor que degustava era como um cruel
segredo . Ela estava saboreando o pecado, e esse pecado era deliciosamente
embriagador. Era traiçoeiramente doce, como um insidioso veneno que
chegava à alma. Estava saboreando algo diabólico, a maldade de sua alma.
Mas era tão formoso como a coisa mais divina. Esme sabia que ele não
pretendia levá-la ao Paraíso. E sentiu que rondava um perigo na escuridão.
Mas mesmo assim, parecia ter sentido saudade disso toda sua vida.
A boca dele se separou dos lábios dela para desenhar um caminho de fogo
que percorreu sua bochecha e parou em sua orelha, e logo voltou a descer
para beijar uma veia que palpitava em seu pescoço. Esme prendeu a
respiração e abriu os olhos de repente. Mas um emocionante segredo havia se
infiltrado sob sua pele, ali onde a boca de Varian tinha beijado, fazendo com
que se esquecesse de todo o resto. Um prazer lânguido percorreu todo seu
corpo e ela deixou escapar um suspiro. Sim. Assim. Sua boca sussurrava
diabolicamente contra a sua pele… Por um caminho de suaves beijos, sentindo
línguas de fogo pelas costas… E o roçar do linho quando a camisa que vestia
deslizou para baixo, mais abaixo, até ficar nua… E o frio ar da noite acariciou
sua pele exposta. Mas aquele ar se esquentou no momento com um lânguido
perfume, cheio do aroma masculino dele. Os suaves dedos de Varian pararam
lentamente sobre os nus seios dela e o coração de Esme ficou a pulsar com

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mais velocidade: Sim, me toque, me faça ser formosa.


E ela se sentiu formosa, suave como o veludo, pois um escuro deus tomou
e a transformou com suas doces carícias. Ela queria continuar sendo formosa
para sempre, queria mais. Seu corpo se aproximou do de Varian tratando de
fundir-se com ele até serem um. Queria liquidificar-se entre suas mãos para
que ele a pudesse moldar com a forma de uma deusa.
Ele se afastou, mas Esme ainda podia sentir seu fôlego roçando sua pele
enquanto a olhava.
— É tão formosa — disse ele com voz rouca.
Sim. Ele a tinha feito ser assim. Esme tinha vontade de dizer-lhe mas não
podia. Porque agora já não era a Esme que ele conhecia. Agora tinha se
convertido em um líquido fundido, em uma corrente quente de ardente prazer
que avançava para ele. Os dedos dela se dobraram por trás de seu pescoço e
se introduziram nos sedosos cachos do cabelo de Varian.
Ele gemeu, atraiu-a de novo para si e colocou um joelho entre as pernas
dela. Suas mãos subiram pelas coxas, e logo se afundou uma vez mais contra
ela, enquanto com a língua riscava uma lenta e excitante curva ao redor do
sensível topo de seus seios. Sua boca cálida se retirou da tenra carne dela,
esvaziando-a, para logo alagá-la com um êxtase que a fez gemer. Aquela
corrente de prazer desembocou em um mar formoso e selvagem. Ela se
agarrou a ele ainda com mais força, pressionando suas coxas contra as dele,
pedindo mais, impaciente agora por continuar gozando daquela ternura.
Ele percorreu com as mãos toda a extensão do corpo dela, enquanto
murmurava no ouvido, palavras que ela não podia entender. Logo a fez deitar-
se de costas e procurou sua boca. Uma e outra vez, sua boca arremeteu e se
afundou entre os lábios dela, e ela começou a elevar-se como uma onda
enorme, desejosa de romper na margem. Esticava-se e se arqueava cada vez
mais, mas sem poder encontrar alívio. Esme não desejava que se detivesse,
mas dessa vez acreditava que ia morrer se não o fizesse.
As inquietas mãos de Varian encontraram de novo os seios dela, sua
cintura, e logo deslizaram para baixo, para aquele lugar íntimo entre suas
pernas. Ela entendia que assim tinha que ser. Tinha que ser dela, e tinha que
oferecer a ele todos os seus segredos, todo o seu ser. Mas quando sentiu a

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carícia dele na parte mais íntima de seu corpo, sentiu-se apunhalada pelo
medo. Inclinou-se para trás instintivamente, só um instante e ele se deteve.
Varian respirava de maneira entrecortada e deixou escapar um longo
suspiro. Separou-se dela, deitou-se de costas deixando-a tiritando de frio… e
sozinha. Então subiu à superfície da consciência de Esme aquele vergonhoso
desejo que tinha estado minuciosamente submetida enquanto o fazia amor. E
ela sentiu que ardia seu rosto.
Passou um momento.
— Por Deus, Esme — disse ele ao fim com voz rouca. — Não pensava me
deixar continuar, não é assim? Não pensou no que poderia acontecer se não
tivesse ocorrido me deter?
— Não estava pensando. — Sua própria voz soava também mais grave.
Sentia-se como se tivesse enfrentado sozinha a todo um exército, apesar de
que não tinha lutado absolutamente. — Como quer que uma mulher possa
pensar quando está fazendo essas coisas? Uma vez começado é impossível ser
sensata. Impossível. —
Ela cravou seu humilhado olhar no teto. — Não podia detê-lo. Não queria que
parasse. Envergonho-me de dizê-lo, mas é a verdade. Se tivesse desejado me
desonrar, não teria podido me defender. Fez eu me sentir tão estúpida como
um cordeiro.
— Não diga isso. — Ele se voltou para ela. — Não pode deixar tudo em
minhas mãos.— Varian a segurou pela nuca para que voltasse a cabeça para
ele. — Não pode.
— E você não me pode deixar isso — disse ela com voz tremente. — Não
quando me olha dessa maneira, quando me toca dessa maneira. Não sou de
pedra, Varian Shenit Giergi, e não sou uma menina. Nem o que você fazia era
um jogo de meninos. É um jogo de pessoas adultas, e estou segura que um
sempre ganha. Tem que ganha comigo?
Ele colocou as mãos sobre os ombros e logo as baixou lentamente por seu
seio até deter-se na cintura. Ela segurou a respiração, mas não se moveu.
Como podia afastar sua mão quando a tinha excitado daquela maneira,
fazendo-a desejar desesperadamente que acabasse o que tinha começado?
— Sim — disse ele, — mas não contra seu desejo.

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Sua mão se moveu para o ventre dela e se deteve ali. Um calor percorreu
o interior e se afundou para palpitar no lugar íntimo que ele tinha acariciado
fazia um momento.
— Contra meu desejo? — murmurou ela. — Ah, Varian, é um tolo!
Esme se apoiou contra o ombro dele para estar mais perto, mas ele
pareceu não entender aquele gesto. Com um ofego de impaciência Esme
abraçou-o e pressionou sem vergonha sua boca contra a de Varian. Ele resistiu
um pouco, mas após um momento, deixando escapar um gemido, sucumbiu a
seu beijo.
Suas línguas se fundiram e Esme ofereceu seu beijo ainda com mais
avidez que antes. Sabia aonde podia conduzí-la aquilo. Desejava-o. Desejava
que a conduzisse de novo para aquela vertiginosa escuridão, e logo mais à
frente ainda. Muito mais longe. Agora ela acariciou-o, como ele tinha feito
antes. Ele tremia e se movia intranquilo sob suas carícias, respirando de
maneira entrecortada, sem fôlego. O corpo de Varian respondeu a suas
carícias, como antes tinha respondido o dela. Meio assombrada, meio sentindo-
se triunfante, Esme deixou que suas mãos se movessem livremente e se sentiu
enjoada de poder quando ouviu que ele começava a gemer.
Então ele se separou dela um pouco.
— Espera.
Oh, não! Agora não! Esme deslizou a mão para baixo, pela abertura de sua
camisa, até chegar à cintura de suas calças. Agarrou sua mão e a apertou
contra o peito. Pulsava-lhe o coração como se fosse rompante do mar.
— Não — grunhiu ele. — Não sabe o que está fazendo.
— Então, ensina me.
— Não! — Ele se separou bruscamente dela e se ergueu até ficar sentado.
— Não, acredito que já ensinei muito, maldita seja! — ficou olhando-a
fixamente. — Não volte a fazer isto nunca, nunca mais. Eu não sou sir
Galahad, demônios. Estive a ponto de perder a vida por ser nobre uma vez,
mas acredita que resistirei uma segunda vez, em poucos minutos, e em
circunstâncias ainda mais difíceis?
— Não deveria ter me acariciado de novo — disse ela. — Eu disse o que
me acontecia.

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— Não era necessário que demonstrasse isso! Não percebe o que está
fazendo a mim?
— E você, dá-se conta do que me tem feito?
Ele estremeceu como se ela acabasse de lhe dar uma bofetada.
— Não pretendia… — Varian ficou olhando desolado a seu redor. — Mas
não o fiz, não é assim? Não contra sua vontade, quero dizer. Isto foi
estupidamente cavalheiresco de minha parte. — Seu olhar cinza, agora
mostrando amargura, voltou a posar nela. — Acredito que será melhor que vá
— disse ele.

Capítulo 10

No dia seguinte depois que os bandidos o deixassem com o padre, chegou


outro tipo robusto para juntar-se ao Percival. Seu nome era Bajo. Conforme
havia dito o padre, Bajo era o melhor amigo de seu tio Jason. Tinha estado
seguindo os bandidos, esperando uma oportunidade para poder libertar o
Percival. Na noite anterior, Bajo tinha ficado de guarda à porta da casa do
padre. Apesar de ser um tipo enorme que falava com grunhidos, Percival se
sentiu completamente a salvo em sua companhia.
Depois de uma longa viagem sob a chuva, chegaram a Berat, um povoado
bastante grande que se estendia das ladeiras até o topo de uma montanha e
ali ficaram na casa de um homem chamado Mustafá.
Por sorte para o Percival, aquele ancião sabia algo de inglês, embora com
o Percival falasse quase sempre em grego. Enquanto conversavam, a mãe do
Mustafá, Eleni, não deixava de oferecer comida ao Percival. Logo, a anciã e
amável senhora, o levou ao dormitório e o colocou na cama.
Percival dormiu toda a noite, a maior parte do dia seguinte e boa parte do
outro dia. Estava tão terrivelmente cansado que teria podido dormir toda a
semana seguida se no quarto dia que estava em Berat não tivesse chegado
àquela notícia.
Estava terminando o jantar quando aqueles dois homens entraram em seu
dormitório e um sorridente Mustafá anunciou que sua prima Esme estava viva,

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

e com lorde Edenmont, em um povoado chamado Poshnja, a umas quarenta


milhas ao norte do Berat.
Quando ainda estava digerindo aquela maravilhosa notícia, Percival se deu
conta de que Bajo não parecia muito contente.
— Bajo me disse que sabia que Esme estava viva — disse Mustafá depois
de uma troca de palavras. — Ele mesmo fez correr o rumor de sua morte para
que não a perseguissem. Lamenta ter escondido a verdade, mas com tantos
espiões por toda parte, não podia fazer outra coisa. Não obstante, agora que
começaram a falar que ela está viva, em poucas horas terá chegado a notícia a
Tepelena.
Bajo grunhiu umas palavras mais.
— Está zangado com sua prima — disse Mustafá. — Ordenou-lhe que
ficasse no barco. Não só o desobedeceu, mas também foi muito indiscreta.
Explicou-lhe que tinham ferido um dos homens da escolta de Esme e que
ela tinha montado um novo escândalo. Parecia que ficariam em Poshnja até
que o ferido se recuperasse.
Não estranhava que Bajo estivesse preocupado. Agora que se sabia que
Esme estava viva e que ainda se encontrava na Albânia, voltava a estar em
perigo.
— Pelo amor do céu! — Percival se levantou na cama de um salto e
agarrou seu alforje. — Será melhor irmos a sua procura antes que Ismal o
faça.
Mustafá fez um gesto com a mão para que ficasse na cama.
— Não se preocupe, Ismal está vigiado de perto em Tepelena, porque Alí
está muito zangado com ele. Agora mesmo Ismal está muito ocupado tratando
de salvar o pescoço de seu próprio primo. Culpou pelo seqüestro uns exaltados
seguidores deles que atuavam por sua conta. Disseram que os cabeças
confessaram sob tortura. É obvio, que esses homens serem muito ricos e
possuírem formosas mulheres não é mais que uma casualidade. — E logo
Mustafá acrescentou secamente: — E é obvio, agora suas posses estão em
mãos do Alí.
Percival não podia acreditar no que ouvia.
— Ismal está sendo vigiado? Isso quer dizer que é suspeito? Está

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esperando que o julguem? Depois de tudo, não se tratava só do seqüestro.


Estou seguro de que as duas coisas estavam relacionadas. Quero dizer, o
assassinato do tio Jason. Não pode ter sido uma coincidência. Alí não o pode
ser enganado. Ninguém pode acreditar.
— Você não entende esses homens — disse Mustafá em tom tranquilo. —
Ismal é um homem muito persuasivo. Além disso, assassinar o Jason não
combina com sua maneira de atuar. E não posso acreditar que Ismal atuasse
de uma maneira tão pouco cautelosa. Eu queria bem a seu tio, e meu coração
também grita vingança. Mas não vejo nenhuma razão para culpar desse
assassinato o Ismal.
Bajo disse algo que Mustafá respondeu de maneira cortante, após o que
pararam a conversa. Enquanto isso, Percival tratou de descobrir o que haviam
dito.
Evidentemente, ambos acreditavam que Ismal não tinha razão alguma
para assassinar o tio Jason. Certamente também Alí pensava o mesmo, já que
não tinha executado ainda o Ismal. O que queria dizer que Percival Brentmor
podia ser a única pessoa na Albânia que sabia o que Ismal estava tramando.
Não tinha a menor duvida de que se tratava do mesmo Ismal cujo nome
tinha ouvido em Otranto, e de quem falavam os bandidos na outra noite.
Parecia que aquele era o homem que ia conseguir derrotar Alí Pachá: influente,
matreiro e terrivelmente inteligente. Terei que advertir ao Alí antes que seja
muito tarde e Albânia se veja metida em uma sangrenta revolução.
Com atraso se deu conta de que Mustafá estava falando com ele.
Gaguejou uma desculpa.
— Bajo tem que partir — repetiu Mustafá. — Pensamos que o melhor é que
fique comigo. Sua prima e o lorde inglês se dirigem a Tepelena, pensando que
poderiam encontrá-lo ali. Mas antes terão que passar por aqui, pois Berat está
em sua rota. Daqui podem viajar facilmente para o oeste até o Fier, e dali
chegar à costa. Depois poderão tomar outro barco para que os leve a Corfú,
que agora está sob domínio inglês, ou voltar diretamente para a Itália. Não é
necessário que sigam caminho até Tepelena.
Percival tentou apaziguar seu medo.
— Quer dizer que não deveria ir lá, para me encontrar com o Alí Pachá?

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Mustafá lançou um olhar a Bajo.


— Acredito que isso não seria muito inteligente. Quanto antes Esme saia
do país, muito melhor.
Bajo já se pôs de pé, evidenciando claramente que desejava partir.
Percival tratou de pensar com rapidez. Se havia alguém mais que soubesse
algo daquela conspiração que tio Jason estava tentando descobrir, sem dúvida
tinha que ser Bajo. Certamente se podia confiar nele para dar a informação
sobre o Ismal. Mas como dizer sozinho a ele se não entendia albanês; Mustafá
poderia traduzir, mas possivelmente fosse melhor que não soubesse nada
daquele assunto. Bajo nem sequer havia dito a ele que sua prima Esme estava
viva. Porque havia espiões por toda parte.
Enquanto o robusto albanês dava meia volta para dirigir-se à porta,
Percival voltou a se pôr de pé.
— Por favor, senhor, vai a Tepelena?
— Sim. Tenho que explicar ao visir o que aconteceu.
— Por favor, pode esperar um momento. Oh!, bom, não quero ser um
estorvo, mas tenho que… ah, sim!, Pode me dar um pedaço de papel e um
lápis?
Mustafá ficou olhando surpreso.
Percival se deu conta de que suavam suas mãos. Tratou de não perder a
compostura.
— Com sua permissão, mas é algo muito urgente, e não acredito que lhe
importe, tenho que escrever ao Alí Pachá para contar… para expressar minha
pena por não poder conhecê-lo pessoalmente.
Por sorte, Percival não teve que segurar a respiração durante muito tempo.
A discussão entre os dois homens foi felizmente breve.
— Bajo está de acordo que é uma ideia excelente — disse Mustafá. — Alí
ficará decepcionado por não poder conhecê-lo, mas estou certo que o alegrará
receber uma nota de seu punho e letra. Pode ser que isso ajude de algum
modo a acalmá-lo, o que faria um grande favor a Bajo, que assim poderá
evitar uma desagradável fileira de adulações para tratar de apaziguá-lo. — Deu
uma palmada no ombro de Percival. — É um moço muito inteligente e muito
bem educado. Venha, leva-lo-ei a meu escritório. Ali poderá escrever sua nota

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com toda tranquilidade. Bajo e eu esperaremos tomando uma taça de café.


Quase uma hora mais tarde, Percival voltou a reunir-se com os dois
homens. Sem que apenas tremessem suas mãos, entregou a Bajo duas folhas
dobradas.
— Por favor, diga a Bajo que a que leva seu nome é um presente para ele
— disse Percival dirigindo-se ao Mustafá. — É uma adivinhação que tinha
inventado para tio Jason, mas… mas eu gostaria que Bajo a tivesse. Ao menos
como uma forma de dizer obrigado. Espero que pareça para ele uma
adivinhação interessante. E diga a ele, por favor, que desejo que tenha muito
êxito em… bom, em tudo o que vá fazer.
A tradução daquelas palavras fez aparecer um estranho sorriso na dura
boca de Bajo. Respondeu que Percival era igual a Jason em muito mais que o
aspecto exterior: não só era valente, mas, sim, também tinha um coração
generoso.
Com aquelas palavras, e depois de um quente apertão de mãos, o robusto
homem partiu.

Embora Agimi dissesse a todo mundo que estava forte como dois bois e
era completamente capaz de seguir viagem, Esme não estava de acordo.
De modo que se encarregou da situação, pensou Varian com resignação.
Tinha sido uma pena que aquela mulher não tivesse estado há alguns anos na
Inglaterra, para parar os pés de Napoleão. Inglaterra e seus aliados teriam
evitado um montão de problemas.
Tinha conseguido claramente desfazer-se de sua excelência, não era
assim? «Não pode deixar a mim. Não quando me olha dessa maneira ou
quando me toca dessa maneira.» Era a tentação maior que podia enfrentar
qualquer homem. Ofereceu a si mesma…, se é que queria aceitar toda a
responsabilidade de ter arruinado sua vida.
Possivelmente ela não tivesse nem ideia do desesperadamente que a
desejava naquele momento. Mas o que até então havia sentido Varian não era
nada comparado com o que sentiu no momento em que soube que ela também
desejava a ele.
Estava doente por ela.

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Queria matá-la.
Queria matar a todo mundo, e especialmente ao Percival, porque se não
tivesse sido por aquele condenado menino, Varian jamais teria posto os olhos
nela.
É obvio que lorde Edenmont não era capaz de matar a ninguém, e tratou
de evitar qualquer troca de palavras azedas, exceto com o Petro. Durante os
quatro dias que permaneceram em Poshnja. Pelo contrário, deu a si mesmo a
cada manhã uma boa lição no rio e tentou exorcizar sua frustração a base de
exercício. Visitou todas as casas do povoado acompanhado de seu anfitrião e
do Petro, e passou horas neles contando anedotas sobre seu país e sobre seus
compatriotas, especialmente lorde Byron, de quem todos tinham ouvido falar.
Quando se cansava de tanto Byron, lorde Edenmont entrava no
personagem de lorde de um senhorio e se dedicava a dar seus deploráveis e
limitados conselhos sobre defesa, agricultura e arquitetura. Seu pai tinha
inculcado — em ocasiões a golpes, — algumas noções de agricultura que
Varian, quando era interrogado por seus anfitriões, desempoeirava e tirava de
algum escuro canto de sua mente.
Chegou até a submeter seu atormentado corpo ao trabalho físico. Para
surpresa de todos eles e vergonha de alguns. O barão inglês ajudou o filho de
Hasan a reparar o moinho, que tinha sofrido sérios danos durante as últimas
tormentas. Enquanto trabalhavam na reparação, outra tormenta sobre eles
sem prévio aviso, e Varian se encharcou antes de poder encontrar um lugar
onde refugiar-se. Na manhã que se preparavam para abandonar Poshnja,
levantou com a garganta ardendo e uma boa dor de cabeça.
Esme deu uma olhada crítica a seu rosto cinzento e anunciou que não
poderiam partir até que estivesse melhor de saúde.
Varian se separou dela, jogou a bolsa de viagem ao ombro, agarrou a
jaqueta do cabide de um puxão e pôs-se a andar saindo da casa.
— Não está em condições de caminhar — gritava ela correndo atrás dele.
— Está começando a chover de novo e vai pegar um bom resfriado e…
— Não penso passar nem um minuto mais nesse lugar — declarou ele.
Sem falar, Esme subiu no cavalo e deixou que Petro comunicasse ao Hasan
o agradecimento e a despedida do barão.

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Quando se detiveram para comer ao meio-dia, a garganta de Varian podia


tragar o suficiente para que comer se convertesse em uma tortura. Entretanto,
podia beber rakí, o que destroçou seu estômago. E quando voltou a subir no
seus arreios, estava tremendo de pés a cabeça.
Berat estava só a cinco milhas dali, cinco elevadas milhas, costa acima na
montanha, sob um aguaceiro. Com uma careta de dor no rosto, Varian seguiu
cavalgando, sentindo a momentos calafrios e a momentos ardendo de calor.
Aquelas horas pareceram eternas. Quase não pôde ver o povoado, pois
estava coberto por uma névoa espessa. Mas ouvia as vozes, e ao dar-se conta
de que o grupo se deteve, saltou de seu cavalo. Olhou para o chão e pareceu
que a terra se abria sob seus pés e logo cambaleava traiçoeiramente.
Um terremoto, pensou. É obvio. O que outra coisa podia ser?
Alguém gritou seu nome. Era a voz de Esme. Varian voltou a cabeça
naquela direção e o mundo pareceu mover-se de lado a lado, logo desapareceu
sob seus pés e caiu dos céus.

Varian abriu os olhos em meio de uma espessa névoa. Piscou sem poder
enfocar a visão. Tinha que ser um sonho: uma ladeira de uma alta montanha,
uma correnteza e uns carvalhos. Não. A cinza escuridão eram os olhos dela.
Mas não podiam ser tão escuros, com tanto medo. Ela nunca tinha medo.
— Eu sinto muito — disse ele com um tom de voz que soou como um
grasnido. Tão horrível soava sua voz?
— Ah, agora o sente — disse ela colocando uma mão fria sobre a fronte. —
Só porque está doente e tem febre. Se não estivesse tão doente daria uma boa
surra em você.
Sorriu. Incomodou. Tinha os lábios ressecados.
Sentiu que se afundava de novo. Esme colocou-lhe um braço nas costas e
o levantou, enquanto punha umas almofadas debaixo de sua cabeça para que
se acomodasse. O quarto parecia mover-se a seu redor, mas logo se deteve e
ele pôde enfocar a vista.
Ao cabo de um momento, um aroma mais nauseabundo chegou ao nariz.
Varian olhou para baixo. Uma colher. Grunhiu e voltou a acomodar a cabeça
sobre os travesseiros. Logo fez uma careta de dor quando uma mão forte

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agarrou sua cabeça.


— Não é veneno — disse ela. — É um caldo de frango e alho. Beba isso se
não quer que chame o Petro e ao Mati para que o segurem enquanto o faço
engolir isso à força.
— Sim, Esme — disse ele obediente, enquanto se erguia de novo para
aceitar a colher que ela aproximava dos lábios.
Embora odiasse que tivessem que dar-lhe de comer, odiava mais ainda
sentir-se impotente, como um menino. Ela o fazia sentir-se muito
frequentemente como um menino. Exceto quando ele a tinha entre os braços.
Mas nesse momento nem sequer podia levantá-los.
— Não sou um menino — disse ele.
— Quando eu estou doente, sou como uma menina pequena — disse ela
administrando outra colherada. — Zangada e impaciente. Uma vez atirei na
cabeça de meu pai uma tigela de sopa na cabeça, mas acabei chorando de
desgosto enquanto ele ria.
— Não posso imaginar que tenha estado doente alguma vez.
— Foi quando tiveram que tirar a bala da perna. Tive que ficar de cama
durante semanas. Isso faz dois anos.
Varian fechou os olhos por um momento. Aquela noite havia tocado a
cicatriz que tinha na coxa…, quando suas mãos tinham explorado quase todo o
corpo de Esme. Quis beijá-la. Desejou ter estado ali dois anos antes para
cuidar dela. Desejou que tivesse atirado a tigela na cabeça dele. Mas não podia
dizer-lhe. Não sabia como explicar nem sequer a si mesmo.
— Mas você tem que tentar ser um pouco mais amável — seguiu dizendo
ela, — porque tenho boas notícias. Meu primo Percival está aqui. Encontra-se
bem e está desejando falar com você. Mais tarde. Disse-lhe que precisa
repousar.
— Percival? Aqui?
— Sim. Bajo o encontrou, como já disse que faria, e o trouxe aqui, a esta
mesma casa, onde Mustafá esteve cuidando dele muito bem. Deve ficar bom
logo porque o menino não tem a ninguém mais que a mim com quem falar, e
já está me dando dor de cabeça de tanto ouvi-lo.
— Sim, tenho que ficar bom depressa para poder dar uns bons açoites

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nele — disse Varian.


— Descansa e come. Vou contar uma história.
Ele aceitou uma atrás de outra as colheradas de sopa que Esme oferecia,
enquanto lhe contava coisas de sua vida. Em um tom de voz baixo e musical
começou a falar dos anos que tinha passado no norte, perto da Shkodra.
Naquela zona governava outro pachá, e era um território mais seguro que o do
Alí, que naquela época estava imerso em lutas internas e sanguinárias. Ali,
entre as altas montanhas, disse Esme, ainda funcionava o severo Canon do
Lek, umas leis que vinham passando durante séculos de geração em geração,
e que datavam da época do herói Skanderberg, do século XV. A fúria das
inimizades familiares que funcionava por toda Albânia era costume saldar-se
com vinganças das vítimas. Entretanto, no norte, as normas eram muito
concretas e cumpridas estritamente ao pé da letra. Era um lugar muito duro
para as mulheres, disse, mas era uma terra formosa.
Tinha vivido na região da Shkodra durante cinco anos, que era a época
mais longa que tinha permanecido seu pai em um mesmo lugar. Não é que se
instalou ali realmente. Deixava-a com uns amigos quando tinha que viajar
pelos longínquos e extensos territórios do Alí, fazendo tudo o que podia para
manter a ordem e persuadir às ferozes tribos independentes de que se
unissem entre si. Antes da Skhoda, tinha passado dois anos no Berat e seus
arredores. Antes disso, três no Girokastro, onde tinha morrido sua mãe —
embora depois tivesse continuado visitando aquela cidade frequentemente,
pois ali viviam seus avós. — Korce, Tepelena, Ioanina. Mas dessas cidades —
ela disse — não se lembrava muito bem. Da Ioanina não se lembrava
absolutamente, porque tinha estado ali quando era uma menina. Jason tinha
conhecido nessa cidade a sua mãe, quando ela era uma jovem viúva. Lá tinha
dado Alí para Jason, umas polainas de guerra, em recompensa pelos serviços
prestados. Foi a única mulher que aceitou do Alí. chamava-se Liri.
Varian engolia distraído o que poderia ter sido um caldeirão daquele
fedorento e odioso caldo enquanto a escutava. Não era só que o relato
afastasse sua mente de seu miserável estado físico e da garra que parecia
esmagar seu crânio. Escutava-a porque era a vida de Esme. O que tinha feito,
o que tinha sido, os lugares que tinha conhecido. E ele tinha vontade de saber,

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de conhecê-la melhor. Queria chegar a conhecer todos os seus segredos.


No final, ela deixou a colher de lado e Varian suspirou com alívio.
— Lamento que você não goste da sopa — disse ela. — E me alegro que
tenha sido bastante bom para tomá-la de qualquer modo. Agora seu corpo
poderá resistir muito mais à enfermidade, encher-se-á de forças.
— Meu corpo está agora cheio de alho — queixou-se ele. — Cheiro a alho.
— Sim, e irá exalando pela pele e o suor levará a enfermidade. Agora
tente dormir.
— Não tenho sono — disse ele.
— Contei a você a longa e aborrecida história de minha vida e não ficou
com sono? — Esme ficou olhando fixamente. — Claro que tem sono — disse
ela. — Não deixa de piscar para manter os olhos abertos. Fecha-os —
acrescentou posando um de seus dedos entre as sobrancelhas dele.
— Quero vê-la — disse Varian.
— Não é necessário que me olhe. Não penso ir a nenhuma parte, nem
colocá-lo em mais problemas. Não se preocupe.
Mas Varian não podia evitar estar preocupado. Sabia que a dor de cabeça
e a febre tinham ofuscado sua mente, mas tinha medo de fechar os olhos
porque poderia ser que quando despertasse ela tivesse ido.
E então, como poderia voltar a encontrá-la?
Tampouco podia resistir a suave pressão de seu dedo entre as
sobrancelhas, nem às quebras de onda de paz e tranquilidade que aquela
carícia fazia fluir pelos duros músculos de seu rosto. A garra que apertava seu
crânio pareceu afrouxar-se um pouco, e o mundo começou a converter-se em
uma suave e leve corrente de veludo, fria e escura. Sentiu-se sonolento, mas
alguma parte de sua mente, nadando pelas profundidades daquela corrente,
ficou presa no relato dela. Esteve contando os anos. Cinco passados na
Shkodra, dois em… onde? Em outra parte. Outros lugares. Quantos anos? Não
era capaz de recordar. Notou que obscurecia sua mente e afundou naquela
aveludada corrente de paz.

Após três dias, lorde Edenmont estava bastante recuperado, mas Esme
continuava cuidando-o com diligência. Não era muito exigente. Tomava seu

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remédio quase sem queixar-se e comia tudo o que lhe dava. De qualquer
modo, a maior parte do tempo passava dormindo. Isso deixava a ela tempo
para fazer outras coisas, como ajudar à mãe do Mustafá, quando não estava
ocupada cuidando dele, a remendar roupa, recolher legumes ou pentear a lã.
Esme não tinha vontade de continuar conversando com seu primo, e essa era a
única forma educada que tinha de evitá-lo.
Normalmente Percival fazia companhia a ele, mas enquanto lorde
Edenmont dormia, o menino tinha que ficar calado e em silêncio. E a verdade é
que se comportava surpreendentemente bem por ser quase um menino. Às
vezes tirava de sua bolsa de pele meia dúzia de pedras e se dedicava horas às
estudar, tomando de vez em quando nota no papel que Mustafá lhe tinha dado.
Embora mais frequentemente o menino passasse o tempo sentado e lendo um
dos livros do Mustafá.
Percival tratava de não incomodar ninguém, mas mesmo os breves
intervalos nos quais ficaram a sós, ele tinha contado o suficiente para que
Esme estivesse preocupada.
Estava empenhado em querer levá-la a Inglaterra com ele. Era
dolorosamente claro quanto o desejava, embora afirmasse que isso era o que
tinha pedido sua mãe que fizesse. Quando o menino falava de sua mãe, Esme
sentia que doía seu coração por ele.
Percival falava pouco de seu pai, mas ela não necessitava mais que ouvir
quatro palavras e dar uma olhada aos olhos do menino para entender que seu
pai não era uma pessoa que o amava. Como ia ser de outra maneira, se tinha
deixado seu único filho a cargo de um libertino irresponsável?
Isso deixava o menino sozinho, com uma velha bruxa por avó que se
negou a escrever uma só palavra amável ao Jason, o filho que não havia
tornado a ver durante mais de vinte anos. O menino não tinha ninguém.
E estava bastante desesperado por travar contato com Esme, mas a quem
necessitava de verdade era o Jason.
E Jason estava morto.
Olhava o Percival e via o vivo retrato de seu pai. Olhava-o e via solidão.
Quando o menino a olhava, Esme sabia que queria encontrar nela uma irmã.
Era inteligente, até mesmo divertido e de uma natureza amável. Ela teria

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desejado poder ser uma irmã para o menino. Combinavam bem juntos. Havia
entre eles um vínculo. Isso era algo que tinha notado desde os primeiros cinco
minutos que tinham estado juntos em Berat: o parentesco e algo mais, certa
afinidade.
Mas o destino tinha previsto que ela ia causar-lhe dor, e não havia
nenhuma maneira de prepará-lo para isso, nenhuma maneira de dizer
amavelmente que não estava disposta a acompanhá-lo a Inglaterra. Ele teria
que seguir seu caminho sozinho, da mesma maneira que ela tinha que levar
sua carga sozinha. E embora sentisse pena pelo Percival, Esme pensou que
essa pena era saudável. Recordava-lhe o dever que tinha que cumprir.
Durante um tempo, muito tempo, ela tinha deixado que um vergonhoso
deslumbramento a separasse do dever que tinha que cumprir. Mas agora não.
A partir de agora se concentraria só na maneira de levar a cabo sua vingança.
Não seria suficiente matar o Ismal. Tinha que fazê-lo sofrer horrivelmente, em
corpo e alma, antes de matá-lo. Pagaria com seu sangue pela morte do Jason,
sim, mas antes teria que pagar pelo dano que tinha feito a seu primo, um
menino que necessitava do Jason quase mais que ela mesma.
Esme não se permitiu pensar em nada mais enquanto os dias passavam
convertendo-se em semanas. Esquivou-se das tentativas de seu primo de
aproximar-se mais dela, e pensou que seria melhor assim. Viu como lorde
Edenmont estava se recuperando, podia voltar a ouvir em sua voz o timbre
irônico de sempre, e seu coração seguia pulsando por ele, também como
antes. Não podia permitir-se abrigar nenhum sentimento por nenhum dos dois,
nem dar-lhes nada de si mesma. Ela tinha que cumprir seu próprio destino.
Eles partiriam logo. E seria melhor assim.

Capítulo 11

Rodeada de montanhas, Ioanina se estendia pela ladeira leste do monte de


São Jorge, de onde tinha uma impressionante vista do lago Ioanina. Entre o
lago e as montanhas se estendia um promontório que elevava-se como se
saísse das águas. Nessa estreita rocha quadrada estava localizada a vasta
fortaleza do palácio de Alí Pachá e a cidade prisão, os edifícios oficiais, o

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cemitério, a mesquita e as miseráveis palhoças da população judia. Uma ponte


conectava a grande porta da cidade com a pequena esplanada, o lugar onde se
levavam a cabo as execuções que dava ao bazar, ao mercado central.
O bazar de Ioanina representava, tão econômica como geograficamente o
lugar mais baixo da cidade, com suas sinuosas e mal pavimentadas ruas
repletas de lojas. Além das lojas, as ruas avançavam até a borda do lago, onde
viviam os mais pobres. Também tinha vivido as últimas semanas naquele
bairro, no mais tranquilo anonimato, Jason Brentmor.
Depois de sua suposta morte, disfarçou-se de camelô e se dirigiu para o
sul, aonde o descontentamento da população ia dia a dia aumentando. Queixas
que tinha ouvido durante sua viagem eram já conhecidas. Um oficial de Alí que
tinham roubado, ou derrubado a pedradas, ou que tinha sido vítima de algum
tipo de insulto, e um grupo de inocentes do lugar que seriam castigados por
isso. Os castigos podiam ir das amáveis reprimendas até a mutilação e a
execução. Quando os aldeãos elevavam sua voz para denunciar uma injustiça,
o oficial, sem dúvida aguilhoado pelas mesmas víboras que tinham causado o
problema, estava acostumado a responder com uma brutalidade maior. Como
resultado, muitas cidades e povos do sul eram um fervedouro de conflitos.
Durante sua viagem para o sul, Jason tinha estado escutando as queixa
dos aldeãos enquanto os aconselhava que tivessem paciência. Ao final, tinha
enviado um amigo de confiança para que se apresentasse ante o visir de
Tepelena e pedisse ao Alí para que substituísse seus oficiais e pacificasse desse
modo à região. Não estava muito seguro de que Alí fosse agir seguindo seu
conselho. E embora o fizesse, provavelmente então seria muito tarde.
Uns quantos agitadores e uma partida de armamento podiam converter
um alvoroço em uma franca rebelião, como já tinha acontecido antes tantas
vezes na Albânia. Dado o atual nível de descontentamento, terei que esperar
que logo cheguem as armas. «Terei que agir depressa. Jason imaginava que
poderia ser questão de semanas. E certamente as armas chegariam a um dos
portos do sul. Mas a qual? »
Esteve fazendo essa mesma pergunta durante as últimas semanas.
Afastando o prato do jantar para um lado, Jason se aproximou da estreita
janela. Fazia cinco dias que chovia sem cessar. Já era meados de outubro. O

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tempo passava depressa e Bajo ainda não tinha chegado.


Por isso sabia, no sul podia estourar uma revolta sangrenta a qualquer
momento… E Esme e Percival se veriam envoltos na mesma. Jason tinha
ouvido falar da chegada do Edenmont com o menino a Albânia, e do que tinha
acontecido depois, mas não podia fazer nada a respeito. Uma frenética corrida
para o norte ia resultar, no melhor dos casos, numa grande perda de tempo. E
o que era pior, poderia pôr em perigo a vida de seus amigos assim como a dos
familiares destes. Jason não tinha nem ideia de quais medidas Bajo e seus
demais camaradas teriam podido tomar a respeito. Sua interferência, —
mesmo se preparado para interferir sem ser reconhecido — poderia enviar ao
traste qualquer plano que seus amigos tivessem em marcha. Não podia correr
esse risco, embora odiasse ter que ficar ali, esperando e sem poder ajudar de
maneira nenhuma.
Só o que o tranquilizava era saber que Alí não tinha acusado o Ismal do
assassinato do Leão Vermelho nem tinha tomado contra ele uma vingança
sangrenta. Jason tinha contado com a cobiça de Alí e a inteligência de Ismal
para evitar essa catástrofe. Os rumores que corriam entre os aldeãos
confirmaram que tinha julgado o assunto corretamente.
«Ismal havia dito que poderia ser o trabalho de alguns seguidores
exaltados que teriam atuado por conta própria — como havia dito um ancião.
— Eu não sei quem matou o Leão Vermelho, mas sei que Alí se conformou
culpando às pessoas que tinham acusado Ismal, sobretudo para poder ficar
com suas riquezas e suas mulheres. Há quem diz que deveria ter executado
Ismal, porque seus seguidores não teriam se atrevido a agir sem sua
permissão. Mas eu sei que Alí não ia matar a galinha dos ovos de ouro. Ismal
sabe que pode fazer o que quiser, porque logo poderá aplacar a ira do Alí se
alimentar sua cobiça.»
Mas durante quanto tempo mais poderia Ismal seguir aplacando a ira de
seu primo? Jason soltou uma maldição. Que demônios importava isso? Naquele
momento tanto Esme quanto Percival estavam em perigo. Estava
repreendendo a si mesmo amargamente por haver ficado em Ioanina sem
fazer nada, quando ouviu que alguém batia na porta e logo uma familiar voz
rouca o chamava por seu nome falso.

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Após um momento, o robusto Bajo estava sentado a mesa baixa, e dando


boa conta da parte do pescado e do pão de milho que Jason não tinha podido
comer.
Bajo deu um gole à garrafa de vinho e limpou a boca com a manga.
— Devia ter feito o que me recomendou e dar um bom murro na sua filha
para levá-la inconsciente ao barco — disse ele. — Embora temo que não teria
servido de nada. Está claro que o destino está conspirando contra nós, porque
eu, que daria a vida por você, parece que desde que o deixei não tenho feito
nada mais que dar passos em falso.
Apesar do começo de seu discurso, que não pressagiava nada bom, Jason
estava disposto a esperar que seu amigo tivesse acabado de comer para
escutar o resto da história. Mas Bajo parecia que precisava se desafogar ao
menos tanto como precisava encher a pança. Assim ficou a falar enquanto
comia.
Aquela história, que parecia afligir tanto a Bajo, tinha deixado Jason
grandemente mais tranquilo. Certamente Esme já teria chegado a Berat. Pode
ser que ela e Percival estivessem já a caminho da costa oeste, bem protegidos
pelos homens do Maliq ou inclusive que já tivessem embarcado. Ela estaria
viajando com um primo claramente disposto a sair-se bem, e empenhado em
que se fizesse realidade o último desejo de sua mãe de mandar a garota para
a Inglaterra. De maneira que Jason tratou de tranquilizar também seu amigo.
— Não acredito que tenhamos que nos preocupar com o fato de que
Edenmont possa causar problemas — acrescentou Jason. — É possível que não
o importe absolutamente o que possa acontecer com Esme, mas se
preocupará muito com seus próprios interesses. Certamente estará ansioso por
abandonar o país e terá que levar a Esme com ele, queira ou não. Tanto
Mustafá como Percival se encarregaram de que assim seja.
— Isso pedi a eles, Leão Vermelho — disse Bajo. — Mas acredito que
cometi um grande engano ao fazê-lo com tanta pressa.
Tirou da cartucheira um pedaço de papel. Colocando-o sobre a mesa
diante do Jason, explicou-lhe seu último encontro com o Percival.
— Não tive tempo de dar uma olhada até depois de deixar ao Alí —
explicou Bajo. — Mas depois ouvi muitas coisas, e cada noite que voltava a

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olhar a nota aumentava um pouco mais minha surpresa.


Jason ficou um bom momento olhando o papel. Não era nenhuma
adivinhação. Percival tinha desenhado um barco com um corvo negro em uma
das velas. Por cima havia um pouco mais de negro e algumas estrelas. No
mastro tinha desenhado um rifle. E tinha escrito em letras gregas o nome de
«Preveza». Debaixo tinha escrito um «um» com um sinal de interrogação, e
logo o número «onze». Na parte inferior da página tinha desenhado um
coração negro e dentro dele a palavra «MALIS».
— Isto é incrível — murmurou Jason.
Mas todos os dados que possuía e tudo o que tinha contado Bajo o
obrigavam a acreditar no menino. Seu sobrinho de doze anos tinha enviado a
resposta a sua urgente pergunta. Preveza, um porto do sul, era o lugar do
destino do contrabando de armas. Os números podiam indicar a princípios de
novembro, dentro de umas duas ou três semanas, como ele tinha suspeitado.
O corvo e a noite sem dúvida significavam o nome do barco. Uma maneira
muito inteligente de contá-lo. As autoridades britânicas poderiam identificar o
barco e detê-lo antes que chegasse ao porto de Preveza.
Jason ergueu a cabeça.
— Deveria ter imaginado que Percival teria alguma razão muito urgente
para vir a Albânia. Ouviu-me falando com sua mãe dos problemas que temos
aqui, sabe? Só o que me ocorre pensar é que em algum lugar da Itália pôde
ter escutado alguma conversação suspeita e decidiu vir aqui para me contar.
Quando acreditou que tinha morrido, pensou que seria conveniente passar a
informação a você.
— Só o que tinha me ocorrido era que esse menino tinha visões — replicou
Bajo. — Esse papel nos conta tudo, inclusive o nome do traidor: Malis, quer
dizer Ismal. E tudo feito de uma maneira tão cautelosa, Leão Vermelho. Não
disse nenhuma palavra de tudo isso diante do Mustafá. Nem um só detalhe na
carta que me deu para o Alí…, quem traduziu isso foi Fejzi, uma pessoa de
toda confiança.
— A carta para o Alí não era mais que uma desculpa para poder escrever
uma nota para você antes que partisse. Percival sabia muito bem que não valia
a pena advertir o Alí por carta, porque Ismal poderia estar presente quando a

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lesse.
O extraordinário filho de Diana tinha pensado em tudo.
— Mesmo assim, seu sobrinho está em poder de uma informação muito
perigosa. Não deveria tê-lo deixado em Berat.
— Se o tivesse levado com você para Tepelena, como no princípio tinha
pensado fazer, Esme teria tido a desculpa perfeita para ir também com você —
assinalou Jason. — E então teríamos uma boa razão para nos preocupar.
Porque nós dois sabemos por que abandonou o barco com a intenção de
dirigir-se a Tepelena.
— Sei, Leão Vermelho — disse Bajo com voz cansada. — A pequena
guerreira quer fazer Ismal pagar com seu sangue.
— Agora já não tem nenhuma desculpa para aproximar-se de Ismal.
Mustafá cuidará para que Edenmont os leve a ela e ao Percival para o sul, e
que abandonem o país o antes possível.
— De qualquer modo, deveria ter ficado em Berat para me assegurar de
que todos fariam como ordenei.
Jason estalou a língua.
— Se tivesse ficado ali, agora eu não teria esta nota em minhas mãos.
Teria passado semanas tentando descobrir essa informação, e certamente em
vão.
Jason amassou a nota e atirou ao fogo. Após alguns segundos não restava
da nota de Percival mais rastro que um monte de cinzas que subiam
empurradas pela fumaça.
Jason deu meia volta e seu olhar cruzou com o preocupado olhar de Bajo.
— Amanhã sairemos para Corfú — disse Jason com firmeza. — Temos que
notificar o que sabemos às autoridades britânicas, encontrar o barco e seguir
os rastros dos agentes de Ismal. Esme está protegida por um punhado de
homens decididos a tirá-la do país, homens a quem Ismal não terá vontade de
enfrentar. Só quer tê-la em seu poder para poder me controlar, e recorda que
supõe que estou morto. Agora Ismal terá posta toda a sua atenção no sul da
Albânia. E quero que siga mantendo-a ali. Deixemos que veja de que maneira
esse monstro que com tanto trabalho criou é desmembrado e feito em pedaços
ante seus olhos. Agora podemos conseguir, Bajo. Percival nos deu a chave para

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fazê-lo. — Jason sorriu. — E vai se sentir terrivelmente decepcionado se não a


utilizarmos.

Capítulo 12

— Está seguro de que não quer vir? — Perguntou Percival pela enésima
vez. — A prima Esme diz que um passeio faria bem a você.
Varian estava de pé na soleira da porta de Mustafá, com o olhar perdido no
estreito caminho pelo qual entravam Mustafá, Mati e Agimi.
A casa de Mustafá estava situada na parte alta do bairro do Magalen, um
povoado localizado na base de uma montanha rochosa na borda esquerda do
rio Osum. Suas casas de pedras se agrupavam pela colina formando estreitas e
sinuosas ruas.
Entretanto, não estava longe de Berat. Na parte alta da montanha havia
uma fortaleza voltada para o precipício. Suas muralhas albergavam várias
Igrejas e o palácio de Ibrahim, o oficial do pachá em Berat, atualmente
encarcerado em uma das prisões de Alí, em Girokastro, muitas das quais se
edificaram com pedras de muito antigas.
Antigas ou não, Varian não estava disposto a castigar seu recém
recuperado corpo com uma longa e quase perpendicular escalada por aquela
montanha.
— O que sua prima quer dizer é que faria bem ver-me cair do alto de um
penhasco até o fundo do rio, onde minha cabeça ficaria em pedacinhos— disse
ele.
— Pelo amor de Deus, estou certo de que a prima Esme não desejou tal
coisa, e mesmo que o fizesse, embora seja uma simples hipótese, não acredito
que o exporia de uma maneira tão rocambolesca. Não é uma pessoa que diga
as coisas com tantas indiretas. Mas, é obvio que não era isso o que queria
dizer. Não me parece lógico que tenha estado cuidando de você durante duas
semanas para que agora deseje tanto mal. Obviamente…
— Estava tentando me acalmar com uma falsa sensação de segurança —
murmurou Varian.
— O que quer dizer com isso, senhor?

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— Nada. — Varian percebeu o olhar intrigado do menino. — Só estava


brincando. Não estou delirando, Percival, eu garanto. Vá agora, os outros estão
esperando. Eu prefiro ficar aqui olhando.
Percival ficou pensando um instante. Logo deu de ombros e pôs-se a
correr. Após um momento, Varian perdeu de vista as quatro figuras que foram
rapidamente engolidas por uma rua entre as apinhadas casas brancas da
ladeira.
Varian pensou que Berat era um lugar formoso, a sua maneira, com suas
casas de pedra que pareciam crescer da rocha cinza da montanha como se
fossem pérolas brancas. Mustafá havia dito que aquele lugar tinha mais de
duzentos anos de existência. Tinha sobrevivido a centenas de batalhas,
conquistas e destruições. Tinha sido reconstruído e voltado a reconstruir em
muitas ocasiões, mas seguia teimosamente obstinado à dura pedra da ladeira.
Igual ás pessoas do lugar, pensou Varian.
No céu podiam ver-se naquele dia alguns claros, embora enormes massas
de nuvens cinzas cruzassem por momentos sobre sua cabeça, empurradas pelo
vento gelado. Não era um céu como os que se viam na Inglaterra. Aqui o céu
sempre parecia estar muito mais longe e as nuvens eram mais selvagens. Até
a enorme massa de pedra coroada pela antiga fortaleza parecia estar animada.
Percebia-se ali uma presença tumultuada, como se ainda habitassem nessa
paragem os antigos deuses. Mesmo em meio daquela paisagem tranquila se
sentia uma tormenta de emoções que arrebatava os sentidos.
Era aquele sítio, disse Varian a si mesmo, e algo que se notava no ar.
Tinha a sensação de estar aprisionado por aquilo, como se estivesse sob os
efeitos de algum tipo de droga. Quando partisse dali, voltaria a sentir-se livre
de novo.
Apoiou-se no marco da porta e fechou os olhos. Quando tinha saído da
opressiva névoa da febre e da dor atormentadora sentiu-se
surpreendentemente lúcido e forte. Tinha sorrido e Esme por sua vez tinha
sorrido para ele. Mas o sorriso dela era tão impenetrável como as inesquecíveis
montanhas de Berat. Embora fosse amável e agradável, e diligente nos
cuidados para com ele, parecia esconder-se atrás de um sorriso e de um olhar
de olhos verdes que não diziam nada.

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Ao princípio Varian pensou que aquela mudança poderia ser causada pela
presença de Percival, que estava todo o tempo a seu lado e não deixava de
falar nem um momento. Mas conforme passavam os dias, cada um mais
lentamente que o anterior, Varian acabou percebendo que a causa daquela
mudança na atitude de Esme não era Percival.
Também tinha entendido com uma compreensão que tinha chegado
lentamente, mediante uma série de pequenos e impactantes momentos que
nada do que ele pudesse dizer ou fazer ia ter algum efeito sobre ela. Sentia-se
como se o que ele dizia ou fazia não fosse mais que um pouco de imaginação
dele, enquanto que para ela ele não fosse mais que um objeto inanimado que
teria que cuidar ou examinar, tal e como Percival estava acostumado a fazer
com suas pedras.
Aquela sensação o fez sentir-se ansioso e zangado ao princípio, logo se
sentiu miserável, e agora, estava simplesmente resignado. Miseravelmente
resignado. Sentia-se tão desesperado como certamente tinha que estar. Era
melhor assim. Que outra coisa tinha esperado?
Ouviu uns passos e abriu os olhos, mas só se tratava do Petro, que voltava
pelo caminho de pedras do bazar, andando a grandes pernadas e murmurando
algo entre dentes. Umas semanas antes de sua chegada tinha passado por ali
um oficial de Alí, junto com seu enorme séquito, e tinham levado os melhores
cavalos do povoado. Mustafá tinha ouvido que hoje haviam devolvido por fim
os cavalos, e Petro tinha ido com um dos familiares dele para assegurar-se de
que os animais estariam preparados para sua viagem para o oeste. O gordo
marinheiro, como sempre, tinha tentado procurar alguma desculpa para evitar
aquele trabalho.
— Já os devolveram? — perguntou Varian ao Petro enquanto ele se
aproximava.
— Sim, valha-me Deus! Embora não em tão bom estado como quando nós
os trouxemos para esse maldito lugar.
— Esme me disse que devemos mandar ao Maliq. Necessita deles.
— Sim, claro. E se na metade do caminho para Fier ocorrer a ela que
alguém necessita desses cavalos, vai fazer-nos seguir o resto da viagem a pé;
mas se cair morto de cansaço pelo caminho, terei que me alegrar e tudo,

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porque desse modo irão se acabar todos os meus sofrimentos — disse Petro, e
soltando um sonoro gemido se sentou em um banco de pedra que havia ao
lado da porta.
— Não seja ridículo. Se a duras penas permitiu que seu jovem primo faça
hoje uma dura excursão pela montanha.
Petro ficou olhando com os olhos muito abertos.
— Não tem conhecimento. Essa garota não está bem da cabeça. O vejo
nos olhos. Habita nela um espírito diabólico, e estou seguro de que sobre ela
caiu alguma maldição. Tudo ia bem até que a encontramos em Durrës. E em
um instante, em menos de cinco minutos, caíram-nos em cima todo tipo de
calamidades; e desde então não deixaram que nos perseguir os problemas. No
rio Shkumbi, na Poshnja, e aqui mesmo, onde esteve gravemente doente.
Não estava bem da cabeça. Isso era… Não, mas o que fazia escutando as
sandices que dizia aquele gordo e supersticioso bêbado?
— No momento, eu tenho intenção de fazer o que quero fazer — falou
Varian. — O que me parece que também está de acordo com seus desejos:
que partamos da Albânia o antes possível.
— Mas eu não tenho nenhuma vontade de partir daqui com ela — se
queixou o marinheiro. — Deixe que vá por seu caminho e que leve com ela sua
maldição.
— Os homens que resgataram o Percival querem que a levemos até Corfú.
E isso é o mínimo que posso fazer por eles — respondeu Varian impaciente.
E depois? Percival tinha metido na cabeça levar a Esme a Inglaterra com
ele, o que era ridículo. Não podiam se apresentar com aquela moça ante sir
Gerald. Não valia a pena nem explicar-lhe disse Varian a si mesmo. Era
absurdo. Mustafá havia dito que Jason tinha amigos em Corfú. Eles cuidariam
da garota. Eles se encarregariam de resolver todo o assunto. Esme não podia
ficar na Albânia, isso era certo. Só o que a esperava ali era violência e se o
amante que a perseguia tiver êxito, degradação e escravidão.
— Mas ela não quer ir — disse Petro. — Ela quer seguir metendo-se em
problemas. Posso sentir. Vejo nos seus olhos. Seu primo fala, e ela sorri e
responde com delicadeza, mas em seus olhos… — Petro deixou escapar um
suspiro teatral.

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Discutir com aquele homem era uma perda de tempo, e Varian não sabia
por que estava se incomodando em fazê-lo. Depois de tudo, ele era o chefe ali.
— Não tem frio? — Perguntou-lhe Varian. — Acredito que um pouco de
exercício faria bem a você. Por que não começa a fazer a bagagem? Se já
temos os cavalos, não há razão para que fiquemos aqui nem um dia mais.
Varian se cobriu com a capa e, sem fazer caso do fulminante olhar que
lançou-lhe o marinheiro, nem a suas maldições entre dentes, pôs-se a andar
pelo caminho que conduzia ao bazar.

Varian não se aventurou nunca antes por nenhum lugar da Albânia sem
um intérprete. Entretanto, não estava de humor para aguentar as queixa
lacrimosas de Petro. Agimi e Mustafá se foram com o Percival, e Esme estava
encerrada em casa. Preparava algum tipo de beberagem para a Eleni, quem
tinha dores nas articulações. Em qualquer caso, estava bastante claro que a
última coisa que desejava a garota era a companhia de Varian.
No mercado encontrou um dos amigos do Mustafá, Victor, que em um
grego torpe convidou o lorde a tomar uma taça de café com ele, em um dos
locais que havia pelos arredores do bazar. Uns quantos aldeãos mais se uniram
a eles e se estabeleceu uma amável conversa que reteve a Varian no kafenío
mais de uma hora. Apesar de falar o grego tão mal como Víctor, aquilo era
suficiente para fazer-se entender e passaram um momento muito agradável.
Mas quando já tinha tomado a terceira taça daquela beberagem turca,
Varian começou a ficar zonzo. Depois de despedir-se amavelmente de seus
acompanhantes, decidiu tratar de acalmar os nervos dando um longo passeio.
Considerando a hora, aquela parte do centro do povoado estava
estranhamente tranquila. Além dele mesmo, só se via pela rua um dos carros
puxados por bois que, naqueles lugares, utilizavam para transportar madeira e
outros itens domésticos, e que já tinha visto antes pelas ruas de Berat.
Apesar de que o carro avançava a certa distância à frente dele, aquilo era
o mais perto que Varian tinha estado de um desses animais de carga; e o que
via ali adiante não dava absolutamente confiança: as rodas do carro,
insuficientemente presas em seus eixos se dobravam para fora como se
estivessem bêbadas, e foram dando tropeções sobre o caminho, ameaçando

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ficar atoladas em algum buraco da rua enlameada. Varian ficou tenso quando o
carro descreveu um giro em um estreitamento do caminho, ali onde ia dar a
um degrau que se abria para um pequeno escarpado sobre a borda do rio.
Entretanto, as precauções que estava tomando o condutor do veículo
conseguiram que o carro quase chegasse a parar enquanto fazia a curva.
Nesse momento, um magro e esfarrapado guri subiu escalando do rio e gritou
algo ao condutor, que respondeu com um tom alegre de voz. O menino jogou
duas bolsas de couro no carro e logo saltou ao lado delas sobre o reboque.
Com surpresa, Varian observou que aquele menino fazia uma toca no feno
que transportava a carreta e se escondia dentro. Soltando um juramento
Varian pôs-se a correr para o veículo.
Após um momento estava à altura da carreta. Agarrou-se à parte traseira
da mesma e saltou em cima. Mas, nesse instante, o carro bateu em um
barranco do caminho e Varian perdeu o equilíbrio e caiu em cima do feno.
Uma cabeça coberta com um gorro de lã apareceu entre o montão de feno,
justo diante dele, e o olhar de Varian viu uns olhos verdes que o observavam.
Ele ficou olhando zangado. Esme atirou um montão de palha no rosto e a
seguir tratou de abaixar-se a toda pressa pela parte traseira da carreta. Ele
esticou uma mão e conseguiu agarrá-la por uma perna e detê-la. Esme
cambaleou. Tratou de manter o equilíbrio movendo os braços de lado e do
outro, mas acabou caindo para trás e aterrissando em cima dele, antes que
Varian pudesse rolar a um lado para afastar-se dela.
Esme não devia pesar mais de cinqüenta quilos, mas sua cabeça se chocou
contra o ombro direito de Varian com uma força capaz de romper um osso —
disso esteve seguro ele ao sentir a dor que ricocheteou da nuca até o braço. —
Embora não tivesse tempo de reagir, porque ela ficou em seguida a lutar
tratando de libertar-se dele. Varian colocou o braço dolorido por cima, jogou-a
para o outro lado e acabou colocando-se em cima dela. Nesse momento, Esme
ficou quieta.
Variem ficou olhando fixamente. O gorro de lã tinha deslizado tampando-
lhe o rosto. Ela tirou de um tapa e o atirou fora da carreta.
Fazia um momento que o veículo acabava de deter-se, e o condutor estava
gritando algo. Mas Varian não fez conta.

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— Nós vamos descer aqui — disse Varian a ela. — Tenho que dar um
murro ou vem comigo sem opor resistência?
— Não me segure — suspirou ela quase sem fôlego. — Eu desço.
Varian afastou-se de cima dela, agarrou suas bolsas e as atirou ao
caminho.
Ela se levantou esfregando a cabeça, e com os olhos verdes abertos como
pratos em uma expressão de tristeza enquanto olhava a seu redor. Varian
saltou da carreta e ofereceu uma mão para que descesse . Esme ficou olhando
sua mão um momento, mas ao final desceu sem apoiar-se nela. Assim que
seus pés tocaram o chão, cambaleou e teve que agarrar-se à carreta para não
perder o equilíbrio.
Varian a tomou nos braços e a levou até uma pedra grande e branca que
havia ao lado do caminho, a uns quantos passos deles.
O condutor disse algo em albanês e logo riu. Esme se ruborizou.
Varian colocou a mão no bolso interior de sua jaqueta e tirou uma moeda.
Sem perder de vista Esme se aproximou do condutor da carreta.
— Faleminderit — disse ao condutor. — Desculpe pelo incômodo que
causei.
A seguir Varian ofereceu a moeda. O albanês duvidou durante um instante,
mas logo inclinou a cabeça e estalou a língua.
— Oh, sim, por favor! — Insistiu Varian. — Para que tome um rakí.
O condutor olhou a Varian, logo a Esme, e ao final sorrindo e dando de
ombros tomou a moeda que oferecia o inglês. Depois de soltar um par de
incompreensíveis frases mais, colocou-se em marcha.
Varian agarrou as bolsas de viagem do caminho e retornou ao lado de
Esme. aproximou-se da pedra e deixou as bolsas a seus pés.
Doía-lhe todo o corpo de raiva. Sentia uma pressão no peito e um zumbido
nos ouvidos que faziam a tranquila paisagem que os rodeava parecesse um
mar em plena tormenta. Ficou olhando a Esme em silêncio.
Sob a luz plúmbea da tarde, seu cabelo soltava brilhantes faíscas
acobreadas. Tinha o cabelo completamente emaranhado e várias mechas
frisadas caíam sobre seu rosto como se fossem enredados brincos. Tornou a
pôr suas velhas roupas de homem e tinha aspecto de mendigo.

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Se Varian ficasse uns minutos mais no kafenío, ela teria conseguido


escapar. E talvez devesse ter deixado escapar, por todos os demônios! Se é
que era isso o que ela queria. No fim das contas, ele não era o responsável por
aquela garota. E não queria ser o responsável por ninguém. Tinham pago para
que cuidasse do Percival, mas nem sequer tinha sido capaz de fazê-lo de
maneira adequada. Quem era ele para andar vigiando a ela? O que tinha ele a
ver com ela?
Varian olhou a seu redor, para o rio cujas águas brilhavam sob a luz do
crepúsculo, para o povoado de casas amontoadas que se apinhavam na outra
borda. Para as colinas que encerravam o pequeno vale. No Berat, mesmo da
cidade, não se podia ver nada do que se estendia além das montanhas.
E Varian não queria ver, nem queria pensar no que se estendia do outro
lado, além deles. Só o que queria era estar longe dali no dia seguinte mesmo.
Mas não podia. Por mais rápido que partisse, Esme sempre o perseguiria. Deu
a volta para enfrentar-se a ela.
— O que é o que acontece? — perguntou-lhe. — Aonde demônios pensava
que ia? Acreditava que fosse chegar muito longe, uma garota só e sem um
centavo? Que fosse escapar tão longe antes que o que quer ser seu amante a
encontre, ou antes, de que encontre com outros tipos muito menos amáveis
que ele?
— Está se metendo em uma boa confusão, Varian Shenit Giergi — disse
ela. — E se forçar-me a seguir com você será pior ainda. Não posso ir a Corfú.
— Esme elevou a cabeça e ficou olhando fixamente, com seus verdes olhos
inflamados de raiva. — Dentre todos você deveria saber melhor que ninguém.
É um homem do mundo. Conhece o mundo. E me viu. Conhece-me muito
bem.
Ele apertou os punhos. Tinha vontade de lhe dar uns açoites. Fazia só um
momento a tinha ameaçado com um murro. Já não recordava quando tinha
sido a última vez que havia se sentido tão furioso. Ou tão desesperadamente
furioso. Sabia que aquilo era uma loucura. Sabia que estava se comportando
como um bruto, mas não podia controlar-se. Embora não deixasse de dizer a si
mesmo que tinha que acalmar-se e pensar. Mas a fúria que sentia se
amontoava na garganta e quase não o deixava respirar.

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— Pois vá, maldita seja! — gritou ele. — Vá pro inferno. Deixa que a
raptem ou a assassinem. O que me importa o que acontecer, pequena
lunática? Todas as pessoas que se preocupam com você, pessoas mais sabias e
velhas que você, estão dispostas a remover o céu e a terra para que vá a
Corfú. Mas você crê que sabe o que é o melhor para você, não é assim? Não se
preocupa em romper o coração do Percival. Não se importa que umas poucas
semanas viajando com você vão ser as únicas alegrias que poderá recordar
durante os próximos dez anos. Não é mais que um menino de doze anos que
não conheceu nada melhor. E outros não são mais que um punhado de tipos
estúpidos, irracionais, insensatos, cegos, porque só desejamos que esteja a
salvo.
— Me escute — disse ela levantando uma mão. — Dê-me a mão, Varian,
sejamos amigos e me escute.
Ele tinha medo de tocá-la. Sua raiva podia desaparecer e tinha medo de
descobrir o que se escondia atrás daquela raiva. Deu a volta e ficou olhando
para a distância, sem ver nada.
— Por favor, Varian, quer me destroçar a vida sem me dar uma
oportunidade para que me explique?
Varian podia suportar seus aborrecimentos e suas recriminações, assim
como o açoite de ira de que ela era capaz. Mas aquela súplica muito tranquila
não podia suportar. A quebra de onda de fúria que sentia começou a decair e
Varian amaldiçoou a si mesmo por isso.
Ela tinha estado cuidando dele, atendendo-o com paciência, fazendo com
que sua viagem fosse o mais cômoda possível. E em troca, ele tinha tratado de
interpor-se em seu caminho. Tinha sujado sua inocente boca com seus beijos
corrompidos e tinha sujado sua carne inocente com suas mãos imundas. E,
entretanto, continuava desejando-a, agora mais que nunca. Tinha evitado que
escapasse não para proteger a ela, mas sim por sua própria luxúria. Em sua
mente retorcida, acreditava que Esme pertencia a ele. Ele necessitava dela. E
por isso, ela devia ficar a seu lado.
Varian deixou escapar um suspiro de fracasso e voltou-se para ela. Tomou
a pequena mão de Esme entre as suas e ficou de cócoras aos pés da garota.
— Escuto-a — disse ele.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Meu pai morreu — disse ela com um tom de voz neutro. — Isso me
deixa sozinha com o pai do Percival e minha avó como únicos parentes
ingleses. E eles não me querem. Poderiam tolerar-me para fazer um favor ao
Jason, mas não vão me querer a seu lado. Somente aceitariam como filha uma
refinada jovem dama, nem sequer Jason poderia ter me convertido nisso.
Pensa que me equivoco, Varian? — perguntou ela com calma. — Me diga a
verdade.
Varian queria mentir-lhe. Mas não podia. Não enquanto ela o escrutinava
com aqueles verdes olhos de olhar resolvido.
— Não.
— É possível que alguém, até meu jovem primo, pudesse persuadi-los
para que se comportassem bem comigo, por caridade. Mas isso, que já é
bastante ruim em qualquer parte, na Inglaterra, e sendo estrangeira… Bom,
não acredito que pudesse suportá-lo. Possivelmente seja minha culpa, mas sou
muito orgulhosa.
— Sim. Orgulhosa.
— Aqui, em meu próprio país, não tenho mais familiares que minha avó,
que vive em Girokastro. Poderia ir viver com ela, mas é muito anciã, e quando
ela morrer ficarei sem casa e sem família. Converter-me-ei então em
propriedade de Alí, e servirei para satisfazer seus desejos. Assim como vê,
minha única esperança é me converter em esposa.
— Oh, Deus!
Varian sabia o que era e o que viria a seguir. Ele mesmo tinha estado
dando voltas naquele assunto, procurando alguma solução. E sabia qual era.
Sabia que só havia uma resposta. Algo que o punha doente até machucar seu
coração.
— Vou com o Ismal — disse ela.
— Oh, querida! — disse ele com voz tensa, — com o homem que matou
seu pai?
Ela estalou a língua, produzindo o típico som que em albanês significava
de uma vez, com um só gesto, negar algo e lhe tirar importância.
— Nem sequer Mustafá crê. Estive pensando muito, e cheguei à conclusão
de que tampouco eu posso acreditar. Já disse a você algo do que tinha

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

pensado em Poshnja. Isso não tem sentido, nem para mim nem para ninguém.
Só quem culpa o Ismal é Bajo, mas estou segura de que Bajo diria qualquer
coisa para me convencer a sair do país. Não pensa em nada mais que no
desejo de meu pai de que vá a Inglaterra. Nem sequer se dá conta de como
muda todo o fato de que Jason tenha morrido. E o mesmo acontece com meu
pobre primo. Quer cumprir o último desejo de sua mãe; um desejo muito
amável, se Jason vivesse, ou se ao menos ela vivesse. Mas os dois se foram. E
com eles se foram seus desejos. São impossíveis.
Varian inclinou a cabeça. Queria discutir, mas só o que podia lhe oferecer
eram doces palavras tranquilizadoras para enterrar a amarga verdade. Se a
levasse com ele para a Inglaterra, a obrigaria a viver de uma maneira
desventurada. Viver no exílio já é bastante duro mesmo nas melhores
circunstâncias. Mas viver no exílio entre pessoas que a desprezam, ou que não
sentem nada mais que pena, em um mundo ao qual nunca poderá pertencer?
Seu espírito não o suportaria. E Esme era uma pessoa valente. O perigo físico
não lhe dava medo. Mas certamente a vida que a esperava na Inglaterra
acabaria por matá-la, e isso ela sabia.
Varian notou que afastava uma mecha de cabelo se sua testa, como tinha
feito tantas vezes quando estava doente. E Varian sempre tinha tido vontades
de beijar aquela mão em sinal de gratidão, porque aquela maneira mágica de
tocar sua testa dissipava a dor e os problemas de sua mente. Mas agora fez
com que a pele se queimasse como se tivesse salpicado com um ácido, e
aquele veneno se introduziu nas veias formando um ardente rio de ciúmes,
medo e decepção.
Viu um jovem estrangeiro de cabelo loiro com olhos azuis como diamantes
que a quis tanto para desejar raptá-la…, e a mão dela afastando uma mecha
de seus dourados cabelos…, sua voz, suave e doce, falando com seu jovem
príncipe das montanhas brancas, dos bosques de abetos e dos rios
tumultuosos…, seu corpo entregue, movendo-se com paixão entre os braços de
um jovem homem de sua própria cultura, que murmuraria palavras de amor
em sua mesma língua.
Tinha razão, não? Para Varian aquela visão era repugnante, mas era a
única esperança de felicidade para Esme. Ele a queria. Necessitava dela. Isso

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era tudo. Mas não podia oferecer nada mais que promessas, e essas
promessas seriam mentiras, porque sentisse o que sentisse, sempre seria algo
passageiro. Nada dura, e menos que nada o desejo.
— Vai me ajudar? — perguntou-lhe ela. — Me deixará partir?
— Sim — disse Varian elevando por fim a cabeça. — Não.

Capítulo 13

Ficaram à beira do caminho discutindo durante mais de uma hora. Sim,


Varian poderia ajudá-la. Não, sem dúvida não ia deixar ir sozinha a Tepelena.
Obrigando-se a não perder a calma, Esme tentou explicar que era seguro
e razoável seu plano; esteve pensando com muito cuidado durante toda a
viagem; sabia o que estava fazendo.
Mas não deu nenhum resultado. Ele não queria escutá-la. Se ela não
queria voltar por sua própria vontade à casa do Mustafá, disse sua excelência
com muita calma, ele a levaria a força nos braços, mediante ameaça se fosse
necessário.
Envolta em um silêncio glacial, Esme retornou com ele para casa, e logo
entrou na casa de seu primo. Encontrou Percival estudando as pedras que
tinha recolhido aquela mesma manhã.
Não querendo arruinar a excitação que sentia o menino ante seus novos
descobrimentos, Esme inspecionou com ele atentamente o montão de pedras.
— Seria melhor que alugássemos um par de mulas — disse ela. — Não vai
poder colocar tudo isto em sua mochila. Com as pedras que recolheu em Berat
poderia construir um castelo.
— São muito pequenas para utilizá-las na construção — respondeu ele com
calma. — Mas penso fazer com elas uma exposição organizada, com notas
explicativas de cada espécime. Possivelmente na biblioteca de nossa casa de
campo. É uma propriedade que pertencia a meu avô — explicou ele, — ou
seja, que agora é de papai; mas papai odeia aquele lugar, e deixou que viva ali
a avó. Não pode vendê-la, sabe? Porque se trata de uma propriedade
vinculada.
E nesse momento Percival principiou uma dissertação sobre os direitos de

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primogenitura. Só depois de muito perseverar Esme conseguiu reconduzir de


novo a conversa para o tema de seu plano para as pedras.
Quando tivesse partido dali ela pensaria em seu jovem primo. Naquele
momento não tinha vontade de ficar a refletir a respeito de sua existência
solitária. Queria lembrar dele feliz, classificando sua coleção de pedras e
redigindo suas longas notas a respeito. Com o tempo, o menino se converteria
em um homem, e algum dia teria meninos a seu cargo. E a esses meninos
mostraria sua coleção de pedras da Albânia, e falaria de suas aventuras, e do
Leão Vermelho e da prima que tanto se parecia com ele. Percival não ia
esquecê-la. E quando se convertesse em um homem, certamente já a teria
perdoado por tê-lo abandonado. Não, mais que isso, certamente teria
entendido a razão pela qual o tinha abandonado, e no fundo de seu coração
agradeceria que o tivesse feito.
— Não crê que uma biblioteca seria o lugar perfeito para estas pedras? —
estava perguntando ele. — Porque as pedras são como os livros. Estão aí para
nos falar da história. Não, de fato são partes da história. É obvio que terei que
guardá-las em caixas até que cresça, porque a avó não quer que…
— Chis — disse Esme segurando sua mão, — vem alguém.
— Não ouvi nada.
Ela tinha notado uns minutos antes, embora realmente não tinha sido
consciente disso, porque tinha sentido só uma vaga sensação, por trás da voz
do Percival e de seus próprios e atormentados pensamentos. Mas agora podia
ouvi-lo claramente: uns passos firmes e o murmúrio de umas vozes.
— Deus bendito! — disse Percival. — Que ouvido tão fino deve ter para ter
percebido. Agora mesmo, igual em Durrës, ouviu esses homens que se
aproximam muito antes que eu.
Nesse momento os olhos do menino se abriram como pratos e Esme pôde
ver um brilho de pânico neles.
Agora podia reconhecer perfeitamente as vozes. Lorde Edenmont,
intranquilo e irritado, embora não pudesse entender o que estava dizendo. No
momento se elevou outra voz por cima do resto, falando com um tom
eloquente.
Percival começou a ficar de pé. Esme o segurou pelo braço e ele voltou a

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sentar-se.
— O que está acontecendo? — sussurrou ele. — Acontece algo ruim, não é
assim?
Certamente tinha notado a tensão refletida em seu semblante, da mesma
maneira que Esme tinha notado que havia algum problema. Não é que
necessitasse uma percepção especialmente desenvolvida para isso. A
autoridade tinha um som especial, uma arrogância que podia ouvir-se nos
passos de um dos homens que havia ao outro lado da porta, assim como no
tom de sua voz. Tinha-o notado aproximar-se e tinha podido ouvi-lo
claramente no momento em que tinha entrado na casa. E só havia ali um tipo
de autoridade que se expressasse naqueles termos. E aquela voz não fez mais
que confirmar suas suspeitas e dar um nome: Fejzi, um dos secretários do Alí.
— Deve ter acontecido algo errado — disse ela, expressando seus
pensamentos em voz alta, e notando que o menino se aproximava de seu lado,
enquanto tratava de distinguir o que diziam as vozes. — Não havia nenhuma
razão para que viessem aqui, não ao menos com tantos homens. Pelo menos
são uma dúzia… Não, muitos mais, talvez uns vinte. São homens do Alí. —
calou-se um momento enquanto outra das vozes ficava a falar em um tom
obsequioso.
A seu lado, Esme ouviu um estranho som estrangulado. Deu a volta para
seu primo e se deu conta de que ele estava pálido.
— Oh, querida! — Dizia o menino segurando sua mão com força. — Oh,
querida…, Oh, querida!
Ficou olhando com olhos frágeis.
— Oh, querida! É minha culpa. É ele.
— Quem? Risto? — perguntou ela, pois essa era a nova voz que acabava
de ouvir. Um dos homens do Alí, mas também um dos seguidores do Ismal. —
Conhece-o?
A mão que se agarrava à sua ficou fria e começava a suar.
— Ele nunca me viu — respondeu o menino com voz tremente. — Estou
seguro disso. Oh, céus!
— Ver você quando? O que aconteceu? Não tem por que temer. Não vão
lhe fazer mal. — Esme soltou a mão e se aproximou dele para colocar um

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braço por cima dos ombros. O menino estava tremendo. — Venha, Percival.
Você é um moço valente. Não vai ter medo de um punhado de estúpidos
cortesãos.
— Sim, tenho medo. Acredito que… OH, não! Dá-me muita vergonha, mas
acredito que vou ficar doente.
Após um instante, ela teve que segurá-lo para que não caísse no chão.
Logo o ajudou a avançar para a porta e o fez sair pelo estreito corredor que
dava ao pátio, situado na parte traseira da moradia. Enquanto baixavam as
escadas pôde comprovar que não tinha soldados rodeando a casa. Fosse qual
fosse à razão que os tinha levado até ali, parecia que não tinham achado
necessário que os soldados os acompanhassem. Aquilo era um pouco mais
tranquilizador.
Mas Percival não parecia estar muito mais tranquilo, mas sim, estava à
beira de um ataque de nervos. Mesmo não se tratando de um menino
histérico. Tinha sofrido um seqüestro e o tinha definido como uma aventura
excitante. Nunca o tinha ouvido gritar em meio da noite nem despertar por ter
terríveis pesadelos. Nunca parecia estar ansioso, incômodo ou tenso. Esme
estava segura de que tinha o mesmo tipo de caráter estóico que ela. De modo
que se agora estava assustado, certamente teria boas razões para estar.
Mas, Pelo Alá! Nem sequer naquele estado podia esquecer de suas pedras.
Tinha agarrado sua mochila de couro enquanto ela o arrastava para fora da
habitação. Agora apertava a bolsa contra o peito, enquanto se esmagava
contra a parede do pátio e respirava de maneira entrecortada.
— Oh, graças a Deus! — Conseguiu dizer quando seu peito se acalmou
afinal. — Teria sido mortificante perder os estribos diante de uma garota.
— Percival, a qualquer momento vão mandar nos chamar — disse ela sem
rodeios. — Tem algo que quer me dizer? O que é o que acontece?
Ele mordeu os lábios e baixou o olhar até seus pés, logo deu uma olhada
às escadas que havia a sua direita e a seguir à porta abobadada que havia
diante deles. Logo ao caminho de pedra que ficava a sua esquerda e,
finalmente, olhou a ela de novo. — Parece que cometi um terrível engano —
disse ele. — Eu… Oh! Não tem nenhum sentido lamentar agora, não? Sempre o
lamento depois, mas já é muito tarde, não é assim? Oh! Oxalá papai me

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tivesse mandado ao internato da Índia! Como ameaçava fazendo. Eu nunca


acreditei que aquilo fosse uma ideia muito sensata, e mamãe dizia que o clima
dali me mataria, mas por uma vez papai teria feito o correto. Exceto porque
acaso a Índia não está o bastante longe, e me atreveria a dizer que as escolas
dali devem ser mais ou menos como todas as demais. Mas é possível que ali
estejam as únicas escolas que me podem aguentar. Estando tão longe, já vê,
não teria escutado nada. Asseguro que o porco era para um experimento
científico…, e como ia saber que não se deve colocar uma vela acesa tão perto
de…
— Percival, está delirando — cortou Esme de repente. — Cale-se um
momento.
Ele mordeu os lábios e agarrou mais forte a bolsa de couro com as pedras,
aparentemente inconsciente de que seu conteúdo poderia deixar marcas e
arranhões.
— Está fazendo mal a si mesmo —advertiu ela. — Deixa essa maldita bolsa
no chão.
Ela esticou a mão para tirar bolsa, mas ele se afastou tão depressa de seu
lado que Esme perdeu o equilíbrio. Tratando de ajudá-la a não cair Percival
tropeçou e acabaram os dois no chão, feitos um novelo de pernas e braços; a
bolsa escorregou das mãos e o conteúdo se espalhou a seu redor.
Percival ficou imediatamente de joelhos e começou a recolher suas pedras.
Amaldiçoando entre dentes, Esme se sentou no chão para erguer-se. Gritou e
soltou um palavrão quando notou que algo duro e anguloso cravou no seu
traseiro. Virou-se de lado para agarrar aquele maldito objeto. E quando o teve
nas mãos ficou calada de repente, observando-o perplexa.
Uma fina cabeça coroada sobressaía de um pacote de papel. Percival
deixou escapar um grave e angustiado suspiro, mas ficou de joelhos onde
estava, com seus verdes olhos fixos no objeto meio envolto que ela sustentava
entre as mãos. Esme desembrulhou rapidamente o resto do objeto.
— É uma pedra realmente estranha — disse ela.
Percival se inclinou para trás e se sentou sobre os calcanhares.
Esme ficou observando com interesse a pequena figura real.
— Tem todo o aspecto de ser uma peça de xadrez.

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— Por favor —pediu ele com voz de causar pena. — Por favor, não o diga a
ninguém.
— Enganou a lorde Edenmont — disse. — Contou que tinha dado a peça ao
Jason, mas a tinha roubado você.
— Eu não… O que passou é…
— Sabia que ele necessitava de dinheiro.
— Isso sabe todo mundo — respondeu seu primo à defensiva. — Papai o
subornou para que me levasse a Veneza.
— E você o enganou para que, em lugar disso, o trouxesse para a Albânia.
Por quê?
Percival se moveu inquieto, olhando nervoso a seu redor.
— Não posso contar isso. Além disso, sei que nunca me acreditaria.
— Muito bem — disse Esme ficando de pé. — Então terei que dar a lorde
Edenmont a peça de xadrez que tanto deseja possuir.

A casa estava cheia de homens de Alí. Um deles era Risto, instrumento do


diabólico Ismal. Não era preciso ser um gênio para dar-se conta de que Ismal
tinha algo que ver com a chegada daqueles homens. Por isso se poderia supor
razoavelmente que Ismal tinha interceptado a mensagem de Bajo, e que agora
sabia que Percival Brentmor tinha tentado traí-lo.
Assim que aquela ideia lhe passou pela cabeça, convencido de que Risto
tinha vindo por ele, Percival começou a sentir um medo atroz. Só teria
necessitado pensar com calma uns minutos para dar-se conta de seu engano.
Ismal era muito esperto e matreiro para assassinar um menino inglês de doze
anos, especialmente quando havia uma maneira muito mais singela de manter
ao menino sob controle.
A prima Esme. E tudo o que tinha que fazer Ismal era fazer com que ela
fosse a Tepelena. Então Percival não ia se atrever a pronunciar nenhuma só
palavra contra ele. E uma vez que Ismal a tivesse entre suas mãos, não ia
deixá-la escapar. Nunca.
O pior era que a prima ia dar saltos de alegria ante a possibilidade de ir a
Tepelena. Percival sabia que ela não queria ir a Inglaterra. De fato, estava
certo, e sabia que tinha tentado escapar. Da janela a tinha visto retornar a

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casa com lorde Edenmont, os dois furiosos e com aspecto de terem caído
violentamente no barro.
Agora se propunha a passar pelos nariz de sua excelência a rainha negra.
E com Risto ali para que visse.
Percival ficou de pé.
— Eu a roubei — mentiu ele. — Não tinha outra opção. O tio Jason me
falou de uma conspiração para derrubar o Alí Pachá. Faz umas semanas, no
castelo do Barí, ouvi uma conversação de Risto com outro homem, em que
ficavam de acordo para enviar um barco de armas inglesas de contrabando a
Albânia, para um homem chamado Ismal. Enganei a sua excelência para que
viéssemos aqui com a intenção de avisar ao tio Jason.
Sem fazer caso da patente incredulidade que podia ler no rosto dela,
Percival seguiu explicando como ele tinha dado a Bajo a mensagem secreta e o
que acabava de deduzir agora: que Ismal tinha interceptado aquela mensagem
e tinha enviado seus homens para que levassem a Esme a Tepelena, onde a
utilizaria como refém.
— Espiões. Conspiração. — Esme ficou olhando de maneira compassiva. —
Tem muita imaginação. Ouve uns tipos falando de rifles e de pistolas, algo que
os homens costumam fazer muito frequentemente, e já crê que descobriu uma
grande conspiração. Não é nada mau ser imaginativo, primo. Pode ser que
algum dia chegue a tornar-se um grande poeta.
— Não é imaginação — protestou Percival. — Eu ouvi. E ouvi a voz de
Risto. Reconheceria em qualquer parte. Seu italiano era terrível, e seu inglês
ainda pior.
— Ouviu algo e sua imaginação fértil fez o resto — disse ela. — Mas isso
aconteceu faz muito tempo. E agora não sabe distinguir entre o que realmente
escutou e o que imaginou, e por isso está assustado. Ismal é muito inteligente
e cauteloso para embarcar em uma rebelião sem possibilidade de êxito. E
sabe que Alí é muito preparado. Durante anos tentaram derrubar o visir. E
todos fracassaram. E sempre pagaram com a vida, junto com todos seus
familiares e amigos.
Ela devolveu a peça de xadrez.
— Não vou dizer a sua excelência o que fez. Não devo a ele nenhuma

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lealdade. Além disso, é muito mais divertido ver a maneira tão inteligente
como o enganou. Agora vejo que tola fui enfrentando a ele honesta e
abertamente. Deveria aprender com você essa lição.
Percival ficou calado durante um momento, como ofendido, enquanto ela
subia as escadas. Então, assim que se deu conta de por que ela tinha tanta
pressa em voltar para a casa, sentiu-se de novo invadido pelo pânico. Subiu a
toda pressa as escadas atrás dela, pedindo que parasse, mas Esme não fez
caso e seguiu avançando. Logo cruzou o corredor e se dirigiu diretamente à
porta depois da qual a esperava o desastre.
Quando estava a ponto de alcançá-la, Esme já estava abrindo a porta.
Sem deter-se para pensar, Percival se lançou atrás dela… e deu de encontro
com lorde Edenmont.
Enquanto se inclinava para trás resmungando uma desculpa, Percival viu
que sua excelência tinha segurado a Esme pelo braço. O semblante dela
mostrava uma expressão especialmente pouco amável. Mas sua excelência não
percebeu: ele mesmo estava dirigindo ao Percival um olhar muito pouco
amistoso.
— Segure a sua prima — disse ao Percival em voz baixa e definitivamente
pouco amistosa — e a coloque em seu quarto, Percival. Agora mesmo.
— É obvio, senhor. Agora mesmo — disse Percival oferecendo cortesmente
o braço a sua prima. — Prima Esme?
Ela estalou a língua.
O coração de Percival acelerou. A sala tinha ficado em silêncio e todos os
estavam olhando para eles. E todos incluía uma vintena de homens, alguns
deles tão robustos como Bajo.
— Lorde Edenmont, se me permitir. — Um homem baixo e gordo que
levava na cabeça um sujo turbante amarelo se adiantou dirigindo-se a Varian.
— Eu vim aqui pela filha do Leão Vermelho. Meu senhor quer que faça chegar a
ela uma mensagem, pessoalmente.
Lorde Edenmont murmurou algo entre dentes. De onde estava Percival não
podia entender o que havia dito, mas podia imaginar. Estava completamente
exasperado com Esme, embora agora começasse a sentir-se assustado.
Soltando o braço de Esme, lorde Edenmont disse:

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— A senhorita Brentmor pode ficar. Entretanto, o senhor Brentmor terá


que voltar para seu quarto. Agimi, Mati, vão com ele e assegurem-se de que
fique ali.
Um verdadeiro herói deveria ter ficado no campo de batalha. Percival
queria ser um verdadeiro herói, mas seu estômago não parecia estar de
acordo com ele. Notou que Risto ficava olhando, e uma terrível sensação de
debilidade subiu pelo estômago. Percival cruzou a porta correndo e se encerrou
em seu quarto, seguido de perto por Agimi e por Mati.
Uma vez estando a salvo, deitou-se na cama e tratou de acalmar-se
respirando lenta e pausadamente. Levou um bom tempo até conseguir ter de
novo o estômago em seu lugar. Não podia deixar de tremer. Tinha cometido
um grave engano ao contar à prima Esme o que sabia. Ela não tinha
acreditado. E possivelmente ia deixar lorde Edenmont tão zangado que no final
acabaria preferindo deixar que aqueles homens a levassem dali. Para sempre.
Percival ficou olhando com cara feia para o teto. Tudo tinha sido culpa
dele. Não devia ter dado aquela mensagem a Bajo. Teria que ter pensado
antes na segurança de sua prima. Agora já era muito tarde.
Desceu da cama e ficou de joelhos, fechou os olhos com força e ficou a
rezar com tanta convicção como pôde.
Mas antes já tinha rezado por mamãe, não é verdade? e pelo tio Jason, e
Deus não o tinha escutado. Deus não o tinha escutado nunca antes, nenhuma
só vez. Por que ia começar a fazê-lo agora?
Percival ficou de novo de pé e começou a esmurrar com todas suas forças
a porta do dormitório.

Varian abriu a porta de repente e entrou no dormitório de Percival. Tinha


ouvido os golpes e tinha enviado a um de seus homens para que acalmasse o
menino, mas ele não queria ser tranquilizado. Percival tinha ameaçado golpear
a cabeça contra a parede se não o deixassem falar com lorde Edenmont.
— Aqui estou — disse Varian secamente. — A que demônios vem esta
manha de criança?
— Não pode deixar que a levem, senhor — disse Percival esfregando os
nódulos avermelhados. — Não importa quão zangado esteja. Não pode deixá-

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la partir.
— A verdade é que ela diz que devo deixá-la e você me diz que não. Acaso
parece a você que sou Salomão, Percival?
Varian se aproximou da estreita janela, de onde se vislumbrava uma
pequena porção de céu negro por cima dos vermelhos telhados das casas.
— Sente-se, disse. — Tenho que contar algo. O que quer é também o que
eu mesmo desejo com todas as minhas forças. Mas na vida há coisas que
alguém deve aprender a aceitar, embora não goste.
— Mas, senhor…
— Sente-se. E me escute.
Variem ficou olhando fixamente. Percival se aproximou apressadamente do
sofá de madeira e se sentou.
Com algumas frases lacônicas, Varian fez um resumo de como via Esme
sua situação e do que ela sentia que tinha que fazer a respeito.
— Sim, claro, é obvio — disse Percival impaciente. — Tudo isso é bastante
óbvio. Naturalmente, entendo que pense assim. Mas ela é uma garota.
— E pelo que acredito mais ardilosa que você. O que tem isso a ver com o
que estamos falando?
— Bom, que está equivocada. Não quero dizer que não seja inteligente.
Claro que é. Mas é uma garota, já sabe, e é natural que pense no matrimônio
como a única solução. Além disso, é um delicado membro do sexo frágil…
— Delicado?
Percival ficou olhando a Varian muito sério.
— A constituição feminina é delicada, senhor, e tem que recordar que
muito recentemente sofreu algumas emoções fortes para sua tenra
suscetibilidade.
— Tenra suscetibilidade? Suas pedras têm muita mais sensibilidade. Não
há nela nada de delicadeza…, maldito seja.
Varian se voltou para a janela.
— Eu sei que tem uma aparência forte — disse Percival. — E sobretudo
muito racional. Mas asseguro que não o é. Quando chegaram esses homens,
esteve a ponto de desmaiar, e me vi obrigado à tira-la do quarto e levá-la ao
pátio para que tomasse um pouco de ar fresco, e para que caminhasse um

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momento até relaxar. Então ficou quase histérica…


— Percival.
— De fato, é normal que fique assim, senhor, porque não fazia mais que
falar de maldições e de coisas do mesmo estilo. Diz que é uma maldição para
todo mundo. E que todas as pessoas que ama acabam sendo assassinadas; e
que se ficar a meu lado acabará acontecendo o mesmo. Segundo ela, o melhor
que pode fazer é casar-se com seu pior inimigo, porque dessa maneira poderá
dominá-lo sem sequer ter que mover um dedo. Logo ficou a rir como uma
possessa e pôs-se a correr para a casa. De maneira que naturalmente me vi
obrigado a correr atrás dela. Tinha medo de que fizesse mal a si mesma. Era
óbvio que não estava em seu juízo.
Não está bem da cabeça, recordou Varian.
Varian deu meia volta com rapidez para enfrentar ao menino, que
aguentou serenamente seu receoso escrutínio.
— Quer que acredite que sua prima é candidata a que a coloquem em um
manicômio?
— Oh, não, senhor! Não queria insinuar que esteja louca. Os sintomas
deveriam ser muito mais óbvios, parece-me. Até você teria percebido. Só
queria dizer que a cadeia de acontecimentos das últimas semanas foi muito
para ela, e que sendo uma fêmea, e, portanto delicada, não é capaz de pensar
logicamente neste momento.
Varian deu um salto. A verdade era que ele mesmo tinha contribuído para
desequilibrá-la, não é assim? Apesar de parecer tranquila, mesmo depois de
obrigá-la a descer da carreta e a ameaçá-la a seguir da maneira mais odiosa
que se pudesse imaginar. Ele tinha esperado que ela respondesse com gritos,
insultos e acusações, que tivesse feito pedaços com sua afiada língua. Mas não
o tinha feito. E não tinha atuado de maneira normal, não é verdade? Isso não
era normal em Esme. Muito tranquila muito fria e calma. Teria decidido por
essa atitude porque tinha causado um abismo de sua própria mente? Por isso
tinha estado tão fria e distante com ele na última e interminável semana?
Ficou olhando Percival de maneira desafiante.
— Sabe uma coisa? — disse Varian, — estou convencido que você e sua
prima irão me deixar sem um pingo de prudência.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Percival inclinou a cabeça.


— Lamento-o terrivelmente, senhor.
— Deixei-me convencer por você para vir a esse país de loucos e me deixei
convencer por ela um montão de vezes para atuar estupidamente contra meu
bom senso. Hoje fiz uma promessa que, com o que acaba de comentar, não
vou poder manter. Prometi que a ajudaria para que ficasse com sua gente. Eu
prometi — repetiu com aborrecimento.
— Sim, mas isso não conta, não é assim? Se ela estava mentindo, não
conta, verdade? Bom, não quero dizer que ela tivesse a intenção de mentir. É
obvio. O certo é que nem sequer pudesse dar-se conta de que estava
mentindo. Quero dizer que poderia considerá-la como uma amnésica, não é?
Por dizê-lo de algum modo. Quando tiver se recuperado da comoção sofrida,
possivelmente não recordará nada do que aconteceu.
— As coisas não são tão simples, moço — disse Varian deixando escapar
um suspiro. — Na sala do lado há vinte e dois homens enviados pelo Alí Pachá
para escoltá-la até a Tepelena.

Esme deu uma implacável cotovelada no estômago de Petro para que se


afastasse enquanto entrava no dormitório de lorde Edenmont.
— Você ficou louco? — perguntou-lhe ela. — Não pode levar o menino a
Tepelena.
Sua excelência se deteve no ato de tirar uma das botas.
— Ah! Deveria ter imaginado — disse ele. — Tenho que agradecer que
tenha mantido a boca fechada diante dos outros.
Varian olhou além dela, para a porta aberta depois da qual Petro estava se
queixando, enquanto apertava o estômago com as mãos.
— Já pode ir, Petro — disse ele, — e agradeça não ter ocorrido a ela
apontar para suas partes pudentas.
A porta se fechou de um golpe deixando fora uma rajada de maldições
turcas.
Varian acabou de tirar a outra bota e a colocou ao lado de sua
companheira. Logo ficou observando Esme com atenção, o que fez com que ela
sentisse um incômodo calor no rosto.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Foi só um detalhe que tenha se trocado para o jantar — murmurou ele.


— Embora me atreveria a assegurar que decidiu que já os tinha assustado o
suficiente com sua primeira aparição em cena. Vinte e dois homens robustos a
ponto de desmaiar ao vê-la entrar na sala.
Esme estremeceu. Não tinha parado pra pensar no espetáculo que tinha
dado, com o cabelo cheio de palha e sujeira, e sua esquálida figura perdida
dentro das roupas de pastor de cabras que vestia. Tirou o vestido vermelho
que usou em Poshnja e tornou a pôr suas antigas roupas de homem. Percival
não tinha dito nada, de modo que ela tinha esquecido a desastrosa aparência
que tinha, até que encontrou-se com os homens do Alí e viu suas bocas
abertas pela surpresa.
— Não vim para escutar suas estúpidas piadas — disse ela. — Vim para
ver se tem febre, porque estou segura de que deve estar delirando para aceitar
o convite de Alí. Não pode levar meu primo para lá.
— Não, querida. É a você que vou levar, como tinha prometido. Percival
não é mais que um acompanhante necessário. Não posso deixá-lo aqui
sozinho.
— Disse que não podia me deixar ir sozinha. Mas não vou sozinha, terei
vinte e dois homens de escolta.
— Tinha, agora tem trinta — disse ele. — Os homens do Alí, Percival, eu
mesmo, Agimi, Mati e o resto de nossa escolta. Bom, isso se decidirem que
querem nos acompanhar. Porque deixarei que eles decidam.
A calma que ele aparentava era desencorajadora. Esme tentou outro
truque.
— Varian, por favor…
— Não trate de me convencer com mimos —interrompeu ele com aquele
mesmo tom de voz exasperadamente calmo. — Já tive suficiente estilo
Brentmor por um dia, obrigado. Agora vá para a cama. Amanhã nos poremos a
caminho muito cedo.
Ela sentiu vontade de golpeá-lo. Desejou bater contra a parede a sua dura
cabeça inglesa. Disse a si mesma que tinha que tranquilizar-se de algum jeito,
mas a raiva e o aborrecimento foi só o que saiu por sua boca.
— É um louco imprudente! Não pode levar o Percival a Tepelena!

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Ele ergueu uma de suas escuras sobrancelhas apenas um milímetro, mas


seus olhos cinzas seguiram olhando-a tão frios como uma pedra.
Foi como quando um momento antes ela tinha entrado na sala cheia de
homens. Sentou-se e havia ficado a escutar como Fejzi transmitia o convite do
Alí e as condolências do visir pela perda de seu pai, e em todo aquele
momento a fria expressão de lorde Edenmont não tinha mudado nem um
pouco. Tinha mantido sua presença de lorde inglês dos pés à cabeça:
impassível, indiferente e com uma máscara de cortesia no rosto. Quando os
outros tinham concluído com suas inacabáveis saudações, não tinha se
incomodado em responder a suas adulações, nem em expressar sua gratidão
pela honra que faziam com sua visita. Em lugar disso, e com aspecto de estar
começando a aborrecer-se, tinha informado que comunicaria a eles sua
decisão na hora do jantar.
Como era de esperar, aquela sua insolência tinha feito aumentar o respeito
que sentiam por ele. Tinha atuado como um sultão que condescende ao
aborrecimento de ser incomodado com petições de favores, e eles tinham
tratado a ele como fosse. Poderia tê-los mandado ao inferno e eles teriam que
aceitar. Ele era um lorde e um cidadão britânico. De qualquer modo, ao final
tinha aceito os desejos do Alí. Esme ainda não entendia como podia ter sido
tão idiota.
Varian não se dignou em responder tampouco agora, simplesmente
continuou olhando-a de maneira altiva. E aquela forma de olhá-la a fazia
sentir-se muito pequena, e muito mais selvagem. Esme elevou o queixo.
— Não pode levar o Percival a Tepelena — repetiu ela. — Não vou permitir
isso.
— Não seja atrevida, menina. Vá para a cama.
— Não sou uma menina! — gritou ela chutando o chão com o pé.
— Pois está atuando como se fosse.
Esme cruzou o quarto e se aproximou dele.
— É que tenho que pensar tudo por você? Não sabe aonde vai se colocar?
A corte de Alí é um lugar perigoso. Há intrigas por toda parte, corrupção e
depravação. Quer levar o meu primo a um lugar como esse?
— Se for um bom lugar para você, não sei por que não ia ser para ele.

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Depois de tudo, ele é um homem, e não possui essas delicadas suscetibilidades


femininas.
Varian afrouxou o nó do lenço e o tirou com seu típico gesto descuidado,
de lorde, deixando-o cair ao chão.
Automaticamente Esme o recolheu e começou a dobrá-lo com cuidado
enquanto sua mente trabalhava a toda pressa, procurando as palavras e o tom
apropriado para romper aquele muro de indiferença.
Um juramento a tirou de suas reflexões. Ele se levantou e tirou-lhe o lenço
das mãos.
— Maldita seja, Esme, deixa de fazer isso! Deixa de ir recolhendo as coisas
que eu atiro por aí! Você não é o meu maldito criado!
Ela ficou olhando surpreendida.
Ele devolveu o olhar, e o ar que havia entre eles vibrou com tensão, como
se estivesse formando uma tormenta nas colinas que rodeavam o povoado.
Embora a tormenta estivesse só dentro dos olhos dele, cinzas e escuros como
um céu plúmbeo.
Com as mãos a segurou pelo cabelo e jogou sua cabeça para trás, e
imediatamente esmagou sua boca contra a dela o suficientemente forte para
que ela cambaleasse.
A apenas um momento ele parecia friamente distante, mas agora ela
entendia que só estava fingindo. Sua boca era quente e ansiosa, e suas mãos a
seguravam com fúria pelo cabelo. Ela sentiu uma onda de alívio, e a seguir
outra de vergonha por isso.
Esme tentou afastá-lo mas sua arremetida tinha sido muito repentina.
Aquele beijo apaixonado era como uma bebida ardente que a consumia por
dentro e deixava sua vontade convertida em cinzas.
Todo o desejo que tinha estado reprimindo durante aquela semana a
assaltou naquele momento, esquentando sua paixão. Agarrou as lapelas de
sua jaqueta e se apertou mais contra ele, como se tivesse medo de que
pudesse escapar dali a qualquer momento.
Aquele beijo durou só um momento, e quando a boca dele se separou da
de Esme, ela esteve a ponto de gritar decepcionada. Ele passou as mãos pelos
ombros e logo mais abaixo, até segurar suas mãos, agora com um gesto mais

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amável. Ela estava desejando que a arrebatasse e a conquistasse. Queria que


ele a levasse além da consciência e da razão.
— Pequena mentirosa — disse ele. — Me deseja.
Era inútil negá-lo. Esme fechou os olhos com força e lentamente abaixou a
cabeça até que a apoiou no peito dele.
— Deveria pensar melhor — disse ele com uma voz doce. — Mas não
quero que o faça. Não a deixarei.
— Todo mundo o deseja — disse ela tristemente e sem levantar a cabeça
de sua jaqueta. — Não pode evitar. Quando Alí o ver ficará a choramingar por
você, e o mesmo farão a metade de seus cortesãos e todas as mulheres da
corte. Vou ficar doente.
Ele riu, e logo ergueu sua cabeça para olhá-la intensamente nos olhos. Ela
queria olhar para outro lado, mas não podia, e sentiu que subia um rubor às
bochechas.
— Parece-me que está tentando que seja mais doce — disse ele. — E o faz
surpreendentemente bem para ser uma pequena e obstinada gata selvagem.
Em outras circunstâncias, suspeito que poderia fazer comigo o que quisesse.
Mas não nesse momento, Esme. Se quer se entregar a mim esta noite, não
direi não. Sou o bastante canalha para tomar o que me ofereça. Mas isso não
muda nada. Amanhã iremos para o sul, ou podemos ir para o oeste. Mas, seja
onde for, iremos juntos.
Esme se separou dele bruscamente.
— Pelo Alá, é impossível! Acaso pensa que estou tratando de suborná-lo
com meu corpo?
— Acredito que é capaz de fazer algo assim para me dobrar a seu desejo.
— Eu? Acredito que é precisamente você quem não joga limpo. Quando
não é capaz de discutir comigo de maneira sensata, tenta me convencer a base
de beijos. — Esme o olhou de cima abaixo com uma expressão de
ressentimento. — Sabe como me converter em uma tola.
Ele sorriu.
— No caso, ao menos estamos em igualdade de condições. Você me deixa
reduzido a um idiota balbuciante. Acaso não tenho direito de fazer o mesmo
que você? É você que joga sujo comigo. Quer desesperadamente ir a Tepelena

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para se unir a seu príncipe dourado. E não aceita que Percival e eu estejamos
ali para ser testemunhas de sua alegria. Por que deseja esconder-se de nós,
Esme? O que é o que não quer que vejamos?
Ela prendeu a respiração. Sabia que ele não era absolutamente um
descerebrado. Entretanto, nunca tinha imaginado que poderia chegar tão
rápido àquela conclusão. Ou será que Percival tinha contado essa insensata
história sobre a conspiração?
Mas Percival não teria se atrevido a contar, Varian jamais teria se
permitido ir a Tepelena com um menino que não fazia mais que falar de
conjurações revolucionárias. Possivelmente teria que contar ela mesma…, mas
então, tampouco a deixaria ir.
Estava confusa.
— Não tenho nada que esconder — respondeu ela secamente. — Somente
temo por meu primo. Mas tem razão, já não é um menino. Não vai morrer de
medo por ver um ninho de maldade. Mas pelo contrário, poderá tomar
apontamentos, e quando estiver novo com sua família, eles terão uma boa
razão para culpá-lo de tê-lo corrompido. Mas o que importa a você? Falo de
uma corte de depravação e isso não faz mais que abrir seu apetite. Imagino
que sua mente deve estar vendo já as imagens do harém. E já sabe que Alí
certamente proporcionará a você algumas mulheres. Deveria tê-lo entendido
antes. Passou muito tempo sem estar com uma cortesã. Bom, não me importa
o que faça. Também eu poderei encontrar ali meu próprio prazer… com meu
príncipe dourado.
Dito isto, Esme deu meia volta e saiu do quarto.

Capítulo 14

Embora ainda caísse uma chuva persistente, o séquito chegou a Tepelena


em quatro dias. Poderiam ter chegado muito antes, mas Fejzi insistiu em que
fizessem numerosas paradas pelo caminho. Cada dia se detinham muito antes
que caísse o sol, para poderem alojar-se nas casas dos mais ricos da comarca.
Não tiveram que voltar a acampar à intempérie. Nem tiveram que barbear-se
com água fria. Nem comer pão duro.

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Cada noite se organizava um banquete, e depois dormiam em camas bem


amaciadas e quartos quentes. Quando Varian se levantava pela manhã,
encontrava sua camisa de linho já limpa e engomada, suas calças e jaqueta
escovadas, suas botas enlameadas e sujas, agora reluzentes, e toalhas novas e
água quente preparadas para que realizasse sua higiene matutina.
Seu menor desejo era satisfeito imediatamente. Tratavam-no com uma
deferência sem limites. Petro, que estava convencido de que acompanhavam
Esme a um destino trágico, permanecia quase sempre em seu sombrio e servil
silêncio.
Até Percival se comportava melhor. Não caiu nenhuma só vez do cavalo,
nem se meteu no rio, nem se atirou por nenhuma janela. Comportou-se como
um modelo de docilidade, e não mostrava interesse em nada nem em ninguém
exceto em sua prima, a quem se apegou como se fosse uma sanguessuga. E
ela se comportava de uma maneira tão obediente e tranquila que Varian sentia
calafrios.
Durante o dia Esme cavalgava ao lado de Percival, vigiada de perto pelos
soldados. De noite se encerrava com as mulheres muçulmanas. Por não ser
mais que um simples menino, e aparentemente muito mal nutrido, permitiam
a Percival encerrar-se também com elas, que dessa maneira, podiam cuidá-lo e
alimentá-lo com todo tipo de doces.
Enquanto isso, lorde Edenmont se via obrigado a sentar-se durante horas
com os homens, a queimar o estômago com rakí e a fumar tabaco aromático
até dar voltas em sua cabeça. Os representantes de Alí o tratavam como se
fosse uma visita real, e logo se deu conta de que a realeza era um trabalho
fatigante.
Não podia dormir bem e jogava a culpa na abundante comida, na bebida e
no tabaco. Como dormia mal, levantava-se sempre de péssimo humor. Quando
por fim chegaram a Tepelena tinha vontade de matar a alguém, a qualquer e
preferivelmente com suas próprias mãos. Viu o pequeno e pouco atrativo
povoado com desaprovação, e o recentemente reconstruído palácio do Alí com
ódio.
Embora não tivesse lido o livro dos relatos da viagem que Hobhouse
realizou com o Byron pela Albânia, publicado quase um ano antes, Varian tinha

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ouvido aquele relato da boca do próprio Byron. A visão que agora tinha desse
país coincidia na maioria dos detalhes com o relato do poeta.
O palácio estava fechado por duas de suas alas, e um alto muro protegia
as outras duas — que davam ao pátio ao que acabam de entrar. — Estava
repleto de soldados bem armados e de cavalos belamente selados. Na esquina
mais afastada do palácio estavam sacrificando e esquartejando animais, o que
dava a entender que se aproximava outro indigesto festim.
O resto do grupo se alojou em outro lugar, enquanto que Varian, Percival,
Esme e Petro foram ficar no mesmo palácio. Seguiram Fejzi por uma escada de
madeira e logo atravessaram uma longa galeria, para chegar a uma das duas
alas do palácio, a que albergava as habitações dos convidados.
Varian ficou impressionado ao entrar na primeira sala, considerando o
péssimo estado dos aposentos onde se alojou até esse momento na Albânia.
Era uma sala grande, rodeada pelo típico arranjo de sofás, mas esses estavam
cobertos com tecidos de seda. O chão estava coberto com grossos e luxuosos
tapetes, e nas paredes estavam pendurados suntuosos tecidos estampados.
— Seus aposentos estão acima, milorde —explicou Fejzi indicando uma
pequena porta que conduzia a estreitas escadas de madeira. — Por favor, fique
a vontade. Em um momento trarão um refresco. Enquanto isso, tenho que
levar a garota ao harém. Não é apropriado que…
— A senhorita Brentmor não vai ao harém — disse Varian friamente.
— É obvio que não — concordou Percival tomando a Esme pela mão.
Fejzi ficou rígido.
— Lamento, milorde, mas são as normas. Aqui não permitimos que as
mulheres andem desavergonhadamente de um lado para outro, como os
infiéis… — Se calou um momento e em seguida seguiu falando em tom
arrependido. — Peço que me desculpe, Oh grande senhor! Mas aqui todos
devemos nos inclinar ante a lei.
— Uma mulher deve submeter-se às leis de seus familiares masculinos. E
esse familiar está aqui ao seu lado, e diz que ela deve ficar conosco. Não
pretenderá insultar o senhor Brentmor no momento em que acaba de chegar
ao palácio ao qual foi convidado por Alí?
Com um bom palmo mais de altura que o rechonchudo secretário de Alí,

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Varian olhou a seu interlocutor por cima do ombro, como fazendo ver que
estava muitos degraus abaixo dele.
Fejzi ficou completamente desarmado. De fato, parecia que levou um susto
de morte, mas não sabia se era a causa do perigo que podia supor Varian para
sua integridade física ou o próprio Alí. Ao final, fazendo uma reverência, disse:
— Como você desejar.
E saiu a toda pressa da sala.
Quando os passos apressados do secretário já não se ouviam, Varian se
aproximou de Esme, que em todo esse tempo não havia dito nenhuma palavra.
— Não tem nada que dizer? Não vai nos repreender por ter insultado o seu
compatriota e ter afrontado à dignidade muçulmana?
Ela se encolheu de ombros.
— Isso não tem nenhuma importância. Muito em breve terei que entrar de
qualquer modo em um harém. Melhor como a esposa de um príncipe que como
uma órfã qualquer.
— Não é necessário que me agradeça — respondeu Varian com frieza.
Ela lançou um abrasador olhar com seus brilhantes olhos verdes.
— Perdão, Oh grande luz dos céus! Um milhão de obrigado por me
preservar dos inomináveis perigos do harém: trezentas mulheres aborrecidas e
seus mortíferos companheiros eunucos.
— Trezentas? — Repetiu Percival. — Pelo amor de Deus! — Logo ficou
olhando a Varian e perguntou: — O que é um eunuco?
— É o destino que espera lorde Edenmont — soltou Esme. — Se é que vai
se transformar em costume descumprir as ordens do Alí.
— Sim, mas o que é…?
— Um homem — disse ela. — Ao que…
— Petro! — gritou Varian apesar de o marinheiro estar de pé não muito
longe deles.
— Sim, senhor?
— Leve o Percival para cima e cuida para que tome um banho e troque de
roupa. Está cheio de pulgas.
Antes que Petro pudesse dar um passo Esme passou um braço pelos
ombros de Percival.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Um homem, mas que não é realmente um homem, por que…


De um salto, Varian se aproximou dela, tampou-lhe a boca com a mão e a
afastou do menino.
— Leve o menino para cima! — repetiu Varian ao Petro.
Percival não esperou que Petro o levasse. Lançou a Varian um olhar
fulminante e pôs-se a andar escada acima, seguido de perto pelo Petro.
Quando desapareceram da sala, Varian afastou a mão da boca de Esme,
surpreso por não tê-lo mordido.
— Agradeço que se preocupe tanto por educar o menino no que se refere
às selvagens práticas desse país miserável — disse ele.
— É uma prática maometana, e não há nenhuma razão para que meu
primo não possa saber do que se trata. Você decidiu trazê-lo aqui. Acredita que
pode mantê-lo surdo, cego e mudo ante o que acontece ao seu redor? Agora
olhe o que fez. Começou a uivar como um monstro e assustou o menino. E
para quê? Posso imaginar que agora mesmo Petro estará satisfazendo sua
curiosidade, e com todo tipo de detalhes mordazes. Melhor teria sido que eu
explicasse.
— Para começar, não teria havido necessidade de explicar nada —
resmungou Varian, — se você não tivesse mencionado o acidentado tema,
pequena e sarcástica sabichona. Queria rir de mim diante de seu primo, não é
assim? O que queria era…
E tinha conseguido tirá-lo do sério. Ela não estava absolutamente de mau
humor, só estava aparentando. Por isso não tinha mordido sua mão. Quando se
irritava, Esme era incapaz de pensar, só conseguia agir. E o fazia
instintivamente.
— Queria deliberadamente que a mandasse ao harém — disse ele com
uma voz perigosamente tranquila. — Por isso esteve me tirando do sério
propósito.
Ela empalideceu e deu um par de passos para trás.
— O que mais me tira do sério é que sabe exatamente como fazê-lo —
acrescentou ele. — Desde que nossos caminhos se cruzaram, ninguém tinha
me deixado nervoso dessa maneira. Não há nem um só ser humano na
Inglaterra, França ou Itália que me tenha ouvido levantar a voz. Nunca me

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enganei mesmo acreditando que sou um bom homem. Entretanto, sempre


acreditei que era uma pessoa civilizada. Mas, Por Deus! Você é capaz de tirar
de mim o pior. — E elevando a voz acrescentou: — Que demônios é? Acaso
possuiu um diabo?
Ouviu bater na porta insistentemente. Varian cruzou a sala e foi abrir. A
porta bateu contra a parede ao abrir-se e Fejzi deu um salto.
— Mil perdões, Oh senhor, o mais bravo dos príncipes! — disse Fejzi
tremendo. — Não venho com a intenção de incomodar, mas não sou mais que
o escravo de meu senhor e tenho que cumprir com minhas obrigações.
Céus, parecia que tinha ido correndo a falar com o Alí e estava de novo de
volta.
— E o que é o que quer seu senhor? — perguntou Varian com voz tensa.
— Venho para assegurar que a filha do Leão Vermelho não sofrerá dano
algum entre nós. É uma pessoa tão querida para sua alteza como foi o seu
próprio pai, porque é do sangue e da carne do Jason, que era como um irmão
para ele. Durante toda a semana passada, as esposas do visir estiveram
tecendo com suas próprias mãos as novas roupas para a garota. E se não ficar
com elas, as mulheres vão ficar a chorar penosamente. E com elas, também o
farão as demais mulheres do harém. Isso é algo que meu senhor não pode
permitir, porque as lágrimas das mulheres são como adagas no afetuoso
coração de sua alteza. Manda-me que peça que tenha piedade dessas
mulheres, para que possa haver paz no harém.
Isso, ter piedade das mulheres. Demônios manipuladores. Mesmo assim,
esses eram os costumes do lugar, disse Varian a si mesmo. E o mais
importante de tudo: aquele era o lugar onde Esme queria ficar.
Varian deixou escapar um suspiro.
— Tenho que reconhecer que o visir é realmente um gênio, se for capaz de
manter a paz entre trezentas mulheres. Eu dificilmente posso conseguir com
uma só. — Lançou a Esme um olhar fulminante e logo deu de ombros. — Leve-
a se for o indicado. Mas não me jogue a culpa se houver uma revolução no
harém.
Fejzi esboçou um débil sorriso.
— Oh! Bom, trata-se da filha do Leão Vermelho. — E logo, dirigindo-se a

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Esme, acrescentou: — Vem pequena guerreira. Não vai fazer guerra no harém,
não é verdade?
Ela estalou língua em resposta e se dirigiu para a porta.
— Eu gostaria de vê-la de novo mais tarde — disse Varian forçando ao
Fejzi que o olhasse.
— Farei chegar sua petição a sua alteza.
— Não é uma petição.
O sorriso do Fejzi desapareceu de seu semblante.
— Como você desejar, milorde.

Alí se recostou em seu divã e pôs-se a rir com sua robusta pança
movendo-se como um pudim.
— Um rosto e um corpo como o do Apolo e o temperamento do Zeus.
Ouvi-o gritar e me perguntava se acabaria matando a essa fulana antes que
chegasse.
Fejzi sorriu ligeiramente.
— É uma pessoa abominavelmente insolente, alteza.
— Sim, estive observando com meu telescópio enquanto se aproximavam.
Já me dei conta de seu comportamento. E de outras coisas, claro —
acrescentou Alí cravando ao Fejzi no lugar com seu afiado olhar azul.
— O Leão da Ioanina o vê tudo.
— Quando o vejo com meus próprios olhos. Mas vocês pensam que só
confio nos rumores e nas incompetentes explicações desse toco cabeça dura
do Bajo. Todos vocês acreditam que estou começando a envelhecer. Só o que
ouço nesses últimos dias é quão formoso é esse lorde inglês. Mais formoso que
Byron, isso dizem, e, além disso, não está aleijado. E quando não falam do
lorde, falam do menino. Há rumores que certamente é filho do Jason, um
menino ruivo com uns olhos profundos e inteligentes. Todas essas coisas
chegam até meus ouvidos, e o que posso fazer eu: fechar os olhos e enviá-los
à costa?
— Não, alteza, isso seria impensável — disse Fejzi com resignação.
Alí se ergueu lentamente até a posição sentada e aproximou os pés do
chão. Colocando as mãos sobre as grossas coxas olhou para Fijzi com ar de

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recriminação.
— Hoje vi chegar a Tepelena esse inglês cavalgando para com toda sua
arrogância, e ri com vontade. E faz um momento me tornei a rir ao ver como
estalava de fúria por causa dessa pequena guerreira. Quando foi a última vez
que me viu rir, Fejzi? Durante quanto tempo meu coração esteve fechado como
um ataúde de pedra, comigo metido dentro? Faz três semanas que
desapareceu meu querido Leão Vermelho, um inglês tão valente como um
shqiptar. E pouco depois do acontecido outro inglês de cabelo vermelho acaba
de chegar, um familiar do Jason. Isso tem que ser um sinal dos céus.
— Ou de algum outro lugar — murmurou Fejzi.
O expressivo rosto do Alí relaxou esboçando um sorriso.
— Pode ser. Mas não temo os demônios. Passei a vida rodeado deles… E
meu primo é o mais formoso de todos eles, não é assim?
Alí olhou pela janela, para o céu lá fora que estava começando a escurecer.
— Essa noite vou jogar com dois formosos demônios. Um loiro e outro
moreno. Bom, vamos ver. Pode ser que seja um jogo interessante.

Capítulo 15

O visir era mais baixo que Fejzi e mais gordo. Possivelmente em outro
tempo tenha sido bonito. Tinha uma compleição agradável, uma testa larga
sobre espessas sobrancelhas e um nariz bem delineado. Com suas longas
barbas brancas e seus brilhantes olhos azuis, qualquer um poderia tomá-lo
pelo típico avô jovial.

Alí Pachá tinha demonstrado ser uma pessoa alegre e faladora, e possuir um
surpreendente bom humor. Tinha esse tipo de maneiras encantadoras que
podiam conduzir o mais cauteloso dos homens a trair a si mesmo. Até Varian
esteve a ponto de sucumbir ante seu carisma. Mas sendo ele mesmo uma
pessoa com encanto, era capaz de reconhecer a alguém de seu mesmo
aspecto assim que o via. Dava-se conta de que, apesar da troca de elaboradas
adulações, estava sendo minuciosamente examinado por Alí… e avaliado da
maneira mais precisa.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Fejzi foi o intérprete durante o jantar. As habilidades lingüísticas daquele


homem eram superiores às do Petro, mas não eram nem de longe tão boas
como as de Esme. Ela tinha um completo domínio do inglês e o utilizava com
muita segurança, e muito frequentemente com uma desconcertante exatidão.
Entretanto, Fejzi também era capaz de seguir o ritmo dos rápidos discursos de
Alí, e o visir ia impacientando-se cada vez mais ao longo de sua prolongada
refeição.
Ao final, disse que tomariam o café e os doces a sós, e despediu os
cortesãos com um gesto de mão.
Antes de partir também Fejzi, dirigiu-se a Varian em voz baixa.
— Agora vou procurar o menino. Sua alteza não quer que ande pela corte
e possa ser incomodado pelos cortesãos, mas deseja vê-lo e falar com ele. Em
seguida virá também a garota, para ser intérprete. — Dirigiu a Varian um meio
sorriso. — Não é muito respeitosa, mas é muito habilidosa com os idiomas,
embora Ismal… — Parou por um momento e depois olhou ao Alí.
O visir fez outro gesto impaciente com a mão e Fejzi saiu apressadamente
da sala.
— Ismal fala inglês bastante bem, mas frequentemente falha seu ouvido —
disse Alí em grego e muito devagar. — Não quero que me interprete mal, Fejzi
é lento, e quando se assusta, começa a balbuciar e a gaguejar… é muito
incômodo.
— E por que tem que ter medo? — perguntou Varian.
— Você o que acredita? — Alí olhou para a entrada. — E o que você
acredita, pequena guerreira?
A cabeça de Varian se moveu na mesma direção e sentiu como um soco
dado no peito.
Viu umas onduladas mechas de fogo escuro que se moviam ao redor dos
esbeltos ombros de Esme e caíam sobre o corpete de cor verde turquesa. Seu
olhar passeou lentamente pelo vestido de seda até chegar à estreita cintura e
às delicadas curvas das coxas da moça.
Engolindo um gemido, Varian afastou rapidamente o olhar daquela visão e
esperou que seu semblante não o traísse, transformando-o no típico velho
olhando uma moça com diabólico interesse. No mesmo momento, além disso,

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teve que fazer um esforço para recordar que Alí estava ali. Até quando Varian
ficou olhando com amabilidade para o visir, toda sua concentração estava fixa
em Esme.
Sentiu que se aproximava deles, vislumbrou um brilho de seda verde
enquanto ela se movia a seu lado, com o vestido que usava murmurando ao
contato com seu magro corpo… ali onde sua boca queria estar nesse momento,
e suas mãos. Sentiu um calor na base das costas. Deus, era patético! A garota
usava um vestido comprido que o tinha deixado desfeito.
Quando ela se deteve um momento junto dele, pareceu que o roçar da
seda zumbia em seus ouvidos. Logo se sentou a seu lado, sobre uma
almofada.
Alí disse algo que pareceu incomodá-la, pois Esme respondeu de forma
brusca com uma rápida frase em albanês. Varian ficou tenso. Aquela pequena
selvagem parecia estar querendo que a matassem. Mas Alí não fez outra coisa
que elevar as sobrancelhas de uma maneira exagerada e tornar a rir.
Varian reuniu a coragem suficiente para olhá-la. Estava ruborizada e de
seus olhos verdes saíam milhares de faíscas.
— Do que se trata? — Perguntou ele com um tom de voz que soou débil e
estranho.
— Nada. Uma piada lasciva, indigna de repetição. — Ouviu fofocas
desagradáveis, isso é tudo.
Varian tinha vontade de insistir naquele tema, mas entrou um criado
carregado com uma pesada bandeja. Após um momento apareceu Percival,
com o rosto pálido como um lençol; embora, por outra parte, guardava muito
bem a compostura, tendo em conta que acabava de entrar na sala privada de
um homem de reconhecida maldade, um monstro temido até pelo sultão.
O monstro ficou olhando o menino durante um longo e intenso momento.
E a ele encheram os olhos azuis de lágrimas. O visir esticou uma mão e, depois
de um breve momento de dúvida, Percival a estreitou.
Alí disse algo com voz rota.
Esme estalou a língua.
— Não. — Corrigiu de maneira cortante ela. — Não seu filho, velho de
maus pensamentos — murmurou ela em inglês. — Não. Seu sobrinho. —

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Lançou a Varian um olhar acusador. — Sabia que isto podia acontecer.


— Mesmo assim, a semelhança é surpreendente. — Disse uma voz atrás
de Varian. Uma voz suave e musical, que falava em inglês com apenas um leve
acento.
Todos os nervos de Varian ficaram em tensão, como se através da sedosa
voz pudesse ver uma imagem do rosto que ia enfrentar. Não se dignou voltar a
cabeça. Agora percebia por que o fizeram sentar de costas para a porta. Alí
estava colocado em uma posição em que podia ver cada expressão dos recém
chegados. A primeira reação espontânea. Varian não quis dar de novo essa
satisfação. De modo que esperou até que quem acabava de falar chegasse a
sua altura e, enquanto isso, tratou de manter sua atenção fixa em Alí até que o
outro homem se sentou, com os olhos ao mesmo nível que os de Varian.
Eram uns olhos profundos, da cor das safiras, ligeiramente inclinados para
cima por cima de suas pronunciadas bochechas. Uns olhos claros,
aparentemente inocentes no rosto de um jovem cuja finura de cútis teria
invejado qualquer dama inglesa. Não levava turbante e tinha o cabelo longo,
da cor do centeio. Apresentou a si mesmo. Mas não era necessário. Tratava-se
do príncipe dourado: Ismal.
Esme havia dito que tinha vinte e dois anos, mas não aparentava mais que
dezoito, um jovem esbelto com um porte elegante e orgulhoso, e a graça de
um bailarino. Um felino.
Ismal estava vestido ao estilo turco: uma túnica dourada de seda com uma
bandagem azul da cor exata de seus olhos, em cima de umas calças de seda
combinando. Não teria que incomodar-se. Ismal podia vestir um traje
miserável, e assim mesmo teria continuado sendo formoso, culto e nobre até
os tutano. Por um momento fez com que Varian se sentisse como um bronco
ou como um bárbaro camponês. Mas só durante um instante. Depois de tudo,
a humildade não era algo que abundasse entre os St. George.
Varian devolveu ao jovem a amável saudação com uma insuportável
cortesia e um rosto inescrutável, embora por dentro estivesse ardendo de ódio
e raiva por causa de um cego arrebatamento de ciúmes.
Passou o quarto de hora seguinte tentando manter a compostura, tratando
de pensar de maneira racional, aplacando o arrebatamento de raiva que o

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embriagava. Mas não era capaz de pensar serenamente. Era muito consciente
dos dois corpos ricamente vestidos que o rodeavam: um deles esbelto e
coquetemente feminino; o outro loiro exótico e claramente masculino. Envolto
por aquela profusão de sedas, Varian quase não podia concentrar-se na
conversa.
Ouviu a voz do Alí expondo uma pergunta… A resposta de Percival,
primeiro muito formal, e logo pouco a pouco com uma crescente segurança até
transformar-se em uma amigável conversa… e entre eles a voz rouca de Esme
traduzindo o que se diziam, fria e serena como um bom jorro de água fria em
um dia de sufocante calor.
Logo falou Ismal e Alí respondeu, e estiveram conversando durante um
bom momento.
Esme tocou o braço de Varian e aquele contato o tirou de repente de seus
pensamentos. Voltou-se piscando. Pouco a pouco pôde enfocar os rostos de
seus companheiros. Todos o estavam olhando.
— Alí deu permissão ao Ismal para que se dirija a você diretamente. —
Disse ela. — Você tem que fazer o papel do pai de Percival, o cabeça de minha
família inglesa, e falar em nosso nome. Alí diz que meu primo é muito
inteligente, mas há certos assuntos que não podem ser tratados com mulheres
e meninos.
Durante um tenso momento, ela aguentou o olhar de Varian e ele
entendeu o que estava tentando lhe dizer: que recordasse a promessa que
tinha feito.
Rapidamente Varian dirigiu sua atenção para Ismal, com uma expressão
solene no semblante.
— Não vou pôr a prova sua paciência com longos rodeios, milorde. — Disse
o príncipe dourado. — Admitirei que foram seguidores meus aqueles vilãos que
perseguiram e trataram de seqüestrar à filha do Leão Vermelho, então devo
assegurar que não cumpriam minhas ordens. Nunca. Denunciei aos que se
encarregaram daquela maldade, e me sentirei completamente feliz de assistir à
execução desses canalhas assim que os detenha.
Percival fez um estranho som gutural, mas Ismal não pareceu dar-se
conta.

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— Também me acusa, e isso é cruel e injusto, de que fui eu quem ordenou


o assassinato do Leão Vermelho. Não é mais que uma vil calunia que qualquer
homem razoável pode reconhecer como tal. Por que ia querer acabar com a
vida do homem cuja filha pretendo fazer minha esposa? — Seu azul olhar
felino se cravou em Esme e logo voltou a posar em Varian.
Varian notou que os dedos se cravavam nas palmas das mãos e as colocou
em cima dos joelhos.
— Essa não é a maneira certa de cortejar a alguém — Disse ele. — Ao
menos não na Inglaterra.
A boca do Ismal se curvou em um gesto divertido. Provavelmente teria
quebrado mais de um milhar de corações com esse relaxado sorriso felino.
— É você muito gracioso, milorde — Disse o príncipe dourado. — Inclusive
na Albânia é a maneira mais irregular de tentar ganhar o coração de uma
moça.
Maravilhoso. Um tipo inteligente, além de suas outras muitas qualidades.
— Não teria matado o pai de Esme, muito embora fosse meu pior inimigo,
porque ela o amava, e sei que teria ido atrás do assassino com intenções
vingativas e cheia de ódio.
Quando Esme traduziu estas palavras para Alí, ele fez um jocoso
comentário.
O sorriso de Ismal se alargou.
— Alí particulariza que as esposas vingativas são criaturas incômodas para
se ter perto. Não tem nenhuma dúvida de que a pequena guerreira me fatiaria
o pescoço, se acreditasse que sou o responsável pela morte de seu pai. Esse
estado de ânimo em uma noiva não é o mais adequado para preparar-se à
paixão das núpcias.
Varian ficou olhando Esme. Estava sentada a seu lado, tranquila e com as
mãos entrelaçadas, com os olhos ligeiramente baixos enquanto traduzia para
Alí, como se estivessem falando de agricultura em lugar de falar do assassinato
de seu pai e de seu próprio futuro.
Ódio vingativo. Fatiar-lhe o pescoço.
Não.
Ela não seria capaz.

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Mas mesmo assim, o pelo da nuca de Varian arrepiou-se ao pensar.


Varian ficou olhando Alí, inconsciente da pergunta que se estava expondo
em silêncio até que ouviu a resposta do visir: apenas um perceptível
movimento de cabeça. De um lado a outro: «Sim». Seria possível? Teria
suspeitado aquele velho do que ele estava pensando? E o que era ainda pior,
conhecia a resposta?
Varian devolveu um sorriso igualmente desarmante ao Ismal.
— Você parece bastante inteligente para não fazer uma loucura desse tipo.
— Disse ele. — E não posso acreditar que um homem todo-poderoso tenha a
necessidade de tomar tais medidas para conseguir uma mulher.
Ismal aceitou aquela indireta sem alterar-se, olhando com olhos tão
inocentes como os de um menino.
— Embora, para ser franco, não posso entender absolutamente como você
pode ter algum interesse nela. — Acrescentou Varian em voz baixa. — Não
parece que vá ser o primeiro que se deixe enganar por seu caráter violento.
O vestido de seda verde de Esme se moveu ligeiramente quando ela
endireitou a postura. Disse algo entre dentes, em um tom de voz muito baixo
para que Varian pudesse entender, e a seguir traduziu ao Alí com voz enérgica
o comentário de Varian. O visir pôs-se a rir.
— Eu não gosto das esposas dóceis — disse Ismal. — A pequena guerreira
é feroz e valente, e isso me esquenta o sangue como não o faz nenhuma outra
mulher. É assim desde que éramos crianças. Ela sabe o quanto chegou a me
atormentar.
Ismal dirigiu a Esme um olhar comovedor, mas ela continuou com a vista
posta em suas próprias mãos.
Tão recatadamente feminina. Tão docemente tímida, sob a apaixonado
olhar de seu possível futuro amante… enquanto não havia nenhuma dúvida de
que em sua retorcida mente estava tramando a maneira mais cruel de
assassiná-lo.
— Faz quatro anos — seguiu dizendo Ismal, — quando ela tinha quatorze,
pedi a seu pai a mão de Esme. Disse-me que ela era ainda muito jovem e que
teria que esperar.
Faz quatro anos, quando ela tinha quatorze? Então Varian compreendeu

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tudo claramente. Tinha falado a Varian de sua vida, um ano em Durrës, cinco
em Shkodra, dois em Berat, e outros anos em outros lugares. Sua vida. Os
dezoito malditos anos de toda sua vida. Por que demônios não tinha ocorrido
simplesmente perguntar sua idade? Por que tinha estado se torturando com
aquilo todo o tempo, quando uma simples pergunta poderia tê-lo aliviado, ou
ao menos teria aliviado o sentimento de culpa em particular?
Mas Varian sabia por que. Tinha medo de averiguar que poderia ser até
mais jovem do que ele imaginava.
— Sim, é compreensível que Jason dissesse isso. — aceitou Varian
tranquilamente. — Sou da opinião de que as mulheres inglesas amadurecem
mais lentamente do que o fazem em outras partes do mundo. A própria Esme
admite ter sido menos precoce que a maioria.
— Já não é muito jovem, milorde. Quis tê-la durante muitos anos. E agora,
considerando que está sozinha, sinto-me também responsável por ela. Quando
meu nobre primo me disse que vinham a Tepelena, alegrei-me, porque desse
modo poderia ter a oportunidade de compensá-la por todos os insultos que ela
e seus amigos ingleses sofreram naquele maldito dia em Durrës. Quero tentar,
ao menos em parte, limpar minha vergonha e aflição por tudo o que aconteceu
em meu nome.
Ismal expôs o arrependimento como se tratasse de um frio assunto de
negócios. Pagaria duzentas libras inglesas como preço da noiva a seu tio
inglês. Isso era aproximadamente vinte vezes o preço normal, explicou
friamente Esme, posto que geralmente o preço das mulheres é bastante mais
baixo que o dos cavalos. Também expôs que pagaria multas: quinhentas libras
a cada um, a Varian e ao Percival, pelos insultos a suas pessoas em Durrës, e
outras quinhentas libras ao Alí pelo insulto cometido contra sua autoridade.
Além disso, Ismal daria ao Alí e a Varian um reprodutor árabe a cada um, e ao
Percival um potro da mesma raça.
Finalmente, Ismal tomou uma caixa de prata com jóias incrustadas que
estava ao lado do divã de Alí.
— Essas quinquilharias é um presente para quem pretendo que seja minha
esposa, como símbolo de nosso compromisso.
Passou a caixa a Varian. As «quinquilharias» eram esmeraldas, safiras,

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rubis, pérolas e outras pedras preciosas.


Varian deu um olhar superficial ao conteúdo da caixa e o mesmo fez Ismal.
— É obvio que minha esposa receberá jóias adequadas quando nos
casarmos — disse o príncipe dourado. Em sua voz havia um leve tom de
impaciência.
«É obvio.» Jóias adequadas. Oh, claro! Diamantes, sem dúvida, e milhares
desses pendentes de ouro e adornos para o cabelo dos quais tinha falado
Byron. Centenas de vestidos de seda, e sapatilhas bordadas com ouro e prata.
Esme nunca teria que voltar a mover um dedo durante o resto de sua vida.
Suas mãos fortes e bronzeadas poderiam tornar-se tão suaves e brancas como
o resto de seu corpo. Mimariam-na e cumpririam cada um de seus desejos.
Seria alimentada de deliciosos manjares e seu esbelto corpo floresceria até
converter-se no de uma mulher de exuberante feminilidade.
Se é que viveria o suficiente.
O que ia ser difícil se tentasse assassinar seu marido. Mas ela não podia
estar planejando isso. Varian tentou convencer a si mesmo. Certamente suas
suspeitas não eram nada mais que uma fantasia febril produzida pelo delírio do
ciúme.
Não está bem da cabeça.
Não está em seu são julgamento.
Se Percival e Petro tinham acertado, a única coisa sensata que se podia
fazer era afastar-se dela, o mais longe que fosse possível, e o mais rápido que
pudesse ser. Percival poderia passar perfeitamente sem uma prima assassina e
lunática. Inglaterra poderia passar também sem ela como tema de conversa.
Era melhor deixar que Albânia ficasse com ela.
A sala ficou em uma expectativa silenciosa . A expressão do semblante do
Alí era inescrutável. Percival tinha ficado pálido, com seus olhos verdes abertos
de ansiedade. O príncipe dourado olhava Esme. Varian se perguntou o que
estaria vendo nela, mas preferiu não olhá-la.
Fechou a tampa da caixa que continha as jóias.
— Uma reparação muito generosa — disse Varian com calma. — Será uma
honra para eu informar de sua proposição a seu tio.
A expressão inocente de Ismal não variou um ápice. Era bom nisso, muito

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bom — pensou Varian, — a não ser que o fazia a sério. Sua inexorabilidade
tirou suas dúvidas. Mas não estava em situação de considerar as
consequências; não essas, não agora.
— Se me desculpa — disse Ismal, — parece-me que falhou meu inglês,
não entendi.
— Será uma honra para eu comunicar sua proposta à cabeça da família de
Esme, na Inglaterra —esclareceu Varian, — quando a levar até lá.
Silêncio.
Alí ficou olhando Esme, mas ela não traduziu nada.
Perguntou algo ao Ismal, que simulou não ter entendido.
Só restou Varian para traduzir em seu horrível grego escolar e explicar que
ele não tinha direito de dispor do futuro de uma mulher com quem não estava
aparentado. Se fizesse isso sem o consentimento por escrito de sir Gerald,
afirmou Varian, poderia ser acusado de abuso e tráfico de escravos; duas
graves ofensas segundo a lei inglesa.
— Mas ela não é inglesa — disse Ismal com uma angélica voz tranquila. —
É albanesa, sua alteza.
— É obvio que não! — exclamou Percival.
Todos os olhos se voltaram para ele e avermelhou.
— Rogo que me perdoem. Não pretendia ser descortês, mas a menos que
não o tenha entendido bem, isso é de todo impossível.
— Percival, se não se importar…
— Mas, senhor…
— Dëgioni! — ordenou Alí — Dëgioni diali.
— Devemos escutar o que tem a dizer o menino — disse Ismal sorrindo
ligeiramente. — É o desejo de meu real primo.
Alí bateu no ombro do menino.
— Você. Fala.
Percival o olhou nervoso.
— Obrigado, senhor.
Seu olhar assustado dirigiu-se para Ismal, logo para Esme e por último se
deteve em Varian, que dirigiu-lhe uma leve inclinação de cabeça.
Percival deixou escapar um suspiro tranquilizador.

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— A parte da mãe não conta — disse ele. — Mustafá me explicou isso. É


como se sua linha de sangue por parte de mãe não existisse. Portanto, a prima
Esme é britânica, não albanesa. Em qualquer caso, a esse respeito não pode
haver nenhuma dúvida. Quando o tio Jason se casou, preocupou-se em ir até a
Itália para encontrar um clérigo anglicano para que as bodas fossem
corretamente realizadas. Sei, porque todos os seus papéis privados estão
depositados em casa de seu banqueiro, em Veneza. Fez cópias para que
mamãe as enviasse a Inglaterra, eu as vi: os certificados de matrimônio, as
atas de nascimento de Esme, em 1800, e o testamento do tio Jason. Disse que
não queria que Esme tivesse nenhum problema legal. Disse que…
— Isso é uma tolice! — gritou Esme. — O menino está inventando tudo.
Meus pais se casaram na Ioanina, não na Itália.
— Na Ioanina se casaram em uma cerimônia albanesa — disse Percival, —
mas voltaram a casar pelo rito inglês na Itália.
— Não!
Varian ficou olhando.
— De maneira que você sabe algo das leis inglesas, não?
— Sim, e sei que por lei eu sou uma bastarda — disse ela. — Percival está
contando essas mentiras para nos persuadir a todos de que não o sou. Mas
não sou britânica, não sou um súdito de sua lunática rainha!
— Isso não tem importância, coração — disse Ismal em tom tranquilizador.
— Seu pai foi repudiado por sua família e se converteu em albanês. Você é
albanesa.
Logo Ismal se voltou para Varian, a quem estava começando a doer a
mandíbula de tanto apertá-la para manter a compostura.
— Você sabe que sua família não a quer? — acrescentou Ismal agora com
um tom de recriminação em sua voz sedosa. — Por que quer levá-la com um
tio que não fará outra coisa mais que desfazer-se dela, igual fez com seu
próprio irmão? Por que fazê-la passar por essa vergonha, quando no final
acabarão enviando-a para mim? Você sabe que assim será, milorde. Toda
Albânia sabe.
— Se você sabe — respondeu Varian com frieza, — por que incomodar-se
em pedir minha permissão?

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— É um gesto de respeito —respondeu Esme. — Um gesto de boa


educação, que você não pode entender. Não entende a honra que recebe e de
que maneira humilha a si mesmo com isso. Ofereceu quinhentas libras e um
reprodutor pelos problemas que teve, quando o que a lei decreta é muito
menos. E como resposta a sua oferta, você o insulta. É um bárbaro sem
maneiras!
— Não, minha pequena — repreendeu amavelmente Ismal. — Meus
sentimentos não têm preço. Não tem por que afligir-se em meu nome.
Malditos sejam esses dois, pensou Varian. Diria que tinham toda essa cena
ensaiada. É que esperavam que engolisse a farsa de murmúrios amorosos? Ou
o tomavam por bobo? Ou possivelmente o estavam fazendo em benefício de
algum outro?
Varian ficou olhando Percival, que estava a ponto de começar a chorar. Uns
minutos mais ali e o menino ia começar também a falar em nome de Romeo e
Julieta.
Varian ficou de pé.
— Vamos, Percival. Não vejo razão alguma para seguir assistindo a esta
farsa por mais tempo. Acreditei que tinham me chamado para pedir minha
opinião e minha ajuda. Mas vejo que estava equivocado.
Alí gritou algo ao Ismal, que respondeu a contra gosto.
Varian se dirigiu para a porta.
— Vamos, Percival — ordenou ao menino ainda sem elevar a voz.
O moço mordeu o lábio, mas se levantou obedientemente e se aproximou
depressa a seu lado.
— Espero que isto não seja um engano — sussurrou.
Varian também esperava o mesmo. Atrás dele, os dois albaneses ainda
continuavam falando. Deixariam-no sair dali? Sabia que se era assim já não
haveria volta atrás. Também sabia que Alí tomaria medidas, mas que antes as
pesaria cuidadosamente. O visir estava a ponto de completar os oitenta anos.
Não teria vivido tanto se não tivesse sabido reconhecer um canalha assim que
visse pela diante.
— Varian Shenit Giergi. — Era a voz do Alí? Lorrrd Ee-dee-mund.
Varian se deteve, com o semblante convertido em uma máscara de

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aborrecimento e o coração pulsando como um tambor descontrolado.


— Rogo que fique — continuou dizendo em grego sua alteza. — Os outros
podem retornar a seus aposentos. São um pouco pesarosos esses meninos. —
Fez ao Ismal um gesto com a mão. — Você, vá procurar o meu secretário.
Necessito de um intérprete que esteja em seu juízo perfeito.

Capítulo 16

Um dos guardas que tinha escoltado Esme e o Percival até os aposentos de


Varian ficou ali, ao lado da porta. Esme se sentou no sofá, olhando seu primo
com o cenho franzido. Percival com seu embornal de pedras junto ao peito ia
de um lado a outro do aposento. Ficaram esperando a volta de lorde
Edenmont mais de duas horas, a maior parte do tempo discutindo para não
chegar a nenhuma parte. Cada um deles tinha demonstrado ser tão
impertinentemente obstinado como o outro. A única satisfação de Esme foi que
o debate sem fim frustrou as intenções do guardião, que não entendia
nenhuma palavra de inglês.
— Eu gostaria que não tivesse zangado lorde Edenmont — reprovou
Percival. — Se zangou o suficiente para deixá-la aqui, não sei o que vou poder
dizer à avó. Seria capaz de falar com o primeiro-ministro, sei que o faria. Ou
inclusive com o próprio regente, apesar de odiá-lo, e então teríamos uma
guerra com a Albânia.
— Isso que diz é uma tolice. Os governos mal admitem a existência das
mulheres. E é obvio que não iam meter-se em uma guerra por elas.
— A maioria não, é certo. Mas o que me diz da Helena de Tróia?
— Pelo Alá! Não ia se jogar ao mar por meu rosto bonito nem por um
barco de pesca, assim imagine uma centena de navios de guerra. Parece-me
que tem lido muitos contos. Passa todo o tempo inventando problemas e
catástrofes. Imagina conversas que não tiveram lugar mais que em sua
cabeça. Ouviu falar com meu pai de um pequeno distúrbio, em um país onde
sempre há distúrbios, e já está imaginando conspirações revolucionárias.
— Isso não é verdade. Aconteceu exatamente como eu contei.
— Você vê meu pretendente com seus próprios olhos, e o ouve com seus

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próprios ouvidos. Mas é muito mais mimado e tranquilo que esse arrogante
lorde que trouxe aqui — disse ela com desprezo. — Ismal esteve a ponto de
começar a chorar quando respondeu a sua proposição com tanta insolência.
Você acredita que essa criatura de coração fraco pode…
— Sepulcro alvejado — disse Percival.
— O que?
— Buscarei a passagem na Bíblia da família quando retornarmos para
casa. Se voltarmos para casa. Oh, como gostaria que você fosse um menino!
— acrescentou ele com aborrecimento. — É sempre tão pouco razoável… Não
sente remorsos de fazer com que sua excelência perca a paciência. Se não
tivesse visto com meus próprios olhos, não teria acreditado. Sempre é
amistoso e extremamente pormenorizado. Nem sequer repreendeu-me por ter
vindo aqui e que tivessem me seqüestrado.
— Mas dará uma boa surra se descobrir como enganou e mentiu para ele.
Percival parou em seco e ficou olhando com os olhos abertos de surpresa.
— Não pode dizer nada a ele. Você me prometeu.
Esme se inclinou para trás e cruzou de braços.
— Ismal ofereceu quinhentas libras e um reprodutor, mas não parece que
isso seja suficiente. Pode ser que uma peça de xadrez que vale mil libras fosse
um preço que o convencesse mais.
— Isso…, você não é ninguém para suborná-lo.
— Sim eu sou. Poderia dizer que me Jason me deu e que eu pedi que a
guardasse entre suas pedras. Se você pode contar mentiras, por que eu não
vou poder fazê-lo?
Percival ficou pensativo um momento. Logo seus olhos se entreabriram até
converter-se em duas magras linhas verdes.
— Se atrever-se a dizer a ele algo a respeito — ameaçou ele, — contarei a
lorde Edenmont…
— O que? Que é mentira? E quem ia acreditar?
— Direi que fez essa horrorosa cena essa noite para enciumá-lo.
Aquela acusação era um repugnante insulto vindo de um menino, mas
mesmo assim Esme notou que ruborizava. Ela tinha tentado demonstrar algo.
Queria mostrar a Varian que outro homem, tão formoso como ele mesmo,

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desejava-a. E que esse outro homem não pensava que ela fosse uma lunática,
ou uma repelente sabichona, ou qualquer dos outros odiosos apelidos com que
sua excelência estava acostumado a defini-la.
Ismal a tinha tratado de uma maneira extremamente atenta. Suas
palavras tinham um tom tão devotamente terno que ela quase tinha chegado a
acreditar que a amava. Até que a lembrança de seu pai tinha aparecido em sua
mente: tinham disparado pelas costas, tinham negado a glória de um funeral
de herói e seu corpo valente tinha sido golpeado contra as cruéis rochas da
corrente.
Percival ficou olhando com franca curiosidade.
— Ruborizou— disse ele. — Céus! Era certo? Disso se trata? De verdade
que as garotas são muito estranhas. Não tinha pensado que…
A porta se abriu de repente e esteve a ponto de golpear o guardião, que se
afastou para o lado de um salto. Assim que entrou lorde Edenmont o guardião
saiu do aposento.
Percival o olhou, logo olhou a Esme e por último bocejou.
— Pelo amor de Deus, que tarde é — disse ele esfregando os olhos. — Foi
uma conversa muito interessante, prima Esme. A verdade é que o tempo
passou voando.
Dito isto, Percival se dirigiu para as escadas que conduziam a seu
dormitório, sem fazer caso do olhar assombrado que lhe dirigia lorde
Edenmont.
— Percival.
— Senhor? — Voltando-se para ele, o menino bocejou de novo.
— Suponho que não tem o menor interesse a respeito do que estivemos
falando Alí e eu?
— Estou seguro de que teve uma conversa muito interessante, senhor,
mas me parece que eu já tive suficientes sobressaltos por uma noite.
Sua excelência se voltou para Esme.
— O que fez a ele? Com que insanos lixos esteve enchendo a cabeça dele?
Percival parou em seco.
— Ela não esteve enchendo minha cabeça com nada. A verdade é que
dificilmente dou ouvidos as tolices que possam dizer as garotas.

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— Eu digo tolices? — Perguntou Esme ficando de pé de um salto. — É você


que não diz nada mais que insensatezes. Tróias, sepulcros alvejados…
— O que alvejados? Perguntou Varian.
— Sepulcros —soltou Percival. — Sepulcros alvejados. Mas não tem
nenhum sentido explicar a ela. Não vale a pena contar nada. Tem tanto sentido
comum como… como um pescado.
— Pelo menos eu não me dedico a falar com as pedras — replicou ela.
— Eu não falo com elas, falo delas!
— Meninos! — repreendeu-os lorde Edenmont, mas eles o ignoraram.
— Sim que o faz! — Murmura entre dentes, isso também é falar. Acredita
que é muito sensato falar com as pedras?
— Não o faço, antipática, antipática e… tola garota, tola, mais que tola…
Oh! Para que discutir com ela? — Percival meneou a cabeça. — Por favor,
senhor, posso ir para a cama? Parece-me que tenho uma terrível dor de
cabeça.
Lorde Edenmont fez um gesto com a mão para que se retirasse. Percival
pôs-se a andar para a entrada, parou um momento para mostrar a língua para
Esme e a seguir subiu a toda pressa as escadas.
Esme ficou olhando até que desapareceu de vista. Logo ficou olhando ao
teto, enquanto se ouviam seus passos por cima de suas cabeças e no final se
fez o silêncio.
E então ela ouviu uma leve gargalhada a seu lado.
Esme se voltou e ficou olhando a lorde Edenmont. Estava pálido, mas seus
lábios sorriam amplamente.
Esme não queria olhar aquela boca. Não queria olhar nenhuma parte de
seu corpo. Tinha desejado que o destino fosse bom com ela e tivesse evitado
por fim ter que voltar a vê-lo. Mas o destino não era nada amável com ela, e
agora também aquele odioso menino acreditava que…
— Sepulcros alvejados? — disse ele.
— Vai pro inferno! — Gritou ela. — Oxalá uma manada de chacais
arrancassem suas vísceras enquanto ainda pulsa seu coração! Oxalá você
caísse em um poço de água podre e um montão de sanguessugas chupassem
seu sangue! Tomara que pegue piolhos nos olhos e no nariz e…!

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— Ah, que formosa canção de amor albanesa! E vejo que acaba de compor
especialmente para mim, que criatura tão romântica é. Muito bem, aplaudo —
Disse ele abrindo os braços. — Vem, pode cobrir meu adorável rosto com seus
beijos.
Desgraçadamente, isso era o que Esme estava desejando fazer. Estava
cansada, zangada e assustada. Se tivessem vivido em outro mundo, teria se
refugiado em seus braços. Nesse outro mundo, seu convite não teria parecido
uma brincadeira cruel, e ela teria deixado que seus ardentes beijos a
inflamassem por toda parte. Ela teria se deixado arrebatar por uma profunda e
quente paixão, a mesma que tinha mostrado a ela em Poshnja. Era formoso e
forte, e seu esplêndido corpo teria podido oferecer refúgio e… alívio.
Só por um momento, é verdade, mas ela não teria tido outra
oportunidade. Nem outro homem. Só Ismal, ao qual odiava com todas suas
forças: o homem que queria assassinar, para morrer logo depois. Que tipo de
vingança era aquela? Ele acabaria aparecendo como um mártir, como a vítima
de uma mulher enlouquecida. Ninguém acreditava que Ismal fosse o culpado
da morte do Jason.
Exceto Percival.
Ele afirmava que Ismal era um traidor e Risto o intermediário entre ele e
quem viajava a Itália para comprar armas para seu chefe. Em Berat, Percival
tinha insistido que reconheceu a voz de Risto…, o tipo que falava mal italiano e
pior inglês. Aquelas lembranças fizeram a cabeça de Esme dar voltas como
uma roda, e toda sua mente se concentrou na conclusão que podia resultar
disso.
Risto falava italiano. E inglês. Não os falava bem, mas sim o suficiente
para fazer-se entender. Como podia saber disso Percival, quando em Berat e
durante sua viagem até ali, unicamente tinha falado albanês? Só existia uma
maneira de que Percival soubesse: pela razão que ele mesmo tinha explicado.
Que Deus a ajudasse! Como tinha podido ser tão imperdoavelmente estúpida?
Uma fria sensação de consternação despertou Esme de seu transe e a fez
consciente de que estava observando Varian com o olhar perdido. Quanto
tempo tinha ficado assim, enquanto em sua cabeça rolava aquele
descobrimento?

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Ele tinha baixado os braços e a estava olhando, com a cabeça ligeiramente


inclinada para um flanco, e seus olhos cinzas abertos com perplexidade… e
tristeza? Não, isso não era tristeza. Ele a odiava. E tinha conseguido também
que seu primo a acabasse odiando. Os dois tinham estendido as mãos e ela
tinha recusado sua ajuda. E foi abandonada ali para que assassinasse e
morresse por isso, porque ela mesma os tinha forçado a fazer isso, porque
tinha estado tão obcecada com a vingança que não tinha escutado ninguém.
Esme sentiu que começava a arder sua garganta, e doía o peito, fazendo
com que a respiração se convertesse em um doloroso e duro ofego. O lábio
inferior começou a tremer de maneira descontrolada. Oh, não! Não podia
começar a chorar. Nunca chorava e teria preferido mil vezes ser devorada viva
e esquartejada por javalis selvagens antes de ficar a soluçar na frente daquele
homem. Arderam seus olhos e Esme os esfregou com força.
— Não se atreva — disse Varian com firmeza. — Não se atreva a começar
a chorar.
Esme mordeu os lábios.
— Maldita seja. Vai acabar comigo, Esme.
Ele percorreu rapidamente a distância que os separava, tomou-a entre os
braços e pôs sua cabeça suavemente contra seu peito.
— Sinto — ofegou ela apoiada em seu peito.
— Lamenta, céus.
Ele começou a acariciar seu cabelo. De uma maneira não muito amável,
mas em todo caso — pensou Esme aflita, — Varian tinha muitas razões para
desejar esmagar sua cabeça contra a parede.
— Sei — disse ela. — É muito tarde para lamentar. Não tenho medo, só
queria… Queria dizer isso a você em voz alta.
Engoliu saliva. Seguia sentindo que a garganta queimava. Mas não podia
deprimir-se agora. Tinha que dominar-se. Então levantou a cabeça.
As negras pestanas de Varian se fecharam para ocultar a expressão de
seus olhos. Sorria levemente, sem calor.
— E o que é o que tenho que pensar que lamenta? — perguntou ele com
voz suave.
— Tudo. Desde o começo. Lamento as coisas terríveis que disse. Mas o

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

pior de tudo, as terríveis coisas que tenho feito.


— Ah, bom! Mas não podia evitar, não é verdade? Está louca, ou é
albanesa. Se pensar bem é mais ou menos o mesmo. A verdade é que não
posso entender como pôde viver seu pai vinte anos aqui e continuar
conservando a prudência. Eu perdi toda a que tinha em menos de vinte dias.
— Sinto. — disse ela. — Tudo foi minha culpa. Estava muito confusa. Até a
um momento… não tinha entendido nada.
Varian deixou escapar um profundo suspiro e baixou as mãos até apoiá-las
nos ombros dela, mantendo a distância de um braço enquanto estudava seu
rosto.
— Esme arrependida. Isso é quase tão desconcertante como ver Esme
vestida com um avental. Uma combinação devastadora. Pode ser que seja
melhor que nos sentemos.
Soltou-a, mas não se sentou, só se inclinou para trás até apoiar-se na
porta. Ainda observava como se a estudasse. Esme se fez dolorosamente
consciente do vestido de seda que vestia, que antes a tinha feito sentir-se
ridícula. Mas agora se sentia muito feminina, e terrivelmente exposta. Varian a
observava como se ela fosse um animal exótico metido em uma jaula. Queria
esconder-se. Mas em lugar disso seus pés a levaram para ele.
— Não! — advertiu ele.
Esme parou em seco e se ruborizou.
— Não vou permitir que utilize suas artimanhas comigo, senhora. — disse
ele. — Alivia sua consciência, se quiser, mas longe de mim. Igual a Percival, já
tive suficientes emoções por hoje, obrigado.
Ela não o culpou por isso, nem um pouco, apesar de ser mortificante que
ele ordenasse manter-se a distância como se tivesse uma enfermidade
contagiosa. Mas essa não era a verdadeira razão. Ele estava tentando ser
civilizado. Não queria sentir a tentação de golpeá-la ou de estrangulá-la.
Qualquer outro homem, que fosse irritado como tinha feito com ele, poderia
tê-la recebido a murros no momento em que atravessou a porta, e ela não
poderia culpá-lo por isso. Como tinha podido ser tão bruxa! Detestável,
estúpida, feia, rude e viciosa. Uma besta.
Mas ela não era assim. Ainda ficava certa honra. Devia-lhe uma desculpa.

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E a verdade. Não toda, porque não poderia suportá-la toda. Mas ao menos
uma parte.
Ela apertou as mãos e baixou o olhar ao tapete. Ao lado de seu pé direito
viu um magro labirinto colorido de intrincados retângulos, que se destacava
contra o fundo marrom. Fixou-se nele.
— Menti a você. — disse ela. — Em repetidas ocasiões. Exagerei ao dizer o
tempo que faltava para reparar o barco e ao não contar quão difícil era o
caminho até Tepelena. Embora pudesse vir sozinha se tivesse sido necessário,
sabia que viajando com um inglês teria muito menos dificuldades.
— Usou-me? — disse ele.
Ela estremeceu.
— Sim.
— Deveria ter me utilizado de uma maneira mais carinhosa.
Aquela recriminação a fez sentir-se culpada. Os olhos dele se
obscureceram e se cobriram de sombras.
— Não queria chegar a gostar de você. — disse ela retorcendo as mãos. —
Não queria que gostasse de mim. Isso teria tornado tudo mais difícil para
mim… para o que tinha que fazer.
— O que tinha que fazer? — perguntou ele com calma.
Seu olhar sombrio se cravou na dela, e o coração de Esme começou a
pulsar loucamente. Pelo amor de Deus, por que lhe perguntava isso? Acaso
não acreditava que era verdade o que lhe tinha contado em Berat, que tinha
vindo para casar-se com Ismal? Acaso não tinha fingido o bastante bem fazia
apenas umas horas?
— Por… pelo Ismal. — respondeu ela.
— E o que tem ele? O que tem que fazer com ele?
Não importava o muito tranquilo que parecesse. Só havia uma maneira de
responder: com a mentira que tão cuidadosamente tinha estado urdindo.
Aquele homem tinha que abandoná-la ali. Ela tinha conseguido que qualquer
outra coisa fosse impossível para ele. Não era necessário que contasse toda a
verdade, nem que ficasse olhando sua expressão de repulsão quando
soubesse, nem sua tranquila voz invadida por um tom de recriminação. Mas
assim mesmo tinha que dizer a verdade, tinha que dizer a ele, para aliviar-se,

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para que a castigasse. Mas não sabia o que queria; naquele momento, só o
que sabia era que estava doente de desespero, e que continuar mentindo a
mataria.
— Tenho que… tenho que… — As palavras não conseguiam sair de sua
boca.
Ela não era uma pessoa covarde, mas naquele momento estava realmente
assustada. Do que? De perdê-lo, quando já o tinha perdido desde o começo?
— Fale, Esme.
Ela fechou os olhos.
— Tenho que matar o Ismal.
Falou de uma vez, e embora as palavras soassem como um estranho
assobio, não as pronunciou em uma voz tão baixa para que ele não pudesse
ouvir. Soaram muito fortes inclusive a seus próprios ouvidos. Sentiu-se fria e
envergonhada, embora procurar a vingança não fosse algo vergonhoso.
Entretanto, ele não podia entender. Ele a veria como um monstro frio que
perseguia de maneira desumana um homem a quem todos acreditavam
inocente, um homem que todos acreditavam que estava apaixonado por ela e
queria desesperadamente fazê-la sua esposa. Oh! Por que tinha pronunciado
aquelas horríveis palavras?
— Pequena louca. — disse ele em um tom de voz muito baixo, mas que de
todos os modos a fustigou. — Temerária e apaixonada louca.
— Varian…
— Hadje. — disse ele.
Ela ficou o olhando fixamente. Ele elevou uma mão e repetiu:
— Hadje.
O coração de Esme parecia estalar se contra as costelas e toda ela
estremeceu. Mas aquele tom de voz suave que ele falava em sua própria língua
a atraía, e fazia seu corpo e sua alma responderem juntos em um tremor.
Lentamente, Esme se aproximou dele e pôs as mãos sobre seu peito. Os largos
dedos dele se fecharam sobre os seus e a apertou mais contra si. Segurou-lhe
a outra mão e puxou até tê-la bem próxima, sua saia de seda roçando as
calças dele. A respiração dela se converteu em um ofego entrecortado.
— Não pode matá-lo, Esme. — disse ele, — e eu não posso matar por

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você.
Pareceu-lhe que o coração se rompia em mil pedaços.
— Oh, Varian! — Ela liberou as mãos e jogou os braços ao redor do
pescoço dele, enterrando de uma vez a cabeça na calidez de seu peito. — Não
me odeie — ela pediu. — Por favor, não me odeie.
Os fortes braços de Varian a rodearam, esmagando-a contra seu forte
corpo. Durante um longo e doloroso momento, ele apertou os lábios contra o
pescoço dela. Logo a abraçou e a levou até o sofá, onde a depositou sobre seu
regaço.
— Odiar você, sim, claro. — murmurou ele.
E logo sua boca se aproximou até fundir-se com a dela.
Ela tinha esperado que ele respondesse a suas palavras com ódio e
repulsão, mas aquele beijo era quente e suavemente terno. Deixou-se alagar
por aquela doçura e ficou a chorar por aquele coração que ele acabava de
roubar com tanta facilidade. Tinha estado louca pensando que poderia manter-
se afastada dele, como tinha estado louca em todo o resto.
Quando por fim ele levantou a cabeça, Esme escondeu o rosto contra seu
ombro. Os dedos dele brincaram com seu cabelo e logo deslizaram para baixo
para acariciar o seio, ligeiramente, roçando apenas a magra seda de seu
vestido. Mesmo sob a suave carícia, seu corpo se arqueou em uma resposta
emocionada. Estremeceu. Ele dirigiu a mão para seu quadril e a deixou
descansar ali, fazendo que seu calor lhe percorresse o ventre.
— Ah, Esme! O que vou fazer com você?
Sua voz era tão suave como sua carícia e ela respondeu sem conter-se, do
mesmo modo que o fazia seu corpo.
— Não me deixe.
Suas palavras não foram mais que um ligeiro e apagado murmúrio contra
sua guerreira, mesmo assim perfeitamente audíveis no profundo silêncio da
habitação.
A seguir houve um longo silencio.
— Você está afetada. — disse ele ao fim, — e eu estou me aproveitando
disso. Deus, que ser tão perverso eu sou; e o menino que está aí acima. —
Beijou-lhe a cabeça. — Obrigado por me dizer a verdade. Eu gostaria de… eu

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gostaria de ter sido o tipo de homem a quem pudesse ter dito antes. Teria que
ter dito: «Milorde, tenho que vingar a morte de meu pai. Seria você tão
amável em oferecer-me amparo para a viagem?»
Esme ficou olhando, sem estar muito convencida, sem elevar o rosto.
— E o que teria respondido você?
Ele sorriu.
— Não teria que ter respondido nada, mas sim teria que me encarregar
dessa missão e me por a caminho para matar o malvado príncipe. Se fosse
esse outro homem. Mas não sou. Sou Edenmont, um tipo vago, egoísta e
totalmente inútil. Não posso fazer nada mais que tirá-la daqui.
Isso era mais do que Esme podia suportar. Ele não só parecia entendê-la e
não querer abandoná-la, mas também culpava a si mesmo.
— Você não é nada disso, — disse ela e ficou completamente reta
olhando-o com os olhos cheios de admiração e gratidão. — Tentou fazer o
correto, o que todo mundo sabe que é correto, exceto eu. Nessa noite Ismal
ofereceu uma imensa quantidade de dinheiro para que me abandonasse e você
não aceitou.
Ele sacudiu a cabeça, e uma de suas grossas e escuras mechas de cabelo
se moveu roçando uma de suas sobrancelhas.
— Não me faça parecer nobre, Esme. Não sou. Só sou teimoso e
excessivamente egoísta. Pode ser que Percival tivesse ficado furioso com você
agora a pouco, mas está convencido de que conseguirá que vá com ele. Se não
for assim, me atormentará durante o resto de meus dias. Em qualquer caso,
Alí deixou muito claro sua postura: amanhã partiremos para Corfú, por um
caminho ou por outro. Se eu decido não levá-la comigo, diz que a enviará
para lá com a escolta do exército. Concordei em levá-la comigo, embora
informei que necessitarei de ajuda de um exército para poder cumprir minha
missão. Fez-me saber o muito que a aprecia. Diz que recorda a sua mãe.
— Alí? — Aquilo parecia incompreensível. — Quer que vá… e deixou que
Ismal…
— Fez a ele aquele emocionado discurso, da mesma maneira que me
deixou fazer o ridículo daquela maneira. Alí Pachá tem um senso de humor
muito particular; e um grande dom para julgar às pessoas. — Enquanto falava,

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Varian brincava distraído com o cabelo dela. — Pela primeira vez pude
entender por que seu pai decidiu ficar a seu serviço. O visir está meio louco, e
é um tipo sádico em muitos aspectos, mas tem o dom de Satanás para a
manipulação. E sabe utilizá-lo à perfeição.
Ele ficou em silêncio, enquanto seus longos dedos seguiam acariciando-a
carinhosamente, aliviando a tensão que ela sentia em sua cabeça, e em todo
seu ser.
— Lamento o que aconteceu com seu pai. — disse ele depois de um
momento. — Sei que o queria muitíssimo. Eu gostaria de ter podido conhecê-
lo. Eu gostaria que estivesse ainda aqui, a seu lado… em lugar de ter que
suportar a companhia de um lorde fraco e patife e de um confuso menino de
doze anos.
Esme fez um esforço para que as palavras surgissem através de sua
fechada garganta.
— Você não é um fraco. — disse ela. — E Percival está muito menos
confundido que eu. Os dois foram comigo muito mais carinhosos do que eu
mereço, mas tentarei remediar isso, prometo. Vou ser tão obediente e boa a
caminho de Corfú que não vai reconhecer-me.
— Pelo céu, vai de um extremo ao outro, não é? — disse ele sorrindo.
Com um sorriso que era tão doce e cálido como os raios do sol. Quando a
olhava daquela maneira, podia fazer com que um buquê de flores murchas se
convertesse em um radiante ramo de rosas. E suas carícias podiam fazer o
mesmo. Seus atormentados pensamentos se acalmavam no refúgio de seus
braços.
— Quero ir com você — assegurou ela. — Irei aonde você quiser, Varian.
Essa noite acreditei que fosse me abandonar. Pensava que fosse desaparecer
de minha vida; e pior ainda: que íamos nos separar sem ter podido esclarecer
minhas mentiras, meus mal-entendidos e meus aborrecimentos. Entretanto,
teve paciência e me ajudou a aliviar meu coração. E agora meu coração está
cheio de gratidão por você. Embora isso não seja mais que palavras, eu vou
demonstrar. Espera e o verá. — Esme engoliu saliva. — Não me importa que
todas as mulheres estejam apaixonadas por você.
Varian ficou olhando de uma maneira estranha, com seus formosos olhos

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de novo cheios de sombras, como se a fumaça os cegasse. Logo a ajudou a


levantar-se e a colocou de pé no chão, diante dele.
— Não sou muito bom resistindo as tentações. — disse. — Por favor, vá
para a cama, antes que a pressão da imperecível amabilidade e nobreza me
ponha a prova.
Esme teria preferido ficar ali, em seu regaço. Durante sua viagem juntos, a
tinha beijado e acariciado com paixão. Uma vez inclusive a teve quase nua
entre seus braços e tinha chegado a acender de desejo. Entretanto, nunca
antes a tinha tratado com aquele carinho, nem tinha falado diretamente ao seu
coração. Nunca antes ela se sentou tão perto dele. E agora queria ficar tão
perto como pudesse.
Mas tinha prometido que seria boa, não é assim? Ele pediu para que fosse
dormir, e isso devia fazer.
— Onde quer que durma?
Ele soltou uma curta gargalhada.
— A questão não é onde quero eu que durma. O melhor será que
compartilhe o quarto com Percival. Petro saiu com seus colegas para beber até
o amanhecer. Possivelmente o encontraremos amanhã atirado no pátio.
Ele deu uma olhada ao sofá e seus lábios se curvaram.
— Eu ficarei dormindo aqui. Parece muito mais cômodo que os lugares aos
quais já me acostumei.
— Trarei umas mantas — disse ela submissa.
— Obrigado, mas não tenho frio. E além do mais, meus pensamentos me
manterão quente, malditos sejam. Boa noite, pequena guerreira.
Ela deu um beijo na bochecha, mas se apartou rapidamente para não
deixar-se levar pela tentação de desejar mais.
— Natën e mirë, Varian Shenit Giergi — sussurrou ela. Quero-te,
acrescentou seu agradecido coração.

Capítulo 17

Duas horas mais tarde, Esme se movia sigilosamente na tranquila


escuridão do harém.

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Quando chegou ao dormitório, Percival já estava dormindo. Mesmo assim,


teve que esperar até que lorde Edenmont. também dormiu Ficou sentada na
parte alta das escadas, escutando até que o som dos movimentos na sala de
baixo cessou, e um suave ronronar lhe assegurou que Varian tinha sucumbido
por fim ao sono.
Então, saltou pela janela, atravessou a galeria e se dirigiu para o harém a
toda pressa. Os guardas que dormiam na entrada a tinham deixado entrar sem
fazer perguntas. Entretanto, ao chegar à pequena porta que conduzia para o
lugar que queria ir, — o lugar que Jason havia descrito, — o monte de graxa
que guardava a porta se pôs imediatamente firme para impedir sua passagem.
— Alí me manda chamar —sussurrou ela. — Será melhor que me deixe
passar ou nossas duas cabeças acabam sendo oferecidas a sua alteza em uma
bandeja.
Não me deram ordens de deixar passar a ninguém — disse o eunuco. —
Como sei que não veio com a intenção de assassiná-lo?
— Eu, a filha do Leão Vermelho? E se tivesse passado tão absurda ideia
pela minha cabeça, com que arma poderia acabar com ele? Ou acredita que
engoli um sabre e vou vomitá-lo logo, quando precisar dele? Onde acredita
que posso levar armas escondidas nesse vestido tão vaporoso?
Soltando um exagerado suspiro Esme se ofereceu para despir-se por
completo, se é que não acreditava, mas pediu que a revistasse depressa,
porque Alí não era uma pessoa muito paciente.
Como tinha esperado, o eunuco declinou daquela honra. Procurou armas
escondidas lhe dando vários tapas pouco entusiasmadas pelo corpo e, depois
disso, deixou-a passar. Naturalmente, o que podia temer o visir de uma
esquálida menina?
Agora tudo o que tinha que esperar Esme é que Alí se encontrasse em sua
câmara privada, para a qual se dirigia nesse preciso instante, e que ainda não
estivesse dormindo. Era um pouco mais tarde que meia-noite e ele estava
acostumado a ficar acordado até alta madrugada, seja intimidando a exaustos
conselheiros ou divertindo-se com atrativos sujeitos de qualquer sexo. Se
estava ocupado com o segundo, Esme esperava que aquela noite tivesse
escolhido a uma mulher. Não tinha nem ideia de quais eram os métodos que

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utilizavam os homens para divertir-se entre eles e não tinha muita vontade de
aproveitar aquela ocasião para inteirar-se. Muitos problemas já tinha para
manter sua mente acordada, sem ter que enfrentar a novas formas de
depravação.
A generosa providência lhe tinha proporcionado um indulto, e ela fez bom
uso dele. Poderia levar a cabo sua vingança, mas dessa vez de uma maneira
que até Jason teria aprovado, para levar a cabo sua heróica missão. Até
Percival se orgulharia dela, e gratamente aliviado de que seu segredo tivesse
funcionado de maneira adequada. Assim tinha que ser. Sabia o que tinha que
fazer e não tinha medo. Era a filha do Leão Vermelho, e antes de abandonar
para sempre seu amado país, tinha que salvá-lo.
Embora a princípio Alí pudesse não acreditar, era muito inteligente para
fazer ouvidos surdos a suas advertências. Ele investigaria e logo seus espiões
descobririam a verdade. Em muito pouco tempo, Ismal ia se encontrar nas
mãos de hábeis torturadores. Logo teria uma morte horrível, como merecia,
mas ela não teria que manchar as mãos de sangue. Estaria muito longe, pode
ser que só e em um lugar onde ninguém a quereria, mas com a alma
totalmente limpa. Na Albânia possivelmente a admirariam como a uma brava
heroína, disse Esme a si mesma. Isso a satisfez, assim como a ideia do Ismal
morrendo depois de uma lenta agonia.
Aquelas agradáveis fantasias a levaram para a câmara privada de Alí.
Estava tentando decidir se devia bater na porta ou entrar sem mais quando
ouviu a voz do Ismal, doce e melíflua como sempre. Com um silencioso
juramento, Esme se sentou no chão a esperar. Esperava que ele não passasse
ali toda a noite.
— Deveria ter fechado a boca — estava dizendo Ismal. — E não me
arriscar a te desgostar. Mas embora tivesse me matado por isso, tinha que
dizer o que havia em meu coração. Meu amor por você é muito grande para
agir de outra maneira.
Alí riu entre dentes.
— Parece-me que a beleza do lorde inglês o transformou em ingênuo,
primo. A moça tem que partir. Deveria ter partido faz muito, com seu meio
primo. Não é bom momento para desgostar os ingleses. Já estão bastante

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irritados com esses malvados pargiotes que sacrifiquei, e estão a ponto de me


causar problemas também com o assunto dos suliotes. Vou ter muitos
problemas para debilitar suas forças. Quero que nossos visitantes estejam sob
a custódia segura dos ingleses antes de iniciar as negociações.
— Não vão negociar absolutamente nada se antes der a essa garota a
oportunidade para que lhes envenene a mente. Já viu como insulta o lorde
inglês e a sua rainha. Mandá-la ao exílio entre aqueles aos quais odeia é expô-
la a seu desprezo, e você acabará se convertendo em seu inimigo.
— Sim, isso é algo terrível que poderia acontecer — respondeu Alí. —
Ponho-me a tremer sozinho só de pensar em poder zangá-la. Mas me pergunto
que coisa tão horrível poderia me fazer. Chorar? Me amaldiçoar? Dar-me um
chute no traseiro? Que Alá me proteja! Seria horrível o que poderia me fazer a
fúria dessa pequena moça.
E logo pôs-se a rir a gargalhadas.
Esme franziu o sobrecenho olhando à porta.
— Tentará vingar-se. — Havia na voz do Ismal um tom de irritação que o
traía. — Sabe o muito que deseja ter a seu lado à artilharia e os conselheiros
ingleses. Também é consciente de que os ingleses mais liberais se esforçam
para que seu governo fique contra você. Ela poderia ajudá-los e eles estariam
dispostos a utilizá-la. Não ia ser difícil mascarar a verdade e fazê-lo aparecer
como a maior ameaça contra o mundo civilizado, depois do corso Bonaparte.
Esme abriu os olhos como pratos. Nunca tinha confiado no Ismal. Nunca
tinha duvidado de que fosse culpado. De todos os modos, não podia acreditar
nas barbaridades que era capaz de dizer. Tampouco que Alí ficasse quieto
enquanto parecia considerar seriamente as advertências daquela víbora.
Mas não era esse o tipo de ameaças a que estava acostumado a considerar
Alí? Sempre se tinha imaginado que era açoitado. E sempre tinha na mente a
vingança. Nisso era um professor; e um professor paciente. Nunca esquecia
um insulto, embora tivesse que esperar meio século para fazê-lo pagar. Maldito
seja, Ismal sabia muito bem o que estava fazendo: estava jogando com a
debilidade do visir como se estivesse tocando as cordas de uma harpa.
Uma grande gargalhada do Alí rompeu o silêncio. Evidentemente não era
tão fácil que jogassem com ele. Esme se tranquilizou.

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— Realmente, Ismal, esta noite está mais divertido. — riu o visir. — Se não
soubesse que é abstêmio, acreditaria que está bêbado. Parece-me que está
cego. Pode ser que ela não queira ir-se. Mas vingar-se? Se esquece do formoso
reprodutor inglês. Pensa que ele não será capaz de tê-la afastada de suas
queixas?
— Ela o despreza.
— Certo. Por isso, dentre todos os lugares que poderia ter escolhido,
sentou-se precisamente a seu lado. Muito perto dele.
Esme levou um susto.
— E quando perguntei se sua espada inglesa feria lenta e continuamente
ou rápida e com força, ela ficou da cor dos morangos.
— Qualquer donzela se ruborizaria ante essas palavras. — disse Ismal.
— Uma «donzela» não deveria ter me entendido ou me teria acusado de
fazer caso de obscenas fofocas.
Esme cobriu o rosto com as mãos. Teria que ter se dado conta de que Alí
tinha boas razões para ter falado daquela maneira. Deveria ter se dado conta
de que sua reação poderia traí-la. Todo mundo sabia.
— Entendeu-o porquê já saboreou seu impulso, ou deseja fazê-lo —
continuou dizendo Alí. — Seu aborrecimento não é mais que a chama do amor,
como já expliquei a ele. Ela é muito jovem, pobre garota. E ainda não é capaz
de compreender a paixão que sente por ele. E naturalmente, a pena que sente
por seu pai tê-la confundido. É como uma criatura ferida que fere às cegas a
todos aqueles que tratam de ajudá-la. Mas o lorde inglês poderá curá-la. Já lhe
disse como: com palavras suaves e doces carícias.
Esme fechou os olhos. Palavras suaves. Doces carícias. Não afeiçoado, a
não ser cura. Manipulação.
— Acredita que ele fará caso de seus conselhos? — perguntou Ismal. —
Pensa que esse insolente nobre vai se incomodar em acalmá-la com suas
estratégias amorosas? Para ajudar a você, ou a ela? Acredito que tem muita
confiança em um homem que todo mundo sabe que é um gigolô.
— Não custa nada ter confiança — respondeu Alí em tom de confidência.
— Paguei muito bem para que se assegure de que ela irá com ele por vontade
própria. Além disso, é o que quer o menino, e esse menino é o verdadeiro

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problema, como bem reconhece o ardiloso lorde.


— O menino? Eu não…
Houve uma lenta pausa e logo Alí riu.
— Pelo menos já se deu conta de por que sua generosa proposição foi
rechaçada com tanta frieza. O pobre homem não tinha outra opção, não com o
menino aqui. Pensou no que poderia acontecer se esse inteligente guri conta a
seus maiores que lorde Ee-dee-mund vendeu a uma sobrinha do lorde a um
bárbaro febril?
— Possivelmente o pendurariam — respondeu Ismal tranquilamente. — De
modo que pagou a ele para que faça o que de toda maneira já ia fazer?
— Oh! Nisso não tinha outra opção. — A voz de Alí soava arrependida. —
Esse homem é abominavelmente matreiro. Disse-me que não podia vendê-la
de maneira nenhuma. Por outra parte, advertiu-me que não poderia fazer nada
se ela decidisse fugir. Diz que já o tentou antes. De maneira que acreditei que
era melhor assegurar-me de que não ia escapar. Assim que ofereci quinhentas
libras inglesas para que se case com ela. Ao final tive que subir para mil. Isso
fará feliz o menino e ao lorde, que está desesperadamente necessitado de
dinheiro. Acredito que por mil libras até teria casado com você.
Alí voltou a rir.
Esme mordeu um punho para evitar ficar a gritar. Ismal estava falando de
novo, mas ela não ouvia nada mais que um murmúrio afogado pela maré de
raiva que a dominava.
«Não me faça parecer nobre.»
Acaso não tinha sabido desde o começo que o coração de Varian era negro
e egoísta? — Não havia dito ele mesmo — assim como tinha feito Petro — que
tinha vivido durante cinco anos de seu engenho, de seus encantos e de sua
beleza? Tinha chegado até ali procurando uma peça de xadrez de mil libras.
Apesar de não ter encontrado essa peça, seu engenho, seu encanto e sua
beleza tinham conseguido diretamente mil libras.
E, além disso, tinha conseguido a revanche pelos problemas que Esme
tinha causado. Nunca tinha gostado dela; só tinha estado jogando com ela.
Quando ela se ofereceu, ele a tinha rechaçado; só queria era atormentá-la, e
tinha conseguido até fazendo com que ela se apaixonasse por ele. Tinha tido

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nisso um êxito admirável. E Alí se deu conta imediatamente de quão tola era
essa pequena guerreira.
Varian os tinha utilizado a todos, tinha utilizado a teimosia dela, assim
como a solidão de seu primo. Varian tinha feito com que a debilidade deles
dois funcionasse em seu próprio proveito. Aquele homem, que ela considerava
estúpido e infantil, tinha tirado de Alí mil libras — o grande avaro do Império
turco — e tinha convertido à filha do Leão Vermelho em uma chorosa
descerebrada, e em uma libertina que rogava que a desonrassem.
Respirando profundamente, Esme se obrigou a ficar em pé e a retroceder o
caminho pelo qual tinha chegado até ali. Era melhor assim, disse a si mesma,
sempre é melhor saber a verdade. Ninguém a queria. Todos riam dela. Muito
bem. Melhor deixá-los com suas brincadeiras, suas mentiras e suas
maquinações. Que jogassem eles seus jogos de homens. A ela tudo aquilo
traia sem cuidado. Ela era uma mulher. E agora, finalmente, entendia
perfeitamente o que significava isso. Jason teria que ter explicado, muitos anos
atrás. Mas isso era muito típico dele. Sempre deixava para mais tarde o mais
importante.

Pouco depois de sair o sol Fejzi chegou para escoltar a Varian até o visir.
Encontrou lorde Edenmont acordado e lavado, embora ainda sem barbear, e
muito suscetível.
O mal sonho de Varian tinha estado particularizado por uma série de
pesadelos, cada um dos quais tinha começado lascivamente e terminado de
uma maneira horripilante. Na última, Esme nua sustentava em uma mão uma
faca banhada em sangue e na outra uma parte de carne palpitante. «Não tem
coração», dizia- ela sorrindo. «Não tem coração, não tem.» despertou para
encontrar seu próprio coração ainda a salvo, pulsando desaforadamente no
fundo de seu peito. E agora se preparava para outra manhã agitada ante o
inesperado e totalmente pouco acolhedor convite.
Entretanto, Varian não pôs objeção alguma. A última coisa que queria
naquele momento era enfrentar Alí. Depois da confrontação da noite anterior,
era um milagre que a cabeça de lorde Edenmont estivesse ainda sobre seus
ombros. Tinha rechaçado quinhentas libras — pela segunda vez — por deixar a

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Esme ali. Examinaram com detalhe suas razões. Com tanto detalhe que Varian
havia sentido que o viravam do avesso, e que escrutinavam em seu interior
qualquer possível segredo e o deixavam completamente vazio.
Sim, ao final tinha ganhado ele; justo quando tinha começado a suspeitar.
Alí tinha tentado quase tudo, e o suborno parecia ser só uma parte de algum
arrevesado jogo oriental — ou de algum tipo de prova. — Naquele momento
Varian teria dado uma patada a si mesmo por ter rechaçado o dinheiro. O que
teria chegado a fazer Alí para que ele aceitasse — O que pensava fazer o velho
visir com a garota que sabia que queria cortar o pescoço de seu primo? Ou
acaso o visir queria ver o Ismal morto?
Não. Varian não podia pretender chegar a entender o labirinto da mente de
Alí Pachá. Aquela maneira enlouquecida de mentir.
O Leão da Ioanina estava de pé quando lorde Edenmont entrou — um
prometedor sinal de condescendência. — Para maior surpresa de sua
excelência, o Leão se equilibrou sobre ele para abraçá-lo.
Por meio do Fejzi, lorde Edenmont se inteirou de que sua majestade o
apreciava como a um filho, e se as circunstâncias tivessem sido outras, o visir
teria dado a metade de seu reino para manter esse inteligente e valente lorde
a seu lado para sempre. Mas, por desgraça, não poderia tê-lo a seu lado nem
um dia mais. Alí tampouco poderia acompanhar a sua excelência a Corfú,
porque as obrigações o mantinham ocupado em todas as partes. Parecia que
tinha algumas dificuldades no sul do reino; e seria necessária uma pequena
guerra para manter ali a paz. Mas não havia razão para que se alarmasse.
Lorde Edenmont poderia partir naquela mesma manhã e chegar a Corfú
rapidamente. Ele não queria pôr em perigo os jovens fazendo-os permanecer
ali por mais tempo.
Alí falava de maneira despreocupada, como se mencionasse assuntos sem
importância. Entretanto, ao dar-se conta da maneira como Fejzi gaguejava
enquanto traduzia, Varian sentia um calafrio, como se um dedo de gelo
percorresse sua coluna vertebral.
— Disse a sua alteza, ontem a noite, que não tenho nenhuma intenção de
ficar aqui. A que vem agora suas insinuações? — perguntou ao Fejzi.
— Sua alteza está preocupado porque a filha do Leão Vermelho poderia

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seguir causando problemas que atrasem sua partida. Em outra ocasião a


rebeldia pode ser divertida; neste momento pode ser perigosa. Ismal está
profundamente decepcionado. É possível que seus amigos queiram aproveitar-
se das preocupações do visir causando problemas internos. Ismal pode acabar
facilmente em um calabouço. Por desgraça, seus amigos estão por toda parte.
Poderia demorar meses para capturá-los a todos. Dá-se conta, milorde? Sua
alteza não pode atender adequadamente seu reino até que vocês não estejam
a salvo com os ingleses.
— Pode assegurar a ele que a senhorita Brentmor não causará problemas
de nenhum tipo — disse Varian secamente. — Sei que parecia estar inquieta
quando a viu ontem à noite, mas já recuperou a calma. Prometeu-me que
partirá conosco tranquila, e estou convencido de que sua palavra é tão firme
como a de qualquer cavalheiro. Que demônios é esse estrondo?
Na habitação do lado se ouviram gritos, chiados, golpes e pancadas. Logo
que tinham saído da boca de Varian aquelas palavras Percival cruzou a toda
pressa a porta, e dois robustos guardas se precipitaram atrás dele. Um deles
tratava de segurar o menino pelo braço, mas o soltou de repente ante a ordem
seca de Alí.
Percival olhou o guarda com cara feia, arrumou a jaqueta e se dirigiu
correndo para Varian.
— Peço desculpas por incomodá-los — disse com voz entrecortada o
menino, — mas não pude evitá-lo. Aconteceu algo totalmente inesperado.
Tirou uma parte de papel do bolso do peitilho de sua camisa, e com mão
tremendo o deu a Varian.
Varian deu uma olhada rápida à nota, embora não fosse preciso. A palidez
do Percival e a rigidez de sua expressão diziam tudo o que tinha que saber.
Com o rosto decomposto, Varian se dirigiu ao Fejzi.
— Pode ser amável e expressar a sua majestade minha admiração por sua
perspicácia?
— Não entendo, milorde.
— Parece-me que depois de tudo, haverá um atraso em nossa partida —
disse Varian com um tom de voz mortalmente tranquilo. — A jovem dama
escapou. Por favor, faça chegar a ele minhas desculpas pelo incômodo, mas

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devo pedir que me ajude. Vejo-me na obrigação de encontrá-la e torcer o


pescoço dessa menina.

Risto se introduziu sem fazer ruído na luxuosa habitação e correu para o


divã onde Ismal estava deitado.
— A garota fugiu de Tepelena — e disse Risto sem mais preâmbulos. Com
seu chefe, poucas vezes esbanjava as palavras.
Ismal se ergueu lentamente, com os olhos azuis brilhando de interesse.
— Assim é? Está seguro?
— Sim. Escapou em um arrebatamento de raiva com o lorde inglês por
quem sabe o que. Procuram-na desde a manhã cedo, de maneira muito
discreta. Ninguém diria que aconteceu algo estranho… só se alguém prestar
atenção aos pobres diabos entrando e saindo dos aposentos de Alí. Agora
mesmo me interrogaram. Você foi o seguinte na lista, mas dessa vez teve
sorte. Acabam de encontrar o guarda que ela golpeou ontem. Estava
amordaçado e amarrado com seu próprio cinturão, e enfiado na arca que a
garota subiu para saltar pela janela.
— Rendeu a um dos guardas — A boca do Ismal se curvou em um sorriso
relutante. — Nenhum deles mede menos de um metro oitenta e todos pesam
ao menos o dobro que ela. Mas parece que a moça tem caráter… e sem dúvida
é rápida, muito mais forte do que parece e também muito esperta.
— Pouco importa como conseguiu. Mas não há dúvida é que se foi.
— E ninguém sabe por quê?
— Fejzi diz que deixou uma nota ao menino. Dizia que todos os homens,
menos você, tinham-na decepcionado.
O brilho azul dos olhos do Ismal se intensificou.
— Isso é verdade? Então me pergunto por que não me chamou Alí em
seguida para acusar-me de ter ajudado à garota em sua fuga.
— Não sei. A nota dizia algo mais, mas só o que pôde me dizer Fejzi é que
nela advertia ao menino de que não se deixasse utilizar por ninguém, como
tinham feito com ela. O lorde inglês não deixou que ninguém mais lesse a
nota. Estou seguro de que o resto não era mais que acusações contra ele.
Parecia tão calmo e insolente como sempre, mas por dentro não estava. Isso

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se podia notar.
— Sem dúvida estava considerando a possibilidade de que tivesse sido
assassinada. Teria gostado de vê-la contrariá-lo ontem de noite.
— Não sei o que pensa — disse Risto secamente. — Não confio nele. Não é
o que parece.
— Não é nada — disse Ismal voltando o rosto para o fogo. — Está
destinado ao fracasso. Há muitas complicações. Não sei quem matou Jason
nem por que, e não consigo entender o que é que trouxe aqui o barão, com
esse moço, esse em especial. Só o que sei é que danificaram meus planos. No
momento que a peça de xadrez saiu de minhas mãos, meus maravilhosos
planos se converteram em fios enredados, e um a um vejo que me escapam
das mãos. Agora não faço mais que me perguntar como e quando aparecerá a
rainha negra… para selar meu funesto destino.
— Está sendo muito pessimista. Deixa que sua cabeça volte ao mais
escuro — repreendeu Risto. — Essa peça de xadrez pode estar no fundo do
mar ou do rio, ou em Serbia com esses incompetentes que não foram capazes
de distinguir um menino de uma garota. Estivemos procurando por toda parte.
Mesmo se alguma vez a tivessem tido em seu poder, a garota ou seus amigos,
não teriam sabido o que fazer com ela.
— Eu penso o mesmo, mas meus instintos dizem outra coisa. Deveria ter
feito caso deles e abandonar Tepelena quando ainda estava a tempo.
— Já não pode fazê-lo. O seguirão no momento em que saia desta
habitação.
— Mas se ela pôde escapar… e não é mais que uma mulher.
— Mas bem dirá uma endiabrada mulher — replicou Risto zangado. — Não
faz nada mais que causar problemas. Ao menos agora já não terá que fingir
que está morrendo de amor por ela. Deve ter sido muito humilhante suplicar a
essa horrível zorra.
— Absolutamente, foi muito divertido. Infelizmente, também foi muito
caro. A função de ontem à noite me custou mil libras. Com esse dinheiro
poderia ter comprado rifles, homens e até a ajuda do próprio sultão. — Ismal
fez uma pausa. — Ou, no mínimo, poderia ter conseguido à garota.
— Mas você não a quer — foi precipitada resposta de Risto. — Uma

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esquálida aborrecida com uma língua viciosa. Eu preferiria me deitar com uma
cobra.
Ismal sorriu levemente, sem deixar de olhar ao fogo.
— Ah, bom! Mas você não tem gosto para as mulheres.
— Tampouco você o tem muito desenvolvido.
— Isso não quer dizer que compartilhe suas inclinações. Se desejasse a
um homem, ficaria com o formoso inglês. É um espécime muito intrigante,
não acha? Com sua cabeleira negra como o carvão, essa pele tão branca e
esses olhos cinzas. Talvez devesse tê-lo comprado, não acredita? Ao que
parece, certamente o preço não seria muito alto.
O rosto azeitonado de Risto se escureceu.
— Não teria entregado a essa pequena endiabrada… e no final teria ficado
com seu dinheiro.
Ismal deu de ombros.
— Assim que me inteirei de que vinham a Tepelena, sabia que ia me custar
uma fortuna. Inclusive quando lorde Edenmont rechaçou minha oferta, sabia
que acabaria pagando. Como esperava, Alí se ofereceu generosamente para
aliviar meus problemas de consciência ontem de noite, me aliviando de mil
libras. Disse-me que necessitava para subornar ao inglês. O que realmente
duvido. Eu menti, ele mentiu, e ao final tive que acabar pagando, como
sempre me acontece. De qualquer modo, pensava que, pelo menos, no final ia
me deixar a garota.
— Outra vez a garota — disse Risto com impaciência. — Ela se foi e com
bom vento. Por que continua voltando para esse espantalho ruivo?
— Voltando? — Ismal se voltou para seu criado e arqueou uma de suas
bem desenhadas sobrancelhas. — A que vem tanta hostilidade, Risto —
Parece-me muito estranho em você. Qualquer um diria que está ciumento.
O medo brilhou por um momento nos olhos negros daquele servente.
— Está rindo de mim — disse ele. — Sempre o tem feito…, desde que era
um menino.
— Teria preferido que mentisse, como estou acostumado a fazer com todos
os outros? — perguntou-lhe Ismal com voz suave. — Também tenho que me
pôr minha bela máscara para ti?

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— Não, não poderia suportá-lo.


— Então deixa de atuar como uma esposa ciumenta. Nunca antes se
comportou assim.
— E você nunca antes tinha atuado de uma maneira tão estranha. — Risto
duvidou por um momento e logo seguiu falando com um tom de voz amargo.
— Ontem à noite a chamou em sonhos.
Ismal ficou observando tranquilamente a expressão de seu servente
durante um longo e tenso momento.
— Entendo. E nessa manhã ela desapareceu. Espero que você não a tenha
feito desaparecer, Risto.
— Pelo Alá! Teria que ter imaginado. Esteve jogando comigo. — Risto
fechou os olhos. — Eu não a assassinei, juro-lhe isso.
— Então, o que fez?
— Sabe tudo —respondeu Risto desconsolado. — Você sempre sabe tudo.
— Sei que despertei antes que saísse o sol e me dei conta de que já não
estava no quarto. Sei que faz um momento, quando me trouxe a notícia do
desaparecimento de Esme, seus olhos negros brilhavam com deleite.
Risto estremeceu.
— Seu desaparecimento me põe em perigo, Risto, embora agrade a você.
Isso é algo muito estranho em um servente devoto… e em um amigo.
Risto se ajoelhou diante do divã.
— Me escute — rogou. — Não vai poder mover um dedo no sul enquanto
eles estejam viajando. Se o tempo voltar a piorar, podem passar semanas
viajando. E você tem que ir a Preveza dentro de uns dias, mas acho que
pensou nisso. Enquanto a garota estava a seu alcance, tinha sua cabeça nela e
nesse imundo inglês. Você mesmo disse que ontem à noite acabaram pilhados
em sua própria armadilha. Dizia que se tivesse tido uns dias mais, Jason teria
fugido. Agora sua maldita filha desapareceu, e será Alí quem tenha que se
preocupar em encontrá-la. Esta é a oportunidade que esperava para partir …
— Desapareceu por própria vontade, Risto?
— Que o Todo-poderoso me fulmine agora mesmo se estou mentindo —
disse o servente com lágrimas que caíam pelas morenas e curtidas bochechas.
— Eu não encostei em nenhum fio do cabelo dela. Eu a vi partir, isso é tudo.

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— E não disse a ninguém, nem tentou detê-la.


— Segui-a durante um trecho do caminho. Isso é tudo. Mas não fiz nada
mais.
Ismal se inclinou para seu servente, olhando-o fixamente com seus olhos
azuis e inocentes como os de um menino, e o encanto de um anjo.
— E por onde foi? — sussurrou-lhe ao ouvido.

Capítulo 18

Por uma vez a sorte sorriu a Esme. A pequena aldeia da Saranda tinha
triplicado sua população com motivo do festejo, e ela se arrumou para chegar
no dia antes das bodas de Donika. Tinha reconhecido Branko, o irmão da
Donika, logo ao chegar, mas tinha esperado que caísse a noite para
apresentar-se. A essas horas, a maioria dos homens já tinham alcançado altos
graus de intoxicação etílica, e as mulheres estavam em pleno frenesi dos
preparativos. Não teriam visto nem a um elefante em correria, muito menos ao
mendigo moço que aparentava ser Esme.
Branko não gostou nem um pouco da história que ela contou. Apesar disso,
e de que dissesse mil vezes que era uma louca e uma exaltada, não deixou de
ajudá-la. Além disso, ele devia. Ela tinha salvado sua vida dois anos atrás e
tinha tirado uma bala de sua perna.
Só o que queria, disse-lhe Esme, era um barco que pudesse levá-la ao
norte, mais à frente do território de Alí, a Shkodra. Era onde Alí não tinha
nenhum poder, e ela poderia viver a salvo em casa do velho que anos atrás
tinha lhe ensinado como curar as feridas de bala.
— Não quero que diga a ninguém mais que estou aqui — pediu ela. — Só
quero que me encontre um lugar onde me esconder. Não me moverei daqui até
que me prometa isso.
Branko refletiu um momento.
— Não conheço a cidade — ele disse ao final em um tom de voz suave e
pensativo. — O único lugar seguro que me ocorre é que fique com minha
família. — Quando ela começou a queixar-se de que podia pô-los em perigo,
ele a repreendeu: — Já sabe que a ninguém ocorreria vir buscá-la aqui. E de

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qualquer modo, ninguém pensará que veio se esconder tão perto de Corfú. Em
qualquer caso, dentro de pouco darão voz de alarme e os oficiais irão procurar
uma jovenzinha disfarçada de mendigo.
— Com os olhos verdes — recordou ela. — Tenho que me esconder. Não há
forma de dissimular a cor de meus olhos.
— Isso não será necessário se a fazemos passar por estrangeira. Por
cigana, por exemplo. Donika pensará em algo — disse ele. — Mas antes tenho
que levá-la até a casa sem que ninguém suspeite.
Deteve-se a pensar de novo durante um momento. Também Esme tentou
que lhe ocorresse algo, mas seu cérebro não parecia querer cooperar. Estava
tão cansada como seu corpo.
— Sim, é bastante fácil — disse Branko olhando-a pensativamente. — No
momento, será um menino que chegou de viagem e com quem acabo de me
encontrar. Levarei você nos ombros até a casa. Só tem que manter os olhos
fechados até que cheguemos ali.
Não podia ter ocorrido um plano mais atrativo. Ela tinha passado três dias
sem deixar de tentar raciocinar, planejando cada um de seus movimentos,
enquanto tratava de manter o medo e a tristeza afastados de seus
pensamentos. Tinha vendido o rifle que tinha roubado do guardião, e com o
dinheiro que tinham dado por ele tinha conseguido um cavalo. A partir desse
momento tinha avançado bastante depressa, pois o tempo era muito bom. De
qualquer modo, Esme estava cansada até a medula dos ossos. Durante uns
poucos minutos, poderia descansar e deixar que alguém pensasse por ela. As
maneiras do Branko podiam ser lentas, mas não o era sua inteligência. Jason
sempre tinha tido o irmão da Donika em grande estima.
Esme deu a ele as armas e a bolsa de viagem. Branko as colocou sobre um
de seus largos ombros e a Esme sobre o outro. Imediatamente, o corpo dela
desabou com alívio e suas pálpebras se fecharam com satisfação. O resto foi
uma apagada consciência de movimentos, vozes e ruídos. Quando chegaram a
casa, até essa consciência se desvaneceu. Esme se afundou em um escuro e
ditoso estado de esquecimento.

Do alto da colina rochosa, por cima do frondoso bosque, Varian viu

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

aproximar-se dois cavaleiros no cruzamento dos caminhos. Não chegaram a


deter-se, mas ambos tomaram o desvio da direita.
— Não posso acreditar disse Varian ao Fejzi, que estava de pé a seu lado.
— Eu não o entendo — disse o secretário, — mas acredito. Ismal sabe
como fazer isso. É um jovem muito inteligente. E tão orgulhoso de si mesmo
para nos economizar o trabalho de ter que procurá-la por toda a comarca.
Apontou para os homens que esperavam embaixo, que em seguida
pegaram suas armas e as carregaram.
— Esperaremos até que parem Ismal e Risto — disse Fejzi. — Logo seus
homens poderão levar a você e o senhorio Percival ao povoado. É um lugar
pequeno. Não será difícil encontrá-la.
— Se é que está aí.
— Tem que estar aí.
Embora todo mundo acreditasse no mesmo, Varian não estava tão
seguro; mas eles eram a maioria e tinha que considerá-los. O que Varian
acreditava — ou temia — era que… Era melhor não pensar nisso. Ao menos no
momento.
— Não vem conosco? — perguntou Varian.
— Devo escoltar o peralta Ismal até seu primo.
— Tem dois esquadrões para escoltá-lo, e eu necessito de um intérprete
competente — disse Varian com convicção.
— Você não conhece o Ismal. Quarenta homens não são nada para ele.
Após uma hora todos esses bravos guerreiros estariam começando a chorar;
sempre consegue o que quer, tem uma maneira muito convincente de pedir as
coisas. Por sorte eu não sou um valente guerreiro, mas um grande covarde.
Além disso, eu fui seu tutor durante muitos anos e sou imune as suas
artimanhas. O medo ao Alí me mantém firme.
— Fala desse arrogante inútil como se fosse um bruxo.
— Há quem afirme que sua mãe era descendente de Olímpia, a mãe do
Alexandre Magno. Dizem que era uma feiticeira de cabelo vermelho como o
fogo, a mesma cor de cabelo do Leão Vermelho. Dizem que foi amante dos
deuses e que por isso Ismal é um homem de tanta beleza. É obvio, qualquer
um pode afirmar que pertence aos descendentes de Alexandre. De qualquer

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

modo, eu sempre acreditei que havia nele algo de desumano.


— Um pouco de insensato, diria eu — acrescentou Varian voltando o olhar
aos dois cavaleiros.
— Possivelmente — disse Fejzi. — Se diz que os desejos tornam loucos aos
homens.
Varian tencionou as mandíbulas.
— Vocês os albaneses são muito românticos. Até Alí parece estar
convencido da desesperada paixão que Ismal sente pela senhorita Brentmor.
Ou ao menos isso pretende nos fazer acreditar.
— Você não acredita lorde Edenmont?
— O que eu acredito parece ser de tão pouca importância que dá no
mesmo o que faça ou diga.
Abaixo, as tropas de Alí começaram a pulverizar-se pelos caminhos.
Conforme foram avançando a mais velocidade, foram se colocando em
formação. Em menos de um minuto, a massa de homens e animais se
converteu em uma longa cunha a galope, que cavalgava inexoravelmente por
volta dos dois cavaleiros solitários.
Fejzi se aproximou de Varian.
— Veja — disse Fejzi, — vão por aonde vão, os homens do Alí estarão
esperando. Não tem escapatória.
— Certamente já sabiam que os perseguiriam. Ismal não é um estúpido.
Apostaria qualquer coisa de que sabe, e só está nos levando a uma
perseguição sem sentido. — A voz de Varian tinha um tom de raiva contida. —
Possivelmente tinham planejado tudo, os dois. Ela não pôde ter escapado sem
sua ajuda.
Fejzi deu de ombros.
— Pode ser que sim; ou pode ser que não. Tudo isto vai além de minha
capacidade de compreensão. Parece que Alí está jogando com seu primo de
algum jeito, mas eu não sei do que se trata. Pode ser que Ismal tenha
suspeitado. Ou pode ser também que o tenham enganado. De qualquer modo,
as intrigas de nossa corte não acredito que sejam de sua incumbência,
milorde. Em poucas palavras, você só tem que encontrar a garota e partir com
ela daqui.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Eu gostaria de poder fazê-lo. — Varian deu um olhar ao Percival, que


estava a uns metros do secretário, sentado em uma pedra e com os olhos
cravados no caminho. — Oxalá pudesse fazê-lo.
— Você fará o que seja correto, milorde, disso não tenho a menor duvida.
— Então você que está louco — murmurou Varian.
Logo deu meia volta e pôs-se a andar pelo estreito caminho.

O dia das bodas da Donika tinha amanhecido ensolarado e caloroso, e os


raios do sol caíam suavemente sobre os recém casados, produzindo reflexos
dourados nas contas de ouro com que adornava sua negra cabeleira. Agora,
apesar de estar começando a entardecer, ainda brilhava com força o sol,
fazendo Esme desejar que seus cúmplices a tivessem disfarçado com roupas
um pouco mais leves. Levava o rosto cheio de pintura e suava todo seu corpo,
vestida com as múltiplas capas do traje de cigana.
Não tinha nem ideia do que tinha acontecido na noite anterior. Esme
somente sabia que despertou muito antes do amanhecer para encontrar-se em
um quarto ocupado pelas irmãs, as primas, as tias e a mãe de Donika… e sua
própria avó, Qeriba.
Se não estivesse tão cansada na noite anterior, teria percebido que Qeriba
tinha que estar ali, porque era tanto uma prima do noivo como amiga da
família da noiva. Mas naquele momento ela não era — isso não tinha que
esquecer — Esme, a amiga da Donika.
Desde o dia em que Esme tinha tido sua primeira menstruação, Qeriba
tinha se empenhado em encontrar-lhe um marido. Por isso, no momento que
Esme acabou de lhe contar sua história, sua avó tinha começado a repreendê-
la, não por ter posto em perigo a vida de seus amigos, mas sim por ter
escapado do matrimônio com um solteiro perfeitamente desejável.
Esteve repreendendo-a enquanto seus amigos a vestiam de cigana e
também durante o apressado café da manhã. Passou toda a boda
murmurando e ainda seguia grunhindo horas depois, quando se sentaram com
um numeroso grupo de mulheres em um jardim separado atrás da casa do
noivo. Ele estava dentro, com os homens, escutando as poucas delicadas
canções e ainda menos delicados conselhos que outros homens diziam ao

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ouvido. Também as mulheres cantavam, embora com um volume de voz muito


mais baixo e com muita mais sutileza na temática de suas canções. Só Qeriba
se atreveu a dar alguma ocasional e imodesta sugestão, e unicamente quando
por momentos esquecia de arengar a sua pequena neta.
— Um inglês bem apanhado, de bom berço, e você sai fugindo dele —
estava dizendo sua avó pela enésima vez. — Por que não ia tomar o dinheiro
do Alí? É um tesouro tão grande que acredita que um homem, mesmo um
cristão, ia se casar com você por nada?
— Avó, quantas vezes tenho que dizer isso Não tinha nada que ver com
casar-se comigo. Só o que ele queria era…
— Os homens não sabem o que querem. Isso as mulheres devem ensinar.
— Qeriba fez um gesto a seu redor. — Qualquer destas garotas poderia ter
ensinado. Mas você não. Você sabe ler e escrever. É mais preparada que uma
dúzia delas juntas, mas isso não pode fazer.
— Qualquer delas é uma dúzia de vezes mais bonita que eu, avó.
— Os homens não sabem o que é formoso e o que não o é. Faça com que
um homem seja feliz a seu lado e quando a olhar pensará que é Afrodite. Que
Deus me dê paciência. Essas são coisas que você deveria entender melhor que
qualquer outra moça.
— Não tenho vontade de entender — sussurrou Esme irritada. — Não me
interessa nada apanhar um homem… se é que pudesse fazê-lo. Só o que eu
quero é que me deixem em paz.
— E morrer virgem — disse Qeriba suspirando. — Não vai encontrar
marido em Shkodra.
— Não quero…
— É um lugar horrível. Ali todos são bárbaros. Jason a deixou ali muito
tempo. E aprendeu a se comportar de uma forma selvagem.
— Então será melhor que retorne ali. Ao menos é o lugar ao qual pertenço.
Esme esfregou o rosto. A grossa capa de pintura fazia com que pinicasse
o rosto, e estava suando copiosamente, apesar de encontrarem-se sentadas à
sombra. Não era só o calor nem as seis capas de roupa que vestia o que
estava oprimindo, mas sim o nervosismo que aumentava nela conforme se
aproximava o momento de partir dali.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Branko tinha encontrado um barqueiro que a levaria até Shkodra quando


se fizesse noite, porque não tinha vontade de partir antes que acabassem os
festejos. Esme esperava que ao menos não bebesse muito. Nunca tinha
dirigido um barco sozinha.
— Você pertence à família de seu pai — disse Qeriba. — Esse era o desejo
do Jason. — ficou olhando a Esme com aborrecimento. — Faz um momento
estava vendo que lia a sorte. Quer que eu leia a sua? Em tudo o que passou,
vejo claramente a mão do destino. Não pode escapar de seu kismet tomando
um barco. Mas não tem nenhum sentido que eu diga isso. Nunca vi uma garota
tão obstinada como você.
— Amán, avó, me conceda uma pausa — pediu Esme. — O que está feito
feito está. Dentro de umas horas eu partirei. Temos que brigar e nos despedir
zangadas? Não posso ter umas poucas horas de trégua entre aqueles que amo
antes de ir?
Qeriba ficou olhando o rosto de sua neta, e seu próprio rosto se relaxou.
— Sim, claro, dá má sorte partir zangado — disse olhando a seu redor. —
Rir e cantar são coisas boas, mas é duro para os ouvidos de uma anciã. O sol
esquenta muito e não sopra nem um pingo de vento que alivie o calor. Além
disso, estou faminta. Vamos comer algo e depois acompanharei você até o
cais. Faz muitos anos que não passeio pelas praias de Saranda. Vamos juntas e
deixemos que o mar acalme nossos espíritos, de acordo?

Enquanto seus homens se dispersavam por Saranda, Varian esperou


em uma colina de onde se divisava todo o povoado. Esteve inquieto uma
interminável hora, caminhando de um lado para outro, esperando que Agimi
retornasse para informá-lo.
Informou-lhe que Saranda estava em plena celebração. Um dos filhos de
uma das famílias mais prósperas da cidade acabava de casar-se e toda a
população estava celebrando. As ruas adjacentes à casa do noivo estavam
infestadas de gente. A única maneira de entrar sem tropeçar com bêbados
convidados para as bodas era a pé. Em poucas palavras, lorde Edenmont não
podia esperar que sua chegada passasse despercebida, e o rumor de sua
presença se estenderia rapidamente entre a multidão.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Acredito que isso parece um problema para Agimi — disse Varian ao


Petro.
O marinheiro franziu o sobrecenho.
— E que outra coisa esperava? Aonde ela chega há sempre problemas.
Agimi diz que a noiva é uma boa amiga da pequena zorra. Não vão nos ajudar.
Matarão a todos.
— Não seja tolo — disse Percival. — Nas bodas sempre há um beija geral.
Não matariam nem o pior de seus inimigos. Mustafá diz…
— Não me importa o que diga Mustafá — cortou Varian. — Todo o povo
está bêbado. Uma multidão de bêbados pode fazer o que passar pela cabeça.
Você ficará aqui com o Petro e se assegurará de que ele se mantenha afastado
da garrafa de rakí. Já temos muitos problemas sem ter que nos preocupar com
você.
— Mas, senhor, eu prometo que…
— Ficará aqui, Percival.
— Mas necessitará de Petro para…
— Estou seguro de que encontrarei alguém que saiba grego ou italiano.
Pelo menos o padre tem que saber latim. Já reverei isso.
— Não são papistas, senhor, não no sul. Aqui são…
— Maldito seja. Pode manter a boca fechada por uma vez e fazer o que
ordeno? Advirto-o, Percival, se ocorrer-lhe sair desse lugar, darei em você a
surra que faz tempo deveria ter dado.
Percival se deixou cair de novo, zangado, sobre a pedra em que esteve
sentado até esse momento.
— Sim, senhor — respondeu com voz submissa.
Varian deu um olhar de advertência ao Petro e logo montou em seu cavalo
e seguiu Agimi colina abaixo.

Donika apertou a mão de Esme.


— Não, não pode ir tão cedo —disse. — Prometeu que cantaria para mim,
cigana.
Esme olhou a Qeriba.

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— Bom, que mal pode haver nisso? — disse a anciã. — Cante para a noiva
e deseje a ela boa sorte. Primeiro são os desejos da noiva. Depois, os
caprichos de uma anciã.
Esme esboçou um sorriso. A abundante comida tinha feito com que o
humor de Qeriba melhorasse radicalmente. Depois de comer até tinha
espalmado a mão em Esme dizendo:
— Por fim refresca um pouco. Aproxima-se um bom vento, não sente?
Mas Esme não sentia nenhuma brisa. Embora o sol estivesse começando a
ficar pouco a pouco sobre o mar, no jardim ainda fazia um calor cansativo. Não
estava segura da razão pela qual sentia tanto calor se não era por suas muitas
capas de roupa. Pode ser que fosse uma sensação interior. Sentia-se sufocada
pela felicidade que irradiava Donika. Aquilo era egoísta e pouco generoso, disse
Esme a si mesma repreendendo-se.
Devolveu a Donika o aperto de mãos e disse:
— Cantarei minha melhor canção de amor. Um canto um pouco triste, mas
que tem final feliz.
Sentou-se sobre os paralelepípedos aos pés da noiva, arrumou a elegante
saia que caía ao redor e aceitou a çiftelia artesanal que oferecia outra das
garotas antes de começar a cantar.
Realmente era uma melodia triste, que contava a história de uma
camponesa abandonada pelo filho de um homem rico. Na segunda estrofe,
arrancou lágrimas de mais de um par de olhos femininos. Até os olhos de
Donika se umedeceram, embora seguisse sorrindo e suas lágrimas pareciam
radiantes raios de alegria.
Ao chegar ao terceiro verso, quando a camponesa cortava uma papoula no
lugar onde se encontrou com seu amante pela primeira vez, Esme notou que
acontecia algo a seu redor. A audiência parecia completamente cativada por
sua interpretação; algumas mulheres se puseram a chorar abertamente.
Acontecesse o que acontecesse, todas pareciam estar muito imersas na triste
canção para dar-se conta.
Esme deu um olhar rápido a Qeriba. O olhar da anciã não estava posto em
sua neta mas na casa, e seus olhos entreabertos lançavam brilhos.
Então Esme se deu conta do que estava acontecendo. O ruído dos homens

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tinha cessado. Não se ouviam gritos, nem cantos escandalosos, só um


murmúrio de vozes. Ela estremeceu. Olhou a suas costas, mas não viu
ninguém. Ninguém. Só aquela casa muito silenciosa.
Em seu interior sentia agora um calafrio, e uma estranha sensação
aninhou em seu ventre. Travou sua língua na estrofe seguinte da canção, e
logo o pânico que se apoderou, a fez perder por completo a melodia.
Levantou-se deixando cair o instrumento, sem pensar em nada mais que na
necessidade de fugir dali. Dava-se conta de como a olhavam as mulheres que
a rodeavam, e das vozes agudas que consultavam umas a outras com
preocupação. Esme não fez caso de nenhuma delas. Já estava pondo-se a
correr para o caminho, com todos seus sentidos postos na porta que havia
diante dela.

Varian a tinha ouvido cantar. Estava seguro de que a voz que tinha
ouvido era a sua. Saiu correndo para o jardim… e se encontrou rodeado por
um muro de mulheres.
— Onde está? — perguntou em albanês.
Silêncio.
Seu olhar se dirigiu de um lado a outro e se deteve na estreita porta.
Apenas tinha começado a andar pelo caminho que se dirigia para aquela porta
quando o grupo de mulheres ficou em movimento, bloqueando seu passo. E
logo ficaram quietas, convertidas em um muro de rostos sérios. Agimi tratou
de abrir caminho entre elas, mas dois dos homens o agarraram e o detiveram.
Ninguém ia atrapalhar o lorde inglês, mas tampouco iam permitir que ninguém
o ajudasse.
Amaldiçoando entre dentes, Varian deu as costas às mulheres. Deviam ser
umas cinqüenta, e havia mais pululando pelo jardim. Não iam deixá-lo passar,
isso era bastante óbvio. E suas intenções eram muito claras. As mulheres
ficaram quietas, muito juntas, de maneira que para passar entre elas deveria
tocá-las. Mas mesmo que somente sua jaqueta roçasse a uma delas, os
homens se jogariam em cima todos de uma vez. A maioria deles estava já
completamente bêbados e não iriam ter em conta que era inglês, um
convidado em seu país. Além disso, não tinham sido muito hospitaleiros

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quando se apresentou ali. Certamente Esme o tinha apresentado como um


monstro, a encarnação do demônio, sem dúvida. Não importava. Não pensava
dar-se por vencido.
O demônio esboçou o mais encantador de seus sorrisos.
— Quanta beleza reunida — disse com voz suave. — Me deixaram sem
fôlego.
Algumas mulheres mais jovens se moveram incômodas, como ele tinha
esperado. Não era necessário que as mulheres entendessem seu idioma.
Respondiam a seu tom de voz e a sua maneira de olhar. Acreditassem o que
acreditassem dele um momento antes, agora estavam confusas. A noiva de
olhos negros, que tinha se colocado à frente daquele exército de mulheres,
olhava-o surpreendida e preocupada. A seu lado havia uma anciã enxuta
vestida completamente de negro e que murmurava algo. O comentário da
anciã fez que se ouvissem várias risadas apagadas. E também umas quantas
respostas irritadas.
Varian se dirigiu a ela.
— Você entende inglês? — perguntou-lhe.
A anciã deu de ombros.
— Pak. Um pouco.
Graças ao céu.
— Então, por favor, diga-lhe que nunca antes tinha visto uma noiva tão
formosa, como uma rosa florescente em meio de um ramo de beleza. Os
homens não podem mover-se porque se sentem impotentes ante essa visão.
Perguntam-se como me atrevi a me aproximar tanto dela, porque sem dúvida
tanta doçura acabará com minha vida.
A anciã traduziu seriamente essas palavras àquelas que a rodeavam. A
inquietação que havia entre elas aumentou. Ouviu várias risadas nervosas.
— Atrevi-me a vir aqui porque perdi meu coração — continuou explicando
Varian com voz mimosa. — Um passarinho o roubou e se foi com ele. Ouvi-o
cantar faz um momento. Ou seria acaso só um sonho? Se ela estiver por aqui
perto, estas doces flores não deveriam me afastar dela. Não podem ser tão
cruéis comigo.
Pelo rosto da noiva começaram a correr lágrimas, mesmo antes que a

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anciã tivesse acabado de traduzir suas palavras. A noiva olhou de maneira


inquisitiva ao grupo de mulheres. A mais velha deu de ombros, e logo fez um
gesto de impaciência com a mão. A noiva se afastou para o lado e as demais a
imitaram.
— Vá, Varian Shenit Giergi — disse a anciã.
Varian lhe ofereceu uma reverência.
— Faleminderit — disse. E pensou: Que Deus me ajude. Porque estava
claro que ninguém mais ia poder fazê-lo.
Pôs-se a correr rapidamente para a porta.
Não sabia para onde dirigir-se nem por onde teria partido Esme. Mas os
muros do jardim eram altos e não parecia haver mais que uma saída que dava
à praça.
Atrás da porta descobriu uma vasta horta que se elevava para a colina, e
não viu nem uma alma pelos arredores. Olhou desesperado a direita e
esquerda.
— Esme! — gritou.
Só o vento respondeu, mais forte que antes, avançando do sudeste. Podia
verificar na horta ou dirigir-se em direção contrária, ao oeste, para a baía.
Olhou para o sol poente e se dirigiu para a parte rochosa da colina, que se
elevava desde o mar.
Depois de olhar as águas cegado pelo sol durante um momento, pôde
divisar um caminho. À esquerda da horta o caminho se fazia mais estreito e
empedrado, descendo tortuosamente pela ladeira rochosa da colina. Pareceu-
lhe que tinham passado horas quando se deu conta de que estava caminhando
em círculos sem aproximar-se nem um pouco da baía. Lembrou-se de que na
Albânia os caminhos sempre eram assim: tortuosos, e que davam voltas sem
fim enquanto pareciam não chegar a nenhuma parte. O que significava que
Esme não podia ter avançado muito mais depressa que ele… se é que tinha
tomado aquele caminho. Tinha que ser assim. Não podia expor-se alternativa.
Muito mais tarde, quando lhe pareceu que tinha rodeado toda a montanha,
Varian chegou a um terreno de videiras retorcidas. Era uma zona de vegetação
desconhecida, além da qual se abria um claro de onde se divisava o mar.
Abaixo se estendia a baía de Santi Quaranta: os Quarenta Santos. Desceu

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correndo a ladeira e, através de um caminho de terra, chegou até a praia. A


sua direita, havia um cais que se sobressaía do porto introduzindo-se no mar.
Como um enorme braço apoiado no cotovelo, o quebra-mar de pedra abraçava
um grupo de pequenas embarcações. Ao oeste, onde o sol já começava a
submergir na água, pôde discernir o escuro cais da ilha de Corfú, elevando-se
no azul de meia-noite do mar Jônico.
Lançou uma olhada ao seu redor, enquanto se dava conta de que só
restava meia hora, uma hora no máximo para poder encontrar Esme antes que
anoitecesse. Enquanto isso, seus pés o conduziam para onde descansavam os
barcos, enquanto olhava entre elas em busca de algum sinal de vida.
O pequeno porto com seu estreito embarcadouro parecia completamente
deserto. Só se ouvia o romper das ondas e o crepitar das madeiras dos cascos.
Ele parecia ser a única pessoa em Saranda que não estava nas bodas. Exceto
Esme, estivesse onde estivesse. Mas não estava ali, pensou ele, enquanto
sentia que o desespero se apoderava de sua mente. Não se via ninguém por
aquela zona.
— Esme! — gritou pondo-se a correr para o quebra-mar. — Esme!
Os barcos, a maioria deles singelos barcos de pesca, não devolveram
resposta alguma. Estavam ali quietos, em silêncio, protegidos pelo enorme
braço de pedra que os rodeava. Brilhos avermelhados dançavam entre os
mastros e os cascos, a única luz no meio do crepúsculo de crescentes sombras.
Parecia que todos os barcos estavam vazios, e disse a si mesmo que tinha sido
um grande engano tomar aquele caminho. Mas logo se recordou que ela era
muito miúda e que bem podia ter se escondido debaixo de uma manta ou
inclusive detrás de um montão de cabos e redes. O sol já estava muito baixo e
a maioria dos barcos descansava à sombra do quebra-mar. Até que não
verificasse cada rincão de cada barco, não podia estar seguro de que ela não
se escondeu ali.
Desceu até as escorregadias pedras do mole.
— Esme!
Subiu a bordo do barco que estava mais perto, um estilizado veleiro. Uma
rápida inspeção confirmou que ali não havia ninguém. Dali passou ao seguinte.
E ao outro. Ninguém. Nenhum som humano, exceto sua furiosa respiração e o

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batimento do coração de seu desbocado coração.


Ouvia a suas costas o rumor que vinha do povoado, enquanto os farristas
se aproximavam do porto. Não era mais que um rumor de vozes,
particularizadas de vez em quando por um grito, mas Varian não tinha
interesse algum pelo que acontecia no povoado e apenas olhou.
Seus sentidos estavam alertas tratando de distinguir qualquer sinal de
vida ali, no porto. E em concreto, um: um pequeno ser vivo que poderia ser
ela. Não podia ter se equivocado. Não podia tê-la perdido, não dessa vez,
porque agora seu coração dizia que tinha que estar por ali perto.
— Esme!
O seguinte barco estava muito longe do cais para saltar nele. Em lugar
disso, subiu à parte alta do quebra-mar para olhar dentro, mas escorregou e
ao cair, soltou uma maldição.
— Esme! — seguiu gritando. — Não me obrigue a continuar procurando! —
Subiu engatinhando pelo quebra-mar. — Não escapará de mim! Não penso
deixá-la partir, pequeno diabo!
A sua direita algo se moveu entre as sombras.
Então a viu, no alto do último dos botes do embarcadouro: uma pequena
figura escura que se movia torpemente lutando com algo.
— Esme!
Pôs-se a correr para ela, escorregando sobre as pedras molhadas. Ela
estava lutando com as velas, enquanto o vento seguia aumentando. Se
conseguisse içar as velas estaria longe da baía em uns minutos.
— Esme, espera!
Ela se voltou de repente para ele, logo deu de novo a volta e deixou cair
algo.
Varian tropeçou e esteve a ponto de cair à água. Enquanto voltava a
recuperar o equilíbrio, viu que o barco no qual estava ela tinha soltado as
amarras e se balançava, livre de ataduras, para a estreita entrada do porto que
se abria à baía. A brisa ou a corrente pareciam estar empurrando-a, porque as
velas ainda penduravam inertes de seu mastro. Em um abrir e fechar de olhos
se separou dos outros barcos. Durante um instante cheio de pânico, Varian
ficou quieto, olhando a pequena figura que se debatia tratando de içar as

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velas. E então uma rajada de vento as inchou, arrancando as das mãos. O


barco deu um par de vaivens violentos. Ela tropeçou e se agarrou a uma vela.
Céu santo. Não sabia o que estava fazendo.
— Esme! — gritou ele. — Não!
Mas ela não fez conta. Sabia que não era capaz de dirigir um barco, mas
mesmo assim não podia deixar de tentá-lo. Varian não parou para pensar em
nada. Não tinha tempo; tampouco podia tentar alcançá-la com algum dos
outros barcos e não sabia nada da arte da navegação. Tirou a jaqueta e as
botas, correu a toda pressa pelo cais e mergulhou no mar.
Quando tirou a cabeça da água, ela já tinha cruzado a entrada do porto,
mas navegava agora mais devagar. Seu barco estava dando voltas, movendo-
se desgovernado, com as velas a momentos inchadas pelo vento e a
momentos pendurando flácidas do mastro. Ele ficou a nadar, forçando seus
músculos a que obedecessem a sua cabeça, além de suas próprias forças ou
de sua habilidade.
Então ouviu um grito apagado, seguido do ruído de algo que caía ao mar.
Ele mesmo deixou escapar um grito em resposta, e continuou nadando com
mais força, apesar de começarem a doer seus músculos e arder-lhe os
pulmões.
Depois de uns minutos que pareceram toda uma vida esteve o bastante
perto dela para ouvi-la debater-se na água. Olhou para a frente a tempo de
vê-la afundar-se. Não deixou de mover-se. Ouviu a morte que avançava para
ela, mais rápido que ele, como um vento que puxava.
«Deixe-a. Deixe-a para mim. Por favor. Por mais que a queira.»
— Varian!
Ouviu o asfixiado grito de Esme, muito débil, no meio do incessante rugido
de um mar que tratava de afogar os dois.
— Não. Espera. Já estou chegando. Me espere.
Ao longe, no horizonte, o sol ficou vermelho como uma bola de fogo. O
barco desgovernado avançava suavemente para ele. Perto, mas ainda fora de
seu alcance, Varian pôde ver a cabeça dela, que se afundava de novo nas
famintas ondas azuis do mar. Varian voltou a gritar seu nome, e logo afundou
também na rugente escuridão.

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Capítulo 19

Varian estava consciente do ruído antes despertar de todo: umas vozes de


tenor que cantavam e, entre elas, o apagado lamento de uma flauta.
Abriu os olhos e se encontrou deitado em uma maca ao lado de uma
cama. Umas quantas velas piscavam fracamente na escuridão, mostrando pela
metade a figura que estava estendida sob os lençóis. Uma massa de cabelo
vermelho rodeava seu pálido rosto imóvel. Esme estremeceu ligeiramente
como se tivesse podido sentir seu olhar, mesmo estando adormecida. Só
adormecida, disse Varian a si mesmo para tranquilizar-se, enquanto acariciava
suavemente seus revoltos cabelos. Não a tinha perdido. Os homens de
Saranda os tinham resgatado.
Varian não tinha facilitado. Tinha lutado como um louco, mesmo sabendo
que ele sozinho não seria capaz de levá-la até a margem. As roupas pesadas
de Esme que a tinham afundado no mar, faziam com que avançasse muito
lentamente. Quando lhe falhavam as forças, afundava-se com ela de novo na
água.
O resto era confuso. Vozes, movimentos. Só o que Varian recordava era
que tinha segurado a garota nos braços e se negou a permitir que outro a
segurasse. Certamente tinha perdido a consciência pelo caminho. Não
recordava ter chegado até aquela casa, estivesse onde estivesse.
Agora se dava conta de que as vozes que ouvia chegavam de fora e seus
lamentos eram quase como as típicas canções albanesas em clave menor,
como a que Esme tinha cantado fazia um momento.
Ergueu-se na maca com o corpo entorpecido. Seus músculos esgotados
protestaram produzindo ferroadas de dor nos braços e nas pernas, enquanto
tratava de aproximar-se da janela aberta. Atrás da janela havia um amplo
terraço no qual viu um grupo de homens que estavam cantando. Atrás deles e
mais abaixo, podia ver-se a água da baía que brilhava tranquila à luz da lua,
como se não tivesse tentado fazia umas horas arrebatar a vida de Esme.
Da cama chegou um gemido, logo o som dos lençóis ao deslizar do leito, e
a seguir uma fileira de imprecações em albanês. Varian correu de novo à cama

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e tomou a Esme amavelmente entre os braços.


— Não aconteceu nada — disse. — Está a salvo.
Sentiu que sua esquálida figura estremecia um par de vezes. E seu peito
começou a agitar-se com ligeiros e terríveis soluços que ela tentava em vão
conter. Ao final não pôde mais e pôs-se a chorar enquanto chamava por seu
pai. Varian sentiu que seu coração se rompia com o dela.
Ele, que tão bem sabia dirigir-se com as palavras, agora não era capaz de
dizer nada que pudesse consolá-la.
— Sinto muito, meu amor.
Fez um esforço para que aquelas poucas sílabas transpassassem o nó que
tinha na garganta, e se deu conta de que era fútil tratar de acrescentar algo
mais. Apertou-a contra ele, passou-lhe as mãos pelo cabelo e tentou consolá-la
desse modo, mas de novo se deu conta de que não tinha nenhum consolo para
oferecer. Toda sua pena contida saiu fora em dilaceradores lamentos, meio em
albanês, meio em inglês. Lágrimas quentes cobriam pelo rosto enquanto os
soluços sacudiam seu pequeno corpo e ele se sentia impotente para ajudá-la.
As lágrimas das mulheres nunca o tinham impressionado, como acontecia
com tantos outros homens, mas daquela vez era diferente. Agora quem
chorava era a sua forte e valente Esme. Sentia-se machucada e necessitada, e
ele não podia suportá-lo. Doía-lhe o coração por ela, lamentava sua pena e se
desesperava por sua própria inutilidade naquela situação.
— Sinto muito — disse uma e outra vez. Uma frase banal em resposta ao
seu lamento.
— «Quero o meu pai.»
— «Sinto muito.»
E assim continuaram, repetindo o mesmo uma e outra vez, embora só
durante algum tempo. Apesar do inepto que era Varian para consolá-la — ou
possivelmente por causa disso, — Esme se recuperou em seguida. E
rapidamente se separou dele e começou a esfregar o nariz com um gesto de
raiva.
Varian procurou seu lenço e se deu conta de que não tinha nenhum. Os
homens o tinham despojado de suas roupas molhadas. Só usava uma túnica.
Procurou pelo quarto e encontrou uma toalha, que ofereceu a ela sem dizer

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uma palavra. Ela secou o rosto.


— Nunca choro — disse Esme tremendo ainda. — Eu odeio.
— Sei.
Ela murmurou algo para si mesma e logo disse em voz alta:
— Não teria que ter vindo atrás de mim.
— Não tinha outra opção.
Esme lançou um olhar de puro desdém.
Nesse instante, um puro e bendito alívio o fez sentir-se melhor. Ela estava
bem e realmente zangada, de maneira que voltava a ser de novo a mesma de
antes. Sua irracional e temperamental Esme de sempre.
Ela se sentia mortificada porque se pôs a chorar desconsolada diante dele.
E agora, é obvio, teria que se recompor enfrentando-se com ele. Era melhor
deixar que o fizesse. Varian podia manejar com sua raiva muito melhor que
com sua pena. Suas lágrimas o deixavam paralisado.
— Esme — começou a dizer ele, — não pensou que ia deixá-la…
— Nem sequer tinha pensado que podia chegar a ser tão ambicioso. Não
podia acreditar em meus próprios olhos quando o vi lançar-se à água. Podia ter
se afogado! Por mil libras! Do que ia servir o dinheiro estando no fundo do
mar?
— Perdoa, do que está falando? — disse-lhe Varian. — Me parece que não
ouvi bem. O que dizer de mil libras?
— Não sabe? Não jogue comigo. Sei que essa é a razão pela qual veio a
me buscar. Você, o folgazão mais ambicioso de três moderados. Só o dinheiro
pode conseguir que se mova.
— De fato, sim que me movo, mas com moderação — replicou ele. —
Tentar nadar no Jônico é bastante moderado. — Lançou-lhe um olhar
interrogativo. — Está me dizendo que leva mil libras com você? Pensava que o
que a fazia se afundar no mar era o pesado vestido que usava.
— Não se faça de tolo. Sei o que ofereceu Alí e sei que você chegou a um
acordo com ele. Espero que já tenha dado o dinheiro a você. Porque se não for
assim, asseguro que não chegará a vê-lo.
Varian esfregou a cabeça.
— Aparentemente, Alí me ofereceu mil libras por fazer algo. Por favor, me

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perdoe, mas neste momento devo ter a mente nublada. Pode ser que tenham
me golpeado com um remo. Asseguro, por minha vida, que não posso recordar
a que trato cheguei com ele.
Os enfurecidos olhos verdes de Esme se nublaram com uma tintura de
confusão. Moveu-se intranquila na cama. Era uma cama grande com um
colchão de plumas, decididamente europeu — «fránquico», que diriam os
albaneses. — Todos os países do oeste eram para eles «francos», pensou
Varian como ausente enquanto esperava que ela seguisse falando. E podia
esperar até o dia do Julgamento Final, se fosse necessário. Parecia que Esme
não escapou de seu lado porque amasse ao Ismal, como tinha dado a entender
na cruel nota que tinha deixado, mas sim por essas mil libras que
aparentemente tinham algo a ver com ele. A ofensa de Varian, fosse o que
fosse, devia ter sido muito grave, se é que ela decidiu escapar, por uma manha
de criança, depois do que tinha acontecido na noite anterior. Qualquer outra
jovem teria necessitado semanas para recuperar-se disso.
— Ninguém golpeou sua cabeça —soltou ela por fim com voz humana. —
Não tem vergonha. Por isso faz de conta que não se lembra de nada.
— Não me sinto absolutamente desavergonhado — respondeu Varian em
tom cortante. — Mas se crê que a lembrança de algo vai me fazer sentir assim,
rogo que não me conte. Podemos falar de qualquer outra coisa.
Uma vez mais ele se sentou na beira da cama. Esme se inclinou para trás
ruborizando-se.
— Não! Não se atreva a utilizar suas artimanhas comigo. Não penso me
casar com você. Nunca! Antes me atiraria do alto de uma montanha.
— Casar comigo? — Agora foi ele quem se inclinou para trás assustado. —
É obvio que não. Quem colocou nessa cabeça descabelada a ideia?
— Descabelada? — disse ela com voz alta. — Ao Alí não disse que era
descabelada.
— Suponho que não tenho tão pouco tato para dizer isso a um homem que
tem várias centenas de esposas. Poderia ferir sua sensibilidade.
— Sei, mas a minha não conta, não é? Sabia — se queixou ela. — Sabia
que ainda não pagou. Não teria dito isso se já o tivesse feito. Não, em tal
caso, faria ver que casar comigo é o que mais deseja no mundo.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Pelo amor do céu, você acredita que me vendo barato, não é assim?
Isso me dói, Esme, de verdade que me dói. Crê que aceitei me casar com você
por só mil libras? Minha querida menina, não aceitaria me unir nem mesmo a
Afrodite por menos de vinte mil. Em ouro — disse ele. — E provaria a
qualidade de cada uma das moedas com meus próprios dentes.
— Ouvi o Alí. Escutei como contava ao Ismal.
— Então o ouviu mentir. Pode ser que seja um gigolô, mas ao menos sou
um dos caros, asseguro-lhe isso. — Varian olhou através da janela e franziu o
sobrecenho. — Mil libras. Que ideia. Nunca em minha vida me insultaram
tanto.
Esme não respondeu nada. Obviamente, estava dando voltas aquele
assunto em sua cabeça. Menos mal. Varian tinha seu próprio mistério a
resolver, mas esse tinha que ver com o amanhã. E com o dia seguinte. E com o
seguinte. Como sempre fazia, de uma perspectiva tão sombria, sua mente
estava acostumada a ficar pensando no futuro.
Mas em lugar disso, fixou-se na janela, e nos sons que chegavam de fora.
Um pouco antes tinha ouvido risadas, enquanto ela o estava repreendendo.
Logo as risadas tinham cessado e haviam tornado a começar os cantos. Agora
havia um instrumento de corda que acompanhava a música da flauta.
Ouviu Esme suspirar.
— O que estão cantando? — perguntou-lhe.
— Nada. Uma canção de amor.
— Entendi hajde — disse ele, — mas nada mais. O que diz o estribilho?
Shpee-mee…
— Shpirti im. Meu espírito. Alma. «Vem, vem…, coração meu». — Ela
sorriu de maneira muito exagerada. — «O homem… ele… Oh! Ele chama à
moça apaixonada.»
— Ah, vá, o amor! Os homens são capazes de dizer qualquer coisa a
respeito, não acredita?
Houve um silêncio tenso.
— Varian.
Ele não se voltou para olhá-la, mas notou que o colchão se movia
enquanto ela se aproximava. Esme se deteve em seco a meio caminho.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Varian, jura-me que não pensava casar comigo… por nenhum preço?
— Não seja tola, um cavalheiro sempre jura por sua honra. E eu não
tenho.
— Então, por que arriscou sua vida por mim? Se não tivessem chegado os
homens do povoado, poderíamos ter nos afogado. Por que o fez?
— Não sei. Não parei para pensar. Suponho que tive um momento de
alienação mental. É algo que parece que me acontece frequentemente,
sobretudo se estiver perto de você.
Ela se aproximou mais a ele. Varian notou que o tocava suavemente no
ombro. Voltou lentamente a cabeça. Esme estava de joelhos sobre a cama, a
seu lado. A saia de sua camisola de dormir tinha subido por cima dos joelhos.
Varian levantou rapidamente a vista e topou com os verdes olhos dela que o
olhavam absortos.
— Me diga algo, por favor. O que seja. Me minta, se quiser, mas me
responda, por favor.
— Prefiro não fazê-lo — disse ele com voz suave. — Está tão suscetível
neste momento que é capaz de acreditar em qualquer coisa.
— Sim. Assim é.
— Até seria capaz de acreditar que a quero.
Ela apertou a mão que tinha apoiada sobre o ombro de Varian. Ele a
agarrou para afastá-la tratando de liberar-se das terríveis palavras que
acabava de pronunciar. Tratando de fugir dela, antes que acabasse destruindo-
a. Mas não se moveu e ela não relaxou a pressão de sua mão.
Os dedos de Esme se enlaçaram lentamente com os dele e o fez colocar a
mão sobre seu joelho nu. De repente pareceu que o quarto se esquentava
terrivelmente, curvando-a.
— Será melhor que me vá — disse ele secamente.
O lábio superior dela tremeu.
— Sempre diz o mesmo. Sempre se vai.
— É pro seu bem.
— Não. É porque não me quer — disse ela soltando sua mão. — Me sinto
tão envergonhada…
— Está cansada e nervosa. Sofreu uma experiência terrível.

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— Isto é terrível — disse ela com voz baixa e insegura. — Sempre que vejo
a morte diante de mim, a olho sem medo nos olhos, porque sou uma
guerreira. Se me propusesse, poderia matá-lo. Mas não posso suportar essa
contínua resistência. Não posso fazer que me toque como um homem toca a
uma mulher.
— Não seja tão cruelmente absurda — disse ele com voz cortante. —
Toquei-a dessa maneira já muitas vezes.
Muitas vezes…, mas nunca o suficiente.
O olhar de Varian passou dos trementes lábios dela para a suave e branca
pele de seu pescoço, descendo logo pelo decote até os seios, para deter-se na
magra cintura… e logo baixou ainda mais, até onde estava depositada sua
própria mão, ainda sobre o nu joelho dela, sentindo um formigamento que o
incitava a acariciá-la.
Varian não pôde evitar deixar escapar um dolorido e profundo suspiro.
— Quero você, necessito de você. Estou doente por você. Oh, Deus, não
me faça caso! Não… não o faça Esme.
A carne que roçava com sua mão era muito suave e firme. Mesmo
enquanto o advertia, seus dedos começaram a se mover lentamente para a
coxa.
Ela aproximou a cabeça da dele. O aroma do mar ainda se desprendia de
seu cabelo. Era doce e fresco, como uma pele sedosa.
— É tão formosa — disse ele em voz baixa. — Não é justo.
Ela murmurou algo entre dentes.
Varian se disse que tinha que partir. Só tinha que levantar-se e pôr-se a
andar. Mas em lugar disso, agarrou-a pela cintura e a atraiu para si.
Olhou profundamente aqueles olhos de um verde impenetrável e disse
quase sem fôlego:
— Um beijo. Só um.
Os magros braços de Esme rodearam seus ombros.
— Sim. Só um.
Ele só desejava saborear uma vez mais aquela fera e inocente ninfa. Tinha
estado quase a ponto de perdê-la. Tudo o que pedia era um beijo. Com isso
seria suficiente. Tinha que bastar, disse a si mesmo enquanto seus lábios

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cobriam suavemente os dela.


Ela apertou seu corpo rapidamente contra ele. Seus tensos seios ajustados
sob a seda de sua túnica. Esme abriu sua boca para ele, de uma maneira
muito cálida, convidando-o a perder-se em suas profundidades.
Todo o mundo que havia a seu redor se encheu da fragrância do mar, de
um mar doce como o sabor dela. Ela estava viva, e tinha uma feroz vitalidade
como nunca antes tinha tido. Naquele beijo ele chegou a saborear uma
corrente de frescas águas em um bosque de árvores sempre verdes, e também
a turbulência das montanhas nas quais viviam os deuses. Varian desejava
possuir aquele espírito vibrante e renovar com ele seu próprio espírito…, mas
sabia que isso era um engano. Não poderia ser assim. Se o fizesse, mancharia
a ela e debilitaria aquela força que possuía.
Varian se separou de seus lábios, só para dar-se conta de que era muito
fraco para separar-se dela completamente. O irresistível aroma de Esme o
chamava de volta. Deu-lhe uma série de quentes beijos no pescoço, e sentiu
como o corpo dela se oferecia com uma promessa de delírio. Ouviu o esfregar
da musselina que vestia ela contra a seda de sua túnica, e Varian respondeu à
chamada do corpo de Esme, porque não podia resistir a ela.
Procurou os laços que seguravam sua camisola e os desatou, para a
seguir colocar seus lábios sobre a aromática fragrância de seus seios. Ela
deixou escapar um leve gemido, logo agarrou o cabelo com os dedos,
apertando ainda mais o rosto de Varian contra seu seio. Ele passeou sua língua
úmida pela tensa carne, dirigindo-se para a dura e tensa ponta de seus seios,
e ali a saboreou uma e outra vez, deixando que o calor que sentia por dentro o
abrasasse — enquanto a abraçava. — A respiração de Esme começou a ficar
mais rápida e irregular.
Ele estava faminto dela, e o insidioso calor que sentia por dentro urgia que
saciasse seu apetite, embora quisesse ficar assim, ardendo para sempre. Deu-
se conta de que deveria deter-se logo, muito em breve. Mas ainda não. Queria
fazer com que aquele breve momento de ternura durasse para sempre. Queria
fazer com que ela esquecesse sua pena e seu aborrecimento; e durante esse
breve lapso de tempo ele também queria esquecer: o medo e a vergonha, e a
cinza neblina dos dias que ficavam por viver a partir de manhã.

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— Só você — sussurrou ele com a boca apoiada contra a pele dela. — Só


agora.
— Sim.
Varian elevou o rosto para olhá-la. Nos olhos dela havia uma tintura
sombria e estavam como perdidos. O cabelo caía em cascata sobre os ombros,
provocando brilhos de bronze sobre o fundo de pérola pálido de sua pele. A
camisola tinha caído abaixo do seio.
Já a tinha visto assim antes, e a lembrança de seu corpo voltava de novo
para tentá-lo: magra e pálida, e dolorosamente frágil por fora, mas forte e
apaixonada por dentro. Ela era jovem e selvagem, e estremecedoramente
formosa. Como não ia querer tê-la entre os braços, tão perto, e possuí-la,
embora só fosse por um momento, quando a qualquer instante ela poderia
escorrer-se por entre os dedos? Porque tudo de formoso que havia possuído
tinha sempre escorrido entre os dedos… para ficar jogado e esquecido,
enquanto ele corria em busca do encontro fugaz seguinte. E do seguinte… e do
seguinte… amanhã.
— Não quero machucá-la — sussurrou ele.
— Não o fará. — A boca dela se curvou em um leve sorriso. — Tenta-o.
Veja se pode.
— Não. Tem que me dizer «não».
— Sim.
Esme o beijou na testa e logo na bochecha. Ele voltou o rosto para
apanhar sua boca. Ela o evitou e ele deixou escapar um gemido quando notou
que os quentes lábios dela roçavam sua nuca. Esme abriu a túnica e com os
lábios desenhou um incitante caminho por seus ombros, e logo mais abaixo.
Os dedos dela se curvaram sobre seu peito, acariciando o lugar debaixo do
qual palpitava alocadamente o coração de Varian; e aquela carícia fez com que
um calor afluísse de seus órgãos sexuais. Ele afastou as mãos do peito e as
levou para baixo.
Em um instante a camisa de noite dela caiu ao chão, ao lado da cama. E
rapidamente sua túnica seguiu o mesmo caminho.
Lá fora, a chorosa melodia aumentava de tom convertendo-se em um
grito, matizado por silêncios que precediam a novos gritos. Dentro, ele estava

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a ponto de gritar pela mulher que sustentava entre os braços. A vida era
aquela mulher apertada contra ele, aquele corpo que se oferecia inteiramente
ao dele. Ali dentro, o mundo era quente e embriagador com o aroma que
exalava ela. E ela o chamava com sua voz rouca e entrecortada. Pronunciava
seu nome e todo seu ser respondia, desesperado por perder-se dentro dela e
por ficar ali, a salvo, no lugar ao qual pertencia.
Ele sabia que aquilo não era mais que uma luxuriosa loucura. Sabia que
não pertencia a esse lugar. Que era um intruso, que só buscava a si mesmo.
Ouviu uma fraca e apagada advertência que chegava do mais profundo de sua
consciência.
Necessito dela, respondeu Varian em silencio para aquela voz interior,
enquanto murmurava palavras de amor contra a boca, contra o pescoço,
contra os seios. Respondia-lhe com ofegantes carícias. Aquelas carícias o
envolveram em seguida, e as vozes que o advertiam acabaram se calando de
vez.
Suas mãos ansiosas se colocaram entre os sedosos cachos de cabelo que
protegiam o centro úmido dela, e se afundaram ali. Esme ficou tensa,
estirando os ombros, mas dessa vez ele não se deteve. Estava além de suas
forças. Sua consciência voltou a cobrá-lo, porque a inocente umidade dela era
muito doce. Carinhosamente, e apesar de seu exultante desejo, ele a
acariciou, excitou-a e a avivou, enquanto ela se movia inquieta esfregando-se
contra sua mão. Varian sentiu as palpitações em seu interior, cada uma mais
forte que a anterior, notou como Esme lutava contra elas… e logo notou o
arrebatamento de calor que a envolveu quando aquelas sacudidas a
dominaram por completo.
— Varian! — disse ela em um grito afogado. — Oh, ... Deus!
Esme cravou as mãos nos ombros dele e o atraiu para ela, procurando sua
boca. Varian deu o que ela pedia, enquanto seus dedos se introduziam ainda
mais dentro dela. Ela gemeu e se separou de um salto de seu frenético beijo,
mexendo-se impaciente em meio da tormenta que embriagava todo seu corpo.
Afundou o rosto no travesseiro e começou a gemer sem poder conter-se,
enquanto todo seu corpo tremia e dava sacudidas golpeando-se contra ele,
procurando desesperadamente o alívio.

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O corpo de Varian também vibrava com impaciência, empurrando-o para o


lugar que tinha feito arder de paixão, e para aquela tormenta de êxtase que
estava tentando oferecer a ela… desinteressadamente… por uma vez em sua
vida. Para dar o único prazer que podia oferecer sem tomar nada em troca.
Para oferecer aquele amor só a ela, sua formosa e selvagem menina. Isso
somente queria, de verdade, desde minutos ou desde anos antes. Mas se deu
conta de que não podia oferecer a satisfação que pretendia, não como o
tentava fazer. A fome feroz que sentia ela não ia satisfazer-se com as mãos
dele.
Ela gritou e amaldiçoou, e logo segurou seu pulso e afastou a mão dentre
suas pernas.
— Hajde! — ordenou-lhe.
Esme percorreu com seus fortes dedos o torso dele, para baixo,
inexoravelmente, para o inchaço que se insinuava ali.
— Não! — gemeu ele.
Muito tarde.
Um relâmpago brilhante explodiu nele, fazendo com que a razão e a
vontade se desfizessem em mil pedaços.
Ele a deitou completamente de costas e se introduziu entre suas pernas.
Esme se deitou tremendo debaixo dele, respirando em ondas entrecortadas e
ofegantes. Varian olhou durante um desesperado instante os profundos olhos
verdes dela. Logo colocou as mãos possessivamente debaixo de seu corpo,
passando por seu terno ventre, e logo abrindo-se passou pela escura umidade
dentre suas pernas.
Colocou-se na entrada, e a seguir empurrou até introduzir-se nela. Esme
se apertou contra ele, completamente úmida. Mas a inocência de Esme
resistia, e Varian a segurou pelos quadris, enquanto ela se inclinava
instintivamente para trás.
Embora todo seu corpo pulsasse pelo desejo de conquistá-la e possuí-la,
Varian tratou de acalmar-se. Mas no momento sentiu que o caminho já
começava a abrir-se para ele. E sentindo que o prazer dela começava a
diminuir, soube que a partir desse momento, para Esme já não haveria gozo, a
não ser dor. Nenhuma de suas habilidades poderia conseguir que aquele frágil

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escudo de inocência se desvanecesse magicamente, sem dor. E algo pior: a


corrupção, a desonra… a destruição dela. Não podia parar agora. Aquilo o
mataria, mas tampouco podia continuar.
Quando Varian se aproximou de sua boca para beijá-la, ela o agarrou pelos
cabelos.
— Desejo você — disse com voz rouca, mas decidida.
— Não — sussurrou ele. — Não quero machucá-la mais.
— Quero você — repetiu ela. — Meu corpo não me faz caso. Faz com que
obedeça a você. Faça-me sua, Varian.
Não faça conta. Ela não entende o que está acontecendo. É muito
inocente, disse-se Varian.
Mas seu ser corrupto queria fazer caso do que ela pedia. O animal que
levava dentro, sua natureza mais baixa, estava ansioso por acabar o que tinha
começado. Varian ordenou a si mesmo afastar-se dela. Mas não pôde. O suor
caía a jorros pelas costas.
— Farei mal a você — disse ele em um grunhido, enquanto a olhava com
desesperada fixação aos verdes e tormentosos olhos.
As unhas dela cravaram no couro cabeludo dele.
— Alguém tem que fazê-lo. Você, esta noite, Varian… ou qualquer outra.
Varian tentou convencer a si mesmo que ela não sabia o que estava
dizendo, embora aquelas palavras o destroçassem, tentando-o de uma
maneira insuportável. Passou-lhe pela cabeça a lembrança de Ismal.
— Não — grunhiu Varian. — Você é minha, maldita seja.
Ela sacudiu a cabeça afirmativamente.
Ele respondeu àquele gesto com as mãos e a boca, esfregando-se contra
ela ainda com mais fúria que antes. Já não podia ter mais paciência, nem mais
delicadeza, e a rápida e quente resposta que deu Esme não esperava nada
disso. Ela era tão feroz e tão audaz na paixão como em todo o resto.
Selvagem, doce, formosa… e dele.
— Minha — disse ele com um tom de voz selvagem.
Em um instante voltou a introduzir-se nela. Um momento de triunfo
animal…, de posse…, de conquista. Ouviu-a gemer, notou como se esticava
todo seu corpo contra a dor. E então os remorsos o apunhalaram por dentro.

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Muito tarde.
— Sinto muito — ofegou ele. — Oh, meu amor! Sinto muito. — O sangue
subia a suas têmporas enquanto pulsava em suas veias, obrigando-o a aliviar-
se, mas se obrigou a deter-se. Suas mãos se moveram suavemente por cima
do corpo dolorido e rígido dela. — Me deixe que faça o amor, carinho. Me
perdoe e deixe que a ame. Necessito de você, Esme.
Ela abriu os olhos com surpresa.
— Há mais? — perguntou ela com voz tremente.
Oh, céus, ela já tinha tido o bastante! Pobrezinha, pensava que já tinha
acabado tudo. Varian passeou suas mãos ansiosas pelos ternos seios, e sua
carne se endureceu de novo, movendo-se dentro dela. Sim, seu corpo estava
pedindo para acabar também, por brutal que fosse aquilo. Mas ele necessitava
mais. Desejava-a toda inteira, em corpo e alma, só para ele. Era egoísta, sim,
mas assim era ele.
— Mais, sim — disse ele. — Tanto quanto você queira me dar.
E logo começou a mover-se de novo dentro dela, lentamente, enquanto
com as mãos lhe acariciava o ventre.
— Varian — disse ela quase sem fôlego.
Mas agora em sua voz já não se refletia a dor, a não ser outra coisa. A
surpresa, talvez, e depois enquanto seguia se movendo com cuidado, da boca
dela escapou um suave gemido de prazer.
— Sim — sussurrou ele. — Assim é, carinho. É como se o mundo
desaparecesse, não?
Ele sentiu isso mesmo, sentiu que o mundo a abandonava, assim como
fazia com ele. Varian notou como seu prazer aumentava conforme o corpo dela
se rendia ao dele, acoplando-se a seu ritmo. A dor que antes ela sentiu já
estava esquecida como os remorsos dele. Deu-se conta de que agora já não
podia sentir remorso algum, não enquanto começava a voltar para a vida com
ela. Só havia para eles aquele momento, Esme, e o doce e profundo êxtase
que o embriagava enquanto ela se entregava de novo à tormenta de prazer.
O corpo de Varian começou a palpitar com a vida dela, com todo seu ser.
Acabava de se perder dentro de Esme, navegando com ela por uma furiosa
corrente que os empurrava para a eternidade. Sentiu-a desfazendo-se ao redor

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dele e ouviu os gritos que saíam por sua garganta. Então ele se cravou mais
fundo nela, apertando-a com força entre os braços enquanto cobria sua boca
de doces beijos.

Capítulo 20

Esme soube que ele partiu muito antes de abrir os olhos para a brilhante
luz da manhã. Tinha notado o frio de sua ausência no meio do sonho. Outros
sonhos tinham precedido a esse, mas esses estavam cheios de calidez e de
delírio contente.
Nunca antes tinha sonhado com tanta alegria. Nunca poderia ter
imaginado o que acontece quando um homem une seu corpo ao corpo de uma
mulher. Tinha imaginado que seria agradável. Semanas antes tinha saboreado
esse prazer, em Poshnja, quando Varian a tinha beijado e acariciado daquela
maneira tão íntima. Mas a noite anterior o prazer tinha sido profundo e muito
mais turbulento. Tinha sido como se um poderoso demônio se colocasse em
seu corpo, onde fez um terrível mas maravilhoso destroço, como uma
desmedida tormenta até que ao final tinha conseguido aliviar-se. E com aquele
alívio lhe chegou uma doce paz.
Mas não por muito tempo, descobriu Esme. Tocou o travesseiro onde tinha
estado apoiada a cabeça de Varian e recordou como ele tinha sorrido
docemente, enquanto a sustentava entre os braços naquele momento de
extasiada paz.
De qualquer modo, certamente tinha sorrido a todas as mulheres com as
quais tinha estado da mesma maneira. Ele sabia como afastar qualquer dúvida
ou remorso. Ele sabia como tranquilizar a uma mulher. Não gostava da
desordem. Isso tinha deixado para depois, quando tivesse tempo de enfrentar
ao desagradável. Certamente tinha decidido que era melhor que cada um
enfrentasse sozinho as suas próprias penas.
A verdade é que era melhor que partisse, pensou Esme. Esperava que já
estivesse a caminho de Corfú. Não sabia sequer como poderia voltar a olhá-lo
no rosto de novo. Ela tinha pedido que a tomasse, e então… OH! Que

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desajeitada tinha sido. Seu corpo adolescente era torpe e inepto. Não
estranhava que ele tivesse tentado deter-se em repetidas ocasiões. Que tarefa
tinha sido para ele ter que aplacar sua luxúria.
Ela se tampou o rosto com as mãos. Comportou-se como uma cadela no
cio. Era repugnante.
— Ah! A manhã seguinte.
Esme afastou as mãos do rosto e ficou olhando com horrorizada
incredulidade para a porta.
Varian estava ali, de pé, com um leve sorriso em sua formosa boca e
olhando-a com atenção. Logo entrou fechando a porta tão lentamente como a
tinha aberto, cruzou o quarto e pegou sua camisola.
— Será melhor que ponha algo em cima — ele disse. — Do contrário me
sentirei tentado a investigar de novo o que há debaixo dos lençóis, e não
queria amassar as calças.
Deixou a camisola sobre a cama.
Ela se ruborizou.
Varian se dirigiu para a janela dando-lhe as costas.
A jaqueta negra que vestia ficava tão bem como se estivesse esculpida
sobre seu corpo, pois marcava seus ombros largos e sua estreita cintura, e
suas calças ressaltavam os músculos de suas longas pernas. A noite anterior
ela se deixou envolver de maneira desavergonhada por seu suarento corpo nu;
essa manhã, parecia-lhe um estranho. Esme queria desesperadamente sair a
toda pressa por aquela porta, enquanto ele estava de costas, e correr longe,
muito longe dele.
Em lugar disso se ergueu na cama e ficou com mãos torpes a camisola.
Tremiam-lhe os dedos de uma maneira tão exagerada que teve que fechar os
punhos para imobilizá-los.
— Eu… acreditei que você tinha ido — disse ela com voz afogada.
— Sim? E aonde acreditava que eu tivesse ido? — perguntou ele sem
deixar de olhar pela janela.
— A Corfú.
— Ah, sim! Sem você. — Ele voltou-se. — Seduzida e abandonada, isso é o
que pensava… além de sabe Deus o que outras coisas. A verdade é que não

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

tenho vontade de saber que mais. Como já dizia antes… a manhã seguinte,
Esme. Hoje é amanhã.
O ameaçador tom da voz dele fez com que um calafrio a percorresse.
Instintivamente, ela cobriu os seios com os lençóis.
— É obvio que é amanhã. Mas não acredito que tenha que fazer soar como
se fosse o Julgamento Final.
— Foi assim que soou? Que interessante. Porque de algum jeito sim é.
Para você.
Varian se apoiou contra o marco da janela e segurou os braços com as
mãos, rodeando o torso. Seu rosto tinha a mesma expressão que uma pedra e
sua voz era fria e distante.
— Levantei-me cedo esta manhã. Entre outras coisas, porque estava me
perguntando onde andaria Percival. Encontrei abaixo, sentado nas escadas com
a Qeriba, e me inteirei de que foi ele quem nos salvou a vida.
Qeriba. Estava nessa casa. Esme ficou olhando os lençóis com desespero.
— Seus leais amigos estavam decididos a não permitir eu que tivesse
nenhum tipo de ajuda, nem sequer por parte de minha própria escolta —
seguiu contando Varian. — Parece que estavam convencidos de que eu era o
próprio Belzebu. Por sorte, Percival desobedeceu minhas ordens e fez todo o
possível para tranquilizá-los. Desgraçadamente, negaram-se a acreditar na
pessoa que traduzia. De modo que seu primo se viu obrigado a explicar nossa
situação na Albânia.
Imaginando o seu pobre primo tratando de explicar-se em uma língua que
desconhecia, enquanto estava rodeado por uma multidão de estrangeiros
hostis, Esme fez uma careta de dor.
— É um menino muito valente. Não só nos salvou, mas também a todos
meus amigos. Alí os teria castigado com crueldade se você tivesse se afogado
— admitiu ela.
— Percival não sabia que a palavra «amigo» também pode significar
«marido» - continuou Varian como se ela não houvesse dito nada. — Até
mesmo a palavra «homem» pode querer dizer «marido». Ele acreditava que
estava dizendo que eu era um bom homem, um amigo, e que você tinha
escapado por um simples mal-entendido. Mas seus amigos entenderam que

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você tinha escapado de seu marido. Por isso, depois de resgatá-la, deixaram-
nos tempo para resolver nossas diferenças à maneira, durante séculos
famosos, dos casais casados.
Esme tentou ler a expressão de seu rosto, mas não pôde fazê-lo. Elevando
o queixo lhe disse:
— Não foi nada mais que um mal-entendido. Todos compreenderão o que
passou quando o explicarmos. Além disso, não é nenhum segredo que
compartilhei um quarto com você muitas vezes. Se fica preocupado que
possam culpar o meu primo por uma coisa assim — continuou Esme com voz
fria, — então pode me deixar aqui. Nunca quis ir a Corfú, como já disse
montões de vezes.
Varian pôs uma expressão mais fria.
— Espero que não seja por isso que me ordenou que arruinasse sua vida,
Esme.
— Eu não te ordenei nada!
Mas sabia que isso era mentira. Ela tinha insistido. Ela tinha pedido. Sentiu
que todo o corpo ardia de vergonha.
— Eu disse não, não é verdade?
— Sim, mas…
— Mas você não fez conta. — Ele se aproximou da cama. — Adverti a você
repetidamente. E voltei a pedir isso ontem à noite. Só tinha que ter respondido
que não. Mas não o fez. Já sabe que tipo de homem eu sou. Uma garota tão
preparada como você deveria saber no momento em que pôs os olhos em cima
de mim. É bastante inteligente, isso é certo, para me manipular de outras
maneiras. E tem a suficiente sensatez para me fazer acreditar que foi uma
menina. Infelizmente, essa foi a única mostra sensata de auto-proteção que
deu.
Ele deixou escapar um profundo suspiro e se sentou na beira da cama.
Esme sabia perfeitamente que se comportou mal. De qualquer modo,
parecia-lhe que não era muito amável de sua parte acrescentar aquelas
sarcásticas recriminações ao que se converteu rapidamente na manhã mais
humilhante de sua vida. Mas enquanto ela o observava disfarçadamente, sua
consciência lhe deu um aviso.

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Agora que ele estava perto, deu-se conta de que não estava
absolutamente tão tranquilo como aparentava. Tinha sombras profundas sob
os olhos, e sua pele estava estranhamente pálida. Tinha o aspecto de alguém
que não pregou o olho a noite toda.
— Está zangado pelo que aconteceu ontem à noite — disse ela. Era uma
estúpida constatação, mas se deu conta disso quando já havia dito. — Eu…
sinto… Foi… Lamento que seja desagradável para você pensar nisso.
Varian ficou olhando fixamente com uma expressão ainda inescrutável.
— Desagradável?
Esme olhou para outro lado.
— Não me dava conta… OH! Não acreditei que… Possivelmente deveria ter
me dado conta de que… de que podia ser desagradável estar com uma garota
que não sabe nada disso, como eu. Ainda não entendo por que não decidiu
parar. Não me dava conta de quão aborrecida podia estar sendo para você.
Pior ainda…, depois de ter cruzado a nado a baía e estar a ponto de afogar
também a você. Mas tudo isso dá no mesmo, não é assim? — acrescentou ela
tristemente. — Tenho feito você ir daqui para lá, pelos pântanos e as
montanhas, e o obriguei a suportar toda a imundície e os insetos e…
— Esme, encontra-se bem? — perguntou ele com um estranho tom de voz.
— Estou muito melhor do que mereço — sussurrou ela. — Mas mereço
receber um tiro. Não deveria me permitir viver entre pessoas civilizadas. Eu
pertenço às montanhas, como as bestas selvagens.
Ele clareou garganta.
— Não disse que tenha chegado o dia de ajustar contas, carinho.
Entretanto, tenho em mente algo um pouco mais drástico.
Ela abriu os olhos como pratos. Não acreditava que ele tivesse que tomar
ao pé da letra.
— Mais… drástico?
— Não estranho que realmente esteja assustada, Esme. E vai estar mais
dentro de um momento. — Tomou a mão que repousava sobre os lençóis e a
apertou com força entre as suas. — Senhorita Brentmor, queira ou não, vai ter
que me dar à honra de converter-se em lady Edenmont.
Ela ficou olhando surpreendida a mão que ele sustentava entre as suas.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— O que?
— Minha esposa — disse ele. — Matrimônio. Não pode me seduzir e
pretender logo sair impune disso.
Ela tentou soltar-se da mão dele sem consegui-lo.
— Varian, isto não é divertido.
— O toque de defuntos raramente o é.
— Diz tolices — disse ela. — Isso é uma piada sem nenhuma graça, e o diz
por que está zangado comigo. Ou me mentiu a respeito do Alí. Ou…
Esme se calou uma vez que outra possibilidade, muito mais inquietante,
cruzava-lhe pela cabeça.
— Oh, Varian! Não pode ser que faça isto porque eu era virgem. Estou
segura de que não fui a primeira…
Calou-se de repente ao ver que ele ficava rígido. Uma sombra cruzou seu
rosto.
— Eu ainda não completei os trinta — disse ele. — Ainda não me dediquei
a rondar formosas virgens. Mas não culpo você por ter pensado o contrário.
— Isso não tem importância — disse ela em seguida. — Não pode ser tão
louco para querer atar-se a uma mulher por essa causa. Disse-me que não
casaria comigo nem por mil libras, e vai fazê-lo por um pedacinho de carne?
Isso não tem sentido. Quantas moças perdem sua virgindade por acidente?
Pode acontecer montando a cavalo ou de muitas outras maneiras. Não entendo
por que nos fez a natureza com essa coisa, só nos traz problemas.
Varian meneou a cabeça.
— Deveria ter sabido. A típica lógica de Esme. Disso se trata. Não deveria
ter abandonado você esta manhã. Não deveria tê-la deixado nem um instante
para que refletisse. Sabia que tinha que ficar vigiando. Como fazem todos
outros…, mas eu não tenho muita prática em vigiar a ninguém.
— A mim não é preciso…
— Sim, sim é preciso. Venha aqui — disse ele lhe soltando a mão.
— Aonde?
— Aonde crê? Aonde pede seu amante que venha senão entre seus
braços?
— Você não é meu…

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— Sim, sou. Deixa de ser estúpida, Esme. Hajde.


Ele era seu amante ou em todo caso o tinha sido, e ela não podia resistir
seu convite mais do que a noite podia resistir ao amanhecer. Esme se apoiou
docilmente em seu regaço. Os braços dele a rodearam possessivamente e o
coração dela bateu ligeiramente aliviado. Esme afundou o rosto na jaqueta
dele.
— Melhor assim, não acha? — disse ele com voz carinhosa.
— Sim.
— Porque estamos os dois excessivamente envolvidos um pelo outro, não
é assim?
— Sim, ao menos eu estou, Varian — resmungou ela contra a lã de sua
jaqueta.
— Por isso fizemos amor — disse ele. — E não me pareceu aborrecido. Meu
único problema era que me sentia culpado. Tenho muito carinho por você.
Deixa-me louco, mas isso não é mais que uma parte. Eu não queria desonrá-
la. É tão forte e valente como formosa; e boa parte de meus concidadãos
cairiam loucamente apaixonados por você. Se não houvesse tocado em você,
poderia ter casado com algum deles. Já vê que tinha boas intenções.
Desgraçadamente, isso não parecia ser muito forte frente a meus desejos e
meu egoísmo; e quando não me disse não, acabou com todas as minhas boas
intenções. Quero que saiba que não tem por que culpar-se de nada, Esme. Não
sou uma pessoa com muito honra, mas teria gostado de ouví-la dizer que
não…, acredito.
Ela ergueu a cabeça para olhá-lo.
— É obvio que acredito. Por que pensa que não lhe disse isso? E não me
fale de culpabilidades. Estou segura de que teria matado você se chegasse a
me rechaçar.
— Então é possível que entenda por que me obrigaria a matar você se
recusasse se casar comigo.
Esme fechou os olhos. Cada vez que ela tinha tentado fugir dele, havia se
sentido tão mal que tinha desejado morrer. Mas atá-lo a ela aos olhos de todo
o mundo e sob a bênção do próprio Deus?
Ela era uma rude e intratável moça e ele um lorde inglês… e um libertino.

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A natureza dele poderia não suportar as cadeias do matrimônio. E quando o


desejo que sentia por ela desaparecesse como aconteceria, abandoná-la-ia,
sentimentalmente e de fato. Seu olhar se tornaria frio e distante… Como ela ia
poder suportá-lo? Melhor, muito melhor separar-se dele assim.
— Posso ouvir seus pensamentos — disse ele com uma careta. — Não faz
mais que ver problemas em tudo.
— Varian…
— Tenta pensar nisso — disse ele abaixando a cabeça e aproximando seus
lábios a um centímetro dos dela.
Automaticamente Esme jogou os braços ao pescoço para unir seus lábios
com os dele.
— Não — disse ele. — Se não se casar comigo, não voltarei a beijá-la
nunca mais.
O fôlego quente de Varian lhe roçou o rosto, enquanto seu forte corpo se
estremecia. Suas mãos eram tão suaves e lhe agarravam a mandíbula de uma
maneira tão terna que o pulso dela acelerou.
— Isso não é jogar limpo, Varian — disse com voz tremente.
— Eu não estou acostumado a jogar limpo. Sim ou não?
E no final ele ganhou.

Estava condenada, havia dito Varian a si mesmo uma hora mais tarde,
enquanto lhe dava um beijo no pescoço. Tinha estado condenada no momento
em que se conheceram. Não contente matando a seu pai, o destino tinha
enviado Varian St. George para que destruísse seu futuro.
De qualquer modo, era difícil sentir-se culpado enquanto sustentava entre
os braços aquela formosa e rebelde criatura, que lhe pedia que fizesse amor.
Mas o céu sabia que não era necessário que o pedisse. Ele tinha desejado fazer
amor no momento em que a tinha visto pela primeira vez. E quando por fim
tinha feito, tinha desejado fazê-lo de novo.
Mas não podia passar toda a vida na cama com ela. Percival e Qeriba
estavam embaixo, esperando para assegurar-se de que Esme não ia causar
mais dificuldades quanto ao matrimônio. O mais inquietante era pensar em
Ismal, que podia estar esperando-os … em qualquer parte.

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Esse último temor conduziu Varian da cama até onde estava sua roupa.
— Direi a sua avó que traga algo para você vestir — disse ele enquanto se
abotoava as calças. — Estava preparando a bagagem.
Esme se meteu sob os lençóis.
— Ah, estará muito contente de ver-me casada! Tudo isto foi coisa dela,
verdade?
— Não, tudo foi coisa minha. — Varian vestiu a camisa. — Qeriba tão
somente colaborou. Embora não tivesse encontrado o Percival e a Qeriba esta
manhã embaixo, o resultado teria sido o mesmo. Não comece outra vez a
imaginar que alguém me obrigou a me casar contigo ou que estou atuando
movido por alguma absurda ideia de nobreza.
Ele se aproximou de novo da cama e ficou olhando fixamente.
— Não sou nobre. Quis fazê-la minha praticamente desde o começo. E
desde que esqueceu de prevenir-me a respeito, agora é. É muito simples,
Esme. Não torne mais complicado.
Uns olhos verdes o olharam fixamente com ar de recriminação.
— Já vejo o que acontece. Embebedou-me fazendo o amor para que não
possa pensar e tenha que dizer: «Sim, Varian. Não, Varian. Como você queira,
Oh, grande luminária dos céus!».
Ele não pôde evitar sorrir.
— Exatamente.
— Você espera só que esteja mais acostumada a seus truques — advertiu
ela.
— E então será muito tarde, porque já estaremos casados — disse Varian
dando de ombros. E logo, evitando seu olhar, acrescentou: — E até então não
vai haver mais tropeços entre nós. Partimos para Corfú dentro de umas horas.
E uma vez ali, terá alguma acompanhante feminina.
Ela, sobressaltada, saiu de sob os lençóis.
— Acompanhante feminina? Não fala a sério?
— Tem que saber que Percival estava preparando-se para um duelo esta
manhã, para vingar sua honra. Não quererá ferir ainda mais a sensibilidade do
jovem vivendo durante mais tempo em pecado com seu prometido?
Varian foi para a porta.

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— Não estará sozinha, rodeada de estrangeiros. Qeriba aceitou vir conosco


para fazer companhia a você, e dei a entender a ela que a família de Donika
pode nos preparar uma adequada celebração albanesa, antes que nos casemos
pela Igreja anglicana com um padre inglês. — Dirigiu-lhe um olhar culpado. —
Não terá que preocupar-se por não ter a seus amigos no dia de suas bodas.
Varian não esperava nenhuma resposta, e estava já saindo pela porta
quando Esme pediu que voltasse. Ficou parado na soleira, esperando o pior de
sua possível resposta.
— Obrigado, Varian — disse ela com voz suave.
Ele se relaxou e sorriu.
— S'k gië.

Capítulo 21

Sir Gerald ficou olhando a carta que acabava de receber, embora lorde
Edenmont a tivesse escrito quase quinze dias antes. O atraso foi coisa do
Percival, sem dúvida, como tinha sido todo o resto. As bodas se celebrariam
dentro de uns dias. Se os ventos fossem favoráveis, poderia chegar a Corfú
em um dia; mas para que?
Sir Gerald, franzindo o cenho, tirou o olhar da carta e o dirigiu para a baía
do Otranto. Que diabos estava acontecendo ali?
Jason tinha sido assassinado, graças ao céu, mas o céu parecia lhe
proporcionar outras pequenas surpresas. Aquele louco tinha deixado para trás
a uma filha bastarda, e Edenmont pretendia agora casar-se com ela.
— Maldito canalha — murmurou sir Gerald. — Possivelmente pensa que vai
poder me tirar dinheiro. Seja! Deixemos que fique com a bastarda do Jason, e
que fique também com esse problema do qual me encarregou a puta de minha
esposa. Dez anos para conceber um filho — se queixou enquanto começava a
andar daqui para lá pela terraço. Um milagre, isso disse Diana. Como se eu
não soubesse contar.
Fazia contas. Nove meses antes que nascesse Percival, sir Gerald tinha
estado viajando pelo estrangeiro. E nem por um momento acreditou que

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Percival tivesse nascido prematuramente.


Não tinha esquecido a velha traição com os anos. A simples visão do
menino era suficiente para voltar a abrir aquela ferida. E agora havia outro
bastardo do Jason com o qual ver-se.
O barão entrou de novo na casa e se dirigiu para seu escritório, dando
voltas na cabeça à mordaz réplica que ia enviar a sua excelência. Entretanto,
quando sir Gerald tomou a pluma, seu olhar caiu sobre o jogo de xadrez, no
qual faltava a rainha. Grunhiu apertando os dentes.
A Rainha da Meia-noite tinha sido detida pelas autoridades inglesas uns
dias antes de chegar a Preveza, conforme tinham informado. Logo depois,
tinham sido interceptados outros dois barcos, e as notícias tinham viajado
muito rápido. Alguns alfandegários tinham começado a falar e era muito
provável que o resto o fizesse muito em breve. Tinha investido uma grande
quantidade de dinheiro naquilo, e nesse momento, já não esperava poder obter
nenhum benefício.
Teria que pedir dinheiro a sua mãe, o que era uma perspectiva horrorosa.
A velha bruxa certamente quereria examinar suas contas com atenção.
Embora suas notas nos livros de contas fossem bastante criativas para
esconder seu segredo, aquele processo seria de qualquer modo humilhante. A
nobre viúva encontraria enganos em suas contas, como sempre tinha feito. Era
Jason, o filho pródigo, que ela sempre tinha adorado, embora mostrasse o
contrário. Mesmo agora, se Jason estivesse vivo, a velha bruxa senil seria
capaz de dar ao Jason… tudo o que pedisse. Como sempre tinha feito, exceto
aquela última vez. E agora, ali estava aquela garota que Edenmont afirmava
ser a filha do Jason.
Deixando a um lado a pluma, sir Gerald voltou a segurar a carta. A garota
tinha escrito uma nota, mas não estava ali. O barão deu uma última olhada ao
papel rabiscado com os ilegíveis garranchos e voltou a examinar o texto do
Edenmont.
— «Espero a bênção…» Não, aqui. Sim, está bastante claro agora. «Levá-
la a Inglaterra, se o desejar, e ao Percival também, se lhe parecer bem.»
Aí estava a chave de tudo. Edenmont pretendia levar a garota a Inglaterra,
para apresentá-la a sua estúpida avó e, de passagem, utilizar ao Percival, se

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fosse necessário para abrandar o coração e o cérebro daquela velha bruxa.


— Oh, não, não o conseguirá! — grunhiu sir Gerald. — Não ficará com
minha herança. Nem um centavo, Edenmont. A velha bruxa pode ser que já
esteja envelhecendo, mas eu não.

As semanas anteriores as bodas passaram como um longo e


desconcertante sonho, cheio de caras estranhas e de vozes desconhecidas com
o típico acento entrecortado inglês. Embora no centro do mesmo, Esme se
sentisse olhando tudo de outro mundo, via si mesma atuando tal e como o
sonho requeria dela.
Varian tinha alojado a ela e a Qeriba na casa do pastor protestante, o
senhor Enquith e de sua esposa. As visitas que faziam Varian e Percival eram
tão estranhas que pareciam ser também eles pessoas alheias. Enquanto iam e
vinham por Corfú, discutindo a respeito das adequadas bodas inglesas que
Varian estava decidido a celebrar, Esme enfrentava a mais desalentadora tarefa
de converter-se em uma apropriada noiva inglesa.
Tinha deixado os remorsos e as preocupações escondidas no mais
profundo de seu coração. O assassinato de seu pai tinha ficado sem vingança,
sua pátria estava a beira do desastre, mas era muito tarde para que ela
pudesse atuar com heroísmo. Seu prometido era um estrangeiro, um lorde, um
sedutor sem um centavo, mas era muito tarde para que ela pudesse agir com
inteligência. Esme tinha entregue seu coração, até mesmo sua virtude, e não
podia pedir que os devolvesse.
Ela seria sua baronesa, o que significava que ao menos tinha que
aparentar como uma dama. Em consequência, foi nisso que centrou sua
mente. Dedicou-se a ler com interesse os livros de modas que a senhora
Enquith emprestava, e ajudava às duas anciãs a transformar os tecidos em
vestidos. As lições de costumes ingleses tomaram Esme com a mesma
concentração. Tinha que fazer assim, pensou. Não havia outra opção.
Uns dias antes das bodas chegou Donika junto com a maioria de suas
amigas, e Esme iniciou as celebrações pré-nupciais com a mesma resolução
que tinha tido para todo o resto. Tinha medo do futuro, mas pensou que temer
o futuro era bastante desencorajador. Somente se tratava de infelicidade, a

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vida da maioria dos seres humanos era infeliz. Portanto, decidiu encerrar em
seu coração o que sentia e oferecer aos outros só sorrisos e confiança.
Dessa maneira chegou o estranho sonho até o dia das bodas, um dia que
amanheceu quente e ensolarado.
De pé sob a luz da manhã, Esme recebia os cumprimentos de seus
amigos, que admiravam seu vestido e seu penteado. A última a aproximar-se
foi Donika. Deu um passo atrás e, enquanto observava com atenção o vestido
de cor verde esmeralda, sua testa enrugada relaxou enquanto esboçava um
sorriso.
— O que vai pensar o noivo quando a vir agora? — perguntou ela. — Antes
a chamava passarinho, mas hoje te vai ter que te chamar princesa.
Esme resistiu a tentação de estirar as dobras da saia, pois já estavam
bastante lisos e, além disso, ela tinha as Palmas das mãos úmidas.
— P… passarinho?
Donika riu.
— Sim… sim. Como gagueja. Chamou-te passarinho aquele dia em
Saranda e disse que tinha voado levando seu coração. Eu pus-me a chorar ao
ver seus olhos e ouvir o tom de causar pena de sua voz. Ao final ficaram a
chorar todas as mulheres, e também mais tarde, quando souberam que se
lançou à água detrás de você. Um homem tão formoso, tão forte e tão alto, e
com tanto amor… Como poderia recusá-lo?
— Nenhuma mulher pode recusá-lo — disse Esme com voz tensa e
cortante. — Eu nem sequer tentei e agora…
— Agora farão felizes um ao outro.
— Felizes. Que Deus tenha piedade de mim. — Esme apertou o peito com
um punho, como se dessa maneira pudesse deter o violento batimento de seu
coração. — Oh, Donika! Não posso…
Donika a arrastou e a levou até a porta.
— Sim, se arrastas os pés eu tenho que empurrá-la para fora, vai parecer
a perfeita noiva modesta. Esme seja como for tem que se casar, amiga minha.
Embora Donika a levasse pela mão, o que a conduzia era o sonho no qual
vivia. Sem dar-se conta de como, viu-se de repente em meio de uma multidão
de rostos e entre o murmúrio das pessoas, de pé, diante do pastor anglicano.

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E nesse momento a névoa começou a se dissipar. Olhou a seu lado e viu seu
formoso deus que sorria meigamente. Todo ele parecia brilhar. Seu rosto
reluzia como uma estátua de mármore, e seus olhos refulgiam com raios
dourados. Até parecia que sua voz fosse um resplendor que a iluminava por
dentro, enquanto ele pronunciava as palavras da cerimônia, e um trêmulo e
doce sorriso se desenhava em seus lábios para ouvir a resposta dela.
Logo houve um movimento e o murmúrio da multidão se aproximou mais
a eles. De entre o tumulto, várias vozes desconhecidas a chamavam «senhora»
em inglês. Ela não entendia nada, e a todos respondia sem vacilar,
maquinalmente, com as corteses frases que lhe tinham ensinado.
Horas mais tarde, o sonho a levou até o porto. Viu o Petro soluçando
enquanto abraçava ao Percival, e depois fazendo consideráveis dramalhões a
Varian quando ele lhe pôs nas mãos uma bolsa com moedas. E ali estavam
também Donika, Qeriba, seus amigos… e as vozes que se despediam em sua
própria língua. Esme sentiu o braço de Varian lhe rodeando a cintura,
ajudando-a a manter o equilíbrio enquanto viam como o barco zarpava, e ela o
seguia com o olhar, vivendo tudo como algo irreal e incompreensível.
A bruma não se dissipou por completo até que olhou pela janela da casa
que Varian tinha alugado. Aquela era a surpresa que ele tinha preparado: uma
grande estrutura branca sobre a baía da Kulura, na costa nordeste de Corfú.
Pela janela se via sua pátria. O sol que começava a por-se produzia reflexos
acobreados sobre o profundo mar verde azulado do Jônico.
Ela já tinha acendido as velas. E tinha tirado o vestido de noiva para vestir
uma camisola de renda que tão amorosamente a senhora Enquith tinha feito, e
também tirou as presilhas do cabelo. Escovou o cabelo até fazê-lo brilhar com
a escova de cabo de prata do estojo de Percival, que ele havia presenteado. No
quarto havia um grande espelho de parede no qual Esme se olhou com
atenção.
Tinha visto ali refletida uma pequena e esquálida moça, completamente
sozinha.
Agora, consciente ao fim da dor que sentia, ficou a olhar pela janela.
Já não podia ver sua pátria no outro lado da estreita faixa de água. Albânia
já não estava ali. Era uma moça sem país, sem família.

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Seu tio não se apresentou às bodas, sem dúvida porque não tinha
nenhuma intenção de reconhecê-la como família, e tampouco tinha especial
interesse em voltar a ver seu próprio filho. Mas Percival teria que retornar com
ele, em algum momento, de algum jeito, e a Esme acabariam assassinando,
como tinham feito com seu pai.
Ela não era ninguém. Ninguém, só era a esposa de lorde Edenmont. Nem
sequer era uma dama. Tinha aprendido os rudimentos da vida em sociedade, e
umas quantas frases corteses que recitava igual os meninos recitam o latim no
colégio. Também poderia recitar ao Cícero, ao Catulo e a outros. E isso não ia
convertê-la em romana.
Ouviu um leve som de alguém que batia na porta e se voltou para ela com
o coração pulsando dolorosamente. Logo conseguiu fazer sair por sua garganta
as palavras com as quais ia dizer a seu marido que podia entrar.
A porta se abriu deixando ver o alto e esplendidamente bem formado lorde
que a tinha feito sua e só sua… e Esme não pôde evitar começar a chorar.
Imediatamente Varian cruzou o quarto. Sem dizer uma palavra, tomou-a
nos braços e a levou para a cama. Não a deixou sobre o colchão, mas sim a
manteve em seu regaço, enquanto Esme se abraçava a ele, soluçando
desesperadamente.
Ele a abraçou, apoiando suavemente o queixo contra sua cabeça enquanto
lhe dava tapinhas nas costas. Pouco a pouco começou a conseguir que se
acalmasse. Quando por fim terminou aquele horrível soluço, ele tirou seu lenço
e o deu a ela, ainda sem dizer uma palavra.
Sempre tinha odiado ficar a chorar. Até que tinha conhecido a ele, as
lágrimas jamais tinham afluído de seus olhos, como uma debilidade
desdenhável. Horrorizada consigo mesma, esfregou o rosto com raiva uma
vez que pensava que teria que castigar-se por isso.
— Não é nada — disse a ele olhando uma de suas lapelas. — Foi uma
estupidez. Devo parecer repugnante.
Tratou de levantar-se, mas ele a reteve.
— Não, Esme, isso não é certo, e não quero ficar louco tratando de
averiguar qual é o problema.
Os olhos cinza dele a olhavam com atenção. Aquele olhar a fez

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estremecer-se, o que a punha em um estado de ansiedade similar ao que


produzia o pranto.
— Já disse que não é nada — disse ela. — Estou cansada, isso é tudo.
Disfarcei-me para tentar parecer uma dama.
— Não é preciso que tente parecer nada; não por minha causa.
— Certo. Poderia ter feito da minha maneira, e ter parecido uma louca e
uma bárbara aos olhos de seus patrícios, e ter feito com que sentissem pena
de você enquanto riam de mim. Você sabe tal como eu como esperavam que
me equi… que eu envergonhasse a você e ao meu primo. Por isso ficou
afastado de mim até hoje — acusou ela. — Por um dia, ao menos, poderia
acreditado que eu não ia arruinar sua vida.
Varian olhou os punhos fechados dela.
— Sei — disse. — Que criatura tão estúpida é, pode estar segura disso.
— Estúpida?
Ela cravou as unhas nas mãos e apertou seus dedos, porém deveria ter lhe
colocado umas algemas de ferro pelo que lhe tinha feito.
— Sabe que sou mais forte que você — disse ele. — E embora fosse você,
não poderia ir muito longe. Seria muito mais prático que me arrancasse os
olhos, não acredita?
Esme sabia ou ao menos a parte mais razoável dela sabia que ele a estava
provocando. Mas não fazia diferença. Sentiu um arrebatamento de pura raiva
que percorria seu corpo.
— Odeio você! — gritou ela. — Poderia arrancar seus olhos, mas então
ficaria cego, além de estúpido e louco, e não tenho a ninguém mais que a
você! — deu-lhe um murro no peito, fazendo com que ele soltasse um gemido.
— Oxalá estivesse morta!
— Não, isso não é verdade. — antes que pudesse bater-lhe de novo,
Varian segurou sua mão e a beijou. — O que quer é que eu esteja morto. Ou
que não tivesse nascido jamais.
Soltando-lhe a mão, levantou-a de seu regaço e a deixou de pé diante
dele.
— Por que não olha ao seu redor? Pode ser que encontre algo mais duro e
contundente para me golpear. — Ele olhou para o lavabo. — O jarro de louça,

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por exemplo. Estou seguro de que um bom golpe com isso me deixaria fora de
combate durante várias horas.
Completamente desconcertada, Esme seguiu seu olhar.
— O jarro? — Quando ela se voltou para ele, seus olhos tinham um
estranho brilho. — Com isso romperia seu crânio.
— Oh, duvido-o! Para isso me parece que precisaria de um machado. Os
lordes ingleses, já sabe, têm a cabeça muito dura.
Ela deixou escapar um longo suspiro. Sua raiva se dissipou tão rápido
como tinha surgido e agora já não podia recuperar, por muito que a
necessitasse. O aborrecimento era tão cômodo, tão familiar… O fazia sentir-se
forte. O desespero o fazia sentir-se débil.
— Oh, Varian! Não poderia fazer isso. Você sabe que não seria capaz.
— Suponho que não. Sou um espécime bastante penoso, e além de tudo o
que tem agora, infelizmente. Nenhum lugar para aonde ir, nenhum ao que
retornar. Só o estúpido e tolo Varian, que deixou-a entre estranhos durante
quase três semanas. Só por decência, o que é algo sem sentido para você,
porque não é uma hipócrita, como eu. E está zangada com razão, porque não
teve nada que objetar nem teve outra opção durante essas semanas.
Esme ficou ereta.
O olhar brilhante dele passeou lentamente da cabeça dela até seus sapatos
de seda.
— Agora eu mereço um castigo — acrescentou ele com voz suave. — Em
minha noite de bodas. Primeiro umas lágrimas para me dar um susto de
morte…
— Não assustou-se — disse ela. — Não brinque comigo. E não me acuse
de utilizar débeis truques românticos. Já sei que esses tipos de coisas jamais
poderiam comovê-lo. Quantas mulheres se puseram a chorar por tua culpa? E
me pergunto quantas mais o farão ainda.
— Chorava por minha culpa, carinho?
— Não! — Ela voltou-se para a janela, agora estava já completamente às
escuras lá fora. — Oh! Que sentido tem tudo isso? Sim, sim! Por você.
Ele a segurou pela cintura e a fez girar para que ficasse de cara com ele.
— Isso era o que suspeitava. E por isso me assustei. Também é isso parte

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de meu castigo. Deus, sabe que não posso suportar vê-la chorar. Mesmo
quando tem cara de estar a ponto de fazê-lo. — Agarrou-a pelas mãos e
carinhosamente a aproximou mais dele. — Mas você não me odeia, verdade,
carinho?
— Sim. Não.
Ele ficou olhando a mão esquerda dela durante um longo momento,
enquanto percorria com o dedo a circunferência do anel de ouro que levava no
anular. Então, levando as irresistíveis mãos dela aos lábios, beijou a suave
carne das palmas. Esme ficou a tremer, com desejo, com medo. Oferecer seu
corpo tinha sido fácil. Tinha-o feito com muito gosto e voltaria a fazê-lo de
novo, se somente se tratasse disso. Mas dar toda sua vontade, tudo o que
era…
Esme se afastou e se soltou.
Varian ergueu o rosto para olhá-la. Seus olhos ainda brilhavam daquela
maneira estranha, escura agora.
— Quer que eu diga, Esme? — perguntou ele com um tom de voz muito
baixo, excessivamente suave. Logo rodeou sua cintura com os braços. — Você
perdeu muito menos.
— Não me minta.
Mas desta vez já não tentou afastar-se dele. Não tinha nenhum direito de
rechaçá-lo. Era sua esposa. E era culpa dela que isso tivesse acontecido. Mas
tampouco podia suportar sentir-se embriagada e impotente. Estava perdida, e
em seus braços, enlouquecida por sua maneira de fazer o amor, e sabia que
nunca poderia afastar-se dele.
— Sei — disse ele. — Sabia há muito tempo. Ter-me como amante era
uma grande desonra. Mas ter-me por marido… ah, bom! Isso é muito
perigoso.
Ela afogou um soluço. Não parecia justo que ele pudesse ler seu
pensamento tão facilmente, quando para ela ele era o mais escuro dos
mistérios.
— Sei o que sou, Esme — disse ele. — Mas você mesma se ofereceu para
mim, e agora eu necessito de você. Além do que posso suportar, e além, além
da consciência. — As mãos dele apertaram sua cintura. — E deveria voltar a

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ganhá-la nessa noite, e sei que posso fazê-lo. Sem escrúpulos.


Então Esme entendeu o brilho que havia em seus olhos, e viu o perigo
nesse brilho, mas antes que pudesse retirar-se, ele colocou uma perna entre
as dela e a fez perder o equilíbrio. Esme caiu sobre ele, e ele se inclinou para
trás sobre a cama, ficando ambos deitados um em cima do outro.
Ela tratou de soltar-se com fúria, pensando só que não ia deixá-lo ganhar,
não tão facilmente, não aquela noite. Ela precisava lutar por alguma parte de
si mesma, e que ficasse algo realmente dele, não queria ser só o que ele tinha
feito dela. Não podia render-se tão rápido.
Mas Varian era tão rápido, tão forte, tão preparado que ao cabo de um
instante ela estava já deitada debaixo dele, ofegando e lutando com
desespero, porque o peso dele sobre seu corpo era quente e também
dolorosamente familiar. Até esse momento não se deu conta da profunda e
terrivelmente só que tinha estado. Odiava a si mesma por aquela solidão,
assim como se odiava por desejar o refúgio que Varian oferecia, embora fosse
também uma prisão.
As mãos dele se fecharam sobre os seios de Esme, e ela sentiu vontade de
chorar.
— Não, Varian — suplicou.
— Sim, Varian — respondeu ele como uma suave ordem.
Logo lhe deu um tenro beijo em uma têmpora e desenhou um caminho de
ofegantes beijos até sua orelha e mais abaixo, até seu pescoço.
Imediatamente se sentiu traída pelos rápidos batimentos de seu coração. Ele
aproximou os lábios do seu pescoço e se entreteve em beijá-la longamente,
enquanto saboreava o triunfo daquele profundo e saboroso beijo. Ela se sentiu
embriagada por aquela carícia e seu suave peito se esticou, enquanto
começava a invadir um calor que a percorria por dentro e fazia ninho em seu
útero.
— Sim — repetiu ele. — Porque me deseja. Diga-me isso — Ele percorreu
seus seios com as mãos e com a língua e começou a fazê-la arder lentamente,
contra seu desejo, contra todos seus raciocínios.
Ela mordeu os lábios.
Ele baixou-lhe a camisa de dormir pelos ombros e logo mais abaixo,

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deixando a descoberto seus excitados e jovens seios.


— Diga-me.
Ele percorreu seus seios com as mãos e com a língua e desejou fazê-la arder
lentamente, contra seu desejo, contra todo raciocínio.
— Não, gemeu ela, sem poder evitar comover-se com suas carícias.
A camisola dela baixou mais, até os quadris. E suas mãos e sua boca a
seguiram, amalucada e deliberadamente.
— Sim.
— Na voz dele havia um tom jocoso, e apesar de que sem dúvida ela lhe
rompia o coração, também tinha vontade de rir. De uma maneira louca.
— Não — murmurou ela. — Antes preferiria morrer.
— Então sem dúvida morrerá, meu amor… belamente.
Ele se moveu para baixo, e Esme começou a tremer quando ele abaixou a
cabeça. Os sedosos cachos de seu cabelo acariciaram sua pele, fazendo-a
estremecer. Logo seu ventre se esquentou com os doces beijos dele, e tratou
de conter um gemido.
Esme abria e fechava as mãos, mas não servia de nada. Fechando os
olhos, deixou que seus dedos deslizassem pelo cabelo dele. Desejava esmagá-
lo contra ela, mas não devia fazê-lo. Ele sabia que a estava torturando e
deixava claro, mas também sabia que ela não se daria por vencida tão
facilmente.
Esme passou ligeiramente os dedos entre os cabelos dele, como se não
necessitasse mais, como se não tivesse todos os músculos doloridos pela
tensão. Como se não estivesse desesperada para tê-lo dentro dela.
Então a boca dele se moveu ainda mais abaixo, e uma convulsão extasiada
a fez vibrar, ao tempo que deixava escapar um grito do mais profundo de seu
ser. Naquele momento abrasador, ela esteve a ponto de deixar-se levar por
uma corrente de delírio.
— Varian, não…! Ah! Não…
Esme lhe cravou as unhas no couro cabeludo e começou a amaldiçoar em
todos os idiomas que conhecia. Mas não era sua própria voz que falava, mas a
de um demônio, grave e rouca. As travessuras da língua e a boca dele faziam
com que ela sentisse demônios dançando dentro de seu corpo. E este

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respondia ao desejo dele, não ao dela. Ela já não tinha vontade.


— Varian… não… não… Oh, por favor!
Ele levantou a cabeça e pôs-se a rir.
Seus dedos percorreram a parte interior das coxas dela de cima abaixo, e
ela notou que a rígida carne dele pulsava quente contra sua pele. Esme tinha
vontade de gritar.
— Me diga que sim — ordenou ele. — Me Diga.
— Sim, sim. Desejo você.
— Sim — repetiu ele. — desejo você.
E por fim se introduziu nela.

Varian estava vagamente consciente da chuva que tinha começado a cair


horas antes. Tinha ouvido o suave tamborilar na terra do outro lado da janela,
enquanto acariciava a sua esposa provocando-a de novo. E a tinha feito sua
uma e outra vez, porque ela o fazia zangar-se uma e outra vez. Havia se
sentido triste sem ela durante as longas e infernais semanas anteriores, e logo
totalmente destroçado ao encontrá-la ali chorando. E ao dar-se conta de que
ele era a causa de seu pranto. Ao final, ela havia voltado à razão, pobrezinha.
Muito tarde.

— Não posso estar perdido — havia dito Varian a ela. Mas só depois de ter
feito amor de maneira delirante, quando tinha dado e tomado prazer, como
tem que ser entre os dois. — Não a deixarei partir. Não deixarei que escape de
mim. Já sabe, eu sempre ganho, Esme. Acredite-me, vendeu a alma ao diabo,
se quiser ver assim, porque nisso posso ser muito diabólico.
— Você espera — tinha repreendido ela, teimosa como sempre. — Só
espera que me tenha acostumado.
Ele tinha rido.
— Posso assegurar que não chegará nunca a acostumar-se, milady.
E logo a tinha tomado outra vez, alegremente. Ele tinha se sentido
picaramente alegre no momento em que o pastor os tinha unido. Enquanto
Varian a desejasse, Esme estaria ali, seria dela, como era o correto e o
adequado, esse era o solene trato selado ante Deus, com o acompanhamento

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de duas testemunhas mortais.


Agora, Varian olhou para a janela, pela qual começava a entrar a tênue luz
da manhã. Suas mãos passearam pela suave pele dos ombros dela e logo ao
longo de seus braços, parando um momento para lhe acariciar com ternura a
ferida de bala. Ela estava descansando, adormecida e confiante em seus
braços.
— Pelo amor de Deus, quanto a amo — murmurou ele. — E maldito seja
se souber o que tenho que fazer.
Só restavam dez libras em sua conta, não tinha onde conseguir mais
dinheiro naquela ilha perdida em meio de nenhuma parte, e naquela casa só
poderiam ficar durante uma semana. Não tinha recebido notícias de sir Gerald,
apesar de ter mandado uma carta a mais de quinze dias. Tinha que levar o
Percival de volta para seu pai. Mas aonde? Para Otranto? Para Veneza? Onde
estava seu maldito pai?
E Esme, aonde tinha que levá-la? Possivelmente pudessem viver na Itália.
Ao menos durante um tempo. Nesse país poderiam manter-se com muito
pouco, e Varian tinha maneiras de conseguir dinheiro ali. Mas não, não como
antes; nunca mais, não estando casado. Não estava disposto a arrastá-la a
uma sórdida existência.
Entretanto, tinham que ir a alguma parte. Não podia mantê-la naquela
maldita rocha para sempre, nem sequer uma semana mais, não estando Ismal
tão perigosamente perto. O governador de Corfú não se sentia tranquilo com
respeito à Albânia. Tinha começado a armar à população. Tinham detido vários
barcos com armas, mas quem sabia quantos outros teriam chegado a seu
destino? Esme tinha que partir dali, muito logo. Disso não havia nenhuma
dúvida.
E só tinha uma semana para preparar sua partida. Varian tinha ouvido que
já tinham reparado o Pélago e agora viajava a caminho de Corfú. Se as
informações que tinha eram confiáveis, poderia chegar qualquer dia a partir
desse. Tinha deixado ao capitão dinheiro mais que suficiente para os reparos e
tinha pagado um preço muito alto quando o contratou. Além disso, a maior
parte de seus pertences e de Percival estavam ainda a bordo. Por outra parte,
tinha contratado aquele barco só por quinze dias, não por dois meses, e seu

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proprietário poderia ter decidido que o contrato se cumpriu e retornar a Itália.


Então, que fazer?
Esme se esticou e murmurou algo, como se pudesse sentir a agitação dele.
Varian lhe deu um beijo na orelha.
— Dorme, meu amor — lhe sussurrou. — Dorme.
Ele se aconchegou a seu lado, apertando a cálida costa dela contra seu
corpo. Ficou olhando um momento e logo olhou para a janela.
Ia ser o tipo de amanhã úmida e cinza em que melhor seria ficar
dormindo. A garota que estava deixando-o louco durante os dois últimos
meses agora estava deitada a seu lado, a salvo entre seus braços, tão doce e
apaixonada a amante que qualquer homem podia desejar. Não era o momento
de preocupar-se com o futuro, pensou Varian. Era momento de saborear o
presente, de deitar-se mais uma vez em paz e desfrutar daquela estranha
alegria. Beijou-a nos ombros e logo fechou os olhos.
A sorte permitiu-lhe dormitar durante uma hora em quase absoluta
tranquilidade. Logo ouviu o som de passos que corriam e uns golpes fortes na
porta.
— Por todos os diabos, Percival, não pode um homem…

— Oh! Por favor, senhor, sinto muito. — A voz do menino tinha um


estranho tom agudo.
— O vai lamentar realmente quando…
— Por favor, senhor, vem. Papai está aqui!

Capítulo 22

Quinze frenéticos minutos mais tarde, lavado, cuidadosamente barbeado e


vestido, Varian acompanhava a sua esposa ao salão e ali a apresentava a seu
tio. Varian se deu conta de que Esme estava muito tensa, embora um olho
inexperiente não teria notado nela mais que uma aristocrática reserva. As três
semanas passadas em companhia da senhora Enquith tinham dado uma pátina

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de brilho naquela jovem mulher, que tinha o orgulho natural de uma


imperatriz.
Enquanto aceitava as lacônicas e rigidamente educadas felicitações, Varian
pensou que os negócios podiam andar como a seda, talvez assim Esme não
perdesse os nervos. Embora isso não fosse fácil. Não podia sentir-se contente
pelas frias olhadas que lhe dirigia seu tio, antes de desprezá-la completamente
dirigindo sua atenção só a Varian.
Mas Esme conteve sua indignação, como continha sua língua, e Varian se
inclinou silenciosamente pensando em beijá-la, da cabeça até a ponta dos pés,
no momento em que tivesse passado aquele maldito evento. Seu futuro
dependia daquela entrevista. A sir Gerald teria que dirigi-lo com delicadeza, e
isso ia requerer toda a presença de ânimo de Varian.
Desgraçadamente, sir Gerald não tinha ideia do que era a delicadeza.
Quando acabou com seus cumprimentos de praxe, foi direto ao ponto:
— Não posso ficar muito. Esperam-me os negócios. Você o entende,
Edenmont, estou seguro. Só vim para buscar o moço. — Lançou um olhar
sombrio a seu filho. — Já pode ir fazendo a bagagem, Percival… e depressa.
— A… agora, papai?
— É obvio que não agora mesmo. — Esme colocou uma mão sobre os
magros ombros de seu primo. — Acaba você de chegar e…
— Percival, faz sua bagagem!
— Sim… sim, papai.
Percival saiu correndo para seu dormitório.
O rosto de Varian expressava uma indiferença cortês.
— Não queria afastá-lo de seus negócios claro está — começou a dizer
com voz tranquila, — mas…
— Não pode me reter aqui — disse sir Gerald com uma voz igualmente
tranquila. — Nem tampouco o menino. Não pretendo perde-lo de vista até que
cheguemos a Inglaterra. E uma vez ali o deixarei a salvo na escola, onde
começará a aprender quais são suas obrigações, ajudado pela ponta de uma
vara de abedul.
— Quanto a suas obrigações…
— Sabia que sua obrigação era ir com você a Veneza, senhor.

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— Como expliquei em minha carta, o que aconteceu foi inteiramente culpa


minha.
Sir Gerald sorriu friamente.
— Não vou dizer que você é um mentiroso, milorde. Viu-se obrigado a me
chamar, e eu não sou tão ingênuo para me bater em um duelo pela falta de
sensatez do menino…, embora acredite nesse costume medieval, eu não
acredito. Entretanto, sei perfeitamente que não foi um italiano que embarcou
nesse cruzeiro pelo Adriático. Foi esse maldito menino, que tem a mente cheia
das tolices sentimentais que lhe inculcou sua mãe.
Varian viu um brilho nos olhos de Esme, mas ela viu o olhar de advertência
que lhe dirigia ele, e não disse nada.
— De qualquer modo, ao fim e ao cabo a aventura teve um final bastante
feliz — disse Varian com uma voz bastante fria e calma. — A aventura me fez
conhecer minha esposa…, sua sobrinha. Acredito que é uma boa ocasião para
celebrar e perdoar.
Sir Gerald meneou a cabeça.
— Pode celebrar você o que queira, Edenmont, mas não está em minhas
mãos oferecer o perdão que deseja. Parece-me que farão falta ao menos mil
libras de perdão se é que espera apaziguar os seus credores.
Varian ficou rígido.
O baronet continuou com voz enérgica:
— Espero que ela tenha contribuído ao menos com essa quantidade de
dinheiro, milorde, porque não vejo ninguém mais no mundo que o possa
proporcionar.
A raiva que aquelas palavras provocaram foi tão grande e inesperada que
Varian não pôde dominar sua língua. Enquanto lutava por controlar-se, seu
visitante se voltou para Esme.
— Não é minha intenção ofendê-la, senhora, mas deve saber como estão
os assuntos familiares, mesmo que seu lorde não queira reconhecê-lo.
— Sei perfeitamente — disse Esme em tom glacial. — E ele também sabe.
Já disse a ele que preferiria morrer antes que solicitar sua caridade.
Os olhos de sir Gerald brilharam divertidos, mas respondeu com falsa
amabilidade.

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— Muito próprio e sensato o que disse. Porque não há caridade a solicitar,


não lhe parece? Nem no caso de minha mãe.
Seu olhar deslizou até Varian.
— Não se comoverá, eu asseguro, nem um pouco. Não é necessário
mencioná-lo. Eu tentei em incontáveis ocasiões. Especialmente desde que
nasceu Percival. Pensava que um neto a abrandaria. Mas me respondeu que
bem poderia não ver o menino nunca mais sem nenhum remorso se voltasse
a falar de meu irmão. — Meneou a cabeça com tristeza. — Eu tenho as mãos
atadas.
E sem dúvida também as tinha atadas a Varian.
— Já vejo — disse Varian. — Estou seguro de que nada seria mais ilusório
que ver a família reconciliar-se. Entretanto, pelo bem de seu filho, não se
atreve a tentar. É obvio que não havia sequer sonhado em pedir a você um
favor como esse. Esme e eu temos muito carinho por Percival, e não
desejamos causar problemas de nenhum tipo. Parece-me entender que não
tem mais opção que levá-lo para casa você mesmo. Compreendo que se o
acompanhássemos minha esposa e eu, sua avó poderia não gostar.
— Exatamente, milorde — corroborou sir Gerald esfregando-as mãos. — É
uma penosa situação, sei. Um assunto muito desagradável, como diz. E me
alegro que você entenda.
— Entendo-o — disse Varian, — perfeitamente.

Alí ficou olhando ao imundo mendigo que estava de pé diante dele.


— Miserável desgraçado — lhe disse. — Pelo prejuízo que me causou
deveria deixar que o servisse de comida aos leões. Mas meu coração é muito
mole. E me diz que não tem a culpa de que Alá desse a você o cérebro de um
burro. — Olhou para Fejzi. — Mas esse iludido companheiro pensa que o
esperto é ele e Alá o burro. Porque sou velho e estou doente, acredita que
também estou cego e sou tolo. Você o que opina, Fejzi? O que deveríamos
fazer com este cão infiel?
— Não acredito que eu possa aconselhar a sua alteza. — respondeu Fejzi.
— Mas acredito que deveríamos fazer com que o tipo se banhasse e comesse
algo para que os leões pudessem aproximar seus focinhos.

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— Então vá prepará-lo — disse Alí. — E me deixe que fale um momento


com esta suja criatura em privado.
Fejzi saiu da sala em silêncio.
Quando já não se ouviam os passos de Fejzi, Alí se dirigiu ao mendigo com
um olhar de recriminação.
— Não penso em abraçá-lo, Leão Vermelho, estou profundamente
ofendido.
— Suponho que é pelo fedor — disse Jason. Sentou-se no tapete, com as
pernas cruzadas, junto à mesa baixa. — Não se pode evitar. Quando se vai à
caça de ratos, terá que infiltrar-se entre eles. — Com calma serviu ao visir uma
taça de café e logo serviu outra para ele mesmo.
— Teria que ter me deixado ir a caça contigo — se queixou Alí. — Mas não.
Quantos anos faz que nos conhecemos? Acaso não podia confiar em mim?
— Era um assunto muito pessoal. Tinha investido muito em seu primo.
Tinha grandes planos para ele.
Alí deu de ombros.
— Ismal é um ingrato. E a educação européia que recebeu é um completo
desperdício. Ainda segue pensando como um bárbaro. E é uma pena, com sua
inteligência e seu engenho. Poderia ter sido um grande diplomata. Poderia ter
feito que todos os soberanos da Europa se sentissem condoídos de nossa grave
situação e nos ajudassem contra os turcos. Poderia ter feito tantas coisas por
sua gente… Poderia ter sido um herói maior que Skanderbeg. É muito
decepcionante. Onde vou encontrar outro como ele?
— Sua alteza já superou muitas decepções.
— E assim farei dessa vez, e além disso, também me vingarei — disse Alí
antes de sorver seu café sorridente. — E esta vingança em particular vai ser
muito divertida.
Jason deixou de um lado sua taça de café, sem chegar a prová-la.
— Não vou perguntar. Fiz tudo o que pude para evitar um derramamento
de sangue. Se estiver disposto a semear o país de cadáveres, eu não posso
detê-lo.
— Sim, por que não crava sua adaga no meu coração agora que está a
tempo? Mais de vinte anos… E essa é a ideia que tem de minha inteligência? —

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Alí estalou a língua em um gesto de reprovação. — Meu primo está confinado


nas melhores habitações do palácio da Ioanina. Está gravemente doente. Os
médicos estão muito aflitos porque dizem que morre de amor pela filha do
Leão Vermelho, e não há cura para isso. Um dos médicos tem tão pouco
espírito que me parece que morrerá logo depois que o faça meu primo.
— Esse ao que pagou para que o envenene, não é assim? — perguntou
Jason com uma voz que era apenas um sussurro.
O silêncio do Alí era suficiente resposta.
— É uma pena — disse Jason após um momento. — Um triste desperdício.
Se as coisas tivessem sido de outra maneira, eu teria gostado de… — Se calou
enrugando o sobrecenho.
— Sei o que gostaria, o mesmo desejei eu em outro tempo. Mas vi com
meus próprios olhos, Leão Vermelho. Sua filha deu o coração a outro.
— Fejzi contou-me que faz uma semana que se casou com esse canalha.
— Jason franziu ainda mais o sobrecenho. — Não sabia nada. Estava
navegando…
— Isso não tem importância — disse Alí rapidamente. — Tem que pôr sua
inteligência em seus assuntos. E não podia ter interferido sem pôr em perigo
sua própria vida e a de muitos outros.
— Alguém deveria ter interferido. Esse tipo é um…
— Um gigolô. Sim, isso dizem. Mas tem muito bom aspecto e é forte. Dará
a sua filha uma descendência sã e forte. Pode ser que agora mesmo já leve em
seu ventre um neto.
— Deus bendito, espero que não!
— Um neto, Jason, que algum dia será um lorde inglês.
— E bom proveito que vai ter ele… ou minha filha. Que demônios vai fazer
Edenmont com outra boca para alimentar? Aonde vai levá-la? Como vai
mantê-la?
Alí deu de ombros.
— Eu ofereci dinheiro para que a deixasse aqui. Mas recusou. Partiu com
ela. Foi procurá-la mesmo arriscando sua vida. Disse-lhe isso. Mas encontrará
a maneira de mantê-la, meu amigo. Não se preocupe por isso. Quando se
encontrar com ele, verá que tenho razão.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Quando o encontrar — grunhiu Jason. — Lhe darei uma surra que


recordará por toda a sua vida. Tenho mais de uma dívida a pagar com esse
pedaço de aristocrata depravado.
— Então pensa persegui-lo. Vai me abandonar, Leão Vermelho.
— Tenho a intenção de partir quando tiver acabado todo esse assunto.
— Ainda não acabou. Não me disse quem proporcionava os barcos com
armas.
— Não sei quem era o fornecedor — disse Jason olhando ao visir nos
olhos. — Mas se soubesse, não poderia…
— Sua alteza, mil perdões. — Fejzi entrou a toda pressa na habitação com
o rosto pálido e se inclinou aos pés do Alí. — Chegou uma mensagem urgente
da Ioanina.
Jason soltou uma maldição em inglês e se levantou de um salto.
Fejzi deu um coice.
— Ismal…
— Sim, sim — interrompeu Alí. — Escapou. Obviamente. Que outra
mensagem de Ioanina poderia ter feito com que viesse me interromper com
tanta pressa? — Alí também ficou de pé, mas lenta e dolorosamente. — Só
corre para as más notícias. Quando aconteceu? E que direção tomou meu
maldito primo?

Ismal afastou com o dorso da mão a terrina de papa fazendo com que o
conteúdo salpicasse no lençol já molhado.
— Essa merda de barco não deixa de mover-se — murmurou ele. — Que
sentido tem comer algo se não posso manter no estômago? A não ser que
pretenda que morra afogado, maldito filho da puta.
Risto recolheu a terrina.
— O veneno de Alí o deixou fraco — disse. — Deveria tratar de comer algo,
se não morrerá antes que cheguemos a Veneza.
— Não penso morrer — respondeu Ismal zangado. — Não até que tenha
ajustado as contas com esse porco inglês.
— Não sabe se foi ele — disse Risto. Agarrou um trapo e começou a limpar
o lençol. — Não tem provas de que foi ele quem o traiu. E mesmo se o fez,

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

seria muito mais inteligente que o deixasse partir.


— E me esconder em Constantinopla por sabe Deus quanto tempo, sem
dinheiro e com só dois criados canalhas para que cuidem de mim? O sultão ia
rir em minha cara… e o mais seguro é que o faria enquanto visse minha cabeça
repousando em uma bandeja de prata.
— Tem bastante dinheiro — disse Risto. — Mais do que eu verei em três
vistas.
— Sir Gerald Brentmor me roubou mil libras… extorquiu-me de má fé.
Quem mais conhecia o paradeiro de cada um dos barcos, e sabia cada uma das
rotas e os portos de chegada? Se tivéssemos perdido um ou dois barcos, teria
acreditado que era um acidente do destino, mas todos?
Risto atirou o trapo ao chão.
— Barcos! Armas! Para que? Para governar um desgraçado pedaço de
terra, nada mais que rochas e pântanos? Para esbanjar sua juventude e sua
beleza brigando contra qualquer intruso que queira essas mesmas rochas e
esses pântanos asquerosos? Para passar a vida beijando o gordo traseiro dos
estrangeiros, para conseguir mais arma com as quais defender seu precioso
pashalik? Deus deu-lhe beleza e inteligência. Seu primo o mandou com os
francos para que aprendesse suas maneiras e pudesse se impor a eles, e
ganhar em honra e respeito. Sim, e fazer com que obedecessem a seus
desejos. Mas você preferiu sujar suas brancas mãos com o sangue de
selvagens ignorantes.
— Minha gente necessita alguém que os tire de sua selvageria.
— Não é seu kismet — insistiu Risto teimosamente. — O Todo-poderoso o
advertiu disso, muitas vezes, mas você não fez conta. Como um moço febril
lanço-se à caça dessa puta ruiva… e esteve a ponto de morrer por isso.
— Paguei por ela — grunhiu Ismal. — Era minha por direito.
— Nunca foi sua, e só o que queria era mantê-la afastada do lorde inglês.
Alí esteve jogando com você de gato e rato, mas sabe uma coisa? No final o
gato sempre acaba matando o rato. E assim é como Alí esteve a ponto de
matá-lo. Você conhece seus jogos melhor que ninguém, e mesmo assim caiu
em sua armadilha. Se não tivesse encontrado o Mehmet, já estaria morto. Sem
sua ajuda nunca teria podido salvá-lo. Para que? Para que arrisque outra vez o

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pescoço para se vingar de um contrabandista inglês? Que maldição caiu sobre


mim para que queira tanto a um homem tão louco?
— Eu não quero seu amor. — Os olhos do Ismal tinham cor de raiva azul
escuro. — Nunca o quis. Seu amor é vil, desleal. Está contente de que tenha
falhado. Quer que eu perca tudo para que assim tenha que precisar de você.
Não preciso! Vá correndo para Constantinopla. Ou para o inferno, se quiser.
Busca algum fraco garoto a quem mimar. Eu não sou seu menino. Nunca o fui
e nunca o serei.
Risto desencapou sua adaga.
— Sim, faça-o! — desafiou-o Ismal. — Me mate, meu querido Risto.
Morrerei com a imagem de Esme em meu coração e seu nome nos lábios.
Morrerei sorrindo, pensando em seus firmes seios pálidos e nos vermelhos
cachos de seu…
A porta da cabine se abriu de repente, e a figura grande e feia de Mehmet
encheu o marco.
— Acalme-se, por favor, senhor, toda a tripulação está ouvindo. — Entrou
na cabine e tranquilamente tirou a adaga da mão trêmula de Risto. — Embora
sejam gregos, garanto que podem entender uma ou duas palavras de nossa
língua. Além disso, discutir a gritos os põe nervosos. Vamos, Risto. — Pôs-lhe
um braço sobre os ombros e o conduziu para a porta. — Por que incomodas o
senhor?
— Mantém-no afastado de mim — disse Ismal enquanto se voltava a deitar
no estreito beliche. — Fica todo o dia em cima como se fosse uma avó
resmungona.
Mehmet fez uma careta por cima do ombro.
— Sim, amo, e você prefere uma jovem e formosa enfermeira. Em Veneza
encontraremos três: uma morena, uma loira e uma ruiva, não é? Durma agora
e sonhe com elas.
Enquanto conduzia Risto para a cobertura, Mehmet disse-lhe que
respirasse profundamente a brisa marinha para que acalmasse seu espírito
irado.
— Seu problema é que não entende a natureza humana — disse ao
desgraçado criado.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Ele não é humano — se queixou Risto. — O demônio lhe deu essa língua
que tem para que me fustigue com ela… enquanto a todos os outros oferece
um mel doce.
— Porque não confia em ninguém mais. Isso é uma triste carga para você,
meu amigo. Por tudo isso, deveria ter piedade dele. É duro acreditar-se meio
divino e meio humano… e, afinal, é mais um menino que um homem. Que bom
humor pode esperar dele quando tudo o que pretende dá errado?
— Sai-se mal porque sempre faz as coisas que não deve.
— Satanás trabalha com as duas mãos. O amo Ismal tem uma mente
muito ativa e um espírito com a vontade de conquistar o mundo inteiro. Mas
não é esse tipo de conquistador. Eu o vi, assim como você. — Mehmet ficou
olhando ao mar. — É uma pena que não tenha conseguido à garota.
— Essa puta arpía…
— Não pode mantê-lo afastado das mulheres.
— Acredita que não me dei conta disso faz muitos anos? Não são as
mulheres, é ela —espetou Risto. — Uma assassina que atua como um homem;
até sabe ler e escrever. É teimosa e tem muito mau caráter. E, além disso, é
uma puta estrangeira.
— Teme que esse prodígio de mulher possa escravizá-lo, não é assim? —
riu-se Mehmet. — Seria melhor para você que o fizesse. Tem um coração
valente como o de um guerreiro, mas também é justa e generosa. Se ela fosse
sua esposa e você a tratasse com amabilidade, ela faria com que, em troca,
ele o tratasse também amavelmente. Tem bastante cérebro, também, para
entender exatamente o que deseja dele. Se conseguir fazê-la sua amiga, ela o
ajudará.
— Não quero a ajuda de nenhuma mulher.
— O que importa a quem ele obedeça, se o resultado é conseguir o que
quer? É uma pessoa bastante inteligente, Risto. Certamente, mais preparado
que eu. Mas até o ignorante Mehmet pode dar-se conta do valor de uma
esposa que o amo adorasse.
Risto ficou olhando fixamente o seu acompanhante.
— Por que me conta tudo isso?
Mehmet dirigiu a vista ao mar.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Terá que pensar em algo. Os britânicos encontraram todos os barcos e


confiscaram suas cargas. O amo joga a culpa disso no contrabandista inglês. E
por isso estamos viajando a Veneza. Se não chegarmos a tempo a Veneza,
pergunto-me, aonde teremos que ir depois?
— Não a Inglaterra — sussurrou Risto com um suspiro. — É impossível que
vá tão longe para vingar-se.
— Poderia fazê-lo, especialmente se souber que a garota também foi para
lá…
— Então teremos que fazer todo o possível para que não saiba.
— Conhece-o desde que era um menino. Quando teve êxito ocultando
algo?
— Nunca — respondeu Risto com pessimismo. — Parece que conhece os
segredos que tenho encerrados no coração… e se ri deles.
— Por isso sabe que o seguirá aonde quer que vá. — Mehmet deu de
ombros. — Por minha parte, não teria nenhum problema em ir lá. Não me
importaria viajar o mais longe possível do Alí e de seus espiões, quase diria
que é o melhor. Vá aonde vá, e faça o que fizer para vingar-se, por dinheiro ou
por uma mulher, eu não me negarei a ir com ele. — Voltou o rosto para Risto,
que o olhava com expressão de ansiedade. — Se tiver êxito, nós
prosperaremos com ele. E se perder… bom, o que importa onde morra?

Capítulo 23

A casa era enorme, como uma grande fortaleza de pedra, exceto porque
nenhuma pessoa sensata teria construído uma fortaleza com janelas tão
grandes, ou com tantas. Fileira atrás de fileira de retângulos cinza se
expunham glacialmente a um dia sem sol de janeiro. A neve que caía sem
cessar tinha branqueado a plana franja de terra que rodeava a casa e tinha
vestido as escuras árvores sem folhas com um traje de bolas brancas.
Esme tinha visto neve antes, mas nunca tanto como na Inglaterra durante
esse último dia de viagem até a casa de sua avó. De qualquer modo, era
preferível a neve que o frio intenso que a tinha precedido. O campo, com suas
montanhas altas e rochosas já não pareciam tão sombrios e aborrecidos sob o

272
Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

manto branco da neve.


Ali não havia montanhas, só granjas separadas umas das outras por
pedaços de bosque aqui e lá, e milhas de muros de pedra, retorcendo-se entre
os caminhos que se entrecruzavam nas colinas. Varian havia dito que no norte
havia formosas e altas montanhas, que rodeavam formosos lagos de águas
cristalinas. Esme teria gostado de ir ali. Ou a qualquer outra parte em lugar de
encontrar-se onde estava.
Enquanto subia os degraus da entrada ao lado de Varian, deu uma olhada
por cima do ombro a velha e descuidada carruagem que os tinha levado até
ali. Em uns minutos teriam que pedir que os levasse de novo de volta. Para ela
isso seria perfeito, se não fosse porque não restava nada de dinheiro. Tinham
investido suas últimas economias para chegar até ali.
Esme deu um pulo quando Varian bateu na porta pela segunda vez.
Entretanto, dessa vez um homem muito baixo e magro, e com um nariz
aquilino e muito fino, abriu-a. Olhou com cara inexpressiva, primeiro a Varian e
logo a Esme. E então seus olhos redondos piscaram rapidamente.
— A neta de lady Brentmor deve visitar a sua avó — disse Varian
bruscamente.
O homem que estava na porta emitiu um som totalmente incompreensível,
e os deixou entrar até o vestíbulo.
— Irei ver se a senhora está em casa — sussurrou ele.
Imediatamente, deu-lhes as costas e partiu, com seus sapatos reluzentes
repicando sobre o chão de mármore.
— Onde poderia estar uma anciã em um dia como esse senão em sua
casa? — balbuciou Esme. — Que mal educado é por deixar os convidados na
porta. Nem sequer nos saudou, ou nos deu as boas-vindas, nem nos
perguntou como estamos.
— Normalmente não se anima aos criados a que façam perguntas de uma
índole tão pessoal, carinho. Especialmente quando não estão seguros se o
visitante será bem recebido. Pelo menos não nos deixou diretamente na rua.
Isso já é algo. — Varian lhe roçou um braço com a mão. — Espero que não
sinta muito frio. De qualquer modo, também imagino que a temperatura vai
começar a subir muito em breve.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Dez minutos mais tarde retornou o criado, ajudou-os a tirar os casacos e


os conduziu por um labirinto de corredores até umas imensas portas duplas de
madeira finamente esculpida e pintadas de amarelo. Abriu-as muito devagar e
fez um gesto com a cabeça a Esme e a Varian para que entrassem. Sem saber
se o correto era que dissesse obrigado, Esme lhe dirigiu um ligeiro sorriso.
Para sua surpresa, o criado respondeu com outro sorriso, mas tão fugaz que
quase chegou a perguntar-se se teria imaginado.
Após um instante, estavam na guarida do leão. Da leoa; melhor dizendo, e
aquilo não era exatamente uma guarida.
A sala, em conjunto com a parte exterior da casa, era imensa. Todo o
mobiliário de uma dúzia de pessoas da Albânia teria cabido ali perfeitamente, e
teria ficado lugar para alojar ao menos a cinqüenta pessoas. Assim mesmo,
alguém realmente decidido tinha conseguido encher ao máximo a sala de
móveis. As cortinas, os tapetes e a maior parte do mobiliário eram de tons
verdes e dourados. Tudo estava belamente lavrado, e cada parte de tecido
finamente bordada ou estampada em ouro; aquela sala enorme e sólida
parecia que ia cair em cima de Esme até esmagá-la.
Enquanto a grande massa de coisas começava a dissolver-se até
converter-se em objetos individuais, Esme descobriu que havia ali algo vivo.
Uma anciã que estava de pé, rígida como um pau, ao lado de uma das
janelas, observando ali aos visitantes por cima do ombro, apesar de não ser
muito mais alta que Esme. Tinha uma cabeleira quase totalmente cinza, com
umas quantas mechas de cor castanha, e o levava elegantemente penteado. Ia
suntuosamente vestida com um traje de veludo verde escuro com pontilhas
douradas no pescoço e os punhos.
— Bom, o que faz aí me olhando boquiaberta? — chiou fazendo Esme
sobressaltar-se. — Aproxime-se mais para que possa vê-la. Aqui está escuro
como no Hades, e esses estúpidos folgazões não acenderam ainda as velas.
Vem aqui, órfã.
— Milady — disse Varian. — Lady Edenmont, minha esposa.
— Perguntei algo, galo de briga? — chiou a anciã. — Já sei quem é. Deixe-
me que veja a menina que diz ser minha neta.
Esme se soltou da mão de Varian e pôs-se a andar para as janelas, deixou

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

escapar uma maldição entre dentes e logo olhou fixamente à mãe de seu pai,
que por sua vez sustentou o olhar.
— Aqui estou — soltou Esme. — Já me vê. Pode me chamar como quiser.
Não me importa absolutamente. Você não tinha vontade de me conhecer e eu
não tinha vontade de vir aqui. Mas meu marido disse que era minha obrigação.
E assim está feito. Adeus.
— Não lhe dei ainda permissão para partir, senhorita onipotente e
presunçosa. Assim mantenha a boca fechada e demonstra um pouco mais de
respeito pelos mais velhos. Maldito seja, Edenmont, não é mais que uma
menina! — disse a insofrível anciã sem deixar de olhar a Esme com o cenho
franzido. — Em que demônios estava pensando?
— Não sou uma menina! Cumprirei dezenove em…
— E fria e lamuriante e parece muito mal alimentada — seguiu dizendo sua
avó sem fazer caso da interrupção. — Vi espécimes mais prometedores em um
asilo de pobres.
Logo se afastou para trás uns passos e, com os olhos ainda cravados em
Esme, puxou violentamente do cordão da campainha.
— Tenho que reconhecer que não entendo o que têm os homens na
cabeça, embora duvide que possam ter algo nela. E você menos que ninguém,
Edenmont. Embora já vejo que demonstra o descaramento suficiente para
aparentar ter certa inteligência. Drays! Maldito seja esse preguiçoso
vagabundo, por que demora tanto?
As portas se abriram uma vez mais e o homenzinho de nariz afiado entrou
na sala.
— Milady?
— Leve a órfã até a senhora Munden e lhe diga que prepare um banho e
logo…
— Levar? — repetiu Esme com incredulidade. — Banho? Eu não sou…
— E diga ao Cook que lhe prepare uma boa comida quente e uma taça de
chá forte com muito açúcar, e um montão de bolachas e uma terrina de…
— Não estou disposta a…
— Ninguém perguntou. Vá com o Drays, agora mesmo, e tire esses
farrapos. Não sei do que outra forma poderia chamá-los.

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Esme lançou um olhar desafiante a sua obviamente senil avó e outra a seu
marido. Varian lhe sorriu, muito ligeiramente, mas ela não entendeu o que
significava aquela careta.
— Varian?
— Sua avó está sendo muito amável — disse ele.
— Está me dizendo que faça o que me pede? — perguntou-lhe Esme
perplexa.
— Acredito que seria o melhor. Parece-me que quer falar comigo em
particular.
— Naturalmente — disse a anciã em um tom de voz ameaçador.
Para Esme sempre era difícil interpretar as expressões de Varian. Colocava
uma máscara no rosto com muita facilidade, e todas as suas máscaras
pareciam realmente autênticas. Assim pensando, enquanto avançava com
pesar para a porta, a Esme pareceu ver um pouco de semelhança com um
gesto tranquilizador, não em seus frios olhos cinza, porém em sua postura.
Roçou-lhe ligeiramente a mão ao passar, e ele a agarrou e a apertou durante
um segundo.
— Tudo vai bem, querida — murmurou ele.
Embora parecesse que tudo ia mal, Esme lhe dirigiu um débil sorriso, e a
sua avó uma cortês reverencia. Continuando, elevando o queixo, abandonou a
sala seguida pelo Drays.

— A órfã do Jason — disse lady Brentmor quando Esme já estava


longe para poder ouví-la. — Se estivesse cega e surda, poderia negá-lo, mas
não o estou, de modo que não posso fazê-lo. Já me chegaram notícias de todo
esse assunto, por meu incompetente filho e esse lunático menino que tenho
por neto.
Assinalou com a mão uma mesa de mármore com os cantos dourados.
— Há uma garrafa de brandy nesse sei lá o que. Importar-lhe-ia de me
servir uma boa taça? Sim, e pode servir-se de outra para você se quiser.
Suponho que não será você metodista, não?
Quando Varian se aproximou da mesa para cumprir suas ordens, ela se
deixou cair em uma cadeira.

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— Que o demônio tenha piedade dessa garota. Dentre todos os imbecis e


inúteis canalhas que Deus criou, teve que atar-se com você. Não parece ter
mais cabeça que seu pai. Ao final conseguiu que o matassem, não é assim? E
por um punhado de pagãos, isso é tudo. Quando penso no que poderia ter
chegado a fazer se tivesse ficado onde devia. Mas não. Era um insensato. Os
homens são todos uns atalhos de loucos. Maldito seja até o último deles.
Varian aproximou a taça de brandy sem dizer uma palavra. Sua tia avó
Sophy tinha sido uma mulher parecida: uma dama do século passado, com
uma vida dura e um falar direto sempre. A tia Sophy era capaz de beber mais
que todos os homens juntos reunidos à mesa, e seus juramentos podiam
conseguir tirar as cores até a um marinheiro.
— Sente-se, sente-se. — Lady Brentmor fez um gesto impaciente
apontando uma poltrona que havia adiante. — Vai dar torcicolo se tiver que
olhar para cima o seu antipático rosto de mentiroso.
— Asseguro-lhe, milady, que não vim até aqui para enganá-la. — Varian se
sentou e no momento suspeitou que sua anfitriã tivesse feito tapizar a poltrona
com macadán e depois a tinha mandado pintar em cima. — Ouvi dizer que deu
permissão a seu filho Jason para que contasse com sua ajuda. Devo entender
que essa permissão inclui também a sua descendência.
— Não digamos tolices, por favor — disse ela em tom cortante. — E
embora queira me enganar, não poderá. Não sou uma jovem e tola que se
deixa enrolar facilmente por um rosto bonito e umas quantas frases
rebuscadas. A beleza é fazer coisas belas, estou acostumada a dizer; e o que
você tem feito até agora não é precisamente algo que valha a pena levar em
conta. — Seus velados olhos de harpia se cravaram nele. — Você, e Davies, e
Byron e o resto. Pássaros de muita pluma, e você o de pluma mais negra de
todos eles.
— Viver a vida, senhora. As loucuras da juventude.
— Não faz nem seis meses que você pôs os chifres em dois condes
italianos, um banqueiro e um pateleiro. Um pateleiro! — repetiu ela. — Mas
você não é capaz de discriminar absolutamente?
— Uma juventude esbanjada, como já disse. Mas agora sou um homem
casado, milady, e sabedor de minhas responsabilidades.

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Ela se inclinou para ele.


— É também sabedor de que se encontra navegando pelo rio das dívidas,
e que não tem entre as mãos nem um remo para sair daí? Porque eu não
penso me molhar por você, milorde. E se crê o contrário, será melhor que o
pense de novo, se é que tem cérebro para fazê-lo.
— Asseguro-lhe que não tenho nenhuma intenção a respeito. — Varian
meneou o brandy na taça que segurava entre as mãos. Aquilo não ia ser fácil.
E conforme passasse o tempo ia ser ainda pior. — Tive uma boa ideia, que
você não poderia suspeitar. De fato ninguém que conheça minha reputação
suspeitaria. Só o que posso assegurar é que não trouxe Esme aqui com a
intenção de conseguir um dote para ela. Não me casei com ela porque tenha
uma avó rica.
— Mas sabia que tem, não é assim?
— Esme nunca reclamou sua herança. Muito ao contrário. Além disso, nada
do que sei de sua família podia me levar a pensar o contrário. Apostei
suficientes vezes para reconhecer uma aposta com chance de perder.
— Mas se casou com ela.
— Sim.
— Sem pensar em seus interesses? Não acredito.
— Casei-me com ela por que… — Varian ficou olhando a taça, como se
nela pudesse encontrar as palavras que tinha que pronunciar assim que
limpasse a garganta. — Porque tenho por ela muito apreço — disse ao fim
simplesmente.
A nobre viúva soltou uma sonora gargalhada.
— A ideia que tenho de apreço, senhor, não é muito melhor da que tenho
do sentido prático. Casou-se com ela, apesar de saber que não poderá
alimentá-la nem vesti-la nem lhe oferecer um lar. Não é mais que uma menina,
e lhe pôs um anel no dedo para conduzí-la diretamente à casa da caridade?
— Não me diz nada pelo que não tenha me reprovado por milhares de
vezes. Mas o mal já está feito, e você não o pode desfazer.
— Não há muitas uniões que não possam desfazer-se — disse ela com
brutalidade. — Se estiver disposto a pagar. Você não me importa um
pouquinho, mas uma anulação deste abominável matrimônio seria um

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investimento muito inteligente.


Os dedos dele se fecharam ao redor da borda da taça.
— Isso não está em discussão.
— Por quê? Não me diga que a pobre moça já está grávida?
— Pelo bom Deus, não! — A taça tremeu entre suas mãos derramando
brandy sobre o tapete. Só umas gotas. Umas quantas gotas diminutas, isso foi
tudo. Varian respirou profundamente para acalmar-se e dizer que não é essa a
razão. Queria dizer que nunca consentiria tal coisa.
Ela ficou olhando com uns olhos duros e desumanos. Não é que ele tivesse
esperado ou desejado conseguir sua compaixão. Nada do que ela reprovava
era realmente injusto. Tinha chamado a Esme «pobre menina», e isso era o
importante. Como a comida e o banho, aquilo significava que havia
esperanças. Uma oportunidade.
— O que você quer de mim? — perguntou ela. — Me diga claramente. Não
gosto que me dourem a pílula nesse momento. Nunca gostei das indiretas, e já
sou muito velha para começar a aprender a apreciar.
Ele ficou olhando fixamente aos olhos.
— Quero que cuide dela durante um tempo. Quero que esteja a salvo e
cômoda. Não posso me arriscar a levá-la comigo a Londres. Meu título pode
me proteger até certo ponto, ao menos para que os credores não me enviem
ao cárcere. Mas não quero expor a Esme à perseguição. Por isso a trouxe aqui.
— Advirto que não penso manter um pícaro folgazão.
— Só a Esme e unicamente por um tempo — disse ele. — Eu devo ir a
Londres, apesar dos oficiais. Não tenho outra maneira de solucionar meus
assuntos.
— E como pensa enfrentar-se com eles?
— Não sei.
A anciã se inclinou para trás na cadeira e soltou um suspiro.
— Assim são os homens, não é? Os homens alguma vezes sabem, mas
sempre «devem», não é assim? Nunca sabem nada, nenhuma maldita coisa.
Não tem nem ideia de como fazer as coisas melhor, assim se desfaz da pobre
garota, verdade?
— Não.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Quer que esteja a salvo no campo com sua avó, não é assim? Durante
quanto tempo? Semanas, meses, anos? Durante o resto de sua vida? Sem
relações sociais, sem pretendentes, sem possibilidade de encontrar um
casamento apropriado. Maldito seja, Edenmont, se queria deitar com ela, por
que não pensou em tudo nisso? Eu teria encontrado um casamento. Não é
todo mundo que tem que ter uma noiva que seja virgem, digam o que digam.
E embora se dediquem a comentá-lo todo o tempo, malditos hipócritas.
Varian se levantou.
— Não é necessário que me diga isso — disse ele friamente. — Ela não se
casará com ninguém enquanto eu viver. Se sua condição for que se dissolva o
matrimônio, então diga e eu e minha esposa partiremos daqui por onde
viemos.
— É você um ser vil e egoísta — disse ela ficando também em pé. — Mas
não quero que a órfã do Jason tenha que ver-se obrigada a dormir e a viver
nos becos. Ela pode ficar. E você, milorde, pode ir para o inferno.

O banho era tal e como o havia descrito Varian aquela manhã, vários
meses antes: a enorme banheira de cobre fumegante, o aroma do sabão, as
suaves toalhas. Inclusive as criadas.
Em resposta à chamada do Drays, a senhora Munden tinha chegado
voando pelo corredor como um rebocador, foi diretamente para Esme e a levou
com ela, ao tempo que dava ordens a um grupo de criados subalternos que
tinham saído correndo em todas as direções. Os corredores tinham começado
a encher-se em seguida como o rio Tamises, com seu montão de barcos indo e
vindo, transportando suas diversas cargas: baldes de carvão para o fogo,
baldes de água fervendo para a banheira, malas, toalhas e Deus sabe quantas
outras coisas.
Toda aquela agitação fazia com que Esme se sentisse enjoada, cansada e
inquieta. Tudo o que acontecia ao seu redor se fazia por e para ela, e nada
estava fora de controle. Do momento em que tinha entrado naquela casa, viu-
se apanhada por seu poder. Pelo poder de sua avó.
E aquela sensação não desapareceu na hora do jantar, embora Varian
estivesse ali, entretendo à anciã viúva com histórias de Corfú, Malte, Gibraltar

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e Cádiz; todos os lugares onde tinham feito uma rápida escala em sua errática
viagem até a Inglaterra. Tinham demorado quase dois meses para chegar. E
isso considerando que o veleiro em que viajavam estava fazendo uma carreira
com outro barco idêntico.
Os donos dos dois barcos eram ricos; ricos e ociosos antigos companheiros
de escola de Varian. Tinham estado navegando pelas ilhas gregas quando
chegou o rumor das bodas de lorde Edenmont. Alguém acreditou e o outro
não. O resultado foi uma aposta, e uma amalucada carreira até Corfú para ver
quem ganhava. Foi assim que Varian e Esme obtiveram uma passagem grátis
para a Inglaterra.
Como agora estava comentando Varian a lady Brentmor, sua má reputação
o tinha salvado. Se tivesse tido uma vida respeitável, possivelmente agora
Esme e ele ainda estariam em Corfú. A anciã parecia divertir-se. Ria
sonoramente, como se ela mesma tivesse tido algo a ver com os rumores que
acabavam de contar, a meio caminho entre repreender Varian por sua falta de
recursos e a maneira atordoada de encontrar uma esposa.
Depois do jantar, voltaram para o salão verde e dourado. Chamavam-no a
sala de estar. Ali Varian fez um relato pormenorizado de suas aventuras pela
Albânia. Então, lady Brentmor não riu tanto, nem tampouco franziu o
sobrecenho, tão somente ficou olhando fixamente ao fogo, e de vez em
quando sacudia a cabeça. Ao final, pediu que lhe trouxessem um porto e
despediu bruscamente a Esme e a Varian.
Embora a anciã viúva tivesse deixado muito claro que desaprovava a
Varian, e que via aquele matrimônio como uma tremenda catástrofe, tinha
atribuído ao casal duas habitações contíguas.
Molly, a donzela, acabava de sair do dormitório quando entrou Varian pela
porta que conectava ambas as habitações. Tomou a escova que fazia uns
minutos tinha deixado Molly sobre a penteadeira e ficou olhando um longo
momento, para logo deixá-la de novo onde estava. Pôs as mãos sobre os
ombros de Esme e ficou olhando sua imagem refletida no espelho. Então, com
umas quantas frases curtas, contou-lhe o trato que tinha feito com sua avó.
Quando acabou de falar, Esme se afastou bruscamente dele e se
aproximou da janela.

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— Não temos alternativa, carinho — disse ele. — Se a tivéssemos, juro


que…
— Não é preciso que jure — disse ela tratando de que não lhe tremesse a
voz. — Eu entendo. E acredito em você.
— Entretanto, também está angustiada.
— Só por um momento. Não é muito agradável. Minha avó é uma mulher
incômoda, velha e irritante, mas conheci piores, e ela ainda não me conhece.
Na Albânia, a esposa vai viver na casa da família do marido. Por ser a recém
chegada na família, é a que ocupa o lugar mais baixo. Todas as mulheres,
mães, irmãs, avós e tias, podem lhe dar ordens. Se quiserem ser
desagradáveis com ela, podem lhe fazer a vida impossível, e ela deve suportar
tudo porque está em minoria. Aqui só há uma mulher para me dar desgostos;
e a donzela me disse que meu primo está para chegar.
Enquanto falava tinha se arrumado para recuperar a compostura. Então
deu a volta, para enfrentar o olhar preocupado de Varian com um sorriso
tranquilizador.
— Ao Percival o tornaram a expulsar do colégio, outra vez, e meu tio
pretende deixá-lo aos cuidados da anciã, porque não quer seguir aguentando o
seu problemático filho.
— Esme, não é isso o que eu pretendo fazer. Disso pode estar segura.
— Sei. Não estava comparando você com meu ignorante tio. Somente digo
que me alegro de que sir Gerald seja assim, porque Percival estará logo aqui e
poderei ter um aliado. Pode ir e resolver seus assuntos com o coração
tranquilo. Aqui, ele e eu, seremos maioria.
Então Varian se aproximou dela, rodeou-a com os braços e a apertou
contra seu peito.
— Sinto muito, querida. Não imagina quanto o sinto. Mas estarei de volta
em seguida. No máximo em umas semanas. Não mais.
Umas quantas semanas em Londres, rodeado de seus velhos amigos,
como aqueles ociosos que os trouxeram para a Inglaterra. Todo o dia bebendo,
rindo, apostando, vendo putas.
Esme fechou os olhos.
— Não será mais que uma curta separação — disse ele.

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Ela acreditava que ele dizia de verdade, ao menos naquele momento, e o


presente era o único que importava a ele. Então, essa noite; isso era só o que
ela tinha. Logo ele partiria e tudo poderia mudar. Ela não tinha vontade de
queixar-se ou de brigar, não nessa última noite, a última em que podia ser
certamente dela.
Porque ela estava segura, nesse momento, inclinou-se para trás em seus
braços e elevou as mãos para tomar entre elas seu formoso rosto.
— Me faça amor — disse ela. — Me faça isso para que encha o vazio
dessas poucas semanas… até que volte… e me faça o amor de novo.

Ainda era noite quando Varian abandonou o dormitório. Esme estava


dormindo, com um sono profundo e tranquilo, sabia. Tinha compartilhado sua
cama em muitas ocasiões até agora, e tinha despertado antes que ela várias
vezes — olhando-a, escutando-a, pensando. Ia partir enquanto ela dormia
porque não poderia suportar uma despedida. Haviam se dito adeus sem
palavras na noite anterior, durante aquelas emocionadas horas fazendo amor.
Então, ele se tinha embriagado com seu aroma e com seus suaves gritos de
paixão, e a tinha amado. Com paixão. Com emoção. Desesperadamente.
Queria recordá-la. Queria fazê-la arder dentro de seu coração, não porque
acreditasse que podia esquecê-la, mas para poder levá-la consigo de alguma
forma.
Desde a primeira noite que a havia tocado, não tinha sido capaz de
separar-se dela. Agora tinha que ir-se. E esse «ter» significava que não se
atrevia a despertá-la, nem tampouco se atrevia a lhe dizer adeus. Se o fizesse,
sua resolução iria embora… e acabaria falhando com ela.
Na noite anterior ele tinha deixado tudo preparado em seu dormitório,
enquanto a donzela ajudava a Esme a arrumar-se para meter-se na cama. Até
escreveu-lhe uma nota.
Varian só tinha que vestir-se, pegar sua bolsa de viagem e partir. E o fez
sem olhar para trás.
Impaciente por livrar-se dele, lady Brentmor tinha avisado no estábulo de
que tivessem tudo preparado. Embora o sol logo começasse a despontar,
Varian se encontrou no estábulo com um dos moços, já completamente

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acordado e preparado para acomodar a sua excelência.


Menos de meia hora depois de ter abandonado o calor da cama de sua
esposa, Varian estava a caminho de Londres.

Capítulo 24

Varian tomou um atalho, rodeando Eden Green, para evitar


deliberadamente passar por seus luxuosos bares. Não tinha vontade de ouvir
fofocas locais, especialmente quando elas certamente se refeririam a ele. A
tarde começava a obscurecer-se sob grossas nuvens cinza, e seu cavalo estava
cansado. Os estábulos do Mount Eden se achavam a quase duas milhas dali, e
a fazenda deserta lhe ofereceria toda a intimidade que necessitava.
Desgraçadamente, isso seria tudo.
Dirigiu-se ao descuidado atalho que rodeava o povoado e acabava no
caminho principal, a uma distância segura dos subúrbios. Ao tomar uma curva,
viu fumaça elevando-se das chaminés da estalagem Black Bramble e suspirou
com um gesto de alívio. Ao contrário do Jolly Bear do Eden Green, o Bramble
só acostumava alojar aos viajantes. Naquele dia frio de inverno, a milha que o
separava dali estava vazia de carruagens, como tinha esperado. Pouca gente
viajaria em um dia como aquele, se pudesse evitar.
Entretanto, quando deu seus arreios ao encarregado da estrebaria, Varian
pôde ver que o estábulo não estava completamente vazio. Havia dois pangarés
de olhar triste mastigando desconsoladamente o feno de seus cochos.
Um pouco mais tarde, encontrou-se com os cavaleiros proprietários
daqueles cavalos na sala de jantar da estalagem. Também estavam comendo,
mas com grande entusiasmo.
Um deles era magro, de cabelo castanho, e falava excitado entre bocado e
bocado de bolo de carne. O outro falava menos, só assentia com a cabeça de
vez em quando e logo voltava a concentrar-se em seu prato com grande
dedicação. Era um tipo corpulento, e seu cabelo castanho claro não estava tão
bem talhado como o de seu companheiro. Embora ambos estivessem de
costas, Varian os reconheceu em seguida.
No momento em que eles o ouviram entrar e olharam para trás, Varian já

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se recuperava da surpresa.
Dois pares de olhos, um marrom e outro azul escuro se arregalaram ao vê-
lo. Varian cruzou a sala com calma e se aproximou deles.
— Se for ficar com a boca aberta — disse ele, — ao menos poderia engolir
primeiro a comida. Como ficou tão mal educado?
O mais jovem dos dois, a quem Varian se dirigiu, levantou-se de repente.
— É você, caramba! Pelos céus, vejo-o, eu disse a você Gideon, não é
verdade? Não estava dizendo que ao final o encontraríamos?
O tipo fez gesto de aproximar-se de Varian. Mas parou um instante e ficou
quieto, inseguro, olhando-o fixamente.
Gideon também se levantou, mas com mais dignidade, deixando primeiro
os talheres tranquilamente ao lado do prato.
— Senhor, me alegro de vê-lo —disse esticando uma mão. — Bem-vindo a
casa, milorde.
Por um instante uma névoa obscureceu os olhos de Varian, mas piscou
para afastá-la e no momento estreitou a mão de seu irmão.
— Que sorte encontrá-lo, Gilly. — deu a volta e ofereceu a mão ao Damon.
— E também a você, Dervish.
Damon fez uma careta.
— Já vi que segue sendo o mesmo, verdade? — perguntou ele ao Gideon.
— Chega aqui caminhando tranquilamente e me recorda que cuide de minhas
maneiras, como se não nos tivéssemos visto a quatro horas, em lugar de em
quatro anos. Mas é verdade, não tenho maneiras. Sente-se. Parece faminto.
Não, aqui, ao lado do fogo. Nós levamos horas nos esquentando. Tinha tudo
preparado para acender a chaminé no Mount Eden, mas Gideon ainda tem o
horário do campo e precisava jantar já, e como não estávamos seguros de
poder encontrar algo ali para comer, nem tínhamos notícias suas… Embora
agora me alegro de que seja como um relógio, porque do contrário não o
teríamos encontrado… — Guardou silêncio. — Mas veio sozinho, onde está ela?
Enquanto Damon falava, Varian tinha tirado o casaco e se pôs em guarda.
Estava preparado para aquela pergunta antes que Damon a nomeasse por
«ela». Nesse momento a garçonete saiu correndo, ofegante e amaldiçoando
entre dentes. Enquanto voltava a tomar fôlego, Varian lhe pediu o jantar.

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Quando ela saiu da sala de jantar de novo, Varian voltou a dirigir-se ao


Damon.
— Onde está quem?
— Oh! Não tire o sarro, Varian. Sabemos que…
— Damon se refere a lady Edenmont — interrompeu Gideon, lançando um
olhar de advertência a seu irmão menor. — Ao menos nos disseram que existia
alguém chamado assim.
— Já vi — disse Varian. — Lackliffe e Sellowby chegaram diretamente a
Londres, acertei?
— Disseram-me que nem sequer tiveram tempo de trocar de roupa, e que
foram correndo ao clube Brook. Ao cabo de duas horas, a notícia já tinha
chegado de um extremo ao outro da cidade. Naquela mesma noite foi o tema
de conversação do Almack's, e no dia seguinte chamaram o Carlton House
para satisfazer a curiosidade de sua alteza.
— Perdoa, Gilly. Tenho a mente posta em outras coisas, pensei que já
tinha avisado você. Lamento colocá-lo em uma situação tão incômoda.
— Oh! Gideon não foi o único surpreso — disse Damon. — Ele deu uma de
suas explicações, e ao final, a sua majestade já não importou saber nem em
que dia estava. Chamou a seu médico e pediu que lhe fizesse uma sangria.
Mas voltou, Varian, de maneira que uma parte desse conto parece ser certa.
Não é que duvidasse deles, o que acontece é que o resto do que nos
explicaram era bastante difícil de engolir. Mas nos vai contar tudo, não é
assim? Temos ao menos uma cunhada? E tem realmente o cabelo vermelho? E
são seus olhos tão verdes como os descrevia Lackliffe?
— Seus olhos — disse Varian — são bastante… verdes.
— Já vejo — disse Gideon.
Com muita delicadeza alinhou as mangas de seu abrigo, e logo se
entreteve um bom momento em dobrar o guardanapo.
Damon voltou a sentar-se em sua cadeira, com seu profundo olhar de
olhos azuis cravado no rosto de seu irmão mais velho.
— De maneira que suas atividades estão agora fora de Londres, foi o que
ouvi — disse Varian quando o silêncio já começava a fazer-se insuportável. —
Não pensarão que deveria ter trazido lady Edenmont às ancestrais… ruínas.

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— Não é o que estava pensando — respondeu Gideon. — Somente


expressava em voz alta a preocupação que Damon teve durante todo esse
tempo, percorrendo todo o reino em busca de seu irmão, como se fosse o
Santo Graal.
Damon se ruborizou.
— Encontramo-lo, não é assim? Caramba, Varian, não queria ser
indiscreto, mas onde demônios está ela?
— Com sua avó. — Varian sentiu uma pressão no peito seguida por uma
aguda pontada de dor. Fixou-se em uma mancha de molho que havia no lado
do prato de Damon. — Não deixem que esfrie o jantar por mim, cavalheiros.
Contarei tudo assim que retorne a garçonete com o vinho.

Os dois acompanharam a Varian ao Mount Eden na manhã seguinte,


apesar de suas sérias objeções. Acreditou que lhes tinha explicado bem seu
relato, com o tom adequado de fria e desapegada diversão. Mas ao final de sua
história, ambos ficaram olhando muito sérios, e pôde vislumbrar nos olhos do
Damon algo que se parecia horrivelmente à compaixão.
De qualquer modo, Damon era jovem e excessivamente romântico, e toda
a vida tinha idealizado o seu irmão mais velho; só o céu podia saber por que.
Os sentimentos do Gideon não eram tão descarados. Sempre tinha sido o mais
moderado. Tranquilo, às vezes dissimulado, mas sempre pensativo, discreto… e
calmo.
Entretanto, seus sentimentos eram bastante diáfanos para Varian. Ambos
pensavam que não seria capaz de voltar para o Mount Eden sem o apoio moral
deles dois, e aquilo era insuportável: encontrar a seus irmãos tão decididos a
lhe dar apóio no que acreditavam que era para ele um momento de
necessidade… quando ele nunca tinha dedicado a suas necessidades, ou a seus
problemas, nenhuma só vez, mais de um minuto para pensar neles.
Nesse momento se encontravam no que em outro tempo tinha sido uma
suntuosa biblioteca.
Não havia nem um livro, nem sequer um jornal. As paredes estavam
totalmente nuas e o chão tinha uma boa capa de pó, escombros e excrementos
de ratos.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Era uma casa velha que necessitava constantes reparos. O pai de Varian
tinha sido consciencioso em seu cuidado como em todo o resto, até que Varian
tinha começado a meter-se em problemas. E esses problemas se converteram
muito em breve em centenas de milhares em dívidas. Embora a família tivesse
muitos recursos, estes não eram ilimitados. Para resgatar o seu herdeiro, o
anterior lorde Edenmont teve que deixar que a casa se convertesse em uma
ruína. Depois de sua morte, Varian tinha abandonado a fazenda por completo.
O que agora tinha ante os olhos era o resultado dos últimos dez anos de
descuido, tudo por culpa dele.
— Há algo pelo que agradecer — disse Varian enquanto olhava para cima.
— Ao menos poderei pôr um teto sobre a cabeça de minha esposa.
— Os mordomos são um bando de egoístas — disse Gideon. — Estou
seguro de que insistirão no salário. E não parece certo, tendo em conta que
ninguém cuidou do lugar durante os últimos dez anos. A verdade é que está
realmente sujo, e terá que voltar a pintar as paredes. Entretanto não acredito
que a casa esteja em tão mal estado como parece com uma simples vista.
— Certamente, não. Só o que faz falta é dinheiro, e o pessoal necessário, e
muito mais dinheiro — disse Varian aproximando-se da chaminé. Dentro havia
partes de argamassa. — Me parece que esta chaminé está a ponto de cair.
— Terá que ter em conta as leis da gravidade.
— Melhor seria que falássemos com os arrendatários — disse Varian
olhando ainda os fragmentos da chaminé. — Para seu bem, não os visitei
ainda. Se me apedrejassem até a morte, vocês herdariam, pobres amigos, e
sei que não estariam muito longe de que acabassem empenhando.
— Oh! Gideon tinha medo de que o tivessem matado. — Damon estava de
pé junto às portas da terraço, e sua voz ressonava nas habitações vazias. —
Está tão contente de que por fim tenha assentado a cabeça que apostaria que
é capaz de reconstruir toda a fazenda para você, sem ajuda de ninguém…,
começando pelo quarto dos meninos.
Varian sentiu de novo aquela cruel opressão no peito e uma pontada de
dor.
— Me perdoe — disse.
Ficaram olhando enquanto saía, mas não disseram nada nem trataram de

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

detê-lo. Varian não ouviu mais ruído senão de suas próprias pegadas enquanto
saía da biblioteca e subia pelas escadas. Não pôde ver nem os degraus nem os
corrimões, de tão cobertos que estavam de pó e teia de aranhas. Não ouviu
nada mais que o som de pequenas criaturas selvagens que fugiam apavoradas
ao som de passos humanos. Varian não sabia nada do que lhe rondava pela
cabeça, até que abriu a porta que andava procurando e ouviu como chiava
lastimosamente. Então ficou de pé na soleira, olhando para o quarto dos
meninos.
E naquele momento ele viu tudo claro. Apoiou-se contra o batente da
porta.
«Não me diga que a pobre garota já está grávida.»
— Que Deus me perdoe — suspirou ele. — Oh, Esme, o que fiz a você?
«… meninos. Se Deus for generoso…»
Fechou os olhos ante a dor que o embargava. Não fazia nem três dias que
se afastou dela e já se sentia perdido, doente de solidão, mas isso não era
tudo. Não podia culpar a ninguém por isso. Durante os últimos dez anos tinha
estado semeando e preparando esses três dias. Agora, ao menos, quando
tinha aprendido a amar, quando queria cuidar e amar a uma valente e formosa
moça, e lhe dar os filhos que amariam e que cuidariam juntos… agora, o diabo
ria dele e exigia que pagasse sua dívida. Agora lorde Edenmont entendia que o
fogo e o enxofre não eram o pior, nem sequer a morte. O inferno era o
arrependimento.
E isso chegaria amanhã.
Varian ocultou o rosto entre as mãos e ficou a chorar.

A habitação a que lady Brentmor chamava «a casa de contas» tinha


sido, originalmente, o escritório do dono da casa. Entretanto, todo mundo
sabia que seu defunto marido nunca tinha sido dono de nada. Sua esposa era
quem administrava a fortuna dos Brentmor. Foi ela que apoiou a seu marido, e
que o converteu de um homem de negócios medíocre em um homem de
negócios com título.
Imediatamente depois de sua morte, qualquer sinal de seu marido
desapareceu da casa. A viúva guardou no sótão todos seus cacarecos

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masculinos, pintou as paredes do escritório de uma cor marrom sinistro e logo


as cobriu com cortinas grosas até os batentes das janelas. O mobiliário que
tinha nesse momento compreendia umas quantas cadeiras que sobraram e
uma ampla e maciça escrivaninha, depois da qual se sentava ela, intimidando
a banqueiros, investidores e advogados de todo tipo, enquanto sem ajuda de
ninguém dirigia seu formidável império financeiro.
A essa habitação se levou a seus netos quatro dias depois de que se partiu
lorde Edenmont, e apenas dez minutos depois da chegada do Percival.
Percival e Esme estavam sentados em duas cadeiras que pareciam de
pedra, de duras que eram, esperando que lady Brentmor acabasse de dar uma
olhada à carta que o tutor do Percival tinha enviado junto com o moço.
— Uma explosão. — Ela olhou por cima das folhas da carta. — Quem
pensa que é… o conspirador Guy Fawkes?
— Não, avó — respondeu Percival docilmente.
— Diz que explodiu o galinheiro. Suponho que é muito desejar que as
galinhas não estivessem dentro.
— Temo que sim estavam no galinheiro.
— Isso vai me custar muito, moço. Sempre me custa dinheiro.
— Estavam doentes, avó. — Os olhos verdes de Percival brilharam com
indignação. — Um dos meninos me disse que por isso nos davam sempre sopa
de frango. Não punham ovos, garanto-lhe. Em todas as semanas que estive ali
nunca vi nem um ovo. Mas sim uma boa quantidade de sopa, com um aroma
do mais desagradável.
— Maldito seja, ainda por cima tenho que pagar essas galinhas doentes. —
Dirigiu ao Percival um olhar fulminante. — Está seguro de que estavam
doentes?
— Oh, sim avó! — disse Percival com o rosto iluminado. — Dessequei uma
e trouxe o intestino em um pote. Eu posso trazer-lhe se quer examiná-lo você
mesma.
— Não, obrigada. — Olhou-o pensativamente. — Eu gostaria de saber o
que vou fazer com você. Seu pai me disse que pensava mandá-lo para um
internato na Índia no instante em que voltasse a se colocar em uma de suas
confusões.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Esme segurou a seu primo pela mão e ficou olhando a sua avó.
— Não deveria fazer uma coisa assim — disse ela. — Se as galinhas
estavam doentes, então o que deveriam mandar a Bombay é o diretor da
escola. Envenenar a uns meninos com animais doentes… Por Alah! Teriam que
ter envenenado eles mesmos.
— Acredito que não te perguntei nada, verdade? — disse lady Brentmor. —
E procura cuidar de sua linguagem, por favor.
— Por Alah só significa «meu Deus», avó — comentou Percival.
— Então, por que não diz o que significa?
— Eu disse bastante claro — falou Esme enfrentando o olhar de sua avó
com ferocidade. — Não deveria mandá-lo para longe. Deus sabe que uma
ameaça desse tipo é uma monstruosidade injusta, inclusive embora não o faça.
Mas parece que você quer assustar ainda mais ao menino, como se não tivesse
sofrido já bastante.
— Sei perfeitamente o que sofreu e o que tem feito. E vou deixar claro
agora mesmo que não quero mais problemas aqui. Não quero meninos
colocando os narizes nos assuntos dos mais velhos.
Sobre a mesa, a sua direita, havia uma pequena caixa. Ela o abriu,
agarrou um objeto que havia dentro e o colocou sobre a escrivaninha. Era uma
peça de xadrez. Uma rainha, para ser exato.
— Oh, céus! — exclamou Percival.
— Suponho que sabe o que é isso — disse a anciã a Esme.
— Tinha visto peças de xadrez antes. Não é um jogo desconhecido em
meu país — disse Esme enquanto lançava um olhar ao Percival.
— Não trate de protegê-lo. Não preciso de um adivinho para descobrir o
que aconteceu aqui. — Lady Brentmor lançou a seu neto um olhar ameaçador.
— O dia que veio com seu pai, escondeu sua mochila de pedras em seu
dormitório, o que foi uma tolice. É que não sabe que sempre revistamos todas
as suas coisas? Sempre vai deixando cadáveres em seu caminho. A última vez
foi um réptil. Na anterior, um roedor. Já faz tempo que lhe dissemos que não
pusesse suas criaturas nessa casa, mas nunca faz caso de nada.
— Sim, avó, lamento-o terrivelmente.
— Não me importa que o lamente. Já sei o que tem feito. Roubou essa

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

peça de xadrez. Pensava que seu pai ofereceria uma recompensa, não é
assim? E a utilizou para empurrar lorde Edenmont a Albânia. Muito inteligente,
Percival. Agora sua prima se casou com esse canalha, e tudo por sua culpa.
— Varian não é um canalha! — gritou-lhe Esme. — E meu primo não tem
culpa de nada. Ele me trouxe para Varian e eu agradeço, e agradecerei o resto
de minha vida.
— Você ainda não viveu nem um quarto de sua vida, menina. Apostaria
que chegará um dia, não muito longínquo, em que tenha que engolir essas
palavras. E não será fácil fazê-lo. Deixou-a com pouco mais que um «fique
bem», não é assim?
— Deixou-me uma nota. Uma nota muito amável. Você não entende
absolutamente.
— Sei reconhecer um mau negócio assim que o vejo, e sei mais coisas dele
do que queria saber. — Seus olhos se entreabriram até converter-se em duas
frestas e a anciã se inclinou para frente. — Tem dívidas desde os dezoito anos,
e seu pai se viu obrigado a tirá-lo sempre de apuros com sua fortuna. Mas
quando Edenmont herdou o título, já tinha dilapidado a metade da fortuna
familiar. Em menos de cinco anos conseguiu acabar com o resto.
— Já sei que Varian é extravagante — disse Esme, que já não queria ouvir
nada mais.
— Deixou que sua fazenda caísse em pedaços — seguiu dizendo lady
Brentmor. — Converteu em indigentes os seus dois irmãos. Em poucos anos
destruiu o que havia levado várias gerações para construir. Graças a um pai de
coração mole, nunca teve que enfrentar às consequências de suas más ações,
e por isso jamais aprendeu a pensar nelas. Nunca se preocupou com ninguém
mais que com si mesmo. De modo que pode ir para o inferno. E me parece que
isso seria bastante justo; bastaria que não arrastasse consigo os seus
familiares.
Esme se inclinou para trás como se sua avó acabasse de dar uma
bofetada. Estava pensando em Varian como um amante prazenteiro e sem um
centavo. Fracassado. Terrivelmente fracassado. Amava-o, mas não estava
cega. Entretanto, nunca lhe tinha ocorrido pensar no dano que ele tinha feito a
outras pessoas. Sem intenção de fazê-lo, de acordo, mas isso só demonstrava

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quão irrefletido era. Nos olhos de sua avó podia ver a acusação: Varian não era
só um libertino e um esbanjador, mas também um homem destrutivo. Por isso
tinha deixado a Esme ali: para protegê-la a dele mesmo.
A anciã a estava olhando fixamente. Esme se endireitou em sua cadeira,
mas não disse nada. Não sabia o que podia dizer.
— Suponho que crê que fui muito dura com ele, da mesma forma que
pensa que fui muito dura com seu pai. Também Percival o pensa, não é assim,
professor Ignoramus?
— Bom…, sim… Mas bem… assim é.
— Porque não sabem de nada. Porque não são mais que dois meninos
ignorantes. — ficou olhando a Esme com o cenho franzido. — O caminho que
tomou Edenmont é o mesmo que vi tomar a seu pai. Muitos homens vão por
esse caminho, e arrastam com eles a suas famílias. Eu poderia ter solucionado
as confusões de seu pai facilmente, e até poderia agora tirar o Edenmont de
seus problemas, embora eles sejam bastante mais complicados. Mas não
penso fazer por ele o que não fiz nem por meu próprio filho. Não penso mover
um dedo, porque isso só o ajudaria a que acabasse deixando a todos na
miséria.
— Mas avó… — começou a dizer Percival.
— Ele sozinho se meteu nesses problemas, que saia sozinho deles — disse
lady Brentmor com amargura. — Se lhe importa Esme tanto como diz, e se é
que fica algo de respeito por si mesmo, ao menos ele tentará. — Quando se
voltou para Esme, seu semblante sério se relaxou um pouco. — Mas devo dizer
sincera e claramente uma coisa: eu não acredito que vá consegui-lo. De modo
que me parece que é melhor que vá se acostumando com isso.
— Quer dizer que não vai retornar — disse Esme, e logo apertou as mãos.
— Não sentiria saudades. Aqui não é bem-vindo e não pode me levar com ele.
Não sou mais que um estorvo. Não posso fazer nada por ele.
Ela ficou olhando fixamente a sua avó e continuou falando:
— Entendo suas razões, avó. Mas de qualquer maneira, ele me salvou a
vida, mais de uma vez. Não é uma pessoa malvada. Comigo tentou ser
amável, a sua maneira. Muitas vezes me advertiu contra ele. Não vou tentar
fazê-la mudar de opinião, mas sim lhe pediria que refletisse sobre essas

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coisas. Já que não posso fazer outra coisa, ao menos rezarei por ele.
Percival, que não tinha deixado de mover-se em sua cadeira enquanto as
duas mulheres falavam, lançou a sua avó um olhar inquieto.
— Mas avó, tem que lhe dar o dote.
— Não me diga o que é que tenho que fazer. Não recebo ordens de
meninos ignorantes.
Esme suspirou.
— Oh, primo! Não aborreça à avó. Parece-me que ela fará o que acredita
que é o melhor. Não haverá nada para Varian.
Esme ficou de pé.
— Mas sim que há. Mamãe deixou-lhe o jogo de xadrez como dote. E é um
objeto muito valioso. Pelo menos vale cinco mil libras. Ou pode ser o dobro, se
encontrar o comprador adequado.
— Cinco mil libras? — repetiu Esme. — Meu dote?
Sua avó ficou rígida.
— Quer dizer que não sabia?
— Sinto muito — disse Percival a Esme, — mas tinha medo de lhe dizer
isso se por acaso papai…
A anciã lançou uma maldição que chegou até o fundo da sala e logo se
recostou com cansaço em sua cadeira.
— Que o demônio me leve por ser tão tola. Fala-me com essa voz tão
séria, e não tinha nem ideia de nada. E agora estamos metidos nesta
confusão, e tudo é por minha culpa.

— Doze mil libras — repetiu Varian.


Tinha estado estudando o documento que seu advogado lhe tinha dado.
Embora de fato sua excelência não fosse capaz de ver nada mais nele que
manchas de tinta.
— Mas suponho que você conhecia o testamento de sua tia avó, milorde.
Mandei-lhe uma carta enquanto estava na Espanha. — O senhor Willoughby
tomou outra folha de papel. — Aqui tenho sua resposta. Em que me indicava…
— Recordo-o. Mas havia uma data limite, não é assim? Doze mil libras, se
me casasse antes de… quanto era? Três anos? Estou seguro de que já passou o

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prazo.
— Três anos a partir da data de sua morte. Ela nos deixou em dezembro
de 1815. E você se casou em novembro passado, conforme vejo nesses
documentos que, tudo o que está escrito está perfeitamente em ordem. — O
senhor Willoughby esboçou um ligeiro sorriso. — Quer dizer, que agora mesmo
você possui doze mil libras.
— Isso depende de como se olhe — disse Varian deixando na mesa a cópia
do testamento. — A quanto chagam minhas dívidas?
— Não poderia lhe dar uma cifra exata nesse momento. Além disso, com
os interesses, e depois da quebra do banco Portier e outros custos variáveis
pelo estilo…
— Poderia me dar uma cifra aproximada — insistiu Varian com o coração
saindo do peito.
— Ao redor das doze mil libras, milorde.
Varian sentiu parar por um segundo os batimentos do coração, como se
lhe acabasse de cair em cima um enorme peso, e ao momento começou a
pulsar de novo, lentamente como um repique de sinos em um funeral.
— Que curiosa coincidência — murmurou Varian.
— Lamento-o, senhor. De toda formas, poderia ter sido pior. Como já
expliquei, a fazenda não está em perigo.
— Estive visitando recentemente as… ruínas. Suponho que a razão pela
qual não está em perigo é que nenhum credor estaria tão louco para querer
essa fazenda.
— Pode ser que não. Mesmo assim, estou orgulhoso de ter posto os
obstáculos suficientes para desanimar até aos mais arriscados especuladores.
— Eu agradeço, senhor Willoughby. — Varian olhou pela imunda janela. —
Suponho que acredita que deveria utilizar esses ganhos para pagar minhas
dívidas.
— Sim, isso eu recomendaria.
O senhor Willoughby alinhou cuidadosamente uma pilha de documentos e
os moveu um pouco para sua esquerda.
— Isso me deixaria sem nada.
O advogado limpou a garganta.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Podemos conseguir preservar uma pequena soma. Como já lhe disse,


necessito um pouco de tempo, umas semanas, para determinar a soma exata.
Entretanto, se você deve doze mil libras, posso conseguir que sua dívida fique
satisfeita com onze mil, ou inclusive com dez. Geralmente, os credores não
estão acostumados a gostar desse tipo de acordos, já que assim se impede
qualquer ação para recuperar o resto da dívida. Mas, por outra parte, as ações
legais são muito custosas e, quando se exercem contra membros da nobreza,
frequentemente costumam ser excessivamente longas.
— Os credores descontentes também podem fazer sua vida
excessivamente desagradável — disse Varian. — Não desejaria que
incomodassem a minha esposa.
— É obvio que não, milorde. Entendo-o perfeitamente. Por isso aconselho
que desembarace o horizonte, para dizê-lo de algum modo. E eu posso tentar
que conserve uma pequena soma. Com isso, e com o dote de sua senhora
esposa…
— Minha esposa não tem dote.
O senhor Willoughby piscou.
— Não tem? Isso é muito estranho. Eu tinha entendido que…
— Nada — lhe repetiu Varian com firmeza. — Nem um centavo.
— Se você diz, milorde. Mesmo assim, se não for inconveniente, eu
gostaria de pôr em marcha certas investigações.
— Não aprovaria que o fizesse, especialmente se estas incluem que se
interrogue a sua família. Não gostam absolutamente. Mesmo se seu pai tivesse
podido deixar algo a ela, o que é muito improvável, eles teriam se assegurado
de que não possa chegar nem a vê-lo. — Varian deu de ombros. — Em
qualquer caso, não pode culpá-los por isso.
— Mas se houver algo que lhe pertença…
— Algo que pudesse me pertencer possivelmente não poderia consegui-la.
Pretende que eu gaste o pouco que fica nos tribunais? Preferiria investi-lo nas
mesas de jogo; ao menos ali tem uma possibilidade de dobrar os lucros. Ou de
triplicar. — Varian franziu o sobrecenho.
O senhor Willoughby reprimiu um leve suspiro e não disse nada.
— Não poderei restaurar Mount Eden se pagar os meus credores — disse

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Varian friamente. — Tenho que ficar com algo, senhor Willoughby.


— Entendo-o, milorde. De qualquer modo, acredito que posso preservar
até mil libras.
— Eu posso converter doze mil em vinte e quatro mil esta mesma noite.
Willoughby não disse nada. Seu rosto tinha perdido a cor nos últimos
minutos, e a expressão de seus olhos se escureceu. Parecia uma década mais
velho que o quarentão que tinha saudado Varian só um momento antes.
Varian ficou de pé.
— Se não ter nada mais que me dizer, será melhor que eu me vá.
— Sim, milorde. Suponho que quererá um adiantamento do dinheiro,
considerando que a papelada levará um pouco de tempo. Serão suficientes
umas cem libras, no momento?

Capítulo 25

Depois de abandonar o escritório de seu advogado, Varian se dirigiu sem


pressa para Oxford Street. A essa hora da manhã não se arriscava muito a
cruzar-se com algum de seus conhecidos. Olhando os punhos puídos de sua
camisa, pensou que, de qualquer modo, seria difícil que seus amigos o
reconhecessem.
Entretanto, seu aspecto poderia melhorar rapidamente, agora que tinha
umas quantas libras no bolso. Um de seus alfaiates favoritos certamente teria
à mão algo que lhe oferecer. Com uns quantos acertos, lorde Edenmont podia
estar apresentável para a noite. Levaria o jantar a seus irmãos, e logo
possivelmente poderiam dar uma volta pelo clube Brook. Depois jogaria uma
ou duas mãos de cartas, só para assegurar-se de que não tinha perdido suas
boas habilidades.
Com a mente posta em seus planos para transformar aquele dinheiro caído
do céu em uma fortuna, Varian dobrou uma esquina e se deteve em seco.
Uma elegante janela de arco dava sobre a calçada. Atrás dela havia uma
série de deliciosos manequins vestidos à última moda. O manequim de uma
dama miúda, com um traje de passeio, chamou sua atenção. Suas anáguas
brancas de musselina se sobressaíam quatro voltas por debaixo do vestido. Por

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

cima vestia um traje longo finamente bordado. Um ajustado colete de cor


verde rodeava a parte superior do busto. Um chapéu verde combinando e um
chapéu de plumas completavam o conjunto. Aquele verde era muito parecido
com a cor dos olhos de Esme.
Enquanto observava os demais manequins, Varian pôde imaginar
facilmente a Esme vestida com um suntuoso traje de baile, e girando aos
compassos de uma valsa. Também imaginou uma elegante carruagem com
assentos forrados de veludo verde, e a sua esposa sentada em seu interior,
sorrindo enquanto avançavam pelos Campos Elíseos. Paris. Poderiam partir
para longe e viver como reis com sua herança. Talvez por uns cinco anos.
Logo que tinha fechado os olhos para desfrutar daquela visão maravilhosa,
quando ela se converteu em números: doze mil libras por ano, mil ao mês.
Podia gastar isso mesmo em uns minutos jogando no vermelho e no negro.
Mas não, duplicaria os lucros, triplicaria. Não obstante, sua mente só oferecia a
visão de um pequeno montão de moedas e várias notas promissórias
amontoadas sobre uma mesa verde de jogos. Enquanto isso, sua cabeça não
deixava de imaginar a típica cena da sorte nas cartas…
— Tenho que ter algo — murmurou enquanto abria de novo os olhos.
«… meninos. Se Deus for generoso…»
Hoje doze mil libras. Mas e amanhã?
Enquanto voltava a olhar de novo o manequim com o traje verde, a
expressão do rosto de Varian se tranquilizou.
Entrou na loja e pediu à costureira uma parte de papel e um lápis. Seu
semblante indolentemente sensual fez o resto.
Varian só precisava sorrir o que fez, com bastante acanhamento para que
a proprietária queimasse a loja se ele pedisse. Sem dizer uma palavra ela
trouxe as roupas que ele queria. Depois ficou ali de pé, com as mãos cobrindo
inconscientemente o pulso acelerado de seu pescoço, e ficou olhando o rosto
em uma espécie de delírio, enquanto ele escrevia.
Não demorou mais de um minuto. Varian dobrou a nota e deixou uma
moeda no mostrador, ao lado do lápis.
— Eu agradeço muito — disse ele. — É que não podia esperar, você sabe?
— Não, claro, milorde, é obvio — disse ela quase sem fôlego. — A

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costureira já estava disposta a levar em pessoa a mensagem — até a China se


fosse necessário, — quando reuniu um pouco de dignidade e enviou em seu
lugar a uma de suas ajudantes.
A nota estava em mãos do senhor Willoughby ao cabo de quinze minutos.
«pague-lhe», dizia a nota seca. E debaixo tinha assinado com um enorme
e apressado «E».

Lady Brentmor voltou a abrir o exemplar do Ackermann's Repository que


Esme acabava de fechar de repente.
— Se não quer escolher você os trajes, escolherei por você — disse a
anciã.
— Não quero vestidos — balbuciou Esme. — Quero meu dote.
— Por Deus, é tão obstinada como seu pai, e tem a metade de seu
cérebro. Como no nome de todo o mais divino pôde criar a tal cabeça dura?
Lady Brentmor se levantou do sofá e ficou a caminhar furiosa pela sala.
Logo se aproximou de novo a sua neta.
— Pela enésima vez, não vai receber nenhuma dote. Não, ao menos até
que eu o diga.
— Então, mandarei uma carta ao Times — disse Esme. — Contarei ao
mundo o que tem feito.
— Ao Times? Ao Times? — chiou a anciã.
— Sim, e também a outros periódicos. E além disso, levantarei no domingo
na igreja e contarei a todo mundo que meu marido teve que partir porque
minha família não quer cumprir o contrato de matrimônio.
Lady Brentmor abriu a boca, mas em seguida voltou a fechar. Sentou-se
de novo e ficou olhando a sua neta.
Esme estava sentada, muito rígida, com as mãos entrelaçadas e os lábios
formando uma teimosa linha reta.
Houve um longo silencio.
Então a anciã pôs-se a rir a gargalhadas.
— É a peste! Levantar-se em meio da congregação da igreja, seria capaz?
Uma carta ao Times? Por minha honra que esta sim que é boa. Percival não
terá ajudado a pensar nessas coisas?

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— Ele me sugeriu o periódico, mas anunciá-lo na igreja foi coisa minha —


admitiu ela friamente.
— Pareceu-me ontem que tinha recebido tudo com muita calma. Maldita
seja! É realmente teimosa. Disse-lhe que não poderia tirar nada de você.
Edenmont não vai vir correndo para buscá-la. Não pode comprar sua
companhia, menina. Gastará tudo o que consiga em jogos, licores e fulanas.
Aquelas palavras calaram fundo, mas Esme respondeu secamente:
— Como gastá-lo é decisão de Varian. Se não quiser vir me buscar, eu não
posso obrigá-lo. Não lhe pedi que ficasse comigo e não vou fazê-lo. Eu não
contribuí em nada com meu matrimônio. Ao menos agora tenho um dote e
posso manter a cabeça bem alta. Minha honra exige que o pague.
— Por todos os demônios! Fala igual a um homem! — Lady Brentmor
voltou a saltar de seu assento. — Muito bem, minha honorável senhora, se
pretende dirigir a todo mundo e acredita que sabe mais que os mais velhos. —
A seguir se aproximou da porta da livraria. — Vêem comigo à casa de contas, e
mostrarei a caixa de Pandora que pretende abrir.
Perplexa, mas ainda firme em sua decisão, Esme saiu atrás de sua avó em
direção ao sombrio escritório.
Uma vez ali, a anciã abriu uma gaveta da escrivaninha, tirou dela um
punhado de cartas e as pôs nas mãos de Esme. Logo se sentou e esperou em
silêncio, mas com o dedo indicador golpeando com impaciência sobre a
superfície da mesa.
Após uns minutos, Esme levantou a vista da inacabável lista de contas e
notas explicativas.
— Contratou um homem para que espiasse o meu tio?
— Contratei para que investigasse as contas de Gerald. Mas teria gostado
de ter um espião de verdade para saber o que fazia Gerald com seus ganhos.
— A anciã fez um gesto apontando as cartas. — Me disse que tinha sofrido
vários «reveses». Mas o que demonstram essas contas é que está quase
arruinado. Como, pergunto, imagina que pôde acabar na bancarrota com esse
tipo de investimentos? Eu gostaria de sabê-lo. Essa é a razão pela qual levo
três anos investindo todos meus recursos.
— Eu não entendo dessas coisas — disse Esme. — Mas ouvi falar de

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

especulações nas quais as pessoas perdem fortunas.


— Deve estar metido em algo pior que isso, ou teria admitido que estava
virtualmente na ruína.
Esme devolveu as cartas.
— Seu dinheiro é problema dele. Não vejo o que isso tem que ver com
meu dote.
— Oh! Não o vê? — A anciã voltou a guardar as cartas sob chave. —
Então, pensa menina.
Depois de ter dado a Esme exatamente três segundos para que o fizesse,
a anciã seguiu falando.
— Gerald necessita dinheiro desesperadamente. Mesmo sem saber quão
má é sua situação, eu não teria dado nada. Não até que estivesse segura de
que seus problemas financeiros não eram causados pela sua própria estupidez.
Eu não gosto de dar dinheiro para causas perdidas, como parece que já
começa a entender.
— Sim, avó, mas…
— O jogo de xadrez — disse lady Brentmor impaciente. — Um montão de
dinheiro. Se estiver completo. Por isso Percival tirou a dama de seu pai. Afinal,
o menino tem bastante senso comum. Sabe que não se pode confiar no
Gerald.
Isso não era difícil para Esme acreditar, no mínimo. Em Corfú, seu tio não
tinha sido só frio e insultante, mas tinha mentido a respeito da avó. Toda
aquela historia de tentar abrandá-la a respeito do Jason e sobre a possibilidade
de que deserdasse o Percival… não era mais que um montão de mentiras.
— Gerald certamente conhece o legado de Diana, mas não mencionou
nada disso — continuou a anciã, — embora o jogo de xadrez tenha muito
menos valor com uma peça desaparecida. Isso me diz que não terá retrocedido
em seu empenho de encontrar a rainha que falta, e não vai deixar correr
facilmente. Assim que descobrir que nós a temos, começarão os problemas.
Para começar, estou segura de que tentará revogar o testamento de Diana nos
tribunais.
Esme franziu o sobrecenho.
— Ouvi que esses processos judiciais são muito caros. Também Percival

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

me disse algo de que no tribunal civil alguns processos duram gerações. Como
poderia meu tio…?
— Quando está quase sem dinheiro? Não é necessário que chegue
realmente aos tribunais. Basta que ameace fazê-lo. Ou que gaste um pouco
de dinheiro para iniciar os processos. E então, o que é que vai fazer Edenmont,
quando tem ainda menos dinheiro que ele? Eu lhe direi. Chegar a um acordo
com ele fora dos tribunais por uma pequena soma. Ou se for o suficientemente
preparado para descobrir o farol do Gerald… — Lady Brentmor sacudiu a
cabeça.
— Não — disse Esme com firmeza. — Não me fale com indiretas nem com
inclinações de cabeça. A mim diga claramente o que suspeita.
— Não viu muitas coisas entre os selvagens para imaginá-lo por ti mesma?
— Sua avó fez um gesto para os livros de contas que havia na estante junto à
mesa. — Segundo minha experiência, qualquer negócio que não fique
registrado por escrito num acordo as claras é um negócio sujo. O que significa
que nós estamos vendo isso com gente suja. Se Gerald estiver metido nisso, e
está desesperado, pode descer ainda mais baixo.
Não era necessário muita imaginação para entender a indireta. Esme
sentiu um calafrio.
— Está você falando de violência. Como contratar essa gente suja para pôr
Varian fora de… fora de circulação. Crê realmente que meu tio seria capaz de
fazer algo assim?
— Quando cheira mal, normalmente acabo encontrando algo podre no
fundo. Gerald cheira mal desde que retornou. Pior que o normal. Agora já
sabe tanto quanto eu. Pode pensar a respeito, como estive fazendo desde o
dia em que encontrei essa maldita peça de xadrez.
Esme não precisava pensar muito. Tinha visto homens malvados fazendo
coisas piores, por luxúria, por avareza, até pelas razões mais piedosas ou sem
razão aparente. Tinham matado o seu pai por sua culpa. Não podia permitir
que outro vilão atentasse contra ela ou contra seu marido.
Olhou a sua avó.
— Pode me dizer uma coisa?
— Depende do que seja.

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— Acredita que o jogo de xadrez é meu com todo direito, por ser meu
dote, e que deveria entregar a meu marido?
— Que garota! — A anciã a olhou zangada e com o cenho franzido. —
Acredita que não tenho consciência absolutamente? É obvio que é seu, ou
desse canalha de cara bonita, se o preferir. Só o que pretendo é que não tenha
ilusões com ele. Eu gostaria que fosse sensata, que me escutasse e me
dissesse: «Sim, avó, o que você crê que é melhor».
— Realmente sinto muito, avó.
O sobrecenho franzido da anciã se enrugou ainda mais.
— Não há razão para que uma jovenzinha se veja envolta nesses assuntos
imundos. Não há razão para que saiba nada dessas coisas. Você já tem
suficientes problemas, com esse depravado sem um centavo, farreando pelas
esquinas de Londres. Maldito seja esse filho que tive! Se não tivesse partido
para fazer com que o matassem nada disso teria acontecido. Se não estivesse
morto, eu mesma lhe retorceria o pescoço.
Esme se levantou e se dirigiu ao outro lado do escritório. Agachou-se e
deu um beijo na bochecha de sua avó.
Lady Brentmor abriu os olhos arregalando-os, e quando Esme voltou a
endireitar-se, pôde distinguir certo brilho neles. Lágrimas?
Mas sua avó soltou um bufado indignado e o brilho desapareceu.
— Estou perdoada, entendo — disse ela.
— Sou eu quem tem que pedir perdão — disse Esme. — Para dizer-lhe
francamente, não queria dar a Varian um dinheiro que poderia estar tentado a
gastar com mulheres. Sou muito ciumenta, e as mulheres podem me tirar do
sério muito mais que a bebida ou o jogo. Entretanto, sigo acreditando que era
minha obrigação.
— Certo — concordou a contra gosto a anciã.
— Mas também devo ter um pouco de confiança nele. Ontem lhe disse
quão bom tinha sido comigo. E valente. Pode ser que você também ache,
embora não lhe preocupe o que pudesse fazer meu tio. Mas já vejo que
também lhe preocupa os problemas que possa ter meu marido, e por isso
queria me manter afastada disso. Não estou convencida de que tenha razão
em tudo, mas também devo confiar em você.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Dito isto, Esme ficou olhando.


— Quer dizer que manterá a boca fechada a respeito de seu maldito dote?
E que deixará de me aporrinhar?
— De momento sim, porque acredita que é possível que meu tio faça mal a
Varian. De qualquer modo, e embora você seja muito inteligente, eu não sou
uma descerebrada. Já pensaremos em algo.
— Sim, pensaremos — disse a anciã soltando outro bufado.
— Sim. As duas. Enquanto isso, deixarei de aborrecer e escolherei os
vestidos, se isso for deixá-la contente. Também eu gostaria de ter aulas de
dança, e algo que acredite possa ser de ajuda para fazer de mim uma dama.
Esme ficou direita e se afastou do escritório.
— Se Variam… Quando ele retornar, não quero que tenha motivo algum
para sentir-se envergonhado de mim. E se… Quando tiver solucionado seus
problemas, poderá ter uma verdadeira baronesa a seu lado.

Lorde Edenmont entrou na desvencilhada cabana e olhou com receio a seu


redor. Tinha saído de Londres no dia seguinte ao envio da breve nota ao
senhor Willoughby. Tinha estado cinco dias em Mount Eden, e essa era a
primeira casa de camponeses em que se atreveu a entrar.
Estava arrumada, embora fosse bastante pobre, e nela havia seis meninos
que tinham dos dois aos treze anos de idade. Os pequenos estavam de pé, ao
lado da evidentemente grávida mãe, e o olhavam com uma expressão de
assombro.
— Outra vez grávida, Annie — disse Gideon ao retornar de inspecionar a
chaminé. — A chaminé e o telhado estão vindo abaixo.
A mulher se ruborizou.
— John não teve tempo de arrumar o telhado, milorde. Tem que trabalhar
lá onde pode, e este mês esteve em Aylesbury.
Varian conteve um suspiro. John Gillis era um dos muitos que se viram
obrigados a abandonar a terra que seus pais tinham trabalhado durante
gerações.
Enquanto Varian pensou como responder, viu que Annie dava uma
cotovelada no seu filho mais velho; um menino desengonçado e com o cabelo

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esticado. Como o menino não reagia, sussurrou algo. O menino saiu correndo
da habitação.
— Enfim… — Varian olhou incômodo a seu irmão. — Bom, Annie, aqui não
há muito mais que fazer que os trabalhos da granja. Eu não posso… — Se
calou quando o menino desengonçado voltou a entrar trazendo uma jarra de
barro.
Quando o moço a deu a sua mãe, deu de ombros, mas se virou para trás e
voltou para a posição em que estava antes, sem dizer uma palavra.
Annie esvaziou o conteúdo da jarra em suas mãos.
— Aqui está tudo — disse ela. — Cada um dos pagamentos dos últimos
cinco anos de aluguel. Ninguém nunca veio cobrá-lo, e não havia ninguém na
casa grande para dar. De maneira que fomos guardando.
— O aluguel? — repetiu Varian paralisado. — Cinco anos?
— Sim.
Ela aproximou o dinheiro, um pesado montão de moedas. Entretanto, a
julgar pela tristeza do rosto do maior de seus filhos, certamente o que estava
oferecendo era uma fortuna para eles.
Assim era, pensou Varian. Para eles. Tomá-lo seria uma infâmia, mas
rechaçá-lo seria um insulto, era uma mulher orgulhosa. Ela e John não teriam
economizando aquele dinheiro se não fossem. Varian pensou depressa.
Aceitou as moedas e agradeceu.
— É obvio, este dinheiro será adequadamente investido na fazenda.
— Sim, milorde.
— O que neste momento significa que terá que investir em pessoal. A terra
de lavoura está sem trabalhar. Se os homens tiverem que sair fora para
procurar trabalho, não podem cultivar. Temos que convencê-los para que
retornem, e devemos fazer com que as terras rendam para que fiquem.
Acredito que a maneira mais inteligente de investir meus lucros é essa. Não
está de acordo, Gideon?
— Muito inteligente — foi a impassível resposta de seu irmão.
— Então, está arrumado.
Varian contou as moedas com cuidado e as deu todas, exceto um xelim,
outra vez à perplexa senhora Gillis.

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— Isto é um adiantamento do salário do John — disse ele. — Para que


comece de novo a trabalhar em minhas terras. Quando retornar poderá ficar
em contato com o Gideon, quem cuidará dos detalhes práticos e preparará os
contratos por escrito.
Gideon assentiu com a cabeça, serenamente, como se ele estivesse
preparado, em todo momento, para oferecer qualquer tipo de informação de
quanto existe sob o sol.
Annie ficou olhando as moedas que tinha na mão.
Varian dirigiu sua atenção ao menino desengonçado.
— Parece-me que você é bastante maior e forte para trabalhar.
Annie afastou a vista do dinheiro.
— Oh, sim, milorde! — disse ela com ilusão. — É o homem da casa quando
John esta fora. Faz o que ordenar o amo, Bertie… Albert. Faça-o e rápido,
venha. E também sabe ler e escrever — acrescentou a mãe com orgulho. — Eu
ensino, ensinei-lhe.
Varian recordou que sua mãe tinha investido uma boa quantidade de
tempo para que as pessoas da localidade tivesse estudos. Insistia em que se
devia educar os dois sexos, apesar da forte oposição à educação das mulheres,
não só entre os lordes, mas também entre os camponeses. Mas as pessoas
gostavam dela por isso, e também de seu pai, embora por outras razões.
Aquele punhado de moedas era a prova do afeto e a lealdade que lhes
professava aquela gente. E a verdade era que Varian nunca ganhou aquele
afeto.
Em voz alta, disse:
— Se não necessitar do Albert, seria bem-vinda sua ajuda na casa. Mount
Eden tem que estar apresentável para quando chegar à senhora da casa, e
está toda desarrumada. — Varian sustentou a moeda entre os dedos. — Eu
gostaria de contratá-lo para que nos ajude a começar, Albert.
— É obvio que sim — respondeu Annie em nome do mudo menino. — Este
tempo frio atrasará a plantação, e John pode se arrumar perfeitamente sem o
menino de qualquer modo… — Ela duvidou um momento. — Será bom ter de
novo à família conosco, milorde.
Depois de dizer ao Albert a que horas tinha que se apresentar no dia

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seguinte para o trabalho, Varian se despediu dos Gillis e saiu com o Gideon.
Tinha começado a nevar.
Fizeram o caminho em silêncio, cada um dos irmãos refletindo a sua
maneira sobre a cena que acabavam de presenciar.
— Isso foi bom — disse Gideon ao final. — À saída do sol, encontrar-nos-
emos com uma fila de arrendatários na porta, dispostos a fazer entendimentos
conosco.
— Deixarei que você se encarregue dos entendimentos, se não se
importar. Eu não tenho cabeça para essas coisas.
— Fez tudo bastante bem hoje, apesar da precipitação do momento.
Deveria seguir suas diretrizes. Quem é tão honesto como John Gillis e sua
esposa pode ser que venha com seus aluguéis e espere que lhes ofereça o
mesmo trato. Aos outros convencerei para que trabalhem por uma
percentagem do produto ou algum outro trato comercial. Ou pode ser que por
uma redução do aluguel. Não teremos muitos benefícios ao final do ano, mas
ao menos a terra estará por fim trabalhada e, como você disse, não é bom que
não se cultive.
— Pelo céu! Seriamente fui tão sensato? Será melhor que me deite assim
que chegue em casa. Ou pensando bem, melhor não. Deus, ao menos
poderíamos ter conservado algumas camas. — Varian riu apesar de si mesmo.
— Sabe quantas vezes sonhei estar em casa, deitado sobre um leito macio?
Dormi sobre a terra, e na umidade, e em chão de madeira. Como vai rir Esme
quando eu contar…
Seu bom humor desapareceu naquele instante.
— Não, não posso dizer-lhe verdade? — ficou em silêncio. — Eu disse que
voltaria em umas quantas semanas, Gideon.
— Disse que é uma pessoa sensata. Entenderá.
— Entenderá quando eu disser que terá que esperar meses…, pode ser que
anos? Maldito seja. — Varian olhou com desalento ao seu redor. — A casa
desses camponeses que visitamos era provavelmente a melhor de todas.
Tenho que fazer algo pelos Gillis, e pelos outros. Não podem viver nesses
chiqueiros. Mas como demônios vou reparar as casas dos arrendatários quando
meu próprio teto está a ponto de cair sobre minha cabeça?

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— O telhado do Mount Eden resistirá bastante ainda — disse Gideon. — E


também podem esperar os outros reparos essenciais, incluindo as casas; o
custo dos materiais é insignificante. O que precisamos são operários
especializados.
— Não temos dinheiro para contratar a ninguém. — Varian seguiu
caminhando. — De qualquer modo, eu ajudei a reparar um moinho na Albânia
e não perdi a vida. — Deu um olhar de receio ao Gideon. — Suponho que você
não terá ideia de como arrumar um telhado ou uma chaminé?
— Tenho certas ideias básicas.
— Pode ficar o tempo suficiente para me dizer como fazê-lo… e fiscalizar os
primeiros trabalhos para se assegurar de que o faço bem?
Gideon soltou um suspiro.
— Apostaria algo a que jamais ouviu nenhuma palavra do que Damon e eu
lhe dissemos sobre esse tema. Não vamos retornar a Londres. Só tem que nos
dizer o que temos que fazer e o faremos…, sempre e quando for algo sensato.
E se pensarmos que não o é, diremos a você. E o que agora propõe me parece
o único sensato na presente circunstância.
— Maldito seja, Gilly, disse…
— É que não o entende? — O rosto rígido do Gideon se relaxou em uma
careta. — Não o fazemos por você, milorde, mas sim pela formidável criatura
que esperamos conhecer. Quanto antes reparemos essa ancestral ruína, antes
poderemos dar uma olhada na jovem dama com quem está tão desesperado
por nos impressionar.
Varian sentiu que se ruborizava.
— Demônios! Edenmont ruborizado. Lorde Alvanley daria vinte e cinco
libras por vê-lo.
— Que o demônio te leve, Gideon!
Gideon riu.
— Você disse que nos deve muito, não é assim? Nós podemos cobrar isso
nos ocupando de sua esposa. Por seu próprio bem, é obvio. Isso a manterá
com a mente ocupada e assim não ficará melancólica. — Gideon lhe deu uma
amistosa palmada no ombro. — Pelo seu próprio bem, meu nobre irmão. Não
podemos deixar que perca a cabeça. Pelo menos não até que tenha ao menos

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um herdeiro.

Capítulo 26

Abril chegou com uma garoa que caiu sobre o percurso anual da
Temporada de Londres. Mas sir Gerald Brentmor não tinha nenhum interesse
nas atividades sociais não lucrativas. A meia-noite, enquanto a alta sociedade
dançava e fofocava, ele estava já metido em sua cama, sonhando com rendas
vitalícias, percentagens e notas promissórias.
Apesar de ter ouvido um ruído em sonhos, ergueu-se do travesseiro no
momento em que a cera quente se derramava por sua fronte. Não teve tempo
de gritar, senão apenas para abrir a boca antes de sentir o frio fio de uma
adaga apoiado em seu pescoço.
— Se gritar o mandarei direto ao inferno — advertiu uma voz profunda.
Aquela voz lhe soava desagradavelmente familiar. A pesar do medo que
sentiu no cérebro e no coração, sir Gerald teve a suficiente lucidez para
reconhecer o dono daquela voz: era Risto.
O candelabro que gotejava se moveu a um lado e foi colocado de novo
sobre a prateleira, ao lado da cama. Por outra pessoa. Bom Deus, havia ali dois
homens!
O acompanhante de Risto, envolto em uma capa com capuz, aproximou
uma cadeira ao lado da cama, sentou-se nela e jogou o capuz para trás. As
velas deixaram ver o rosto de um homem jovem.
— Vejo que lembra de Risto — lhe disse o estrangeiro. — Eu sou seu
senhor.
Sua voz era amável e tinha um doce sorriso de jovem inocente. Mas essas
qualidades não tranquilizaram absolutamente a sir Gerald.
— Is… Ismal — ofegou ele.
O jovem inclinou levemente a cabeça de maneira afirmativa.
— Perdoe nossa forma pouco cerimoniosa de nos apresentar. Pensei que
era melhor que não me vissem os criados. Eles gostam de fofocar, e nem você
nem eu desejamos que nossa chegada seja conhecida por certos indivíduos.
Vim pessoalmente para solucionar um pequeno problema de negócios. Depois,

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partirei, eu prometo.
Ismal tirou com calma a capa e se recostou na cadeira, extremamente a
vontade. Vestia-se com roupas inglesas, completando seu traje com um lenço
que tinha atado ao pescoço. Exceto por um leve acento estrangeiro, poderia se
passar perfeitamente por um cavalheiro inglês.
— Antes que esquente a cabeça pensando em alguma maneira de escapar
de mim, queria explicar qual é sua situação. — Colocou elegantemente um dos
braços sobre o respaldo da cadeira. — Em Veneza me encontrei com um
homem chamado Bridgeburton.
Sir Gerald notou que o sangue lhe subia ao rosto.
— Esse homem foi seu sócio nos negócios durante muitos anos, da noite,
faz uns vinte e tantos anos, em que o ajudou a enganar o seu irmão para que
perdesse uma valiosa propriedade.
Ismal tirou uma delgada carta do bolso interior de sua jaqueta.
— Foi persuadido para que escrevesse uma confissão de todos os seus
mútuos crimes. — Deixou cair a carta no regaço de sir Gerald — Isto sir
Gerald é uma cópia. O original será entregue a um membro de seu governo,
no caso de que soframos algum percalço. Se estiver pensando em me enganar
de algum jeito, só conseguirá trair a si mesmo.
A adaga se separou de seu pescoço o suficiente para que sir Gerald
pudesse recolher a carta. Não necessitou mais que dar uma olhada para dar-se
conta de que estava realmente em grave perigo. Ninguém mais que
Bridgeburton conhecia detalhe de todas as suas atividades criminais.
— Suponho que está morto — disse apertando as mandíbulas.
— Temo que seu sócio foi tão incauto que caiu no canal. — Ismal ficou
olhando suas polidas unhas. — Concorda que Risto afaste a adaga agora? Se
lhe cansa a mão poderia ter um acidente.
— Já sabe que não vou dar a voz de alarme — disse sir Gerald enquanto
lhe devolvia a carta. — Não tenho mais inclinação pelas forcas que pela afiada
adaga de seu criado.
Quando a adaga se afastou de seu pescoço, tocou o gogó com cautela.
Estava úmido. Pode ser que fosse o suor, ou sangue. Apenas lhe importava. De
fato, compreendeu que já estava morto.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

O que importava era aquele jovem sentado ao lado de sua cama. Ismal
tinha tirado uma confissão ao impassível Bridgeburton, logo o tinha matado e
tinha viajado até a Inglaterra. Isso era algo mais que persistência. Loucura,
acaso?
— O que quer de mim? — perguntou sir Gerald com um tom de voz mais
tranquilo do que realmente estava. — Meus entendimentos com você foram
justos. Não foi minha culpa…
— Admito que não me traiu deliberadamente — reconheceu
amigavelmente Ismal, — embora ao princípio o pensei. Mas logo me inteirei
que não só vieram abaixo meus sonhos, mas também seus negócios. Não
posso imaginar que se destruiu deliberadamente a si mesmo. Entretanto, você
foi muito descuidado, sir Gerald, até o ponto de que alguém averiguou qual era
cada um dos barcos e qual era cada um de seus destinos.
— Poderia ter sido traído por um de seus homens.
— Só Risto conhecia toda essa informação, ou quase toda, e não poderia
estar agora comigo se me tivesse traído. É obvio que a culpa não foi dele.
— Prometo-lhe que…
— De algum jeito foi você um incauto, e esse engano esteve a ponto de
me custar a vida. — Inclinando a cabeça, Ismal perguntou em voz baixa: — foi
você envenenado alguma vez, sir Gerald? Meu primo Alí prefere os venenos
lentos. Nem sequer pude notar o sabor do veneno. Mas desde que me
recuperei em um imundo barco de pesca, comecei a apreciar o encanto desse
método. Eu gostaria muito de ver o homem que me deixou morrendo… muito
lentamente… em meio de uma grande agonia.
Definitivamente estava louco, decidiu sir Gerald fazendo uma careta. Mas
uma vez passada a primeira impressão, suas forças e seu instinto de
autopreservação retornaram.
— Suponho que não tem nenhum sentido que trate de convencê-lo de que
não sou seu inimigo, ou de que nunca disse uma palavra de nada a ninguém,
nem falei onde alguém pudesse me escutar às escondidas. Já não importa o
que aconteceu. Você sabe que eu gostaria de ter em meu poder o original da
carta do Bridgeburton. Qual é o preço?
— A soma que paguei pelas armas que nunca cheguei a receber, mais mil

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libras como reparação pelo dinheiro que me extorquiu meu primo… por culpa
de sua sobrinha e desse porco que tem por amante. — Na melíflua voz do
Ismal havia um timbre de amargura. O outro notou, porque sorriu mais
docemente. — E outras mil libras pelos gastos dessa viagem — continuou
dizendo em um tom de voz tranquila. — Tudo a pagar em um prazo de dois
dias.
Completamente perturbado. Embora isso, por lamentável que fosse, não
tornava aquele homem menos perigoso. Apesar de que sir Gerald não gostasse
absolutamente que o chantageassem, apreciou o bom olho das injustas
demandas do Ismal. Além disso, o baronet ainda não se encontrou com o
homem que poderia lhe tirar de tudo aquilo. De modo que tratou de pensar
com rapidez.
— Não posso reunir uma soma tão grande de dinheiro em só dois dias —
disse ele. — Se souber tanto sobre mim, deverá estar à corrente de que acabo
de vender boa parte dos investimentos que ficam, por não mencionar a
metade de minhas posses.
— Então pode me pagar com o jogo de xadrez.
Sir Gerald ficou olhando fixamente.
Ismal esboçou um sorriso de recriminação.
— Ou também já vendeu … o dote de sua sobrinha?
Imediatamente a indignação deixou a sir Gerald em um estado de alarme.
— Vendê-lo? — repetiu. — E conseguir sozinho uma parte do que vale?
Seu valor depende de que esteja completo, com cada uma de suas peças
intactas, e que cada uma das gemas seja a original. Os colecionadores podem
ser excêntricos, alguns deles ao menos, e muitos passariam por cima o fato de
que falte uma peça qualquer, mas uma rainha?
O braço do Ismal se separou do respaldo da cadeira. Seu falso sorriso se
alargou e um brilho cruzou seus olhos.
Estava se divertindo? Perguntou-se sir Gerald. Que demônio lhe parecia
tão gracioso?
Ismal se inclinou para ele.
— Sir Gerald — lhe disse, — está você metido em um problema mais grave
do que lhe parece. Eu não sou o único que conhece seus sujos segredos.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

— De que demônios está falando?


— Rainha negra.
— O que me disse esse criado é que a entregaria a você.
— E muito pouco depois a entregaram a seu filho. Com uma mensagem.

Esme torceu os lábios enquanto lhe devolvia a carta a sua avó.


— Não vejo a graça — resmungou a velha dama.
— Não só é divertido, mas também imaginativo — disse Esme. — Dizem
que tenho as mãos tatuadas, que levo um aro no nariz, e que com esse traje,
e sem vestir nada mais, danço de maneira lasciva em seu jardim de rosas à luz
da lua cheia. A senhora Stockwell-Hume não menciona que também adulo à
lua, mas pode ser que seus amigos londrinos não tivessem pensado nisso
ainda.
— Não me importa que tudo isto seja ridículo. A maioria das fofocas de
Londres o são. Mas isso não os faz menos daninhos. O que crê que vai dizer
Edenmont, ou melhor, o que vai sentir, quando essas fofocas chegarem a seus
ouvidos?
Esme ficou rapidamente séria. Os rumores que tinha contado a amiga de
lady Brentmor eram ridículos, um flagrante exemplo do provincianismo e a
ignorância da sociedade inglesa. De qualquer modo, que a esposa de um lorde
seja objeto das brincadeiras, e que a gente mesmo o seja da compaixão…
— Vá! — disse a anciã, — Temos que ir a Londres. Amanhã.
— Londres? Amanhã?
— Não é o eco, assim não preciso que repita tudo o que digo. Partiria
agora mesmo, se pudesse, mas necessitamos um dia inteiro para fazer a
bagagem. E o jovem bruto virá também conosco, porque não quero voltar e
saber que pegou fogo à casa.
— Mas, avó, não estou preparada. Você mesma disse que minhas
maneiras…
— São bastante melhores do que esperam esses tolos. Além disso, não
vamos ficar ali toda a temporada. Somente uma ou duas semanas. O tempo
suficiente para pô-los firmes. Maldito atalho de bobos.
Londres. Amanhã. Esme tratou de reprimir um estremecimento. Todas

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essas mulheres… As mulheres que ele tinha conhecido. Iam fazê-la em


pedaços e ela não saberia como defender-se. E quando visse suas rivais
certamente tampouco teria a coragem para fazê-lo. Seriam mais formosas do
que ela imaginava, mais elegantes, e ela se sentia feia e totalmente
desprezível. Duas semanas sem Varian já lhe tinha feito perder bastante
confiança em si mesma. Necessitava tempo para reunir valor e forças, se
quisesse tomar uma decisão adequada sobre o futuro… com ele.
— Não — disse ela. — Essas fofocas não são nada mais que uma
brincadeira. Mas se for lá, se darão conta de que realmente não estão tão
equivocados, e isso será muito pior.
— Vai ser muito pior se a ele ocorrer começar a aceitar desafios de duelo.
Um homem está obrigado a defender o bom nome de sua esposa… embora a
deteste. Deus, os homens são tão burros — se queixou a anciã. — Nós
passamos a metade da vida tentando salvar esses malditos idiotas de si
mesmos.
— Não esperará que acredite…
— Se não quer ir — seguiu dizendo sua avó sem lhe fazer caso, —
esperemos que saiba manejar melhor com uma pistola que com os negócios.
— Deus tenha piedade de mim! — disse Esme meneando a cabeça. — E os
ingleses dizem que Albânia é um lugar perigoso. Varian pôde estar ali a salvo,
mas aqui, meu tio poderia matá-lo por uma peça de xadrez, seus amigos o
matariam por uma fofoca… Pelo Alá! Nem sequer Alí Pachá poderia sobreviver
entre essa gente. Estão loucos, todos eles.
A anciã não a estava escutando. Seu olhar abstraído dava voltas ao redor
da sala de estar.
— É obvio, há uma parte boa. Se ficasse viúva, deveria encontrar algo que
se parecesse com um marido adequado. — Seu olhar se fixou em uma
pequena aquarela que estava pendurada ao lado da chaminé. — Dunham é
viúvo, e já tem um herdeiro. A mulher do Saxonby está muito doente, mas
entre ele e o título há ainda dois irmãos. Herriot…? Ou acaso é o outro? Maldito
seja, teria que encontrar ao Debrett… Não, posso perguntar a lady Seales. Ela
com certeza sabe como está o mercado.
Esme ficou olhando perplexa a sua avó.

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— Que mercado? Do que estamos falando?


— O mercado de maridos. De seu próximo marido. Não pensará chorar a
morte desse imbecil toda a vida, não?
— Que o céu me dê paciência! — chiou Esme. — Ainda não morreu e já
está procurando o próximo marido? Você é pior que Qeriba. Pelo menos ela
não desejava nenhum mal. Mas, pelo resto, é igual a ela. «Faz isto. Faz aquilo.
» Como se eu não tivesse opinião nem nada o que dizer.
— Então, por que não trata de dizer algo inteligente?
— Por que não me deixa um momento para pensar? Você é a única diz que
Varian deveria bater-se em duelo por mim. Por que teria que acreditar que vai
jogar o pescoço por uma causa tão pouco importante? O mais seguro é que ria
dessas fofocas.
— Já lhe disse como são os homens.
— Sim. E também me disse que muitos homens deixam a suas mulheres
no campo enquanto eles vão se divertir na cidade. Se ele queria retornar a
Londres sozinho, e se me encontra ali…
— Sim, isso será um grande inconveniente para ele, estou segura.
— E, além disso — seguiu dizendo Esme teimosa, — não pensou no que
dirão as pessoas se eu for a Londres com minha avó enquanto ele se aloja em
outra parte.
— Isso será coisa delas. Eu não os separei quando estavam aqui, e não
penso fazê-lo ali. Mas já vejo que só o que faz é procurar desculpas. A razão
pela qual não quer ir a Londres é bastante simples: é uma covarde.
Nesse caso em concreto, aquelas palavras chegaram muito perto do alvo.
Esme o teria admitido sem muitos problemas no momento em que pensou
naquelas mulheres. De uma vez, sentiu-se furiosa por aquele insulto.
— É você completamente impossível! — gritou ela. — Faria o que fosse e
diria o que fosse para sair-se com a sua. Mas não se equivoque comigo. Queira
ou não, seu sangue corre por minhas veias, e conseguirei me sair com a
minha. Sim, avó, podemos nos preparar para viajar amanhã, se assim o
desejar. Não, avó, não iremos a Londres até que saiba qual é a opinião de meu
marido. E então poderei julgar o assunto com mais sensatez.
Lady Brentmor a olhou franzindo o sobrecenho com ferocidade. Mas Esme

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não se amedrontou absolutamente e lhe devolveu um olhar igual de fera.


— Quer ir ao Mount Eden? — perguntou-lhe a anciã. — E conseguir antes a
permissão desse bobo?
— Não penso ir correndo a Londres para resgatá-lo de um duelo, só para
me inteirar de que esteve tirando o sarro. Já ouvi sua opinião do que temos
que fazer. Agora quero ouvir a dele. Logo, eu decidirei. Por mim mesma.
— Muito bem — disse sua avó. — Como você queira, milady.
— E sem truques — advertiu Esme. — Percival me ensinou o mapa. Se a
carruagem for a qualquer outro sítio que não seja Mount Eden, saltarei dele
em marcha.
— Não me ocorreria nem sonhar em enganar — foi a irônica resposta. —
Não sabe quão contente estou pensando em ir visitar sua excelência sem
avisar. Com o tempo você mesma o verá. Deixemos que apresente você a
seus amigos de bebida e ópio, e a suas fulanas. Nada gostarei mais que vê-la
entre eles. — Lady Brentmor se dirigiu para a porta. — Não perderia isso por
nada do mundo.

Percival escapuliu do vestíbulo pelas escadas de trás quando sua avó saiu
da sala de estar com Esme. Sabia que não deveria ter estado escutando atrás
da porta. Uma vez tinha espiado o seu pai daquela maneira, e sabia o que lhe
tinha levado aquilo. Já não se atrevia a voltar a pensar no xadrez, porque isso
o fazia lembrar-se da rainha negra, o que o tinha conduzido ao vergonhoso
segredo de seu pai, e pensar em tudo aquilo punha doente ao Percival. E agora
se sentia quase igual de doente, como tinha se sentido no momento em que
tinha visto a carta sobre a mesa do café da manhã.
Depois de abri-la, o rosto da avó ficou rígido e de cor púrpura. E tinha toda
a razão do mundo para reagir assim, como tinha descoberto Percival. Mas
aquilo não tinha nada que ver com seu pai, pensou Percival. Não se tratava
mais que de um montão de horríveis e ignorantes fofocas.
Franzindo o sobrecenho, Percival se sentou no degrau mais alto. A parte
em que se falava do aro no nariz, por exemplo. A maioria das pessoas sabia
que era um costume em algumas culturas exóticas, como em outras culturas
era normal andar nus. Mas aqueles fofoqueiros não tinham nem ideia do que

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eram os costumes da Albânia, e também erravam nos demais costumes que


diziam da prima Esme.
Exceto no das tatuagens. Em algumas tribos da Albânia, as mulheres
tinham tatuagens nas mãos. Era muito estranho que um grupo de fofoqueiros
ingleses tivesse acertado em uma prática bastante pouco comum e em todo o
resto estivessem tão absurdamente equivocados. As pessoas não podiam
deixar de perguntar-se como qualquer que não fosse albanês podia imaginar a
uma mulher que levasse tatuagens. Nas mãos.
Mas não era de todo o impossível, disse a si mesmo. Poderia ter sido uma
coincidência.
Até mesmo o tipo de papel e tinta utilizados. Sem dúvida, seu pai não era
o único que tinha aquele tipo de material de escritório em particular. Embora a
senhora Stockwell-Hume não parecesse a classe de mulher que o utilizaria, a
menos que tivesse feito servir o material de seu marido. Mas ele tinha morrido
fazia vários anos.
Percival fechou os olhos. Não podia tratar-se do papel e da tinta de seu
pai. Estava claro que a letra não era a de seu pai, nem a de nenhuma outra
pessoa conhecida, tinha que ser a da senhora Stockwell-Hume, pois do
contrário sua avó teria percebido. Tampouco podia tratar-se de uma
falsificação. Se seu pai soubesse como dissimular sua letra já o teria feito no
caso da nota que havia dentro da rainha negra.
Mas acaso havia alguma outra pessoa que sabia como falsificar uma carta,
começou a remoer essa ideia preocupado. Alguém muito preparado. Algum
albanês.
— Não — sussurrou Percival. — Não pode ser, por favor, mamãe. È só
minha imaginação, não é verdade?

Capítulo 27

Damon estava no telhado do Mount Eden, reparando a chaminé, e Gideon


se encontrava abaixo, na cozinha, tentando preparar a comida. Varian tinha
acabado aquela mesma manhã de limpar os dormitórios, sobre tudo de
excrementos de ratos. Embora o gato tivesse feito tudo o que podia, estava

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sozinho contra uma legião, e sua descendência era muito jovem para que
pudesse ser de muita ajuda. A julgar pela quantidade de excrementos, alguns
daqueles ratos podiam ter um tamanho duas vezes maior que os gatinhos.
Varian soltou uma grosseria ao ouvir que batiam na porta. Com a
vassoura na mão, correu escada abaixo e esteve a ponto de esmagar um dos
gatinhos listrados, que estava no final das escadas disposto a saltar sobre ele.
— Maldito seja, só tem sete vidas — disse Varian olhando para gato. —
Não as esbanje todas em uma semana.
O gato saltou para suas mãos e começou a subir pela camisa. Varian
estava tentando desfazer-se dele quando chegou à porta. Mas o gato lhe
cravava as unhas com força enquanto miava.
Varian deixou de brigar com ele, pôs a vassoura detrás da porta e abriu.
Piscou uma vez e de repente todo o mundo se desvaneceu ao seu redor. O
que estava vendo era a Esme, que por sua vez o olhava com a boca aberta.
— Esme — disse assim que pôde recuperar o fôlego, para logo avançar na
soleira e estreitá-la entre os braços. — Querida… eh, eu…!
Ele tratou de soltar da camisa aquele gato homicida, mas ela afastou a
mão.
— Você vai fazer-lhe mal — disse Esme com voz séria. — Está muito
assustado e por isso não quer soltar-se.
Murmurando algo em albanês, ela começou a acariciar o escorregadio
animal. Em seguida sucumbiu a seus encantos e se deixou segurar por ela.
Nesse momento, a realidade voltou a rodear Varian. Olhando atrás de sua
esposa, pela porta aberta, Varian viu uma carruagem e à anciã dama que
descia dela, e logo ao Percival saltando pela outra porta.
Varian passou os dedos pelo cabelo. Sentiu a sujeira que levava em seus
cabelos. Quando afastou a mão, esta estava negra. Também se deu conta de
que tinha manchado o elegante casaco de Esme com pó e fuligem.
Sentiu um calor que subia pelo pescoço até avermelhar seu rosto. Olhou
para Esme, logo mais à frente, para a anciã que se dirigia com passo firme
para eles. Era evidente que Percival tinha descoberto ao Damon trepado no
telhado, porque nesse momento pôs-se a correr para o outro lado da casa para
poder vê-lo melhor.

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Embora percebesse que se ruborizou intensamente, Varian se ergueu.


Quando a anciã chegou à escada de entrada, fez-lhe uma reverência.
— Milady, que gratíssima surpresa...
— Não me fale — soltou ela, passando a seu lado. — Não foi minha ideia,
mas sim dela. — Olhou para trás em direção a Esme e elevou o nariz. — Diga a
meus criados que tragam as cestas de comida. Estou segura de que não estava
preparado para receber visitas e eu estou sedenta.
A seguir entrou no vestíbulo murmurando entre dentes.

Pouco depois, depois de ter se lavado de maneira precipitada, Damon e


Gideon se dirigiam cautelosamente para o corredor principal. Já tinham dado
uma olhada pelos cômodos. Na sala de jantar viram uma pequena e temível
anciã de arranca-rabo com uma mala e gritando ordens a uma pequena legião
de curvados serventes.
Na sala de estar, um adolescente ruivo estava virado de barriga para baixo
junto a uma guarida de ratos, falando pacientemente de um cassino
clandestino esmagado contra seu nariz.
Embora intrigantes entre si mesmos, nenhuma daquelas visões mereceu
mais que uma rápida olhada. Damon e Gideon tinham em mente uma presa
em concreto e, resistindo àquelas tentações menores, continuaram sua busca.
Passaram por diante das portas parcialmente abertas da biblioteca e
olharam dentro. Então Damon cravou os olhos em seu irmão.
— Não pode ser esta menina — ele sussurrou.
— Sem dúvida não é a senhora madura que estava na sala.
— Mas esta não é mais que uma menina. Varian possivelmente não
poderia… Se calou quando ouviram umas vozes. Com cautela, Damon abriu a
porta um pouco mais. Nesse momento, a moça atirou a bolsa a seu irmão.
Varian se afastou e a bolsa aterrissou ao lado da chaminé, no chão. A garota
começou a andar furiosa de um lado a outro, com um redemoinho de saia
verde a seu redor, enquanto sua voz bramava a todo volume.
— Nunca o perdoarei! — gritou-lhe com fúria. — É impossível. Sua
estupidez está além de toda compreensão. E, além disso, é um mentiroso de
muito cuidado.

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— Esme, eu não…
— Mentiu-me! Já disse. Quer defender sua honra? Muito bem, vá por suas
pistolas. Eu irei procurar a minha e dispararei nesse negro coração que tem. E
com mais razão. É a mim a quem estão desonrando. E você vai me desonrar
mais ainda. Todo mundo rirá de mim… mais forte ainda do que riem agora.
Soltou algo em uma língua estrangeira e Varian tentou aproximar-se dela.
A jovem ergueu uma mão indicando que não o fizesse.
— Não se aproxime — advertiu. — Não me tente. Estrangularei você.
Varian se deteve e se apoiou no suporte da chaminé de novo. Ficou
olhando, enquanto ela seguia andando de um lado a outro, com os saltos
produzindo um contínuo tamborilar no chão nu.
Ela voltou a carga com uma fileira de palavras que só podiam ser insultos,
e logo falou outra vez em inglês.
— Mandou-me três cartas cada semana, e não me disse a verdade em
nenhuma delas. Só historias e brincadeiras, como se eu fosse uma menina a
que terá que entreter. Já pagou suas dívidas. Já não existia o perigo de que
estava falando, como se me preocupasse o perigo! Mas não me contou nada.
Deixou-me com minha avó, o que em meu país é uma grande distancia, mas
eu suportei porque estamos na Inglaterra e todos os ingleses estão loucos.
— Querida, não tenho meios para mantê-la.
— Não necessito que me mantenham! Não sou uma ovelha nem uma vaca.
Como acredita que vivia na Albânia sem dinheiro? Dormi em covas e entre os
arbustos. Sei o que é isso. — deteve-se um momento. — Não sou uma
menina, nem uma débil mulher. Deveria ter dito a verdade, que não queria que
estivesse com você. Mas sua vaidade é ainda maior que sua estupidez.
Pensava acaso que eu ia morrer de pena? — aproximou-se dele e apoiou as
mãos nos quadris. — Já!
Embora agora estivesse de costas, Damon não tinha dúvidas de qual seria
a expressão de seu rosto. Sua pequena e rígida figura vibrava desafiante.
— Não deveríamos estar aqui bisbilhotando — murmurou Gideon.
— Sim, é vulgar, mas é tão interessante…
Dirigindo um olhar de recriminação a seu irmão, Gideon clareou a garganta
pigarreando ruidosamente.

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A moça estava de novo arremetendo contra Varian em sua própria língua e


evidentemente não ouviu aquele som gutural. Mas Varian sim. E então os viu
depois das portas entre abertas.
Gideon as abriu de todo.
— Ah, aqui estão! — disse Varian com voz crispada.
A garota deu meia volta. Um ligeiro tom rosado manchou suas bonitas
bochechas e seus olhos se abriram de par em par.
— Bastante verdes — disse Damon entre dentes.
Varian se aproximou dela para tomar a mão.
— Posso apresentar você a meus irmãos, querida? Este tipo robusto é
Gideon.
Gideon fez uma cortês reverencia.
— E esse outro que ficou com a boca aberta é Damon.
A reverência do Damon foi algo menos elegante, devido a um
momentâneo desajuste de sua inteligência. Agora que a via de perto, estava
claro que de nenhuma das maneiras era uma menina, a não ser uma moça.
Uma moça e assombrosamente atrativa. E nesse momento, também muito
zangada, o que não fazia mais que torná-la ainda mais atrativa. Nunca antes
tinha visto um pouco parecido o verde aceso da cor de seus olhos.
Evidentemente, tampouco o tinha visto antes Varian. Isso explicava tudo.
— Estavam ansiosos por te conhecer — disse Varian.
Esme ficou olhando os dois irmãos com patente desconfiança.
— Então os teria que ter trazido para que me conhecessem — disse ela
bruscamente. — Pelo menos minha avó os teria alimentado.
— Espero que não tenhamos tão mau aspecto para isso, não? — protestou
Damon com um tímido sorriso.
Ela estalou a língua.
— É uma pena, mas se vê às claras que não dorme nem come
adequadamente. — aproximou-se um pouco mais de Damon fazendo com que
o coração dele ficasse a pulsar de uma maneira estranha. — Está muito magro
— disse ela. — Quem cozinha?
— Delegaram-me ao posto de cozinheiro, milady — disse Gideon.
— Sim, e tem uma boa mão com os ovos cozidos — assegurou Damon. —

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Embora eu tema que não seja bastante bom para ter jeito de…
— Deveria ter vergonha — disse a Varian. — É um idiota integral.
— Oh! Mas esse não é o encargo de Varian…
Lançou ao Damon um olhar fulminante e ele se calou de repente. Estava
claro que não ia atrever-se a terminar aquela frase.
— Ele é o cabeça da família — disse ela muito séria. — É sua
responsabilidade. Infelizmente não tem um pingo de sensatez. Mas agora já
chegou a senhora. E eu prepararei uma comida decente.
Varian começou a dizer algo, mas recebeu um olhar mortífero dos olhos
verdes dela e decidiu manter a boca fechada.
— Vá tomar um banho — disse ela. — Está lastimável.
Logo saiu passando ao lado dos dois irmãos, com suas botas altas
sapateando uma retreta de mau agouro, e saiu pela porta.
Damon ficou olhando a seu irmão mais velho.
— Digo eu, Varian, que não iria pegá-lo de verdade, não é assim?
— Acredito que será melhor que vá tomar um banho — disse Varian
abandonando a sala.

Depois de uma comida surpreendentemente agradável, a anciã viúva


dedicou várias horas a examinar minuciosamente a casa. Gideon a
acompanhou, anotando obedientemente todos os seus comentários em uma
caderneta. Damon, para grande aborrecimento de Varian, seguia a Esme a
todas as partes como se fosse um cachorrinho de madame. Entretanto, sua
excelência sabia que era melhor não ir com eles enquanto visitavam a casa.
Esme necessitava de tempo para acalmar-se. Enquanto isso, ele podia ocupar-
se de fazer algo para arrumar a desordem do dormitório principal.
Havia pensado que preferia morrer antes que deixá-la ver aquela fazenda,
no desastroso estado em que se encontrava e que proclamava em voz alta
todas as suas vilanias. E por isso morria de vergonha e culpabilidade.
Entretanto, tendo suportado o pior, era consciente de que também poderia
suportar ser rechaçado em seus avanços amorosos.
Sabia que não tinha direito algum a pretendê-lo, e ficava louco só de
pensar, deixando à parte a esperança. Mas não podia evitá-lo. Do primeiro

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abraço, tão torpe como breve, ele não havia tornado a ter ocasião de tocá-la.
Rodeado todo o tempo de criados desconhecidos e de seus irmãos, e com o
Percival e lady Brentmor aparecendo nos momentos mais importunos, tinha-
lhe sido impossível. Além disso, Esme teria estado todo o tempo de um humor
terrível.
Que Deus tivesse piedade dele, até tinha sentido falta de seus ataques de
raiva!
Varian sorriu ligeiramente enquanto esticava os suaves lençóis de linho.
Hoje aquela visão trazia para a mente outros desejos. Não que aquela cena
que tinham tido não fosse algo de esperar, depois de que Esme tivesse
passado dois meses sob a tutela de sua avó. Mas nesse momento, seus dois
irmãos estariam pensando que sua mulher o dominava. Embora isso fosse
porque eles não entendiam nada. Nem Varian tinha intenção alguma de
explicar.
Sabia que Esme se sentia muito magoada e que ele era quem a tinha
ferido.
Não sabia como consertar aquilo. Ela tinha mostrado a carta da senhora
Stockwell-Hume, a razão daquela inesperada visita e sua resposta tinha
parecido totalmente insatisfatória. Varian tinha pensado que não era
necessário explicar nada até que seus amigos a vissem por eles mesmos, e
que não importava se criassem suas próprias fantasias sobre o mistério de lady
Edenmont.
Sabia que aquilo tinha sido culpa dela: sua escandalosa reputação, uma
esposa procedente de um país pequeno e desconhecido… O resultado era que
corressem absurdas histórias de boca em boca. E como agora não tinha os
meios para apresentá-la de maneira apropriada, isso queria dizer que no
momento a nobre viúva teria que encarregar-se de fazê-lo. E nesse instante
Esme tinha explodido.
Varian entendia que ela acreditava que a miserável posição dele
respingava nela como se fosse uma esposa pouco apropriada. Isso era apenas
uma diferença cultural. O que preocupava Varian era que parecia estar
convencida de que ele a considerava inapropriada. Pensava que se
envergonhava dela, ou que estava cansado dela.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

O que não era absolutamente razoável. Desgraçadamente, as pessoas com


ideias amalucadas são por definição dificilmente razoáveis. Ela não estava
disposta a acreditar em nem uma palavra do que lhe dizia.
Varian guardou sua roupa suja em um armário e deu uma olhada ao seu
redor. Os móveis pertenciam aos restos de uma casa que se queimou
parcialmente em Aylesbury. Somente tinham podido aproveitar os móveis do
dormitório. Ou ao menos isso tinham acreditado seus irmãos e ele mesmo.
Agora se dava conta de que os móveis desprendiam certo aroma de
queimado, apesar das horas que tinha passado lixando-os e aplicando azeites
com ervas. Também a roupa de cama era de segunda mão ou o mais seguro
terceira ou quarta, cinza e gasta, apesar de que Annie Gillis a tinha lavado e
alvejado. Pior ainda eram as cortinas. Velhas e remendadas, e, além disso,
estavam todas rasgadas graças aos cuidados que lhes tinham proporcionado os
gatos.
Varian soltou um grunhido e se sentou na cama. Em que demônios tinha
estado pensando, para imaginar sequer que ia seduzir a sua baronesa naquela
cela sórdida?
— Varian?
Era a voz de Esme chamando do outro lado da porta.
Varian sentiu uma covarde urgência de meter-se debaixo da cama. Em
lugar disso, apertou as mãos na borda do colchão e rogou para que ela
estivesse olhando para outro lado, de modo que fosse possível sair dali antes
que Esme pudesse dar uma olhada naquele quarto horrível.
A porta se abriu de repente com um rangido de protesto.
Fechou os olhos.
— Pensei que estava se escondendo de mim — disse ela. — Faz bem em se
esconder. Mas prometi a seus irmãos que não vou matá-lo. Disseram que não
podem permitir os gastos do funeral.
Abriu os olhos, e a viu de pé na soleira da porta, com os braços cruzados
sob o peito.
— Além disso — acrescentou Esme, — Gideon não tem vontade de ser
barão. Diz que antes prefere que o pendurem.
Depois de olhá-lo durante um momento, abandonou sua postura

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desafiante, entrou no quarto e olhou a seu redor.


— É um quarto muito grande. Toda minha casa de Durrës caberia dentro.
Mas é igual ao de minha avó, de maneira que já não me surpreende.
Varian se levantou.
— É um quarto horrível, embora em outro tempo estivesse elegante, com
um estilo antigo. Eu gostaria que tivesse visto então… assim como toda a casa.
Ela deu de ombros.
— Não está tão mal. Com algumas mulheres que ajudem, posso deixar
completamente limpo em uma semana, ou talvez um pouco mais. Diz minha
avó que deveria encontrar outro caçador de ratos, e eu estou de acordo com
ela. Embora não possa entender é o que encontram para comer estes pobres
roedores. — Dirigiu-lhe um olhar acusador. — Damon me disse que está
trabalhando muito duro. Deve acreditar que estou cega.
— Durante dez anos não trabalhei absolutamente. Sempre encontrava
alguém que o fizesse.
— Disse-me que faz tudo isso por mim. Também deve pensar que sou
estúpida.
— É uma estúpida se não acreditar no que ele disse. Que outra razão
poderia ter para fazer isso, Esme?
Ela respondeu dando de novo de ombros.
— Minha avó quer passar a noite na estalagem.
— No Black Bramble.
— Sim. Não havia trazido suficiente comida para o jantar. Vim para
convidá-lo. Ela vai convidar também a seus irmãos.
Varian engoliu seu orgulho com amargura.
— Ali é onde pensa passar a noite?
Houve um longo silencio. Ele esperou.
Não houve resposta. Ao final, ela se dirigiu para a porta.
— Senti falta de você, carinho.
Ela se voltou de novo para ele, com olhos receosos.
— Eu… Teria gostado que você tivesse ficado.
O olhar dela posou sobre a cama e depois de novo nele.
— Disse-me que deveria ir a Londres.

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— Isso não significa que não a queira! Maldita seja, Esme…! — Varian se
levantou de repente. — Eu sinto muito, tinha prometido a mim mesmo…, mas
não serve de nada, nunca serve. Por que o põe tudo tão difícil, querida? Sei
que quer me ajudar, mas… se minha gente se inteirar de que minha mulher
está trabalhando para mim, nunca poderia olhá-los de novo no rosto. Nem
poderia viver comigo mesmo.
Ela não disse nada, só ficou olhando.
Varian olhou desconsoladamente a seu redor, enquanto sua mente
trabalhava a toda pressa para encontrar as palavras adequadas.
— Seria uma desonra para mim — disse ele ao fim. — Maior que a que já
padeço agora. Muito maior. Sei que parece uma tolice, mas assim é como
funciona meu mundo. Pergunte a qualquer um.
Esme ficou pensando durante um pesado e longo momento.
— Pergunta a qualquer um — repetiu Varian, — quando chegar a Londres.
Se um só dos membros da alta sociedade disser o contrário, pode dizer a sua
avó que a envie diretamente de volta para cá.
Ela apertou as mãos com força sobre o regaço.
— Promete-me isso?
— Sim, prometo-lhe isso.
Ela ficou olhando um momento o imundo chão.
— Eu não gosto desse país — disse ela. — As pessoas não tem senso
comum.
— Isso é o que parece.
Ela franziu o cenho.
— Tenho um professor de dança, sabe? E uma donzela pessoal. Pensa que
não sei me vestir sozinha, de maneira que tenho que fazer ver que assim é
para não ferir seus sentimentos. Às vezes ser uma dama é muito exaustivo, e
me incomoda. Pedi desculpas a seus irmãos por minha rudeza. Disse-lhes que
tenho muito mau caráter e que às vezes não posso me conter. — ruborizou-se
e o coração de Varian deu um desesperado tombo em resposta.
— Eu gosto de seu caráter — disse ele. — Eles também gostam. Foi o mais
excitante que aconteceu a todos nós em muitas semanas.
— Não quero ser excitante. Não é próprio de uma dama.

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— Eu a quero tal e como é.


— Cala.
— É verdade — disse ele com firmeza. — Eu a quero muito. E pedi muito a
você. Não posso ser feliz sem você, Esme.
— Eu… me alegro — disse ela. — Tem razões para ser infeliz.
Varian passou a seu lado e fechou a porta.
— Estão nos esperando, Varian — disse ela em voz baixa e tremente.
— Nunca janto antes da oito.
Os olhos dele posaram sobre a andrajosa colcha. Isso era um engano,
disse a si mesmo, e ele era um egoísta e um vil. Mas também estava
desesperado.
Agarrou a Esme pela cintura, deixou-a sobre a cama e logo se ajoelhou
diante dela.
— De qualquer modo, tenho que pôr ao dia dois meses de deveres
conjugais.
Os formosos olhos de Esme se encheram de dúvidas… e também de
paixão.
Varian baixou o olhar. Podia fazê-lo melhor, disse a si mesmo. Sabia como.
Era a única coisa que sabia fazer bem.
Tirou-lhe uma delicada e elegante bota de meio cano e lhe acariciou o pé.
— Seda — disse ele com voz suave. — Só uma concubina poderia vestir
seda nos pés. — Ficou olhando. — Já desejava você então.
— Porque é um pícaro.
— Sim.
Varian tirou a outra bota. Logo, muito lentamente, subiu com as mãos por
sua perna e soltou a cinta-liga de renda. De novo lentamente, baixou uma das
meias. Ela dobrou os pés. Continuando, ele soltou a outra cinta-liga e baixou a
outra meia com a mesma deliberação. Ela estremeceu.
Varian lhe acariciou as pernas nuas, subindo o vestido de musselina até os
joelhos. Beijou-lhe os joelhos. Varian se embriagou de seu aroma. Seus dedos
apertaram as coxas dela. Olhou-a fixamente naqueles olhos verdes como a
selva mais profunda. Atentos. Espectadores.
Varian sentiu um calafrio. Suas mãos trementes se moveram rapidamente

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até os colchetes de suas costas. E logo usou de novo seu tempo para que seus
dedos desfrutassem da pele cremosa dela, enquanto soltava o vestido e o
baixava até a cintura, para que logo passando mais abaixo dos quadris
acabasse caindo ao chão.
Levava uma blusa de gaze, bordada com umas faixas de renda que
formavam uma tira de dobra rosa. As rosadas pontas de seus seios estavam
já duras, tremendo contra o fino tecido da blusa. Ele começou a respirar com
dificuldade.
Com os dedos rígidos, pelo esforço que fazia para não apressar-se, Varian
tirou lentamente as presilhas do cabelo. Escorregando por seus dedos, as
tranças caíram sobre os ombros.
— Granadas e pérolas — murmurou ele, com uma voz que parecia chegar
da névoa. — Quanta falta senti de vê-la. E acariciá-la.
— Eu não senti muita falta — disse ela secamente. — Estive muito
ocupada.
Varian se deu conta de como seus seios subiam e baixavam rapidamente.
— Mentirosa.
Ela estalou a língua. Mas seus olhos diziam muito mais que a sua
acelerada respiração. Em sua verde profundidade se podia ler o desejo, um
desejo que fazia com que lhe doesse o coração.
Varian tinha vontade de tombá-la na cama e possuí-la ali mesmo, naquele
momento, e deixar que a angústia que sentia se queimasse na selvagem fúria
da paixão.
Mas em lugar disso, ficou de pé, com os olhos fixos nos dela, e tirou a
roupa. O sombrio olhar de Esme percorreu toda a longitude de seu torso,
detendo-se por um momento ali onde seu desejo era tão descaradamente
evidente.
— Como pode observar — disse ele com voz rouca, — seu marido está
preparado para cumprir seus deveres.
Da garganta dela saiu um som afogado.
Varian o silenciou com um beijo rápido e apaixonado. Logo levantou a
blusa por cima da cabeça e a tirou jogando-a de lado.
— Impaciente por cumprir seus deveres — se corrigiu ele.

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Ele deu uma suave cotovelada e Esme se inclinou para trás sobre a cama.
Ajoelhando-se entre as pernas dela, deitou-se em cima, e tomou a boca em
um beijo feroz e profundo que fez Esme esmagar-se no colchão. Logo se
afastou para dirigir-se a seus seios. Ouviu como ela segurava a respiração,
mas não teve pressa em tocá-lo. Começou a acariciá-la com as mãos e logo
com a língua. Esme simplesmente aceitava suas carícias respondendo a elas
com um ligeiro ofego.
Varian ergueu a cabeça e ficou olhando. Tinha os olhos desfocados e
sonolentos, mas neles se podia distinguir um brilho.
— Esme.
— Me diga.
— Desejo você.
— Sim. Me deseje.
Fechando os olhos, ela deixou escapar um gemido gutural.
As mãos de Varian se fecharam sobre seus seios. Ela se moveu
sinuosamente e o mais leve dos sorrisos curvou seus lábios.
— Desejo você agora — disse ele com voz rouca.
Lentamente, ele deslizou suas mãos sobre o esbelto corpo dela até as
deixar repousar na parte baixa do ventre de Esme.
— Não. Agora não.
Ele engoliu um grunhido.
— Não, antes quer me deixar louco.
— Sim.
— Em vingança.
— Não. Sim.
— Muito bem, senhora — resmungou ele.
Voltando tomar a boca dela com beijos apaixonados, começou a tocá-la e a
acariciá-la, fazendo-a arder com sua fogosidade. Ela deixava escapar suaves
gemidos e ofegos, e se retorcia sob suas carícias sem pressa. Mas ele sentia
prazer vibrando com ela, sentindo como aumentava a urgência dela, enquanto
beijava cada centímetro de sua pele sedosa.
Todas as habilidades que tinha chegado a aprender se converteram em
uma atormentada busca, para conseguir que Esme se deixasse levar de uma

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maneira totalmente selvagem, como só ela podia fazer, e tal e como ele
desejava tê-la. Então, mesmo quando Esme se preparou para acariciá-lo,
com suas fortes mãos apertando-o contra ela, Varian ainda queria mais.
Mesmo quando ela estava completamente enlouquecida, gemendo e rendida
de uma vez, ele seguia querendo mais. Então, quando ela apertou seu quente
e desejoso corpo contra o de Varian, suas palavras se transbordaram: não às
singelas palavras carinhosas de um amante experiente, a não ser duras
verdades. De remorso, pena e solidão… e algo mais. Essas últimas palavras
foram as mais dolorosas de pronunciar para ele, as palavras que lhe
queimavam a garganta.
— Quero você, Esme.
Ela colocou sua boca sobre a dele, como se quisesse tragar aquelas
palavras.
— Quero você — repetiu ele.
O som daquela frase retumbou no quarto às escuras. E o disse uma e
outra vez, e aquelas palavras ficaram penduradas no ar enquanto ele se
introduzia nela…, e a levava até o êxtase…, e logo derramava seu amor sobre
os esfarrapados lençóis.

Capítulo 28

Esme estava entre os braços de seu marido, escutando sua respiração que
pouco a pouco se relaxava. Sentiu a tensão que crescia entre eles no momento
em que seus corpos começaram a tranquilizar-se.
As palavras que ele havia dito a tinham feito sentir-se embriagada de
felicidade. Agora se dava conta de que o que tinha ouvido não tinha sido outra
coisa que a loucura da paixão. Tentava persuadir a si mesma de que a paixão
era suficiente; era um milagre que ele ainda a desejasse, aquele homem para
quem o desejo não era mais que um capricho passageiro.
Embora ela não fosse um capricho, para ele tinha que representar uma
aberração. Não era formosa nem elegante nem tinha nenhuma habilidade
como amante. Vindo de uma etnia que ele considerava de selvagens, ela tinha
introduzido na vida de Varian o que ele menos queria e mais desejava evitar:

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miséria, confrontação, violência.


Tinha dado uns tropeções ao casar-se com ela sozinho porque a luxúria o
tinha feito perder a razão. Naqueles dois meses que tinham estado separados,
certamente tinha tido ocasião de pensar melhor. Embora ela fosse sua esposa,
quisesse ou não, não tinha por que ser a mãe de seus filhos. Ele não ia sujar o
nobre sangue dos St. George com o daquela bárbara de mau caráter.
Quando lhe acariciou um ombro, ela ficou tensa.
Varian ergueu a cabeça e ficou olhando. Ela fixou o olhar no teto.
— Esme.
— Dorme — disse ela. — Deve estar esgotado.
— Está zangada. — Suspirou. — Pensei que não perceberia. Mas foi uma
idiotice de minha parte, não foi?
— Não sei do que está falando. Durma, Varian.
— Não. Temos que discuti-lo. É algo que teríamos que ter feito muito
antes, se eu tivesse tido um mínimo de previsão. Mas não tive.
Rodeando-a com os braços, voltou seu rosto para que o olhasse.
— Tenho dois irmãos menores na linha de herança do título — disse ele. —
Eu sempre os considerei assim, por óbvias razões. Você não está obrigada a
me dar um herdeiro, Esme.
— Entendo. Não quer ter filhos.
— Não se trata disso. Nossa situação já é bastante difícil, quase
impossível, de fato. — Sua voz estava tensa de amargura. — Nos contos de
fadas, o príncipe e a princesa se casam e vivem felizes, depois de tudo. Mas eu
não sou um desses príncipes de coração puro. Tomei sua inocência sabendo
que não era certo. E logo me casei contigo, o que foi ainda mais abominável. E
agora nós dois estamos pagando por isso. Não queria que também tivesse que
pagar um menino inocente.
Ele a tinha abraçado com força, e em sua voz podia denotar a dor tão
grande que sentia. Aquelas palavras que para ele pretendiam ser calmantes,
não fizeram mais que confirmar os temores dela. Amaldiçoou-se a si mesmo, e
amaldiçoou seu desejo. Mas aí estava ela, seu objeto de desejo, que tinha
abandonado tudo por ele, e tinha feito que sua vida fosse desagradável e
anódina. Conforme passassem os dias, sua infelicidade destruiria o desejo que

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sentia por ela… e ela não teria nenhum filho. Não ficaria nem a lembrança de
sua paixão nem um menino concebido no amor, a quem ela pudesse querer
quando o pai se afastasse dela.
— Sinto muito — disse ela. — Só passamos uma noite juntos e já causei
angústia a você.
— É minha culpa. — Aproximou uma mão dela aos seus lábios. Sua boca
cálida se posou suavemente sobre os dedos de Esme. — Não queria que visse
esta desmoronada ruína em que vivo. Não queria fazer o amor nessa habitação
desmantelada.
— Não me importa onde façamos o amor, Varian. Não me importa onde
estejamos, enquanto esteja contigo. Embora seja por pouco tempo —
acrescentou ela precipitadamente.
— Mas sim lhe importam os filhos, e muito.
Sim, ela sentiu vontade de gritar; seus filhos.
— Ainda não tenho nem dezenove anos — se obrigou a responder, em
troca. — Há tempo. Muitos anos. Não me parece que minha única
oportunidade seja agora. — Seu coração começou a pulsar rapidamente com
ansiedade.
Ele sorriu.
— É obvio que não. É obvio que não tenho a intenção de seguir repetindo
essa experiência de contenção que me rompe os nervos durante o resto de
minha vida. Tem um grande talento para converter as boas intenções em nada.
Agir de maneira responsável esteve a ponto de me matar.
— Não foi… a maneira mais agradável de… acabar — disse ela sentindo
que lhe ardia o rosto.
Tocou-lhe o rosto ruborizado.
— Existem outros métodos, mas são igualmente desagradáveis, eu temo.
É preciso que incomode a minha delicada flor com os espantosos detalhes?
Ela já se sentia profundamente abalada, porque os métodos contraceptivos
pareciam um ato muito pouco natural. De qualquer modo, era consciente de
que ele estava tratando de distraí-la, de ser amável.
— Como de espantosos? — perguntou.
Ele riu entre dentes, e quando começou a descrever os preservativos feitos

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de intestino de ovelha ou de pele de pescado, Esme riu bobamente, apesar


dele.
— E prende isso com uma corda? — perguntou incrédula. — Como? Onde?
— Não seja tola. Onde imagina?
— Não parece que seja muito cômodo. Não deveria fazê-lo, Varian. Se
prender a corda muito forte…
A gargalhada que ele soltou fez o compungido coração de Esme aliviar-se.
Ele foi feito para rir, para divertir e para divertir-se. Porque aquilo o divertia,
Esme o animou para que lhe contasse tudo o que sabia a respeito: as esponjas
que alguns reformadores tinham ensinado a que utilizassem as mulheres, e as
diferentes beberagens de ervas que alguns empregavam. Também tomavam os
homens, alguns com água mel, suco ou arruda, outros com azeite de castor.
Existia um sem-fim de beberagens para tomar ou beberagens que se
aplicavam no corpo.
— Também há algumas pessoas ignorantes que pensam que fazer o amor
de maneira violenta previne a gravidez — disse ele rindo.
— Não são muito lógicos — disse ela. — Quantos meninos nasceram por
causa de uma violação? Como podem acreditar os civilizados ingleses nesse
tipo de tolices?
— Possivelmente são ideias ilusórias. E falando disso… — A mão dele
deslizou pelas costas dela até lhe segurar o traseiro.
— Oh, Varian, não é necessário que faça ilusões!
— Mas não é o que você quer, carinho?
Suas mãos se moviam de uma maneira muito terna. Mas até a suavidade
daquela carícia era mágica, fazendo com que ela desejasse mais, desejasse
tudo.
— É a ti a quem desejo — disse ela.
Necessitava dele. Mas sabia que havia algo mais que o desejo de seus
corpos. Ela queria tudo o que ele significava: seu depravado encanto, sua
desalinhada elegância, sua risada fácil…, seus pecados e as sombras que
obscureciam sua alma. E também seu dom diabólico, que era uma armadilha,
na certa, para uma mulher. Embora ela estivesse contente de estar preso
nessa armadilha. Tinha-lhe ensinado o que era o prazer, e sua elegância havia

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tocado sua endurecida alma de guerreira, e a tinha feito arder com sonhos e
delícias.
Ela queria tudo o que ele significava e queria ser sua por inteiro. Quando
ele estava dentro dela, durante aqueles longos momentos de união, Esme
podia chegar a acreditar que assim era, eternamente assim. Mas sabia que não
tinha direito a desejá-lo para sempre. Mas pelo menos tinha esses momentos.
— Me faça o amor, Varian — sussurrou ela. — Me faça o amor dessa
formosa maneira que você sabe.

Ninguém os incomodou. Outros, ao que parecia, cansaram-se de


esperar e tinham ido sozinhos ao Black Bramble. A casa estava em silêncio e a
noite já tinha caído. Na escuridão, Varian fez o amor com sua esposa uma vez
mais. Depois, não querendo desperdiçar dormindo as preciosas horas que
estariam juntos, ficaram a conversar.
Esme falou de seu professor de dança, de seu cabeleireiro e de sua
costureira, e do Percival, que sempre estava necessitado de alguém que o
apoiasse. Embora as histórias que contava o faziam rir, também doíam por
dentro. Deveria ter sido seu marido, não seu primo pequeno, quem praticasse
com Esme os passos de dança. Teria que ter sido com Varian que se queixasse
das presilhas do cabelo e dos espartilhos, e Varian tinha que ter sido quem lhe
explicasse a complexidade da etiqueta na Inglaterra.
Ao menos, consolou a si mesmo enquanto se deitava a seu lado, ela
estava ali para lhe contar aquelas coisas. Ao menos, ele podia desfrutar na
escuridão de sua voz de ligeiro acento estrangeiro. Tinha sentido falta daquela
voz, como tinha sentido falta da tumultuosa intensidade de sua presença.
Deveria estar contente de poder passar a noite com ela, mas em algum
momento para a meia-noite se deu conta de que tinha deixado a Esme sem
jantar.
Deu-lhe sua camisa para que vestisse, colocou as calças e pegou um
abajur de azeite, pois naquele momento as velas eram um luxo. À luz amarela
e fumegante do abajur a acompanhou até a cozinha. Ali deram boa conta dos
restos da comida que a nobre viúva havia trazido para a viagem. Prepararam
um jantar improvisado e se sentaram no chão diante da chaminé. Enquanto

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comiam, Varian começou a contar o que estava fazendo naqueles dias. Embora
os detalhes dos acertos da desmantelada fazenda eram aborrecidos, se não
mortificantes, deu-se conta de que se sentia muito melhor depois de contar-
lhe. Tratando de proteger a Esme da verdade, durante aqueles últimos meses,
só o que tinha conseguido era que ela se sentisse rechaçada.
Olhando o rosto dela enquanto falavam, Varian se deu conta de como ia
desaparecendo sua infelicidade, e ele mesmo começou a se sentir melhor. Mais
tarde, quando subiam juntos as escadas para o quarto, agradeceu com sua
maneira tão pessoal.
— Agradeço que me tenha contado todas essas coisas — disse enquanto
entravam no quarto. — Eu gosto de suas cartas com suas histórias divertidas e
seus inteligentes disparates, mas também quero saber quais são seus
problemas. — Olhou-o aos olhos. — Nunca antes tinha tido uma esposa e por
isso está confundido, mas eu vou explicar isso. Uma esposa não é uma
concubina, só para divertir e para o prazer. Com uma esposa pode discutir e
queixar-se, e aliviar seu coração assim como seu corpo.
Ele fechou a porta.
— Muito bem. Qualquer outra carta que eu envie a partir de agora não vai
conter nada mais que minhas queixas. Mas você tem que fazer o mesmo.
Porque não conta nada em suas cartas, sabe? — repreendeu-a ele.
— Porque não há quem possa decifrar minha letra. Jason dizia que ele
podia escrever com os pés com melhor letra que eu.
— Não tenho problemas para decifrá-la. E se quer saber minha feia
verdade você tem que fazer o mesmo. Espero que me envie longas e
detalhadas cartas de Londres. Assim terá que afastar-se de quem paquere
você, ao menos o tempo necessário para poder alardear deles.
Franzindo o sobrecenho, ela se virou sobre a cama.
— Não sei se poderia paquerar absolutamente. Ninguém disse-me como
fazê-lo. Ensinaram-me a dançar e a comer com vinte colheres diferentes, e o
que dizer isso ou aquilo. Mas ninguém me ensinou a paquerar.
— Nem sequer o sabichão do Percival? — virou-se a seu lado na cama e
arrumou os travesseiros para que Esme pudesse recostar-se comodamente. —
Então foi uma boa ideia que viesse primeiro a Mount Eden, querida. Essa noite

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aprenderá de um professor.

No dia seguinte, à hora que a carruagem de lady Brentmor


abandonava Mount Eden, sir Gerald Brentmor andava um lado para outro em
seu escritório, doente de ansiedade.
Assim que compreendeu que a rainha negra estava em casa de sua mãe,
ofereceu-se para ir recuperá-la. E também se ofereceu para levar com ele o
desconfiado Ismal.
— Espero que não pense que pode me tirar o sarro — tinha respondido
Ismal amigavelmente. — Há quase três dias de viagem de Londres até a casa
de sua mãe. Poderia escapar de mim pelo caminho, recolher a rainha negra e
partir para o estrangeiro. Isso suporia um risco estúpido e desnecessário. Não,
sir Gerald, você ficará comigo em Londres e faremos com que a rainha negra
venha até nós.
Depois de uma conversa decepcionante, sir Gerald foi obrigado a lhe
mostrar um convite da senhora Stockwell-Hume, a amiga mais íntima de sua
mãe. Ismal tinha imitado sua pulcra e bela caligrafia, mas o conteúdo da carta
que enviou à avó não podia ter sido melhor calculado, pois sua intenção era
que a nobre viúva fosse para Londres imediatamente.
Não houve maneira de convencer ao Ismal de que não tinham a segurança
de que a rainha negra viajasse com eles a Londres, porque pelo que eles
sabiam, Percival ou Esme, qualquer dos dois que a tivesse em seu poder
poderiam tê-la enterrado em Corfú ou no jardim da casa da avó.
— Na noite que chegarem disporemos de várias horas para memorizar a
casa — replicou Ismal, — porque verá como os serviçais ficarão adormecidos
em seguida por causa de um narcótico. Se não encontrarmos a rainha,
asseguro-lhe que terá que nos compensar de alguma outra maneira. Existem
várias alternativas, sir Gerald. E todas, lamento ter que dizê-lo, serão muito
mais perigosas para você que esse singelo assunto de encontrar a rainha
negra.
O barão se deteve em meio da sala e ficou olhando desesperado o jogo de
xadrez. O resto parecia estar assegurado. Tinha extorquido suficientes homens
e mulheres para saber que a chantagem não terminava nunca. Mas mesmo

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assim, estava seguro de que inclusive uma cópia da carta do Bridgeburton


poderia destruí-lo. Somente aquelas palavras já diziam o bastante para pôr em
marcha uma investigação… ao final da qual haveria uma corda ao redor de seu
pescoço.
Tirou seu relógio de bolso. Era uma em ponto. Sua mãe lhe tinha escrito
que chegaria antes do anoitecer. O tempo corria depressa, e ainda não tinha
lhe ocorrido a maneira de escapar das intrincadas redes de Ismal. Nem sequer
podia sair de sua casa. Cada vez que tinha tentado, um robusto guardião se
havia interposto em seu caminho. Não tinha sentido tratar de explicar que
tinha entrevistas de negócios que atender. Aquele bruto não falava inglês e só
sabia cinco palavras que, evidentemente, tinha aprendido de cor:
— Volte para casa, por favor.
Aquele homem estava sempre de guarda, fosse na primeira hora da
manhã como durante a noite. Sir Gerald ao final se deu por vencido.
Deixando escapar um lastimável suspiro, sentou-se à mesa, junto ao jogo
de xadrez. Ismal se tinha introduzido em sua casa quando todo o serviço
estava dormindo. Havia dito que tinha vindo para conversar. E para jogar
xadrez. Tinham jogado uma partida cada noite, e cada noite Ismal tinha
ganhado. Era muito bom jogador. Quase se podia imaginar que era capaz de
ler a mente de seu oponente.
Jason tinha uma maneira de jogar muito parecida, lembrou-se sir Gerald.
Aterradoramente perspicaz; exceto, é obvio, em uma ocasião, quase um
quarto de século antes.
Mas se seu fantasma estava por ali, deveria estar agora ao redor dele.
Aquilo devia parecer uma perfeita vingança: sir Gerald tinha suportado já seis
dias de purgatório e ainda ficava por suportar o inferno.
Agarrando a humilde substituta da rainha negra, amaldiçoou a si mesmo
no momento de pânico no qual tinha decidido dar o original ao Risto. Se não
tivesse sido por isso, agora mesmo poderia ter vendido aquele jogo de xadrez,
e ao menos teria podido dispor de cinco mil libras para começar uma nova vida
no estrangeiro.
Se sobrevivesse naquela noite, teria que partir da Inglaterra com apenas
nada. Seus patrícios em seguida o teriam por um assassino e um traidor.

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Aquilo possivelmente acabaria com a vida de sua mãe. Isso seria de muito
pouco consolo, já que não ia poder colocar as mãos em seu dinheiro. A família
ficaria desonrada, até mesmo Edenmont, já que tinha se casado com um
membro da família. Sir Gerald meneou a cabeça. Esse era outro pobre consolo.
Edenmont tinha estado fazendo um bom papel de santarrão, obviamente
para ganhar o favor da nobre viúva. Depois de negar um pequeno crédito a
seu próprio filho, a anciã tinha começado a dilapidar a fortuna na pequena
puta bárbara e sem educação que tinha por neta. Oh, sim! Jason estaria se
divertindo muito em sua tumba. Todos os esforços que tinha feito Gerald para
separar da família à ovelha negra não tinham servido para nada. Os
descendentes de Jason: Percival e aquela pequena vagabunda, junto com o
dissoluto barão ficariam com todo o dinheiro da nobre viúva.
— Ria quanto quiser, sujo bastardo — grunhiu sir Gerald. — Sempre teve
tudo: boa presença, inteligência, encanto. E todas as mulheres, todas. Tinha
montões de mulheres a seus pés, mas também queria ter a ela. Mesmo
quando já era minha, teve-a e ela deu a luz a seu filho bastardo.
Por mais baixo que tivesse falado, aquelas palavras pareceram ressonar
como um eco pela habitação em silêncio. Estava falando sozinho. Pior ainda,
estava falando com um morto.
Com mãos trêmulas, sir Gerald deixou a rainha em seu lugar. Mas ainda
não estava acabado, disse a si mesmo. Tinha sido um bom competidor de seu
irmão quando ele tinha a idade do Ismal. E agora Jason estava ardendo no
inferno, onde só o diabo ri.
Tinha que acalmar-se e concentrar-se nas prioridades. E a maior nesse
momento era sair daquela derrota com vida.
Sentou-se olhando o jogo de xadrez, com a cabeça trabalhando a toda
velocidade, até as quatro em ponto, hora em que o mordomo anunciou que a
carruagem de lady Brentmor acabava de chegar.
Às cinco em ponto, o baronet se encerrou com sua mãe em seu escritório.

— Alguém poderia nos ver — objetou Percival.


Esme olhou ao redor no pequeno jardim que cercava a casa de sir Gerald.
— Não daqui de fora, a menos que possam ver através das paredes. E

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todos os criados que estão dentro, estão muito ocupados — disse ela tirando
os sapatos.
— Não poderá ficar de pé no batente. Eu já o tentei antes. Não conseguirá
manter o equilíbrio. É muito estreito.
— Conseguirei se subir em seus ombros.
— Não poderá ouvir muito mais do que ouviríamos de dentro, estão com
as janelas fechadas.
— Não totalmente.
Dando uns passos para trás, Percival olhou para cima. Apesar das cortinas
estavam fechadas, a janela estava ligeiramente entreaberta. Fazendo uma
careta, voltou de novo ao lado de Esme, entrelaçou as mãos e se inclinou a seu
lado para ajudá-la a subir.
— Não vai nos descobrir — prometeu ela enquanto apoiava um pé nas
mãos de seu primo. — Tem que confiar em mim.

Ismal não precisava ver através das paredes. Somente tinha que olhar
através de uma pequena fresta da porta do pátio.
Sorrindo, voltou-se para Risto.
— Está espiando o seu tio com a ajuda de seu primo. Esta garota é muito
divertida.
Risto franziu o cenho.
— Não vai ser nada divertido se chamar a atenção através da janela. E se
guardou em uma caixa de segurança a peça de xadrez?
— Então sir Gerald poderá ver isso quando todos estiverem dormindo — foi
a resposta de seu amo.
— Não gosto nada disso. A velha trouxe muitos criados com ela.
— E todos vão comer e beber assim como seus amos. Os mais gulosos
ficarão adormecidos em seguida. E outros terão a cabeça muito embotada para
pensar. Enquanto isso, atuaremos nós, tão silencioso e rapidamente como a
morte.

— Tinha que ter pensado melhor antes — disse a anciã com frieza. — Teve
montões de ocasiões para ser amável com a garota. Mas a deixou abandonada

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em uma ilha perdida e veio para casa com a intenção de envenenar minha
mente contra ela. Não é que isso me surpreenda. Sempre sentiu
ressentimentos por tudo o que tinha a ver com o Jason. Sempre teve ciúmes
dele.
Ela tinha sentado na poltrona grande que havia atrás da escrivaninha. Sir
Gerald estava de pé, ao lado da mesa de xadrez. Acabava de erguer a taça de
vinho para levar à boca. E nesse momento se deteve.
— Sim, ciumento. Mas eu não fui o único que convenceu o papai de que
tinha que deserdá-lo. Nem fui o único que convenceu a Diana para que
rompesse seu compromisso com ele.
— Eu o fiz pelo bem dela, e o resto foi pelo bem da família. Teria nos
levado a ruína.
— Fez para castigá-lo, porque seu precioso menino não queria fazer o que
tinha planejado para ele. Havia me dito que voltou arrastando-se até você,
pedindo perdão, prometendo que ia ser um bom menino. Mas não o fez e
agora está morto. E você não aprendeu nada.
— Aprendi que voltar ao passado não conduz a nada. — Olhando-o com
desagrado, tomou um gole de vinho. — E isso não vai fazê-lo ganhar meu
favor, Gerald.
Ele deixou lentamente sua taça sobre a mesa.
— Nunca ganhei nem um só favor seu em toda minha vida, apesar de que
sempre fiz o que você queria. Me dedicar aos negócios enquanto você
preparava uma carreira parlamentar para o Jason e buscava por esposa à filha
de um conde, e ficar com ela quando ele partiu. Ficar com Diana e ter que me
casar com ela ao final, porque não se preocupou por me buscar algo melhor. E
sempre mantive a boca fechada a respeito de suas infidelidades, até da mais
intolerável de todas.
— Ela nunca foi infiel — falou a anciã. — Você a fez desgraçada, mas ela
aguentava tudo, apesar de dizer-lhe que não era necessário que o fizesse.
— Sim que o aguentava, sim, mamãe. E me fez manter o filho bastardo de
meu irmão…
— Nunca acreditei nisso. — Lady Brentmor meneou a cabeça. — Faz muito
tempo que aprendi a não acreditar em nada do que me conte. Sempre está

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acusando a outros de seus problemas. Agora joga a culpa de tudo em algo que
aconteceu faz vinte e cinco anos?
Seu filho se aproximou e se inclinou sobre a escrivaninha.
— É você que está removendo o passado. Empenhada em manter a filha
de Jason com você quando seu lugar é estar ao lado de seu marido.
— Ele não pode mantê-la. Está quase totalmente arruinado.
— E você se encarregará de que continue estando, não é verdade? Não
quero nem saber como vai conseguir. Não me diga que Percival não disse nada
a eles da peça de xadrez. Ele sabia do testamento de Diana antes que eu me
inteirasse, não me cabe nenhuma dúvida. Havia poucos segredos que não
contasse ao menino. Pode ser que só um — acrescentou ele com amargura.
— Edenmont não sabe nada do jogo de xadrez, e isso vai seguir sendo
assim. — Nos olhos dela brilhou uma advertência. — Não tem sentido lhe
contar nada, já que isso não ia fazer nenhum bem a ele.
— É obvio que não — replicou sir Gerald. — Não mas bem do que me faz,
com uma peça perdida.
Ele se deixou cair em uma cadeira ao lado da mesa de xadrez.
— Também poderia deixar que ele a tivesse. Ao menos desse modo eu não
seria responsável pela maldita peça.
— Você não vai fazer nada a respeito. Esse assunto eu o dirigirei da minha
maneira.
Ele olhou para outro lado, para que ela não pudesse ver o triunfo em seu
rosto. Já tinha dito tudo o que ele queria saber. Estava tão decidida que a filha
de Jason ficasse com ela que não entregaria a Esme o dote que Edenmont
necessitava tão desesperadamente. Mas por que ia se preocupar com isso a
velha bruxa, quando o jogo tinha muito menos valor com uma peça faltando?
Preocupava-lhe, respondeu-se ele, porque ela sabia que a rainha negra não
tinha desaparecido. Tinha-a ela, ou ao menos sabia onde estava. E essa era a
razão pela qual ainda não tinha pedido o jogo de xadrez. E essa era a única
razão pela qual não ia deixar que ela o desse agora a Esme. Egoísta e
desumana velha bruxa.
— Sei quais são suas intenções — disse ele. — Manter-nos a todos bem
amarrados, como se fôssemos bonecos, nas correias de sua bolsa. Mas não a

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mim, já não, querida mamãe. Estou arruinado, já não tenho nada que perder.
Ela entreabriu os olhos.
— Espero que não esteja me ameaçando.
Sir Gerald agarrou a rainha negra substituta.
— Acredito que minha sobrinha deveria saber a verdade.
— Quer dizer sua retorcida versão da mesma. Não acreditará em você.
— Pode ser que não — disse ele sorrindo à peça de xadrez. — Mas isso não
importa absolutamente. Como já disse, não tenho nada a perder.
Lady Brentmor deixou sua taça na escrivaninha e entrelaçou as mãos
apoiando-as sobre ela.
— Já supunha que estava tramando algo. Quanto quer?

Embora tivesse estado falando em voz baixa, Esme tinha ouvido tudo o
que precisava saber: quem não queria dar seu dote era sua avó, e todas
aquelas advertências a respeito de sir Gerald não eram nada mais que
mentiras. A razão era óbvia. Esme se casou com um homem que não contava
com a aprovação de lady Brentmor. Dado que a obstinada anciã não podia
dissolver o matrimônio, estava tentando uma segunda opção. Pensava que
possivelmente Edenmont poderia conduzir-se a uma morte prematura ou
chegar a um dos inesperados finais dos quais estavam acostumados a se
orgulhar os homens que viviam ao limite. A nobre viúva se divertiu vendo os
esforços que estava fazendo Varian para reconstruir os restos de sua herança.
Por sorte, Percival não tinha ouvido nada. E pareceu dar-se por satisfeito
com o breve resumo que Esme lhe fez, de uma vez que aparentava estar
zangada.
— Ele só quer dinheiro — disse ela. — E ao final a avó esteve de acordo
em lhe dar um pouco.
— Como deveria ter feito desde o começo.
Esfregando as costas, Percival caminhou cambaleante para o estreito
terraço que dava ao salão da casa e se desabou sobre um banco.
Esme se sentou ao seu lado e começou a lhe dar uma massagem nos
ombros doloridos.
— Pergunto-me por que não tentou suborná-lo. Havia me dito que estava

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desesperado por conseguir dinheiro. Mas imagino que o suborno vai contra
seus princípios.
Percival franziu o sobrecenho.
— Eu não estaria tão seguro…, nunca se pode estar seguro do que pensa a
avó… ou papai. — Seu olhar preocupado se cruzou com o de Esme. — Nenhum
dos dois falou do jogo de xadrez? Estava aí, bem diante de seus narizes. Vi-o
quando o criado entrou com o vinho.
— Pode ser que tivessem falado disso antes que eu aparecesse à janela —
respondeu Esme com calma.
Esme tinha vontade de partir dali para pensar. Por outra parte, supunha
que Percival sabia mais dos segredos dos mais velhos do que deixava ver.
Desde que tinham chegado a Londres o via muito inquieto.
— Não tem importância — disse ele. — A avó não devolverá nunca a
rainha negra. Se o tivesse feito, papai já teria vendido o jogo de xadrez.
— E o que seja legalmente meu não o deteria.
— Não, quando significa tanto dinheiro. Levaria o dinheiro e diria que o
tinham roubado ou algo pelo estilo e… — Ruborizado, Percival acrescentou com
pressa: — Mas ele não tem a rainha, de modo que o jogo está completamente
a salvo, e espero que a avó não diga que a tem até que não esteja segura de
que ele não pode se apoderar do jogo.
As mãos de Esme se detiveram.
— Sim, suponho que a terá escondido em um lugar muito seguro. Em
algum lugar na casa de campo.
— Oh, sim, sim, é obvio! Está a muitas milhas daqui. Bem a salvo das
mãos de papai — foi a precipitada resposta dele.
Muito precipitada. O pobre menino sabia que não estava a milhas dali. E
agora também ela sabia. Esme ficou de pé com uma expressão no rosto que
não revelava nada mais que afeto por seu primo.
— Então não temos que nos preocupar com nada — disse ela.
Percival ficou olhando seus sapatos.
— É obvio que não. Não temos que nos preocupar com nada
absolutamente.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Capítulo 29

— O cozinheiro vai ficar triste —disse sir Gerald a sua sobrinha. — Não
comeu mais que uma colherada de seu famoso doce de leite. Ou acaso parecia
ter muito licor? Também me parecia isso, mas eu nunca fui muito guloso.
No instante em que Esme tinha entrado em sua casa de Londres, sir
Gerald tinha estado asquerosamente amável, e muito mais depois de ter se
reunido com sua mãe. Certamente lhe pagou generosamente, pensou Esme.
A jovem esboçou um sorriso de desculpa.
— Eu gosto muito de doce de leite, tio, e espero que diga a seu cozinheiro
que é o melhor que já provei. Todos os pratos foram deliciosos. Mas tenho
uma dor de cabeça que me tirou o apetite. Amanhã estarei bem e poderei
contentar ao cozinheiro.
Percival olhou ofegante a sobremesa dela.
— Não fique olhando como um cachorrinho faminto — disse sua avó. —
Pode comer também sua sobremesa. Já acabou com cada um de seus pratos.
Certamente, Percival tinha comido tanto como se fossem enforcar-lo na
manhã seguinte. Pelo menos tinha devorado duas enormes porções de cada
prato, e ainda deu conta de tudo o que Esme deixou. Ela sentia que seu apetite
aumentava na proporção de sua ansiedade. Sua consciência estava lhe
causando problemas. Como tinha que ser.
Sir Gerald dirigiu um paternal olhar de aprovação a seu filho.
— Depois de tudo, o menino está em idade de crescer.
O menino em idade de crescer piscou ao ver a afetação paternal e no
momento se apoderou da sobremesa de Esme e um segundo depois deu boa
conta dele.
O olhar amável de sir Gerald voltou a posar-se em Esme.
— Lamento que não esteja bem. As dores de cabeça podem ser terríveis.
Eu também as padeço às vezes. Quer que eu dê um pouco de láudano?
Esme aceitou sua oferta e após um momento se desculpou e se levantou
da mesa.
Enquanto os outros se reuniam no salão para tomar o chá, ela subiu e fez
uma rápida inspeção no dormitório de sua avó. Tendo refletido já a respeito da

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situação, não perdeu muito tempo. Ou a peça de xadrez estava em cima


guardada pela anciã, ou estaria escondida onde nem sequer os criados
pudessem topar-se com ela, mesmo querer. O que significava que devia tê-la
escondido em um lugar que não fosse limpo diariamente. E tampouco estaria
em um lugar com fechadura, como uma gaveta ou um joalheiro, porque
alguém poderia roubar a chave. E não havia lugar mais óbvio que debaixo da
cama.
Esme só levou uns minutos para encontrar a pequena caixa escondida em
um canto debaixo do colchão. Assegurou-se de que a peça estivesse realmente
ali dentro antes de deixar a caixa em seu lugar. Não se atreveu a roubá-la
nesse momento. Certamente a anciã comprovaria se estava ali antes de ir para
a cama. Para Esme bastava no momento saber onde estava a peça.
Saiu rapidamente do quarto, e chegou a seu dormitório antes que se
apresentasse Molly trazendo uma pequena jarra de limonada e a garrafa de
láudano.
A donzela parecia tão lenta e atordoada que Esme se perguntou se teria
estado bebendo. Não que isso importasse para Esme. Ficou muito contente de
ver que sua sonolenta donzela desaparecia logo que preparou a cama de sua
senhora.
Quando Molly se foi, Esme esvaziou toda a jarra de limonada e uma
pequena porção de láudano no urinol. Se alguém olhasse ali, pareceria que
tomou o remédio como uma boa menina. Abriu a porta um pouco, meteu-se na
cama e se dispôs a esperar.
Depois do que lhe pareceu muitas horas, ouviu o Percival resmungando
algo ao criado que o acompanhava. Mais tarde, resmungava lady Brentmor
passando diante de sua porta. Um pouco depois, ouviu a voz de seu tio.
Certamente tinha se detido só para dar a boa noite a sua mãe, porque no
momento ouviu seus passos leves enquanto se aproximava de seu próprio
quarto, a qual, graças a Deus, estava na outra ala do edifício.
Esme seguiu esperando, apesar de que a casa ficar no silêncio. Pareceu-
lhe que tinha esperado várias horas mais, mas quando soou o relógio da sala a
surpreendeu contar só dez badaladas.
Era estranho que todos estivessem deitados já há uma hora tão cedo. No

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campo, sua anciã avó poucas vezes se retirava antes da meia-noite, e os


criados sempre ficavam acordados ainda um pouco mais.
Então Esme se lembrou de que o criado que tinha servido a comida parecia
tão sonolento como Molly. Sir Gerald tinha dado um festim para jantar, para
celebrar a chegada de sua sobrinha, havia dito. Evidentemente, os criados
também tinham decidido celebrá-lo. Não é que tivessem que beber muito, se é
que tinham comido bastante doce de leite. Tinha muito mais licor que qualquer
doce de leite que tivesse provado antes. Possivelmente até Percival estaria
bêbado depois das três porções que tinha devorado, mais o copo de vinho que
seu pai lhe tinha permitido tomar naquela noite.
Muito melhor, pensou Esme, enquanto se levantava da cama e colocava de
novo o vestido. A família dormiria profundamente por seu abuso de comida.
Isso não só tornaria mais fácil sua tarefa, mas até ajudaria a começar antes.
Esme abriu a porta completamente e ficou escutando. A casa estava
totalmente em silêncio.
Saiu para o corredor com passo cauteloso e abriu primeiro a porta do
dormitório de Percival. Não ouviu ranger a cama, só o som de uma respiração
monótona. À luz da lua, viu suas calças e sua camisa cuidadosamente
dobradas sobre uma cadeira. Depois de refletir um momento, entrou no
quarto, pegou a roupa de seu primo e voltou a sair depressa, fechando a porta
atrás dela sem fazer ruído.
O quarto de sua avó estava tão em silêncio como a de Percival. Da cama
chegou o monótono som de seus roncos. Esme ficou de cócoras, aproximou-se
da cama, tirou a caixa com a rainha negra, extraiu a peça de xadrez e voltou a
deixar a caixa em seu esconderijo.
Em menos de um minuto, já estava de volta a seu quarto. Depois de
tampar a greta debaixo da porta com um travesseiro, acendeu uma vela.
Embora tivesse poucas coisas para empacotar, não queria ter que fazê-lo às
escuras.
Com mãos firmes, prendeu o cabelo com umas agulhas e o penteou em
forma de coque ao redor da cabeça. Logo vestiu as calças e a camisa de
Percival, desejando ter trazido as suas. Aquela roupa ficava bastante pequena,
e muito mais ajustada do que teria desejado. De qualquer modo, era preferível

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a usar um vestido. Na Inglaterra, as mulheres só eram objeto de todo tipo de


incômodo.
Em pouco tempo já tinha a bagagem feita. O pequeno pacote de roupa
cabia perfeitamente em um xale. Enrolou a rainha e várias agulhas de cabelo
em um lenço e o guardou no cinto das calças. Depois de colocar os
travesseiros debaixo dos lençóis de maneira que parecesse um corpo
dormindo, apagou a vela. Após um momento, já estava descendo pelas
escadas, com as botas em uma mão e o pacote de roupa na outra.
Apesar da escuridão e de estar em uma casa desconhecida, não ia ser
difícil encontrar a porta do escritório. Era a única que Esme esperava achar
fechada com chave. Percival tinha contado que o escritório dos Brentmor tinha
sido construído como uma câmara blindada, com paredes e portas de dupla
grossura. Quando ela e Percival haviam tentando escutar de dentro da casa
através da porta, não tinham sido capazes de distinguir nada mais que um
murmúrio, mesmo com as orelhas coladas à porta ou à parede da sala
contígua. Se a janela do escritório estivesse perfeitamente fechada, Esme
jamais teria descoberto a malvada e egoísta que era sua avó.
Esme se ajoelhou frente a porta do escritório e não sentiu nenhum pingo
de escrúpulos ou dor na consciência. O jogo de xadrez era seu com todo
direito. Logo poderia pôr nas mãos de Varian. Então averiguaria por fim se o
que o separava dela era somente sua pobreza. Se a verdade resultava ser mais
dolorosa, suportaria. Sempre era melhor saber a verdade.
Finalmente a fechadura cedeu. Esme abriu a porta e… ficou paralisada,
com os dedos ainda segurando a maçaneta. Havia luz na sala.
Mas uma rápida olhada lhe assegurou de que não havia ninguém dentro.
Deixaram as velas acesas, isso era tudo. Perguntou-se se isso seria só
esquecimento dos bêbados criados.
Esme ficou olhando a porta durante um momento, logo a fechou de novo.
Sim, era igual à da casa de campo: a parte baixa da porta encaixava
perfeitamente contra o chão. Não era estranho que não tivesse visto a luz. Mas
que pouco cuidadoso tinha sido seu tio ao deixar as velas acesas em uma sala
fechada. A casa podia ter ardido até os alicerces… a menos que tivesse
previsto retornar ali em seguida.

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Pensou que, se fosse isso, o ouviria chegar. Tratava-se de um homem


grande com uma pegada firme. Deixando a porta entreaberta, aproximou-se
do jogo de xadrez.
Abriu o xale e começou a meter nele as peças, escondendo-as entre os
diversos objetos de roupa. Não queria que uma só delas pudesse danificar-se.
Estava a ponto de voltar a amarrar o xale quando se lembrou da rainha negra,
que tinha guardado em um lenço no cinto das calças junto com as agulhas de
cabelo.
Quando estava desembrulhando a peça, uma das pedras da base se
enganchou no tecido do lenço. Soltou-a com muito cuidado. Mas De qualquer
modo parecia que tinha se quebrado, pois a base se afrouxou.
Engolindo uma maldição, aproximou a rainha à luz da vela. Ficou ali um
momento, observando-a com o cenho franzido, enquanto via algo que
pareciam ser fios entre o metal. Fez girar a base e esta se desenrolou
suavemente.
Muito inteligente, pensou. Nunca teria imaginado que a rainha estava
construída em duas peças. Perguntando-se para que a teriam feito assim, deu
uma volta. Estava oca. Ou estaria, se não contivesse um pedaço de papel
enrolado naquela cavidade.
Mesmo dizendo a si mesma que não tinha tempo a perder bisbilhotando,
acabou tirando o papel e desenrolando-o. Logo ficou olhando as quatro linhas
com perplexidade.
Não era possível, disse a si mesma. Mas mesmo sendo possível, aquilo não
tinha nenhum sentido.
Levantou o olhar do papel e ficou escutando um momento. A casa estava
tão silenciosa como uma cripta, e ela só precisou de um ou dois minutos para
descobrir se era certo o que estava começando a suspeitar.
Aproximando-se da escrivaninha, encontrou um lápis e um papel, e em
seguida começou a substituir as letras por suas equivalentes, como Jason lhe
tinha ensinado a fazer anos atrás. Aquele código tinha sido um dos jogos que
tinha ensinado seu pai para que suas aulas de latim fossem mais agradáveis.
Jason tinha aprendido aquele jogo de seu tutor, quando era um moço.
Esme se deu conta de que se tratava do mesmo jogo, pois as letras

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acabaram formando umas poucas palavras de um latim sem gramática:

Navis oneraria
Regina media nox
Novus November Preveza
Teli incendere M

Navio mercante. Reina… meia-noite. Próximo novembro… mas «Preveza»


não era latim. Era um porto ao sul da Albânia. Teli significava fêmea de javali,
dardo ou arma ofensiva de qualquer tipo. Incendere era «incendiar, queimar».
Queimar mil armas?
Esme estalou a língua com impaciência. E então uma luz se iluminou em
sua cabeça. Em Corfú tinha ouvido que no fim de outubro ou princípios de
novembro as autoridades inglesas tinham capturado vários barcos que se
dirigiam para a Albânia. Barcos carregados com armas roubadas dos ingleses.
Tratava-se da conspiração que Percival tinha falado. A conspiração de
Ismal. E a última linha se referia às armas de fogo, como rifles ou canhões. Mil
armas de fogo.
Mas Ismal não poderia ter obtido essas armas sozinho, não tantas. Teria
necessitado de ajuda. Esme só precisou dar uma olhada no escritório, repleto
de papéis escritos por sir Gerald, para dar-se conta de quem era a pessoa que
o tinha ajudado.
«Desde que voltou para casa, há um fedor ao redor de sir Gerald.»
Saberia a anciã? Possivelmente sim. Ou possivelmente não. Mas Percival
com certeza sabia.
Esme guardou a mensagem de novo em seu lugar, fechou de novo a base
da rainha e a colocou junto com as outras peças no xale. Teria todo o tempo
que necessitasse para resolver o resto daquele enigma de volta a casa.
Colocou em cima da chama da vela o papel onde resolvido a mensagem
codificada e atirou a folha ardendo à chaminé vazia. Quando já não ficavam
nada mais que cinzas, apagou a vela e saiu da sala.

Ismal franziu o sobrecenho quando viu pela janela apagar-se a luz do

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escritório.
— O sinal de que havia problemas, embora não devesse ter. Todas as
demais salas estão às escuras.
— Pode ser que seja uma armadilha — respondeu Risto.
— Teria que estar completamente louco para tratar de me trair agora.
Fique aqui e vigia. Vou falar com o Mehmet.
Ismal saiu pela porta do jardim à rua. Após um momento se encontrou
com Mehmet em seu posto de vigilância, ao lado da entrada de serviço.
— Ai, senhor! Respondeu as minhas preces — sussurrou Mehmet. — Me
disse que ficasse aqui, mas…
— O que aconteceu?
Mehmet fez um gesto para cima.
— A janela estava às escuras. Mas antes, durante um instante, vi uma luz.
E logo a sala voltou a ficar às escuras.
— Não havia luz em nenhuma outra sala?
— Não. Os criados só esperaram que se retirasse a família para irem
dormir. Dei uma olhada para dentro justo depois de ver luz no quarto dela.
Alguns dos criados não puderam nem chegar à cama. Há dois dormindo no
chão do salão, e outro que ficou dormindo com a cabeça apoiada na mesa. E
até há outro que ficou feito um novelo, como um menino, sobre o tapete que
há nos pés de sua cama.
— Mas acontece algo estranho. — Ismal ficou olhando a janela do
dormitório de Esme. — A vi escutando na janela do escritório faz um momento.
Posso imaginar o que estava escutando.
Mehmet se encolheu de ombros.
— Os criados estarão inconscientes durante várias horas mais. Não entrou
ninguém na casa. O que nos deixa só com um homem assustado, uma mulher
anciã e um menino, e a pequena guerreira. Mesmo se os quatro nos atacassem
de uma vez, a batalha ia ser divertida, isso é tudo. — ficou olhando ao Ismal.
— Possivelmente gostaria de brigar com ela.
— Cala. Segue vigiando sua janela… — Ismal olhou para outro lado. — É
melhor que me mantenha afastado dela. Faz me sentir como um estúpido.
— Podemos sequestrá-la facilmente e partir da Inglaterra antes que os

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outros despertem.
— Não. Não vou arriscar tudo por uma mulher. Nem um segundo de meu
tempo. Ela…
Ismal se calou de repente e fez um gesto a Mehmet com a mão, para que
se inclinasse para trás enquanto ele mesmo se esmagava contra a parede da
casa.
Após de um momento ouviram o som do trinco da porta. Esta se abriu, e
uma pequena figura saiu à escuridão. Esme, maldita seja… com uma bolsa de
pele pendurada no ombro. Só sua roupa… ou acaso também o jogo de xadrez?
Não havia mais que uma maneira de averiguá-lo. Esperou até que fechou a
porta por fora. Então, empunhando sua pistola, Ismal avançou para ela.

Não foi nada mais que um pesadelo, assegurou a si mesmo Percival.


Aquele homem grande e feio não tinha tirado os olhos de uma enorme pedra
com a forma de uma peça de xadrez.
De qualquer modo, Percival não podia abrir as pálpebras. Lentamente
levantou a mão, que parecia ser de chumbo e tratou de aproximá-la dos
olhos. Depois de procurar um momento, conseguiu e abriu as pálpebras com
os dedos.
O quarto estava às escuras, mas parecia que se movia. Preferiu não ver
nada. Deixou cair a mão sobre o colchão e tratou de fazer com que seu
entorpecido cérebro voltasse a funcionar. Deu-se conta de que sua cabeça só
queria pensar no doente que se sentia. Queria pensar em vomitar. Desejava
encontrar-se bem, mas isso dava muito trabalho.
Sentia a garganta como se alguém tivesse enfiado uma tocha ardendo.
Erguendo de novo a mão, aproximou-a da mesinha de cabeceira. Água. Estava
ali, em alguma parte. Mas não conseguia encontrá-la. Arrastou-se para a beira
do colchão e tentou de novo. Desta vez sua mão roçou a jarra. A água se
derramou pelo rosto. Tratou de lambê-la, mas sua língua se negava a
colaborar. Soltou um grunhido.
Tinha vontade de ficar quieto e voltar a deitar-se para dormir, mas aquele
pesadelo estaria esperando.
E, além disso, tinha algo importante que fazer.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Apoiando-se com os cotovelos no travesseiro, tirou uma perna pelo lado do


colchão. E a seguir a outra.
E então notou que começava a cair, afundando-se de uma maneira muito
lenta. Aterrissou sobre algo duro. O chão.
Imediatamente se sentiu horrivelmente doente. Deslizou sob a cama, tirou
dali o urinol e vomitou.
Depois daquele exercício seu corpo não se encontrava muito melhor, mas
de algum jeito a bruma que nublava sua mente parecia começar a dissipar-se.
Percival se deitou de lado, com a bochecha apoiada no chão, e tratou de
pensar. Uma vez tinha se embebedado, quando um de seus companheiros de
classe tinha roubado várias garrafas de porto do armário secreto do senhor
Saper. Mas as sensações físicas tinham sido totalmente diferentes.
Se não estava bêbado, então devia estar muito doente. Seu cérebro
sugeriu que alguém o tinha feito adoecer daquela maneira. Oferecia-se duas
possibilidades: (a) tinham-no drogado ou (b) tinham-no envenenado. O que
não fazia mais que confirmar suas suspeitas. Só que, nesse momento, não
podia recordar de onde vinham exatamente suas suspeitas.
O esforço por recordar fez com que chegasse outra onda de náuseas e
Percival teve um segundo encontro com o urinol.
Seu cérebro dava sinais de aprovação. Estava se oferecendo a cooperar.
Lembrou-se então da carta da senhora Stockwell-Hume, que tinha encontrado
enrugada na chaminé vazia do Mount Eden. E se lembrou da estranha
sensação que tinha tido no jardim, aquele mesmo dia, de que alguém os
estava observando. E possivelmente havia algo mais, mas não era suficiente
para ajudar ao Percival a recordar o que tinha decidido fazer. Aquela mesma
noite, antes que acontecesse o que estava acontecendo. Não sabia exatamente
do que se tratava. Só que agora parecia estar acontecendo de verdade. Tinha
que deter tudo aquilo.
Tentou ficar de pé, mas não pôde. O esforço o fez voltar de novo para o
urinol. Depois disso, seu cérebro se clareou o suficiente para lhe sugerir que,
se a pessoa não pode andar, sempre pode tratar de arrastar-se. E logo o
advertiu para que tomasse cuidado de não cair rolando pelas escadas.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Varian atou seu cansado cavalo ao poste e agarrou a andrajosa manta de


montar da sela. Não esperava que o convidassem a passar a noite na casa. Até
mesmo duvidava que o deixassem entrar. Embora ainda não fosse meia-noite,
a casa dos Brentmor estava totalmente às escuras. Mas pelas ruas ainda
passavam carruagens que levavam às pessoas de uma festa a outra, e pessoas
que caminhavam perdendo o tempo, por não falar dos jovenzinhos que
procuravam a ocasião para fazer alguma travessura. Mas ele levava dentro da
manta suas pistolas, já que não tinha vontade de ter que enfrentar no futuro
às finezas de outro par de valentões.
Erguendo a vista para a luxuosa casa, Varian esperou não ter chegado
muito tarde. Casada ou não, Esme não tinha ainda dezenove anos. Tinha
direito a experimentar toda a alegria da temporada social londrina como
qualquer outra jovem moça inglesa. Não podia ficar encerrada em casa. Nem
tampouco podia aparecer em público com ela. Tinha o aspecto de um mendigo.
Ainda não estava seguro do por que tinha vindo. Tinha visto Esme partir
de Mount Eden, tinha visto a carruagem perdendo-se pelo poeirento caminho,
e logo havia tornado a entrar em sua casa… para dar-se conta de que não
podia suportar. Pôs-se a trabalhar sem descanso, só para saber que não era
capaz de concentrar-se em nada. Passava-se algo pela cabeça e erguia a vista
para detê-la quando a visse passar a seu lado, para chamá-la…, mas então se
dava conta de que ela não estava ali. Tinha-o feito um montão de vezes, e
quando se lembrava de que se foi se sentia sobressaltado. Não tinha
experimentado nada como isso desde a época que seguiu à morte de sua mãe.
Precisou passar um ano para que deixasse de olhar de um lado a outro,
procurando-a.
Mas já não era um moço de dezesseis anos, disse Varian a si mesmo.
Esme não era sua mãe e não tinha morrido, não tinha ido para sempre. Só
estava a umas horas, em Londres, onde estaria passando uns dias
maravilhosos, porque todos ali se teriam apaixonado por ela. Estaria
paquerando, como a tinha ensinado a fazer na última noite.
Então lhe ocorreu que lhe ensinar aquilo tinha sido um engano. Não
deveria ter contado todas aquelas picardias; ela era tão inexperiente… Era
ridiculamente fácil aproveitar-se de uma esposa jovem e sozinha. O próprio

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Varian o tinha feito em mais de uma ocasião. Se sua esposa fosse infiel, aquilo
seria um castigo muito apropriado.
Mas se dava conta de que não era o medo de que ela pudesse traí-lo, nem
tampouco o ciúmes, o que o tinha conduzido até Londres na metade da noite.
Era a solidão e a fria desolação de procurá-la pela casa e dar-se conta de que
se foi, e a sensação de que, de algum jeito, poderia chegar a perdê-la para
sempre.
Enquanto subia os degraus da porta de entrada, disse a si mesmo que sua
imaginação estava lhe pregando uma peça. Pôs-se a trabalhar como um
condenado para reparar sua casa, porque era abominavelmente egoísta. Não
queria que Esme estivesse em nenhum lugar, a não ser somente com ele.
Agora ia despertar as pessoas da casa e não tinha nenhuma desculpa para
aparecer na frente deles como um louco.
Amaldiçoando a si mesmo, golpeou o trinco contra a madeira da porta,
esperou durante o que pareceu uma eternidade, e voltou a chamar. Depois de
ter repetido aquele gesto várias vezes, seu desgosto começou a transformar-se
em inquietação. A essa altura alguém teria que ter ouvido chamar.
Em sua casa de campo havia sempre uma cadeira na porta, em que se
alternavam os criados inferiores para passar a noite ali, de modo que a família
pudesse ser avisada imediatamente se algum vizinho tivesse algum tipo de
emergência ou estivesse em perigo. Um jovem lacaio de cara sonolenta que
tiritava tinha estado ali, para abrir a porta para Varian, na manhã que se foi.
Teria que ter alguém naquela porta, ou ao menos dentro, mas perto da
mesma para poder ouvir se chamavam. E se tivesse havido algum distúrbio
por ali perto? Ou se tivesse incendiado a casa? Londres era muito mais
perigoso que o campo, e os criados ali deveriam dobrar a vigilância.
Varian desceu a toda pressa as escadas e se meteu no beco que separava
a casa dos Brentmor da de seus vizinhos. Pela parte traseira estava o que
devia ser a entrada de mercadorias.
Varian bateu na porta. Não houve resposta. Tentou abri-la. A porta se
abriu e Varian sentiu um calafrio que percorreu suas costas.

Sir Gerald estava de pé junto a sua janela, olhando com o cenho franzido

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para o jardim às escuras. O relógio acabava de dar a meia-noite; pelo menos


aquele louco bêbado já tinha deixado de bater na porta. Durante um horrível
momento tinha pensado que por acaso se tratasse de um agente da polícia,
mas não tinha sido mais que um medo estúpido. Ismal não teria alertado às
autoridades até ter conseguido aquilo pelo que tinha vindo ali, e para isso
necessitava certa ajuda por parte de sir Gerald.
Começou a preocupar-se pensando que àquela hora Ismal deveria estar
ali. Acaso teria chegado já se não tivesse sido pelo maldito bêbado da porta.
De todas maneira, não podia faltar muito para que chegasse, e dentro de
pouco todo aquele assunto teria acabado.
Aquela desesperada aposta com sua mãe tinha dado seus resultados.
Quinhentas libras em moedas, e notas promissórias de banco até completar as
mil, para que se mantivesse calado. Embora aquilo não fosse nem de perto
suficiente, era mais do que sir Gerald poderia ter esperado ter umas poucas
horas antes. Isso, e o que tinha obtido em sua última visita à casa de penhor,
poderia levá-lo ao continente e lhe permitiria estabelecer-se de maneira
adequada. Uma vez que estivesse a salvo no estrangeiro, rapidamente
encontraria maneira de conseguir mais dinheiro.
Aqueceu tanto a mente com aquela infusão de dinheiro que começou a
acreditar que era razoável escapar daquilo com vida. Ismal não ia matar a
vítima de uma chantagem. Isso era ter pouca visão de futuro, e aquele Ismal
era uma pessoa que sempre olhava ao futuro. Não obstante, também era do
tipo de pessoa que gosta de atormentar a sua vítima, pensou o baronet
ressentidamente. Teria que cuidar-se muito para não dar outra oportunidade
de voltar a fazê-lo no futuro.
Mas se preocuparia disso mais adiante, quando estivesse a salvo do outro
lado do canal. No momento, o que sir Gerald queria era que aquele assunto
acabasse, e que seus torturadores partissem de sua casa.
Quando ouviu passos que se aproximavam pelo vestíbulo, quase se sentiu
aliviado. Embora seu coração pulsasse o dobro de velocidade, tinha uma
aparência exterior tranquila, com as mãos quase completamente quietas.
Até que a porta rangeu ao abrir-se.
Depois de ter passado mais de uma hora na mais completa escuridão, a

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luz da vela brilhou como se tratasse de um raio, e por um momento só pôde


olhar sem compreender nada à escura figura que se deteve na soleira da
porta. Piscou uma vez, e logo outra, mas a visão não mudou. A luz da vela
fazia brilhar o lustroso cano de uma pistola; e mantendo-a apontada
diretamente para o coração de sir Gerald estava na mão de lorde Edenmont.

Capítulo 30

— Sei exatamente o que aconteceu — bramou com força sir Gerald. —


Planejaram juntos, os três, para que eu fosse o bode expiatório. — esfregou o
pescoço, onde ainda tinha as marcas dos dedos de Varian. — Se tiver que
estrangular a alguém, é ao maldito menino.
Varian tinha subido correndo as escadas justo quando Percival estava a
ponto de cair de cabeça por elas. Apesar de estar assustado e débil, o menino
tinha podido explicar suficientemente bem para enviar a Varian a toda pressa
ao quarto de sir Gerald, embora, só para escutar aquele homem repetir
teimosamente que não sabia de nada.
Tinha levado mais de um frenético quarto de hora para verificar que Esme
e o jogo de xadrez tinham desaparecido, e que todos os membros do pessoal
da casa estavam drogados em diferentes graus.
Nesse momento foi quando finalmente Percival deixou escapar suas
suspeitas de que Ismal estava envolto em tudo aquilo. Absolutamente
desconcertado, sir Gerald tinha declarado que Esme certamente fugiu com seu
amante albanês. Logo que acabou de pronunciar aquelas palavras Varian o
empurrou contra a parede do escritório e esteve a ponto de deixá-lo sem vida.
Agora Varian já estava mais calmo. Não podia permitir-se nem o pânico
nem a raiva. Não tinha nem ideia de quanto tempo Esme estava desaparecida,
nem para onde poderia ter se dirigido. Necessitava de ajuda, principalmente de
sir Gerald, e a necessitava logo.
Agarrou a carta enrugada que Percival lhe tinha dado e a colocou sobre a
mesa de xadrez, diante de sir Gerald.
— Conheço a senhora Stockwell-Hume. Se for necessário me apresentarei
em sua casa e lhe direi que me conte a verdade. Se declarar que esta carta é

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uma falsificação, levarei você, com a ajuda dos criados, ao magistrado mais
próximo para que preste depoimento. — Varian juntou as mãos. — Ou pode
me dizer a verdade, e se for possível em poucas palavras.
Sir Gerald ficou olhando a carta um bom momento, e logo ergueu a vista
para Varian.
— Chantagem — disse ele. — E você não é muito melhor que esse
asqueroso estrangeiro.
Varian não disse nada.
— Ismal descobriu coisas sobre mim — disse o baronet em tom azedo, — e
me pediu dinheiro. Mas eu não tinha o suficiente, de modo que disse que se
conformaria com o jogo de xadrez. Percival ou Esme tinham a rainha negra. Só
o que tenho feito esta noite foi me assegurar de que Ismal poderia conseguir o
jogo completo de maneira fácil e segura. Não tenho nada a ver com o
desaparecimento da garota. Embora teria, se me tivesse pedido — disse
olhando isso de maneira desafiante a Varian. — Mas não me pediu. Pode ser
que esteja com ela. Parece que encontraram a rainha bastante facilmente, sem
necessidade de minha ajuda.
— Não me importa como a encontraram — disse Varian, — só o que quero
é…
— E esse menino os ajudou. Esteve conspirando contra mim todo o tempo
— grunhiu sir Gerald. — Me espiando e interferindo em meus assuntos. E
manipulando também a você, não é assim? E nem ele nem sua leal esposa
disseram nunca que eles tinham a peça de xadrez.
Percival, que tinha estado sentado à mesa do estudo olhando a seu pai em
um silêncio compungido, começou a falar.
— É obvio, não o podia dizer a ele, papai. Porque sendo assim teria
descoberto o que você tem feito.
— De modo que estava protegendo minha honra, não? Como se alguma
vez em sua vida tivesse demonstrado ter um mínimo de lealdade.
— Sir Gerald — começou a dizer Varian.
— Não é que eu espere lealdade de ninguém — seguiu dizendo o baronet.
— Meu irmão não demonstrou ter muita quando se deitou com a puta
mentirosa de sua mãe.

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— Já é suficiente! — exclamou Varian olhando ao Percival preocupado, mas


o menino não parecia estar absolutamente afetado. Pelo contrário, seu
semblante se iluminou e seus olhos verdes se arregalaram.
— Deus bendito, papai, que coisas diz! Até eu sei que a concepção requer
de um contato íntimo, e que o período de gestação para os humanos é de nove
meses.
— Percival — lhe disse Varian com voz séria, — não é momento de teorias
científicas.
O menino franziu o sobrecenho.
— Não me ocorre como pôde tê-lo feito tio Jason. Esteve escoltando o
coronel Leake pela Albânia desde 1804 até meados de janeiro de 1806, quando
eu nasci. — O menino meneou a cabeça. — O que propõe, papai, é fisicamente
impossível.
— Impossível! — gritou sir Gerald — Isso é o que contou a louca de sua
mãe?
— Não exatamente, papai. Só me fez ler a carta que o coronel Leake tinha
escrito ao tio Jason. Quando estiveram em Veneza na última primavera, o tio
Jason mostrou a mamãe seus papéis de matrimônio e os outros documentos
que tinha guardados ali. Como você sabe, o coronel William Leake era um
antiquário topográfico. Planejava publicar os relatos de suas viagens e
escreveu ao tio Jason a fim de lhe pedir permissão para poder mencioná-lo em
seu livro. Sabia que o tio Jason estava envolto em certas atividades secretas, e
não queria comprometê-lo sem querer.
Sir Gerald ficou vermelho, logo branco e ao final se deixou cair para trás
em sua cadeira.
— Eu gostaria que tivesse mencionado isso antes, papai — disse o menino.
— Teria sugerido que você escrevesse ao coronel Leake.
Sir Gerald moveu a boca, mas dela não saiu nenhuma só palavra.
— Meu pai sempre me fascinou —disse Percival a Varian em tom de
confidência. — Não parece que é um caso intrigante para o estudo da natureza
humana?
Varian se inclinou sobre a escrivaninha.
— Estudemos agora outra natureza humana, Percival. Se você fosse Ismal,

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por exemplo, aonde iria?

Esme se esfregou os braços e ficou olhando para a noite pela janela da


carruagem. Embora dentro só estivesse Ismal, a seu lado, e aparentemente
desarmado, ela sabia que tentar escapar estava fora de questão. As lanternas
da carruagem deixavam ver a alta figura do Mehmet cavalgando ao lado do
veículo. Sabia que Risto cavalgava no outro lado. Se se atrevesse tão somente
a levantar a voz poderiam matá-la. Embora a perspectiva de morrer não podia
dissuadi-la, não tinha nenhuma intenção de fazê-lo antes de vingar-se de
Ismal.
Aquilo não ia ser fácil. Além dos ferozes guarda-costas, Ismal levava vários
documentos roubados ou falsos que creditavam seu estatus de diplomata. Com
a vestimenta que usava agora parecia um perfeito cavalheiro inglês, só o
ouvido mais fino poderia reconhecer seu ligeiro acento, algo que ele poderia
facilmente explicar pelos muitos anos passados no estrangeiro. Também podia
explicar com alguma mentira a presença de Esme na carruagem. Poderia dizer
que era uma espiã, uma criada que queria escapar… ou algo que lhe ocorresse.
Ele tinha pouco que temer dela. Detiveram-se um momento para trocar de
cavalos, e ele tinha desatado suas mãos para que pudesse utilizar o banheiro
da estalagem sem chamar a atenção. Esme pensou escapar naquela ocasião,
mas não por muito tempo. Não era fácil, não porque Ismal a tivesse
acompanhado até a porta e esperasse ali perto, mas sim porque ao fim tinha
podido dar uma boa olhada a Risto. Todo seu corpo vibrava de ódio. Então se
deu conta de que o único que se interpunha entre ela e a adaga de Risto era
Ismal.
Afastando o olhar da janela, Esme topou com os olhos do Ismal que estava
observando suas mãos. Ela tinha marcas no pulso.
— A corda está machucando — disse ele em inglês. Não o tinha ouvido
dizer nenhuma palavra de albanês desde que se encontrou com eles. — Pode
ser que Risto a tenha apertado muito.
— Estou segura de que teria preferido atar isso ao redor do meu pescoço
— disse ela. — E ter apertado ainda mais forte.
Ismal meneou a cabeça em sinal de confirmação.

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— Sem dúvida essa teria sido uma solução muito inteligente, mas eu odeio
a violência. Já me incomodou bastante ter que golpeá-la com minha pistola,
mas não podia fazer outra coisa. — Seus olhos se posaram no rosto dela. —
Ainda dói muito a cabeça?
— Só quando tento pensar.
— Se estiver tentada a pensar coisas desagradáveis, aconselho-a que não
o faça. Só lhe ocorrerão diferentes planos para me fazer dano e a
consequência disso é que acabará muito dolorida. Muito.
Como sempre, ele falava com uma voz amável. Era incapaz de demonstrar
uma emoção honestamente. Possivelmente tivesse ordenado o assassinato de
seu pai em um tom de voz melodiosa.
Esme se deu conta de que estava cravando as unhas nas palmas das
mãos. Esticou-se sem mudar sua habitual postura com as pernas cruzadas, e
deixou que suas mãos descansassem descuidadamente sobre os joelhos.
Ismal observava atentamente cada um de seus movimentos, sem dúvida,
estava alerta ante um possível ataque repentino. Quando se deu conta de que
só estava se colocando mais cômoda, seguiu falando.
— Já disse a você por que vim, de modo que vê que não planejei pegá-la.
Ou dito de outra forma, tinha me prometido mesmo não ter nada a ver com
você
— Então, deveria ter me deixado inconsciente no jardim — disse ela. — Já
tinha pegado o jogo de xadrez. E assegurou-se de que ninguém ia persegui-lo.
Eu nem sequer teria sabido quem me atacou.
— Era uma decisão difícil. Pode ser que tenha me equivocado. Mas já que
caiu em minhas mãos, e não de uma maneira pretendida, pensei que esse
acaso era a vontade de Alá.
— Ou de Satanás.
Ismal ficou pensativo.
— Pode ser. A verdade é que não estou seguro de qual dos dois me
governa.
— Eu sim.
Ele dirigiu um estranho sorriso. Se fosse de outro homem, Esme teria
definido como «sorriso tímido», mas o acanhamento era algo que Ismal

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simplesmente desconhecia.
— Acredita que sou completamente diabólico? — perguntou ele. — Um
instrumento do Diabo?
— Tentou destruir seu país, destruiu a meu pai, não só roubou meu dote,
mas também me sequestrou, com o que tem feito cair a vergonha sobre minha
família. — Esme se deu conta de que estava elevando a voz. Acalmando-se um
pouco, acrescentou: — No momento, não me parece que possua nenhuma
virtude.
Ficou um momento refletindo.
— O que diz é verdade, de certo modo — respondeu ele. — Exceto no que
se refere a seu pai, porque eu não tive nada que ver com sua morte. Apesar
de meus muitos defeitos, não sou um assassino a sangue frio. Além disso,
matá-lo foi algo estúpido e excessivamente perigoso. — Ismal se encolheu de
ombros. — Mas sei que não quer me acreditar, porque está exaltada e precisa
culpar a alguém. Embora no que diz respeito a meus outros «crimes» não
posso contradizê-la. Só posso explicar como eu vejo. Dentro de muito pouco o
farei, mas não agora. Está muito histérica para prestar atenção no que tenho
que contar.
— Não estou histérica! Nenhum homem estaria tão tranquilo como eu
nessas circunstâncias. E, além disso, eu não gosto absolutamente que me trate
como se fosse uma menina… E não sou uma pessoa exaltada!
Ele fez um elegante gesto como negando importância aquelas palavras.
— Não, na realidade é… uma pequena selvagem, teimosa e sanguinária. É
realmente estranho que deseje um tipo de mulher como você — disse ele
pensativamente. — Mas assim é. Mas não começou desse modo. Ao princípio
só o que queria era uma refém para manter o Jason com as mãos atadas. Uma
vez que ele estava morto, já não me servia para nada. Infelizmente, meu
primo tinha o capricho de conhecer seus companheiros. E por isso, na
Tepelena, vi-me obrigado a mostrar uma paixão fingida. Só sei que, quando se
enfurecia com esse porco lorde inglês, algum veneno meteu-se no meu
coração, porque me senti muito ciumento. Teria desejado que tivesse estado
me fustigando com sua língua afiada. E também desejava poder ser eu quem
acalmasse sua ira, embora soubesse que pretendia me assassinar.

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Esme se moveu incômoda. Estava mentindo, disso não havia dúvida.


Deslocou-se até ali para vingar-se, e também teria planejado raptá-la pela
mesma razão, se surgisse a ocasião. Mas sua voz seguia sendo todo o tempo
amável e carinhoso.
— Não me acredita. — Dirigiu-lhe outro ligeiro olhar retraído. — Tampouco
eu me acredito. Deram-me uma boa educação e não acredito nos demônios,
embora me encontre atuando como se estivesse possuído por um. Quando
desapareceu de Tepelena, sabia que se a perseguisse Alí iria atrás de mim…,
mesmo assim não podia me deter. E por isso me encontrou Alí e me levou a
Ioanina, onde um de seus doutores tratou de me envenenar. Mas então, ele
ouviu falar de minha pouca lealdade. Eu estava deitado sozinho, na cama,
morrendo lentamente, e já via destruída todas as minhas esperanças, porque
uma mulher tinha feito me comportar como um estúpido imprudente.
— Sua vaidade o tornou estúpido — disse ela. — Sempre quis tudo o que
não podia ter: o reino de Alí, uma mulher que o odeia.
— Sim, quase me converti em seu bode expiatório. Convenceu a si mesma
que me odeia. Mas eu vou convencer-la de que está equivocada.
Esme desejava que ele pudesse mostrar algum sinal de hostilidade para
ela, porque sua amável paciência era muito inquietante. Sua voz suave era
como os fios sedosos de uma perigosa rede.
Ismal olhou para baixo.
— Escute-me. — Tomou uma mão e a apertou fortemente entre as suas. —
Eu fui educado para as intrigas. Posso conseguir com que os homens, e as
mulheres, façam o que eu desejo. O Todo-poderoso me deu um corpo atrativo
e uma mente inteligente. E eu aprendi a utilizar essas duas ferramentas,
sempre de maneira calculada. Isso já sabe.
— Sei bastante bem.
Sua proximidade a incomodava muito mais do que ela teria desejado. Não
era mais que um homem, e só possuía a habilidade como ele mesmo havia dito
de conseguir que outros atuassem segundo seu desejo. Mas Esme não podia
refrear as superstições que se diziam sobre ele: que não era completamente
humano. Aqueles elegantes dedos rodeando sua mão eram mais inquietantes.
Não tinha sido capaz de resistir a Varian. Era possível que tivesse a mente

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doente a respeito dos homens, ou de certo tipo de homens. Era possível, sim,
certamente era isso, que Ismal possuísse inclusive mais habilidades e menos
princípios dos que tinha seu marido. Esme disse a si mesma que amava Varian
e odiava Ismal com todo seu coração. Assim mesmo, a proximidade de Ismal,
sua carícia, seu aroma… a enchiam de pavor.
— Não me tema — disse ele, fazendo com que começasse a pulsar o
coração dela de maneira acelerada.
Esme pensou com firmeza que era impossível que ele tivesse lido seu
pensamento. Era seu corpo que a estava traindo: os calafrios de suas mãos e a
entrecortada respiração de seus pulmões.
— Se não quer que eu tenha medo, então não brinque comigo — disse ela.
— Quer que fale e atue de maneira direta? É isso? — Ismal deixou escapar
um leve suspiro antes de voltar a erguer a vista para o rosto dela. — Perdi
essa habilidade faz muito tempo. Viver na corte de Alí é viver em um jogo de
xadrez sem fim: enganar e fingir, estando sempre alerta à armadilha que
outros preparam. Sempre joguei muito bem esse jogo, até que chegou a
Tepelena e me adoeceu a mente. Mas terá que me curar, pequena guerreira.
Quando nos deitarmos juntos, eu serei parte de você e você será parte de
mim. Dessa maneira, poderá me conhecer, e então sei que terá piedade de
mim.
Esme se inclinou para trás, mas não tentou soltar-se da mão de Ismal.
Não tinha vontade de embarcar em uma luta física, na qual o certo é que ela
fosse vencida.
— Não o quero — disse ela. — E me parece monstruoso que pense que
posso chegar a ter compaixão de você.
— Você não entende. Mas logo entenderá.
— Entendo tudo muito bem. Sequestrou-me. E não faz mais que dizer
tolices para passar o tempo.
Ele estalou a língua.
— Eu detesto a violência. Se quiser violência, terei que entregá-la a meus
companheiros. Quando eles acabarem com você, parece-me que começará a
se sentir muito mais calma. E então darei uma segunda oportunidade, pode
ser que até uma terceira. Sou um homem bastante paciente.

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Esme sentiu que empalidecia.


— Seria muito mais simples me aceitar — disse ele. — Não posso esperar
que se sinta entusiasmada por meu abraço, mas como é uma pessoa estóica,
posso pedir que o suporte.
— Suportá-lo? Desonrar meus votos de matrimônio, pôr os chifres no
meu…?
— Por direito, seu marido sou eu — disse ele com voz tranquila. — Paguei
o preço da noiva e me enganaram. Quando tentei reivindicar meus direitos,
quase paguei com a vida.
— Isso é uma estupidez. Tem o jogo de xadrez. Exigiu esse chamado
«preço da noiva» muitas vezes, muitas. — Esme manteve seu tom de voz tão
baixo e tranquilo como ele. — É um selvagem, e não é absolutamente melhor
que Alí.
As mãos do Ismal se apertaram com força ao redor das dela e seus olhos
azuis brilharam um instante, mas isso foi tudo. Sua maneira de controlar-se
era assustadora.
— Pode ser que tenha razão, porque foi Alí quem me fez como sou. Se
quiser um homem melhor, Esme, terá você terá que me mudar. Antes que
termine o dia de hoje a ensinarei como fazê-lo.

O amanhecer não fez nada tão decisivo como apontar o novo dia.
Torpemente se desenrolou sobre Newhaven em forma de duro manto de
nuvens, com uma luz sombria que apenas penetrava o negrume da noite.
Como tinha feito incontáveis vezes, Jason disfarçado agora de cirurgião de
barco, com óculos e carregando uma maleta negra deu uma olhada aos barcos
que havia no porto. Não se permitiu ficar a pensar, a não ser só olhar e deixar-
se levar por seu instinto.
Tinha boas razões para deixar-se levar por seu instinto, como tinha feito
em Gibraltar. Em Cádiz se equivocou em suas apreciações e tinha acabado
arrolando-se em um barco com um iracundo ministro estrangeiro a bordo.
Aquele homem se negou firmemente que revistassem o barco, mas logo
acusou Jason de ter roubado importantes documentos. As seguintes
complicações o tinham feito parar em Cádiz durante mais de uma semana, e

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desse modo Ismal que tinha passado por ali várias horas antes havia tornado a
evitá-lo de novo.
Jason tinha mandado notícias de Ismal ao Falmouth. Sabia que dali Ismal
poderia viajar a qualquer lugar da costa inglesa. Ou também poderia dirigir-se
a Londres diretamente. Por desgraça, Ismal tinha levado quase uma semana
de vantagem. Nesse tempo podia ter feito algo, podia ter ido a qualquer parte.
Jason amaldiçoou para si mesmo.
Estava retorcendo as mãos com preocupação quando se deu conta da
agitação que havia a bordo de um barco próximo. Ficou olhando fixamente
aquele barco, um pequeno veleiro de fabricação americana. Magros e rápidos,
aqueles barcos embora normalmente estivessem acostumados a ser maiores
tinham perseguido os barcos ingleses de uma maneira desesperadora durante
a última guerra contra os americanos.
Jason lançou um olhar a Bajo. A atenção do albanês estava posta no
mesmo barco. Antes que Jason pudesse consultá-lo, seu capitão se aproximou
e fez um gesto para a praia. Um oficial pôs-se a correr pelo cais para eles.
Jason se apressou a interceptá-lo e sem dizer uma palavra pegou seus
papéis.
— Sim, senhor, estávamos lhe esperando — disse o oficial. — Capitão
Nolcott, a seu serviço. Lamento não ter tido notícias suas antes.
Jason apontou ao barco que tinha posto em alerta seus instintos.
— O que sabe desse pequeno veleiro? — perguntou-lhe ao oficial.
— O Olímpia?
Bajo se aproximou deles. Quando Jason repetiu o nome do barco, seu
robusto companheiro sorriu.
— O homem que estamos seguindo diz de si mesmo que é descendente da
mãe de Alexandre —explicou Jason ao capitão Nolcott. — Assim se chamava
ela.
— Não pode ser o mesmo homem — disse o capitão. — O dono deste
barco é um inglês chamado Bridgeburton, e todos os papéis do barco estão em
ordem. Estão esperando um oficial de comércio estrangeiro que devem levar a
Cádiz.
— O corpo de Bridgeburton apareceu flutuando em um canal de Veneza faz

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umas semanas — disse Jason.


Quando o capitão ficou olhando consternado, ele explicou que o senhor
Bridgeburton era particularmente viciado em uma combinação letal: absinto e
vinho. Como não encontraram marcas de violência em seu corpo, supôs-se que
tinha alcançado o canal em estado de embriaguez. Os contatos que Jason tinha
em Veneza tinham contado que, recentemente, Bridgeburton tinha sido
investigado sob suspeita de contrabando e tráfico de escravos. Supunha-se
que era ele quem proporcionava as armas ao Ismal.
Entretanto, Jason não disse ao capitão Nolcott e nem tampouco tinha
contado a seus contatos em Veneza que Bridgeburton tinha sido tempo atrás
amigo dele. Tinha sido Bridgeburton quem tinha emprestado a Jason o dinheiro
para seguir com aquele interminável jogo de azar, fazia muito, muito tempo: a
partida que apenas tinha podido lembrar quando despertou, completamente
doente, na manhã seguinte… E despertou para descobrir que devia ao
Bridgeburton uma fortuna.
Jason pensava que o resto das respostas as conseguiria muito em breve, e
não lhe importava quão terríveis estas fossem.
Entretanto, nesse momento o capitão Nolcott estava esperando instruções.
Jason observou o porto e os embarcadouros. Newhaven tinha sido um
importante porto de mercadorias no princípio do século passado, mas como
tristemente proclamava a miserável coleção de barcos, em sua maior parte de
pesca, os barcos mercantes se foram a alguma outra parte. Qualquer um que
pretendesse embarcar passando despercebido poderia considerar aquele porto
um lugar ideal. Estava muito perto de Londres e de Dover. A desvantagem de
Dover era o abundante tráfego de barcos que partiam dali para cruzar o canal
a caminho de Calais. E o nome do Bridgeburton era uma perfeita coberta para
um assunto como esse.
— Parece que o Olímpia está a ponto de zarpar — disse Jason. — Se o
vento se mantiver como está não haverá ninguém que o possa deter.
— Quer que o impeçamos de zarpar?
Jason estava a ponto de responder quando ouviu o som de cascos de
cavalos e de rodas de uma carruagem sobre os paralelepípedos. Não precisou
olhar em direção aquele som. O rosto de Bajo se contraiu em uma expressão

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preocupada e deixou escapar um rápido suspiro que dizia tudo o que precisava
saber.

Capítulo 31

Enquanto o carro de cavalos diminuía a velocidade, Ismal se moveu para


sentar ao lado de Esme.
— Não faça nenhuma loucura quando descermos — advertiu. — Não pode
saber quem é pago por mim e os que não são. Será melhor que faça o que
digo se não quiser se preparar para satisfazer a luxúria de minha tripulação.
Entende-me?
Esme olhou desolada pelo guichê. Ele já explicou perfeitamente, durante
todo o caminho desde Lewes. Além disso, ela compreendia bastante bem os
ingleses para saber que tinha muito poucas possibilidades de encontrar entre
eles a alguém que pudesse resgatá-la. Ia vestida com roupas de menino e
tinha um acento claramente estrangeiro, apesar dos esforços de Jason.
Ninguém ia acreditar que era a esposa de um lorde, nem sequer que era uma
dama. Não tinha marcas de violência que pudessem demonstrar que tinha sido
raptada, e além disso Ismal possuía um maço de documentos com aspecto
completamente oficial.
Qualquer tentativa de escapar agora estava condenada ao fracasso… e
certamente acabaria caindo nas mãos dos homens de Ismal. Suas ameaças
não eram fúteis nem vãs, nem simples insinuações. Podia enfrentar à morte
com valor, ele sabia. Mas aquilo com que a tinha ameaçado sabia que a
aterrorizava muito mais. Quando sentiu que a bílis lhe subia à garganta,
amaldiçoou a si mesma por ser tão covarde.
— Odeio você — disse.
— Shpirti im — sussurrou ele. — Engana a você mesma.
Ele começou a lhe tirar as forquilhas do cabelo.
Esme se lembrou do dormitório em Mount Eden. Só tinham passado duas
noites desde que Varian lhe tirasse as forquilhas do cabelo? Lembrou-se de
suas mãos excitadas acariciando-a, inflamando-a, e da terna dor de suas
sussurradas palavras de amor.

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Tinha que ter feito caso a ele. Só o que ela tinha feito tinha sido aumentar
seu desconforto, enquanto que ele tratava de trabalhar duro para construir
uma vida nova para os dois. Deveria ter dito que o amava, que estava
orgulhosa dele. Mas só lhe tinha falado de sua vergonha e sua desonra. E por
isso mesmo agora Ismal lhe soltava o cabelo. Queria que os que se cruzassem
com eles soubessem que a jovem ruiva era uma mulher. Dessa maneira
alguém poderia informar a Varian.
Enquanto Ismal acabava sua tarefa, ela olhou pela janela sem ver nada.
— Em Tepelena fingiu muito bem o amor que sentia por mim — disse ele.
— Agora pode fazê-lo de novo, e assim os que olharem compreenderão que
foge comigo alegremente. Não acredita que os ingleses se sentirão excitados
pela visão de uma mulher vestida com calças? — Ele sorriu meigamente. —
Será melhor que se mantenha a meu lado, por amparo.
Sabia que dentro de muito pouco ia estar tão perto como podia estar uma
mulher de um homem. Mas suportaria tudo até que chegasse seu momento. E
então ele pagaria.
Quando desceram da carruagem, Esme estudou os arredores de esguelha.
O povo de Newhaven estava a uma meia milha detrás deles. Se tentasse fugir
correndo, alcançariam-na muito antes que tivesse chegado ali. Entre a
desordem do embarcadouro viu vários possíveis caminhos de escape, assim
como numerosos lugares nos quais sem dúvida seria apanhada.
Entretanto, o mais próximo e enorme beco sem saída estava interceptado
por Risto e Mehmet. Sem armas não tinha nenhuma possibilidade contra eles.
Além disso, Ismal também se armou antes de abandonar a carruagem. Levava
a pistola escondida sob o braço e apontando diretamente a ela no flanco.
Embora a adaga… uma só punhalada… e logo ela poderia gritar «Assassinos!».
Mas como reagiria a isso as pessoas dos arredores?
Esme viu que a maioria se tratava de pescadores e marinheiros. Dois
homens que vestiam uniforme da marinha estavam falando com outro tipo que
exibia um gasto tricornio e um igualmente gasto par de calças até os joelhos.
Levava no ombro o que parecia uma maleta de cirurgião.
Nenhum deles parecia olhar de maneira muito amistosa o grupo de Ismal,
que se aproximava nesse momento dos barcos. Por outra parte, tampouco

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pareciam ser excessivamente hostis. Estavam observando, mas, depois de


tudo, tipos como Risto e Mehmet não apareceriam todo dia por aquele
pequeno porto nem sequer a elegância de um homem louco, mas bonito como
Ismal, vestido com seu traje inglês, era muito comum ali. Não importava
aonde fossem, sempre chamariam a atenção.
— É necessário que diga a você que parece que chamou sua atenção? —
Sorrindo, Ismal colocou em Esme um braço protetor por cima dos ombros. —
Será melhor que os faça compreender que é minha.
Esme ergueu os olhos com o que pretendia fosse um olhar de adoração, e
se forçou a esboçar um leve sorriso.
Ismal se aproximou mais dela e a fez diminuir o passo.
— Dentro de pouco poderá me olhar dessa maneira sem necessidade de
fingir — disse ele com a boca lhe roçando a orelha.
— Isso é o que você diz.
Esme olhou de esguelha os barcos que havia a seu lado. Embora Ismal não
tivesse descrito o barco, ela compreendeu que havia ali duas possibilidades
razoáveis. Estavam agora muito perto dos dois. E restava muito pouco tempo.
Ela acrescentou com doçura:
— Sempre acreditei que um homem seguro de suas habilidades não
precisa presumir.
— Parece-me que está tratando de me provocar — riu ele.
— Diz que não tenho que mostrar meus verdadeiros sentimentos. Mas não
me disse que não tinha que falar deles, nem sequer em sussurros. Quer que
eu conte formosas mentiras ao tempo que mostre cara alegre? — Lançou-lhe
outro olhar devoto. — Uma vez, faz anos, beijou-me, e eu cuspi o sabor que
me deixou esse beijo na boca. Acredita que agora seus lábios terão um sabor
menos vil para mim?
— Isso se pode arrumar facilmente.
Ele se deteve, com seus olhos azuis brilhando divertidos. Uns passos mais
à frente, Risto os olhava com o sobrecenho franzido.
— Acaso tenho que beijá-la em meio de toda essa gente? — perguntou
ele.
Esme deu de ombros.

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— Todos eles devem pensar que sou sua puta. E logo será verdade. Já
estou farta de tanta vergonha. Nada do que faça pode piorar as coisas.
Risto se colocou a seu lado com impaciência.
— Senhor! — repreendeu.
Ignorando-o, Ismal segurou a Esme entre os braços. Ela ouviu Mehmet
estalar a língua e as maldições de Risto, seguidas de uns estrondosos chiados
que provinham do barco que havia a seu lado. Deu-se conta de que Ismal
tinha colocado uma mão na sua nuca, e notou o calor de seu fôlego enquanto
baixava o rosto aproximando-se de sua boca. Também sentiu, enquanto os
lábios dele posavam sinuosamente sobre os seus, que sua ostentação não
tinha sido infundada. Apesar dela mesma, Esme se sentiu desconcertada por
aquele gesto e abriu os lábios para recebê-lo sem necessidade de que ele o
ordenasse. Era surpreendentemente bom beijando, para mais confusão ainda,
mas aquilo durou só um instante. Em seguida conseguiu desfazer a névoa que
por um momento tinha embotado sua mente.
Esme deixou que suas mãos acariciassem suavemente a cintura dele. Seu
coração palpitava com força, mas tranquilo, enquanto os dedos dela buscavam
sua adaga por debaixo de sua jaqueta.
Ele começou a afastar-se dela e a mão de Esme se deteve.
— Isso não foi muito inteligente, pequena — murmurou Ismal contra seus
lábios. — Não vou ser capaz de esperar todo o dia para ter mais.
— Maldita seja! — soltou Risto aproximando-se — a metade do povoado
está olhando. Quanto tempo mais pretende ficar assim?
Até Mehmet murmurou uma advertência, mas Ismal não fez conta. Nesse
momento era um homem como todos outros, pensou Esme com uma careta
risonha, sua boca se aproximou da dele para beijá-lo de novo. Naquele
instante a mente de Ismal não estava tão lúcida como estava acostumada a
estar. Mas ela, por sua parte, estava totalmente alerta. Era consciente dos
comentários vulgares de quem os estava observando. Notou o calor que
provocava aquele beijo e a tensão que embriagava o corpo dele. Apertando-se
mais contra ele, alcançou com cuidado o cabo de sua adaga.
Com todos os nervos em tensão, e todos os sentidos extremamente
aguçados, Esme ouvia os chiados das gaivotas, o rumor das ondas rompendo

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contra o casco dos barcos e o murmúrio distante da praia. Cascos de cavalos…


passos apressados… mais gritos que provinham das pessoas que os rodeavam.
Tudo aquilo ela ouvia como se viesse de um lugar muito afastado, do passado.
O presente era a vingança… que estava a um passo dela.
Logo que tinha roçado o cabo da adaga o corpo do Ismal ficou rígido. E de
repente ele a jogou de um lado com a lâmina de sua adaga repousando contra
o pescoço de Esme.
Todos os que estavam no porto ficaram calados de repente. Os que se
achavam a seu lado começaram a colocar-se em primeiro plano: dez, vinte,
não, ao menos cinqüenta homens, mas nenhum deles se moveu. Todas os
olhares estavam fixas na lâmina de aço.
Incluindo a de Varian.
Esme piscou, mas a imagem dele não se apagou.
Ela tentou sacudir a cabeça para afastar aquela alucinação. Entretanto, o
ligeiro arranhão da adaga em seu pescoço lhe disse que não estava sonhando.
A pessoa que estava de pé a menos de vinte passos deles era Varian. E
levava uma pistola na mão. Por que demônios não tinha disparado? Ismal era
muito mais alto que ela. Até um menino poderia ter atirado no diabólico
cérebro de Ismal a essa distância. E certamente Varian podia fazê-lo. A só
vinte passos, pensou ela com raiva. À distância de um duelo. Por que não
disparava?
— Vejo que prefere não pôr a prova sua pontaria, lorde Edenmont — disse
Ismal amavelmente. — Muito inteligente. Se quiser que sua esposa saia dessa
com vida, será melhor que diga a esta multidão que não me estorve. E baixe
sua arma, por favor.
Varian baixou a arma, mas não a atirou ao chão.
— Deixe-a partir — disse ele.
Ismal não ligou.
— Já pode sair, sir Gerald. Que alianças tão estranhas faz você…, mas é
muito gordo para esconder-se atrás de sua excelência.
Levando na mão sua própria arma, apontada para o chão, o baronet saiu
detrás de Varian.
Ismal começou a retroceder para o barco e seus guarda-costas se

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moveram rapidamente para colocar-se a seu lado. Ninguém mais se moveu.


Não podiam, pensou Esme desesperada, porque Ismal acabava de dizer que
era a esposa do lorde. Ninguém ia se arriscar que a matassem por sua culpa.
Entretanto, nenhum deles teria que subir com Ismal naquele maldito
barco, e submeter-se a ele em corpo e alma. Esme recordou a si mesma que
centenas de mulheres albanesas se atiraram de um escarpado antes de
submeter-se a seus inimigos. Ela era tão valente como qualquer delas. E não
pensava ir viva com aquele homem. Varian tinha vindo por ela. Ele não podia
deixar que aquela vergonha caísse sobre os dois.
— Mata-o! — gritou ela. — Vingue ao Jason! Vinga-me, Varian!
A lâmina de aço se apertou mais a sua garganta e ela viu que a pistola de
Varian se erguia. «Amo-o», disse-lhe em silêncio. E a seguir ela jogou a cabeça
para trás com força até golpear com ela a traquéia de Ismal.
Quando ele afrouxou a mão que a sujeitava, algo explodiu a seu lado e
Mehmet caiu ao chão. Esme deu uma cotovelada na entre-perna de Ismal. Ele
se inclinou para trás e a faca lhe caiu das mãos. Mehmet se arrastou para ela.
Esme se agachou para agarrar a faca, e então ouviu uma segunda explosão.
Por um instante, o mundo cintilou a seu redor com uma dor cega. Ouviu ao
longe os gritos de Varian… e a voz de seu pai, em alguma parte, depois dela,
surgindo detrás de uma negra onda. Morro, pensou, e a negra onda a engoliu
por completo.

Inconsciente da tripulação do barco de Ismal que formava redemoinhos a


seu redor, e dos que avançavam em direção contrária, Varian correu para onde
estava sua esposa caída no chão. Tinha visto o homem de tez escura
apontando para ela no mesmo momento em que Varian tinha disparado no
maior e feio dos dois companheiros de Ismal. Mas alguém já tinha dado conta
do pequeno bastardo, e agora Varian só se preocupava com Esme.
Apesar da multidão que se reuniu a seu redor, só o que ele sentiu quando
se agachou a seu lado foi terror, um terror tão agudo como a lâmina da faca
que tinha estado apoiada no pescoço dela fazia um momento. Quando
aproximou as mãos trêmulas do pescoço dela, os olhos se encheram de
lágrimas. Notou um pulso bastante apagado debaixo das pontas de seus

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dedos.
Quando começava a tomá-la em seus braços, uma mão se apoiou em sua
cabeça violentamente fazendo-o cair para trás.
— Não! — gritou Ismal.
Apontou sua pistola para a cabeça de Varian. ele lançou um braço para
trás e a arma golpeou-o no cotovelo. Sentiu uma aguda dor que lhe percorria
todo o braço. Rolando para um lado, agarrou Ismal pelas pernas e o fez cair.
Ismal se liberou dos braços de Varian e começou a chutá-lo, fazendo que
voltasse a cair de costas. O crânio de Varian golpeou contra o chão com grande
força. Sentiu que lhe zumbiam os ouvidos e o céu começou a dar voltas
rapidamente a seu redor. De novo viu a pistola lhe apontando. Agarrou a mão
de Ismal e a golpeou contra o borda do embarcadouro. Ismal soltou vários
grunhidos e abriu a mão, fazendo com que a arma caísse longe.
— Brigas comigo por uma puta — ofegou Ismal. — Minha puta.
Erguendo a mão que tinha livre deu um murro na mandíbula de Varian,
fazendo-o cair para trás. Varian viu tudo negro por um instante, e no momento
seguinte viu tudo vermelho. Logo se desvaneceu qualquer sensação de dor.
Golpeavam-no, ele golpeava por sua vez, e não existia nada mais a seu
redor. Só o que tinha em mente era Ismal, a quem desejava matar. Lutaram
furiosamente, mais igualados de forças do que Varian teria suspeitado. Por
magro que parecesse, Ismal era rápido e forte. Cada um dos murros que lhe
dava parecia ter pouco efeito nele, e quando rodavam para o borda do
embarcadouro, um de seus joelhos se cravou no estômago de Varian com a
força de uma bala de canhão. Ao momento, Varian estava de costas, vendo
sobre ele o rosto retorcida de Ismal, lutando para poder respirar e manter-se
consciente, enquanto seu adversário lhe apertava o pescoço com ambas as
mãos. Entre a neblina escura que começava a cegá-lo, Varian pôde ver o
sorriso de Ismal.
— Minha puta — disse Ismal resfolegando. — Minha Esme.
Aquelas palavras enfureceram a Varian como o fogo do inferno. Agarrando
as mãos de Ismal, cravou-lhe as unhas. Com todas as forças que ficavam
conseguiu afastar uma das mãos que lhe segurava o pescoço e a esmagou
contra a beira do embarcadouro. Ouviu um rangido e um grave uivo animal, e

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Ismal se deitou de lado com uma careta de agonia no semblante. Varian


investiu e o golpeou em um flanco. Ismal tratou de escapar dele, mas sua mão
inútil o fazia ser mais lento. Varian o agarrou e começou a golpear-lhe a
cabeça contra o embarcadouro. Seu formoso rosto começou a encher-se de pó
e sangue. A cabeça de Ismal pendurava impotente, mas em seus frios olhos
meio fechados pôde ver um brilho estranho.
— Minha puta. — Aquelas palavras saíam de sua boca entre baforadas de
sangue — Minha Esme.
Quando Varian ergueu o punho para golpear de novo alguém o empurrou
para trás. Ergueu a vista a tempo para ver o brilho de uma adaga que se
dirigia para ele.

Com um doloroso esforço, Jason se afastou de cima do corpo sem vida do


Mehmet e ficou de joelhos. As peças de xadrez estavam esparramadas ao seu
redor, junto com sua maleta e seus óculos.
Estava ficando muito velho para aquelas brigas, pensou Jason. Fazia tempo
que tinha perdido o gosto de estar na primeira linha de fogo, e esta briga de
agora não deveria ter começado nunca. A culpa tinha daquele bobo do
Edenmont, galhardo herói ao resgatar aquela tola moça com sua estúpida ideia
de heroísmo.
Por fim Esme estava a salvo longe da briga. Bajo a tinha tirado dentre a
multidão, antes de retornar para ajudar o Jason a afastar a boa parte dos
congregados, para poder aproximar-se até o lugar principal da briga, onde
Varian lutava contra Ismal. Desgraçadamente, a tripulação do barco de Ismal
tinha tido a mesma ideia, junto com Mehmet, e agora um montão de corpos
agitados tampavam a visão de Janson do lugar onde tinha visto por última vez
os dois homens brigando. Erguendo-se nas pontas dos pés pôde ver seu irmão
golpeando um homem com a culatra de sua pistola. E outro que atacava
Gerald, equilibrando-se sobre ele. Mas este o pôde evitar ficando de novo de
pé. Furiosamente tratava de sair daquele tumulto de corpos brigando.
Aquela visão era tão absolutamente nova para ele que Jason ficou distraído
por um momento. Voltou de repente para a realidade quando um marinheiro
ensanguentado saiu correndo da multidão para ele. Mas não o bastante rápido.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

O punho do marinheiro se esmagou no peito de Jason e ele caiu para trás,


perigosamente perto da beira do embarcadouro. Uma mão segurou-o para
ajudá-lo a erguer-se enquanto o marinheiro, saltando grosseiramente pelo ar,
acabava aterrissando na mureta de pedra do cais.
Jason deu a volta para agradecer a seu salvador, mas as palavras ficaram
congeladas em seus lábios, quando seu olhar se cruzou com o lúgubre olhar de
seu irmão.

Apertando os dentes para fazer frente à dor de sua mão machucada, Ismal
se refugiou detrás de um montão de tonéis. Apoderou-se da pistola que Risto
tinha derrubado, quando atacava o lorde inglês. Embora fosse quase
impossível voltar a carregar a arma com uma só mão, Ismal não quis
reconhecer na sorte a impossibilidade. Estava seguro de que não ficariam
muitos homens a bordo do Olímpia. Mas, com sorte, era possível que ainda
pudessem zarpar.
A dor que sentia na mão estava deixando-o louco. Temendo que pudesse
desmaiar-se, tratou de centrar toda sua atenção em carregar a arma. Embora
lhe parecesse que estava demorando toda uma vida, ao final conseguiu e saiu
de seu esconderijo para olhar para fora.
Havia duas pessoas de pé entre ele e o Olímpia: sir Gerald e… e um
homem que se supunha que estava morto.
Se não tivesse tido a boca inchada e cheia de sangue, Ismal poderia ter
sorrido. De repente tudo lhe pareceu diáfano; tudo o que tinha feito o Leão
Vermelho, e por quê. Ismal o admirava por isso, porque não podia deixar de
admirar a um homem que fosse mais preparado que ele. Se, se tivesse dado
conta… Oh! As coisas seriam agora muito diferentes, e é obvio que não teria se
encaminhado ao que agora percebia ser uma armadilha: Edenmont e sir Gerald
por uma parte e o Leão Vermelho pela outra.
Entretanto, nesse momento só os dois irmãos se interpunham em seu
caminho, e claramente se puseram a discutir.
Embora só tivesse uma bala, a decisão não era difícil de tomar. Ismal ficou
de pé e, armando-se com o último pingo de vontade que restava para fazer
que sua mão esquerda o obedecesse, apontou com a arma. Sorrindo para si

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mesmo, com o coração ligeiro como o de um anjo, apertou o gatilho. O


segundo disparo soou tão perto do primeiro que pareceu que não tivesse sido
mais que o eco deste. Mas ao momento Ismal sentiu um fogo que queimava
sua carne, e ante ele se abriu um escuro buraco com umas chamas que
ardiam no fundo.
— Esme — murmurou em um ofego… e caiu ao chão.

Lentamente, Varian baixou a pistola. O embarcadouro parecia ter ficado


em silêncio de uma maneira sobrenatural. Ou pode ser que o zumbido que
ouvia em seus ouvidos não o deixasse escutar nada mais. Não sabia, nem se
importava. Tinha enfiado uma faca nas tripas de um homem e acabava de
disparar em outro. Risto estava caído a seus pés, morto. Ismal era um montão
de carne imóvel alguns metros mais à frente, e atrás dele estava sir Gerald,
também atirado no chão… porque Varian tinha apertado o gatilho muito tarde
para lhe salvar a vida.
Deu meia volta. Muito sangue. O mundo parecia gotejar sangue. Ele
mesmo parecia estar banhado em sangue e cheirar a sangue.
Entre o zumbido e as ondas de náuseas que sentia, ouviu alguém que
pronunciava seu nome. Voltou-se em direção daquela voz. O homem ruivo que
estava agachado ao lado de sir Gerald fez gestos para que se aproximasse.
Varian deixou escapar um profundo suspiro, endireitou-se e se dirigiu para ele.

— Cale-se — advertiu Jason ao Gerald. — Edenmont está aqui.


Edenmont se ajoelhou no outro lado do ferido, com os olhos fixos na
mancha carmim que crescia na camisa de Gerald.
Os olhos do Gerald se moveram para ele.
— Olhe quem… voltou. Da morte. É um brincalhão… meu irmão. Como eu.
Como imaginaria isso, não é, Jason?
A cabeça do Edenmont se inclinou para trás como se alguém o tivesse
golpeado. Repetindo o nome, ficou observando o rosto de Jason.
— Sim, estou vivo — falou ele. — Segura essa bolsa que está atrás de
você. Contém uísque e ataduras.
Gerald agarrou o braço de seu irmão.

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— Enganei-o. Para conseguir a ela. A Diana. E as terras para o


Bridgeburton.
Jason tinha suposto que a presença do Edenmont pararia a língua de seu
irmão, mas não foi assim. Tossindo e ofegando entre palavra e palavra, Gerald
seguiu balbuciando enquanto Jason lhe enfaixava o peito. Mas a hemorragia
não ia se deter, da mesma maneira que não parecia que fosse fazê-lo aquela
voz chiada. Fanfarrona. Ele contava como tinham posto Jason fora de combate
com absinto e vinho naquela noite, tantos anos atrás. Por isso recordava tão
pouco do jogo, nem sequer recordava ter chegado a assinar as notas
promissórias. Pensava que devia uma fortuna ao Bridgeburton, porque Gerald
o irmão em quem ele confiava o disse, e lhe tinha mostrado os papéis que o
provavam.
— Não importa — disse Jason apertando os dentes. — Não deve
desperdiçar as forças… e, de qualquer modo, já sabia.
— Diana lhe disse isso.
Jason assentiu com a cabeça.
— Descobriu-o — seguiu dizendo Gerald. — O menino nasceu… muito logo.
Seus olhos. Seu cabelo. Perdi a… cabeça. Disse coisas. Não muitas, mas ela…
imaginou. E eu tinha que ser… bom… com o menino. Deixar ela fazer… o que
quisesse. Ou se não ela… ia contar tudo a mamãe. Doze anos, Jason.
Jason não sabia nada daquilo, e não teria raiva se soubesse. Mas recordou
a última vez que tinha visto Diana, e como lhe havia dito que retornasse logo
para a Inglaterra. O que lhe havia dito? «Temo que quando eu tiver ido…»
Quando ela se foi não ficaria ninguém para proteger o Percival de seu pai.
Como o tinha feito ela. De sua cólera e de sua influência perniciosa.
Chantageando ao Gerald com seu vil segredo.
Gerald voltou a cabeça para o Edenmont, quem seguia ali de joelhos,
olhando-o com um semblante sério que não revelava nada.
— Nunca tinha imaginado isso, verdade? — ofegou Gerald. — A zorra que
era Diana. Deixou-me acreditar que meu filho… era do Jason. Durante anos…
como um espasmo nas vísceras. E não podia dizer… nenhuma palavra. —
Deixou escapar um leve suspiro. — Doze anos. Uma condenação. — Fechou os
olhos. — A amava. — Ao fim, deixou escapar um ofego e isso foi tudo.

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Jason tirou a jaqueta e cobriu com ela o rosto de seu irmão.


— Estava delirando — disse Edenmont com frieza. — Pobre diabo.
Jason ficou olhando.
— Era um imundo porco traiçoeiro, e se comportou da única maneira que
sabia fazê-lo. Uniu a uma maravilhosa família, não te parece?

Esme correu pelo embarcadouro, seguida de perto pelo grumete


encarregado de cuidar dela. Embora não soubesse quanto tempo tinha estado
inconsciente, temia que tivesse sido muito. O barulho da briga tinha acabado e
o ar transportava um intenso aroma de pólvora. Quando o cais ficou ao alcance
de sua vista, viu uns quantos marinheiros que formavam redemoinhos ao
redor dos corpos. Procurando entre os rostos desconhecidas da multidão,
descobriu uma figura alta e estranhamente familiar naquele lugar. Esme
passou as mãos pelos olhos. Bajo? Estava entre os braços um de seus homens
feridos.
— Milady, por favor — ofegou o grumete, que já tinha chegado a alcançá-
la. — O capitão Nolcott pedirá minha cabeça se…
Esme fez um gesto com a mão.
— Meu marido. Onde está lorde Edenmont?
— Estou seguro de que está bem, milady. Mas se você não…
Calou-se de repente, aparentemente transtornado pela mesma visão que
acabava de chamar a atenção dela: uma maca, rodeada por marinheiros, em
que transportavam um cadáver humano coberto por uma jaqueta manchada
de sangue.
— Não! — gritou ela.
Pôs-se a correr para o beliche, afastando a tapas a quem se interpunha em
seu caminho, até que alguém a segurou pelo braço. Esme olhou para trás e
reconheceu o rosto de um dos oficiais da marinha que tinha visto antes.
— Por favor — disse ela com voz suave.
— Milady, não pode fazer mais nada por seu tio. Sinto muito, a ferida era
mortal.
Seu tio. Sentiu uma onda de aflito alívio e cambaleou. O oficial a segurou.
— Será melhor que se sente, milady.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Esme negou firmemente com a cabeça.


— Não. Não. — soltou-se da mão do oficial. — Tenho que…
E então o viu. Com o rosto coberto de pó e sangue, a uma distância que
não lhe permitia distinguir nem a cor de seus olhos. Também estava com o
cabelo coberto de sujeira pela recente briga, e o apagado brilho acobreado de
sua cabeleira bem poderia ser uma mancha de sangue. Ele inclinou a cabeça,
estava limpando o rosto com um sujo lenço. Mas de qualquer modo o tinha
reconhecido.
Os olhos se encheram de lágrimas. Engolindo com raiva, Esme moveu suas
trêmulas pernas para ele. O oficial estava dizendo algo, mas para ela suas
palavras não eram mais que ruído.
Esme viu que o lenço deixava de mover-se, e logo caía das mãos de seu
pai. Ele não se moveu. Ficou ali, vendo-a aproximar-se, com a boca
arqueando-se lentamente em um sorriso. Um sorriso que lhe doeu por dentro.
Detendo-se vários passos de onde ele estava, apoiou os punhos apertados
em seus quadris.
— Odeio você — lhe disse com uma voz robusta e firme. — Não deveria
perdoá-lo nunca.
O sorriso do Jason se transformou em uma careta.
— Ah, sim! Essa é a minha pequena.
Logo abriu os braços, e Esme, com um soluço estrangulado, achou-se
entre eles.
Seu pai a apertou em seu abraço durante um momento, e logo se separou
dela, amaldiçoando e olhando as mãos.
— Que o demônio aconteceu, Esme, está sangrando!

Capítulo 32

Varian estava de pé ao lado do Olímpia sem mover-se e sem ser visto.


Olhava em direção de Esme. E logo olhou a si mesmo, quando se deu conta de
para onde se dirigia ela. Um sorriso involuntário curvou seus lábios enquanto a
viu deter-se, tomar uma pose indignada e soltar uma grosseria para seu pai.
Mas quando se lançou nos braços de Jason, o sorriso de Varian se desfez,

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como se algo em seu interior tivesse se quebrado.


«Vinga ao Jason», tinha-lhe gritado ela. Esme tinha estado disposta a
morrer para vingá-lo, da mesma maneira que tinha estado disposta a
sacrificar-se em Tepelena pela mesma causa. E agora resultava que o pai a
quem amava com tanta intensidade estava vivo…
Varian tratou de estrangular uma ideia não desejada, mas esta começou a
lhe corroer por dentro. A tinha perdido…, mas ela não ia perder a ele nunca. A
tinha amado e se casou com ele contra sua vontade. Ela tinha ficado com ele
porque não tinha outra opção, nem a ninguém mais. Isso lhe havia dito na
noite de bodas. «Não tenho a ninguém mais que a você.» Mas agora…
Ela era sua esposa, pensou Varian. Ninguém nem sequer seu pai a podia
tirar. Mas não se decidia a mover-se, porque a expressão dela estava dizendo a
verdade. E ele não estava seguro de poder suportá-la.
Então ouviu o pranto amargo de Jason e viu Esme desvanecer-se entre os
braços de seu pai.
O pânico se apoderou de Varian e cruzou o cais em questão de segundos.
Tomou o peso morto do corpo de Esme dentre os braços rígidos de seu pai e a
segurou entre os seus. Tinha a blusa manchada de sangue; Jason gritou para
solicitar um médico. Varian apertou com força a sua mulher entre os braços e
se apressou a dirigir-se ao povoado.
Em menos de um minuto uma multidão os rodeava, todos falando ao
mesmo tempo, dando conselhos, advertências. Mas ele não ouvia a ninguém.
Quando se aproximavam dos edifícios, Esme abriu os olhos de repente e
começou a resmungar algo em albanês.
— Está bem, meu amor — disse Varian com voz emocionada. — Vai ficar
bem. Não fale. Eu vou cuidar de você.
— Me deixe no chão — disse ela.
Uma sensação de alívio relaxou o peito de Varian, e lhe deu um beijo na
testa.
— Cale-se — lhe disse ele. — Está sangrando.
Dirigiu-se diretamente ao primeiro edifício de aspecto respeitável, que
pertencia ao escritório de um armador. Varian abriu a porta com um chute.
— Vá procurar a um médico — ordenou ao perplexo homem que havia

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atrás da escrivaninha. — Minha esposa está ferida.


Esme fechou os olhos e murmurou algo para si mesma. O homem do
escritório abriu a porta de sua sala privada e Varian levou a Esme para dentro.
Quando o agente naval estava saindo do escritório, Jason entrou a toda
pressa, trazendo com ele um médico.
Com muito cuidado, Varian colocou a sua desfalecida esposa no sofá.
Entretanto, quando entrou o médico, ela ficou de repente alerta e lhe ordenou
que saísse.
Foi necessário que Jason e Varian se encarregassem de mantê-la quieta
enquanto o doutor Fern a examinava. Ela ficou insultando quando ele limpou o
desumano buraco que a bala de Risto lhe tinha deixado no ombro, e logo
amaldiçoou o doutor quando ele lhe enfaixou a ferida.
O senhor Fern suportou estoicamente aquele abuso, comentando tão
somente que sua excelência tinha uma maravilhosa inspiração verbal.
— Só sugiro que, além disso, estejam atentos a possíveis sintomas de
comoção cerebral. A ferida não é grave, como bem assinalou você, milady —
disse ele em tom tranquilizador. — Mas, mesmo assim, você tem duas terríveis
contusões…
— Três — corrigiu ela. — Três estúpidos homens alvoroçando como se
fossem anciãs.
O senhor Fern se despediu dela com uma cortês reverencia. Com a mesma
cortesia descreveu os sintomas que deviam vigiar, e o que fazer em caso de
descobri-los. Continuando, aceitou amavelmente as moedas que Jason lhe pôs
na mão e despedindo-se dele partiu.
— A verdade é que ultimamente me sinto velho — disse Jason a sua filha.
— Sim, muito velho para esse tipo de folguedo.
— E também está sujo e asqueroso. — O olhar de Esme se posou
incômoda em Varian. — Os dois. E não me digam agora que tudo isto é minha
culpa. Sei muito bem.
— É obvio que não é culpa sua — disse Varian em seguida.
— Claro que não — corroborou Jason. — Em primeiro lugar, ela não teria
estado aqui se antes não tivesse se casado com um reprovável egoísta, que
não se preocupa com sua própria esposa da maneira que deveria.

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Ardeu o rosto de Varian.


— Em primeiro lugar, se tivesse se preocupado em cuidar de sua própria
filha, nunca teria chegado a se encontrar comigo.
— Não me diga qual é meu dever, insolente degenerado!
— Eu, ao menos, não a deixei sozinha no meio de cruéis sodomitas e
pederastas.
Esme se levantou de repente do sofá e se colocou no meio dos dois.
— Amán, já não derramaram bastante sangue, agora têm que acabar
derramando também o seu? Não quero que fale mal de meu marido — disse a
seu pai. — Salvou-me a vida em várias ocasiões, e só o que ganhou em troca
foi meter-se em problemas. Não é necessário que o coloque em mais, Jason;
já tem bastante com os meus.
Quando se voltou para Varian, por seus olhos saíam raios de fogo.
— Sinto muito, Varian. Não sou uma boa esposa.
Ficou quieta e enterrou o rosto na andrajosa jaqueta dele.
Ele a rodeou com os braços. Esqueceu-se imediatamente da mortificante
raiva que sentia, e também esqueceu a maneira como desprezava o seu
sogro. Só o que lhe importava nesse momento era que Esme estava viva. E só
o que queria nesse momento era tê-la entre os braços.
Jason pigarreou.
— Parece-me que irei lavar me — disse.

Deixando que seu genro e sua filha desfrutassem de seu sensível


reencontro, Jason se dirigiu para Bridge Inn. Depois de lavar-se e trocar de
roupa, mandou uma mensagem a sua mãe e logo falou com o hospedeiro para
reservar uns quartos, e roupas de reposição para Esme e Varian.
Imediatamente depois Jason se reuniu de novo com o capitão Nolcott.
Sir Gerald Brentmor tinha expressado o desejo de ser sepultado no mar,
disse Jason ao capitão. Seus restos poderiam viajar no mesmo barco que
Ismal.
— Dois cadáveres, então — disse o capitão. — O moço não acredito que
sobreviva nem um dia mais.
Isso mesmo foi o que o senhor Fern confirmaria um pouco mais tarde,

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

quando saiu da sala em que Ismal estava deitado. O médico extraiu a bala e
lhe arrumou a mão machucada, embora estivesse convencido de que ambas as
operações eram inúteis.
Com grande pesar de seu coração, Jason entrou na sala onde estava
Ismal.
A cinzento rosto de Ismal estava cheio de arranhões e tinha uns vergões
impressionantes. E em seus olhos havia um brilho de febre. Embora não
ficasse apenas um fio de respiração, também ele como o Gerald insistia em
falar, mas nesse caso com o capitão Nolcott.
— Não pode negar a um moribundo seu último desejo — disse Ismal com
uma voz que, antigamente doce, agora soava como um doido sussurro.
Jason tomou uma cadeira e a aproximou do lado da cama, sentando-se
logo nela.
— Pode ser que não tenha chegado ainda seu momento.
Algo parecido com um sorriso fez os lábios do Ismal se curvarem.
— Sim, e devo confessar tudo.
— Seria melhor que reservasse suas forças, moço. Gerald está morto. Já
não lhe pode fazer mais dano, e não quero que destrua o futuro de minha
família. Sua bala evitou a forca ao Gerald. Esteja seguro que não permitirei
que caiam mais desgraças sobre minha família. Vou queimar a nota que havia
dentro da rainha negra, assim como as cartas que Risto e Mehmet entregaram-
lhe.
Ismal esboçou outro torcido sorriso.
— Para salvar a honra da família.
— Sim, isso. — Jason se forçou para sorrir enquanto respondia. — Mas
também pelo bem de sua alma imortal, ou, se for capaz de conseguir
sobreviver, de sua consciência.
Ismal fechou os olhos.
— Melhor que não viva. Enviar-me-ia de volta ao Alí. Seria melhor que me
cortasse o pescoço, Leão Vermelho. Agora, ou encontrarei a maneira de contar
a todos minha história.
— Bajo já está realizando os trâmites necessários para tirá-lo daqui. Pode
estar seguro de que temos tudo previsto. O governo de sua majestade não

383
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quer ter nada que ver com você.


— Conseguiu. É muito persuasivo, Leão Vermelho. E muito preparado.
Sim, acredito que quase é mais preparado que eu.
— Absolutamente. Você jogou suas cartas muito mal. Surpreendentemente
mal, quando perseguiu Esme desde Tepelena. Não pude acreditar que
chegasse a fazer uma coisa tão estúpida. — Jason fez uma pausa. — Até hoje.
Os olhos de Ismal se abriram lentamente. O brilho da febre tinha
desaparecido e em seu lugar havia uma nuvem de dor.
— O que viu hoje?
— Não é o que vi, mas o que recordei: o jovem que você era.
— Só em anos.
— Dá no mesmo; é um menino apaixonado por alguém pela primeira vez.
— Não entendeu nada.
— É obvio que sim. Também eu me apaixonei e cometi estúpidos enganos,
porque era muito jovem, arrogante e estava muito seguro de mim mesmo.
Tampouco gostei que me rechaçassem, e como resultado estive a ponto de
acabar destruindo a mim mesmo.
— É você quem me destruiu.
— Eu só tentava salvá-lo. Você não é Alexandre, nem o mundo é o que foi
há dois mil anos. É muito jovem para construir impérios e muitíssimo mais
jovem ainda para enfrentar o amor e a política de uma só vez.
— Ah! Para você não sou mais que um moço estúpido, e agora ri de mim.
Os olhos do estúpido moço se encheram de lágrimas.
A compaixão e a raiva fizeram um nó na garganta do Jason.
— É um louco sanguinário, e você mesmo jogou fora a sua vida. Veja:
ainda não completou os vinte e três anos e já se converteu em um penoso
monte de carne inútil, e parece que será um cadáver antes que se ponha o sol.
Não é a mim que vai ouvir rir, mas ao Diabo a quem esteve escutando nos dois
últimos anos.
— Não tenho medo da morte.
Mas Jason sabia que ele tinha medo, e se sentia impotente pela primeira
vez em sua vida. Toda a inteligência de Ismal não poderia curar seu corpo
destroçado, nem fazer com que seu jovem coração continuasse pulsando.

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Loretta Chase - Serie Canalhas (Scoundrels) 01 - O ENCANTO DE UM PATIFE - The Lion's Daughter

Jason não podia evitar sentir pena por ele. Muito mais do que sentia pelo
Gerald, que tinha esbanjado sua vida em amarguras, cobiças e invejas, sem
amor, nem lealdade, ou alegria de nenhum tipo para que iluminasse seus dias.
Ao final, o menor resto de bondade que pudesse haver em um coração tão
corrupto, só o que poderia fazê-lo sentir era arrependimento.
O caso do Ismal era diferente. Sua alma só estava manchada, mas não
negra de pecados. E por isso Jason sentia mais pena por ele, e mais raiva
também, pela maneira de esbanjar sua beleza, sua força e sua juventude; mas
por cima de tudo, sua inteligência.
Ismal retirou uma mecha de cabelos dourados da fronte que ardia.
Estremecendo, o jovem afastou o rosto para um lado.
— Não há ministros de sua fé aqui — disse Jason em um tom de voz
carinhoso. — Quer que mande chamar um clérigo inglês?
— Não.
A porta se abriu e Bajo entrou no aposento.
— O barco espera — disse ao Jason em voz baixa. — Seus compatriotas
querem que parta daqui.
Ismal não poderia durar nenhuma hora no mar. Mas tampouco ia durar
muito mais se ficasse onde estava agora.
— Quer que o acompanhe? — perguntou-lhe Jason.
— Tem tanta vontade assim de ver-me morrer?
— Se eu estivesse em seu lugar, eu gostaria de ter um amigo a meu lado.
— Sim. Matei a seu irmão por acidente. Era para você que estava
apontando.
Jason suspirou.
— Teria preferido que não o tivesse feito. Desse modo não teria que
agradecer ao Edenmont por me salvar a vida. Se não tivesse quebrado sua
mão, não teria falhado o tiro.
— Eu não gosto nada desse tipo — disse Ismal com uma careta
desagradável, enquanto se voltava de novo para Jason. — Mas é um bom
lutador.
Aguentou a respiração durante um momento e o rosto ficou rígido, com
uma estranha expressão de agonia.

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— Acredito que já falou bastante — disse Jason. — Por que esse médico
apalermado não deu um pouco de láudano?
— Não o quis tomar. — Voltou a respirar com dificuldade e em seu rosto se
desenhou o esforço por esboçar um sorriso. — Debilita as forças.
Bajo se moveu impaciente.
— Leão Vermelho.
Jason ficou de pé.
— Bajo não tem mais remédio senão nos apressar. Irei contigo ao barco.
— Chis.
Ouviram-se passos apressados no vestíbulo que havia no outro lado da
porta. Bajo se aproximou dela para impedir a entrada, mas Esme conseguiu
cruzar a porta.
— Não! — gritou Ismal.
Ergueu sem forças os lençóis tratando de cobrir o rosto.
Ignorando o olhar de advertência que acabava de lançar Jason, Esme se
aproximou ao lado da cama do ferido. Estava tremendo, embora seu olhar
estivesse fixo em Ismal.
— Tem muita sorte de que meu marido seja o mais nobre dos homens —
disse ela. — Me deu permissão para que tente salvar sua vida, e isso é o que
vou fazer.
Afastou a roupa de cama de um tapa. Ismal ficou muito quieto, olhando ao
teto fixamente, enquanto ela estudava suas ataduras empapadas de sangue.
— Esme, está incomodando ao pobre…
— É muito tarde para pensar em seu orgulho — disse ela fazendo um
gesto a seu pai para que se afastasse. — Me Escute — disse ao Ismal.
Ele ficou olhando perplexo.
— Farei tudo o que posso — continuou dizendo ela. — De modo que, se
sobreviver, será graças a mim, e só graças a mim. Terá que recordá-lo sempre,
Ismal.
— E se morrer? — ofegou ele.
— Então se queimará no inferno.

Quase uma hora depois de que Esme tivesse começado seu duvidoso

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trabalho de misericórdia, Jason entrou na sala privada da estalagem Bridge


Inn, onde Varian estava tentando engolir um almoço.
Jason deixou sua bolsa de viagem aos pés de Varian.
— O capitão Nolcott recolheu as peças de xadrez enquanto estávamos com
o Gerald. Aí está tudo, soando como dinheiro novo.
Varian negou friamente com a cabeça.
— Tenho que pedir desculpas a você — disse Jason. — E agradecê-lo.
Antes que Varian pudesse responder, a mulher do hospedeiro entrou na
sala de jantar.
— Oh, o que quiser, querida! — disse Jason respondendo amavelmente a
sua pergunta. — Desde que o prato esteja cheio. E me traga a melhor garrafa
de cerveja que possa encontrar.
Quando ela se foi, ele se dirigiu de novo a Varian.
— Salvou-me a vida.
— Não era minha intenção — respondeu Varian secamente. — Só o que
queria era matar a ele. Deixei que Esme trate de reparar o dano que ele fez
sozinho porque era superior a suas forças. Sentia-se cheia de culpa, acredito,
porque esteve a ponto de assassiná-lo por um crime que ele não tinha
cometido. Parece-me que não fui muito eficaz recordando-a dos crimes que
sim cometeu. Estava segura de que Ismal sobreviveria apesar de tudo e que
voltaria para vingar-se… de todos nós.
— Assim é. Mas agora já não pode. Seu orgulho não o permitiria — disse
Jason dando de ombros. — Se sobreviver.
Varian tratou com todas suas forças afastar de sua mente a imagem de
Ismal golpeado e ensanguentado.
— O que vai acontecer a ele, se sobreviver?
— Deveriam levá-lo a Newgate para que o enforcassem, mas isso poderia
criar complicações diplomáticas. Também há a questão de se manchar a honra
de sir Gerald Brentmor o que não ia fazer nenhum bem ao reino. Felizmente,
já não tenho que preocupar a corte com esse tipo de intrigas. Comecei a
resolver esses assuntos faz uns meses, quando seguia a pista de Ismal —
explicou Jason. — Foi suficiente para que o sócio do Gerald, o senhor
Bridgeburton, se afogasse em Veneza. As autoridades já suspeitavam dele. E

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eu os animei para que não suspeitassem de ninguém mais.


— Mas Ismal?
— Deixaram-no para mim. O mandarei para Nova Gales do Sul aos
cuidados de uns amigos.
A hospedeira chegou trazendo o almoço de Jason, que ele começou em
seguida a devorar com entusiasmo. Seu apetite, ao contrário do de Varian, não
parecia ter sido afetado absolutamente pelos acontecimentos da manhã. Mas
Jason estava acostumado à violência, pensou Varian.
Jason ergueu os olhos de seu prato.
— O corpo do Gerald viajará no mesmo barco que Ismal. Já menti
bastante por ele. Não suportaria a hipocrisia de um funeral.
— Estou seguro de que nada disto é meu assunto.
— Suponho que lamenta por esse porco, e culpa a si mesmo de tê-lo feito
vir até aqui. Acredita que morreu por sua culpa.
— Se não o tivesse subornado com o jogo de xadrez, não teria vindo
comigo — disse Varian com voz tensa.
Jason sacudiu a cabeça.
— Um dos homens de Ismal esteve a ponto de me deixar fora de combate
no cais. Gerald me tirou daquele apuro. Essa deve ser a única coisa decente
que meu irmão fez, intencionalmente, por alguém. E após um instante, já
estava brigando comigo por seus preciosos peões e torres. Adverti-o que
partisse enquanto ainda podia fazê-lo. Mas não, tinha que ir com o maldito
jogo de xadrez. — serviu-se de uma magra fatia de pão da bandeja que havia
frente a ele. — Sua cobiça o matou, Edenmont, como de qualquer modo ia
acontecer, cedo ou tarde.
Varian afastou seu prato para o lado.
— Já vejo.
Jason ficou olhando o prato que Varian tinha apenas provado.
— Perdeu o apetite?
— Já não tinha muito quando comecei — disse Varian.
— É muito sensível ao sangue — disse Jason lubrificando a fatia de pão
com manteiga. — Não estranho que Esme tenha destroçado seus nervos.

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Jason acompanhou o seu defunto irmão e o que ficava de Ismal ao


barco. Deixando a Esme aos cuidados da mulher do hospedeiro, Varian o
acompanhou. Não estava seguro de por que o fazia. Pode ser que fosse a
necessidade de ver o final de tudo aquilo.
Tinha previsto ficar na coberta enquanto Jason acomodava ao Ismal no
camarote. Entretanto, quando Jason acabou, Ismal pediu para falar com lorde
Edenmont.
Varian ficou de pé ao lado do estreito beliche. Os olhos azuis de Ismal
estavam completamente inchados e roxos, e a antigamente sensual boca não
era mais que uma massa de carne em seu maltratado rosto.
— Lutou bem — disse Ismal com voz chiada.
— Teria me comportado de uma maneira muito mais elegante em um
duelo — respondeu Varian com frieza. — No futuro deveria considerar a
possibilidade dos duelos. Mais elegantes, com as regras claramente definidas.
A gente sabe exatamente o que tem que fazer.
— Tão inglês. Tão educado. Arrebatei a sua mulher.
— E eu a tomei de volta — disse Varian. — E me vinguei. Já sei que os
albaneses carregam suas vinganças durante décadas, como fazem aqui os
advogados com os pleitos. De qualquer modo, apreciaria muito que
decidíssemos que nossas diferenças acabam aqui.
— Sim. — Ismal tentou levantar a cabeça e fez uma careta de dor. Mas se
deitou de novo, golpeando com a mão boa de maneira inquietante as ásperas
mantas. — A chamei de minha puta.
— Mas não o era. Tão somente pretendia ser desagradável.
A inchada boca de Ismal se arqueou. Parecia que estava tentando sorrir.
— Isso é o que te disse ela?
— Não o teria curado se a tivesse desonrado. Não necessito que me diga
nem precisa que eu pergunte.
— Vejo que não é estúpido.
— Obrigado.
Ismal olhou além de Varian, para a porta aberta.
— Leão Vermelho.
Jason se aproximou da cama.

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— Faz as pazes por mim — pediu Ismal.


Jason tirou da jaqueta uma pequena bolsa belamente bordada.
— Ismal tentou roubar a sua mulher e além disso tentou matá-lo — disse
ele. — Apesar desses crimes, você permitiu que sua esposa o aliviasse de
seus sofrimentos. Se sobreviver, Ismal deverá sua vida a vocês. Estas
circunstâncias criaram uma carga que lhe parece intolerável.
— Eu não…
— Não interrompa, Edenmont — o repreendeu Jason — Isto é uma
cerimônia.
Varian se calou.
— Ele valoriza a sua mulher muito mais do que valoriza as outras mulheres
— seguiu dizendo Jason. — Está de acordo, como muitos de seus
compatriotas, de que a pequena guerreira vale mais que dois homens bons.
Também deve levar em conta seus grandes dotes curativos, tanto como sua
aristocracia. Finalmente, considerando que ele também é uma pessoa nobre,
sua honra deve ter sido em grande valia. Segundo seus cálculos, isto é o que
deve a você — disse Jason dando a bolsa a Varian.
Varian ficou olhando ao ferido.
— Por minha honra — disse Ismal.
Varian esvaziou o conteúdo da bolsa na palma da mão: diamantes,
esmeraldas, safiras, rubis.
— Meu deus — murmurou ele.
— Aceitando esta multa, lorde Edenmont, está de acordo que a afronta de
Ismal está paga e não deve mais nada. Aceitando-a declara que sua honra
ficou satisfeita e que as duas famílias estão em paz. Também minha honra fica
assim restaurada — explicou Jason, — da mesma maneira.
Varian ficou olhando aturdido as pedras preciosas que tinha na mão.
— Não é bastante — disse Ismal preocupado. — Eu disse isso, Leão
Vermelho, não vai ser…
— Não, não, é suficiente — disse Varian rapidamente. — Quase diria que é
muito…, mas suponho que isso seria um insulto.
— Vê? — disse Jason ao Ismal. — Entende muito mais do que você crê.
Nem todos os ingleses são tolos.

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— Entendo a compensação — disse Varian enquanto voltava a colocar as


pedras na bolsa. — Houve uma época em que em meu país resolviam as
diferenças da mesma maneira. E em alguns casos ainda se segue fazendo. O
que não entendo é por que fez toda esta viajem para conseguir um jogo de
xadrez, quando já possuía uma fortuna em diamantes.
— Vim aqui para me vingar — disse Ismal. — De sir Gerald. Pelo resto… o
destino, possivelmente. — ficou olhando para Jason. — Ou minha própria
estúpida arrogância.
— Entendo-o bastante bem — disse Varian. — Esme me fez o mesmo.

Capítulo 33

Depois de deixar Ismal, Esme caminhou lentamente até o quarto que


Jason tinha reservado. Lavou-se, colocou o vestido que tinham deixado ali para
ela e comeu quase todo o almoço, antes de deitar-se rendida na cama. Não
despertou até meio tarde, quando Varian e Jason recolheram-se.
Sem fazer caso de suas súplicas de ficarem em Newhaven para descansar,
colocaram-na em uma carruagem. Minutos depois, toda sua atenção estava
posta em Jason e na história que ele estava contando. Começava vinte e cinco
anos atrás, quando tinha se apaixonado por Diana e a tinha perdido, a ela e
suas propriedades, por culpa da traição de sir Gerald. Contou-lhe a confissão
de seu tio no leito de morte, junto com a surpreendente revelação a respeito
da tia de Esme, algo que tinha envenenado a mente de sir Gerald, e como ela
o tinha chantageado com seus próprios atos e com seus próprios mal-
entendidos.
— Admiro a minha tia pela maneira como procedeu para castigar a meu tio
— disse Esme interrompendo o relato de seu pai. — Mas isso não muda o que
ele fez. Destroçou sua vida.
— Eu tentei dizer isso antes — respondeu Jason. — Estava decidido a me
arruinar de qualquer modo. Gerald só acelerou o inevitável. Faz anos me dava
conta de que me casar com Diana teria sido um desastroso engano. Os dois
fomos rebeldes e egoístas. Você não me conhecia então. Não tem nem ideia de
como a Albânia me mudou, e sobretudo sua mãe. Assim como as experiências

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de Diana a mudaram. Quando voltamos a nos encontrar no ano passado, nós


dois éramos pessoas diferentes.
— Pode ser que tenha sido rebelde, mas egoísta não posso acreditar —
disse Esme. — Enviou a ela um jogo de xadrez que valia suas boas cinco mil
libras em um momento em que estava muito necessitado de dinheiro.
— Minha querida menina, não tinha nem a mais remota ideia do valor que
tinha — disse ele com impaciência. — Ganhei esse maldito jogo de xadrez em
uma partida de cartas.
Esme não voltou a abrir a boca até que o relato do Jason chegou aos
acontecimentos daquela manhã, quando esteve no porto esperando para
capturar Ismal… e se deu conta de que aquela tarefa ia ser bastante mais
complicada, quando viu Esme sair da carruagem ao lado de Ismal.
Então ela se viu obrigada a explicar como as tinha sido apanhada para
acabar ali. Quando acabou seu relato, Jason ficou olhando fixamente. Varian só
olhava distraído pela janela.
— Maldita seja, Esme, será que não conhece ainda a sua avó? —
perguntou seu pai. — Não se dá conta de que ela conhece perfeitamente o seu
próprio filho? Apostaria a vida que sabia que Gerald estava desesperado e
tramando fugir; e garanto que ela estava disposta a ajudá-lo. Faria qualquer
coisa para livrar-se dele.
— Então, por que não lhe deu a rainha negra e não deixou que levasse
todo o jogo de xadrez? — perguntou Esme.
— Porque ele teria se conformado com menos. Embora imagine que ela
suspeitasse que estava disposto a roubar também o jogo de xadrez. Pode ser
que tivesse em mente fazer algo a esse respeito…, mas a drogaram antes que
pudesse fazê-lo.
— Percival pretendia fazer algo — interveio Varian com calma. — Inclusive
suspeitava que Ismal estava envolvido em todo o assunto. O pobre menino
jamais teria imaginado que o drogassem às poucas horas de ter chegado a
casa de seu pai.
— Como os dois teriam desejado que me acontecesse também — disse
Esme com voz firme.
Nenhum dos dois homens replicou, o que já era uma resposta bastante

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clara. Como era normal, tudo o que se acontecia acabava sendo culpa dela.
Esme fechou a boca e não a voltou a abrir, exceto para comer, quando fizeram
uma parada em Dorset Arms, em East Grinstead.

Varian sentiu que a tensão ia aumentando ao longo do jantar. Jason


também parecia ter notado, porque preferiu fazer o resto da viagem na boléia,
com o chofer. Fazia uma noite muito boa, disse Jason, e não tinha visto sua
pátria já fazia um quarto de século.
Depois de passar os cinco primeiros minutos a sós com Esme no interior
do carro, em silêncio, Varian começou alegrando-se por ter feito as pazes com
seu sogro. Não tinha vontade de meter-se em novas confrontações. Ainda
tinha os nervos destroçados depois de tudo o que tinha acontecido. E aquele
tinha sido, sem dúvida, o pior dia de toda a sua miserável existência. Apenas
que podia olhá-la sem ver a lâmina mortal daquela adaga junto a seu
pescoço. Olhando para a escuridão da noite, Varian desejou que Esme
mantivesse a boca fechada durante toda a viagem até Londres.
— Queria estar com você — disse ela com voz entrecortada e lastimável.
— Queria dar-lhe o jogo de xadrez, para que não tivesse que seguir
trabalhando tão duro, destroçando as mãos.
— Deus bendito — murmurou ele para a janela. — Minhas mãos.
— Antes eram suaves e brancas. E olhe agora. Estão morenas e cheias de
calos e…, também cheias de cortes e arranhões. E suponho que tudo é minha
culpa. Mas você está zangado porque eu tentava…
— Porque esteve a ponto de conseguir que a matassem! — Ele se voltou
para ela e de novo apareceu ante ele, pela enésima vez, a mesma imagem: o
brilho de um disparo e a fumaça, e Esme caindo ao chão. — Por que não ficou
quieta e me deixou cuidar? Pelo amor de Deus, acaso acredita que ia deixar
Ismal, ou qualquer outro, sequestrá-la? Acredita que sou tão inepto?
— Estava pensando em você! Não podia deixar que ele o desonrasse!
— Não podia deixar que o fizesse! Que demônios acredita que fazia eu ali?
Tomar um banho na praia? — Ele fechou os olhos. — Por que pergunto isso?
Pensa. Nunca pensa nada.
— Sinto muito — disse ela. — Não pretendia insultá-lo. Eu sei que veio

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para me salvar.
— Mas não acreditava que fosse capaz de consegui-lo. «Vinga ao Jason.
Vinga a mim.» Isso era o que queria que fizesse: vingá-los. Mas nunca pensou
nos outros, não é verdade? — perguntou ele. — Ou o que ia significar para
mim passar o resto da vida me culpando e me amaldiçoando por não ter
encontrado a maneira de mantê-la a salvo.
— Então, por que não deixou que ficasse com você? — gritou ela. — Pedi-
lhe isso, mas você não quis me ouvir.
Ele fez uma careta de dor. Deveria tê-la deixado ficar com ele, deveria ter
sabido que não podia perdê-la de vista. Mas ela já não era uma menina, e ele
não podia ser sua babá durante o resto da vida. Não podia viver com o medo
constante de que ela pudesse fazer alguma loucura se ele não estivesse ali
para preveni-lo.
— Parece que me expliquei bastante claro em Mount Eden — disse ele com
voz calma. — Acreditei que tinha entendido. Mas tem tão pouca fé em mim,
que nem sequer me consultou. Deveria ter escrito me explicando o que
pensava fazer. Só estava a três horas de distância. Entretanto, em lugar disso
decidiu escapar com esse maldito jogo de xadrez. E fazer tudo sozinha, em
plena noite. Na Inglaterra, onde uma dama não põe um pé na rua de noite a
não ser que vá acompanhada.
Ela apertou as mãos com força sobre o regaço.
— Já sei que foi um engano. Mas tinha perdido a cabeça. E já sabe como
me fico, Varian.
— Posse demoníaca.
— Sim — respondeu ela com tristeza.
Tinha-o levado a um beco sem saída. Ele não podia brigar com aquele
demônio que a dominava.
Varian ficou pensativo um bom momento, consciente dos olhares
preocupados que ela lhe dirigia.
— Muito bem — disse ele finalmente. — Se não puder dominar seu caráter,
possivelmente não poderemos ter filhos. Nunca.
Ela deixou escapar um suspiro que mais parecia um agudo chiado.
— Não, não pode…

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— Não faço mais que tratar de imaginá-la como mãe. A primeira vez que o
pobre diabo a faça perder a paciência, pode perder a cabeça e atirá-lo pela
janela. E é obvio, sentir-se terrivelmente mal depois disso. Logo prometerá
não voltar a fazê-lo de novo e insistirá para que façamos outro. E já sei o que
acontecerá depois: quando o bebê despertar no meio da noite, o atirará
contra a parede.
— Eu nunca, nunca na vida faria mal a um filho.
— Não acredito. — Ele cruzou os braços. — Não acredito que venha me
dizer: «Varian, o menino está me deixando louca, o que podemos fazer?
Podemos — recalcou ele. — Como me pedindo ajuda. Consultando minha
opinião. Como se tivesse um mínimo de confiança em meu bom julgamento.
Em minha honra. No que sinto.
O lábio inferior dela começou a tremer.
— Eu entendo o que tenta me dizer. Sinto muito, Varian. Só queria dar o
que por direito pertence a você — disse ela com voz apagada.
Ele a segurou entre os braços e a sentou em seu regaço.
— Não vais distrair-me com suas lágrimas. Me conte toda a verdade.
— Já o fiz — resmungou ela baixando o rosto.
— Somente me contou a metade. A outra metade é que queria provar-me,
não é assim? Queria comprovar o que faria quando se fosse de Mount Eden por
minha culpa.
Ela levantou a cabeça de repente. Ele olhou fixamente seus brilhantes
olhos verdes.
— Só porque não sou tão esperto como uma parte de sua família não quer
dizer que seja estúpido — disse ele. — Estou seguro de que ainda está
perguntando o que farei. Deus, que pequena idiota. — Ele a apertou contra seu
peito. — Que moça tão estúpida, teimosa, imprudente e apaixonada.

Poderia ter sido pior, disse Esme a si mesma. Não deveria lhe importar que
ele dissesse aquelas coisas, sempre e quando a tivesse sentada em seu
regaço. Após num momento, até ele ficou adormecido com os braços ainda
rodeando a cintura dela. A série de acusações parecia tê-lo acalmado, além de
que certamente não teria dormido por toda à noite. Também ela se sentia mais

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tranquila, já que tinha ouvido suas queixas e tinha compreendido que estava
zangado porque ela o tinha assustado e ferido. Não se sentiria assim se não se
importasse um pouco com ela. Tranquilizou-se, e pensou que poderia ter sido
pior: ele poderia ter decidido que merecia uma surra, embora ela não pensasse
realmente que a merecesse.
Esme desejou ficar assim, protegida entre os braços dele para sempre.
Mas, após algumas horas já tinham chegado a Londres; e, minutos mais tarde,
à casa dos Brentmor.
Percival saiu correndo à rua, com uma tropa de serventes atrás dele, antes
mesmo que a carruagem se detivesse. Entretanto, a nobre anciã Brentmor não
chegou a tanto e nem sequer saiu a esperá-los à entrada.
Rígida como um pau, estava de pé no salão, aguardando a chegada da
família por completo. Olhou a Varian com o cenho franzido, quando o viu
entrar levando a Esme nos braços, ficou olhando a Esme quando Varian a
deixou no sofá, e logo olhou ao Percival, quem vinha caminhando um passo
adiante de seu tio. Foi Jason o filho que não tinha visto fazia mais de duas
décadas e meia a quem a nobre anciã dedicou o mais sombrio de seus olhares.
Jason sorriu, deixou no chão a bolsa de viagem que continha o jogo de
xadrez, aproximou-se dela e lhe deu um forte abraço e um beijo na bochecha.
Logo se afastou um passo atrás e ficou olhando com franca admiração.
— Minha querida mamãe, que bom vê-la.
Seu agudo olhar de cor avelã o esquadrinhou de cima abaixo.
— Não posso dizer o mesmo de você. Esteve brigando no fronte? Com um
punhado de marinheiros e bárbaros infiéis. Para não mencionar seu rebento e
esse marido tolo que tem, que parece que recebeu uma boa surra. E seu irmão
se salvou da forca, só para apresentar-se ao Julgamento Final. Isso é algo que
terá que lhe agradecer…, ao menos evitamos ter que vê-lo pendurando em
uma corda, abatido e esquartejado.
Depois que outros a saudassem, a anciã se deixou cair em uma poltrona,
disse ao Jason que lhe servisse um brandy e pediu que lhe explicasse tudo o
que tinha acontecido.
O que obteve foi um rápido resumo do relato que Jason lhes tinha feito na
carruagem. Pareceu ficar satisfeita com isso no momento. Então se voltou para

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Esme dirigindo um de seus olhares sulfúricos.


— Seu pai e eu não nos vimos em vinte e cinco anos, mas ele já sabe o
que penso a respeito. Em que demônios estava pensando você?
— Estava zangada — respondeu Esme com calma. — Não podia pensar em
nada com clareza.
— Se estava zangada, deveria ter vindo consultar comigo. Nunca antes
tinha mordido a língua. Mas a deixava muito solta, de fato — murmurou a
anciã. — Não foi certo o que fez.
— Sei, avó. Sou impossível. Mas se quer me advertir, ao menos deixa que
os homens recolham-se. Os dois estão muito cansados, embora sejam muito
orgulhosos para confessar isso.
A anciã ficou olhando a seu filho, que tinha sentado junto dela, do outro
lado da chaminé, e logo a Varian, que estava sentado no braço do sofá, ao lado
de Esme.
— A verdade é que não têm bom aspecto — se queixou ela. — E você
tampouco. Podem ir para a cama. — Logo olhou ao Percival assentindo com a
cabeça. — Você também. E não fique acordado para bisbilhotar detrás das
portas. Acredito que já o tem feito suficiente para o resto de sua vida.
Percival se ruborizou.
Varian fixou seu frio olhar na anciã.
— Espero que diga isso como um cumprimento, senhora. Acredito que
todos nós temos razões para estar agradecidos a seu neto.
— Só porque Deus não quis, as coisas não acabaram muito pior… — falou
ela.
— Mas não foi assim. E se não tivesse sido assim, nenhuma pessoa
razoável poderia reprová-lo por tentar fazer o que era sua obrigação. — Varian
se levantou e se aproximou do menino. — Me parece que a história de seu tio
fala por si mesmo. E em algumas partes nas que, evidentemente, não o faz,
posso imaginar. Agradeço profundamente, Percival, o valor e a inteligência que
demonstrou possuir.
Percival se ruborizou ainda mais.
— Oh, céus…! Mas se eu não… Tenho que confessar que lhe menti e lhe
escondi segredos… e a verdade é que sinto muito.

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— Não imagino que pudesse tê-lo feito de outra maneira — disse Varian
esticando uma mão para o menino.
O remorso de Percival pareceu acalmar-se e ele estreitou a mão que
Varian oferecia.
«Obrigado», disse Esme em silencio a seu marido. Inclusive ela se
esqueceu de Percival. Também ela tinha que recordar o muito que devia a seu
primo: o que tinha que lhe agradecer e as desculpas que lhe devia, porque em
mais de uma ocasião o tinha julgado mal.
Ouviu seu pai fazendo eco dos sentimentos de Varian, e a sua avó
balbuciando que o menino tinha feito o que podia, depois de tudo, e que
ninguém lhe podia pedir mais que isso. O que Esme poderia dizer lhe parecia
redundante. Por isso, preferiu aproximar-se de seu primo e lhe dar um abraço.
Ele o devolveu bastante envergonhado.
— Ontem a noite estava muito preocupado — disse a ela em tom de
confidência. — Mas estava seguro de que sua excelência estaria com você.
Mamãe me disse que era muito mais inteligente do que aparentava. Disse-
me… — Piscou duas vezes e logo ficou muito quieto.
Quando se separava dele, Esme se deu conta de que Jason e sua avó
ficaram também em silêncio. Todos estavam olhando Varian.
Este estava tirando as peças de xadrez da bolsa de viagem e colocando na
mesinha que havia ao lado do sofá. Quando acabou devolveu as olhadas com
olhos inocentes.
— Pensei que estava cansado —disse a anciã. — Não estará pensando em
jogar agora, verdade?
— Detesto xadrez — respondeu ele. — É tediosamente complicado. Só
olhar os outros jogando me põe frenético.
— Não é necessário que você goste — disse Jason impaciente. — Só o que
tem que fazer é vendê-lo.
Varian elevou as sobrancelhas.
— Os St. George não se dedicam aos negócios. E não posso vender a
herança de Percival por nenhum preço.
— Deus meu… Oh! Mas eu não. É o dote de Esme, senhor. Mamãe me
disse isso, e também o deixou por escrito.

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Varian olhou a Esme. Ela não disse nada, nem era necessário que dissesse
nada. Bastante fez olhando para o jogo de xadrez.
— Não tem nada que ver comigo — disse ela. — O dote tem que passar ao
marido, que dispõe dele como lhe agradar.
— Como fiz ontem a noite — disse Varian. — Eu prometi a sir Gerald.
Cumpriria sua parte do trato só se eu não pudesse desfrutar da recompensa.
De qualquer modo, como o resto de suas propriedades, deverão passar a seu
herdeiro.
Percival engoliu saliva com dificuldade.
— Obrigado, senhor, mas eu… quer dizer, papai… não era necessário que o
subornasse. Deveria ter pensado que eu… — Piscou várias vezes. — Mamãe
queria que o tivesse a prima Esme.
— Só para assegurar-se de que poderia conseguir um bom marido. Sua
mamãe não podia saber que Esme seria capaz de encontrar um bom marido
por si mesma. Não sendo assim, teria deixado o jogo de xadrez a você.
Percival começou a protestar, mas em seguida aceitou, a ponto de começar
a chorar.
— Gra… obrigado, senhor, é muito…
— Velho — terminou Varian a frase bruscamente. — Por que não vai ver se
pode encontrar uma embalagem apropriada? Não acredito que queira voltar a
guardá-lo entre a roupa interior de Esme outra vez, verdade?
O menino saiu correndo. Justo quando a porta se fechava atrás dele, Esme
o ouviu soluçar. Sua própria garganta se fechou. Deu-se conta de que seu pai
tinha um brilho suspeito nos olhos. A seu lado, a anciã aspirou com força pelo
nariz, e Varian teve que reconhecer que a nobre viúva era capaz de verter
alguma lágrima. Duas, para ser precisos, que limpou dos olhos com
indignação.
Porque ela tinha entendido, assim como os outros, o que aquele presente
significava para o Percival. Não tinha nada de sua querida mãe, nada para
poder recordá-la. Seu pai se encarregou de que assim fosse. Tudo o que
restava das posses de Diana era aquele jogo de xadrez. Que valia uma fortuna.
Limpando suas próprias lágrimas, Esme lançou um olhar cansado a seu
marido.

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Sua excelência bocejou.


— Se me desculpam — disse ele. — Foi um dia muito longo. Será melhor
dizer-lhes boa noite.

— Faz-me sentir envergonhada — disse Esme.


Varian estava se acomodando entre os travesseiros, com as mãos
entrelaçadas atrás da cabeça. Através dos olhos entreabertos ficou olhando a
sua esposa, que tinha sentado com as pernas cruzadas na cama ao lado.
— Suponho que não pode evitá-lo — disse ele. — Sou tão nobre, tão
indecentemente santo… É obvio que me adora, e beija o chão que piso. Depois
de tudo sou a grande luz dos céus, seu formoso deus.
O melancólico olhar de Esme se passeou do rosto dele a seu torso nu, e
logo se deteve em suas próprias mãos, entrelaçadas sobre o regaço. Suspirou.
— É verdade. Isso é o que sinto.
— Às vezes. Em seus estranhos momentos de tranquilidade.
— Não é fácil estar tranquila tendo-o por perto. Olho você, e logo olho a
mim mesma… — Ela duvidou.
Ela fez um leve gesto de impotência.
— Não entendo por que Deus pôde juntar duas pessoas tão diferentes.
— Acredita que o Altíssimo cometeu um terrível engano e, sendo tão
inteligentes, nós deveríamos corrigi-lo de algum jeito?
Ela se moveu incômoda.
— Sim, às vezes penso nisso, e me põe muito nervosa.
— Às vezes até fica louca — a corrigiu ele. — E a faz pensar coisas idiotas:
que não quero viver com você, por exemplo, e que não quero ter filhos com
você. Entretanto, estou disposto a fazê-la compreender quão equivocada está
a respeito.
Ela ergueu o rosto.
— Então vai me levar para Mount Eden?
Ele assentiu com a cabeça.
— E… E teremos uma família? — disse ela ruborizando-se.
Ele deu de ombros.
— Não tenho outra opção. Acha repugnantes todos os métodos de

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prevenção da gravidez. Não queria voltar a ferir sua tênue sensibilidade, nem a
minha — acrescentou um pouco entre dentes.
— Mas isso é o que quer? — insistiu ela. — Possivelmente… é possível que
eles sejam como eu. Farei tudo o que possa para evitá-lo, mas não existe
remédio para isso. Não se fazem os filhos com a facilidade com que se prepara
um cataplasma.
Ele sorriu ligeiramente.
— Está tratando de me persuadir ou de me tirar a ideia da cabeça?
— Pensava que, o melhor, quando pensa em filhos, faz ideia de filhos que
se pareçam com você. Os homens costumam fazer isso — disse ela na
defensiva.
Ele assentiu com a cabeça.
— Assim os tinha imaginado. E me enche de um horror indescritível.
Felizmente, parece-me que é cientificamente impossível que tenha meninos
exatamente como eu, mesmo se os pudesse fazer sozinho, o que é um fato
cientificamente muito mais impossível. Logo tenho que fazê-los com você…
Ficou olhando pensativamente.
— É bastante miúda e tem um temperamento horrível. Mas prometeu que
amadurecerá e, ao fim de contas, parece-me que seu temperamento é
excitante. Os gritos e os insultos quero dizer — esclareceu ele. — Não os
aspectos suicidas ou homicidas. Por sorte, penso deixá-la muito ocupada
criando nossos filhos e cuidando de mim, de modo que não sobre tempo para a
violência.
— Não me provoque — disse ela dando um empurrão com o joelho. — Não
sou tão selvagem como diz.
— Só me preocupa que a vida doméstica pareça aborrecida a você.
— Ora! Você não entende — disse ela aproximando-se dele. — Há outras
maneiras para comprovar o valor de uma pessoa que as guerras e as
inimizades de sangue. Hoje lutou como um bravo guerreiro. O mesmo que
lutou todas as semanas passadas, e foi uma batalha muito dura em todos os
sentidos. — Ela apoiou uma mão sobre o peito dele. — Essa é a batalha que
realmente quero brigar, Varian…, a seu lado.
Sua carícia o esquentou. E suas palavras o excitaram.

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— Sei — disse ele amavelmente. — Desgraçadamente, eu estava disposto


ao martírio. Fui em busca da redenção com uma vingança, tratando de
demonstrar que sou melhor, suponho, que a formosa criatura com quem me
casei.
Ela afastou a mão.
— Não sou maravilhosa. Pergunte a meu pai. De qualquer modo, posso…
— Maravilhosa — repetiu ele com firmeza. — Por que lhe parece sempre
tão fácil enfrentar as feias verdades e tão difícil aceitar as que são formosas?
Quando tenho algo terno ou sentimental a dizer, obriga-me a camuflá-lo com
acuidades e brincadeiras tolas. Não me importaria, se não fosse porque
sempre se empenha em ver o aspecto mais escuro de tudo.
— O aspecto brincalhão, quer dizer?
— O aspecto mais difícil de tudo. — sentou-se na cama e tomou as mãos
de Esme. — Amo você — disse, — tal e como é.
— Sim, não é necessário que diga…
— Me escute — disse ele.
Ela inclinou a cabeça.
— Recorda a noite que passamos a caminho de Poshnja, quando eu disse
que você foi a chama e eu a traça? — perguntou ele.
Ela começou a sacudir a cabeça, ao estilo albanês, e em seguida retificou e
assentiu ao estilo inglês.
— Sim, lembro-me.
Aquele gesto mínimo, para ele, de volta a Inglaterra que agora era sua
casa, quase o desarmou. Mas estava empenhado em fazer que o entendesse, e
acreditasse nele totalmente.
— Disse a você que era como uma chama que ardia continuamente. —
Varian entrelaçou seus dedos com os dela. — Me faz arder. Desejos, sonhos,
coisas que tinha guardado tão profundamente que nem sequer sabia que
existissem. Eram como madeira morta, como lenha. E você tem feito toda ficar
a arder.
Ela tinha a vista fixa em seus dedos entrelaçados.
— Aquela noite se referia ao desejo.
— O desejo me dominava, é verdade. Naquele momento, era só o que

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compreendia. Mas fiquei a seu lado, quando meu antigo eu me dizia que
partisse dali, como sempre tenho feito assim que parecia que poderia ter
algum problema. Escapava de manhã, até mesmo da vida, acredito.
— Não é você o único que teve desejos de escapar — disse ela com
culpabilidade. — Mas você não o fez nenhuma só vez, desde que o conheço, e
eu o tenho feito várias vezes.
— Mas não para escapar de seus problemas, a não ser para enfrentar a
eles cara a cara. Para lutar por sua honra e sua independência. Ontem à noite,
e nessa manhã, estava lutando por seus direitos, por seu matrimônio, por
mim.
— De todas as maneiras, não causei mais que problemas.
— Pode ser que fosse necessário. — A maneira como ele estalou a língua
fez ela erguer o olhar. — Parece que só sou capaz de aprender com as lições
mais duras — explicou ele. — Por você aprendi que posso lutar não só contra
rivais sem escrúpulos, mas também contra as circunstâncias. Queira ou não. A
maioria das vezes, não, como já viu. Estive dando chutes e gritando todo o
caminho. Porque foi horrível, Esme.
— Sim, horrível — concordou ela com tristeza.
— E glorioso — acrescentou ele. — Como você. Como sua vida. Acredito
que o Altíssimo cometeu um engano. Mas eu estou convencido de que um anjo
a enviou para mim. — Varian lhe soltou as mãos e, sorrindo, acariciou-lhe as
bochechas. — Um que certamente tinha lido Childe Harold e decidiu que era
melhor transformá-lo em comédia.
— Childe Harold? — disse Esme fazendo um gesto com a mão. — Se
refere ao poema de lorde Byron? Que fala sobre a Albânia?
— Albânia não é mais que uma parte de um longo relato sobre um
vagabundo infeliz. A noite que estava em Bari, com o Percival, e ele mentiu
sobre o da rainha negra, ele estava lendo o primeiro canto.
Fechando os olhos, Varian citou:
— «Por entre os longos labirintos do pecado correu / mas não pôde expiar
suas faltas / suspirou por muitas, embora só a uma amava / e essa uma, ai!
Nunca pôde ser sua.» — aproximou-se de Esme e lhe sussurrou ao ouvido: —
Como soa isso?

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Esme estremeceu e se inclinou para trás.


— Sim, embora essa não é toda a passagem. Percival me emprestou o
livro faz umas semanas. Não sei de cor, mas me lembro que segue contando
como o homem corrompe à garota que ama e logo a trai com outras, enquanto
gasta todo o dinheiro dela.
Varian abriu os olhos.
— Vejo que conhece bem o texto. Sabia também que sua tia havia dito ao
Percival que eu sou como Childe Harold?
— Pode ser que ela o visse assim. Mas comigo você não vagabundeou
sem rumo fixo, se zangando e atuando de maneira trágica.
— Porque o pícaro anjo tinha decidido que minha peregrinação tinha que
ser diferente, e pôs o Percival em meu caminho. Tudo o que aconteceu da
noite que me mentiu sobre a rainha negra, cada um dos problemas, cada
medo e cada dor de cabeça, foi necessário, tudo isso era parte de uma viagem
iniciática.
Deitando-a sobre os almofadões a seu lado, Varian lhe acariciou o cabelo.
— O mais importante dessa viagem é que descobrimos um ao outro —
continuou dizendo ele. — E eu quero seguir descobrindo coisas, Esme: os
meninos, a família, o lar, toda a vida e todo o amor, com você.
— Eu sempre pensei na vida como uma batalha — disse ela com voz
rouca. — Uma viagem, mesmo uma difícil, é o melhor para mim. — Os olhos
começavam a nublar-se e Esme piscou várias vezes com força. — E é muito
melhor se você quer fazer essa viagem comigo.
— Se não a tivesse distraído as questões de honra, vingança e todo o
resto, teria chegado a essa conclusão tempos atrás. — Varian ficou olhando
fixamente. — Por sorte não sou um marido muito exigente. Não me importa
que minha mulher não tenha uma lógica brilhante em todos os âmbitos.
Porque, do contrário, meu romântico discurso não conseguiria que saltassem
as lágrimas. Não se pode ter tudo.
— Não quererá que me ponha a chorar — disse ela. — Depois fico de
muito mau humor. E não quero ficar de mau humor com você. Não esta noite,
embora seja para fazê-lo rir — acrescentou ela com um sorriso. — Porque eu
gosto muito fazê-lo rir, sabe, até quando ao mesmo tempo estou irritada.

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— Porque me aceita tal e como sou, não é assim? Não tentou me reformar,
somente me ajudar a seguir adiante. Tampouco eu quero reformá-la ou mudá-
la, só quero mantê-la a salvo a meu lado, para sempre.
Elevou o olhar e se perdeu na profundidade dos olhos verdes dela.
— Amo você — disse ele. — Só tem que me acreditar.
— Acredito — disse ela. — E seguirei acreditando.
— Então, diga algo. O que quiser.
— Amo você, Varian Shenit Giergi — sussurrou ela. — Com todo meu
coração.
Ele se inclinou sobre ela e roçou docemente os lábios com os seus.
— Hajde, shpirti im — disse ele em voz baixa. — Vêem, amor, e demonstre
isso.

*****

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Loretta Chase

Querido leitor:
Se quer saber um pouco mais a respeito de mim, adiante.
Estudei em escolas públicas de Nova a Inglaterra. Onde nos obrigavam a analisar orações.
E onde nos brocaram com a gramática e a soletração. Este processo brutal resultou ser útil ao
final. Resultou que tudo com o que me lecionaram no colégio — incluindo os malvados
problemas verbais de matemática— foi útil em minha vida posterior. Infelizmente esqueci a
maioria disso.
Minha carreira na Clark University não foi curta. depois de conseguir o título do B.A. em
tão solo o dobro do tempo normal, fiquei para trabalhar em postos administrativos, de
escritório, e como professor a tempo parcial. Também houve outros trabalhos reais com o
passar do caminho: viver muito ajustadamente como vendedora de jóias e roupa, e uma
experiência Dickensiana de seis meses como polícia de tráfico.
Mas minha principal empresa em minha vida foi escrever. Por isso foi que me especializei
em Língua Inglesa em lugar de em algo que poderia me haver permitido obter um trabalho
com um salário real. Os especialistas em Inglês devem ler montanhas de livros e escrever
montões de papéis. Se me tivessem pago por ser especialista em Inglês, minha vida teria sido
perfeita.
Enquanto isso, tanto se alguém queria como se não, escrevi teatro, poesia, cartas, e é

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obvio, a Grande Novela Americana. Isto último sempre e — felizmente— continua inacabado
até o dia de hoje.
Mas nunca ninguém me pagou para escrever até depois de me graduar na universidade,
quando me diplomei como roteirista corporativo. Este trabalho me levou a desgraçado
encontro com um produtor de vídeo quem me induziu com enganos a escrever novelas e com
o tempo chegou a ser o Senhor Chase.
Os livros resultantes desta união ganharam um número surpreendente de prêmios,
incluído o Romance Writers of America Rita.
É um trabalho quase tão esplêndido como ser especialista em Inglês.
Sinceramente sua,
Loretta.

Título original: The Lion's Daughter


Desenho da capa: Departamento de desenho do Random
House Mondadori/Judith Sendra
Fotografia da capa: © John Ennis/via Agentur Schlück GmbH
Primeira edição: novembro, 2006
© 1992, Loretta Chekani

ISBN-13: 978-84-8346-196-9
ISBN-10; 84-8346-196-X (vol. 63/1)
Depósito legal: B. 39.318 - 2006

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